Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Paulo Rónai
Toda pessoa, sem dúvida, é um exemplar único, um acontecimento que não se repete.
Mas poucas pessoas, talvez nenhuma, lembravam essa verdade com tamanha força
como João Guimarães Rosa. Os testemunhos publicados depois de sua morte
repentina refletiam, todos, como que um sentimento de desorientação, de pânico ante
o irreparável. Desejaria ter-lhes acrescentado o meu depoimento, e no entanto senti-
me inibido de fazê-lo. Não estava preparado para sobreviver a Guimarães Rosa:
preciso de tempo para me compenetrar dos encargos dessa sobrevivência.
Aqui está, porém, o último livro do escritor, Tutaméia, publicado poucos meses antes
da sua morte, a exigir leitura e reflexão. Por mais que o procure encarar como mero
texto literário, desligado de contingências pessoais, apresenta-se com agressiva
vitalidade, evocando inflexões de voz, jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A
leitura de qualquer página sua é um conjuro.
Atribuiria ele realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase carinhosa e,
talvez, até supersticiosa? Inclino-me para esta última suposição. Em conversa comigo
(numa daquelas conversas esfuziantes, estonteantes, enriquecedoras e provocadoras
que tanta falta me hão de fazer pela vida afora), deixando de lado o recato da
despretensão, ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em
seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente
tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as
palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo
suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto.
A essa confissão verbal acresce outra, impressa no fim da lista dos equivalentes do
título, como mais uma equação: "mea omnia'". Essa etimologia, tão sugestiva quanto
inexata, faz tutaméia vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de
que o ficcionista pôs no livro muito, senão tudo, de si. Mas também em nenhum outro
livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em permanente
alerta para policiar a emoção.
– O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa com uma risada de menino
grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada.
– Por quê?
"Eles" eram evidentemente os críticos. Rosa, para quem escrever tinha tanto de
brincar quanto de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando prazer em
aumentá-la. Dir-se-ia até que neste volume quis adrede submetê-los a uma verdadeira
corrida de obstáculos.
Seria esse o motivo principal da multiplicação dos prefácios, de que o livro traz não
um, mas quatro?
Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária. Mas no caso do leitor que
não se contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter
serventia.
Estórias à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de revelar uma
mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma arte
poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por meio de
alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de expressão, a
natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda arte.
"Nós os temulentos" deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos
depara. Conta a odisséia que para um borracho representa a simples volta a casa.
Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em uma
sucessão de prosopopéias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro temulento que
é o poeta, um agente de transfigurações do real.
Finalmente confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a
escova e a dúvida, envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos
narradores, mas, poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas.
Mas a resposta à acusação de alheamento deve ser buscada também e sobretudo nos
capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em dúvida a natureza da realidade
através da parábola da mangueira, cada fruta da qual reproduz em seu caroço o
mecanismo de outra mangueira; e o inacessível nos elementos mais óbvios do
cotidiano real e aduzido, afirmado, exemplificado. Depois de tentar encerrar em
palavras o cerne de uma experiência mística, sua, o autor procura captar e definir os
eflúvios de um de seus dias "aborígenes" a oscilar incessantemente entre azarado e
feliz, até enredá-lo numa decisão irreparável.
Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida influência de nossa vontade nos
acontecimentos, as decorrências totalmente imprevisíveis de nossos atos. A seguir,
evoca o escritor o seu primeiro inconformismo de menino em discordância com o
ambiente sobre um assunto de somenos, o uso racional da escova de dentes; o que
explicaria a sua não-participação numa época em que a participação do escritor é
palavra de ordem.
Nisto, passa a precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e
supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a gênese de várias de suas
obras, precisamente as de mais valor, antes impostas do que projetadas de dentro
para fora.
Para arrematar a série de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte
que recebeu de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de
quem seguira as passadas de uma boiada.
Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um romance projetado, este lhe
exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado de parceria com o sósia de
Montmartre), numa condenação implícita da intencionalidade e do realismo: "Um livro
a ser certo devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos."
Absorvidos pelos prefácios, ei-nos apenas no limiar dos quarenta contos merecedores
de outra tentativa de abordagem. Quantas vezes, mesmo nesta breve cabra-cega
preliminar, terei passado ao lado das intenções esquivas do contista, quantas vezes as
suas negaças me terão levado a interpretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não
mais o pode dizer; mas será que o diria?
Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus
olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e
mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as
plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se
encarnava, partilhando com eles a sua angústia existencial.
A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão
recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana:
"Viver é obrigação sempre imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de
outrem, ainda diferente, ausente." "A gente quer mas não consegue furtar no peso da
vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo." "Quem quer
viver, faz mágica." A transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais
sugestivos, altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas
tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular.
O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o sentencioso, o
tautológico e o eloqüente, a facilidade com que adapta o seu cabedal de expressões
as situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses,
seu instinto de enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em
processos estilisticos.
Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa.
Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em flagrante de criação léxica, recorre-
se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão,
brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar, ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara,
nomina, panema, pataratesco, quera, safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc)
rotulado de regionalismo, plebeísmo, arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não
menos freqüentes, a palavra nova representa apenas uma utilização das
disponibilidades da língua, registrada por uma memória privilegiada ou esguichada
pela linspiração do momento (associoso, borralheirar, convidatividade, de extraordem,
inaudimento, infinição, inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas
deles!, reflor!, reminisção etc).
Com freqüência bem menor há, afinal, as criações de inegável cunho individual, do
tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático de mel, metalurgir, orfandade,
psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz a matizar infinitamente
a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo, as que o tornam por vezes
contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de
um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e
omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer.
Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter
havido, a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo
livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso
cangaceiro ("Barra de Vaca").
Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas escapa com solércia há
armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro bronco ("Como ataca a
sucuri"). Enganado duas vezes, um apaixonado prefere perdoar à amada e, para
depois viverem felizes, reabilita a fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos
("Desenredo").
Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar, germinam
dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a vitória do romancista
dentro de um gênero menor.
Cada qual descobrirá dentro das quarentas estórias a sua, a que mais lhe
desencadeia a imaginação. Seja-me permitido citar as duas que mais me subjugaram
pela sua condensação, dos romances em embrião que fazem descortinar os
horizontes mais amplos. "Antiperipléia" e o relatório feito em termos ambíguos por um
aleijado, ex-guia de cego, do acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida.
Confidente, alcoviteiro e rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes
enquanto tenta fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e
ódio; "Esses Lopes" é a história, também contada pela protagonista, de um clã de
brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha indefesa a
quem julgavam reduzir a amante e escrava. Duas obras-primas em poucas páginas
que bastavam para assegurar a seu autor uma posição excepcional.
(In: ROSA, João Guimarães. Ficção Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994)