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ALIMENTAR).
COMIDA COMO CULTURA E CULTURA COMO RECURSO. NARRATIVAS
GASTRONÔMICAS PERUANAS E ALGUMAS RELAÇÕES COM HEDONISMO,
DISTIÇÃO E COLONIALISMO.
Autor: Rodrigo Cotrim de Carvalho*
Resumo:
Nos últimos vinte anos, o Peru tem despontado na cena turística internacional também como destino
gastronômico. Antes, a comida eventualmente considerada demasiada exótica, ganha novos
contornos estéticos gourmet que juntamente com uma variedade assombrosa de espécies de insumos
(como tipos de batata, milho, pimenta, grãos, entre outros) tornam a oferta de pratos, algo quase
indescritível, tanto pelas possibilidades de sabores quanto pelas múltiplas referências históricas e
cult urais contidas em apenas um prato. Este artigo busca relacionar quatro narrativas gastronômicas
contemporâneas produzidas por este país com dois movimentos distintos e complementares: a
formação de novos mercados consumidores oriundos da gourmetização e a patrimonialização de
saberes, instituições e alimentos mediada pelo Estado, sugerindo a existência de certa tensão e lutas
políticas nestas relações.
‘Diga-me o que comes e te direi o Deus que adoras, onde você vive, a que cultura pertence e a qual
grupo social está incluído. ’
(Sophie Bess, jornalista e pesquisadora tunisiana).
1
Narrativa entendida como "discurso capaz de evocar, através da sucessão de fatos, um mundo
dado como real ou imaginário situado num tempo e num espaço determinados.” (SODRÉ, 1988).
2
Livro: ‘Análise estrutural da narrativa’ (Editora Vozes, 1973)
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componente simbólico da ação humana, mas que parte integrante, é elemento constitutivo
da vida social
A dimensão simbólica constitutiva da ação humana pode ser verbalizada no
discurso, cristalizada no mito, no rito, no dogma, ou incorporada aos objetos, aos gestos, à
postura corporal, e está sempre presente em qualquer prática social.
Essa concepção básica incorporada no conceito de cultura encontra uma
correspondência imediata na experiência do trabalho de campo, no qual a observação do
comportamento e o comentário formulado sobre ele pelos membros da sociedade aparecem
indissoluvelmente unidos.”.
Considerando então que os registros sobre as práticas também são elementos constitutivos
destas, é relevante destacar o papel da língua neste processo, que serve não apenas de código de
comunicação, mas como paradigma da cultura.
No livro ‘A cozinha peruana: análise semântica do léxico da cozinha na língua quéchua3’, o
linguista Luis Jaime Cisneros Vizquerra nos informa que o vocabulário é o espelho de uma
comunidade, a representação lexical de um povo, é o contato com a leitura de mundo de uma
sociedade sobre seus recursos, técnicas, relações e práticas.
Ainda sobre a expressão de uma determinada visão de mundo através de uma gramática
própria, é relevante lembrar que os nativos ‘andinos’, hoje denominados peruanos, precisaram
renomear seus alimentos, recodificar em novas sonoridades, suas interpretações sensoriais, seus
processos lógicos de ordenação das relações sociais, técnicas de manejos de alimentos, formas de
comê-los, descarta-los, significa-los.
Neste sentido, culturas alimentares milenares nativas foram silenciadas ou invisibilizadas, o
que dá um pouco mais de sentido quando falamos no contemporâneo sobre resgates de técnicas,
alimentos e até referências sobre modos de fazer pré-colombianos, ainda que para fins de
exploração de um turismo de experiência.
3
Tradução livre do espanhol: ‘La cocina peruana: análisis semántico del léxico de la cocina em
lengua quechua’. Este livro foi publicado em 2005 pela Editora da Universidade San Martín de
Porres de Lima em parceria com a Academia Peruana de la lengua. O autor é o linguista Julio Calvo
Pérez. O quéchua é uma importante família de língua indígena da América do Sul, amplamente
difundida nos países andinos e que se tornou a língua oficial do Império Inca, cujo centro
administrativo e militar era situado no território que hoje é a cidade de Cusco, no Peru.
4
Livros: ‘Cultura e sociedade’ (Editora Nacional, 1969) e ‘Cultura’ (Paz e Terra, 1992),
respectivamente.
5
Artigo: ‘Uma cozinha à brasileira’ (Revista Estudos Históricos, v.1, n.33, p. 25-39, 2004.
No artigo ‘Comida como narrativa da memória social’, Renata Menasche juntamente com
Denise Amon acrescenta:
6
Livro: ‘Pureza e Perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu’ (Lisboa, Edições 70, 1966).
7
Livro: ‘Sociologias da Alimentação: os comedores e o espaço social alimentar’ (Editora da UFSC,
2013).
8
Artigo: Sociologia da refeição. Estudos Históricos, v.33, 2004.
9
Artigo: ‘O triângulo culinário’ publicado em ‘Introdução ao estruturalismo: Claude Lévi-Strauss
ou ‘a paixão do incesto’ (SIMONIS, Yvan. Lisboa: Moraes, 1979).
10
Livro: ‘Análise estrutural da narrativa’ (Editora Vozes, 2008).
11
Fonte: www.priberam.pt/dlpo. Acesso em 15 de maio de 2017.
12
Artigo: Território, territorialidade e seus múltiplos enfoques na ciência geográfica. CAMPO-
TERRITÓRIO: revista de geografia agrária, v.9, n.17, 2014.
13
Livro: O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios’ à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
14
Dissertação: ‘Paisagem, terroir e sistemas agrários: um estudo em São Lourenço do Sul’. (Porto
Alegre, 2006. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Ciencias Econômicas.
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural.
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culturais, sociais, ecológicas e econômicas. Ao contrário dos espaços naturais onde a
influência humana é fraca. O terroir depende de uma relação particular, entre a sociedade
humana, suas práticas sociais e seu habitat natural, que formatou a paisagem local.
Segundo Brodhag (1999), considerados do ponto de vista mundial, os terroirs preservam as
biodiversidades sociais e culturais, o que é coerente com os objetivos do desenvolvimento
sustentável. Para Salette (1998), terroir implica em um conjunto de ações e de técnicas
conduzidas por homens, uma produção agrícola e um meio físico a ser valorizado em um
produto ao qual ele confere uma originalidade particular. Dois terroirs diferentes produzirão
dois produtos diferentes. ’
Seguindo nesta perspectiva de desdobramentos econômicos decorrentes do conceito de
terroir, que converge a discussão de comida, cultura e narrativas, podemos então pensar territórios
como espaços em permanente (re) construções, lugares em processos de significação, objeto de
disputas e negociações por diferentes atores sociais, constituindo também lugar de lutas políticas.
15
Revista Horizontes Antropológicos, volume 15, no31, Porto Alegre Jan/Jun, 2009.
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‘A concepção de "cultura como recurso" é tomada pelo autor desde a absorção da
ideologia e da sociedade disciplinar pela racionalidade econômica e ecológica, na
contemporaneidade. Inserida no movimento global das indústrias culturais, que discursam
pela preservação das tradições como forma de manter a biodiversidade, a cultura conteria e
expressaria elementos importantes para os agenciamentos da sociedade civil, visando o
desenvolvimento político e econômico. E trata-se, aqui, de pensar a cultura em um mundo
lançado à crise.
O quadro traçado por Yúdice supõe discutir, no passo das transformações
contemporâneas e seguindo uma orientação fundada em Foucault, as noções de
agenciamento e empoderamento, a performatividade do "cuidado de si", o imperativo social
do desempenho, os movimentos culturais e a positivação legal dos processos identitários
locais frente às agências globais, além das correspondências fabricadas entre a inovação
como alavanca do capital e a cultura.
Movimentando-se analiticamente sobre manifestações exteriorizadas basicamente
nas Américas, Yúdice lança um olhar panorâmico sobre os fluxos globais dos movimentos
culturais originados nesses territórios, com foco aprofundado em alguns deles, para mostrar
como a globalização problematizou o uso da cultura como um expediente nacional. ’
Se pudermos admitir do ponto de vista conceitual que ‘comida’ é ‘cultura’, diante do
contexto de pesquisa colocado neste debate e dessa perspectiva crítica colocada por Yúdice, cabe a
pergunta: poderíamos então falar de ‘conveniências da comida’, já que ela atravessa diferentes
dimensões simbólicas, práticas sociais e também existe em forma de mercadoria passível de ser
consumida? Acredito que sim.
A noção contemporânea (e do senso comum) relacionada à gastronomia enquanto área de
produção do conhecimento humano sobre comer, cozinhar e servir comida vem desde que se
constituiu16 sendo associada às elites do poder (sobretudo econômico e político). A referência mais
comum encontrada em publicações ocidentais desde a Revolução Industrial17 (entre 1789 e 1848),
por exemplo, aloca a ‘alta culinária’ dos nobres de outrora como o epicentro deste notório e
‘exclusivo’ saber sobre comida, registrado em poucos, raros e caros livros. Aos comuns, a
16
Não enquanto prática (que nos remete à origem da vida humana em sociedade), mas enquanto
narrativa (após o período Renascentista europeu). (FRANCO, 2001).
17
(HOBSBAWN, 1962) A Era das Revoluções.
18
Disponível em: https://youtu.be/HodJ1g1XFcs
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lugar na Terra que esconde histórias’, ‘existe um lugar na Terra que guarda mitos e lendas’, ‘existe
um lugar que também guarda segredos’.
Isabella Falco, Diretora da Marca País celebra o trabalho realizado pelo cineasta Luis Ara
em entrevista ao site ‘Perú2119’O Luis Ara é cineasta e turista ao mesmo tempo, um diretor de
cinema que é apaixonado pelo Peru e quer que o mundo conheça os tesouros que nosso país
esconde. Um amante da natureza e da aventura que não teme embrenhar-se em selvas e
desfiladeiros, percorrer desertos, praias e picos nevados para mostrar com arte e sentimento as
culturas vivas que fazem do Peru um país incomparável’.
Esta fala relacionada às ‘culturas vivas’ e o contexto de promoção turística, sugere a
pergunta: se as culturas estão vivas e não apenas ‘museografadas’ em centros culturais ou
‘registradas’ em produtos da indústria cultural, esses tesouros estão escondidos de quem?
Este discurso de ‘tesouro escondido’ aparece em muitas situações associados à ideia de
‘sabores escondidos’, de ‘novas e surpreendentes sensações gustativas’ promovidas pelas mesclas
de sabores presentes em incontáveis receitas provenientes das influências multiculturais e insumos
dos diferentes microclimas. O ‘prazer’ ao comer é algo ressaltado em forma de convites nas peças
de comunicação elaboradas com o propósito de promover a gastronomia como um dois principais
ativos culturais do país.
Este apelo hedonista não só converge com o discurso ideológico e propositivo de revolução
anti fast-food preconizado pelo movimento Slow Food, como fala de uma nova categoria de
consumidores entusiastas de comida denominados: os foodies. Os pesquisadores Julio Cezar da
Silva e Olga Maria Papece esclarecem:
‘Os Foodies de acordo Haddad (2013), são aqueles consumidores
apaixonados por comer e aprender sobre comida. Como comportamento típico dos
Foodies encontra-se frequentar regularmente bares e restaurantes, experimentar
diversos pratos, fotografar os pratos antes de apreciá-los e divulgar por meio de
blogs e páginas de perfis em redes sociais, por exemplo, suas descobertas, fotos e
avaliações sobre suas experiências de consumo.
Esse comportamento dos Foodies está relacionado com a percepção de
Almeida e Rocha (2008, p. 2) de que “o consumo deve ser entendido como um
processo pelo qual os indivíduos se relacionam não apenas com os objetos, mas
19
Disponível em: https://peru21.pe/cultura/pelicula-peru-tesoro-escondido-mostrara-mejor-nuestro-
pais-mundo-88530
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também com a coletividade em que se inserem”. Nesse sentido o que se consome
assume “uma forma não verbal utilizada pelos indivíduos para se comunicarem”
(ALMEIDA e ROCHA, 2008, p. 2).’
Neste sentido da apreciação sensorial, o contexto gourmet se reapresenta para estes
consumidores de classe média (sobretudo um tipo específico de classe média, mais
‘internacionalizada’, cosmopolita, que representaria este ‘estilo de vida’ gastronômico), pois a
palavra em si contém esta prerrogativa de busca sensorial da busca pelo prazer, e neste contexto de
‘estilo de vida’ contemporâneo, expande seus limites e fronteiras para além da questão de distinção
presente na histórica associação desta palavra ao luxo. No entanto, cabe uma reflexão importante.
Vamos recorrer ao trabalho do antropólogo canadense Grant McCracken que em seu livro
‘Cultura e Consumo’ traz uma contribuição importante ao sugerir que uma nova lógica de promoção
de significados atua em direção diferente da ‘pirâmide aspiracional’ tradicional proposta pelo
sociólogo alemão Georg Simmel (a partir da observação do funcionamento do mercado da moda)
que propõe que os grupos sociais ditos inferiores na pirâmide classificatória social, imitariam o
padrão das classes mais abastadas, numa tentativa de promover uma ascensão social ainda que
simbólica. Por sua vez, a classe mais ‘distinta’, ao perceber este movimento de ‘imitação
prestigiosa’, responderia criando novas formas de diferenciação para remarcar as fronteiras e se
reposicionar dentre da sociedade. Toda a argumentação desta teoria está pautada, portanto, numa
classificações a partir de classes sociais.
No centro da proposta de revisão desta teoria por McCracken, está o fato de que as
diferenças entre os grupos não se dão mais somente pela posição social, há determinantes mais
simbólicas, ligadas aos processos de apropriações de naturezas distintas (estilísticas,
comportamental, etc) que substituem (ou relativizam) as reivindicações de status, antes associadas
diretamente (e quase exclusivamente) à renda.
Esta descentralização de “valor” gera fluxos multidirecionais dentro da pirâmide de
consumo. A ‘base da pirâmide’ não mais imitaria necessariamente o ‘topo’. As influências se
alternam, o movimento é cíclico, sem que possamos determinar qual grupo seria o autor de
determinada ‘onda classificatória’ que reflete valores, identidades e leituras de mundo. Estes fluxos
de informações que trafegam em direções não tão lineares, influenciando-se mutuamente, mudam
substancialmente o paradigma da ordem social a partir de uma nova dinâmica de consumo.
Aqui cabem algumas observações com relação ao contexto peruano através da vivência de
um mês em campo e visitas a inúmeros estabelecimentos gastronômicos e da própria experiência
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em diferentes dias no Mistura: os foodies ‘locais’ pareciam estar mais interessados em registrar
fotos de si mesmos nos eventos que participavam do que propriamente dos alimentos. A presença de
uma diversidade alimentar, talvez já naturalizada, parece não conferir status algum, nem de algo
exótico (o que denotaria em alguma medida uma espécie de aventura) nem gourmet, pelo contrário,
conversei com algumas pessoas que fizeram apontamentos sobre ‘o jeito certo’ de fazer tal prato,
por exemplo, com se estivesse corrigindo o cozinheiro profissional expositor (no caso do Mistura,
por exemplo). Suas referências culinárias (no sentido das técnicas de preparo) remontam ao tempo
que ‘peruano comia em casa’ e suas escolhas gastronômicas pareciam ter relação mais com
questões identitárias e étnicas do que aspiracionais (no sentido econômico). A comida para estes
foodies nativos parecia mais contexto que fim. A comida não parecia algo que estavam descobrindo
como os foodies mais ‘cosmopolitas’, mas conectando as pessoas de um modo diferente.
Já os foodies visitantes, principalmente estrangeiros, focam predominantemente seus
registros nos produtos, debruçando-se sob balcões em busca de aprenderem mais sobre determinado
prato (ou insumo), sobre o gosto que ela tem, histórias que contam e como ela pode (ou deve) ser
consumida. Evidentemente que para discutir este assunto, precisaríamos fazer um recorte mais
específico dos perfis dos consumidores diante das histórias as quais são expostos nas peças
promocionais que divulgam a gastronomia nacional peruana, há atravessamentos geracionais e de
gênero, principalmente, nestas práticas. O objetivo desta pesquisa foi de identificar o grupo e
relacioná-lo com o contexto do uso da cultura como recurso, não de discorrer sobre ele.
Diante da ideia de valor gastronômico do produto em si, considerando as buscas dos
foodies, cabe retornar a noção de ‘gosto’ no contexto de Pierre Bourdieu, no sentido de construção
social que passa pela ideia de agenciamento de capitais, estes não apenas no sentido material
(patrimônio financeiro), mas também o social (poder simbólico) e o cultural. A construção de uma
sensibilidade gustativa parece passar pelo trânsito, pelas experiências ‘além-mar’ compartilhadas,
sobretudo em outras culturas. São nestes contatos com o diferente que se formam as fronteiras do
gosto. Em um contexto de deslocamentos sensoriais, as inovações de ordem estética, de produção
ou ainda funcionais referentes aos alimentos, assumem probabilidades múltiplas e o contexto
gourmet, por exemplo, traz releituras para produtos aos quais o público já conhece e que a partir do
discurso hedônico, encontra cada vez mais eco.
Em ‘O mundo dos bens’, a antropóloga Mary Douglas e o economista Baron Isherwood
informam que até meados da década de 1970, as ciências sociais pensavam as estruturas do
consumo em cima de três ‘buscas’: bem-estar material, psíquico (emocional) e social (através da
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exibição pública do bem, independente da sua natureza material ou imaterial). Neste livro, um
marco importante na discussão de consumo sob uma perspectiva que integra as dimensões da
cultura e não se restringe aos aspectos demasiado abstratos colocados pela teoria econômica
centrada na ideia de oferta e demanda a partir da noção utilidade, os autores destacam os
significados compartilhados do consumo onde os bens são considerados os meios de distinção
social, pois as pessoas sentem ao mesmo tempo necessidades de identificação coletiva
(pertencimento) e de delimitação de fronteiras (‘eu/nós’ e os ‘outros/eles’). Como esse processo é
dinâmico, os laços entre indivíduo e grupo são ‘sensíveis’ e ‘renováveis’ e constantemente há
deslocamentos de significados.
Concluindo com uma perspectiva mais macro, o sociólogo Eduardo Vicente Gonçalves20, a
partir de uma reflexão que dialoga com a obra da socióloga Viviana Zelizer nos informa que:
[...] Os temas estudados por Zelizer “mostram que o processo de racionalização e
de transformação do mundo em mercadoria não tem as consequências homogeneizantes e
inescapavelmente corruptíveis antecipadas pelos pensadores clássicos”, já que os
“mercados são inevitável, constante e ricamente formados pelos sistemas de significados
das pessoas e variadas relações sociais” (1994, p. x-xi). O foco fica no plural “os
mercados” ao invés do singular “o mercado”. Para Zelizer (1988), a alternativa buscada
pela Sociologia Econômica – em contraponto aos pensadores da economia (neo)clássica –
deveria considerar um modelo de múltiplos mercados e não um mercado único, amoral e
autônomo; um modelo no qual “uma mesma moeda ou produto de consumo pode ter no
mesmo momento significados universais e locais”(1999, p. 205).
E acrescenta, por fim:
[...] Zelizer (1999) considera que os processos econômicos sempre podem ser
vistos de dois ângulos: se os tomarmos de cima para baixo, nos depararemos com efeitos
homogeneizantes (normalmente partindo de instituições de amplo alcance, como, por
exemplo, um Estado ou uma multinacional); se os olharmos de baixo para cima (no nosso
caso, da ótica da rotina dos consumidores), daremos conta que, ao contrário do primeiro
ponto de vista, o mesmo processo se apresenta com tendências de diferenciação altamente
acentuadas. Não existe contradição nesse esquema teórico, são apenas aspectos diferentes
de um mesmo processo: os modelos de produção e distribuição podem ser universalizantes,
mas o consumo tem o potencial de tornar os mercados particularizantes. A ideia é que,
20
No artigo ‘Um panorama do ‘consumo’ a partir da Nova Sociologia Econômica’. Revista
Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC. Vol. 6 – n.3 – Janeiro-Julho/2009.
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partindo das culturas e etnias locais, os consumidores, além de proporem usos e
significações distintas para os bens produzidos em massa, os adaptam e criam, inclusive,
demandas de produções segmentadas, ao que as empresas normalmente atendem com certa
regularidade.
Em visitas que realizei em alguns museus de Lima, notei de forma recorrente o uso das
expressões ‘pré-colombiana’ e ‘pré-hispânicas’ marcando bem um contexto histórico colonial, onde
me parecia permanente o esforço de dizer nos subtextos: ‘fomos constituídos enquanto nação em
torno de projetos de dominação entre povos, mais recentemente dos Incas sobre diversas etnias
andinas e a partir da chegada de Colombo às Américas, da Espanha com relação aos Incas’.
Ao longo do período em que fiquei na cidade de Lima, talvez por conta dos meus
interlocutores mais próximos serem direta ou indiretamente profissionais veiculados a Educação ou
a área Cultural, constantemente essas expressões apareciam no cotidiano, se referindo a alguma
manifestação cultural ou ainda patrimônio material ou imaterial já reconhecido desta forma pelo
Estado.
No entanto, na Casa da Gastronomia Peruana, tive uma impressão um pouco diferente. Em
função de sua prerrogativa museológica, num primeiro momento sugere-se que o discurso adotado
nas exposições se aproxime da discussão de patrimônio imaterial, revelando camadas e diferentes
contextos das práticas sociais produtoras de símbolos e significados, e que diante do histórico
colonial do país, não se furte de apresentar minimamente os conflitos numa perspectiva crítica desta
parte da história do país, ao menos no que diz respeito à formação de sua cozinha, afinal de contas,
a proposta do museu é de contar essa história a partir de algum lugar.
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Ao longo das exposições permanentes desta Casa, encontrei narrativas sobre a genealogia
gastronômica que tende ao tom conciliatório e pouco problematizador, no sentido de apontar as
disputas étnicas e históricas de significado em tornos das práticas culturais. As relações de
intercâmbios culturais relacionadas à comida não aconteceram de maneira simétrica, horizontal, a
partir de hibridismos e fusões ‘negociadas’ diplomaticamente ou por empatias, e sim diante de uma
conquista ou tomada de territórios, essa relação de trocas, simbólicas ou não, se deu de forma
assimétrica, portanto compulsória. Confesso um estranhamento inicial meu ao uso da palavra
‘aporte’ (no sentido de contribuição) no lugar de ‘influência’ ou ‘origem’ ao se referir a determinada
prática ou alimento oriundo do colonizador espanhol ou dos fluxos migratórios que fundaram o
país.
Nas palavras de Edgar Quispe Remón, então Diretor Executivo do Plano COPESCO
Nacional (iniciativa integrada entre ministérios do governo federal que criou o espaço): ‘A Casa da
Gastronomia Peruana integra uma oferta turística com patrimônio cultural gastronômico. De fato,
agora possuímos um espaço físico que permite disseminarmos permanentemente a natureza
cultural e turística da gastronomia peruana e uma promoção adequada da mesma através da
recriação ao vivo de pratos da gastronomia peruana e seus principais componentes culturais, no
âmbito do seu desenvolvimento local, regional e nacional.’
A partir da minha experiência no museu e da leitura de outras informações de campo,
confirmo minhas impressões iniciais e interpreto este texto de uma forma bem clara: o Estado está
dizendo objetivamente que está buscando esta conciliação narrativa sim, no sentindo de construir
uma visão sobre si mesmo baseada em hibridismos históricos (simétricos e assimétricos), para
desenvolver uma narrativa cultural com fins turísticos, e promover uma identidade nacionalmente
forjada em cima das representações apenas de suas principais composições culturais, escolhidas por
critérios não mencionados ou tão claros.
A pesquisadora Rachel Wilson da Universidade de Siracusa em Nova Iorque evoca o termo
‘gastrodiplomacy’21 para um conjunto de ações diplomáticas adotadas por um país em busca de
promover a(s) sua(s) culinária(s) através de uma marca nacional ou marca País. O termo foi criado
no início dos anos 2000, é mais encontrado em publicações de economia, comércio exterior e
21
Artigo: Cocina Peruana Para El Mundo: Gastrodiplomacy, the Culinary Nation Brand, and the
Context of National Cuisine in Peru. (Exchange: The Journal of Public Diplomacy, Vol 2, 2013)
22
Disponível em: http://elcomercio.pe/gastronomia/peruana/gaston-acurio-cocina-peru-cocina-paz-
266597
23
www.peru.travel
24
2ª edição (APEGA, Lima, 2012)
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Interessante observar como o próprio documento fala das interações e relações entre as
entidades-agentes articuladores deste movimento de promoção da gastronomia:
[...] É importante articular os esforços conjuntos de vários setores (Promperu -
Ministério do Comércio Exterior e do Turismo, Ministério das Relações Exteriores,
Ministério da Educação, Ministério da Produção e Ministério da Agricultura). [...]
[...] A articulação é ainda mais necessária agora que se criou o Ministério da
Cultura que tem entre suas atribuições a promoção das indústrias culturais, dentro do qual
cabe, sem dúvida, um peso de capital de gastronomia. No entanto, não é nenhum segredo
que devemos articular melhor estes esforços. [...]
[,,,] Além disso, você tem que olhar uma coordenação mais ativa entre os
ministérios da Agricultura e Produção em questões como promoção de vinho, pisco ou
queijo. Outra sinergia a trabalhar seria entre as pastas da Agricultura, Produção, Mincetur
(Comércio Exterior), Ministério da Cultura, Ministério do Meio Ambiente e Indecopi
(Entidade que cuida de registros de propriedade, análogo ao INPI no Brasil) em relação às
marcas, rótulos e denominações de origem. [...]
[...] O papel do Estado na promoção da gastronomia deve ser definido a partir das
competências de suas entidades públicas. Também são essenciais os esforços entre os setores
público e privado. A APEGA o gerado se deve criar um Conselho de curadores para a
cozinha e produtos de Peru, uma entidade Coordenador como o que existe em outros países
da region7. [...]
O pesquisador em Estudos Culturais Raúl Matta25questiona se:
‘O sucesso desta iniciativa patrimonial - não a da candidatura, mas das
conseqüências de sua implementação e argumento - reside, portanto, na viabilidade do
discurso, na abordagem realista de seus objetivos, na constante renovação da intenção de
Diálogo e monitoramento durante a implementação de políticas sustentáveis de
desenvolvimento social. Ou seja, para defender o equilíbrio das lógicas da "alteridade" em
sua articulação com determinadas - lógicas supostamente moderadas - do capitalismo
globalizado.’
26
‘Conceituações de Raymond Williams sobre cultura como fundamento para o currículo comum’
(disponível no site www.academia.edu)
27
Artigo: ‘Pequena agricultura e gastronomia: oportunidades e desafios’ de Luis Ginocchio
Balcázar. Lima, 2012, APEGA.
CONTRERAS H., Jesus. 2005. Patrimônio e globalização: o caso das culturas alimentares. In:
CANESQUI, A.M.; GARCIA, R.W. D. (Org.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio
de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 129-146.
______; GARCIA A., Mabel. Alimentación, "cocina" e identidad cultural. In: Alimentación y
cultura: perspectivas antropológicas. Barcelona: Ariel, 2004. p. 201-258.
DA MATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. Correio da Unesco, v 15, n. 7.
1987. (O sal da Terra – Alimentação e Culturas)