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Vidas de rua em jogo

Políticas Públicas, Segurança e Gestão da População de Rua em São Paulo1

Daniel De Lucca Reis Costa


Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)
dandelucca@gmail.com

Resumo: Tendo por intenção problematizar certas práticas e racionalidades políticas voltadas
à população de rua em São Paulo, este artigo desdobra-se em quatro movimentos: introduz
alguns argumentos mobilizados a respeito da esmola e da ajuda aos pobres de rua; apresenta o
surgimento das políticas públicas para a população de rua; situa o albergue como principal
peça institucional no conjunto destas políticas; e termina vinculando os mecanismos de gestão
desta população ao problema da segurança e da prevenção dos riscos. Considera-se aqui que a
população de rua constitui-se enquanto objeto de poderes que agem diretamente sobre as
condições pelas quais se pode jogar com a vida e com a morte nas ruas de São Paulo.
Palavras-chave: Vida de rua; Albergue como política pública; Segurança.

1. Como ajudar os pobres da rua?


No início da gestão municipal Serra-Kassab (PSDB-DEM, 2004-2008), armou-se uma
polêmica em torno da questão da esmola. Num quadro esquemático poderíamos colocar, de
um lado, o sociólogo Floriano Pesaro, novo responsável pela Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social, que afirmava que a esmola apenas piora a miserável
situação daquele que a recebe. O então secretário, preocupado com o reencaminhamento e a
eficiência dos programas municipais agora sob sua gestão, assegurava que a esmola incentiva
e facilita a reprodução das vidas de rua. Ela atrapalharia o trabalho dos agentes sociais que
tentam convencer as pessoas a saírem das ruas e seria responsável pelo aprisionamento e pela
dependência do morador de rua à caridade. “Ao clichê de que a caridade dá o peixe se opõe
um outro, que tem a pretensão de ser libertador: teríamos de ensinar o pobre a pescar”, diz
Pesaro. Com o intuito de “mudar os costumes dos paulistanos” e “conscientizar as pessoas”, o
novo secretário lança a campanha “dê mais que esmola, dê futuro”, dizendo que a opção do
cidadão pela não-esmola seria também um voto de confiança para a ação social praticada pelo
poder público. E nesta empreitada a doação nas ruas é anunciada não só como imoral, mas em
alguns casos até mesmo ilegal, como atesta a censura aos sopões nas ruas2.
Do outro lado desta polêmica poderíamos situar Padre Júlio Lancelotti que,
reconhecido pelo título de Vigário do Povo da Rua, desde meados da década de noventa é o

1
As considerações deste artigo resumem o centro dos argumentos apresentados em palestra no Seminário Nacional
População em Situação de Rua. As informações aqui contidas resultam e integram um conjunto de pesquisas mais amplas,
ainda em andamento, de caráter etnográfico no Centro de São Paulo, onde desde 2001 desenvolvo trabalho de campo
acompanhando os circuitos da rua e do lixo, participando de eventos políticos, visitando cooperativas, serviços da assistência
e, até mesmo, dormindo em albergues. Aproveito aqui para agradecer à Profa. Dra. Norma Valencio pelo convite e pela
oportunidade de participar do evento, e também à Lívia Detomasi e Gabriel Feltran, cujas interlocuções ajudaram-me na
feitura deste texto.
2
Os artigos de Floriano Pesaro, publicados em jornais de grande circulação, “Não dê esmola, dê futuro”, “Sopão nas ruas” e
“Morador de rua – o que fazer?” (este último, assinado também por Andréa Matarazzo, na época subprefeito da região
central) atestam a posição do secretário em relação à questão. Estes artigos podem ser acessados no próprio blog do ex-
secretário, que nas últimas eleições candidatou-se e foi eleito como vereador de São Paulo pelo PSDB
(http://www.florianopesaro.com.br/biografia/quem-e-floriano-pesaro.php). Aponto apenas para o fato de que a mendicância
em muitas cidades brasileiras é proibida e classificada como prática ilegal, sendo que capitais como Florianópolis, Brasília,
Vitória, Maceió, Campo Grande, Fortaleza e João Pessoa, assim como São Paulo, desenvolvem campanhas anti-esmola. O
problema das doações fica ainda mais agudo quando o assunto são meninos de rua. Aqui a esmola é acusada de contribuir
para o trabalho infantil, pois, como diz as campanhas publicitárias, “atrás de uma criança pedindo há sempre um adulto
explorando”.
responsável pela Pastoral do Povo da Rua em São Paulo, importante referência católica sobre
o tema. Lancelotti, ao ser interrogado a respeito das ações do secretário, disse que a decisão
sobre “dar ou não” era uma “discussão de foro íntimo” não cabendo ao poder público legislar
sobre a experiência da caridade. Para o padre, a doação seria um “diálogo pessoal que cada
um deve ter consigo mesmo”, por isso “a decisão não deve ser tutelada pelo Estado”.
Afirmava, ainda, que a crítica à esmola passa a impressão de que as pessoas que pedem
ganham muito dinheiro e fazem da rua um lugar gostoso e agradável de se viver. Num debate
público em que estes argumentos foram lançados diretamente e em tom de afronta para o
próprio Secretário, Padre Júlio Lancelotti afirmava: “quem dá esmola é o Estado que não
apresenta políticas públicas adequadas para o povo da rua”3.
Dar ou não dar? A esmola é um assunto público ou privado? Qual a relevância da
caridade? O que deve o Estado fazer aí? Quais seriam as políticas públicas adequadas para
esta população? Longe de experimentar algumas das razões expostas ou decidir-se por algum
dos lados, trata-se de considerar esta polêmica como um campo adequado para a
problematização dos discursos e das práticas que envolvem as vidas de rua na cidade de São
Paulo. Não sendo nem contra nem a favor da esmola e de tudo mais que o debate carrega
consigo, haveria que se interrogar sobre as formas pelas quais esta questão é enunciada, quais
as razões mobilizadas pelos poderes governamentais e pastorais, suas justificativas e as
soluções expostas, seus vínculos históricos e o solo comum sob o qual os antagonistas
apóiam-se. E, atentando mais detalhadamente para os argumentos aventados pelos dois
interlocutores, pode-se perceber que estes temas não são nem um pouco novos, estão em
verdade atados a práticas e experiências históricas já conhecidas.
Jacques Donzelot (DONZELOT, 1994), ao descrever a ascensão e o aparecimento, no
século XIX, deste setor específico de intervenção que chamou de o “social”, mostrou que o
debate entre caridade e filantropia não só foi o fundamento da assistência moderna, mas
também o próprio anúncio da possibilidade de recuperação, reforma e integração social destes
“derrotados” pela vida. Segundo Donzelot, a filantropia apareceu contra a caridade,
justamente como uma resposta racional ao problema da pauperização em massa que passou a
caracterizar a vida das grandes cidades. A esmola, esta reciprocidade assimétrica que honra o
doador (já que este não espera troco) e não integra quem recebe (pois mantém e aceita uma
existência desviante), além de recolher um tributo competitivo com o próprio Estado, seria
contrária ao esforço racional de intervenção, condução e transformação destas vidas,
aumentando os custos e embaraçando todo o investimento público de capitais e pessoal ali
aplicado.
Aí se situa o cerne do argumento filantrópico: não distribuir peixes, mas ensinar a
pescar; em vez de dom, conselho (é muito mais econômico). Através de uma tutela
esclarecida a assistência busca recuperar no miserável e no dependente o senso de
responsabilidade por sua pobre existência. Sobre a questão social voltam-se os recursos
privados, antes doados dispersamente, e as agências públicas de administração, responsáveis
agora pela supervisão da ajuda. O auxílio não é mais efetuado presencialmente. A dádiva não
é mais direta. Ela deve ser mediada por instituições “idôneas”, responsáveis pela tutela e que
se encontram atreladas a complexos circuitos que conectam desde o Estado, suas burocracias
e aparatos jurídicos, passando pelas empresas e seus departamentos de “responsabilidade
social”, até a exposição pública do cotidiano de privação das vidas de rua. São instituições e
tecnologias de gestão que misturam e conectam o público e o privado, hoje constituem um

3
O debate em questão foi o “Seminário de políticas públicas para a região central”, realizado do auditório do Sindicato dos
Engenheiros no Estado de São Paulo (SEESP) no dia 6 de Junho de 2004. Este conturbado evento contou com a presença de
jornalistas, políticos de peso, religiosos, representantes de ONGs e de movimentos sociais, sobretudo aqueles ligados à
população de rua e aos catadores de materiais recicláveis. Uma etnografia deste evento foi mais detalhada em De Lucca,
2005.
lugar próprio, o chamado terceiro setor, e participam ativamente da montagem daquilo que
François Ewald (EWALD, 1986) chamou de “diagrama liberal”4. Vemos aí um tipo de
racionalidade que conduz boa parte do debate sobre as políticas públicas para a população de
rua em São Paulo, uma cidade com cerca de 13.000 pessoas nomeadamente “em situação de
rua” e que hoje possui a maior rede de atendimento a este segmento na América Latina.

2. Políticas públicas para população de rua


A primeira vez em que se falou em “políticas públicas para população de rua” foi na
virada para os noventa, durante a gestão Erundina, momento este em que também se fez a
primeira contagem, coordenada pela própria máquina pública, para se saber quantas vidas
efetivamente se encontravam nas ruas do centro de São Paulo. Na ocasião, já se começava a
reconhecer na rua um fenômeno coletivo e de massa. A partir de pesquisas e de inúmeras
discussões sobre “quem são estas pessoas”, “como vivem” e “como são vistas” (VIEIRA et
al, 1994), esta realidade ganhou caixa de ressonância e passou a ser nomeada publicamente
em termos de “população”, uma categoria mensurável e previsível em suas regularidades
internas, uma categoria estatística que, como diz Michel Foucault, remete diretamente à
“razão de Estado” (FOUCAULT, 2008). Nesta virada, a miséria das ruas passou a adquirir
outro estatuto de inteligibilidade, deixando de ser vista simplesmente como decorrente da
“preguiça”, “vagabundagem” e da “má-escolha”, e passando a ser entendida como uma
condição forçada, como um fenômeno ligado ao desemprego, ao crescimento da pobreza e à
falta de moradia.
Espécie de acontecimento discursivo e urbano, a população de rua emergiu num dado
campo histórico como uma questão pública relevante e aos poucos foi deixando de ser tratada
pelos aparelhos estatais unicamente pela violência e pela coerção. Viu-se que a simples
repressão à vagabundagem tornou-se incondizente com o tipo e o tamanho do problema.
Transformação da qualidade e da quantidade da questão, portanto. Agora, os poderes públicos
e os agentes da ordem precisariam conhecer melhor esta realidade, para cuidar e organizar as
vidas de rua, vidas incertas que, ao serem agregadas por critérios estatísticos e de
probabilidade, transformaram-se em um grupo populacional de risco, caracterizado, entre
outras coisas, pela extrema miséria, pela ausência de vínculos familiares e empregatícios e
pelo nomadismo urbano. É deste campo de práticas que nasce a população de rua: um
público-alvo para políticas focais e de inclusão urbana; objeto de poder e saber que, anos
depois, se transfigurará em um novo sujeito de direitos, com um movimento social próprio a
representar os interesses desta população5.
À época dos debates na gestão Erundina, a reflexão prática e governamental sobre o
problema ocorreu juntamente com a busca por modelos de intervenção a serem estabelecidos
como política pública. Dada as condições históricas daquele momento (a democratrização, o
papel das Comunidades Eclesiais de Base e todo o referencial discursivo da época), as

4
Este seria um regime de relações pautado, de um lado, no princípio simétrico da igualdade e da equivalência contratual,
assegurando a liberdade individual de todos aqueles que possuem uma autonomia econômica. Do outro lado, o “diagrama
liberal” estaria fundado em relações hierárquicas e desiguais, impondo a tutela e a sanção normalizadora para todos aqueles
“incapazes de andar por suas próprias pernas”. Como explica Donzelot, “a tutela permite uma intervenção estatal corretiva e
salvadora, mas às custas de uma despossessão quase total dos direitos privados” (DONZELOT, 87:2001). A diferença que
articula o contrato e a tutela é, portanto, efeito direto de uma racionalidade governamental do tipo liberal que postula que,
para os que “vão bem”, laissez faire, laissez passer, já para aqueles que “não andam muito bem” a solução é a ação
interventora do Estado, destituindo a autonomia das vidas desregradas e impondo rígidas normas para que estas “andem na
linha”.
5
Até os anos noventa, a rede de práticas e a linguagem que dava inteligibilidade a questão era radicalmente outra. As
classificações existentes, além dos já conhecidos “mendigos”, “trecheiros” e “maloqueiros”, eram aquelas utilizadas pelos
atores ligados à Igreja Católica, tais como “povo da rua” e “sofredores de rua”. Uma reflexão mais aprofundada sobre o
nascimento da população de rua como figura original da questão social em São Paulo pode ser encontrada no meu mestrado
(DE LUCCA, 2007). Outras referências históricas sobre o fenômeno também podem ser consultadas em ROSA, 1995 e 2005,
DOMINGUES, 2003, BARROS, 2004, além do formidável trabalho de FRANGELLA, 2004.
respostas de caráter mais institucional eram mal-vistas, pois se imaginava que as vidas de rua
poderiam ser modificadas através de técnicas pautadas na formação de comunidades,
trabalhos de grupo e casas de convivência. As grandes estruturas de albergamento eram
interpretadas como ineficazes e desumanas, e as experiências comunitárias e religiosas com os
então “sofredores de rua” acenavam para a importância de se lidar com estas vidas através de
dinâmicas coletivas em espaços menores de troca e diálogo. No entanto, o que se viu
posteriormente, foi um radical deslocamento dos ideais épicos agenciados naquele período.
A intensidade das lutas travadas em torno do tema, os múltiplos conflitos entre as
várias administrações municipais e os atores envolvidos, a proliferação dos discursos sobre o
tema, bem como o crescimento numérico do fenômeno, toda esta complicada trama de
mediações acabou por suscitar a criação de uma malha institucional que passou a colonizar
estas vidas. De modo que o circuito dos espaços e dos pontos de referência existentes para a
população de rua se integrou e se ampliou no desdobramento desta história. De um conjunto
de elementos escassos, dispersos e desarticulados, no decorrer dos anos noventa, uma rede se
articula e se estende, ganhando peso e densidade, com mais funcionários e usuários, com
outros equipamentos e procedimentos, novos diagnósticos e técnicas terapêuticas, e, na
passagem para o novo século, adquire uma lei própria que busca regulamentar e orquestrar o
conjunto do dispositivo, hoje totalmente informatizado. E a principal peça desta complicada
aparelhagem técnico-institucional é o albergue.
Sendo até então um tipo de equipamento voltado unicamente para os enfermos e para
os migrantes que chegavam à cidade em busca de trabalho, com o tempo o albergue passou a
adquirir novas formas, funções, usos e usuários. Tornou-se a principal política pública para a
população de rua, sendo que atualmente seu objetivo é servir como lugar de abrigo
emergencial para este contingente. Contudo, o discurso emergencial e provisório assumido
pelo albergue tem na sua base uma prática que o coloca como moradia permanente para um
grande número de pessoas. Na última década do século passado, a quantidade dos albergues
cresceu significativamente e, na prefeitura de Marta Suplicy (PT, 2001-2004), seu número
praticamente dobrou. Entretanto, a última gestão municipal, Serra-Kassab (PSDB-DEM,
2005-2008), apresentou pelo menos uma diferença assinalável em relação a veloz criação de
novos albergues: buscando evitar a permanência de moradores de rua no centro da cidade, as
novas instituições que estão sendo abertas agora não se localizam mais nesta região,
gradativamente estão sendo deslocadas para as periferias da metrópole, retirando as vidas de
rua do centro das atenções e dos olhares, e misturando-as com outras figuras da pobreza
urbana.

3. A maquinaria albergal
De um ponto de vista conceitual, o albergue poderia ser definido como uma instituição
semi-fechada, já que seus praticantes participam de um intenso fluxo entre o dentro e o fora.
Não podendo lá permanecer todo o dia, os usuários entram à tarde e têm de sair de manhã
cedo. Na sofisticada acepção de um usuário ele seria “um campo de concentração semi-
aberto”. Ora, “semi-fechado” ou “semi-aberto”, não há dúvida que a dinâmica do albergue
possui inúmeros traços comuns com as instituições totais analisadas por Michel Foucault e
Erving Goffman. O jogo das forças ali investido busca incentivar seu usuário na
transformação de sua vida, na busca de seus documentos e de sua família, de sua “motivação”
e “auto-estima”. Para isso, o corpo do indivíduo, seus desejos, seus gestos e sua fala, são
colocados sob a vigilância atenta da câmera, da assistente, do monitor, do educador e, por
vezes, do próprio colega ao lado. Ali o usuário, de um modo ou outro, tem de se submeter à
horários, lugares, normas rígidas, números, fichas cadastrais e filas para quase tudo.
Examinadas e organizadas por tais mecanismos, estas vidas não só são interpretadas como um
fenômeno populacional e de massa, elas efetivamente são tratadas como tal. São vidas que se
tornaram anônimas graças aos aparatos de controle que, estabelecendo senhas, números e
cifras, segmentam uma multiplicidade de vidas através de tecnologias informatizadas de
individualização e serialização coletiva.
Para se conseguir uma vaga no albergue, o candidato tem de passar por sucessivos
procedimentos e rituais de instituição. Desta codificação é que se define sua identidade e seu
lugar na maquinaria albergal. Após as filas de espera, o candidato é questionado sobre o
“porquê de sua situação de rua”. Ao ser entrevistado pela assistente, o interrogado elabora um
discurso sobre si, sobre sua existência e as ínfimas tragédias pelas quais passou. De modo a
incentivar a narrativa, as perguntas freqüentemente se voltam para a relação dele com o
álcool, com a droga, com o corpo, com a lei, com sua família, com sua casa e seu trabalho.
São nestas relações que são investidos os discursos, tanto daquele que interroga, quanto
daquele que confessa.
Neste processo, o fino fio da linguagem vai passando e costurando os pontos do
acolchoado autobiográfico, vai ligando os pequenos retalhos da vida, tecendo uma narrativa
explicativa sobre as minúsculas incapacidades e falhas do dia-a-dia. Irregularidades mínimas
que, talvez, se fossem manifestas em outras condições e por outras pessoas seriam tidas como
sem importância. O desabafo de um usuário explicita isto: “Todo mundo deste planeta bebe,
fuma, fica na rua, falta algum dia no trabalho e briga com os filhos. Mas a gente não pode
fazer isso. E se eu fizer qualquer coisa dessas o assistente vai e briga comigo. E por que isso?
Porque acham que todo mundo aqui é mendigo!”. Mas é justamente todo este conjunto de
desordens pequenas e ordinárias que o discurso do atendimento tem o poder de fazer aparecer,
trazer à realidade. Irregularidades banais que aos poucos vão se transformando numa poderosa
e insistente verdade, definindo a identidade do albergado e definindo o perfil de um sujeito
problemático.
O conjunto dos rituais da instituição permite a feitura de uma ficha social que é
registrada, acumulada e arquivada no Sistema Integrado de Informação da População de Rua
(SISRUA). A partir de então, o insignificante destas vidas ínfimas e infames, “existências
destinadas a passar sem deixar rastro”, como fala Foucault (2006), cessa de pertencer ao
silêncio, surge como discurso, aparece na tela de um computador e passa a circular no interior
de um grande dispositivo sócio-técnico. A comunicação instantânea permite monitorar
continuamente as singularidades individuais e os comportamentos globais destas vidas.
Mas todas as informações retidas no SISRUA são efeitos de perguntas muito bem
orientadas. Isso porque a linguagem que escreve é a mesma linguagem que prescreve. Toda
pergunta determina seu horizonte de resposta e exclui do jogo discursivo aquilo que não foi
efetivamente perguntado. Entendemos, então, por que é que estas fichas sociais são quase
unicamente compostas de falhas, fraquezas e incapacidades: quem procura acha. Um usuário
nos esclarece o assunto: “o SISRUA é um sistema que só aponta as coisas ruins das pessoas,
todas as coisas boas da gente não estão lá”. São justamente estas “coisas ruins”, estas
desqualificações e distúrbios que delimitam discursivamente um campo de conhecimentos
que define a população de rua. Assim, este aparelho administrativo não é apenas agente da
assistência, dos serviços e dos encaminhamentos dos indivíduos para outros serviços da rede,
mas um aparelho que é também um aparato de saber. Os cadastros, relatórios e fichas sociais
permanentemente produzidas, constituem um saber sobre esta população, um saber que é co-
extensivo ao próprio exercício de sua gestão, já que lhe indica o que existe e o que é possível.
É este saber que justifica os financiamentos públicos e privados, as parcerias e as ações
institucionais, orienta as campanhas envolvidas (tais como a “anti-esmola”), aperfeiçoando os
mecanismos de gestão da população de rua. Assim, estas técnicas informatizadas que
implicam diferentes indivíduos num mesmo conjunto de arquivos digitalizados tem o poder
de codificá-los e nomeá-los oficialmente como população de rua, uma categoria definida
unicamente por sua negativa, por suas faltas e incapacidades.
Daí se entende um pouco mais toda resistência que se têm para com estas instituições.
Como que por uma repetição tautológica de tragédias e rupturas, estes mecanismos
institucionais impõem aos usuários o reconhecimento do fracasso de suas vidas, asseverando
seus erros, por mais banais que sejam. Todos aqueles que se vêm capturados por este aparato
são automaticamente classificados como “população de rua”, independente de terem ou não
experiência de rua. Com isso, num mesmo e precário espaço concentram-se figuras e
vulnerabilidades das mais diversas: idosos, deficientes físicos, casos de saúde mental, ex-
presidiários, foragidos (da polícia ou do crime organizado), toxicômanos (cada vez mais
jovens), gente desalojada de suas casas, soropositivos e tuberculosos. O conjunto dos
desfiliados e dos rejeitados urbanos, não tendo para onde ir, vão parar no albergue,
transformando-se, fazendo parte e inflando o número dos “indivíduos em situação de rua”.
Extremo paradoxo este, no qual um grupo tido como excluído agora se torna uma categoria de
inclusão: todos desfavorecidos agora podem por ela serem incluídos. Mas é uma inclusão
perversa, visto as abomináveis condições de higiene dos albergues em São Paulo, seus
espaços insalubres, em muitos casos superlotados, onde as pessoas amontoam-se e convivem
rotineiramente com brigas e doenças6.
Em São Paulo são mais de 9.000 pessoas que vivem deste gerenciamento institucional
da precariedade. E no circuito das ruas fala-se muito dos albergues, sobre o que é e sobre o
que eles deveriam ser. Todos esses comentários voltados unicamente para problemas de
atendimento e de equipamento, direcionados unicamente para fatores internos à instituição,
apenas demonstram a dificuldade que se tem de imaginar, pensar e criar um outro modelo de
moradia e abrigamento para estas vidas. No entanto a resistência a estas instituições
permanece sendo enorme. Ao mesmo tempo em que o albergue passou a estruturar parte do
cotidiano das vidas de rua, ele também se tornou inimigo delas, alvo incessante de
reclamações, exigências e acusações. Em relação ao albergue as vidas de rua estabeleceram
um complicado jogo de complementaridade e oposição, vinculação e recusa, dependência e
resistência, tal qual o nômade e o sedentário.
Feito para quem não tem para onde ir, “feito para quem não têm onde cair morto”,
como ali se ouve, o albergue efetivamente tornou-se a principal política pública para a
“inclusão social” da população de rua em São Paulo. Funcionando como um dispositivo de
estocagem, ele recolhe, armazena e mantém sob vigilância uma heterogênea multidão de
sujeitos e subjetividades. Ao intervir homogênea e negativamente sobre a diferença, a
maquinaria albergal torna-se uma fábrica de produzir identidades maculadas, trabalhando na
redução da intempestiva alteridade que lá se manifesta, e, por vezes, recusando o significado
que estas vidas dão para suas próprias vidas. Tudo se passa como se este aparato não buscasse
nem a “reinserção” e nem a “autonomia” dos moradores de rua, mas sua neutralização e seu
esquecimento, preparando-os, talvez, para esta forma derradeira de ostracização que é a
aniquilação física. Este lugar feito especialmente para proteger a vida dos riscos e perigos que

6
Seria necessário lembrar que as péssimas condições do albergue não afetam apenas seus usuários, mas também todos
aqueles que trabalham neste espaço. Isso, pois os funcionários também são tratados em termos de massa e respondem por
números no anonimato da instituição. Além disso, as dificuldades de se trabalhar ali são enormes, não há para onde
encaminhar as infinitas demandas que aparecem, os hospitais e as clínicas de desintoxicação parecem nunca ter vagas e ao se
chamar uma ambulância no albergue ela pode demorar horas e até mesmo não aparecer. Um funcionário me disse: “a saúde
não se interessa por atender este pessoal, eles dizem que são casos sociais e não de saúde”. Também ouvi em campo vários
relatos de pessoas que morreram nos albergues na espera da ajuda médica. Além destes problemas, muitos profissionais dos
albergues fazem duas jornadas por dia para melhorar sua renda em casa, possuem contratos de trabalho altamente precários e
lidam diretamente com um público que se encontra, também, numa situação precária. E é neste espaço sobreprecarizado que
se busca “inserir os moradores de rua na sociedade”. Mas, mesmo com todos estes problemas, esses trabalhadores sociais
conseguem, de um jeito ou outro, se apresentar publicamente como participantes de organizações racionais, planejadas e
eficientes na reforma e reintegração social de seus assistidos. Vemos aqui mais uma dificuldade com a qual tais trabalhadores
têm de lidar cotidianamente: o hiato entre aquilo que realmente fazem e aquilo que oficialmente dizem e lhes é cobrado fazer.
emanam da rua, tornou-se, ele também, um lugar de morte, senão de uma morte física, ao
menos uma espécie de morte social em fogo brando.

4. Vida e rua: assegurando os riscos


Mas não haveria aí uma contradição? Ao que parece não. Isso porque as péssimas
condições dos serviços prestados a estas pessoas são totalmente condizentes com o objetivo
desta política inclusiva que busca fornecer apenas os “mínimos sociais”. O próprio Floriano
Pesaro, ex-secretário da assistência social, explicou isso ao visitar um albergue: “existem os
mínimos sociais e o albergue é o mínimo do mínimo. Agora, o albergue não pode ser tão ruim
que a pessoa não queira entrar, e não pode ser tão bom a ponto que a pessoa não queira sair”.
Então, se é verdade que tais instituições foram criadas para prover o “mínimo” a estas vidas,
também é verdade que elas possuem uma outra função: a segurança e o ordenamento da
própria rua.
Desde o advento da cidade moderna e suas utopias, a rua adquiriu uma função
estratégica, encarnando o valor de espaço público, de circulação e de disciplina. Por isso a
importância de se cuidar da rua, de se ter uma boa rua, de fazer a rua funcionar bem,
garantindo as circulações, as trocas econômicas, sua limpeza e as normas de civilidade. O
bom governo das ruas assegura a reprodução da cidade e a qualidade da vida urbana. Por
outro lado, viver nas ruas e viver das ruas é um modo de existência que coloca em xeque os
valores instituídos tanto em relação à rua como à vida. As vidas de rua deslocam e borram
nossos princípios e limites entre privado e público, sujo e limpo, saúde e doença, também
razão e desatino. Poder-se-ia afirmar, portanto, que vida e rua são termos que se repelem, daí
sua junção ser tão problemática, tão desestabilizadora. O primeiro termo deve ser prevenido
dos riscos da morte e do sofrimento que a rua lhe pode causar; o segundo deve ser assegurado
para que sua função urbana, de espaço público e de circulação, não seja desvirtuada por vidas
que queiram se fixar nas ruas e que supostamente privatizem-nas indisciplinadamente.
Com isso, quero argumentar que as políticas públicas para a população de rua devem
ser entendidas como parte de um dispositivo de segurança, ao mesmo tempo social e urbano,
que tem em seu horizonte a prevenção dos riscos que ameaçam a reprodução da vida e da
cidade. Isso porque a expulsão e a recolha das pessoas dos espaços públicos se faz
simultaneamente em nome da “proteção social” e da “limpeza das ruas”.
Diariamente uma rede de arrasto atravessa as ruas de São Paulo banindo pessoas e
recolhendo mediante a força física seus pertences (sendo que alguns destes são os próprios
documentos e instrumentos de trabalho, como a carroça e os materiais dos catadores). O
grande elevado da região central, também conhecido como “minhocão”, onde se concentram
muitas pessoas dormindo, bebendo e comendo debaixo do viaduto, é um alvo exemplar destes
aparelhos de captura. Noite sim noite não, uma ampla comitiva de policiais, agentes sociais e
profissionais da limpeza urbana revista as pessoas, tenta levá-las para os albergues, retira os
materiais que ali se encontram e lava as ruas com jatos de água. Junto com as viaturas da
polícia, os caminhões de lixo e os carros pipa, estão também as peruas da CAPE (Central de
Atendimento Permanente), que transportam os moradores de rua para os albergues. Ali, na
lataria da Kombi, se pode ler o nome do programa que orienta esta política: “São Paulo
Protege”.
Ambivalência imanente à própria questão: de um lado, trata-se de proteger as vidas de
rua, tutelá-las, retirá-las da rua, conjurar os perigos que ameaçam suas vidas e conduzi-las à
autonomia e à maximização de suas forças; de outro lado, o foco é justamente cuidar da rua,
garantir sua vital importância para o conjunto da cidade, defendendo a vida urbana como um
todo, prevenindo a “desordem urbana que traz a criminalidade” e mantendo a “cidade limpa”.
Vemos então que entre inclusão e exclusão, entre cuidado e repressão, entre proteção social e
higienismo urbano, nenhuma exterioridade, mas passarelas e comunicações entre
racionalidades políticas parceiras e solidárias. É que a população de rua enquanto um sujeito
de direitos foi constituída justamente na base da “queixa”. Apareceu primeiro como problema
público através das constantes reclamações que os comerciantes, transeuntes e moradores
faziam aos órgãos da municipalidade. As exigências dos cidadãos pela retirada dos moradores
de rua, deram visibilidade a estes, à suas condições indignas de vida e à necessidade de serem
reconhecidos eles também como cidadãos.
Contudo, esta última parece nunca ter se consumado efetivamente. É o que se vê
atualmente no Centro de São Paulo, alvo de políticas de gentrification7 e de poderosos
investimentos em nome da “qualidade total” da vida urbana. Na tentativa de “banir os
mendigos do Centro”, como falam os jornais, as técnicas de poder voltam-se para a própria
materialidade das ruas, quando não diretamente para os corpos itinerantes. O meio de vida
torna-se também um modo de se atingir a vida, agindo não diretamente sobre os corpos e as
vidas de rua, mas sobre suas causalidades laterais e suas condições de sobrevivência. Com
isso, os mecanismos de gestão da população de rua atravessam toda uma série de variáveis e
mediações que vão afetar o fenômeno que se busca governar. São campanhas públicas “anti-
esmola” e contra as doações de alimentos nas ruas, fechamentos de depósitos de materiais
recicláveis, a proibição das carroças circularem, o trancamento dos lixos nas ruas, o
deslocamento dos albergues para a periferia, também a “rampa anti-mendigo”, o banco “anti-
mendigo” e várias outras tecnologias e pedagogias do espaço urbano.
A obsessiva afirmação pelo “direito à segurança” está diretamente implicada no
aumento dos mecanismos de controle e contenção de populações consideradas de risco. O
estilo policial e penal das políticas made in USA, importadas hoje no atacado, também estão
sendo muito bem recebidas pela atual gestão municipal paulistana em sua preocupação com a
administração da insegurança social. Na boca das autoridades e dos meios de comunicação de
massa, a violência e a segurança tornaram-se a explicação primeira para a dinâmica da cidade
e do espaço público. O medo e o discurso do crime acabam por transformar a própria
materialidade da cidade instaurando um novo padrão de segregação urbana. Como as ruas
foram tomadas por “marginais”, “gente de bem” não pode mais usá-las e, temendo o perigo,
enclausuram a si mesmos em condomínios fechados e shoppings centers (CALDEIRA, 2003).
Assim, todos aqueles que não seguem à risca as normas de incivilidade, tornam-se
possíveis alvos de coerção e expulsão. Tendo como potente retaguarda um sistema carcerário
e albergal em franca expansão, as técnicas de “tolerância zero” investem pesadamente sobre a
incivilidade das ruas e seus pequenos delitos. No entanto, como diz Wacquant
(WACQUANT, 2001), tais técnicas policiais revelam-se em verdade enquanto uma
“tolerância seletiva”: selecionam sempre os mais despossuídos. Na “guerra contra os
bandidos”, não se busca impedir o crime e a corrupção, mas estabelecer uma guerra contra os
pobres.
Michel Foucault teve o mérito de nos lembrar que os mecanismos de segurança e de
defesa social sempre estiveram atrelados ao discurso da guerra, senão uma guerra contra

7
Os processos de gentrification referem-se às transformações das paisagens de centralidades urbanas históricas.
Tais processos são acompanhados, mormente, por uma série de características entrecruzadas nas quais se podem
constatar: a violenta e agressiva expulsão dos setores das classes baixas; os investimentos imobiliários
extremamente concentrados; a ação do Estado operando como um importante indutor deste processo (fraco
indutor como no caso dos EUA, ou forte indutor como no caso brasileiro); a organização de iniciativas privadas
locais em associações buscando publicizar o fenômeno e atrair fontes externas de financiamento; as parcerias
público-privadas de caráter eminentemente especulativo (em que muitos casos o setor público assume os riscos e
o privado fica com os benefícios); e a tentativa de transformação da paisagem em um cenário espetacular que
hipoteticamente poderia lançar uma sombra benéfica sobre toda região metropolitana. A bibliografia
internacional sobre o tema é vasta. Para uma análise do caso paulistano ver FRÚGOLI JR., 2005 e para um
maior detalhamento do papel dos movimentos sociais neste contexto ver FRÚGOLI, DE LUCCA e AQUINO,
2006.
inimigos externos, ao menos uma “guerra interna”, contra os perigos que nascem do próprio
corpo social. E num momento em que os elos discursivos entre pobreza e criminalidade
ganham cada vez mais força no país, facilmente uma população que se encontra ameaçada,
pode ser vista como ameaçadora. Também aí, facilmente as políticas de combate à pobreza
transformam-se em política de combate aos pobres. Submetidos às burocracias da assistência
social e seus aparelhos panópticos de gestão da pobreza, os indesejáveis urbanos são
investidos por um poder que age sobre suas vidas – a rigor, o biopoder que fala Foucault
(FOUCAULT, 2004).
Mas e aqueles que permanecem resistindo, desviando e burlando todos estes
dispositivos de poder? O que resta aos indivíduos ingovernáveis refratários às respostas
institucionais para eles criadas e que vivazmente a recusam? Aos que não aceitam se tornar
dependentes da assistência e promovem diariamente uma espécie de desobediência civil, ou
mais precisamente, uma desobediência à civilidade, estes, sim, têm de aprender a jogar com
sua própria vida. A territorialização de suas existências se faz nas próprias linhas de fuga,
traçadas no limite do risco entre o tornar-se público-alvo cativo da assistência e vivenciar as
violências da rua, entre o ter sua vitalidade neutralizada e apagada e morrer de morte-matada.
A mesma potência daqueles que contornam e escapam dos dispositivos de segurança, pode
muito bem levá-los à morte.
Mas esta é uma morte que também se pode realizar em nome da própria segurança. A
prova disto é o “massacre dos moradores de rua”, cujos principais suspeitos são policiais
militares e agentes da segurança privada. Dos suspeitos, o único condenado até agora foi um
policial militar, mas não por estar implicado no massacre e sim por matar uma testemunha
que tinha presenciado o crime8. De modo que a impunidade destes assassinatos (ainda que os
policiais acusados os tenham confessado) permanece sendo um foco de indignação para
muitos. Mas a violência contra as vidas de rua pode ser agenciada por objetivos dos mais
variados, como, por exemplo, diversão. Um caso amplamente noticiado pela imprensa (em
verdade, o primeiro do tipo que chegou à grande mídia) explicita bem o valor dado a estas
vidas. Após terem queimado vivo o índio pataxó Galdino dos Santos, que em 1997 dormia
num abrigo de ônibus em Brasília, os dois jovens de classe média justificaram para a
imprensa e para si mesmos o ato: “não sabíamos que era um índio; pensávamos que fosse
apenas um mendigo”!9
Ora, num caso como no outro, o que conecta e explica tais mortes é o simples fato de
serem “mendigos” as vítimas. Assim, aos que negam, não querem ou não conseguem inserir-
se nos canais formais de identificação, estes podem ter suas vidas totalmente devassadas. É
por isso que têm de aprender a viver no limiar que estabelece aquela distinção, feita por Pierre
Clastres, entre etnocídio e genocídio (CLASTRES, 2004). Para o antropólogo, tanto um
quanto outro teria em comum o fato de pautarem-se por uma perspectiva etnocêntrica e ver a
alteridade, essencialmente, como uma diferença má e inferior. Contudo, o objetivo do

8
O “Massacre do Povo da Rua”, como também ficou conhecido, refere-se ao acontecimento ocorrido em agosto de 2004,
quando quinze pessoas que pernoitavam nos arredores da Praça da Sé foram agredidas com fortes pancadas na cabeça.
Destas, sete pessoas foram mortas de imediato, alguns sobreviventes morreriam posteriormente e outros estão até hoje
desaparecidos. Devido ao número de vítimas – sete mortos e oito feridos –, o caso saiu da esfera do 1° Distrito Policial, que
cuida das ocorrências do Centro Velho da cidade, e foi parar num departamento “especializado em chacinas”, a Delegacia de
Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil. No período, os jornais anunciavam que os investigadores dos
ataques trabalhavam com quatro hipóteses: “briga de facções rivais de mendigos em luta pelo território”, “represálias por
traficantes da região”, “crime encomendado pelos comerciantes locais para limpar a área” e “prática de extermínio por
gangues de skinheads”. Como as agressões haviam sido praticadas através dos mesmos procedimentos, com o tempo a idéia
de um crime premeditado foi se estabelecendo de forma cada vez mais forte. Posteriormente, os suspeitos do crime foram
tidos como policiais militares atrelados a um “esquema de segurança privada” e as matérias dos jornais passaram a associar
diretamente o evento com a Chacina da Candelária no Rio de Janeiro.
9
Apesar de terem sidos acusados de crime hediondo, os jovens tiveram sua pena abrandada pela justiça e despeito de se ter
comprovado que os acusados haviam comprado dois litros de álcool para a ocasião. Apenas lembro que estes casos figuram
em meio a outras práticas de extermínio, inúmeras, que ocorrem frequentemente, não só em São Paulo, mas em todo país.
etnocídio não é a destruição física do outro, mas a destruição de seus modos de fazer, pensar e
ser, a aniquilação de seu modus vivente. Já no caso do genocídio (termo que só foi definido
juridicamente após o holocausto), sua finalidade é o extermínio e a negação da existência
física de uma dada alteridade vista como descartável e prejudicial. Em ambos casos, trata-se
sempre da morte, mas de uma morte diferente: no primeiro caso, supressão da forma de vida,
e no segundo, supressão da própria vida; num caso, o diferente é visto como um desvio
passível de recuperação; no segundo caso, admite-se que sejam vidas incorrigíveis,
incuravelmente perdidas e, por isso mesmo, vidas matáveis.
E é entre etnocídio e genocídio que se decide sobre aquilo que Giorgio Agambem
chamou de “vida nua”, uma zona-limite de negociação onde se traça o ponto em que a vida
cessa de ser politicamente relevante e onde se joga com o limiar além do qual a vida pode ser
impunemente eliminada (AGANBEM, 2007). Entendemos então por que os assassinatos e as
mortes de rua nem sempre são reconhecidos como homicídio, mas apenas como perpetuação
da “limpeza das ruas”. Os “vagabundos”, como ainda se diz por aí, são tratados como “não-
gente”, “inúteis ao mundo” e “supérfluos”. É essa espécie de racismo que dá azo à violência e
às mortes de rua: ambas tornaram-se uma solução possível, quando não “a solução final”, ao
problema das vidas de rua.
Viver nas ruas implica em saber sobreviver na adversidade frente às duas faces dos
dispositivos de segurança, sejam eles governamentais ou não-governamentais. E é
precisamente nesta bifurcação que os movimentos sociais, seus colaboradores e ativistas
envolvidos também têm de lutar. Em manifestações e eventos políticos reivindicam o “direito
à vida” afirmando “somos um povo que quer viver!”. Contra a expulsão do espaço público e a
violência dos agentes da ordem urbana, os gritos de guerra também lançam “temos o direito à
rua!”. Vida e rua: são nestes dois flancos que os conflitos em torno da população de rua
atualmente desenrolam-se. Uma luta agonística que não parece apresentar nenhuma solução
fácil. Mas é neste mesmo ponto liminar e de indiscernibilidade, que as vidas de rua revelam-
se enquanto potência, afirmando sua existência como vida digna de ser vivida e colocando em
pauta a importância de se repensar a própria rua como um espaço urbano digno para a vida e
para o trabalho.

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