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INTRODUÇÃO
Astrid Cabral é uma das vozes femininas que se destaca na verve da poesia escrita no
amazonas. Tornou-se nome de relevância no movimento literário gestado na cidade de Manaus
em 1954, uma união dos vários intelectuais a que viria constituir-se um dos mais influentes na
literatura regional desse período: o Clube da Madrugada.
Publicado em 1963, o livro de contos intitulado Alameda faz com que Astrid ganhe
destaque na literatura, apesar de, até então, ser o único livro do gênero produzido pela escritora.
Depois de quase duas décadas sem publicar traz a público, em 1979, seu primeiro livro de poesia
intitulado Ponto de cruz, sobrecarregado de intimismo cuja intensificação se verá nos livros
posteriores, como em Visgo da terra, objeto deste estudo.
Em Visgo da terra, há uma divisão dos poemas por temas, ficando assim: na primeira parte
a Terra, na segunda a Água e na última os Seres. Todos entrelaçados por uma re-visitação ao
passado do sujeito poético, trazendo ao presente, por meio da memória, imagens da paisagem
que constitui o ajuntamento de elementos que ajudam a entender o lirismo sensível da poetisa.
Para além de uma poética da sensibilidade, há em Visgo da terra a metaforização de um
tempo atravessado por inúmeros resquícios pueris, no qual se pinta o cenário panorâmico de um
lugar vislumbrado ao longe, que fora vivido, mas que teima em retornar, como memórias
levemente fragmentadas. Nesses fragmentos notam-se a paisagem natural e citadina
amalgamarem-se como no excerto que se segue “Boa ponte a terra abraça/ num vigor ferro e
cimento/ maternal ao igarapé/ dismilinguido no vento.” (CABRAL, 2005, p. 27). Deve-se dizer
do surgimento da cidade em meio à floresta, quando o cimento invade a terra, onde o ferro tem
que viver com a madeira.
A mesma “Manaus de matinês que sabem a flerte e chicletes,/ Chaplin, bangue-bangues,
Gordo e Magro, astros a brilhar/ nas telas dos cines Polytheama, Guarany, Avenida Éden.”, é a
Manaus que reverbera em um Cenário Arcaico “O mundo? Aquele quintal/ pulando cercas e ruas/
até mergulhar raízes/ no raso rio vizinho.// Ah verde dossel de folhas/ periquitos papagaios/
mil sombras à flor da terra/ retalhos de azul e céu”. Isto é, o insulamento na Manaus provinciana,
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduado
em Letras: Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Amazonas.
dos bondes e do teatro, do igarapé e das canoas, cruzando-se e entrecruzando as vidas dos
moradores, por hora retomada pela poetisa.
Mesmo iniciando a vida literária nos anos sessenta, Astrid Cabral compõem o grupo de
escritores nos anos setenta que ajudam na calcificação da poesia escrita no amazonas que então
passa por um marasmo quase crônico no fazer poético. Tenório Teles (2005) fala que Astrid
surge nesse contexto como “[...] um lampejo de luz, uma voz que apresenta ressonâncias novas
no discurso poético regional” (p. 15).
É justamente esse período que se liga a poetisa com o poeta português a que tencionamos
fazer a leitura comparada. Os anos setenta são de grandes transformações em todo o mundo,
tanto na política, na sociedade, como na literatura, todos estão vivendo a virada do século, os
países tentam desvencilhar-se das amarras da ditadura. As pessoas são iluminadas pelo relâmpago
da liberdade, e isso será predominante nas obras dos escritores desse período. No Brasil e em
Portugal isso não é diferente, apesar de no Brasil ainda continuar por mais dez anos, no país de
Al Berto isso se encerra com a Revolução dos Cravos em 1974.
Toda essa problemática, resultado dos tempos escuros de Portugal, ressoa na obra poética
de Al Berto, desde o primeiro livro publicado até o último, Horto de Incêndio, objeto deste trabalho.
Como um demiurgo, o poeta volta ao passado glorioso português, dando novo significado às
imagens e paisagens tais como o mar, Lisboa, a praia, além da forte alusão à epopéia de Camões,
mesmo que seja de forma desconstrutiva.
Apesar de viajar ainda criança por algumas cidades do país, Astrid Cabral tem em Manaus
o ponto de referência à sua produção poética já que “aos quatro anos, com a morte de seu pai,
retornou à casa dos avós maternos, passando a morar num sobrado em frente ao Palácio Rio
Negro” (SAMYN, 2006). É desse espaço que a poetisa vê o tempo passar, observando as
paisagens, imagens e miragens que despontarão posteriormente por meio dos fragmentos da
memória, de lembranças telúricas revisitadas no presente e transformadas em poesias. Como se
nota no poema Palácio Rio Negro e as Palafitas.
[...]
Manaus que acorda com bondes dlém-dlém por ruas de pedra,
resmundo de lanchas pelas barrancas a luzir lamparinas,
ruído de serras a esfarelar lenha pras bandas do Caxangá
bate-bate de lavadeiras limpando as nódoas da vida
nas propícias cacimbas e rasas correntezas do Quarenta.
Manaus cheirando a borracha, bogaris, andiroba, e pau-rosa,
pães-de-milho e erva-doce que chegam pontuais às portas
em vespertinas visitas de tabuleiros e cestas de vime.
[...]
Manaus de portas lojas de turcos, brilhosas fazendas no chão
de vitrines entupidas, vidros de perfume, potes de brilhantina
quinquilharias, peça de rendas sujas, ranço de mofo e mijo.
Bares, joalherias e farmácias belle époque, requinte e luxo
de mármores e cristais que invadem escadarias e esquadrias
de solarengas casas num outrora de acácias e buganvílias.
Manaus dos banhos e agrestes piqueniques em picadas e igarapés,
passeios em férreas pontes e improvisadas hesitantes pinguelas,
flutuantes que são favelas em baixo-relevo no painel dos rios,
pardas praias em que aportam catraias de relutantes peixes,
cais de diligentes incansáveis guindaste abastecendo a cidade
de esnobes fomes de batata-inglesa, manteiga da Holanda,
rubros redondos queijos do Reino, vinho da França, linhos da Irlanda
e mais mil cargas de sonhos e fugas estocadas nos anchos bojos
de vapores tisnados da Europa, vigias fedendo a gringa maresia,
âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas,
abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria.
[...]
Manaus de negras águas onde naufrago. Manaus de águas passadas.
(CABRAL, 2005, p. 37-39).
O poeta português, por sua vez, como uma testemunha, dá indício de um lugar em plena
ruína, que teima em se restabelecer, assim, os quatro poemas dedicados a lamentar essa situação
de Lisboa, configura-se pelo cariz denunciativo e ao mesmo tempo, melancólico. O mesmo tom
melancólico já verificado por Eduardo Lourenço (2001) “É a mitificação de um sentimento
universal que dá a essa estranha melancolia sem tragédia o seu verdadeiro conteúdo cultural e faz
dela o brasão da sensibilidade portuguesa” (p. 113). Vejamos o poema Lisboa (2).
desejaste um país de silêncio
de chuvas salgadas – sem caminhos nem sonhos
Astrid Cabral viaja pelas águas de sua cidade, singra por intermédio das lembranças do
passado a um instante de sua história, que se formarão, em síntese, como a memória de vários
momentos e espaços destacados, que se vinculam com o esforço da imaginação poética,
decorrendo assim, em uma edificação, em uma estratégica apreensão seqüencial e contínua do
tempo. Em Al Berto, porém, nota-se que o corolário basilar de entendimento do instante como
fundamento da realidade é que é imposta, essencial e indiscutivelmente, a descontinuidade do
tempo, porque “a realidade devorou o delírio”. Não há constância afinal. Há rupturas com o
passado e, portanto fragmentação da memória suspensa. A seqüência não é mais do que uma
impressão proveniente de instantes plurais e múltiplos. Na poesia al bertina a única realidade
temporal é a percebida no instante presente. É somente hoje que se pressentem os cacos
resultados do passado vil de seu país.
A cidade provinciana de Astrid foi plantada, enxertada, construída com pedras
estrangeiras, suas ruas, avenidas e a própria população constitui-se do resultado de imigrações de
adventícios povos. Uma cidade resultada de uma época de fartura que tenta manter a riqueza a
todo custo, e que já não tem todo o esplendor de outrora, mas, edifica-se adentrando a mata,
cortando os rios com suas pontes, alimentando as pessoas com produtos de fora, trazidos pelos
vapores principalmente da Europa. Cercada por flutuantes cheios de vida, com barcos e canoas
atracadas. Banhada pelo Rio Negro berço da cidade, lugar de imersão da poetisa em busca dessas
lembranças passadas.
Na outra ponta, a urbe poética de Al Berto passa por momentos difíceis em que o
solipsismo desponta para um novo tempo, onde a cidade de areia construída de grão em grão,
desfaz-se à beira do desconstruído mar português, porque o mar de hoje não é mais dos barões
assinalados, o mar de hoje é símbolo da dessacralização do esplendoroso passado do país. Na
contemporaneidade vivem-se da reflexão, das interrogações acerca das verdades preteritamente
em voga, por isso as indagações feitas pelo poeta “que espécie de lume cospem os cardos?/
caberá o mar dentro da tua ausência? e o caule/ negro dos analgésicos por mim acima... que
cidade/de areia construída grão a grão aparecerá?/ quantas lisboas estão enterradas? ou
submersas?” (p. 43). São perguntas que podem ser respondidas ou não, mas que insistentemente
aparecem no poema e no ideário dos portugueses contemporâneos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS