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Emoção: palavra que atravessa tanto a linguagem coloquial quanto as teorias científicas
e filosóficas, vem se impregnando de acepções nem sempre fundamentadas em
pesquisas mais amplas. No confuso contexto das doutrinas científicas do início do
século XX, o “Teaching about emotions. Historical-psychological studies” (Utchenie ob
Emotsijakh. Istoriko-psikhologicheskoe Issledovanie), de L.S. Vigotski, endossou idéia
de Bentley: emoções eram apenas título de um capítulo dos livros de psicologia, muito
discutidas e pouco compreendidas. A partir do texto vigotskiano, expor-se-ão alguns
problemas histórico-conceituais que habitam esse campo de estudos interdisciplinares,
aqui revisitado por meio do “What is emotion? History, measures and meanings”
(2007), de Jerome Kagan. Tal exposição é norteada por importante objetivo da
psicologia histórico-cultural das emoções: sua compreensão como objeto
interdisciplinar das ciências biológicas e humanas.
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Trabalho extraído da tese de doutorado da autora, intitulada: “Emoções e vivências em Vigotski:
investigação para uma perspectiva histórico-cultural”, defendida no Instituto de Psicologia, USP, São
Paulo.
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Sem convidar para sua reflexão os estudos ontogenéticos, Damásio (2004, p.41) chega, por exemplo, a
classificar os comportamentos lúdicos humanos entre as pulsões e motivações, ao lado da fome, da sede e
dos comportamentos sexuais, em franco desacordo com as contribuições da psicologia do
desenvolvimento. Cite-se, por exemplo, as importantes contribuições da “Psicologia do jogo” de D.B.
Elkonin (Toassa, 2009). Neste trabalho, utilizamos a expressão o darwinismo social como perspectiva que
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busca priorizar as explicações acerca da origem e natureza das emoções humanas na finalidade adaptativa
das mesmas, simplificando a sua diversidade ao equiparar a sociedade com a noção darwiniana de
ambiente.
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O PubMed é uma base de dados mantida pelo U.S. National Library of Medicine e pelo U.S. National
Institutes of Health, especializada em publicações de ciências médicas e biológicas. Um olhar geral sobre
essas pesquisas mostrou-nos alguns temas recorrentes: a busca por definir os papéis deste ou daquele
sistema/região encefálico(a) nos processos emocionais, definir e aplicar modelos experimentais para
testes de medicamentos, descrever as manifestações emocionais desta ou daquela síndrome neurológica
ou psicopatológica, propor métodos de tratamento psicoterápico, lançar hipóteses criminológicas, discutir
interações grupais. Os autores são tantos que nos é difícil até mesmo listar, quanto mais definir, os
achados mais relevantes. Realizamos, ainda, em 07/11/2007, um breve levantamento em duas bases de
dados internacionais especializadas em ciências biológicas (a CABI e a Zoological Record, disponíveis
no site da USP: http://www.usp.br/sibi), encontrando nelas artigos relativos à psicologia comparada, a
partir das palavras-chave “emotion” e “feeling” sem limite de data. Foram freqüentes as referências a
pesquisas veterinárias, dirigidas a temas práticos de acondicionamento e tratamento dos animais, ao seu
bem-estar, saúde mental, felicidade, prazer, stress e sofrimento animal (e os indicadores desses
fenômenos), estudos sobre os efeitos das expressões faciais e de fármacos, além de modelos sobre a
interação cognição-emoção na filogênese. Obtiveram-se referências a 9.067 artigos com o termo
“emotion” no título ou resumo, 7.846 deles reportando pesquisas (principalmente clínicas) realizadas com
humanos; 2.961 com o termo logo no seu título. Traduções do descritor para línguas como francês,
espanhol e italiano não alterou significativamente o perfil das buscas realizadas.
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Vigotski, que então estudava um lugar para a psicopatologia clínica em sua obra,
aponta: a psicopatologia da vida afetiva também servia à negação da teoria periférica.
Os trabalhos de S. Wilson (in Vigotski, 1933/2004, pp.45-47), por exemplo, indicavam
em alguns pacientes uma ausência de paralelismo entre elementos mentais e somáticos
das emoções. Outros, de H. Head5, com lesões no tálamo óptico, apresentavam uma
hipersensibilidade emocional unilateral do lado afetado, enquanto um terceiro grupo,
mesmo com a musculatura facial paralisada, relatava continuar sentindo toda espécie de
sentimento. Esses estudos provavam a utilidade na associação de métodos objetivos e
subjetivos na constituição de sua psicologia (id., p.41). Provava-se também que as
sensações periféricas de emoções, exceto em condições muito especiais, não se
identificavam com as vivências emocionais, levando Vigotski a concluir que as
sensações são apenas parte das nossas vivências. Cremos que a especificidade
vigotskiana está em atribuir origem social e lingüística à classificação das emoções
(Vigotski 1930/1991g, pp.86-87).
A descoberta do papel do tálamo causava mudanças cruciais. Levava a pensar
que o desencadeamento das emoções implicava-se numa série de relações
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O autor, com o termo afeto, denomina um “simples impulso sem qualidade especificamente
emocional”.
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Não foram encontradas referências no Google a H. Head e S. Wilson. Nenhuma das edições do
“Utchenie...” oferece dados sobre tais autores.
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Vigotski endossa uma citação de Brett “En lugar de oponer una categoria de emoción a outra,
hay que admitir que cada emoción puede adoptar diferentes formas, tan distintas como, por
ejemplo, la rabia de un animal y una fundada indignación.” (1933/2004, p.138).
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Kagan (1929- ) notabilizou-se pela pesquisa do temperamento, emoção e cognição na primeira
década da vida humana, acompanhando muitas crianças a longo prazo. Atualmente, é Professor
Emérito da Harvard University e diretor do Mind/Brain Behavior Interfaculty Initiative.
Criticou a Teoria do Apego de John Bolwby, entre outras, defendendo que as experiências dos
primeiros anos de vida são menos determinantes para a personalidade adulta do que se pensa
(Alic, s/d).
Vale ressaltar que o reconhecimento da importância de sua obra sobre as emoções não
representa um alinhamento da autora deste artigo para com idéias expostas em outros trabalhos
do autor, que lhe são ainda praticamente desconhecidos.
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O encontro com o livro de Kagan foi casual. Embora seja um dos principais
nomes da psicologia americana, é cientista pouco citado no Brasil8. Enxergar
semelhança entre algumas de suas idéias e as vigotskianas parece, à primeira vista,
historicamente insólito: em “What is emotion?”, Kagan não se reporta à psicologia
soviética. Tampouco defende a necessidade de que Espinosa seja elevado ao proscênio
da pesquisa neurocientífica. Mas um diálogo de Kagan com a psicologia de Vigotski
pode-se estabelecer, a princípio, sobre duas bases comuns: 1) o problema da definição
das emoções; 2) a valorização da interdisciplinaridade e da multiplicidade dos métodos
de pesquisa no campo das emoções.
Kagan (2007) destaca-se pela crítica e cuidadosa reflexão metodológica,
criticando os equívocos criados pelo darwinismo social nos estudos contemporâneos
sobre as emoções. Caracteriza-se por uma ampla compreensão dos mais diversos
métodos de pesquisa sobre o tema, incluindo as possibilidades e limites das técnicas de
neuroimagem – não raramente fetichizadas na contemporaneidade, além de serem
praticamente desconhecidas no campo da psicologia histórico-cultural brasileira.
Integrando muitos dados (à primeira vista, divergentes), numa abordagem
complexa sobre o desenvolvimento humano, o autor mostra, por exemplo, os erros
existentes na dicotomia entre inato e adquirido para explicação das origens do psíquico.
Argumenta que o estudo das emoções não amadureceu o suficiente para se adquirir
confiança num grande número de premissas (Kagan, 2007, p.214) – afirmação
semelhante à de Vigotski, que nada conheceu da recente avalanche de trabalhos sobre
emoções.
Kagan critica, também, a falsa universalização das emoções vividas no
Ocidente. Em alguns tópicos, explica as relações entre alterações encefálicas e a
culturização do cérebro ao longo do desenvolvimento, numa exposição similar à
psicologia histórico-cultural de Vigotski e Luria. Afastando-se do binômio estímulo-
resposta que permeia diversas teorias sobre as emoções, binômio este tão criticado por
Vigotski (1931/1995, p. 62), Kagan concentra-se nos complexos de processos
conceituais e de julgamento fundadores dos estados emocionais e de suas repercussões
nas relações sociais, afastando-os da condição de mera resposta a estímulos. Defende o
caráter estrutural das emoções, nelas integrando muitas dimensões da vida emocional e
estudos sobre os seus diversificados impactos nos pensamentos, decisões e atos
individuais de acordo com diferentes culturas e comunidades. Com isso, avança muito
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Identificou-se, no PEPSIC (Portal de Periódicos Eletrônicos em Psicologia), uma única referência
brasileira a Kagan (Lomônaco, 2006).
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4 – Conclusões
Nos estudos sobre as emoções, Vigotski visualizava uma psicologia que deveria
participar de uma grande “divisão de trabalho” entre as ciências, ainda demasiado
imaturas para dar origem a uma teoria mais consistente. Mais de setenta anos depois,
muito se pesquisou sobre a temática: tornou-se desafiador até mesmo selecionar um
corpus de pesquisa, quanto mais formular algum juízo sobre o enorme número de
trabalhos publicados.
Frente ao gigantismo da tarefa e o nanismo de referências próximas ao projeto
vigotskiano para uma psicologia das emoções, recorreu-se a Jerome Kagan para auxiliar
a análise da pesquisa contemporânea. Ao refletir tanto sobre pesquisas experimentais
quanto trabalhos antropológicos e filosóficos, Kagan advoga em favor da separação dos
quatro fenômenos tradicionalmente associados às emoções: perfil neuronal, sentimento
detectado, atribuição de sentido e prontidão para resposta, defendendo uma análise
circunstanciada das emoções para superar a presente inadequação dos conceitos de
emoções. Ao invés de pretender uma descendência direta com relação ao pensamento de
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Referências
DARWIN, C. (1934) The expression of the emotions in man and animals. London:
Watts & Co. (Trabalho original publicado em 1872).
JAMES, W. (1967) What is an emotion? In: C.G. LANGE, & W. JAMES. The emotions
(pp.11-30). New York: Hafner (Trabalho original publicado em 1884).
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KAGAN, J. (2007) What is emotion? History, Measures and Meanings. New Haven:
Yale University Press.
LEONTIEV, A.A (2005). The Life and Creative Path of A.N. Leontiev. Journal of
Russian and East European Psychology, 43 (3), 8-69.
MARX, K. (1999) Para a crítica da economia política. In: Marx (pp.25-54). São Paulo:
Nova Cultural (Texto original de 1857).
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Loyola/Unimarco.
VYGOTSKI, L.S. (1996) El primer año. In: Obras escogidas (Vol. 4, pp.275-318).
Madrid: Visor Distribuiciones (Texto original de 1932-1934).