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ARTIMANHAS E OPINIÕES DO

DOUTOR FAUSTROLL, PATAFÍSICO


Título original francês:

Gestes et opinions du docteur Faustroll pataphysicien: Roman


néo-scientifique suivi de Spéculations
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................... 6
RESUMO GERAL............................................................................... 8
LIVRO UM...................................................................................... 10
PROCEDIMENTOS........................................................................... 10
A RESPEITO DOS HÁBITOS E ATITUDES DO DOUTOR FAUSTROLL
................................................................................................... 13
MANDADO JUDICIAL.................................................................. 15
A RESPEITO DOS LIVROS EQUIVALENTES DO DOUTOR FAUSTROLL
................................................................................................... 17
AVISO DE MANDADO AUTORIZANDO VENDA IMEDIATA............20
A RESPEITO DO BARCO DO DOUTOR, O QUAL É UMA PENEIRA . 21
A RESPEITO DOS ESCOLHIDOS.................................................... 24
LIVRO DOIS..................................................................................... 27
DEFINIÇÃO................................................................................. 28
FAUSTROLL MENOR DO QUE FAUSTROLL................................... 31
A RESPEITO DO MACACO BABUÍNO BOSSE-DE-NAGE, QUE NÃO
CONHECIA NENHUMA PALAVRA HUMANA, A NÃO SER “HA HA”
................................................................................................... 33
LIVRO TRÊS..................................................................................... 37
A RESPEITO DO EMBARQUE NA ARCA........................................38
A RESPEITO DO MAR DE FEZ EXTREMA, DO FAROL OLFATIVO E
DA ILHA DE TITICA, ONDE NÃO BEBEMOS.................................40
A RESPEITO DA TERRA DE RENDAS............................................. 43
A RESPEITO DO BOSQUE DO AMOR...........................................45
A RESPEITO DA GRANDE ESCADARIA DE MÁRMORE NEGRO .....48
A RESPEITO DA ILHA AMORFA.................................................... 49
A RESPEITO DA ILHA FRAGRANTE.............................................. 51
A RESPEITO DO CASTELO-ERRANTE, QUE É UM LIXO .................53
A RESPEITO DA ILHA DE PTYX..................................................... 55
A RESPEITO DA ILHA DE HER, DO CICLOPE E DO GRANDE CISNE
DE CRISTAL................................................................................. 57
A RESPEITO DA ILHA DE CYRIL.................................................... 60
A RESPEITO DA GRANDE IGREJA DE FOCINHODEFIGO...............62
A RESPEITO DA ILHA RESSOANTE...............................................65
A RESPEITO DAS SOMBRAS HERMÉTICAS E DO REI QUE ESPEROU
A MORTE.................................................................................... 68
LIVRO QUATRO............................................................................... 71
A RESPEITO DA TERRA-MARÉ E DO BISPO MARINHO MENTIROSO
................................................................................................... 72
BEBER......................................................................................... 74
CAPITALLIA................................................................................. 78
A RESPEITO DA MORTE DE UM NÚMERO DE PESSOAS E, MAIS
ESPECIFICAMENTE, DE BOSSE-DE-NAGE....................................81
A RESPEITO DE SIGNIFICADOS OUTROS E EVIDENTES DAS
PALAVRAS “HA HA”.................................................................... 84
LIVRO CINCO.................................................................................. 87
A RESPEITO DE MIL MATÉRIAS VARIADAS..................................88
SOBRE O JATO MUSICAL............................................................. 92
COMO SE OBTEVE UMA TELA.................................................... 94
LIVRO SEIS...................................................................................... 97
A RESPEITO DOS TERMES........................................................... 98
CLINAMEN.................................................................................. 99
LIVRO SETE................................................................................... 105
A RESPEITO DO GRANDE NAVIO MOUR-DE-ZENCLE.................106
A RESPEITO DA LINHA.............................................................. 108
LIVRO OITO.................................................................................. 110
A RESPEITO DA HASTE DO BASTÃO DE MEDIÇÃO, DO RELÓGIO E
DO DIAPASÃO........................................................................... 111
A RESPEITO DO SOL COMO UM SÓLIDO FRIO..........................117
DE ACORDO COM IBÍCRATES, O GEÔMETRA............................119
PATAFÍSICA E CATAQUIMIA....................................................... 122
A RESPEITO DA SUPERFÍCIE DE DEUS....................................... 123
INTRODUÇÃO

Nenhum humor pode ser mais conciso e profundo do que o


humor causado pelo Surrealismo. Algo de assombroso paira entre
as linhas de uma obra surrealista, entre os poros de uma tela. A
justaposição de aspectos opostos é como se fosse um biscoito fino,
que ao mesmo tempo é crocante e macio, de sabor profundo.

Hemingway certa vez escreveu que “as palavras perderam o seu


gume”. Escritor em busca da realidade mais crua, Hemingway
acreditava que as palavras, as coisas em geral, acabaram ficando
cegas, insossas, por conta do seu uso em demasia, caindo em um
lugar comum, sem criar tanto impacto. Entretanto, o gume do
surrealismo, por estar escondido, envolto nas entrelinhas da
contraposição, nunca perderá seu traçado. E é por conta dessa
beleza extraordinária dos opostos se encontrando que a genialidade
de Jarry se mostra concentrada na Patafísica. A beleza de uma
ciência (uma forma de pensar que busca explicar a realidade de
maneira concreta) que não serve para outra coisa, a não ser explicar
soluções imaginárias e exceções.

A primeira ideia para esse texto de Jarry surgiu quando ainda


estudava, como forma de chacota do prolixo professor de Física:
fazer um “Tratado sobre a Patafísica” com uma estrutura que se
aproximasse da escrita científica. No entanto, um segundo
pensamento se formou, o de transformar a narrativa em uma
jornada indefinida e solta por terras maravilhosas, inspirado nas
obras de Homero e Rabelais. Dessa forma, a organização de seu
tratado-romance assume liberdade total para abordar qualquer
assunto. Faustroll simplesmente se move para outros tempos ou
lugares à sua vontade. Jarry denominou esse híbrido literário de
“romance neocientífico”, ou, em outro artigo, “romance hipotético”.
Esse estratagema estrutural vinha ao encontro de com conceitos
científicos que começavam a fascinar Jarry, como podemos
perceber pelo uso do termo Clinâmen (capítulo 34, livro 6),
cunhado por Lucrécio para denominar o comportamento
imprevisível dos átomos. Praticamente vinte e sete anos após a
morte de Jarry, na Conferência de Solvay de 1927, a Física
Quântica entraria em total evidência. Físicos de hoje em dia ainda
debatem sobre a Física Quântica e o princípio de incerteza de
Heisenberg. Jarry, portanto, unia forma e mensagem em uma bela
simbiose.

Estava então criada a Patafísica, elevada a Escola por colegas


surrealistas como Eugène Ionesco, Marcel Duchamp, entre outros, e
levada à perfeição por Raymond Roussel em Locus Solus, em que
invenções incrivelmente patafísicas nos levam por imaginários
incríveis (embora Roussel, mesmo contemporâneo de Jarry, nunca o
tenha conhecido).

Raymond Roussel, em seu texto “Como escrevi a maioria dos


meus livros”, disserta sobre seu método criativo e descreve sua
técnica de escrita, a qual consistia em colocar duas palavras de sons
parecidos uma próxima à outra, e depois preencher a história que
havia entre elas.

A Patafísica, sendo a ciência das soluções imaginárias e uma


contraposição em si mesma, pode criar, portanto, de diversas outras
contraposições imaginárias, de forma livre e ainda assim
incrivelmente conceitual e engraçada, mantendo a pureza do
traçado surrealista, destacando toda a genialidade de seu inventor.
RESUMO GERAL

“Livro um”

O Doutor Faustroll é despejado, por falta de pagamento do


aluguel, pelo Meirinho Panmuphle, quem inventaria e apreende a
biblioteca pessoal de “vinte e sete livros equivalentes”.

“Livro dois”

Os elementos da Patafísica são brevemente demonstrados e


ilustrados por um experimento em relatividade e tensão de
superfície.

“Livro três”

O Doutor Faustroll escapa da lei em um esquife ou peneira, que


navega tanto em terra como por mar. Ele é acompanhado pelo
babuíno Bosse-de-Nage, como navegador, e por Panmuphle –
domado pela bebida e acorrentado em seu assento –, como remador
e narrador até o penúltimo livro. As suas peregrinações os levam
por quatorze terras ou ilhas, cuja topografia e cujos habitantes são
descritos de forma a transmitir os comentários de Jarry sobre
quatorze amigos (ou inimigos) no mundo das artes – entre eles,
Aubrey Beardsley, Léon Bloy, Gauguin, Gustave Kahn, Mallarmé,
Henri de Régnier e Marcel Schwob.

“Livro quatro”

Após demais navegações, discussões e um grande banquete,


Faustroll discursa sobre a morte e inicia um holocausto no qual
Bosse-de-Nage falece provisoriamente. Sua língua monossilábica e
autossuficiente (“Ha ha”) é cuidadosamente analisada.

“Livro cinco”
Após uma passagem coprológica sobre o “aleijado sem pernas”,
o qual representa Pierre Loti, Faustroll coloca Henri Rousseau no
comando da “máquina de pintar” para “embelezar” as telas
acadêmicas penduradas no museu de Louxemburg.

“Livro seis”

Enquanto Faustroll tem uma aventura erótica, a máquina de


pintar sob nome Clinâmen (de Lucrécio) executa treze pinturas,
cada uma descrita em um pequeno poema em prosa.

“Livro sete”

Faustroll morre afogado após afundar o esquife na tentativa de


evitar uma colisão, e seu corpo, como um pergaminho amarrado
desenrolado pela água, revela o futuro em suas espirais.

“Livro oito”

O livro final, intitulado “Éternidade”, conclui o tratado sobre a


Patafísica iniciado no livro dois. Duas cartas telepáticas de Faustroll
para Lord Kelvin, sobre os seus experimentos em medições, matéria
e luz, são seguidas por um discurso patafísico a respeito da
superfície de Deus. Em teoremas geométricos precisos, Ele é
demonstrado como o “ponto tangencial entre zero e o infinito”.
LIVRO UM

PROCEDIMENTOS
1

Notificação de acordo com o artigo 819

Neste ano de mil oitocentos e noventa e oito, no oitavo dia de


fevereiro, nos termos do artigo 819 do Código de Procedimentos
Civis e ao pedido do Sr. e da Sra. Bonhomme (Jacques),
proprietários de uma casa situada em Paris, à rua Richter, número
100, o supracitado tendo endereço para serviços à minha residência
e adicionalmente à Prefeitura do Distrito Q.

Eu, o autor do abaixo-assinado, René-Isidore Panmuphle,


Meirinho adjunto da Corte Civil de Primeira Instância do
Departamento do Sena, em sessão em Paris, residindo nesta mesma
cidade, à rua Pavée, número 37, venho por meio desta notificar, em
nome da LEI e da JUSTIÇA, o Monsenhor Faustroll, doutor,
tenente de vários locais subordinados à casa supracitada, residindo
em Paris, à rua Richer, número 100. Tendo me direcionado a
supramencionada casa, trazendo em seu exterior o número 100, e
tendo tocado a campainha, batido à porta e chamado o supracitado
por repetidas e sucessivas vezes, tendo nenhuma pessoa aberto a
porta para nós, e os vizinhos da porta ao lado declarado a nós que
realmente aquela era a residência do Senhor Faustroll, mas esses
vizinhos também se recusando a aceitar uma cópia desta escritura, e
enquanto eu não encontrei em tais premissas nem parentes nem
servos, ou nenhum vizinho que aceitasse receber esta presente cópia
e assinar o original, outrossim eu procedi imediatamente à
prefeitura do distrito Q, na qual entreguei pessoalmente esta cópia
para o Venerado Prefeito, que certificou o original, outrossim; no
período de no máximo vinte e quatro horas, o reclamante deverá
ser pago em minhas mãos, em moeda corrente, a quantia total e
válida da dívida de trezentos e setenta e dois mil francos e vinte e
sete centavos, que condizem a onze trimestres de aluguel das
premissas supracitadas, a valer no primeiro dia de janeiro último,
sem prejuízos perante aqueles que estão em crédito, e devido e
para quaisquer outros direitos, ações, interesses, custos e arrestos,
declarando ao supramencionado a falta da satisfação de sua
presente notificação. Dentro do dito período, ele deverá ser
obrigado outrossim, por meios legais, e notadamente pela
apreensão e pelo represamento de tais bens e móveis que se
encontrem nas instalações alugadas. Portanto, eu deposito esta
presente cópia do exposto nas instalações referidas. Custo: onze
francos e trinta centavos, incluindo ½ folha de papel especial
timbrado, a zero francos e sessenta centavos.

PANMUPHLE

Para o Monsenhor Faustroll, Doutor,

e ao Prefeito do distrito Q.
2

A RESPEITO DOS HÁBITOS E ATITUDES DO DOUTOR


FAUSTROLL

Doutor Faustroll tinha sessenta e três anos de idade quando


nasceu em Circássia, em 1898 (o século XX tinha [-2] anos de
idade).

Àquela idade, a qual ele manteve durante toda a sua vida,


Doutor Faustroll era um homem de altura mediana, ou, para ser
absolutamente preciso, de (8x1010 +109 + 4x108 + 5 x 106) diâmetros
atômicos. Com uma pele de amarelo-ouro, sua face era
perfeitamente barbeada, com exceção de um bigode verde-mar,
como os tinha o Rei Saleh. Seus cabelos eram alternadamente loiro-
platinados e preto-puros, uma ambiguidade ruiva que mudava de
acordo com a posição do Sol; seus olhos, duas cápsulas de tinta de
escrever comum salpicadas com espermatozoides de ouro, como
aguardente Danzig.

Ele não tinha barba, a não ser pelo seu bigode, e pelo uso sagaz
de micróbios de calvície, que permeavam sua pele desde suas
virilhas até as sobrancelhas e que se alimentavam de seus folículos
capilares, garantindo que Faustroll não precisasse se preocupar que
sua careca reluzente ou suas sobrancelhas fossem cair, já que esses
micróbios atacavam apenas cabelos frescos recém-nascidos. Da sua
virilha para baixo, até os pés, em contraste, ele era envelopado de
pelo preto, pelo qual era um homem impróprio a um certo ponto.

Naquela manhã, ele tomou o seu sponge bath diário com seu
papel de parede de dois tons pintado por Maurice Denis, com o
desenho de dois trens subindo em espirais; havia muito tempo, ele
tinha desistido da água em favor de papel de parede – oportuno,
elegante e de acordo com seus caprichos.
Para não deixar o populacho em geral constrangido, portanto,
ele desenhou e criou uma camisa feita de fibra de quartzo; calças
largas de um veludo preto enfadonho que afunilavam rentes nos
tornozelos; pequeninas botas de cor cinza, com camadas iguais de
poeira cuidadosamente preservadas, com grande dificuldade, por
muitos meses, quebradas apenas por formigueiros secos de formiga-
leão; um colete amarelo-ouro, de cor exatamente igual à sua pele,
com a mesma quantidade de botões de um pulôver e dois rubis
como botões para os bolsos de peito, bem altos; e um sobretudo
forrado com pelo de raposa-azul.

Em seu dedo indicador direito, ele usava múltiplos anéis de


esmeralda e topázio que se empilhavam até a altura da unha – a
única das dez que ele não roía. O limite dos anéis era mantido por
uma chaveta especialmente desenhada, feita de molibdênio,
aparafusada no osso da falange ungueal, atravessando a unha.

Por meio de um laço, ele amarrava em seu pescoço a fita


cerimonial da Grande Giroleta, uma Ordem inventada por ele
mesmo e patenteada para evitar qualquer vulgarização.

Ele se enforcava com essa fita em uma forca especialmente


construída, procrastinando por alguns minutos para poder escolher
entre as duas maquiagens de asfixia, chamadas branco-enforcado e
homem-azul-enforcado.

E, depois de cortar o lenço para sair da forca, ele colocava um


chapéu colonial solar.
3

MANDADO JUDICIAL

Neste ano de mil oitocentos e


noventa e oito, no décimo dia de
fevereiro, às oito horas da manhã,
nos termos do artigo 819 do
Código de Procedimentos Civis e
ao pedido do Sr. e da Sra. Bonhomme (Jacques), o marido comprou
no próprio nome e apoiado pela autorização de sua esposa,
proprietários de uma casa situada em Paris, à rua Richter, número
100, o supracitado tendo endereço para serviços à minha residência
e adicionalmente à Prefeitura do Distrito Q.

EU, O AUTOR DO ABAIXO-ASSINADO, RENÉ-ISIDORE


PANMUPHLE, MEIRINHO ADJUNTO DA CORTE CIVIL DE
PRIMEIRA INSTÂNCIA DO DEPARTAMENTO DO SENA, EM
SESSÃO EM PARIS, RESIDINDO NESTA MESMA CIDADE, À
RUA PAVÉE, NÚMERO 37, venho por meio desta notificar, em
nome da Lei e da Justiça, o Monsenhor Faustroll, doutor, tenente de
vários locais subordinados à casa supracitada, residindo em Paris,
àrua Richer, número 100. Tendo me direcionado à supramencionada
casa, trazendo em seu exterior o número 100, e tendo tocado a
campainha, batido à porta e chamado o supracitado por repetidas e
sucessivas vezes, sem ter resposta, nós recorremos ao escritório do
Sr. Solarcable, comissário de polícia, este último nos concedendo
sua assistência em nosso empreendimento: o de pagar a mim, como
Meirinho e portador da dita notificação, a quantia de trezentos e
setenta e dois mil francos e vinte e sete centavos, condizentes a
onze trimestres de aluguel das premissas supracitadas, sem o
prejuízo de outras reivindicações, tendo o nomeado se recusado a
pagar essas reivindicações.
Portanto, eu estou apreendendo em penhora e colocando sob a
autoridade da Lei e da Justiça os seguintes objetos:
4

A RESPEITO DOS LIVROS EQUIVALENTES DO DOUTOR


FAUSTROLL

Nas premissas detalhadas anteriormente, com a entrada sendo


efetuada pelo Sr. Lourdeau, chaveiro de Paris, nº 205, rua Nicolas
Flamel, com a exceção de uma cama feita de malha de cobre
polido, com doze metros de largura e sem roupa de cama, de uma
cadeira de marfim e de uma mesa de ônix e ouro, apropriação feita
de vinte e sete volumes sortidos, alguns em brochura e outros
encadernados, com os seguintes títulos:

1. BAUDELAIRE, um volume de E. A. POE,


traduções;
2. BERGERAC, Trabalhos, volume II, contendo a
História dos Estados e Impérios do Sol, e a História dos
Pássaros;
3. O Evangelho de acordo com SAINT LUKE, em
grego;
4. BLOY, O Mendigo Ingrato;
5. COLERIDGE, A Balada do Velho Marinheiro;
6. DARIEN, O Ladrão;
7. DESBORDES-VALMORE, O Juramento dos
Homens Pequenos;
8. ELSKAMP, Iluminuras;
9. Um volume incomum das Peças de FLORIAN;
10. Um volume incomum das Mil e Uma Noites, na
tradução de GALLAND;
11. GRABBE, Piadas, Sátira, Ironia e seu significado
profundo, comédia em 3 atos;
12. KAHN, O Conto do Ouro e do Silêncio;
13. LAUTRÉAMONT, Cantos de Maldoror;
14. MAETERLINCK, Aglavaine e Sélysette;
15. MALLARMÉ, Verso e Prosa;
16. MENDÈS, Gog;
17. A Odisseia, Edição de Teubner;
18. PÉLADAN, Babilônia;
19. RABELAIS;
20. JEAN DE CHILRA, A Hora Sexual;
21. HENRI DE RÉGNIER, A Cana de Jasper;
22. RIMBAUD, Iluminações;
23. SCHWOB, A Cruzada das Crianças;
24. Ubu Rei;
25. VERLAINE, Sabedoria;
26. VERHAEREN, As Paisagens Alucinadas;
27. VERNE, Viagem ao Centro da Terra.

Adicionalmente, três quadros pendurados na parede, um pôster


de TOULOUSE-LAUTREC, Jane Avril; um de BONNARD, com
uma propaganda da Revue Blanche; um retrato do Doutor Faustroll,
por AUBREY BEARDSLEY; e uma fotografia antiga, que nos
pareceu ser um Saint Cado sem valor, impresso pela Oberthür
gráfica de Rennes.
Era impossível entrar na adega, em razão de sua inundação.
Estava aparentemente submersa, a uma altura de dois metros, com
uma mistura de vinho e destilados, entretanto nenhum barril ou
garrafa podia ser avistado.

Eu instalei como guardião, outrossim, na ausência do sujeito de


arresto, Sr. Delmor de Pionsec, uma das testemunhas nomeadas a
seguir. A venda deverá acontecer em qualquer dia que será
posteriormente decidido, ao meio-dia, no Place de l’Opera.

Para todos os fatos supracitados, eu montei o presente relatório,


compilação que me tomou das oito da manhã até as quinze para as
três da tarde, e do qual eu deixei uma cópia para o sujeito de
arresto, nas mãos de vossa excelência, o supramencionado
comissário de polícia, e com um guardião, e sem prejuízo para
nenhuma ação posterior, o assunto anteriormente citado e na
presença de e assistido pelos Srs. Delmor de Pionsec e Troccon,
advogados, residentes em Paris, rua Pavée, número 37, as
testemunhas requeridas que assinaram em conjunto comigo o
original e a cópia. Custo de trinta e dois francos e quarenta
centavos. Para as cópias foram usadas duas folhas de papel oficial
custando um franco e vinte centavos. Assinado: Lourdeau, chaveiro.
Assinado: Solarcable, comissário de polícia. Assinado: Delmor de
Pionsec. Assinado: Panmuphle, Meirinho. Registrado em Paris, ao
décimo primeiro dia de fevereiro de 1898. Recebidos cinco francos.
Assinado: Liconet. Certificado de cópia verdadeira. (Ilegível.)
5

AVISO DE MANDADO
AUTORIZANDO
VENDA IMEDIATA

Neste ano de mil oitocentos e


noventa e oito, no quarto dia de
junho, a pedido do Sr. e da Sra.
Bonhomme (Jacques), o marido
residindo em Paris, à rua Pavée, número 37, elegendo domicílio em
meu escritório, e adicionalmente à Prefeitura do Distrito Q; eu,
autor do abaixo-assinado, René-Isidore Panmuphle, Meirinho
adjunto da Corte Civil de Primeira Instância do Departamento do
Sena, em sessão em Paris, residindo nesta mesma cidade, à rua
Pavée, número 37, tenho dado conhecimento, declarado, e sob o
título citado deixei uma cópia com o Monsenhor Faustroll...

Visto que esta meia folha de papel especial timbrado, ao custo


de 60 centavos, não é suficiente para relatar as diversas maravilhas
as quais eu descobri na casa do referido Doutor Faustroll, tendo
bebido minha cota na adega na qual ele me arremessou; o presente
depoente provisoriamente solicita a favor de sua honra o Presidente
do Tribunal Civil do Sena a autorizar, na medida em que o custo de
papel timbrado não ameace exceder em demasia a quantia
depositada, a descrição dos eventos que se seguiram em papel não
timbrado, para que o relatório seja retido pela Lei e Justiça, das
ditas maravilhas, e que tal relato não seja perdido.
6

A RESPEITO DO BARCO DO DOUTOR, O QUAL É UMA


PENEIRA

Para C. V. BOYS

Doutor Faustroll, surgindo de debaixo dos lençóis que cobriam a


cama de cobre polido a qual eu não estava autorizado a apreender, e
se dirigindo a mim, falando pessoalmente para mim, disse:

“É provável que você não tenha conhecimento algum,


Panmuphle, Meirinho portador de mandado, de capilaridade, de
tensão de superfície, ou de membranas sem peso, hipérboles
equilaterais, superfícies sem curvatura, nem, de forma abrangente,
da pele elástica da qual é constituída a epiderme da água.

“Desde o dia em que santos e milagreiros saíram para velejar em


calhas de pedra ou em camadas de pano grosso, e quando Cristo
andou descalço sobre o mar, eu desconheço qualquer criatura – sem
contar eu mesmo – que não o escorpião-d’água filiforme e as larvas
dos mosquitos d’água, capazes de fazer uso da superfície de lagos,
seja abaixo ou sobre, como chão sólido.

“É verdade que é possível construir sacos feitos de um material


que permita a passagem de ar e vapor, mas impermeáveis à água, de
modo que se consiga assoprar uma vela através do tecido, e ainda o
mesmo tecido irá reter seu conteúdo líquido indefinidamente. Meu
colega F. de Romilly tenha sucedido em ferver líquidos em uma
campânula com a base feita de gaze com uma gaze de malha
razoavelmente ampla...
“Mas esta cama, de largura de doze metros, não é uma cama, e
sim um barco, moldado na forma de uma peneira alongada. O
trançado da malha é largo o bastante para permitir a passagem de
um alfinete; e a peneira inteira foi mergulhada em parafina
derretida, e então agitada ao ponto de que esta substância (que
nunca é realmente tocada pela água), enquanto revestindo a rede,
deixa os buracos ainda vazios – a quantidade de buracos é de
aproximadamente quinze milhões e quatrocentos mil. Quando eu
coloco minha peneira no rio, a pele da água retesa contra os
buracos, e o líquido fluindo abaixo não consegue penetrar, a menos
que a pele rache. No entanto, o formato convexo da minha quilha
redonda oferece um ângulo de projeção, e a pressão da água durante
o lançamento, com corredeiras pulando etc., é reduzido por uma
casca não parafinada com uma trança de malha muito mais larga,
apenas dezesseis mil; isso serve como proteção adicional para
proteger o esmalte de parafina de ser riscado por juncos, da mesma
forma que uma grelha interior protege de qualquer dano feito pelos
pés.

“Minha peneira, então, flutua como um barco, e pode ser


navegada sem afundar. Mas não apenas isso, ela possui uma
vantagem contra barcos comuns – como meu sábio amigo C. V.
Boys me ressaltou –, pode-se permitir um jato fino de água sobre
ele, sem o perigo de submergi-la. Se eu desejar expelir minha urina,
ou se uma onda quebrar ao lado, o líquido irá simplesmente passar
pela malha da peneira e reencontrar as ondas eternas.

“Nesse barco eternamente seco (chamado Esquife, sem dúvidas,


já que é construído para suportar até três pessoas), eu devo
doravante levar a minha residência, tendo em vista que sou forçado
a sair desta casa...”

“Sem dúvida”, disse eu, “porque o local não está mais


mobiliado.”
“Eu também possuo um esquife ainda melhor”, continuou o
doutor, “de fibra de quartzo retirado com um arco medieval; mas,
neste momento, eu tenho depositado nele, com a ajuda de um
canudo, 250 mil gotas de óleo de castor, imitando gotas de teias de
aranha, alternadamente gotas pequenas e grandes, com as vibrações
por segundo da última mantendo uma proporção com a vibração da
seguinte de 64.000/1.500.000 sob a influência da pressão da pele
elástica do líquido. Este esquife tem a aparência de uma genuína
teia de aranha gigante, e captura moscas com a mesma facilidade.
No entanto, serve apenas para uma pessoa.

“E já que este aqui pode levar até três pessoas, você deve me
acompanhar, e ainda mais alguém a quem você será apresentado em
breve – sem mencionar outros, pois estou trazendo comigo alguns
seres que conseguiram escapar de sua Lei e Justiça entre as linhas
dos meus volumes apreendidos.

“Enquanto eu os enumero, e convoco a outra pessoa, aqui está


um livro, manuscrito por mim, o qual você pode apreender como o
vigésimo oitavo volume, e ler, para que consiga não apenas se
conter com paciência como também, muito provavelmente,
entender-me melhor durante o curso desta viagem. Entretanto, não
estou pedindo a sua opinião sobre a sua necessidade.”

“Sim, mas esta navegação em uma peneira...”

“O esquife não é impulsionado a remos, mas a discos de sucção


alocados na ponta das alavancas de mola. E a sua quilha viaja sobre
três cilindros de aço nivelados. Estou totalmente convencido da
excelência dos meus cálculos e de sua insubmersabilidade. Claro
que, de acordo com meus hábitos invariáveis, estaremos navegando
não sobre a água, e sim sobre terra firme.
7

A RESPEITO DOS ESCOLHIDOS

Folheando pelo espaço dos seus vinte e sete livros equivalentes,


Faustroll conjurou dentro da terceira dimensão:

De Baudelaire, o Silêncio, de E. A. Poe, tomando conta de


retraduzir a tradução de Baudelaire para o grego.

De Bergerac, a preciosa árvore na qual o rei rouxinol e seus


objetos foram metamorfoseados, na terra do sol.

De Luke, o Caluniador, que carregou Cristo em um lugar alto.

De Bloy, os porcos negros da Morte, séquito do Prometido.

De Coleridge, o arco medieval do velho marinheiro e o


esqueleto flutuante do navio, o qual, quando colocado dentro do
esquife, era uma peneira dentro da peneira.

De Darien, as coroas de diamante e os perfuradores de rocha de


Santo Gothard.

De Desbordes-Valmore, o pato colocado pelo lenhador aos pés


das crianças, e as cinquenta e três árvores com as cascas marcadas.

De Elskamp, as lebres, correndo sobre as folhas, que se


transformaram em mãos em concha e carregaram o universo
esférico como uma fruta.

De Florian, o bilhete de loteria de Scapin.

Das Mil e uma Noites, o olho do terceiro Kalender, que era filho
de um rei: o olho cutucado para fora da cauda do cavalo voador.
De Grabbe, os treze alfaiates massacrados ao alvorecer pelo
Barão Mordax sob ordem do cavaleiro papal da ordem de Mérito
Civil, e o guardanapo de mesa que foi amarrado em volta de seu
pescoço antecipadamente.

De Kahn, um dos repiques de ouro do ourives celestial.

De Lautréamont, o escaravelho, belo como o tremular das mãos


em alcoolismo, que desapareceu além do horizonte.

De Maeterlinck, as luzes escutadas pela primeira irmã cega.

De Mallarmé, o virgem, o brilho e o belo hoje.

De Mendès, o vento norte que soprou sobre o mar verde e


misturou seu sal com o suor do escravo que remou até os cento e
vinte anos.

Da Odisseia, o caminhar alegre do filho irrepreensível de Peleus


no prado de Asphodels.

De Péladan, o reflexo, no espelho do escudo prateado com as


cinzas ancestrais, do massacre sacrílego de sete planetas.

De Rabelais, os pequenos sinos em que os demônios dançam


durante a tormenta.

De Jean de Chilra, Cleópatra.

De Régnier, a planície castanha onde o centauro moderno bufou.

De Rimbaud, os pingentes de gelo arremessados pelo vento de


Deus nas águas.

De Schwob, os animais escamados imitados pela brancura das


mãos do leproso.

De Ubu Rei, a quinta letra da primeira palavra do primeiro ato.


De Verlaine, vozes assintóticas para a morte.

De Verhaeren, a cruz feita pela espada nas quatro sobrancelhas


do horizonte.

De Verne, as duas ligas e meia da crosta terrestre.

Enquanto isso, René-Isidore Panmuphle, Meirinho, começou a


ler o manuscrito de Faustroll em profunda escuridão, documentando
a tinta invisível de sulfato de quinina por meio de raios
infravermelhos de um espectro tal que as outras cores foram
trancadas em uma caixa opaca; até ele ser interrompido pela
apresentação do terceiro viajante.
LIVRO DOIS

ELEMENTOS DA PATAFÍSICA

PARA THADÉE NATANSON


8

DEFINIÇÃO

Um epifenômeno é aquilo que é superinduzido em consequência


de um fenômeno.

Patafísica, cuja grafia etimológica deveria ser έπι (μετά τά


ϕνσικά) e cuja ortografia atual é patafísica, precedida de um
apóstrofe para evitar trocadilhos, é a ciência daquilo que é
superinduzido sobre a Metafísica, seja dentro ou além das últimas
limitações, estendendo-se quão além a Metafísica se estende como
a última extensão além da Física. Ex.: um epifenômeno sendo
geralmente acidental, a Patafísica será, acima de tudo, a ciência do
particular, a despeito da opinião comum de que a única ciência é
aquela do geral. A Patafísica irá examinar as leis que governam as
exceções, e irá explicar o universo suplementar a este; ou, de forma
menos ambiciosa, irá descrever um universo que não pode ser – e
talvez deveria ser – encarado no lugar do universo tradicional,
considerando que as leis que supostamente foram descobertas no
universo tradicional também são correlações de exceções, embora
mais frequentes, mas em todo caso dados acidentais, os quais,
reduzidos ao status de exceção corriqueira, não possuem nem
mesmo a virtude de originalidade.

DEFINIÇÃO. A Patafísica é a ciência de soluções imaginárias,


que atribui simbolicamente às propriedades dos objetos, descritos
por sua virtualidade, os seus contornos.

A ciência contemporânea é baseada no princípio de indução: a


maioria das pessoas já viu um certo fenômeno ser precedido ou
seguido de outro fenômeno na maioria das vezes, e conclui disso
que será sempre assim. Além de outras considerações, isso é
verdade apenas na maioria dos casos, dependendo do ponto de
vista, e é codificado apenas por conveniência – se muito! Ao invés
de formular uma lei da queda de um corpo em direção ao centro, o
quão mais apropriado seria a lei de ascensão de um vácuo em
direção ao periférico, o vácuo sendo considerado uma unidade de
não densidade, a hipótese bem menos arbitrária do que a escolha de
uma unidade concreta de densidade positiva como a água?

Pois até mesmo este corpo é um postulado e um ponto de vista


de um homem comum, e na medida que as suas qualidades, se não
sua natureza, deveriam permanecer razoavelmente constantes, seria
necessário postular que a altura dos seres humanos deveria
permanecer mais ou menos constante e mutuamente equivalente. O
consentimento universal já é um pré-conceito consideravelmente
miraculoso e incompreensível. Por que alguém deveria reivindicar
que a forma de um relógio é redonda – uma proposição
manifestamente falsa –, considerando que ele aparece em perfil
como um constructo estreito e retangular, elíptico em três lados? E
por que diabos alguém deveria notar sua forma apenas no momento
de olhar as horas? – Talvez sob o pretexto de utilidade. No entanto,
a criança que desenha um relógio em forma de círculo também vai
desenhar uma casa como um quadrado, como uma fachada, sem
nenhuma justificação, naturalmente. Porque, exceto talvez no
campo, irá raramente ver um prédio isolado, e até mesmo em ruas
as fachadas têm a aparência de trapézios muito oblíquos.

Nós devemos, de fato, inevitavelmente admitir que a multidão


comum (incluindo crianças pequenas e mulheres) é muito estúpida
para compreender equações elípticas, e que seus membros estão no
tão falado senso comum, pois são capazes de perceber apenas
aquelas curvas tendo apenas um único ponto focal, já que é mais
fácil de concordar com um ponto em vez de dois. Essas pessoas se
comunicam e encontram equilíbrio pela borda externa de suas
barrigas, tangencialmente. Mesmo a multidão comum, porém, já
aprendeu que o universo real é composto de elipses, e comerciantes
mantêm seu vinho em barris ao invés de cilindros.
Para não abandonarmos, por meio de digressões, nosso
exemplo usual da água, vamos refletir, nesta conexão, sobre a
irreverência da multidão cujo instinto se resume, segundo os
adeptos da ciência da Patafísica, na seguinte frase:
9

FAUSTROLL MENOR DO QUE FAUSTROLL

Para WILLIAM CROOKES

Outros homens loucos choraram incessantemente, pois a figura


um era ao mesmo tempo maior e menor do que ela mesma, e
proclamaram um sem-número de absurdos similares, como se
fossem descobertas similares.

– O Talismã de Oramane

O Doutor Faustroll (pode-se falar sobre uma experiência


pessoal) decidiu um dia ser menor do que ele mesmo e resolveu
explorar um elemento, a fim de examinar quaisquer distúrbios que
tal mudança em tamanho poderia implicar sua relação recíproca.

Para esse propósito, ele escolheu aquela substância que é


normalmente líquida, incolor, incompressível e horizontal em
quantidades pequenas; tendo uma superfície curva, azul em
profundidade e com bordas que tendem a vazar e fluir quando é
esticada; a qual Aristóteles postulou, como a terra, de natureza
pesada; inimiga do fogo e renascida dele quando decomposta de
forma explosiva; vaporiza-se a cem graus, uma temperatura
determinada por esse mesmo fato; e, quando em estado sólido,
flutua sobre ela mesma – água, é claro! E tendo encolhido ao
tamanho clássico de um ácaro, como um paradigma de pequenez,
ele viajou ao longo do comprimento de uma folha de repolho,
prestando atenção aos seus colegas ácaros ou ao aspecto agora
ampliado dos arredores, até que encontrou a Água.
Era uma esfera com o dobro do seu tamanho, de cuja
transparência os contornos do universo apareciam para ele
alargados gigantemente, ao mesmo tempo que a própria imagem,
refletida vagamente pelo dobrar das folhas, era ampliada ao seu
tamanho original. Ele deu um leve tapa na esfera, como se estivesse
batendo em uma porta: o olho desenraizado de vidro maleável
“adaptou-se” como um olho vivo, tornou-se presbiópico, alongou-
se ao comprido do seu diâmetro horizontal em uma miopia ovalar,
repelindo Faustroll em virtude de sua inércia elástica e voltando a
se tornar esférica novamente.

O doutor, dando passos pequenos, rolou o globo de cristal, com


uma dificuldade considerável, em direção a um globo vizinho,
deslizando nos trilhos das veias da folha de repolho; quando juntas,
as duas esferas se sugaram uma a outra, afunilando no processo, até
que de repente um novo globo com o dobro do tamanho balançava
placidamente na frente de Faustroll.

Com a ponta da sua bota, o doutor chutou esse inesperado


desenrolar dos elementos: uma explosão, formidável na sua
fragmentação e barulho, seguindo a projeção de novas e pequenas
esferas por todos os lados, secas e duras como diamantes, que
rolaram para lá e para cá ao longo da arena verde, cada uma
desenhando embaixo de si a imagem do ponto tangencial do
universo, distorcendo-o de acordo com a projeção da esfera e
ampliando o seu centro fabuloso.

Abaixo de tudo, a clorofila, como um cardume de peixes verdes,


seguiu as correntes mapeadas nos canais subterrâneos do repolho...
10

A RESPEITO DO MACACO BABUÍNO BOSSE-DE-NAGE,


QUE NÃO CONHECIA NENHUMA PALAVRA
HUMANA, A NÃO SER “HA HA”

Para CHRISTIAN BECK

Hey, você, disse Giromon gravemente; quanto a você, eu vou


usar o seu robe como vela de tempestade; suas pernas como
mastros, seus braços como varas, seu corpo como casco, e eu vou
f... bem, te amarrar bem na água com seis polegadas de aço no seu
estômago como lastro... E então, quando você for um navio, é a sua
cabeça gorda que vai me servir como testa de ferro, e então eu vou
te batizar: a v... suja.

– EUGÈNE SUE, A Salamandra (Le Pichon Joueic Deis


Diables)

Bosse-de-Nage era um macaco babuíno mais cinocéfalo do que


hidrocéfalo, e, como resultado desse defeito, menos inteligente do
que seus iguais. A calosidade vermelha e azul com a qual eles
brincam nas suas nádegas era, no caso dele, deslocada por Faustroll,
com o uso de uma medicação estranha, e transplantada para as suas
bochechas, azulada em uma, e escarlate na outra, de forma que sua
face era tricolor.

Não contente com isso, o bom doutor queria ensiná-lo a falar, e


se Bosse-de-Nage (chamado assim por causa de sua protuberância
dupla nas suas bochechas, como descrito anteriormente) não era
completamente familiarizado com a língua francesa, ele podia
pronunciar razoavelmente algumas palavras em belga, chamando o
cinto de segurança na popa do esquife de Faustroll de “bexiga
natatória com inscrição nela”, mas mais frequentemente ele
pronunciava um monossílabo tautológico:

“Ha ha”, ele disse em francês; e não adicionou mais nada.

Esse personagem irá se provar muito útil no curso deste livro,


para pontuar alguns de seus prolixos discursos: na maneira de
Victor Hugo (Os Burgraves, parte I, sc. 2):

Isso é tudo?

— Não, escute:

E Platão, em várias passagens:

— Άληθή λέγεις, έϕη.

— Άληθή.

— Άληθέστατα.

— Δήλα γαρ, έϕη, καί τυϕλω.

— Δήλα δή.

— Δήλα δή.

— Δίκαίον ϒούν.

— Είκοϛ.

— Έμοιϒε.

— Έοικε ϒαρ.

— Έστιν, έϕη.
— Kαί μαλ, έϕη.

— Kαλλιστα λέϒειϛ.

— Kαλωϛ.

— Kομιδή μέν οΰν.

— Mέμνημαι.

— Nαί.

— Ξνμβαίνει γαρ οντώϛ.

— Οιμαι μεν, και πολν.

— Όμολογώ.

— Όρθτατα

— Όρθώϛ γ, έϕη

— Όρθώϛ γ έϕη.

— Όρθώϛ μοι δοκειϛ λέγειν.

— Οΰκοΰν χρή.

— Παντάπασι μέν οΰν.

— Πάντων μάλιστα.

— Πάνϋ μεv οΰν.

— Πεισόμεθα μέν οΰν.

— Πολλή άναγκη.

— Πολύ γε.
— Πολύ μεv οΰν μαλστα.

— Πρτει γαρ.

— Πωϛ γαρ αν.

— Πωϛ δ αν.

— Τί δαί.

— Τί μήν.

— Τοντο μεν αληθεϛ λεγειϛ.

— Ώϛ δοκεί.

Aqui segue a narrativa de René-Isidore Panmuphle.


LIVRO TRÊS

DE PARIS A PARIS PELO MAR

OU A FAMÍLIA ROBINSON BELGA

Para ALFRED VALLETTE

Indagando quais homens sábios estiveram então na cidade, e


que vinho eles beberam ali.

– Gargântua, capítulo XVI


11

A RESPEITO DO EMBARQUE NA ARCA

Bosse-de-Nage desceu a passos pequenos, prestando atenção à


adesão achatada de seus pés como quando alguém desenrola um
cartaz colado, carregando o esquife sobre seus ombros colado às
orelhas, imitando os antigos egípcios quando ensinavam seus
discípulos. A superfície de metal avermelhado, como a de um
piolho d’água, começou a brilhar sob o sol conforme o longo barco
aventurou sua proa xifoide de doze metros de largura para fora do
corredor. As pás curvas dos remos fizeram um som retumbante
quando esbarraram nas antigas paredes de pedra.

“Ha ha!”, disse Bosse-de-Nage enquanto depositava o esquife


sobre o pavimento, mas nessa ocasião ele não adicionou nada ao
seu pronunciamento.

Faustroll esfregou as bochechas coradas de seu servo contra as


ranhuras do assento móvel para lubrificar o mecanismo; a face
esfregada brilhou ainda mais iluminada, inchando os arcos como
uma lanterna para iluminar nosso caminho. O doutor sentou-se à
popa em sua cadeira de mármore: entre suas pernas estava a mesa
de ônix coberta com suas bússolas, mapas, sextantes e vários outros
instrumentos científicos; ele jogou aos seus pés, para funcionar
como lastro, os seres curiosos que ele retirou dos seus vinte e sete
livros equivalentes e o manuscrito apreendido por mim; então, ele
passou por entre seus cotovelos o cordame do leme, e gesticulou
para que eu sentasse, virado para ele, no assento móvel (o que não
pude evitar obedecer, estando totalmente bêbado e pronto para
acreditar em qualquer coisa). Ele algemou meus pés a dois grilhões
de couro no fundo do esquife, e empurrou nas minhas mãos os
cabos dos remos de madeira de freixo, fazendo as pás se moverem
em conjunto tão simétrico quanto as penas de um pavão
empertigado.

Eu puxei os remos, movendo em minha posição contrária, sem


saber para onde, espremendo entre duas pistas de linhas úmidas em
uma horizontalidade cinza, ultrapassando formas que se
agigantavam por detrás de mim, as quais as pás afiadas dos remos
decepavam as pernas; outras formas distantes seguiam a direção
que estávamos tomando. Nós navegamos entre multidões de
pessoas como se fosse uma neblina densa, e o sinal acústico do
nosso progresso era o guinchar penetrante de seda rasgando.

Entre as figuras distantes que nos seguiram e as mais próximas


que cruzaram o nosso caminho, podia-se distinguir outras figuras,
verticais e mais ou menos paradas. Faustroll consentiu explicar-me
que a função de navegadores era avançar e beber, enquanto o papel
de Bosse-de-Nage era nos amarrar em cada parada em nosso
caminho errante, além de interromper nossas conversações, quando
uma pausa pudesse ser conveniente, com suas interjeições;
portanto, eu contemplei os seres que iam ficando para trás da minha
vista, da mesma forma que fizeram os contempladores na caverna
de Platão, e eu consultei em ocasiões sucessivas os ensinamentos do
mestre da nave, Faustroll, o Doutor.
12

A RESPEITO DO MAR DE FEZ EXTREMA, DO FAROL


OLFATIVO E DA ILHA DE TITICA, ONDE NÃO
BEBEMOS

Para LOUIS L.

“Este corpo morto”, disse o doutor, “de cuja carcaça podem ser
vistos velhotes tremendo em senilidade e jovens ruivos, igualmente
cretinos no seu discurso e seu silêncio, com seus bicos cheios de
carne para salpicado, pássaros coloridos à mão, como moscas de
manguço perfurando a carne para depositar seus ovos – este corpo
morto não é apenas uma ilha, mas um homem: ele se autodenomina
Barão Hildebrand do Mar de Fez Extrema.

“Tendo em vista que esta ilha é estéril e desolada, ele não


consegue cultivar nenhum tipo de barba. Ele sofreu de impetigo
durante a infância, e sua enfermeira, que era tão velha que sua
sabedoria era suficiente para encorajar fezes anormalmente
abundantes, profetizou a ele que este era um sinal de que ele não
seria capaz de dissimular ninguém.

A nudez infame do focinho do bezerro

“Apenas o seu cérebro e os centros motores anteriores de sua


medula estão mortos. Portanto, graças à sua inércia, ele é em nossa
rota de navegação não um homem, mas uma ilha, e esse é o motivo
(se vocês dois ficarem quietos, eu mostro o mapa)...”

“Ha ha!”, disse Bosse-de-Nage, acordando de repente; depois,


recaiu em um silêncio obstinado.
“... esse é o motivo”, continuou Faustroll. “Eu o encontro
descrito no meu mapa fluvial como a Ilha de Titica.”

“Sim”, eu disse, “mas como esta multidão de pessoas e pássaros


que depositam obituários no cadáver podem devorá-lo com tanta
confiança, no meio desta vasta planície, enquanto estes velhotes e
jovens, se eu não sou isobico a eles, são cegos e sem bastões?”

“Veja aqui”, disse Faustroll, abrindo seu manuscrito apreendido,


OS ELEMENTOS DA PATAFÍSICA, livro N, cap. : A respeito de
Obelischolychnies para cachorros, enquanto eles ainda uivam para a
Lua.

“Um farol levanta suas p... em uma tempestade, diz Corbière;


um farol levanta o seu dedo para apontar a distância um lugar de
segurança, de verdade e de beleza. No entanto, para as toupeiras, e
também para você, Panmuphle, um farol é tão invisível quanto o
milésimo décimo primeiro intervalo sônico é imperceptível, ou os
raios infravermelhos pelos quais eu escrevi este livro. O farol da
Ilha de Titica é escuro, subterrâneo, e cloacal, como se tivesse
olhado para o Sol por muito tempo. Nenhuma onda quebra contra
ele, e portanto nenhum som guia alguém para ele. A própria cera do
ouvido, Panmuphle, fecharia as suas orelhas para esses rumores
subterrâneos.

“Este farol se nutre da matéria pura da qual é substância a Ilha


de Titica; isto é, a alma do Barão, exalada da sua boca por um
cachimbo de chumbo. De todos os lugares onde me recusei beber,
voos de páginas, guiadas pelo seu perfume, chegam como gralhas
para sugar a vida (delas próprias, exclusivo) do jato caudaloso e
enfumaçado emanando do cachimbo soturno. E, para que não fosse
roubado deles, os velhotes organizaram em um monastério, tendo
construído sobre a carcaça do Barão uma pequena capela que eles
batizaram CATHOLIC MAXIMUM. As aves pintadas têm seus
pombais ali. O povo os chama de pato selvagem. Nós, patafísicos,
chamamos simples e honestamente de escavadores de merda.”
13

A RESPEITO DA TERRA DE RENDAS

Para AUBREY BEARDSLEY

Após deixar essa ilha desagradável para trás, nosso mapa foi
redobrado e eu remei por outras seis horas, meus dedos dos pés
seguros por grilhões, minha língua pendurada para fora de sede –
teríamos ficado mortalmente doentes caso tivéssemos tomado uma
bebida naquela ilha. Faustroll me manteve puxado tão paralelo com
os empurrões dos cabos do leme que, em meu movimento para trás,
eu pude ver apenas direto à ré a fumaça da ilha ainda subindo, até
que se escondeu por detrás dos ombros do doutor. Bosse-de-Nage,
tão exaurido pela sede que estava branco, não lançou mais que um
olhar pálido.

De repente, uma luz mais pura emergiu das sombras, mas de


forma alguma semelhante à gênese brutal do mundo.

O Rei das Rendas lançou a luz da mesma forma que um artesão


de cordas trança sua linha inversa, e as linhas tremularam
levemente na luz fraca, como teias de aranha. Elas se entrelaçaram
em florestas, como as folhas que a geada grava nos vidros das
janelas; então, moldaram-se em uma Madonna e seu Bebê na neve
do Natal; e assim, em joias, pavões, vestidos, misturando-se como a
dança sincronizada das donzelas do Reno. As Beaux e as Belles
empertigaram-se e envaideceram-se imitando leques, até que a sua
concentração paciente se quebrou com um choro. Assim como as
junonias brancas, empoleirando-se em um parque, reclamam
roucamente quando a intrusão mentirosa de uma lâmpada imita
prematuramente o reflexo do alvorecer como um espelho, como
uma forma cândida dilata-se arredondada numa floresta arranhada;
e como Pierrot canta a confusão da Lua entrelaçada, o paradoxo do
dia se enterrando surgiu de Ali Baba, gritando no óleo impiedoso e
a escuridão da jarra.

Bosse-de-Nage, pelo que pude julgar, entendeu muito pouco


dessas maravilhas.

“Ha ha”, ele disse sucinto; e não se perdeu em demais


considerações.
14

A RESPEITO DO BOSQUE DO AMOR

Para ÉMILE BERNARD

Como um sapo fora d’água, o esquife recortou em frente,


puxado pela sua sucção ao longo de uma estrada suave e
descendente.

Neste distrito de Paris ônibus nenhum nunca havia passado, nem


linha de trem, nem bonde, ou bicicleta, muito menos nenhum barco
a céu aberto com pele de cobre, movido a três roldanas armadas no
mesmo nível, manejadas por um doutor patafísico, que tem aos seus
pés as vinte e sete quintessências mais excelentes de obras feitas
por homens inquisidores de suas viagens, manejadas também por
um Meirinho que se chama Panmuphle (Eu, René-Isidore, o autor
do abaixo-assinado) e por um babuíno hidrocéfalo que não conhece
nenhuma palavra de línguas humanas, exceto “ha ha”. Aqui, em vez
de lâmpadas de rua, nós pudemos ver monumentos antigos de
pedras esculpidas; estátuas verdes agachadas em robes dobrados na
forma de corações; dançarinas circulares heterossexuais soprando
em feijões brancos inomináveis; finalmente, uma alga marinha
verde-calvário em que os olhos das mulheres eram como amêndoas
rachadas horizontalmente pela linha divisória de suas cascas.

A inclinação abriu de repente em um triângulo de espaço aberto.


O céu abriu também, e a explosão do Sol abriu como a gema de
uma ostra de pradaria explodindo na garganta, e o azul-celeste se
transformou em azul-avermelhado; o mar estava tão quente que
evaporou; as fantasias dos transeuntes eram borrifadas pedras
preciosas de cor mais brilhante do que opaca.
“Vocês são Cristãos?”, perguntou um homem bronzeado, vestido
em uma blusa berrante, de pé no centro da pequena cidade
triangular.

“Como M. Arouet, M. Renan, e M. Charbonnel”, eu respondi


depois de alguma reflexão.

“Eu sou Deus”, disse Faustroll.

“Ha ha!”, disse Bosse-de-Nage, sem demais comentários.

Assim, eu permaneci tomando conta do esquife com o babuíno,


que passou o tempo pulando nos meus ombros e urinando nas
minhas costas; mas eu o espantei com um maço de mandados, e
observei com curiosidade e a distância o comportamento do homem
alegremente vestido que havia aprovado a resposta de Faustroll.

Eles estavam sentados sob uma grande arcada, atrás da qual


havia uma segunda, e por detrás destas ali ardiam o verdor e a
gordura de um campo de repolhos historiado. Entre os arcos, mesas
e jarros e bancos arrumados em um celeiro; sobre a eira, um
abarrotado de pessoas vestidas em veludo azul-safira, com faces na
forma de diamantes e cabelos de cores baixas, a superfície peluda
da terra e os pescoços dessas pessoas sendo ambos como pelo de
vaca. Os homens estavam lutando entre si em um prado azul e
amarelo, perturbando sapos de areia-cinza dos quais cheguei a
escutar os coaxares medrosos; casais dançavam a gavota; e as gaitas
de fole, do topo dos barris drenados recentemente, zumbiram o voo
de laços de lantejoulas brancas e seda violeta.

Cada um dos dois mil dançarinos no celeiro ofereceu a Faustroll


uma bolacha fina, leite duro em forma de cubo, e diferentes licores
em copos tão finos quanto a ametista de um bispo e contendo
menos de um dedal. O doutor bebeu de todos eles. Cada pessoa
presente jogou um seixo no mar, respingando água nas minhas
mãos, remador iniciante que eu era, enquanto eu os segurei para me
proteger, e respingando nas bochechas multicoloridas de Bosse-de-
Nage.

“Ha ha!”, ele resmungou, expressando a sua fúria, mas


relembrou o seu juramento solene.

O doutor retornou com o som dos sinos, com dois mapas


grandes do país, os quais seu guia havia lhe dado absolutamente de
graça. Um era de representação realística, trabalhado em tapeçaria,
a floresta rodeando o espaço triangular: as folhagens vermelho-
rosadas surgindo sobre a massa de grama azul, e os grupos de
mulheres, as ondas de cada grupo com seus arranjos de plumas na
cabeça encostando gentilmente no chão, em um círculo excêntrico
de sombra do alvorecer. E sobre o mapa estava escrito: “O bosque
do Amor”.

No segundo mapa estavam enumerados todos os produtos desta


terra feliz, homens no mercado com seus porcos amarelos roliços,
eles mesmos roliços e azuis, enfiados em suas roupas como
linguiças. Eles eram todos tão estufados quanto as bochechas de um
tocador de gaita de foles, ou tão cheios de vento quanto um fole ou
um estômago.

O anfitrião Cristão deixou Faustroll com toda cortesia e navegou


com o próprio barco em direção a uma terra ainda mais distante. E
nós pudemos ver a linha vermelha do horizonte marítimo cortar a
viga mestra de sua vela cor de rosa.

Nós esfregamos as bochechas adiposas do babuíno hidrocéfalo


contra os trilhos deslizantes do assento caído; e quando eu peguei
os remos uma vez mais, e Faustroll havia pegado as cordas de seda
do leme, eu me encolhi e estiquei uma vez mais nos movimentos
alternados de um remador, sobre as ondas combinadas da terra seca.
15

A RESPEITO DA GRANDE ESCADARIA DE MÁRMORE


NEGRO

Para LÉON BLOY

Na boca do vale, nós contornamos um calvário final, o qual com


uma altura assustadora talvez tenha levado alguém, à primeira vista,
a pensar que seria um gigante e massivo altar. No ponto
contundente dessa improvável pirâmide de mármore, entre dois
coroinhas que lembravam fortemente o cinocéfalo de Tanit, a
imensa cabeça do rei se carbonizou na fornalha da Lua. Ele estava
agarrando um tigre pela nuca, e forçando as pessoas do Mar de Fez
Extrema a escalarem com suas mãos e joelhos. Depois de seus
ossos terem sido cortados pelas lâminas dos passos sucessivos, ele
deixou o caçador monstruoso se fartar com a carne dos ganchos de
açougueiro presos em seus punhos.

Ele deu as boas-vindas a Faustroll com honras, e, levantando seu


braço do cume do calvário, depositou no nosso esquife um viático
de vinte e quatro orelhas do Mar de Fez Extrema espetadas em um
chifre de unicórnio.
16

A RESPEITO DA ILHA AMORFA

Para FRANC-NOHAIN

Essa ilha é como coral macio, ameboide e protoplásmico: suas


árvores lembram muito o gesto de caramujos fazendo chifres para
nós. Seu sistema de governo é a oligarquia. Um de seus reis, como
a altura de seu pschent nos indicou, viveu sobre a devoção de seu
harém; para escapar do julgamento do seu parlamento, o qual foi
motivado por inveja, ele rastejou pelo esgoto para bem debaixo do
monólito na praça principal e o roeu o suficiente para deixar uma
crosta de apenas duas polegadas de espessura. Ele está, portanto, a
dois dedos de distância da forca. Como Simon Stylites, ele se
esconde em sua coluna oca, já que está na moda hoje em dia não
colocar nada nas plataformas das cidades que não estátuas, que são
as melhores cariátides em dias de mau tempo. Ele trabalha, dorme,
ama e bebe na verticalidade de uma longa escada, e não tem
nenhuma outra lâmpada na hora de acordar que a palidez de sua
nudez. Uma de suas menores realizações foi a invenção da bicicleta
de dois lugares, que estende a quadrúpedes os benefícios de pedais.

Outro rei, versado em haliêutica, decora com as suas linhas de


pesca as pistas de ferrovias circulares parecidas com leitos de rios.
Os trens, porém, com a crueldade da juventude, perseguem os
peixes perante eles ou esmagam mordidas embrionárias em suas
barrigas.

Um terceiro rei redescobriu a língua do paraíso, inteligível até


para animais, e trouxe alguns desses animais à perfeição. Ele
manufaturou libélulas elétricas, e contou inúmeras formigas com o
uso do número 3.

Um outro, notável por sua face sem pelos, nos instruiu em usos
ardis, de forma que nos tornamos competentes em fazer uso
completo de nossas tardes, consolidar nossos créditos de bêbados
completos e ganhar, sem desperdício do nosso talento, as
congratulações da Academia Francesa.

Outro imita os pensamentos da humanidade, usando


personagens dos quais ele manteve apenas a metade superior de
seus corpos, para que não possa haver nada dentro, a não ser o que
é puro.

Ainda um outro está elaborando um enorme tomo, com o


objetivo de computar as qualidades dos franceses, os quais, ele
clama, serão não menos bravos que galantes, e espirituosos tanto
quanto galantes. Para que pudesse se entregar completamente ao
seu trabalho, ele forjou perder sua jovem prole na floresta durante
uma caminhada no campo, beneficiando-se de um momento de
desatenção da parte deles. Enquanto estávamos banqueteando em
sua companhia e na de outros reis, em diferentes degraus da grande
escada Bosse-de-Nage, tinha dificuldade em manter seu pé estável.
Os gritos dos vendedores de jornais na praça mágica nos
informavam que os seus sobrinhos estavam naquele dia, como nos
dias anteriores, procurando desesperadamente sob árvores
quincunciais pelo venerável ausente.
17

A RESPEITO DA ILHA FRAGRANTE

Para PAUL GAUGUIN

A Ilha Fragrante é completamente sensitiva e fortificada por


madréporas, as quais se retraíram, conforme desembarcávamos, em
suas casamatas vermelho-coral. A linha de amarração do esquife foi
fixada em volta de uma grande árvore que ondulava ao vento como
um papagaio se balança ao brilho do Sol.

O rei das ilhas estava nu em um barco, seus lombos cingidos


com sua coroa branca e azul. Ele estava revestido, também em céu
e vegetação como a biga de corrida de César, e tão ruivo como se
estivesse em um pedestal.

Nós bebemos à sua saúde em licores destilados em hemisférios


vegetais.

Sua função era preservar para o seu povo a imagem dos seus
deuses. Ele estava fixando uma dessas imagens no mastro do seu
barco com três pregos, e era como uma vela triangular, ou o ouro
equilateral de um peixe seco trazido de volta do septentrion. Acima
da porta da habitação de suas esposas ele capturou as ectasias e
contorções do amor em um cimento divino. Em pé, ao lado do
entrelaçamento de jovens seios e nádegas, registra e profetiza a
fórmula da felicidade, que é dupla: seja amoroso, e seja misterioso.

Ele possui também uma cítara com sete cordas de sete cores, as
cores eternas; e, em seu palácio, uma lâmpada nutrida das nascentes
fragrantes da terra. Quando o rei canta, movendo-se ao longo da
costa enquanto toca sua cítara, ou quando ele desbasta com um
machado, de imagens de madeira viva – os jovens brotos que iriam
desfigurar a aparência dos deuses –, suas esposas tocam no oco de
suas camas, o peso do meado pesado sobre as costas do olhar
vigilante do Espírito dos Mortos, e da porcelana perfumada do olho
da grande lâmpada.

Conforme o esquife abandonava os recifes, nós vimos as esposas


do rei perseguindo um aleijado sem pernas brotando algas marinhas
como um caranguejo encarquilhado; em seu baú de anão, uma
túnica de lutador de feira simulou a nudez do rei. Ele se adiantou
desajeitadamente com seus punhos protegidos, e com o roncar dos
rolamentos sob sua base tentando perseguir e escalar a bordo da
plataforma do Omnibus de Corinthe, que estava justamente
atravessando a nossa rota; mas tal salto não é para qualquer um. Ele
caiu miseravelmente antes, quebrando sua bacia posterior com uma
fissura menos obscena que ridícula.
18

A RESPEITO DO CASTELO-ERRANTE, QUE É UM LIXO

Para GUSTAVE KAHN

Faustroll, seu olho na agulha da bússola, decidiu que nós


poderíamos não estar muito além ao nordeste de Paris. Depois de
ter primeiro escutado a vidraça vertical do mar, não demoraria
muito para que nós pudéssemos vê-lo, mantido em seu lugar por
uma fortificação daquelas plantas, todas raízes, que são o esqueleto
da areia; e nós deslizamos em direção à suave e avermelhada praia,
entre a viscosidade do quebra-mares, como leviatãs paralelos.

O céu prateado nos ofereceu reflexões invertidas dos


monumentos a serem achados no outro lado do sono verde de
cascas; barcos passaram pelo céu, de cabeça para baixo e simétricos
em direção a futuros invisíveis; então, podia ser vista a imagem dos
ainda distantes telhados do castelo de Ritmos.

Infatigável timoneiro que eu era, puxei os remos por várias


horas, enquanto Faustroll procurava em vão por um lugar para
acostar próximo ao castelo, que estava retrocedendo
constantemente como uma miragem; depois de passar por ruas
estreitas de casas vazias que espiavam nossa aproximação através
de olhos facetados de espelhos complicados, nós finalmente
tocamos, com a fragilidade sonora de nossa proa, o voo de passos
na madeira talhada conduzindo para o edifício nômade.

Nós rebocamos o esquife até a costa, e Bosse-de-Nage guardou


o equipamento e os tesouros em uma gruta profunda.
“Ha-ha!”, ele disse, mas nós não escutamos o resto de seu
discurso.

O palácio era um lixo estranho sobre um mar calmo acolchoado


com areia; Faustroll me assegurou de que algo da Atlântida deitava
ali abaixo. Gaivotas vibravam como os impressionantes martelos do
cinto azul do céu, ou os embelezamentos da libração de um gongo.

O senhor da ilha veio a pé, saltando pelo jardim plantado com


dunas de areia. Ele tinha uma barba preta, e vestia uma armadura de
corais antigos; em vários dedos, vestia anéis de prata nos quais
languiam esmeraldas. Nós bebemos gim holandês e cerveja amarga,
entre pratos de todos os tipos de carne defumada. As horas foram
golpeadas por sinos moldados de todos os metais. Tão cedo quanto
a linha de amarração foi desamarrada por nosso marinheiro
lacônico, o castelo desmoronou e morreu, e reapareceu refletido no
céu, de muito longe, como um grande lixo atritando o fogo da areia.
19

A RESPEITO DA ILHA DE PTYX

Para STÉPHANE MALLARMÉ

A Ilha de Ptyx é formada de um único bloco de pedra deste


mesmo nome, uma pedra sem preço encontrada apenas nesta ilha,
que é inteiramente composta dela. Tem a translucência serena de
safira branca e é a única pedra preciosa não gelada ao toque, pois
seu fogo entra e se espalha em si mesma como vinho após beber.
Outras pedras são tão frias quanto o choro de trompetes; isso tem o
calor precipitado da superfície de um tambor de cobre. Para nós, foi
fácil desembarcar ali, pois era cortada em forma de mesa, e nós
tínhamos a sensação de pisar em um sol purgado do opaco ou
também dos aspectos deslumbrantes de sua chama; como com as
tochas de tempos antigos. Não se notavam mais os acontecimentos
das coisas, mas apenas a substância do universo, e é por isso que
não nos importamos com a superfície sem falhas que era um líquido
equilibrado de acordo com as leis eternas, ou um diamante,
impermeável exceto debaixo de uma luz caindo direto de cima.

O senhor dessas ilhas veio a nós em um navio: o funil estufou


halos azuis atrás de sua cabeça, amplificando a fumaça de seu
cachimbo e imprimindo-a no céu. Como o navio armou e atirou, sua
cadeira de balanço arrancou seus gestos de boas-vindas.

Debaixo de seu tapete de viagem ele desenhou quatro ovos com


conchas pintadas, os quais entregou para o Doutor Faustroll depois
de primeiro tomar um drinque. Na chama do ponche que estávamos
bebendo, a eclosão dos embriões ovais rompeu na costa da ilha:
duas colunas distantes, o isolamento de duas trindades prismáticas
de flautas de pã, espalmadas no surto de suas cornijas, e o aperto de
mãos de apenas quatro dedos do soneto de quadras; e nosso esquife
balançou sua rede no reflexo recém-nascido do arco triunfante.
Dispersando a curiosidade cabeluda dos faunos e o florescer rosado
das ninfas, despertou de seu devaneio por essa criação macia e
melada. A lâmina do motor do navio retirou sua respiração azul em
direção ao horizonte da ilha, com sua cadeira atrapalhada acenando
adeus1.

1Desde que este livro foi escrito, o rio ao redor da ilha se tornou uma guirlanda
funeral. (Nota do autor.)
20

A RESPEITO DA ILHA DE HER, DO CICLOPE E DO


GRANDE CISNE DE CRISTAL

Para HENRI DE RÉGNIER

A Ilha de Her, assim como a Ilha de Ptyx, é uma joia singular,


com fortificações octogonais salientes, assemelhando-se à bacia de
uma fonte de jaspe. O mapa deu o nome da Ilha de Herm por ser
pagã e consagrada a Mercúrio; e os habitantes a chamam de Ilha de
Hort, por seus jardins magníficos. Faustroll me instruiu que se deve
interpretar o nome apenas por suas raízes antigas e autênticas, e que
a silaba her, como a raiz de uma árvore genealógica, significa, mais
ou menos, Seignioral.

A superfície da ilha é de água parada, espelhada (era natural que


as ilhas nos parecessem como lagos, durante nossa navegação por
terra seca); e não se poderia imaginar um barco navegando por ali, a
não ser como uma pedra lisa ricocheteando na superfície, pois este
espelho não refletia ondulações, nem mesmo as próprias.
Entretanto, navega ali um grande cisne, tão puro e simples quanto
pó de arroz, e de vez em quando ele bate suas asas sem quebrar o
silêncio do ambiente. Quando o tremular do leque é rápido o
bastante, pode-se vislumbrar a ilha inteira através de sua
transparência, e o outono se abre como um jato de água.

Nunca se soube que os jardineiros da Ilha de Her permitissem


que o jato da fonte caísse novamente na bacia, pois isso iria ondular
a superfície; os buquês do spray que paira em uma pequena altura
horizontal parecem nuvens; e os dois espelhos paralelos da Terra e
o céu preservam seu vazio recíproco como dois ímãs eternamente
face a face.

Toda a conduta nessa ilha é formal, como em tempos antigos,


quando essa palavra significava costumeiro.

O senhor dessa ilha é um Ciclope, mas nós não somos obrigados


a imitar os estratagemas de Ulysses. Perante seu olho frontal foi
pendurada uma corrente na testa envolvendo dois espelhos
prateados, um de costas para o outro, como uma moldura de Janus.
Faustroll calculou que o espelho duplo tinha exatamente 1.5x10 -5
centímetros de espessura. Ele refletia a luz em nossa direção como
a pedra de oito raios da serpente heráldica. Através desses espelhos
o senhor da ilha podia, o doutor me informou, discernir claramente
os elementos ultravioleta escondidos de nós.

Ele se aproximou com pequenos passos entre a fileira dupla de


juncos, cortada por sua ordem de acordo com a hierarquia de
outrora do siringe; seus mordomos nos serviam com açúcar e
quartos de cidra.

Suas retentoras femininas, com seus vestidos que se espalhavam


como as gotas das caudas de um pavão, nos davam uma exibição de
dança nos gramados vítreos da ilha; mas, quando elas elevaram seus
cortejos para andar sobre a relva menos glauca que a água,
evocavam a imagem de Balkis, convocado de Sheba por Solomon,
com as patas de asno traídas pelo piso de cristal do salão, à vista de
seus tamancos caprinos, e suas saias tosquiadas. Nós fomos
apreendidos com pavor e nos atiramos para dentro do esquife,
deitando ao pé da escada de jaspe do barco. Eu puxei os remos,
enquanto Bosse-de-Nage expressava sucintamente sua estupefação
geral:

“Ha-ha!”, ele disse; mas seu estado de pavor, sem dúvida, o fez
calar neste ponto.
E eu recuei para longe da ilha, perpendicularmente o bastante
para a cabeça de Faustroll ocultar de mim em um curto período o
olhar do senhor de Her, e o olho artificial em sua órbita de
madrepérola assemelhando-se ao vidro refletido de uma lâmpada de
semáforo.
21

A RESPEITO DA ILHA DE CYRIL

Para MARCEL SCHWOB

A Ilha de Cyril apareceu primeiramente para nós como o fogo


vermelho de um vulcão, ou como uma tigela de ponche cheia de
sangue respingada pela queda de estrelas cadentes. Então vimos que
ela era móvel, blindada, e quadrangular, com uma hélice nos quatro
cantos, no formato de quatro semidiagonais de braços separados
capazes de avançar em qualquer direção. Nós percebemos que nos
aproximamos dentro do perímetro de tiro quando uma bala rasgou a
orelha direita de Bosse-de-Nage e quatro de seus dentes.

“Ha ha!”, gaguejou o papio; mas o impacto de um cone


cilíndrico de aço contra sua apófise esquerda zigomática fez sua
terceira palavra se apequenar. Sem esperar uma resposta mais
detalhada, a ilha cinética içou a bandeira com caveira e guri, e
Faustroll a bandeira da Grande Giroleta.

Após as saudações, o doutor bebeu cordialmente algum gim com


o Capitão Kid, e conseguiu dissuadi-lo de pôr fogo no esquife (era,
apesar de seu verniz de parafina, incombustível) e de pendurar
Bosse-de-Nage e eu – após nos roubar – no mastro principal (o
esquife não tinha mastro principal).

Todos nós pescamos macacos em um rio, para o horror de cair o


queixo de Bosse-de-Nage, e visitamos o interior da ilha.

Como o brilho vermelho do vulcão cegava os olhos, não se


podia ver cercado por uma escuridão sem sombra; mas era possível
seguir as ondulações opacas da lava deslumbrante. Havia crianças
que corriam sobre a ilha com lâmpadas. Elas nasciam e morriam
sem nunca envelhecer, nos cascos desgastados das barcaças, no
banco de um remanso verde-garrafa. Sombras de lâmpadas
vagavam como caranguejos glaucos e róseos; e mais adentro na
ilha, onde escapamos o mais rápido possível em razão dos animais
marinhos que assolavam a costa na maré vazante, o adormecer
multicolorido das umbelas. As lâmpadas e o vulcão exalavam uma
luz vívida, como a luz de bombordo do Barco dos Mortos.

Após beber, o capitão, resplandecente com seu bigode


encaracolado, usou sua cimitarra de embarcação como um cálamo
e, com uma tinta feita de pólvora e gim, tatuou na testa de nosso
reticente camaroteiro estas palavras em azul: “BOSSE-DE-NAGE,
PAPIO CYNOCEPHALUS”. Ele reascendeu seu cachimbo na lava e
deu ordens para as crianças-da-luz escoltarem o esquife de volta
para o mar. E, até que nós alcançássemos mar aberto, fomos
acompanhados pelas palavras de despedida do Capitão Kid, e pelas
luzes turvas como águas-vivas desbotadas.
22

A RESPEITO DA GRANDE IGREJA DE FOCINHODEFIGO

Para LAURENT TAILHADE

Nós podíamos ouvir sinos com antecedência – tão alto quanto o


badalar Brabantine de ébano, carvalho, cedro, sorveira e choupo da
Ilha Sonando –, quando eu me encontrei de repente entre duas
paredes pretas, sob um arco, ofuscado pelo brilho de um longo
vitral. O doutor, sem dignar-se a me alertar, atirou o esquife como
uma flecha, usando as cordas de seda do leme, para o centro do
grande portal da catedral de Focinhodefigo. Como a tosse
prematura de pernas de cadeira sendo deslocadas, meus remos
ralaram nos ladrilhos do barco, que se alinhavam simetricamente
com a quilha.

Frade João escalou para dentro do púlpito.

A figura sensacional, bélica e sacerdotal olhou fixamente ao


grupo. Sua vestimenta sacerdotal era de cota de malha, cravejada
com rubis-balas e diamantes pretos. Em vez de rosários, uma cítara
de oliveira pendia em sua cintura à direita, enquanto aos seus pés
estava fincada sua grande incrível espada de duas mãos com seu
punho feito de um emblema de ouro, e sua bainha em forma de
chifre e em pele de víbora.

Seu sermão era retórico e muito Latino, Sótão e Asiático ao


mesmo tempo; mas eu falhei em entender por que ele estava
ressoando e tilintando de suas botas de metal a suas manoplas, nem
pude compreender suas expressões, arranjadas como as curvas de
uma luta de esgrima.
De repente, uma bala de bronze foi disparada de um canhão
falconete ligado a uma contraplaca por quatro correntes de ferro. O
tiro chumbou a têmpora direita do orador, rachando seu capacete
até a sua tonsura, deixando aberto o nervo óptico e o lobo direito do
cérebro, mas sem afetar o ponto do entendimento.

Assim que a fumaça subiu do falconete, um vapor pungente foi


exalado da garganta da congregação e solidificado na forma de um
monstro anão aos pés do púlpito.

Aquele dia eu vi o Focinho. É respeitável e de boas proporções,


comparável de todas as formas ao caranguejo eremita ou ao paguro,
como Deus é infinitamente similar ao homem. Tem chifres que
servem como nariz e papilas gustativas, na forma de longos dedos
surgindo de seus olhos; duas garras de comprimento desiguais e dez
pernas ao todo; e sendo, como o paguro, vulnerável apenas em seu
traseiro, ele o esconde e seu sexo rudimentar sob uma concha
camuflada.

Frade João empunhou sua grande espada, em posição de ataque


ao Focinho, para grande ansiedade dos presentes. Faustroll
permaneceu impassível e Bosse-de-Nage, desordenadamente
interessado, esqueceu-se de si mesmo, pensando em voz alta:

“Ha ha!”

No entanto, ele não disse mais uma palavra, por medo de


atropelar seus pensamentos. O Focinho retirou-se, o ponto da sua
concha primeiro, ao mesmo tempo que todos recuaram; e suas
garras se esfregando como bocas tremendo. A lâmina da espada,
brilhando quando sacada da bainha de pele de víbora, atenuou-se
contra a bolsa peluda da criatura.

Àquela altura, Faustroll colocou o esquife em movimento.


Puxando as cordas do leme fortemente, ele conseguiu inclinar
apreciavelmente o esquife; isso foi possível, pois a sua manivela
não controlava apenas um leme plano, mas inclinava também a
longa quilha, desde a dianteira, para a direita, para a esquerda, para
cima ou para baixo, de acordo com seus movimentos direcionais. A
vela de cobre retesado brilhou como uma lua crescente. Comigo
manipulando os discos de sucção para aderir à superfície de granito
perigosamente polido, o doutor nos liderou em direção ao monstro.
Em sua rota indireta nossa navegação retorceu em si mesma como a
aliança de casamento de um beijo de Narciso com uma anfisbena.

Com esse artifício, Frade João foi facilmente capaz de encontrar


o Focinho em seu mesmo nível, o monstro tendo avançado
ligeiramente enquanto seu adversário descia os doze degraus. Ele o
extraiu de sua concha com a ponta bifurcada de sua espada, e picou
seu traseiro em tantos pedaços quanto havia pessoas no barco, mas
nem ele nem nós, com exceção de Bosse-de-Nage, quisemos provar
a oferenda.

E o combate poderia ter sido a verdadeira imagem, em todas as


suas vicissitudes, de um embate de touros, se o touro Fundo-de-
Concha tivesse feito uma investida direta em vez de tentar um
impulso no fim de seu voo circular.

Entretanto, o pregador enfeitado de joias remontou o púlpito


para o seu sermão. Seu rebanho, não mais possuído pelo espírito do
Focinho, foi purgado de seu humor crasso e o aplaudiu.

Quanto a nós, partimos uma vez mais em direção aos sinos


próximos da Ilha Ressoante, e Faustroll não consultou mais as
estrelas, pois nosso caminho estava iluminado pelos feixes das
grandes janelas, iridescentes como palavras, feixes como caminhos
estrelados liderando da igreja.
23

A RESPEITO DA ILHA RESSOANTE

Para CLAUDE TERRASSE

“Feliz o sábio”, diz o Chi-Hing, “no vale onde vive, recluso, que
se deleita ao ouvir o som de címbalos; sozinho, em sua cama,
acordando, ele exclama: ‘Nunca, eu juro, esquecerei a felicidade
que eu sinto!’.”

O senhor da ilha, após nos dar boas-vindas nesses termos, nos


levou para as suas plantações as quais ele fortificou com
marcadores eólicos de postes de bambu. As plantas mais comuns
que existiam eram side-drum, ravanastrom, sambuca, archlute e
bandore, kin e tché, beggars-guitar e vina, magrepha e hydraulus.
Em uma estufa notavam-se os vários tubos e vapores de um órgão a
vapor dado para Pippin em 757 por Constantine Copronymus, e
importado para a ilha Ressoante por São Cornélius de Compiègne.
Aqui se pode inspirar o perfume do piccolo, oboé d’amore,
contrabassoon, e sarrusophone, a gaita de foles Brittany, zampogna
e English bagpipe; o Cheré de bengala, bombardon serpente,
coelophone, saxhorn e bigorna.

A temperatura da ilha é regulada por termômetros de consulta,


chamados sirenes. No solstício de inverno a sonoridade atmosférica
cai de um grito de gato ao zumbido de vespas e abelhas e a vibração
de uma asa de mosca. No solstício de verão, todas as flores
mencionadas anteriormente desabrocham, alcançando um tom de
ardor como o de insetos pairando sobre as plantas de nossos campos
nativos. À noite, aqui, Saturno bate seu sistro e seu anel. E, ao
alvorecer e crepúsculo, o Sol e a Lua explodem como címbalos
divorciados.

“Ha ha”, começou Bosse-de-Nage, querendo testar a sua voz


antes de se juntar ao refrão de música universal; mas os dois corpos
celestiais se trombaram em um beijo de reconciliação e o plantador
celebrou este evento estridente assim:

“Feliz o sábio”, ele chorou, “que, em uma encosta de montanha,


se delicia em ouvir o som de címbalos. Sozinho em sua cama, ao
acordar, ele canta: ‘Nunca, eu juro, meus desejos irão além do que
já possuo!’.”

Faustroll, antes de sair, bebeu com ele absinto destilado dos


topos das montanhas, e o esquife exalou seu curso cromático à
batida de meus remos. Em direção aos corpos celestiais
surpreendendo as horas de união e divisão da tecla negra e a tecla
diurna, uma pequena criança nua e um ancião de cabelo branco
cantaram em duas colunas elevadas; em direção a este disco duplo
de prata e ouro, eles cantaram:

O velho homem berrou uma seleção de silabas errantes, e o


soprano seráfico pegou o refrão e acompanhou com o coro de anjos,
Tronos, Poderes e Domínios: “... pet, a-mor mor, cu-pet, cu, pet, a-
mor oc-cu, semper nos amor occupet”.
O energúmeno de barba branca concluiu a frase de baixo calão
com um choro gutural e uma contorção obscena; naquele momento,
de nosso esquife, que estava ancorado aos pés de uma estela
gorducha no formato de uma criança, nós pudemos ver o
esmigalhar de sua armadura feita de cartolina esmaltada ou papelão
e o desabrochar da barba esquálida de quarenta e cinco anos do
anão sistino.

De seu trono perfumado com harpas, o senhor da ilha exultou


que sua criação era boa, e, enquanto nos afastávamos, podíamos
ouvir essa melodia:

“Feliz o sábio que, na montanha em que habita, se delicia em


ouvir o som de címbalos; sozinho em sua cama, ao acordar, ele
deita em tranquilidade e jura que nunca vai revelar ao vulgar a
razão de seu prazer!”
24

A RESPEITO DAS SOMBRAS HERMÉTICAS E DO REI


QUE ESPEROU A MORTE

Para RACHILDE

Após passar o rio Oceano, o qual, em lembranças à estabilidade


de sua superfície, assemelha-se muito a uma grande rua ou bulevar,
nós alcançamos a Terra de Cimmerii e as Sombras Herméticas, a
qual se difere deste rio como dois planos não líquidos se diferem –
isto é, em tamanho e divisão. O lugar onde o Sol se põe tem a
aparência, entre as dobras compreendendo o mesentério da Cidade,
do apêndice vermiforme de um caeco. Abundante em becos cegos e
culs-de-sac, alguns dos quais se expandem em cavernas. Em um
deles, a estrela-dia estava acostumada a soprar-se para cima. Pela
primeira vez eu entendi que era possível alcançar a superfície do
horizonte tangível e ver o Sol de tão perto.

Existe um sapo monstruoso com a boca nivelada com a


superfície do Oceano, e que tem a função de devorar o disco
submerso, da forma como a Lua come as nuvens. Ele genuflexa
diariamente em sua comunhão circular; neste momento, vapor exala
de suas narinas, e a grande chama chega, a qual é a alma de certas
pessoas. Isso é o que Platão chamou de rateio por lotes de almas
fora do polo. Sua genuflexão, por conta da estrutura de seus
membros, é também de cócoras. A duração de sua jubilação
deglutiva é, portanto, sem dimensão; e, como ele digere ao ritmo de
uma pontualidade vigorosa, seus intestinos permanecem
inconscientes da estrela transitória, a qual, de qualquer forma, é
indigesta. Ele desaparece em uma passagem na diversidade
subterrânea da Terra e emerge do polo oposto, onde se purga dos
excrementos que se suja. É desse detrito que o demônio Plural
nasce.

Na terra onde o Sol é eternamente dormente, existe um rei que é


o seu comandante de guarda e deve dividir seu destino, aguardando
a morte a cada dia; ele acredita que a noite vai em algum momento
reinar perenemente, e inquire após as evacuações do sapo no
horizonte. No entanto, ele não tem tempo para considerar a
precipitação da estrela, com sua barriga cambaleando, para dentro
da caverna adjacente: ele carrega um espelho em seu umbigo, o que
o dá um reflexo dele. Seu único passatempo é construir um castelo
de cartas, para o qual ele adiciona uma história a cada manhã; aqui,
uma vez por mês, os senhores das ilhas transpontinas vêm para
debochar deles mesmos. Quando o castelo está tampado com
histórias suficientes, a estrela vai brilhar em seu curso, e esse será
um cataclismo considerável. O rei, porém, foi suficientemente
sensato de não o construir na planície eclíptica. O castelo continua
seu equilíbrio em exata proporção com sua altura.

Como a tarde avançava enquanto Bosse-de-Nage dirigia nosso


esquife em direção ao banco, o rei estava esperando a morte como
usualmente, e o sapo estava boquiaberto funcionalmente. O palácio
estava envolto em escuridão; camas haviam sido preparadas para os
corpos, e poções para amortecer a consciência da agonia. Bosse-de-
Nage, embora não professando por uma loquacidade variada e
impensada, gabou-se de ser deontológico, e se adestrou em honra,
obrigado a se vestir em trajes pretos e a coroar seu crânio – o que se
assemelhou a uma abóbora mal favorecida – com um chapéu belga
capaz de armazenar vibrações luminosas em comprimentos de onda
iguais aos de seu traje, a coroa que se assemelhava a um globo meio
extinto.

E a noite computou suas horas tão exatamente que as lâmpadas


tiveram que ser acesas.
De repente, o colón descendente do sapo trovejou, e o bolo não
alimentar de fogo puro tomou seu caminho usual uma vez mais em
direção ao polo do demônio Plural.

Em uma metamorfose surpreendente a cor melancólica dos


enforcamentos virou um rosa-pálido. As poções foram bebidas
alegremente através dos espaços das Flautas, e, quando pequenas
mulheres foram deitadas em camas vermelhas e quentes, Bosse-de-
Nage pensou que havia chegado o ponto de definir as coisas:

“Ha ha!”, ele declarou de forma resumida, mas viu que nós
havíamos adivinhado seus pensamentos, e observou com grande
surpresa a simplicidade de seu chapéu belga rolar sobre o carpete
com o ruído recalcitrante de uma varrida de escova de ferro.
LIVRO QUATRO

CEFALORGIA
25

A RESPEITO DA TERRA-MARÉ E DO BISPO MARINHO


MENTIROSO

Para PAUL VALÉRY

Faustroll despediu-se enquanto a noite ainda estava pendurada,


como um papa, dos quatro pontos cardeais. Eu o perguntei por que
ele não ficou bebendo até o próximo mergulho repentino do Sol.
Ele chegou ao esquife e, com seu pé no pescoço de Bosse-de-Nage,
fez sondagens ao longo da nossa rota.

Ele me confidenciou que estava com medo de ser pego


desapercebido pela maré vazante, já que o período de syzygy estava
aproximando-se de seu fim. Eu apreendi com medo, pois nós ainda
estávamos remando onde ainda não havia água, entre a aridez das
casas, e prontamente estávamos costeando ao longo da calçada de
um quarteirão empoeirado. Pelo que pude entender, o doutor estava
falando sobre as marés da terra, e eu pensei que um de nós deveria
estar bêbado, e que o chão estava afundando em direção ao seu
nadir como uma profundeza abismal revelada em um pesadelo. Eu
sei agora que, à exceção do fluxo dos seus humores e da sístole e da
diástole que bombeiam nosso sangue circulatório, a Terra está
abaulada com músculos intercostais e respira de acordo com o
ritmo da Lua. No entanto, a regularidade dessa respiração é muito
suave, e poucas pessoas estão cientes disso.

Faustroll fez algumas medidas astrais, a visibilidade através do


céu albugíneo sobre esta rua estreita sendo excelente, e me mandou
anotar o fato de que o raio terrestre já tinha diminuído 1.4 x 10 -6
centímetros, por meio da subsidência no seu refluxo. Então ele deu
ordens para Bosse-de-Nage lançar ancora, assegurando-nos de que
o único pretexto, digno de Doutrina, para um fim de nossa jornada à
deriva era que a espessura da terra abaixo de nossos pés até o centro
não era mais profunda o suficiente para satisfazer nossa honra.

Agora era meio-dia, o comprimento estreito do beco tão deserto


quanto um estômago vazio; e nós aportamos, como era fácil
perceber pelos números na parede na frente da casa quatro mil e
quatro da rua de Venise.

Entre os níveis do chão com seus pisos de terra batida,


negligenciado por portas mais largas que a rua, mas menos
boquiaberto que mulheres esperando pela uniformidade de suas
camas, Faustroll levantou a questão de ancorar o esquife em um
abrigo profundo. De repente ele apontou, e eu não estava muito
surpreso de ver surgir do limiar de um dos mais descobertos e
sórdidos casebres um personagem marinho abstraído do livro XIII
dos Monstros de Aldrovandi, tendo a aparência de um bispo, e mais
particularmente o tipo de bispo que, certa vez, foi pescado na costa
da Polônia.

Sua mitra era de balanças de peixe e sua cruz, como o corimbo


de um tentáculo refletido; sua casula, a qual eu toquei, era toda
encrustada com pedras das profundezas e poderia facilmente ser
levantada na frente e atrás, mas, por conta da casta aderência de sua
cútis, dificilmente abaixo dos joelhos.

O bispo marinheiro Mentiroso fez uma reverência perante


Faustroll e presenteou Bosse-de-Nage com uma caixa de orelha
grátis. Quando o esquife foi intrometido no cais abobadado e a
válvula da porta, fechada uma vez mais, ele me apresentou a
Visitada, sua filha, e seus dois filhos, Distinto e Extravagante.
Então ele inquiriu, perante a nós, se estaríamos de acordo, bem
sucintamente, em:
26

BEBER

Para PIERRE QUILLARD

Entretanto, Faustroll levou o garfo em direção aos seus dentes


com cinco presuntos – inteiros, assados e desossados –, de
Strasbourg, Bayonne, Ardennes, York e Wesphalia, pingando com
Johannisberger. A filha do bispo, ajoelhada debaixo da mesa,
encheu novamente cada unidade da linha ascendente de cálices de
hectolitros na esteira que se movimentava e cruzava a mesa em
frente ao doutor e passava, vazia de seus conteúdos, perto do trono
levantado de Bosse-de-Nage. Eu me dei uma sede ao engolir um
carneiro que havia sido assado vivo enquanto corria em uma trilha
embebida em gasolina até acabar em uma curva. Distinto e
Extravagante beberam tão sedentos quanto ácido sulfúrico anídrico,
como se seus nomes tivessem me tornado suspeito, e três de suas
mandíbulas teriam envolvido um metro cúbico de lenha. Entretanto,
o Bispo Mentiroso se refrescava exclusivamente com água fresca e
mijo de rato.

Certa vez ele teve o hábito de misturar a última substância com


pão e queijo Melun, mas teve sucesso em suprimir a vaidade
supererrogatória desses condimentos sólidos. Ele sugou água de um
decanter de ouro forjado tão fino quanto o comprimento de onda da
luz verde, servido em uma bandeja feita da pele (preferencialmente
ao pelame, já que o bispo queria ser elegante) da raposa recém-
esfolada de um ébrio, na estação, e suficientemente igual a um
vigésimo do peso deste. Tal luxo não é digno de qualquer um: o
bispo mantinha os ratos a um custo exorbitante, e também, em
quartos pavimentados com funis, um serralho inteiro de ébrios, os
quais a conversa ele imitava:

“Você acha”, ele disse ao Faustroll, “que uma mulher pode


algum dia estar nua? Em que você reconhece a nudez de uma
parede?”

“Quando está desprovida de janelas, portas e outras aberturas”,


opinou o doutor.

“Seu raciocínio é bom”, continuou Mentiroso. “Mulheres nuas


nunca estão nuas, especialmente mulheres velhas.”

Ele bebeu um grande gole direto de seu jarro, o qual se


sustentava ereto em seu carpete viscoso, como uma raiz arrancada
de sua cova. A esteira transportadora de taças cheias de líquido ou
vento entoava como uma incisão feita na barriga de um rio pelo
rosário de um rebocador iluminado.

“Agora”, continuou o bispo, “beba e coma. Visitada, nos sirva


de um pouco de lagosta!”

“Não fora uma vez elegante em Paris”, eu arrisquei, “oferecer


esses animais em cortesia, como um fumador de tabaco
apresentando sua caixa de rapé? Mas, pelo que tenho escutado, as
pessoas têm o hábito de recusá-las, alegando que são decápodes
peludos e repulsivamente sujos.”

“Ho-hum, ho-hum”, condescendeu o bispo. “Se lagostas são


sujas e não depiladas, é talvez a prova de que elas são livres. Um
destino mais nobre do que a carne enlatada que você carrega no
lenço em seu pescoço, doutor navegador, como uma caixa com um
par de binóculos salteados pelos quais você gosta de escrutinizar
pessoas e objetos.

“Mas, escute:
A LAGOSTA E A LATA DE CARNE ENLATADA,

OS QUAIS DOUTOR FAUSTROLL

VESTIA EM VOLTA DO PESCOÇO

Fábula

Para A. F. HÉROLD

Uma lata de carne, acorrentada como um binóculo longo,

Viu uma lagosta passar, a qual se assemelhou fraternalmente.

Ele estava blindado com uma concha dura

Na qual estava escrito que dentro, como ela, ele era livre de
ossos,

(sem ossos e econômico);

E abaixo de seu rabo curvado

Ele estava provavelmente escondendo uma chave que a abrisse

Feridodeamor, a carne enlatada sedentária

Declarou a pequena lata de carne viva

Que se ele se dignasse a virar aclimatado

Ao seu lado, no mundo das vitrines,

Ele deveria ser condecorado com várias medalhas de ouro.”

“Ha ha”, meditou Bosse-de-Nage, mas ele não desenvolveu suas


ideias de forma mais compreensiva.
E Faustroll interrompeu a frivolidade com um discurso
importante.
27

CAPITALLIA

O Doutor Faustroll começou:

“Eu não acredito que um assassinato inconsciente é, portanto,


necessariamente sem motivo: não é governado por nenhum
comando emanando de nós e não tem conexão com o fenômeno
precedente de nosso ego, mas segue certamente uma ordem externa,
é dentro da ordem de fenômeno externo, e tem uma causa que é
perceptível pelos sentidos e, portanto, é significante.

“Eu nunca tive o desejo de matar, exceto depois de ver uma


cabeça de cavalo, que se tornou para mim um sinal, ou uma ordem,
ou mais precisamente um sinal, como um polegar para baixo em
uma arena, que o tempo chegou de dar o golpe; e você deve sorrir
por último. Eu devo explicar para você que existem indubitáveis e
inúmeras razões para isso.

“A visão de um objeto muito feio certamente provoca alguém a


fazer algo que também é feio. Agora, o que é feio é mau. A visão de
uma condição revoltante incita a prazeres revoltantes. A aparição de
um focinho feroz com os ossos à mostra impele a um ato feroz e
esfolar de ossos. Agora, não existe objeto no mundo inteiro tão feio
quanto a cabeça de um cavalo, exceto talvez pela de um gafanhoto,
que é praticamente igual, sem ter o tamanho gigante da anterior. E
você sabe que o assassinato de Cristo foi prenunciado pelo seguinte
fato: Moisés, para que as escrituras fossem cumpridas, tinha
permitido comer bruchus, attacus, ophiomachus e locust, que são as
quatro espécies do gafanhoto.”

“Ha ha!”, interpôs Bosse-de-Nage em forma de digressão, mas


não conseguiu encontrar nenhuma objeção válida.
“E, além disso”, Faustroll continuou imperturbável, “o
gafanhoto não é de forma alguma um animal monstruoso, tendo
desenvolvido membros normalmente, enquanto o cavalo, nascido
para a deformidade indefinida, já os tem, desde a origem de sua
espécie, embora dotado originalmente pela natureza com quatro
dedos mobiliados com dedos, e sucedeu em repudiar um certo
número de seus dedos e ficar pulando em quatro cascos solitários,
exagerado e excitado, como uma peça de mobília deslizando em
quatro rodinhas. O cavalo é um planchette.

“Mas a cabeça por si só, embora eu não consiga definir as


minhas razões – talvez por causa da simples enormidade de seus
dentes e o abominável rito natural a ele –, é para mim o sinal de
toda a ferocidade ou até o sinal da morte. E o apocalipse disse
precisamente em significado o quarto flagelo: ‘A morte estava
montada em um cavalo pálido’. O que eu interpreto da seguinte
forma: ‘Aqueles para quem a Morte vem visitar veem primeiro a
cabeça de um cavalo’. E os homicídios de guerra derivam da
equitação.

“Agora, se você for curioso para saber por que raramente me


incito a assassinar na rua, onde as cabeças horríveis se multiplicam
na frente de todos os veículos, eu replicaria que o sinal, para ser
ouvido, precisa ser isolado, e que a multidão não possui o poder de
dar uma ordem. E assim como mil tambores não fazem tanto
barulho quanto apenas um, e mil inteligências formam uma
multidão movida por instinto, da mesma forma um indivíduo não é
um indivíduo para mim quando ele aparece na companhia de vários
de seus iguais, e eu mantenho que a cabeça é apenas uma cabeça
quando separada de seu corpo.

“E o Barão de Munchausen nunca foi mais bravo em uma guerra


e melhor em matar do que no dia quando, à ponte levadiça cercada,
ele notou que tinha deixado metade de seu monte no outro lado de
sua viga afiada.”
“Ha ha!”, exclamou Bosse-de-Nage apropriadamente.

O Bispo Mentiroso, porém, o interrompeu para concluir:

“Bem, doutor, desde que nós nunca falemos com você na


presença de um cavalo decapitado – e, até o presente momento, os
solípedes são dilacerados em vez de guilhotinados –, somos
permitidos em considerar que suas tentações assassinas são um
paradoxo agradável.”

Então ele nos mandou dormir com um discurso grego


macarrônico, do qual, sacudindo a minha cabeça, eu pude apenas
compreender a última proposição perfeita:

“... ΣΕΣΟΥΛΑΘΑΙ”.
28

A RESPEITO DA MORTE DE UM NÚMERO DE PESSOAS


E, MAIS ESPECIFICAMENTE, DE BOSSE-DE-NAGE

Para MONSIEUR DEIBLER, simpaticamente

O pequeno ceifador chegou e começou a trabalhar. Ele deu


batidas em sua foice de tal forma que encheu um quarto de
wagonful de feno, ou mais, de tão vigoroso que era; e ainda mais,
ele não teve prazer em afiar sua foice; mas, quando sua lâmina
estava cega, ele arrastou em seus dentes, com um som como
froooooc. Assim, economizou tempo.

BÉROALDE DE VERVILLE, Como Ter Sucesso, XXIV

Após beber, nós andamos por ruas neblinadas, com Mentiroso


nos liderando. A natureza episcopal de suas vestimentas dava às
pessoas a impressão de que ele era provavelmente um homem
honesto. Ninguém, exceto o doutor e eu, notou que ele estava
desprendendo os letreiros com seu bastão episcopal, como se
inadvertidamente, e os dava graciosamente para Bosse-de-Nage
carregar. Este o agradecia com duas únicas palavras: “ha ha”, pois,
como é sabido, ele se opunha a qualquer verborragia inútil.

Eu ainda não estava ciente da caridade do bispo em permitir os


letreiros em cair.

De repente a cabeça encurvada do bastão episcopal começou a


desenrolar, enfrentando a dureza de uma moldagem dourada acima
de um açougue de cavalos. O voo deslizante pairou como um
animal mascarado e com um olhar duplo de cima a baixo.

Faustroll, muito calmo, acendeu uma pequena vela perfumada


que queimou por sete dias.

No primeiro dia, a chama era vermelha, e revelou um veneno


categórico no ar, e a morte de todos os catadores de rua e soldados.

No segundo dia, das mulheres.

No terceiro, das criancinhas.

No quarto dia, havia uma notável doença epizoótica entre os


quadrúpedes considerados comestíveis em condições ruminantes e
possuindo um casco fendido.

A combustão de açafrão no quinto dia dizimou o fim iminente


de ciclistas, de todos aqueles pelo menos, sem exceção, que
prendiam os punhos das calças com garras de lagosta.

A luz mudou para fumaça no sétimo dia, e Faustroll teve um


espaço para respirar.

Mentiroso desprendeu os letreiros das lojas com suas mãos,


depois de pedir uma mãozinha de Bosse-de-Nage.

A neblina se dissipou sem peso em direções centrifugas, antes


do arco do portão de uma escola de direção; e Faustroll estava
tomado novamente pela insanidade.

O bispo pegou em seus calcanhares, mas não rápido o suficiente


para impedir Faustroll de desmanchar sua mitra enquanto ainda
estava viva; enquanto eu não fui molestado pelo doutor, pois eu
estava protegido com meu nome Panmuphle.
Faustroll, porém, agachou-se até o babuíno, espalhando seus
quatro membros no chão estrangulando-o por detrás. Bosse-de-
Nage fez um sinal mostrando que desejava falar, e, quando o doutor
relaxou o aperto de seus dedos, disse em duas palavras:

“Ha ha!”. E essas foram as últimas duas palavras que ele


pronunciou.
29

A RESPEITO DE SIGNIFICADOS OUTROS E EVIDENTES


DAS PALAVRAS “HA HA”

... E eu irei declarar

Perambulando por uma alameda de paisagem onde

Um Ha ha espreita à frente. Desavisado

Ele nunca notará, até que tenha tombado, que havia um ali

– PIRON

Nós podemos tratar aqui do habitual e sucinto discurso de


Bosse-de-Nage, para que fique claro que com intenção sensata, e
não por escárnio, nós temos sempre reportado em seu conteúdo
total, junto com a causa mais provável de sua interrupção
prematura.

“HA HA”, ele disse de forma concisa; mas nós não estamos de
maneira alguma preocupados com o fato acidental de que ele
usualmente não adicionava nada mais.

Em primeira instância, é mais sensato usar a grafia AA, pois a


aspiração h nunca foi escrita nas línguas antigas do mundo. Era
proclamado no esforço de Bosse-de-Nage, trabalho servil e
obrigatório, e a consciência de sua inferioridade.

A justaposto a outro A, com o posterior obviamente igual ao


anterior, é a fórmula do princípio de identidade: uma coisa é ela
mesma. É ao mesmo tempo a refutação mais excelente de sua
proposição, dado que os dois As diferem em espaço, quando nós os
escrevemos, se não de fato em tempo, apenas como dois gêmeos
nunca nascem juntos – mesmo quando emitindo do hiato obsceno
da boca de Bosse-de-Nage.

O primeiro A era talvez congruente ao segundo, e nós vamos


escrever, de bom grado, portanto: A = A.

Pronunciado rápido o bastante, até o ponto em que as letras


fiquem fundidas, é a ideia de unidade.

Pronunciado lentamente, é a ideia de dualidade, eco, distância,


simetria, grandiosidade e duração, dos dois princípios de bom e
mau.

No entanto, sua dualidade prova também que a percepção de


Bosse-de-Nage era notadamente descontínua, para não dizer
descontínua e analítica, inadequada para qualquer síntese ou
adequações.

Pode-se assumir com confiança que ele conseguia apenas


perceber o espaço em duas dimensões, e era refratário à ideia de
progresso, implicando, como implica, uma figura espiral.

Seria um problema complicado de estudar, em adição, se o


primeiro A fosse a causa eficiente do segundo. Deixemo-nos nos
contentar apenas em notar que, desde que Bosse-de-Nage
usualmente pronunciava AA e nada mais (AAA seria a forma
médica amálgama), ele evidentemente não tinha noção da Trindade
Divina, nem de qualquer coisa tripla, nem do indefinido, que
começa com o três, nem do indeterminado, nem do Universo, o
qual pode ser definido como o Diverso. Nem de ninguém mais. E,
de fato, o dia em que ele casou, realmente sentiu que sua mulher era
casta com ele, mas não poderia dizer se ela era uma virgem.

E em sua vida pública ele nunca entendeu o uso, nos bulevares,


daqueles quiosques de ferro os quais o nome popular deriva do fato
de que eles são divididos em três prismas triangulares e que pode-se
usar apenas um terço de cada vez. E ele permaneceu, até sua morte,
marcado assim pelo Capitão Kid:

BOSSE-DE-NAGE

Papio Cynocephalus,

sujando e devastando tudo indiscriminadamente.

Nós omitimos deliberadamente, sendo esses significados muito


bem sabidos, que ha ha é uma lacuna cavada em uma parede no
final do caminho de um jardim, um fosso militar ou trincheira na
qual pontes de aço cromado podem colapsar, e que AA pode ser
ainda lido nas medalhas abatidas em Metz. Se o esquife de Faustroll
tivesse um gurupés, ha ha teria designado uma vela especial
colocada entre as velas bujarronas.
LIVRO CINCO

OFICIALMENTE
30

A RESPEITO DE MIL MATÉRIAS VARIADAS

Para PIERRE LOTI

O Bispo, porém, decapitado de seu malhete, estava de mal a


pior, desacostumado que era em assistir a assuntos misi in
pontificalibus. Razão pela qual ele entrou em seu closet,
reabastecido com mil assuntos variados adequados para encorajar
porcaria.

Na mesa pequena em que ordinariamente rolos de papel se


desenrolam, um pequeno e gordo busto de um pequeno homem
alegre, com uma pequena e raquítica barba, desfilou em besouro-
verde.

O pequeno e alegre homem ginga da direita para a esquerda na


hemisfericidade de sua base, e o bispo teria reconhecido, se ele
tivesse sido um membro da expedição naquela época, o corredor
aleijado sem pernas expelido da Ilha Fragrante. Eu descobri mais
tarde que ele o conhecia, com menos custo e aparentando ainda
mais com ele mesmo, no relógio vulgar na sala de estar de uma
velha senhora. O aleijado sem pernas palmado se levantou nos
calcanhares artificiais de sua tigela e ofereceu ao bispo cortesmente
um bloco quadriculado como um adstringente.

“Eu tinha reservado para a minha mãe”, ele disse, “mas”


(apontando para a ametista do bispo), “como é o caso com ela, a fé
cristã o permite ler com serenidade as matérias mais sombrias. Você
ainda não usou de meus serviços nesse sentido, mas verá que é
ainda mais eu.”
“Este papel então vai...?”, perguntou o bispo.

“Leia perseverantemente com todos os seus olhos, até mesmo


com seu olho mais secreto. Este papel é soberano. Ele seria... você
também, se você soubesse!”

“Você me decidiu”, disse Mentiroso.

“Tome seu lugar, então, entre estas pilhas de supositórios menos


eficazes. É chegado o tempo: eu posso distinguir por mim mesmo
atrás de praticamente todas estas palavras acumuladas O ABISMO
SEM FUNDO.”

Ele pulou agilmente na fenda designada, e como uma manopla


de ferro, deslizando pelo corrimão de uma escada, a reverberação
de sua tigela de zinco morreu junto com a dobra dupla do corrimão:
mas os versos de Messrs. Déroulède e Yan-Nibor rolaram dentro
deste mirlitão côncavo, os quais ele suportou com os pés.

Lido pelo Bispo

Enquanto ele cuidava dos seus negócios.

MORTE DO OBSCURO LATENTE

“Brr... brr... brr... brrr... chen... hatsch… Obscuro Latente está


nos deixando… Brrr… brrr… O momento de agonia se
consumou… brr… brr… O esquecimento momentâneo induzido
pelo sono. Um verso. Deve ela então morrer, Obscuro Latente...
Heuh... eheuh... está congelando duro... impressão geral e sinistra...
brr... brr... ela já está a meio caminho do abismo... heuh heuh...
lágrimas amargas... o doutor diz que ela não irá passar desta noite...
pra fora com você, sapo! Dentro das sombras e abaixo. – A vida
dela está se esvaindo” (tambor velado). “O frio penetra no osso”
(bis). “Tra ratatat!” (o bispo sussurra alegremente). “No trem de um
regimento, nosso fiel Melanie, que vem de um estoque de antigos
servos devotados, que já se tornou praticamente membro da
família...”

“Coragem, você está indo bem”, clamou o pequeno homem lá de


baixo. “Continue, não tenha medo de me ser inconveniente: eu irei
dormir na porta ao lado, no quarto árabe.”

“A luta amarga do fim”, concordou o bispo, ainda lendo; “brrr...


brrr... pesadelo agonizante. Momento horrível. Deixe-nos ler com o
olho do outro lado: o último ritual de purificação, o corpo pobre, a
horrível pequena cama, a grande cama, a testa pálida, a face
estimada, esta terrível pequena cama.”

“Nós nos levantamos e descendemos como fantasmas”,


ofegavam as folhas em seu serviço sucessivo.

“Estas PALMEIRAS VERDES”, continuou o bispo se


remoendo, “colocadas em cruz no peito...”

“Obrigado por seus desejos bons”, telefonou o habitante do


cano. “Eu estou deliciado de ver que você ainda não está nos
deixando, sentado no topo da minha chaminé. O pálido dia de
inverno... semblante sereno... imagem suprema, tão bela!”

“Impressões vagas”, continuou Mentiroso modestamente.

“As feições pálidas, o sorriso gentil! Obscuro Latente sorri tão


suavemente...

“Heuh! Eheuh... Impressão obsessiva, infinitamente triste...


Brrr... brrr... ratatat!”

“As vozes queridas e os sons queridos... bons olhos sorridentes,


tão tristes...”
“OBSCURO LATENTE NOS DEIXOU!!! Graças a Deus”,
exclamou o bispo, se levantando.

“Graças”, ecoou o pequeno homem. “Um sol aquecedor. Janelas


abertas. Grande armário, pequena caixa. Estou fumando um cigarro
oriental!”

“Talvez esta seja a última vez”, disse o bispo sentando


novamente, repentinamente forçado a resumir sua leitura, e lendo
com extrema concentração, “o arrependimento de Obscuro Latente
brotou em mim com aquela intensidade e naquela forma peculiar
que nos traz lágrimas, pois tudo é repentinamente calmo, tudo se
torna normal, esquecido, e surge um véu, uma névoa, uma cinza,
algo indescritível atirado como em celeridade, brrrrr... e de repente,
da memória daqueles seres que retornaram ao NADA ETERNO,
rat, tat, ratatat... Recompensa! Recompensa! Em splashes, em fogo
e sangue! Após a moda dos rinocerontes. Sem parar. O rosário para
os mortos. Brrr... brr... estou hyplotizando a mim mesmo. Ho-hu,
ho-hu! Comprido como um lance.”

“O seu nome é Kaka-San?”, perguntou o pequeno homem após


um certo tempo.

“Não, Mentiroso, bispo marinho, ao seu serviço. Por quê?”

“Porque Kaka-San fez algumas coisas muito sujas na caixa dela


durante as suas perdoáveis e sem constrangimento últimas horas.”
31

SOBRE O JATO MUSICAL

“Como eles chamam a ti?”

“Masca-bosta”, disse Panurge.

– PANTAGRUEL, 111, 25

Agora, é necessário saber que a válvula instalada no pescoço da


boca da fenda era de borracha fina; e, para se familiarizar com as
descobertas do Sr. Chichester Bell, primo do Sr. Graham Bell – o
ilustre inventor do telefone –, era necessário estar ciente de que
uma corrente de água caindo sobre uma folha de borracha esticada
sobre a parte superior de um tubo constitui um microfone, e que um
jato de líquido para em certas taxas mais facilmente do que em
outras, e que, de acordo com sua natureza, irá responder a certos
sons em detrimento de outros. Finalmente, não deveria se
escandalizar se mencionarmos que os glúteos do bispo secretaram
esse jato musical quase inconsciente, os quais as vibrações
amplificadas ele percebeu no momento de deixar sua leitura.

Vozes de pequenas mulheres chegaram, glorificando o pequeno


homem.

AS PEQUENAS MULHERES (piano, ritmo comum, três


sustenidos), algumas delas gentilmente (mi – sol – dó – mi ... si –
mi – si pedal):

“Que o seu luto seja acalmado por nossas músicas (fá-lá


sustenido)! Outras: que a sua terrível dor (sol-si sustenido) voe
longe ao baixo murmúrio das ondas (cinco bemóis, pedal,
CRYSTALINO)...

“Mais estranho (sol natural – si), se você cantar nossa solidão,


deve mudar nosso nome (GENTILMENTE), pois as sílabas são
muito rudes, e dar a você um outro (lá bemol) como a montanha
florida (sol sustenido, si natural).”

Algumas mulheres propõem o nome: “Atari”. Outras: “Fei”.


Outras pequenas mulheres: Não! (Pedal. Duas colcheias tremor.)
Lo-tús. Todas ao seu redor: “É o momento do batismo! (UM
POUCO SOLENEMENTE). Na ilha das músicas, na terra do amor
(semínima), Lo-tús (mi sustenido, dó, semínima, crescente.), Lo-:
(dó) tús (mi sustenido) deve ser seu nome supremo (SIC).”

AS PEQUENAS MULHERES (CONT.): “Na terra das músicas,


na terra do amor, Lo-tús, Lo-tús deve ser seu nome supremo (duas
semínimas). Lo-tús (mi sustenido, mi sustenido), nós o nomeamos;
Lo-tús, nós o nomeamos, e (p.p.) nós aben (na harmonia de be
sustenido) -çoamos você (grande clamor)!”.

A válvula abriu, a música cessou; a aspiração sendo completada,


o bispo reprotegeu seu anel, e colocou-o nas mãos, confirmando por
seu gesto de aprovado de bendição das pequenas mulheres. Então,
ele simplesmente cortou o jato.
32

COMO SE OBTEVE UMA TELA

Para PIERRE BONNARD

Faustroll iniciou uma subfumigação, e o espectro de Bosse-de-


Nage – que, tendo apenas existido imaginariamente, não pôde
realmente morrer – se manifestou, disse “ha ha” respeitosamente,
então silenciou, aguardando ordens.

Eu descobri naquele dia um novo sentido para essa palavra


inestimável, nomeadamente que o A (alpha), começo de todas as
coisas, é interrogativo, pois espera uma exposição em espaço
presente, e o apêndice, maior que si próprio, de uma sequência em
duração.

“Aqui estão alguns bilhões em dinheiro”, disse o doutor,


vasculhando nos bolsos de seu colete abotoados em rubi. “Você vai
perguntar a um policial o caminho para a Loja do Departamento
Nacional, chamada Au Luxe Bourgeois, e lá irá comprar várias
varas de tela.

“Você vai transmitir meus cumprimentos aos gerentes do


departamento – Bouguereau, Bonnat, Detaille, Henner, J.-P.
Laurens e Tartempion –, à sua horda de assistentes e aos outros
vendedores subsidiários. E, para não desperdiçar tempo nas garras
de suas barganhas, você vai, sem uma palavra...”

“Com exceção de ha ha”, eu insinuei maliciosamente.

“... despejar sobre cada um deles uma pilha de ouro, até que suas
bocas estejam silenciadas sob a maré alta. Um pagamento suficiente
será setenta e seis milhões de guineas para o Sr. Bouguereau;
dezessete mil serafins para o Sr. Henner; oitenta mil maravedis para
o Sr. Bonnat, desde que sua tela esteja carimbada, no lugar de uma
marca registrada, com a figura de um pobre homem; trinta e oito
dúzias de florins para Sr. J.-P. Laurens; quarenta e três cêntimos
para o Sr. Tartempion, e cinco bilhões de francos, bem como uma
gorjeta em kopeks, para o Sr. Detaille. Você irá jogar os tostões que
sobrarem nas caras dos outros palhaços.”

“Ha ha”, disse Bosse-de-Nage para mostrar que ele tinha


entendido, e se preparava para sair.

“Está tudo muito bem”, eu disse para Faustroll, “mas não seria
mais honrado alocar esse ouro aos custos dos meus procedimentos
e, se necessário, extrair as quantidades de telas por pura esperteza?”

“Eu irei explicar para você o que meu ouro realmente é”, disse o
doutor, piscando.

E falou para Bosse-de-Nage:

“Uma última palavra: para livrar a conversa fiada das suas


mandíbulas proeminentes, entre em um pequeno quarto arranjado
para este propósito. Lá os ícones dos Santos brilham adiante.
Descubra a sua cabeça perante o Pobre Pescador, ajoelhe-se perante
os Monets, genunflexie perante Degas e Whistlers, rasteje na
presença de Cézanne; prostre-se aos pés de Renoir e lamba a
serragem das escarradeiras ao pé da moldura de Olympia!”

“Ha ha”, concordou Bosse-de-Nage, de bom grado, e em sua


saída apressada carregada com os protestos ardentes de seu zelo.

Virando em minha direção, o doutor continuou:

“Quando Vincent van Gogh tinha desvelado seu cadinho, e


esfriado a matéria integrada da verdadeira pedra filosofal, e quando,
neste primeiro dia do mundo, todas as coisas foram transmutadas no
metal soberano e, no contato do maravilhoso, tornaram-se reais, o
artesão do Grande Trabalho se contentou em passear os seus fortes
dedos pela suntuosidade pontuda de sua barba iluminada, e disse:
‘Como o amarelo é belo!’.

“Eu poderia facilmente transmutar todas as coisas, pois também


possuo essa pedra” (ele mostrou-a para mim, posta em um de seus
anéis), “mas descobri por experimentos que o benefício se estende
apenas àqueles cujo cérebro é da mesmíssima pedra” (através de
um vidro de relógio embutido na fontanela de seu crânio, ele me
mostrou essa pedra uma segunda vez)...

Bosse-de-Nage retornou com onze vans cenográficas repletas de


pilhas verticais de telas expiradas.

“Você pensa, meu amigo”, terminou Faustroll, “que alguém


poderia dar ouro para essas pessoas que iria permanecer ouro e
digno de ser ouro em suas carteiras?

“Aquele mesmo no qual eles estão submersos agora vai também


espalhar as correntes bem ajustadas de seu fluxo sobre as telas. É
jovem e virgem, em todas as maneiras, comparável à matéria na
qual bebês se sujam.”

Após mirar a lança beneficente da máquina de pintar no centro


daqueles quadriláteros desonrados por cores irregulares, ele
apontou para o controle deste monstro mecânico, e o Sr. Henri
Rousseau, artista pintor decorador, chamou o oficial aduaneiro,
mencionado com honra e titular de medalha, que por sessenta e três
dias embelezou meticulosamente a diversidade impotente das
caretas da Loja de Departamento Nacional com a quietude uniforme
do caos.
LIVRO SEIS

UMA VISITA A LUCULLUS


33

A RESPEITO DOS TERMES

Agora, Faustroll estava dormindo perto de Visitada.

A grande cama, esculpida a faca, agachou sobre a nudez da terra,


a parte antiga da nebulosa do mundo, e derramou sobre o chão as
horas comidas por vermes da sua areia.

Entre esse silêncio rítmico, Visitada desejava descobrir se, por


baixo da tapeçaria pintada em espiral, Faustroll, que a tinha amado
como a infinita série de números, possuía um coração capaz de
bombear com seu punho aberto e fechado a projeção de sangue
circulando.

O tic-tac do relógio como o arranhar de uma mesa com a unha,


uma ponta de caneta ou um prego; batimento perto da orelha dela.
Ela contou nove batidas, a pulsação parou, então continuou até
onze...

A filha do bispo ouviu o próprio sono antes de quaisquer demais


batidas, e estas não a perturbaram, pois ela não sobreviveu à
frequência de Priapus.

No carvalho da cama decadente, as termes, comparáveis à


invisibilidade de um ácaro vermelho com olhos amarelos,
emprestaram o isocronismo da sua cabeça latejante à simulação do
coração de Faustroll.
34

CLINAMEN

Para PAUL FORT

... Enquanto isso, após não haver mais ninguém no mundo, a


Máquina de Pintar, animada por dentro por um sistema de molas
leves, girava em azimute no salão de ferro do Palácio das
Máquinas, o único monumento em pé em uma Paris deserta e
arrasada. Como um pião, ela riscava contra os pilares, balançados e
desviados em direções infinitas e variadas, e seguia o próprio
capricho assoprando contra as paredes como telas na sucessão de
cores primárias ordenadas de acordo com os tubos de seu estômago,
como uma pousse-l’amour em um bar, as cores mais claras mais
próximas da sua superfície. No palácio selado no qual rufava essa
suavidade morta, este dilúvio moderno do Sena, a besta imprevista
Clinamen ejaculou nas paredes de seu universo:

NEBUCHADNEZZAR TRANSFORMOU-SE EM BESTA


Que belo pôr do sol! Ou antes seja a Lua, como um vão em um
tonel de vinho maior que um navio, ou como a rolha em um frasco
italiano. O céu é ouro sulfúrico tão vermelho que realmente nada
está faltando, a não ser um pássaro quinhentos metros para o alto
capaz de soprar uma brisa das nuvens. A arquitetura, o próprio tipo
de todas essas chamas, é mais vivo até mesmo movendo-se, mas
demasiadamente romântico! Existem torres com olhos e bicos,
existem torres com boinas como pequenos policiais. Duas mulheres
vigias balançam nas janelas sopradas pelo vento como camisas de
força secando. Assim o pássaro:

O grande anjo, que não é anjo, mas Principado, arremata abaixo,


após um voo exatamente tão preto quanto um andorinhão, a cor do
metal da bigorna de um ferreiro. Com uma ponta no telhado, os
compassos fecham e abrem novamente, descrevendo um círculo em
volta de Nebuchadnezzar. Um braço entoa a metamorfose. O cabelo
do rei não descansa no fim, mas inclina como os bigodes molhados
de uma morsa; as pontas de seus cabelos não fazem esforço para
espremer as sensíveis espinhas que têm as pessoas desta alga mole,
com zoófitos refletindo as estrelas: pequenas asas palpitam ao ritmo
da pata espalmada de um sapo. Súplicas piedosas nadam contra a
corrente de lágrimas. As pupilas entristecidas dos olhos, em sua
ascensão, rastejam em direção aos joelhos do céu cor de borra de
vinho. O anjo, porém, acorrentou o monstro recém-nascido no
sangue do palácio vítreo e o jogou dentro do fundo de uma garrafa.

O RIO E O PRADO
O rio tem uma face gorda e macia, para o sabor dos remos, um
pescoço com muitas sardas, mas uma pele azul com um aveludado
cabelo verde. Entre seus braços, comprimido em seu coração, está
segura a pequena Ilha com a forma de uma crisálida. O Prado em
seu vestido verde está adormecido, sua cabeça no espaço de seu
ombro e pescoço.

EM DIREÇÃO À CRUZ
Em uma ponta do Infinito, na forma de um retângulo, está a cruz
branca onde os demônios têm executado junto com o impenitente
Ladrão. Existe uma barreira em volta do retângulo, branca, com
estrelas de cinco pontas suportando as barras. Abaixo da diagonal
do retângulo vem o anjo, rezando calmo e branco como a espuma
das ondas. E o peixe com um chifre, um truque de macaco do
divino Ichthys, ondulado para trás em direção à cruz dirigida pelo
Dragão, que é verde exceto pelo rosa de sua língua bifurcada. Uma
criatura coberta de sangue com pelos no fim, e olhos lenticulares,
está envolta em torno da árvore. Um Pierrot verde se apressa,
acenando de lado a lado e virando cambalhotas. E todos os
demônios, na forma de mandris ou palhaços, espalham suas aletas
caudais por afora, como pernas de acrobatas, e, implorando ao anjo
inexorável (Naum vai brincá coumigo, sinhô Leal?), labutar em
direção da Paixão, sacudindo suas perucas de palha de palhaço
encrustadas com sal marinho.

DEUS PROIBE ADÃO E EVA DE TOCAR A ÁRVORE DO


BEM E DO MAL. O ANJO LÚCIFER FOGE
Deus é jovem e gentil, com uma auréola rosada. Seu manto é
azul e seus gestos, vastos. A base da árvore está retorcida e suas
folhas, oblíquas. As outras árvores não estão fazendo nada, a não
ser serem árvores. Adão está em adoração e olha para ver se Eva
também está em adoração. Eles estão de joelhos. O Anjo Lúcifer,
velho e aparentando tempo (e, como o velho homem do mar,
lapidado por Sinbad), mergulha com seus chifres dourados em
direção ao éter lateral.

AMOR
A alma está lisonjeada por Amor, o qual aparenta exatamente
como um véu iridescente e assume a face mascarada de uma
crisálida. Caminha sobre crânios invertidos. Atrás da parede onde se
esconde, garras brandem armas. É batizada com veneno. Monstros
antigos, a substância da parede, riem dentro de suas barbas verdes.
O coração permanece vermelho e azul, violeta na ausência artificial
do véu iridescente que sua tecelagem.

O PALHAÇO
Sua corcunda redonda esconde a redondeza do mundo, assim
como sua bochecha vermelha rasga os leões no tapete. Clubes e
diamantes são bordados na seda carmesim de seus trajes, e em
direção ao Sol e à grama ele faz uma aspersão bendita com seu
aspersório tilintando.
“PAI! PAI!” CHORA DEUS AOS RESIGNADOS
A montanha é vermelha, o Sol e o céu são vermelhos. Um dedo
aponta para o seu topo. As rochas surgem acima, o pico absoluto a
perder de vista. Os corpos daqueles que não alcançaram voltam
tombando abaixo novamente com a cabeça. Um cai para trás sobre
suas mãos, derrubando seu violão. Outro aguarda com suas costas
viradas para a montanha, perto de suas garrafas. Um deita na
estrada, seus olhos ainda escalando. O olho ainda aponta, e o Sol
aguarda por obediência antes de se pôr.

MEDO CRIA SILÊNCIO

Nada é amedrontador, a não ser uma forca de viúvas, uma ponte


com pilares secos e uma sombra que está contente em ser negra.
Medo, virando para longe sua cabeça, mantém suas pálpebras
abaixadas e os lábios da máscara de pedra fechados.

NAS REGIÕES BAIXAS


O fogo das regiões baixas é de sangue líquido, e pode-se ver
abaixo às profundezas. As cabeças de sofrimento se afundaram, e
um braço está levantado para os corpos como uma árvore do leito
do mar, esticados para onde o fogo está diminuto. Ali, uma serpente
atira seu veneno. Todo esse sangue arde e é mantido dentro da
rocha onde pessoas são arremessadas. E existe um anjo vermelho
para quem um simples gesto basta, que significa: do topo para
baixo.

DE BELÉM AO JARDIM DAS AZEITONAS


É uma pequena estrela vermelha, acima do berço da Mãe e
Criança, e acima da cruz do asno. O céu é azul. A pequena estrela se
transforma em uma auréola. Deus levantou o peso da cruz do
animal e carrega no ombro de seu novíssimo homem. A cruz negra
se torna rosa, o céu azul se torna violeta. A estrada é tão reta e
branca quanto o braço de um crucificado.

Ai de mim! A cruz se torna vermelho-brilhante. É uma lâmina


mergulhada em sangue do ferimento. Acima do corpo, no fim do
braço da estrada, estão olhos e uma barba que também sangram, e
acima de sua imagem o espelho de madeira. Cristo explicita: I-N-R-
I.

APENAS UMA BRUXA


Sua corcunda ao traseiro, barriga ao anterior, pescoço torcido,
cabelo sibilante ao voo da vassoura com a qual ela se transfigurou,
ela vai sob as garras, vegetação do céu vermelho-brilhante, e o
índice da estrada para o Demônio.

EMERGINDO DE SUA BÊNÇÃO, DEUS CRIA OS MUNDOS


Deus surge aureolado por seu pentagrama azul, abençoa e
semeia e faz o céu azul. O fogo arde vermelho da ideia de ascensão,
e o ouro das estrelas espelha a auréola. Os sóis são grandes trevos
de quatro folhas, florescendo, como a cruz. E a única coisa não
criada é o robe branco do próprio Molde.

OS MÉDICOS E OS AMANTES
Na cama, calmos como o mar verde, pairam braços esticados
boiando, ou até estes não são os braços, mas as duas divisões da
cabeça de cabelo, vegetando sobre o homem morto. E o centro
dessa cabeça de cabelo se curva como uma cúpula e ondula como o
movimento de uma sanguessuga. Faces, cogumelos inchados com
podridão, brotam uniformemente e vermelhos nas vidraças da
agonia. O primeiro médico, uma esfera maior atrás da cúpula,
trapezoidal em característica, aperta seus olhos e cobre suas
bochechas com um pano de lã. O segundo regozija no equilíbrio
externo de seus óculos, esferas gêmeas, e pesa seu diagnóstico na
libração de álteres. O terceiro velho homem se cobre com um véu
com a asa branca de seu cabelo e proclama desesperadamente que a
beleza retorne ao crânio ao polir o seu próprio. O quarto, sem
entender, observa... o amante que, contra a corrente de lágrimas,
navega em busca da alma, suas sobrancelhas juntas para cima por
suas pontas internas na forma de guindastes voando, ou a comunhão
das duas palmas de alguém rezando, ou nadando, na atitude de
devoção diária chamada pelos Brâmanes de KHURMOOKUM.
LIVRO SETE

KHURMOOKUM

(O Sundhya, ou as Orações Diárias dos Brâmanes)


35

A RESPEITO DO GRANDE NAVIO MOUR-DE-ZENCLE

O esquife, que teria queimado em chamas como a resina pueril


na cidade calmamente consumida pelo fogo e pela morte, embocou
a cabeça de sua proa sob a puxada do leme de Faustroll, e seu gesto
foi o oposto do báculo de caridade de Mentiroso.

A base em malha, inundável por conta de seu verniz, descansou


sobre os dentículos das ondas como um cirurgião sobre diversos
arpões; abaixo dele estava um teclado de água e ar alternadamente.
O desaparecimento precedendo a aparição dos corpos do
assassinato do sétimo dia espremeu sobre nós do outro lado das
barras reticulares que nos protegiam.

O sapo da Ilha das Sombras estalou o Sol para a sua ceia, e a


água era noite. Isto é, as ribanceiras desapareceram e o céu e o rio
tornaram-se comparáveis e diferenciáveis, e o esquife tornou-se a
pupila de um grande olho, ou um balão estacionário, com uma
tontura para a esquerda e para a direita, cujas penas eu recebi as
ordens para abater com meus dois remos.

Barris imóveis provindo da corrente à velocidade expressa


rolaram em bolas.

Para escapar destas coisas, como se procura abrigo sob as


cobertas na escuridão de uma vez por todas, Faustroll manobrou o
esquife para dentro de um aqueduto com seiscentos metros de
largura, ao lonfo do qual as barcaças do canal foram vomitadas ao
rio.

(Aqui acaba a narrativa de Panmuphle.)


O grande navio Mour-de-Zencle, que significa Cavalo-focinho-
transportando-ceifadeira-formato-manchas, pairava no horizonte
iminente como um sol negro, tendo a aparência sob o arco brilhante
no fim do túnel de um olho sem seu pisca-pisca de couro,
aproximando-se à firmeza das próprias pupilas pintadas, verdes em
uma íris amarela. Na viela invisível como um ressalto na beira de
uma abóbada, cavalgando com as ferraduras da frente do arquivo de
quatro animais suportando o sinal da morte, pisando estranhamente
com seus cascos.

Com seu dedo indicador vestido em topázio, umedecido em sua


boca, Faustroll raspou a parafina do fundo do barco. O poço
artesiano (o inferno estava em Artois aquele dia) girava e assoviava
ao redor de seus pés, com um barulho oposto ao da deglutição de
uma banheira esvaziando. A peneira balançava em sua última
pulsação. A penúltima e a última malha, onde a água teceu suas
cracas e deixou seu hímen duplo ser violado por línguas
antiperistálticas, foram nomeadas as bocas de Panmuphle e
Faustroll. A persiana de cobre brilhante com sua armação de bolhas
de ar, e as garras exalando a respiração de seus ossos, imitando
moedas caindo na água ou o ninho de uma aranha-de-água.
Faustroll, conseguindo telas frescas em nome de Deus, mergulhou
na água de lustração da máquina de pintar um céu diferente ao de
Tydall, então uniu suas palmas em um ato de rezar ou nadar, na
maneira de uma devoção diária denominada Khurmookum pelos
brâmanes. O grande navio Mour-de-Zencle passou como um ferro
negro sobre uma tábua de passar; e o eco de dezesseis dedos
excitados dos cavalos pretéritos sussurraram KHURMOOKUM
abaixo da saída da abóbada, desaparecendo com a alma.

Então o doutor Faustroll fez o gesto de morrer, à idade de


sessenta e três.
36

A RESPEITO DA LINHA

O bispo lê a carta de Deus

Para FÉLIX FÉNÉON

No manuscrito, no qual Panmuphle, interrompido pelo


monótono prolixíssimo babuíno, poderia apenas decifrar o
prolegômeno, Faustroll tinha notado um pequeno fragmento da
Beleza que ele sabia, e um pequeno fragmento da Verdade que ele
sabia, durante o syzygy de palavras: poderiam ser reconstruídas, por
essa faceta, toda a arte e toda a ciência, o que é por dizer Tudo. No
entanto, pode-se dizer que Tudo é um cristal regular, ou antes mais
provavelmente um monstro (Faustroll definiu o universo como
aquilo que é a exceção de si mesmo)?

Assim cogitando o bispo marinho enquanto nadou pelo


naufrágio do barco mecânico, por intermédio dos trabalhos
quintessenciais afundados, sobre a carcaça de Panmuphle e o corpo
de Faustroll.

Entretanto, ele lembrou que, segundo a proposição aprendida do


Professor Cayley, uma curva simples desenhada em giz em um
quadro negro com diâmetro de dois metros e meio pode detalhar
todas as atmosferas de uma estação, todos os casos de uma
epidemia, todas as pechinchas dos camiseiros de cada cidade, as
frases e os timbres de todos os sons de todos os instrumentos e de
todas as vozes de centenas de cantores e duzentos músicos, juntos
com as fases, de acordo com a posição de cada ouvinte ou
participante, as quais o ouvido é incapaz de apreender.
E contemple, o papel de parede do corpo de Faustroll foi
desenrolado pela saliva e pelos dentes da água.

Como uma partitura musical, toda a arte e toda a ciência


estavam escritas nas curvas dos membros do ultrassexagenário
efebo, e sua progressão a um grau infinito aí profetizou. Pois, assim
como o Professor Cayley gravou o passado nas duas dimensões de
uma superfície negra, também o progresso do futuro sólido
entrelaçou o corpo em espirais. O Necrotério abrigou por dois dias
em sua laje o livro revelado por Deus a respeito da gloriosa verdade
espelhada pelas três (quatro ou n para algumas pessoas) direções do
espaço.

Enquanto isso, Faustroll, descobrindo sua alma abstrata e nua,


doou o reino da dimensão desconhecida.
LIVRO OITO

ÉTERNIDADE

Para LOUIS DUMUR

Leves gustus ad philosophiam movere fortasse ad atheismum,


sed plemiores haustos ad religionem reducere.

– Francis Bacon
37

A RESPEITO DA HASTE DO BASTÃO DE MEDIÇÃO, DO


RELÓGIO E DO DIAPASÃO

Carta telepática do Doutor Faustroll para o Senhor Kelvin.

Meu caro colega,

Já faz um longo tempo desde que não mando


notícias de mim; mas eu não creio que você teria
imaginado que eu estava morto. Morte é apenas
para pessoas comuns. É um fato, não obstante,
que eu não estou mais na Terra. Onde eu estou
descobri apenas alguns momentos atrás. Já que
nós dois somos da opinião de que, já que se
pode medir aquilo que se está falando e
expressá-lo em números, que constituem a única
realidade, pode-se ter algum conhecimento do
assunto. Agora, até o presente momento, eu
sabia que estava em algum lugar que não a
Terra, da mesma forma como sei que quartzo
está situado em outro lugar, no reino da dureza,
e menos honoravelmente que o rubi; o rubi em
outro lugar que o diamante; o diamante do que
as calosidades posteriores de Bosse-de-Nage; e
suas trinta e duas dobras cutâneas – mais
numerosas que seus dentes, se incluir o dente da
sabedoria – do que a prosa do Obscuro Latente.

Mas eu estava em outro lugar em termos de


data ou de posição, antes ou para o lado, após ou
mais próximo? Eu estava naquele local onde se
pode encontrar após ter deixado o tempo e o
espaço: o eterno infinito, Sr.

Era natural que, tendo perdido meus livros,


meu esquife de tecido metálico, a sociedade de
Bosse-de-Nage e o Monsenhor René-Isidore
Panmuphle, Meirinho, meus sentidos, a Terra, e
aqueles dois antigos aspectos Kantianos de
pensamento, eu deveria sofrer a mesma angústia
de isolamento que uma molécula residual
distante vários centímetros das demais em um
bom vácuo moderno dos Srs. Tait e Dewar. E,
mesmo então, talvez a molécula saiba que está
vários centímetros distante! Pois um único
centímetro, o único sinal de espaço para mim,
podendo ser medido e um meio de medir, e pelo
meio segundo solar, nos termos dos quais o
coração de meu corpo terrestre bate – por estes
sinais eu poderia ter dado minha alma, Sr., a
despeito da utilidade dessa mercadoria para mim
em lhe informar destas curiosidades.

O corpo é o veículo mais necessário, pois ele


suporta as roupas e, através das roupas, os
bolsos. Eu tinha deixado em um de meus bolsos
por engano meu centímetro, uma cópia autêntica
em metal da medida tradicional, mais portável
do que a Terra ou até mesmo o quadrante
terrestre, o qual permite as almas vagantes e
póstumas dos sábios interplanetários não se
preocupar mais com este globo, nem mesmo
com C.G.S., ao que se refere à preocupação com
medidas de tamanho, graças a MM. Méchain e
Delambre.
Quanto ao meu meio segundo solar, em que
estive permanecido na Terra, eu ainda não podia
ter certeza de retê-lo seguramente e de ser capaz
de medir o tempo validamente por esse meio.

Se no curso de alguns milhões de anos eu


não terminei meus estudos patafísicos, é certo
que o período da rotação da Terra em torno de
seu eixo e da sua revolução ao redor do Sol
serão os dois bem diferentes do que são agora.
Um bom relógio, que eu teria correndo por todo
esse tempo, teria me custado um preço
exorbitante, e, de qualquer maneira, eu não
conduzo experimentos seculares, tendo nada
menos que desprezo por continuidade, e
considero mais estético manter o próprio Tempo
no meu bolso, ou a unidade do tempo, que é
instantâneo.

Por essas razões, eu possuí um vibrador mais


bem arranjado para permanência e para exatidão
absoluta do que a espiral de um cronômetro,
com o qual o período de vibração teria retido o
mesmo valor por meio de certo número de
milhões de anos com um erro de menos de 1 :
1.000. Um diapasão. Seu período tendo sido
determinado cuidadosamente, antes de eu ter
embarcado no esquife, de acordo com suas
instruções, pelo nosso colega, o Professor
Macleod, em termos de meios segundos solares,
com os dentes do diapasão sendo apontados
sucessivamente para cima, para baixo e em
direção ao horizonte, na tentativa de eliminar o
menor efeito da gravidade terrestre.
Eu já nem tenho mesmo meu diapasão.
Imagine a perplexidade de um homem fora do
tempo e do espaço, que perdeu seu relógio, e sua
vareta de medição, e seu diapasão. Eu acredito,
Sr., que é este estado que de fato constitui a
morte.

Mas eu repentinamente lembrei-me dos seus


ensinamentos e de meus experimentos prévios.
Já que eu estava simplesmente em LUGAR
NENHUM, ou em ALGUM LUGAR, o que
significa a mesma coisa, encontrei uma
substância com a qual poderia fazer um pedaço
de vidro, tendo encontrado vários demônios,
incluindo o Demônio Classificador de Maxwell,
que teve sucesso em agrupar tipos particulares
de movimento em um líquido contínuo muito
difundido (o que você chama de pequenos
sólidos elásticos ou moléculas): uma substância
tão abundante quanto alguém poderia desejar, na
forma de silicato de alumínio. Eu gravei as
linhas e acendi as duas velas, embora com um
pouco de tempo e perseverança, tendo que
trabalhar sem mesmo a ajuda de implementos de
sílex. Eu vi as duas colunas de espectros, e o
espectro amarelo retornou meu centímetro para
mim pela virtude de sua figura 5.892 x 10-5.

Agora que nós estamos felizes e


confortáveis, e em terra firme como é meu
hábito atávico, desde que eu carregue comigo a
milionésima parte de um quarto da
circunferência da Terra, o que é mais honorável
que ser preso a superfície do globo por atração,
me permita, eu rezo, notar algumas impressões
para você.

A eternidade aparece para mim na imagem


de um éter imóvel, o qual consequentemente não
é luminífero. Eu descreveria éter luminífero
como circular móvel e perecível. Eu deduzo de
Aristóteles (Tratado sobre os Paraísos) que é
apropriado escrever ÉTERNIDADE.

Éter luminífero em conjunto com todas as


partículas da matéria, as quais posso facilmente
distinguir – meu corpo astral tendo bons olhos
patafísicos –, possui a forma, à primeira vista,
de um sistema de ligações rígidas combinadas, e
tendo volantes que giram rapidamente
pivoteados em algumas das ligações. Dessa
forma ele preenche exatamente o ideal
matemático trabalhado por Navier, Poisson e
Cauchy. Além disso, ele constitui um sólido
elástico capaz de determinar a rotação
magnética do plano de polarização do voo
descoberto por Faraday. Em meu tempo livre
póstumo, eu devo arranjar de tal forma a ter
momento zero de momentum como um todo e
reduzi-lo ao estado de uma mera balança de
mola.

Além disso, sou da opinião de que pode-se


reduzir consideravelmente a complexidade de
uma balança de mola ou do éter luminífero
substituindo pelas ligações de sistemas
girostáticos da circulação de líquidos de volume
infinito através de perfurações em sólidos
infinitamente pequenos.
Não perderá nenhuma de suas qualidades
como o resultado dessas modificações. Éter tem
sempre me aparentado, ao toque, ser tão elástico
quanto gelatina e submisso à pressão como cera
de sapateiro escocesa.
38

A RESPEITO DO SOL COMO UM SÓLIDO FRIO

Segunda carta para Senhor Kelvin.

O Sol é um globo frio, sólido e homogêneo.


Sua superfície é dividida em quadrados de um
metro, os quais são as bases de pirâmides longas
e invertidas, cortadas a fio, com 696.999
quilômetros de comprimento, suas pontas
estando a um quilômetro do centro. Cada uma é
montada em um parafuso e seu movimento em
direção ao centro causaria, se eu tivesse o
tempo, a rotação de uma remada no topo de cada
parafuso de eixo, em alguns metros de fluido
viscoso, com o qual toda a superfície é
finamente coberta...

Eu estava bem desinteressado deste


espetáculo mecânico, sem ter achado novamente
meu meio segundo solar e estando distraído com
a perda de meu diapasão. No entanto, peguei um
pedaço de aço e formei uma roda com a qual eu
cortei dois mil dentes, copiando tudo o que
Monsenhor Fizeau, Lorde Rayleigh e a
Senhorita Sidgwick tinham alcançado em
circunstâncias similares.

Repentinamente, o segundo foi redescoberto


na medida absoluta de 9.413 quilômetros por
meio segundo solar da unidade Siemens, e as
pirâmides, forçadas a descer em seus tópicos já
que elas fundaram a elas mesmas, como eu, no
movimento do tempo, obrigadas a entrar em
equilíbrio para permanecer estável, ao emprestar
uma quantidade suficiente do movimento
repulsivo do Senhor Humphry David. E a
matéria fixa, os eixos de parafuso e as porcas de
parafuso desapareceram. O Sol tornou-se
viscoso e começou a virar sobre seu eixo em
ciclos de vinte e cinco dias; em alguns anos,
você verá manchas solares nele, e alguns quartos
de século irão determinar seus períodos. Em
breve, em sua grande idade, ele irá encolher em
uma diminuição de três quartos.

E agora eu estou sendo iniciado na ciência de


todas as coisas (você irá receber três novos
fragmentos de dois de meus futuros livros),
tendo reconquistado toda a percepção, que
consiste em duração e tamanho. Eu entendo que
o peso de minha roda de aço, a qual eu fecho
entre a letargia dos dedos abstratos de meu
corpo astral, é o quarto poder de oito metros por
hora. Eu tenho esperança, privado de meus
sentidos, em reconhecer cor, temperatura, gosto
e varais qualidades outras que o seis, no atual
número de revoluções por segundo...

Adeus. Eu já posso vislumbrar, perpendicular


ao Sol, a cruz com um centro azul, as escovas
vermelhas em direção nadir e zênite, e o ouro
horizontal de rabos de raposas.
39

DE ACORDO COM IBÍCRATES, O GEÔMETRA

(Pequenos esboços sobre Patafísica após tradução de Ibícrates,


o Geômetra, e de seu professor divino Sophrotatos, o Armênio, e
trazidos à luz pelo Doutor Faustroll.)

I. Fragmento do Diálogo sobre o Erótico

MATHETES
Diga-me, ó Ibícrates, aquele a quem nomeamos Geômetra, pois
tu sabes todas as coisas pelos meios de linhas desenhadas em
diferentes direções, e tens dado a nós o veríssimo retrato de três
pessoas de Deus em três escudos, os quais são a quarta essência dos
símbolos do Tarot, o segundo sendo barrado com ilegitimidade e o
quarto revelando a distinção e mal gravado na madeira da árvore do
conhecimento. Eu tenho a esperança mais ardente, se te apetecer, de
conhecer os teus pensamentos acerca do amor, tu que tens decifrado
o imperecível, pois fragmentos desconhecidos, inscritos em
vermelho em papiro sulfúrico, da Patafísica de Sophrotatos, o
Armênio. Responda, suplico-te, pois eu devo questionar-te, e tu hás
de instruir-me.

IBÍCRATES
Isto ao menos é exatamente verdade, ó Mathetes. Então fale,
portanto.
MATHETES
Antes de qualquer coisa, tendo notado como todos os filósofos
têm encarnado o amo em seres e o têm expressado em diferentes
símbolos de contingência, instrua-me, ó Ibícrates, na significância
eterna destes.

IBÍCRATES
Os poetas gregos, ó Mathetes, consolaram a cabeça de Eros com
um bandelet horizontal, o qual é a curvatura, ou listra do brasão, e o
sinal Menos daqueles que estudam matemáticas. Eros, sendo o filho
de Afrodite, seus braços hereditários eram ostentativos de mulher.
Contraditoriamente, o Egito ergueu suas estelas e obeliscos
perpendicularmente ao horizonte crucífero, dessa forma criando o
sinal Mais, o qual é masculino. A justaposição dos dois sinais do
binário e ternário dá forma à letra H, a qual é Chronos, pai do
Tempo ou da Vida; portanto, abraça a humanidade. Para o
Geômetra, esses dois sinais cancelam um ao outro ou impregnam
um ao outro, e aí resulta simplesmente a sua progenitura, que se
torna ovo ou zero, ainda mais idênticos, pois eles são contrários. E
na questão da disputa entre o sinal Mais e o sinal Menos, o Padre
Reverendo Ubu, da Sociedade de Jesus, ex-rei da Polônia, escreveu
um grande tomo intitulado Caesar-Anticristo, no qual pode ser
encontrada a única demonstração prática da identidade de opostos,
por meio do aparato mecânico denominado bastão-físico.

MATHETES
Isso é possível, ó Ibícrates?

IBÍCRATES
Absolutamente, de fato, verdadeiro. E o terceiro sinal abstrato
dos tarots, de acordo com Sophrotatos, o Armênio, é o que
chamamos A Clava, que é o Fantasma Sagrado em suas quatro
direções, as duas asas, o rabo e a cabeça do pássaro; ou, em reverso,
Lúcifer ereto e de chifres com sua barriga e suas duas asas, como a
lula medicinal. Mais particularmente, ao menos, quando um elimina
do último objeto todas as linhas negativas – ou seja, horizontais; ou,
em terceiro lugar, ele representa o Tau ou a cruz, emblema da
religião da caridade e do amor; ou, finalmente, o falo de que é tátil
triplo, na verdade, ó Mathetes.

MATHETES
Então até certo ponto, em nossos templos hoje, o amor pode
ainda ser considerado Deus, embora, eu concorde, em formas um
tanto abstrusas, ó Ibícrates?

IBÍCRATES
O tetrágono de Sophrotatos, contemplando a si mesmo, inscreve
dentro de si mesmo outro tetrágono à metade de sua grandiosidade,
e mal é o reflexo simétrico e necessário do bem, em consequência,
a um certo grau, de fato, eu acredito ou indiferente no mínimo, ó
Mathetes. O tetrágono, sendo hermafrodita, engendra Deus por
intuição interior, enquanto Mal, do mesmo modo hermafrodita,
engendra parturição...
40

PATAFÍSICA E CATAQUIMIA

II. Fragmento Adicional

Deus transcendente é trigonal e a alma transcendente teogonal,


consequentemente também trigonal.

Deus imanente é triedral e a alma imanente, igualmente triedral.

Existem três almas (cf. Platão).

O homem é tetraédrico, pois suas almas não são independentes.

Portanto, ele é um sólido, e Deus é espírito.

Se almas são independentes, homem é Deus (CIÊNCIA


MORAL).

Diálogo entre os três terços do número três.

HOMEM: As três pessoas são as três almas de Deus.

DEUS: Tres animae sunt três personae hominis.

JUNTOS: Homo est Deus.


41

A RESPEITO DA SUPERFÍCIE DE DEUS

Deus é, por definição, sem dimensão; é permissível, entretanto,


pela claridade de nossa exposição, e mesmo Ele não possuindo
dimensões, dotá-Lo com qualquer número maior do que zero, se
essas dimensões desaparecerem nos dois lados de nossas
identidades. Nós devemos nos contentar com duas dimensões, para
que esses sinais planos geográficos possam facilmente ser escritos
em uma folha de papel.

Simbolicamente, Deus é significado por um triângulo, mas as


três Pessoas não deveriam ser observadas como seus anjos ou seus
lados. Eles são os três ápices de outro triângulo equilátero
circunscrito em volta do tradicional. Essa hipótese está conforme as
revelações de Anna Katharina Emmerick, que viu a cruz (a qual nós
podemos considerar ser o símbolo do Verbo de Deus) na forma de
um Y, um fato o qual ela explica apenas pela razão física de que
nenhum braço de comprimento humano poderia ser estendido o
bastante para alcançar os pregos dos ramos de um Tau.

Portanto, POSTULADO:

Até que estejamos mobiliados com informação mais ampla e por


maior facilidade em nossas estimativas provisórias, vamos supor
que Deus tenha a forma e a aparência simbólica de três linhas retas
iguais de comprimento A, emanando do mesmo ponto e tendo entre
eles ângulos de 120 graus. Do espaço incluso entre as linhas, ou do
triângulo obtido ao juntar os três pontos mais distantes dessas linhas
retas, nós propomos calcular a superfície.
Deixe X ser a extensão mediana de uma das Pessoas A, 2y o
lado do triângulo ao qual ele é perpendicular, N e P as extensões da
linha reta (A + X) nas duas direções ad infinitum.

Dessa forma temos:

X= ∞ – N – A – P.

Mas

N=∞–0

P=0

Por conseguinte:

X = ∞ – (∞ – 0) – A – 0 = ∞ – ∞ + 0 – A – 0

X=-A

Em outro respeito, o triângulo cujos lados são A, X, e Y nos dá

A² = x² + y²

Ao substituir por X seu valor de (-a) pode-se chegar a

A² = (-a)² + y² = a²+y²

Daí

Y² = a² - a² = 0

Y √0

Portanto, a superfície do triângulo equilátero, tendo por


bissetrizes de seus ângulos as três linhas retas A, será
S = y(x+a) = √0 (-a +a)

S = 0 √0

COROLÁRIO: À primeira consideração do radical √0, nós


podemos afirmar que a superfície calculada é uma linha no
máximo; em segundo lugar, se nós construirmos a figura de acordo
com os valores obtidos para X e Y, podemos determinar:

 que a linha reta 2y, a qual nós sabemos ser 2√0, tem sua
ponta de intersecção em uma das linhas retas A na
direção oposta a qual seria a nossa primeira hipótese, já
que X = -a; também, que a base de nosso triângulo
coincide com seu ápice;

 que as duas linhas retas A fazem, juntas com a primeira,


ângulos pelo menos menores que 60 graus, e ainda mais
podem apenas atingir 2√0 ao coincidir com a primeira
linha reta A.

O que está em conforme com o dogma da equivalência das três


Pessoas, entre elas e em sua totalidade.

Nós podemos dizer que A é uma linha reta conectando 0 e


infinito, e pode definir Deus dessa forma: Deus é a menor distância
entre zero e o infinito.

“Em qual direção?”, alguém pode perguntar.

Nós podemos responder que Seu primeiro nome não é Jack, mas
Mais-e-Menos. E alguém deveria dizer: “+- Deus é a distância mais
curta entre 0 e infinito, em qualquer direção. O que está conforme a
crença nos dois princípios; mas não é mais correto atribuir o sinal +
para a fé do sujeito”.
Deus, porém, sendo sem dimensão, não é uma linha.

Deixe-nos notar, de fato, que, de acordo com a fórmula

∞ – 0 –A+A+ 0 = ∞

o comprimento A é nulo, de forma que A não é uma linha, mas um


ponto.

Portanto, definitivamente: DEUS É O PONTO TANGÊNCIAL


ENTRE ZERO E O INFINITO. Patafísica é a ciência...

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