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Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Vol. 17

Organizadores

Prof. Dr. Orides Mezzaroba


Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr

Coordenadores

Prof. Dr. Nestor Eduardo Araruna Santiago


Prof. Dr. Nivaldo dos Santos
Prof. Dr. Fábio André Guaragni

DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA

2014
2014 Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

D597
Direito penal e criminologia
Nossos Contatos Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
São Paulo Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
Rua José Bonifácio, n. 209, / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Nestor Eduardo Araruna Santiago
cj. 603, Centro, São Paulo – SP / Nivaldo dos Santos / Fábio André Guaragni.
CEP: 01.003-001 Título independente - Curitiba - PR . : vol.17 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
516p. :
Acesse: www. editoraclassica.com.br
ISBN 978-85-8433-005-8
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EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira Luiz Eduardo Gunther
Alexandre Walmott Borges Luisa Moura
Daniel Ferreira Mara Darcanchy
Elizabeth Accioly Massako Shirai
Everton Gonçalves Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Fernando Knoerr Nilson Araújo de Souza
Francisco Cardozo de Oliveira Norma Padilha
Francisval Mendes Paulo Ricardo Opuszka
Ilton Garcia da Costa Roberto Genofre
Ivan Motta Salim Reis
Ivo Dantas Valesca Raizer Borges Moschen
Jonathan Barros Vita Vanessa Caporlingua
José Edmilson Lima Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Juliana Cristina Busnardo de Araujo Vladmir Silveira
Lafayete Pozzoli Wagner Ginotti
Leonardo Rabelo Wagner Menezes
Lívia Gaigher Bósio Campello Willians Franklin Lira dos Santos
Lucimeiry Galvão

Equipe Editorial

Editora Responsável: Verônica Gottgtroy


Capa: Editora Clássica
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 14

PRINCÍPIOS DA APLICABILIDADE DA LEI PENAL NO TEMPO: LEIS TEMPORÁRIAS E EXCEPCIONAIS


(Paulo César Corrêa Borges e Olívia Felippe Fogaça) ................................................................................... 17

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 18

LEI PENAL NO TEMPO ............................................................................................................................... 18

LEGISLAÇÃO .............................................................................................................................................. 23

LEIS TEMPORÁRIAS E EXCEPCIONAIS À LUZ DO DIREITO PENAL MÍNIMO ........................................... 25

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 31

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 32

TUTELA PENAL DE BENS JURÍDICOS SUPRA-INDIVIDUAIS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO: A


QUESTÃO DAS INDICAÇÕES CONVENCIONAIS CRIMINALIZADORAS E O PRINCÍPIO DA RESERVA
LEGAL (José Carlos Portella Junior e Fábio André Guaragni) ....................................................................... 33

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 34

A GLOBALIZAÇÃO E A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL DE BENS JURÍDICOS SUPRAINDIVIDUAIS: A


FORMAÇÃO DE UM DIREITO PENAL DE ÂMBITO GLOBAL ..................................................................... 35

A APLICAÇÃO INTERNA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS EM MATÉRIA PENAL E O PRINCÍPIO DA


RESERVA LEGAL: OS CAMINHOS LEGISLATIVOS E A ÊNFASE AO USO DE ELEMENTOS NORMATIVOS
INTEGRADORES DE NORMAS DEFINITÓRIAS NOS TIPOS ....................................................................... 39

O LEGISLADOR PENAL BRASILEIRO COMO CAMINHANTE ..................................................................... 45

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 47

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 48

A TRANSFIGURAÇÃO DA CONCEPÇÃO DE SOBERANIA COMO REFLEXO DA SOCIEDADE GLOBAL


DE RISCOS –O QUE O DEVIR DO SÉCULO XXI RESERVA PARA O DIREITO PENAL? (Adriana Maria
Gomes de Souza Spengler) ......................................................................................................................... 51

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 52

O PODER SOBERANO A PARTIR DA CONCEPÇÃO DE SOBERANIA EM JEAN BODIN ............................... 52

A SOCIEDADE GLOBAL DE RISCOS COMO NOVO PARADIGMA .............................................................. 55

FATORES DECORRENTES DA SOCIEDADE DO RISCO QUE CONTRIBUEM PARA A TRANSFIGURAÇÃO


DA CONCEPÇÃO DE SOBERANIA .............................................................................................................. 58

O DIREITO PENAL DO RISCO PARA O DEVIR DO SÉCULO XXI .................................................................. 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 65


REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 66

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEGITIMIDADE DA PENA CRIMINAL A PARTIR DO CONCEITO DE


ESTADO DE DIREITO (João Alfredo Gaertner Junior) ................................................................................ 71

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 72

UMA CONCEPÇÃO DE ESTADO DE DIREITO ............................................................................................. 73

UMA BREVE ANÁLISE DAS PRINCIPAIS TEORIAS DA PENA ..................................................................... 79

A LEGITIMIDADE DA PENA A PARTIR DO CONCEITO DE ESTADO DE DIREITO ....................................... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 96

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 98

A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL: CONSEQUÊNCIAS E


PARADOXOS (Luis Gustavo Blaskesi de Almeida) ....................................................................................... 99

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 100

DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO PROVEDOR ......................................................................................... 101

O PARADIGMA DA POLÍTICA ECONÔMICA ESTATAL INTERVENTIVA E A UTILIZAÇÃO DO DIREITO


PENAL COMO MEIO E NÃO COMO FIM ................................................................................................... 102

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE COMO PARADIGMA LEGITIMADOR DE TODA E QUALQUER


INTERVENÇÃO NO CAMPO PENAL ........................................................................................................... 105

A LEGITIMAÇÃO DA ESCOLHA DOS BENS JURÍDICOS DIFUSOS QUE MERECEM A TUTELA PENAL:
TRÊS OUTROS PRINCÍPIOS ....................................................................................................................... 108

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 110

ANTECEDENTES E REINCIDÊNCIA CRIMINAIS: NECESSIDADE DE RELEITURA DOS INSTITUTOS


DIANTE DOS NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO PENAL (Antonio José F. de S. Pêcego e Sebastião
Sérgio da Silveira) ...................................................................................................................................... 112

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 113

DEFINIÇÃO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS ............................................................................................ 114

DEFINIÇÃO DE REINCIDÊNCIA CRIMINAL ............................................................................................... 115

MAUS ANTECEDENTES E REINCIDÊNCIA CRIMINAL NUMA VISÃO AXIOLÓGICA ................................. 117

A INEFICIÊNCIA COMO CAUSA DE REITERAÇÃO NA DELINQUÊNCIA .................................................... 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 124

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................................... 125

POLÍTICA CRIMINAL DAS DROGAS: O PROIBICIONISMO E SEU BEM JURÍDICO (Katie Silene Cáceres
Arguello e Vitor Stegemann Dieter) ............................................................................................................ 127

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 128

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS DISCURSOS SOBRE A DROGA .................................................................. 128


DROGAS: OS PLANOS DE AMEAÇA À SOCIEDADE ................................................................................... 132

A POLÍTICA BÉLICA DE CONTROLE SOCIAL .............................................................................................. 136

A SAÚDE PÚBLICA: UM OBJETO SIMBÓLICO DA PROIBIÇÃO ................................................................. 138

POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS E DE DESCRIMINALIZAÇÃO ........................................... 143

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 146

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 147

A NOVA ORDEM SOCIO-ECONÔMICA E A INDÚSTRIA DO CONTROLE PENAL (Washington Pereira


da Silva dos Reis) ......................................................................................................................................... 150

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 151

O ESTADO PREVIDENCIARISTA COMO BASE PARA A CONSOLIDAÇÃO DA NOVA POLÍTICA PENAL ..... 153

AS CONTRADIÇÕES DO CONTROLE PENAL PREVIDENCIÁRIO E A POLÍTICA GOVERNAMENTAL


DISCRIMINATÓRIA E EXCLUDENTE .......................................................................................................... 154

OS LIMITES DO ESTADO NO CONTROLE PENAL ...................................................................................... 157

O DECLÍNIO DO PREVIDENCIARISMO PENAL E A CULTURA DO CONTROLE PENAL REPRESSIVO ........ 158

CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS NOVAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL NA PÓS-MODERNIDADE ......... 165

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 166

LESÕES CORPORAIS DECORRENTES DA CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO: REFLEXÕES SOBRE O


SENTIDO SOCIAL DE ADEQUAÇÃO DA CONDUTA MÉDICO-TERAPÊUTICA (Pedro Paulo da Cunha
Ferreira e Flávia Siqueira Costa Pereira) ...................................................................................................... 168

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 169

O TRANSEXUALISMO COMO TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO E O MÉTODO DA


TRANSGENITALIZAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONDUTA MÉDICO-TERAPÊUTICA ...................... 170

A ADEQUAÇÃO SOCIAL DA CONDUTA MÉDICA: APRECIAÇÃO CRÍTICA ................................................ 180

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 184

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 186

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E RESPONSABILIDADE PENAL EM MATÉRIA AMBIENTAL (Érika Mendes


de Carvalho e Gustavo Noronha de Ávila) ................................................................................................... 189

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 190

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E MEDIDAS DE PREVENÇÃO ....................................................................... 195

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: ORIGEM E RECONHECIMENTO JURÍDICO ................................................ 197

CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO DAS MEDIDAS DE PRECAUÇÃO ................................................................. 200

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E DELIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL NOS DELITOS


AMBIENTAIS .............................................................................................................................................. 204
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 212

REFERÊNCIAS............................................................................................................................................. 214

BENS JURÍDICOS MEDIATOS E IMEDIATOS TUTELADOS NOS TIPOS PENAIS CONTRA A ORDEM
TRIBUTÁRIA (Ariosto Teixeira Neto) .......................................................................................................... 217

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 217

BENS JURÍDICOS MEDIATOS E IMEDIATOS DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA ..................... 221

A ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA E O INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO ............................... 225

TEORIA FISCAL APLICADA NO DIREITO PENAL – ALGUMAS OBSERVAÇÕES RELEVANTES ...................... 228

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 230

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 231

O TRABALHO ESCRAVO E A TUTELA PENAL: ANÁLISE ACERCA DO DELITO DE REDUÇÃO À


CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO (Carolina Augusta Bahls Maranhão e Douglas Bonaldi Maranhão) 234

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 235

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO ESCRAVO ................................................................................... 236

NECESSIDADE DE TUTELA PENAL ............................................................................................................ 242

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 253

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 254

RETROATIVIDADE BENÉFICA OU LEX TERTIA? UM ESTUDO SOBRE O CONFLITO DE LEIS NO DELITO


DE TRÁFICO DE DROGAS (Benedicto de Souza Mello Neto e Renê Chiquetti Rodrigues) ........................... 257

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 258

PRIMEIRA CORRENTE: DA IMPOSSIBILIDADE DE COMBINAÇÃO DE DIPLOMAS LEGAIS ........................ 260

SEGUNDA CORRENTE: DA MÁXIMA EFETIVIDADE À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA


RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA ............................................................................................... 267

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 278

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 279

REDISCUTINDO A DEFINIÇÃO DO DELITO DE TORTURA E SUA RELAÇÃO COM O CRIME DE MAUS-


TRATOS (Vanessa Chiari Gonçalves) ........................................................................................................... 281

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 282

CONCEITUANDO O DELITO DE TORTURA: A TORTURA-PROVA E A TORTURA-PENA ............................... 282

A TORTURA-PENA E O DELITO DE MAUS-TRATOS ................................................................................... 289

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 294

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 295


DO SIMBOLISMO PENAL E DA LEI MARIA DA PENHA: A (IN)EFETIVA PROTEÇÃO DA MULHER
(Andréia Colhado Gallo Grego Santos e Bruno Baltazar dos Santos) ........................................................... 297

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 298

DO GÊNERO FEMININO E SUA PROTEÇÃO .............................................................................................. 299

DO SIMBOLISMO PENAL ........................................................................................................................... 302

DA INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO PROCESSO LEGISLATIVO ........................................................................ 306

DA (IN)EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA ....................................................................................... 308

DAS PERSPECTIVAS DE SOLUÇÃO ............................................................................................................ 314

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 315

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 317

O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E A COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL INTERNACIONAL (Sarah Maria


Veloso Freire Lopes) .................................................................................................................................... 319

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 319

A COOPERAÇÃO JURÍDICAPENAL INTERNACIONAL ............................................................................... 320

EFICIÊNCIA NA COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL INTERNACIONAL ....................................................... 324

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 331

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 331

A “LEI DA GRAVIDADE” E O EXCESSO DE PRAZO: ESTUDO SOBRE A PRISÃO CAUTELAR NO


SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nestor Eduardo Araruna Santiago e Daniela Karine de Araújo Costa) 333

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 334

METODOLOGIA DO TRABALHO ................................................................................................................ 335

RESULTADOS OBTIDOS ............................................................................................................................. 335

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS OBTIDOS ................................................................................................. 337

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 344

REFERENCIAS ............................................................................................................................................ 345

LIMITES E POSSIBILIDADES CONSTITUCIONAIS À CRIAÇÃO DO BANCO DE PERFIS GENÉTICOS


PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL (Carolina Grant) ................................................. 350

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 351

OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO: O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO


INFORMACIONAL, PRIVACIDADE, INTIMIDADE E INTEGRIDADE .......................................................... 366

COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A MÁXIMA DA PROPORCIONALIDADE ALEXYANA: UMA


SOLUÇÃO POSSÍVEL .................................................................................................................................. 370

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 373


DO BERÇO À CELA – A EXTENSÃO DAS PENAS NA PENITENCIÁRIA FEMININA MADRE PELLETIER
(Larissa Urruth Pereira) ............................................................................................................................... 375

BREVE INTRODUÇÃO AO APRISIONAMENTO FEMININO ...................................................................... 376

A GESTAÇÃO, A MATERNIDADE E O CONTEXTO PRISIONAL NA PENITENCIÁRIA FEMININA MADRE


PELLETIER .................................................................................................................................................. 381

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 398

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 401

A REALIDADE CARCERÁRIA (Denise Hammerschmidt e Gilberto Giacoia) ............................................... 404

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 406

TENDÊNCIAS DE CRISE DO SISTEMA PENAL ............................................................................................ 406

PASSADO DA REAÇÃO PENAL ................................................................................................................... 407

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PENA A PARTIR DA APARIÇÃO DA PRISÃO .................................................. 408

ABORDAGEM TEÓRICA DE ERVING GOFFMAN ....................................................................................... 411

CRISE ATUAL DA PRISÃO ........................................................................................................................... 415

ADVERTÊNCIAS CONCLUSIVAS ................................................................................................................ 416

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 419

NOVOS OLHARES DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA – UMA APROXIMAÇÃO ENTRE O MECANISMO


DA VÍTIMA EXPIATÓRIA E O CORDÃO SANITÁRIO DE CONTROLE (Milton Gustavo Vasconcelos
Barbosa e Thayara Castelo Branco) ............................................................................................................. 426

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 427

BREVES APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA MIMÉTICA E O MECANISMO DO “BODE EXPIATÓRIO” .. 427

A LOUCURA COMO SINAL VITIMÁRIO ..................................................................................................... 432

O ARSENAL DE ARMAS E A ESTRUTURA DE GUERRA DOS MANICÔMIOS ............................................. 434

A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO CORDÃO SANITÁRIO DE CONTROLE .............................................. 436

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 443

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 444

CÂMERAS DE VIGILÂNCIA – UM SISTEMA DE CONTROLE SOCIAL SURVEILLANCE CAMERAS - A


SYSTEM OF SOCIAL CONTROL (Rafael Mendes Zainotte Pitzer) ............................................................... 447

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 448

CONTROLE SOCIAL POR MEIO DO DIREITO PENAL ................................................................................. 448

1984 – ANÁLISE E APLICAÇÃO AO ESTUDO ............................................................................................. 452

VIGIAR E PUNIR - UMA ANÁLISE EM FOCO .............................................................................................. 456


CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 459

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 461

MUDANÇAS NO PODER E SABER CRIMINOLÓGICO: DA DISCIPLINA À EXCLUSÃO (Marília De Nardin


Budó) .......................................................................................................................................................... 462

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 463

FAZER VIVER E DEIXAR MORRER: O BIOPODER EM FOUCAULT ............................................................. 465

DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA E A CRIMINOLOGIA DA VIDA COTIDIANA ........................................... 468

RACISMO E CRIMINALIDADE: A CRIMINOLOGIA DO OUTRO ................................................................ 475

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 480

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 481

EXPANSIONISMO PENAL E CRISE DO MODELO LIBERAL: O RENASCIMENTO DO POSITIVISMO


CRIMINOLÓGICO (Gerson Faustino Rosa e Hamilton Belloto Henriques) ................................................. 483

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 484

A RELAÇÃO DE COMPLETUDE ENTRE A POLÍITICA CRIMINAL E A DOGMÁTICA PENAL ............................ 487

PRINCÍPIOS DA POLÍTICA CRIMINAL ....................................................................................................... 490

EXPANSIONISMO PENAL .......................................................................................................................... 493

A MODERNIZAÇÃO DO DIREITO PENAL SEGUNDO LUIS GRACIA MARTÍN ........................................... 494

MOVIMENTO CONTRÁRIO À MODERNIZAÇÃO DO DIREITO PENAL – DIREITO DE INTERVENÇÃO ..... 495

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 498

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 501

A DEFESA SOCIAL, AS ESCOLAS PENAIS E AS RELAÇÕES DE PODER NO SISTEMA PUNITIVO (Bartira


Macedo de Miranda Santos) ....................................................................................................................... 504

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 504

A DEFESA SOCIAL NA ESCOLA CLÁSSICA ................................................................................................. 505

DEFESA SOCIAL NA ESCOLA POSITIVA ..................................................................................................... 508

MICHEL FOUCAULT E A ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO SISTEMA PUNITIVO ............................... 510

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 519

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 521


COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito Penal e Criminologia, do XXII


Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito
(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias
29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,


tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-
nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os


programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de


programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira


Presidente do CONPEDI

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Apresentação

Uma das maiores dificuldades sentidas pelos Coordenadores do Grupo de Trabalho


(GT) de Direito Penal e Criminologia é colocar fim nas discussões sempre acirradas, mas
respeitosas, dos artigos apresentados. Por este motivo, um dos professores condutores dos
trabalhos disse que sob o GT, onde quer que ele se realize, sempre há um “barril de pólvora”.

A analogia, obviamente, não foi feita à toa. As discussões dos temas penais e
criminológicos invadiu e invade de tal forma a vida do cidadão que até mesmo a grande mídia,
no intuito de informar (ou seria deformar?), tem dado grande destaque não só a casos notórios
e bárbaros, mas também a crimes “comuns”. Assim, o debate sobre o Direito Penal e demais
Ciências Criminais ganha importância desmedida não só para os leigos, mas, também, para
aqueles que se dedicam à pesquisa e à academia, seja sob o estudo do fenômeno criminoso em
si, seja sob a repercussão penal e processual penal que elas representam.

E esta discussão encontra eco apropriado nos encontros anuais do CONPEDI, que,
sabedor da importância dos estudos criminológicos, de política criminal, de Direito, Processo
Penal e Execução Penal – conjunto formador de um direito penal total, na sempre citada
expressão lisztiana - tem procurado dar vez e voz aos pesquisadores da área, a seu turno
produtores de trabalhos de peso e excelência, trazendo para os encontros material para
profundas reflexões, que se desenvolvem a posteriori, seja formando parcerias para pesquisa,
seja realizando publicações conjuntas.

No CONPEDI realizado na cidade de Curitiba, na sede do Unicuritiba, durante o


primeiro semestre de 2013, o material de pesquisa selecionado constituiu-se, mais uma vez,
como expressão múltipla dos setores de conhecimento indicados. Mais: os trabalhos revelam,
dentro de suas estruturas, o diálogo do direito penal com a criminologia, do direito substantivo
com o adjetivo, dos temas de parte geral, especial e legislação extravagante. Não se cingem a
áreas delimitadas do conhecimento criminal: antes, revelam que – nestes tempos da
modernidade líquida apontada por Bauman – até mesmo os campos do direito penal total se

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

liquefazem e misturam-se, numa interação setorial impensável ao tempo dos discursos


estanques da modernidade dos grandes enredos. A própria possibilidade de catalogar os textos
por setor ganha contornos de dificuldade. De todo modo, a pretensão de organizar a obra de
modo setorial foi levada avante. Daí derivou a seguinte divisão:

a) Temas de direito penal:


a.1) Parte Geral: textos 1 a 8, abordando, sucessivamente, temas de política
criminal, princípios jurídico-penais, teoria da norma penal e teoria da pena;
a.2) Parte Especial: o texto 9, respectivo a lesões corporais derivados da
cirurgia de mudança de sexo;
a.3) Legislação extravagante: direito penal econômico, englobando os textos 10
a 12, atinentes ao direito penal do trabalho, direito penal ambiental e direito
penal tributário;
a.4) Legislação extravagante: temas esparsos, aglutinando os textos 13 a 15,
sobre tortura, violência doméstica e entorpecentes.

b) Temas de processo e execução penal:


b.1) Processo Penal: textos 16 a 18, versando sobre cooperação jurídico-penal
internacional, prisões cautelares e meios de prova;
b.2) Execução Penal: textos 19 e 20.

c) Criminologia, em que se reúnem os últimos cinco trabalhos – textos 21 a 25 -


todos críticos em relação ao controle social penal.

A edição de livros separados por GTs, iniciado no XXI CONPEDI, realizado em


Niterói em 2012, consolida a produção da área e faz despertar no leitor o desejo de querer
participar das importantes discussões travadas em dia intenso, com igualmente intensa troca de
experiências. Segue, aqui, um novo exemplar. Basta submeter seu artigo, e, sendo aceito, traga
seu fósforo para acender o pavio dos debates!

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Coordenadores do Grupo de Trabalho

Professor Doutor Nestor Eduardo Araruna Santiago – UNIFOR

Professor Doutor Nivaldo dos Santos – UFG

Professor Doutor Fábio André Guaragni – UNICURITIBA

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

PRINCÍPIOS DA APLICABILIDADE DA LEI PENAL NO TEMPO:


LEIS TEMPORÁRIAS E EXCEPCIONAIS.

PRINCIPLE OF APLICABILITY OF CRIMINAL LAWS IN TIME:


TEMPORARY AND EXCEPTIONAL LAWS.

Paulo César Corrêa Borges1


Olívia Felippe Fogaça2,3

RESUMO: A Parte Geral do atual Código Penal brasileiro regula, em seu art. 3º, a aplicação
das leis temporárias e excepcionais, determinando que, para tanto, se abra uma exceção ao
princípio da irretroatividade da lei penal. A partir de uma análise inicial puramente técnica,
indaga-se sobre a recepção desta previsão pela atual Constituição Federal, posterior ao Código
Penal. O presente artigo pretende, a partir de uma orientação voltada a um direito penal
mínimo e garantista, sustentar que as leis temporárias e excepcionais não são uma afronta
somente à Constituição Federal, mas sim uma afronta ao modelo de Estado Social e
Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: lei penal; leis temporárias e excepcionais; princípio da
irretroatividade; direito penal mínimo.

SUMMARY: The General Part of the current Brazilian Penal Code regulates in his art. 3,
temporary and exceptional legislation, determining that, to make this situation technically
appropriate, is makes an exception to the principle of non-retroactivity of criminal law. From
a initial purely technical analysis, arises a questioning as to the reception of this prediction by
Federal Constitution, that is subsequent to the Criminal Code. This article aims, from a
minimum criminal law perspective and a guarantee orientation, expose the temporary and
exceptional laws are not only an affront to the Constitution, but an affront to the model of the
welfare state and democratic state of law.

1
Professor Assistente-doutor de Direito Penal e Criminologia do Departamento de Direito Público da UNESP; é
Coordenador do PPGDIREITO - Programa de Pós-graduação em Direito da UNESP; é presidente do Conselho
Editorial da Revista de Estudos Jurídicos UNESP (2010/2013); é membro do IBCCRIM, AIDP e MMPD; e é
Promotor de Justiça do MPESP. Foi membro do CONDEP/SP, representando a UNESP; e do CEAC – Conselho
Editorial Acadêmico da Fundação Editora UNESP (2008/2011). E-mail: pauloborges@franca.unesp.br
2
Graduanda do 4º ano do Curso de Direito da UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlia de Mesquita Filho
– Campus de Franca. Bolsista pela CNPq. E-mail: fogacaolivia@gmail.com
3
Artigo desenvolvido em co-autoria.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

KEY-WORDS: criminal law; temporary and exceptional legislation; principle of non-


retroactivity of criminal law; minimum criminal law.

1. Introdução

O sistema político brasileiro adotado atualmente é de um Estado Social e


Democrático de Direito, implicando na atuação de um Estado em favor dos interesses da
sociedade, pautando-se, para tanto, em um corpo legislativo elaborado em acordo com a
Constituição Federal. O atual Código Penal, no entanto, vige desde uma data anterior à atual
Constituição Federal (CF/88), de modo que a recepção de seus artigos pela CF/88, muitas
vezes, pode não acontecer. A permanência da aplicação de artigos não recepcionados pela
CF/88 implica, naturalmente, em inconstitucionalidade flagrante.
A partir do estudo das leis temporárias e excepcionais, reguladas no art. 3º do Código
Penal, e sua compatibilidade com as previsões constitucionais, surge a indagação acerca de
sua recepção, conforme será demonstrado em momento oportuno. Em um segundo momento,
fazendo uma remissão ao conteúdo de um Estado Social e Democrático de Direito, analisam-
se as funções das leis temporárias e excepcionais com vistas a tal modelo de Estado, e,
partindo de leituras críticas sobre criminologia e sociologia, constata-se que a situação das leis
penais e temporárias vai muito além de uma mera irregularidade de hierarquia legislativa,
sendo, isso sim, e em conjunto com todo um ordenamento penal orientado para tanto, uma
afronta ao próprio modelo de Estado Social e Democrático de Direito.

2. Lei penal no tempo

O Direito Penal compreendido pela sociedade atual é um direito que sofre limitações
de cunho humanístico, e, sendo assim, sua baliza mais importante é o princípio da legalidade.
Prevista no art. 1º do atual Código Penal Brasileiro e no art. 5º, XXXIX, da Constituição
Federal de 1988, a legalidade é uma garantia fundamental proveniente de um Estado Social e
Democrático de Direito.
O art. 1º, CP, define: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem
prévia cominação legal.”, bem como o art. 5º, XXXIX, CF, prevê que “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O princípio da legalidade, nos
textos legais, aparece desdobrado em dois princípios derivados, quais sejam o da
anterioridade e o da reserva legal.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

De acordo com o princípio da reserva legal, somente leis em sentido estrito, ou seja,
emanadas pelo Poder Legislativo, podem definir crimes e penas. E, segundo o princípio da
anterioridade, a lei penal somente atinge fatos posteriores ao início de sua vigência.
A aplicação destes princípios apresenta justificativas tanto lógicas como políticas;
como se pode extrair dos ensinamentos de Hobbes, “se a pena supõe um fato considerado
como transgressão à lei, o dano praticado antes de existir a lei que não o proibia, não é uma
pena, mas um ato de hostilidade, pois antes da lei não existe transgressão à lei” (HOBBES,
apud QUEIROZ, 2001, p. 71), de modo que a anterioridade revela-se como corolário lógico
da reserva legal (QUEIROZ, 2001, p. 71).
Já, de acordo com Mir Puig, o princípio da legalidade é, além de uma concatenação
lógica, “uma ‘garantia política’ de que o cidadão não poderá ser submetido, seja pelo Estado,
seja pelos juízes, a penas não aprovadas pelo povo.” (MIR PUIG, 2007, p. 88).
Tais garantias, no entanto, nem sempre existiram. Conforme anteriormente
mencionado, a legalidade é amparada pela CF/88 como uma garantia fundamental, isto é, uma
ideologia desenvolvida somente no Iluminismo. A origem e contexto histórico dessas
garantias serão mais bem abordados no próximo tópico.

2.1. Histórico

Conforme aludido, o princípio da legalidade e seus derivados, anterioridade e reserva


legal, são extremamente recentes, remetendo suas origens à ordem surgida após a Revolução
Francesa, no Séc. XVIII. Anteriormente, o Direito Penal era regido pelas funções de
retribuição e intimidação (PRADO, 2010, p. 80) , desde a Antiguidade Romana até o que se
conhece por Direito Penal Comum, surgido no Séc. XII como resultado da fusão dos direitos
penais anteriores (PRADO, 2010, p. 85). Inclusive, ainda que já houvesse um histórico de
leis escritas, é no Direito Penal Comum que sua importância como fonte de Direito toma
relevância (PRADO, 2010, p. 86).
Apesar do avanço com as leis escritas, o Direito Penal Comum representava os
regimes absolutistas, de modo que a legislação penal da época se caracterizava pela crueldade
e pelo arbítrio judiciário, criando uma “atmosfera de incerteza, insegurança e justificado
terror” (PRADO, 2010, p. 87), permanecendo o Direito Penal em absoluta desumanidade.
Como reação aos excessos do Absolutismo, surgiu um movimento humanitário,
resultado da Revolução Francesa, e conhecido como Iluminismo. É somente a partir da
ideologia liberal, orientada pelo humanismo, que se concebe a legalidade como “limite ao

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

poder punitivo do Estado, dotado de sentido de garantia para a liberdade do cidadão.” (MIR
PUIG, 2007, p. 87). Surgem, então, os Estados de Direito.
Deve-se ressaltar que a legalidade pode ser encontrada como princípio tutelado por
nações anteriores ao Século das Luzes, como a Magna Carta inglesa, de 1215, e a Constitutio
Criminalis Carolina, de 1532, mas sua conotação não é a mesma, visto que a primeira admitia
o costume como fonte de Direito, e a segunda não proibia a analogia em desfavor do réu
(MIR PUIG, 2007, p. 87).
Com efeito, a legalidade como proteção dos cidadãos contra o poder punitivo do
Estado surge somente com o famoso aforismo elaborado por Feuerbach, qual seja, nullum
crimen, nulla poena sine lege (MIR PUIG, 2007, p. 87).
No mesmo sentido, Beccaria, ao publicar a obra “Dos delitos e das penas” em 1764,
é o primeiro a sistematizar o princípio da estrita legalidade dos crimes e das penas em três
postulados fundamentais: “legalidade penal, estrita necessidade das incriminações e uma
penologia utilitária.” (PRADO, 2010, p. 88). A partir desses pensamentos, Beccaria se torna
o precursor da Escola Clássica, a qual considera “o Direito Penal não tanto em função do
Estado, quanto em função do indivíduo, que deve ser garantido contra toda intervenção estatal
não predisposta pela lei e, consequentemente, contra toda limitação arbitrária da liberdade”
(PRADO, 2010, p. 89).
Desde a Escola Clássica até os dias atuais, a teoria do delito transformou-se
intensamente, desenvolvendo novas ideias, até atingir o que se sustenta por Estado Social e
Democrático de Direito, surgido, por excelência, em resposta à grande depressão, crise
econômica iniciada nos Estados Unidos no ano de 1929 devido, entre outras razões, à política
de não intervenção do Estado na economia, e que atingiu o mundo todo.
Um Estado que se diz de Direito, portanto, é aquele pautado pela legalidade, e que
surge no Séc. XVIII, o Século das Luzes, como reação ao absolutismo da época; um Estado
Social quer dizer que a intervenção política somente se justifica na medida em que tutela os
interesses da sociedade como um todo; e a expressão “Estado Democrático” corresponde
àquele Estado que se põe a serviço do cidadão (MIR PUIG, 2007, p. 86).

2.1.1. Brasil

Em âmbito nacional, o itinerário histórico corresponde ao percorrido mundialmente,


como se é de esperar, apenas apresentando a defasagem temporal que é característica dos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

países, por assim dizer, “subdesenvolvidos”, que seguem os modelos e referenciais dos países
centrais.
A sociedade primitiva brasileira, isto é, a existente antes da chegada dos
colonizadores portugueses no Séc. XVI, caracterizava-se pela vingança privada (PRADO,
2010, p. 122). Já, no período colonial, vigorou no Brasil a legislação portuguesa, incluindo,
naturalmente, a legislação penal lusa. As primeiras duas décadas desde o descobrimento
foram regidas pelas Ordenações Afonsinas, consideradas o primeiro código europeu
completo. Em 1521, a legislação foi substituída pelas Ordenações Filipinas, tidas como uma
cópia piorada das ordenações anteriores, considerados os erros gramaticais do texto
legislativo (PRADO, 2010, p. 122 et. seq.).
O Código Criminal do Império surgiu em 1830, como o primeiro código autônomo
não somente do Brasil, como de toda a América Latina (HUNGRIA apud PRADO, 2010, p.
125). Orientado pelas diretrizes da Carta Magna brasileira de 1824, foi o primeiro documento
que imperou no Brasil protegendo direitos e interesses individuais, de acordo com as
tendências liberais do Iluminismo. Inclusive, foi a primeira legislação a garantir a legalidade
como um direito fundamental, visto que as ordenações, elaboradas em um contexto
absolutista, não previam o princípio da legalidade (PRADO, 2010, p. 124-125).
Pode-se notar, então, que, tanto no Brasil como no mundo, o princípio da legalidade,
como forma de garantir direitos individuais fundamentais, em especial a liberdade dos
cidadãos, se concretizou na sociedade muito recentemente. Compreende-se, assim, que a
legalidade não surgiu isoladamente, mas sim acompanhada de um rol de outros princípios,
com o escopo de transformar o sistema jurídico da época. Ocorre que, quando da aplicação do
princípio da legalidade e de seus derivados – anterioridade e reserva legal, surgem conflitos
de ordem temporal. Esses conflitos e as soluções adotadas serão estudados a seguir.

2.2. Conflitos da lei penal no tempo

A aplicação da lei penal no tempo sofre alguns conflitos, no que tange à incidência
da legislação em situações de revogação de leis. Em um caso como este, surge a indagação
acerca de qual legislação deve ser aplicada em crimes que foram cometidos sob a vigência de
uma legislação e passam a ser julgados sob a vigência de outra. A solução encontrada pelo
CP, em seu art. 1º, e em acordo com a CF/88, em seu art. 5º, XL, é a aplicação do princípio da
irretroatividade da lei penal, que consiste na não incidência de uma lei a fatos anteriores à sua
vigência.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O princípio da irretroatividade, ainda, vem acompanhado do princípio da


retroatividade da lei penal mais benéfica, que se justifica, conforme leciona QUEIROZ (2001,
p. 72), pelo caráter garantista do Estado em não cometer excessos no exercício do poder
punitivo, além de permitir o alcance dos objetivos da pena, quais sejam, advertir e prevenir.
No mesmo sentido, defende PRADO (2010, p. 197) que a incidência de uma lei mais severa a
um caso anterior à sua vigência é vedada por razão de ordem político –criminal, visto que, em
tal caso, inexiste o requisito da culpabilidade para a constituição do delito.
A conjugação dos princípios da irretroatividade da lei penal e da retroatividade da lei
penal mais benéfica, de acordo com ANÍBAL BRUNO (1984, p. 261), muito além de regular
um conflito de ordem lógica, oferece garantia e estabilidade da ordem jurídica, dando ordem e
firmeza nas relações sociais e de segurança dos direitos do indivíduo.

2.3. Leis temporárias e excepcionais

As leis temporárias e excepcionais são leis que apresentam um término de vigência


no próprio corpo do texto legislativo, pois são editadas a fim de regulamentar situações
passageiras. A distinção entre a lei temporária e a lei excepcional consiste em que a primeira
apresenta uma data fixa no calendário para o fim de sua vigência, ao passo que a última
determina uma situação em que deve parar de viger, como, por exemplo, o término da
situação que causou sua edição.
PRADO explica que a lei temporária exige duas condicionantes: uma situação
transitória de emergência e o termo de vigência (2010, p. 199). Complementando, QUEIROZ,
ao citar MARQUES, ensina que, nas leis temporárias e excepcionais, “o tempo integra a
estrutura da norma, ou como condição de maior punibilidade [...].” (2001, p. 77).
A implicação dessas leis é a não incidência do princípio da irretroatividade da lei
penal e da retroatividade da lei penal mais benéfica, visto que tais leis ainda são aplicadas a
fatos cometidos durante sua vigência, ainda que tais fatos sejam julgados em momento
posterior ao término da vigência. QUEIROZ descreve o evidente fundamento da ultratividade
dessas leis: “se tais normas, ao final de sua duração, perdessem, sem mais, o seu poder
coercitivo quanto aos fatos consumados durante a sua vigência, simplesmente ninguém as
respeitaria, seriam de todo inúteis [...].” (2001, p. 77). JOPERT classifica tal fundamento
como de ordem lógica (2006, p. 57); e, no mesmo sentido, JUNQUEIRA explica que a não
ultratividade dessas leis as esvaziaria de qualquer eficácia preventiva (2005, p. 41).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

3. Legislação

O artigo do CP que regula as leis temporárias é o art. 3º, que diz: “A lei excepcional
ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a
determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.” Atente-se para o fato de que
a redação do texto apresenta-se confusa, visto que “decorrido o período de sua duração”, que
vem em primeiro lugar, refere-se à lei temporária, que está em segundo lugar, e “cessadas as
circunstâncias que a determinaram”, que vem ao final, é referente à lei excepcional, que se
localiza no início do texto legislativo.
Deixadas as irregularidades técnicas à parte, o art. 3º dispõe sobre uma exceção ao
princípio da irretroatividade da lei penal combinado com o da retroatividade da lei penal mais
benéfica, contido no art. 2º e parágrafo único, que preveem: “Art. 2º Ninguém pode ser
punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a
execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único. A lei posterior, que
de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por
sentença condenatória transitada em julgado”.
Da análise da CF/88 acerca do tema, encontra-se o art. 5º, XL, que prevê: “a lei penal
não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Esta disposição é a única existente na Magna
Carta, e incisivamente não admite qualquer exceção ao princípio da irretroatividade da lei
penal e da retroatividade da lei penal mais benéfica.

3.1. Posição doutrinária

Expondo o pensamento majoritário da doutrina, FRAGOSO (1993, p. 102) é incisivo


ao afirmar que a lei mais severa em nenhum caso retroage. Mais adiante, todavia, aponta a
única exceção a tal regra, que é constituída pelas leis temporárias e excepcionais (FRAGOSO,
1993, p. 104). Em sentido diverso, TOLEDO define que “a eficácia da lei penal no tempo
subordina-se a uma regra geral e a várias exceções [...].” (2010, p. 30). Ocorre que tais
afirmações não procedem, visto que a regulamentação da lei penal no tempo feita pela CF/88
não admite exceções, implicando na não recepção do art. 3º do CP.
Com efeito, ZAFFARONI defende que a disposição legal contida no art. 3º do CP,
“posto que constitui exceção à irretroatividade legal que consagra a Constituição Federal
(‘salvo para beneficiar o réu’) e não admite exceções, ou seja, possui caráter absoluto” (2005,
p. 200). Em sentido contrário, aponta JESUS que “o problema deve ser colocado sob o prisma

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

da tipicidade e não do direito intertemporal”, dado que a referência temporal é elementar da


lei excepcional ou temporária, sendo, assim, pura técnica legislativa. E finaliza:
“Compreendido o problema como sendo de tipicidade e não de direito intertemporal, conclui-
se não ser inconstitucional o art. 3º do CP.” (2006, p. 96 – 100). Tal argumento, todavia, não
prossegue, dado que uma simples verificação da posição do art. 3º perante o art. 2º e o art. 4º
revela que a questão é de direito intertemporal: sobre o art. 2º, segue a nomenclatura “lei
penal no tempo”; sobre o art. 3º, “lei excepcional ou temporária”, e sobre o art. 4º, “tempo do
crime”. Em se tratando de questões temporais nos artigos antecedente e subsequente ao art. 3º,
dada a descrição dos mesmos, por razões puramente lógicas compreende-se que o artigo
intermediário trata também de assunto intertemporal.
Doutrinariamente, a opinião majoritária sobre a justificativa da exceção feita no art.
3º resume-se à eficácia que se perderia caso não houvesse a exceção, conforme aludido
anteriormente (QUEIROZ, 2001, p. 77; JUNQUEIRA, 2005, p. 41). Essa justificativa,
entretanto, é demasiado atentatória à proteção das liberdades individuais perante o Estado,
pois, basta a alegação de perda de eficácia para se contornar previsão constitucional e para o
atingimento de qualquer pretensão punitiva do Estado, e portanto, garantia de eficácia, neste
caso, não pode ser aceita em detrimento de preceitos constitucionais.
Argumenta-se, ainda, que o caso não seria de revogação de uma norma por outra,
situação que pede a aplicação do princípio previsto no art. 5º, XL, CF/88, visto que “a lei
posterior não tem o condão de revogá-las [leis temporárias e excepcionais]; o que na verdade
ocorre é uma autorrevogação” (PRADO, 2010, p. 199). Tal inferência é igualmente
improcedente, dado que a leitura do art. 2º, parágrafo único, CP, e do art. 5º, XL, CF/88
permite entender que qualquer lei posterior que favoreça o indivíduo deve ser aplicada, ainda
que tal lei não tenha tido o condão de revogar a lei temporária ou excepcional, de modo que o
fato de tais leis se autorrevogarem não exclui a incidência da retroatividade da lei mais
favorável.
Há quem defenda, também, que “a Constituição determina a retroatividade da lei
posterior mais benéfica apenas quando as duas leis em conflito tratarem do mesmo fato”, e “as
leis temporárias ou excepcionais não tratam do mesmo fato regulado pela lei do período de
normalidade, que entra em vigor após a auto-revogação das primeiras. Isso porque a lei
excepcional ou temporária trata de hipóteses ocorridas em especiais períodos de tempo”
(JOPPERT, 2006, p. 58). A improcedência do exposto é flagrante, pois em momento algum a
Constituição Federal exige que as leis em conflito tratem do mesmo fato, limitando-se a
impor que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Ademais, o fato de as leis

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temporárias ou excepcionais tratarem de hipóteses especiais não implica que o fato a ser
regulado é diferente daquele em situação de normalidade.
Partindo do pressuposto de que a exceção contida no art. 3º, CP é de flagrante
inconstitucionalidade, deduz-se que as leis temporárias e excepcionais devem incidir somente
nas hipóteses de julgamento anterior à autorrevogação. Tal entendimento implica em evidente
injustiça, dado que os delitos julgados até a autorrevogação levam à punição do agente,
enquanto aqueles julgados em momento posterior levam à absolvição do indivíduo. O escopo
a seguir, portanto, é desconstruir o instituto das leis temporárias e excepcionais através da
análise dos motivos políticos de sua existência.

4. Leis temporárias e excepcionais à luz do direito penal mínimo

4.1. O sistema penal é um sistema político

De acordo com ROBERTI, a análise dos princípios penais contidos na Constituição


Federal permite entender que a orientação a ser adotada é de um sistema repressivo reduzido,
atuando apenas como garantidor dos direitos de cada cidadão. “Dessa maneira, o Direito
Penal deve estar presente nos conflitos sociais, apenas quando for estritamente necessário e
imprescindível, não além; impõe-se, assim, prévia comprovação de que existem outras
alternativas que não a criminalização.” (2001, p. 61-62). Um princípio constitucional penal
que pode ser mencionado é o da subsidiariedade, delimitado por MIR PUIG da seguinte
maneira: “O Direito penal deixa de ser necessário para proteger a sociedade quando isso
puder ser obtido por outros meios, que serão preferíveis enquanto sejam menos lesivos aos
direitos individuais.” (2007, p. 93).
Ocorre que, a partir da leitura da obra de Zaffaroni intitulada “Em busca das penas
perdidas”, em resposta a Look Hulsman e sua obra “Das penas perdidas, percebe-se que o
sistema penal atual sofre uma crise de deslegitimação. Basta uma breve e superficial análise
da execução da pena privativa de liberdade para se constatar que a mesma não apresenta as
condições necessárias para ressocializar o condenado, descumprindo uma função primordial
da pena. Paralelamente, a tendência mundial relatada por ROBERTI em se buscar a punição
em meios outros que as penas privativas de liberdade demonstra que “o excesso de
intervenção penal, a falta de critérios e o uso abusivo da pena deixam um vácuo na sociedade,
em face do esvaziamento da força intimidadora da pena.” (2001, p. 62).

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MIR PUIG complementa: “Se o Direito penal de um Estado social só se legitima na


medida em que protege a sociedade, perderá sua justificação caso sua intervenção demonstre-
se inútil por ser incapaz de evitar delitos.” (2007, p. 92), de modo que, através de uma simples
coerência lógica do que deva ser um Estado social, a partir de um estudo puramente teórico,
também é possível sustentar a deslegitimidade que enfrenta o atual sistema penal.
A falta de legitimidade não se limita à sua relação com os presidiários, alcançando
todo o sistema repressivo do Estado, atingindo o próprio órgão legislativo e judiciário.
ROBERTI destaca a expressiva influência exercida pela mídia, através da divulgação da
impunidade, a fim de gerar um clamor social por justiça: em resposta a este clamor, o poder
legislativo “sem atacar as verdadeiras causas da violência e da criminalidade, edita uma nova
lei a todo e qualquer fato socialmente significante e com caráter negativo” (2001, p. 109-110).
ZAFFARONI destaca que a inflação progressiva e constante das tipificações somente
colabora para aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos, com consequente aumento
do poder controlador dos mesmos (1991, p. 27).
Este arbítrio seletivo consiste, conforme o autor explica, no fato de os órgãos
executivos operarem somente contra quem desejam, visto que a disparidade entre as
tipicidades existentes e a capacidade fática de se punir todos os delitos cometidos é abissal.
Tal situação se apresenta como uma “falsidade da legalidade processual” (ZAFFARONI,
1991, p. 26-27).
Essa falsidade é bem explorada pela teoria do etiquetamento, ou labeling approach,
trabalhada na obra de Alessandro Baratta intitulada “Criminologia crítica e crítica do direito
penal”. QUEIROZ, de forma sucinta, define a teoria: “sob a etiqueta de ‘delito’, agrupa-se
toda uma série de comportamentos que nada têm em comum, exceto quanto ao fato de
estarem criminalizados. Significa, ainda, que o crime não é um objeto do sistema penal, senão
resultado mesmo do seu funcionamento.” (2001, p. 61). Os comportamentos eleitos para
serem criminalizados são aqueles praticados, em sua maioria, por indivíduos das classes
sociais mais baixas. Tal afirmação é facilmente comprovada pela leitura dos tipos penais
elencados no Código Penal: o bem jurídico objeto da tutela estatal mais protegido é a
propriedade, bem detido pelas classes sociais mais favorecidas em detrimento das
necessitadas. O próprio cárcere retrata esta opção do aparelho repressor, bastando verificar o
perfil dos presos.
Admitindo, então, que o sistema repressivo brasileiro sofre na atualidade uma crise
de deslegitimação, e considerando, ainda, a teoria do etiquetamento, conclui-se, bem como fez
ZAFFARONI, que a agência judicial é política (1991, p. 207), incluindo-se, naturalmente, a

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agência judicial penal e o sistema penal como um todo. “Porque não há exercício de poder
estatal que não seja político: ou é político ou não é poder.” (ZAFFARONI, 1991, p. 207). Em
consonância, porém sob uma ótica mais voltada às agências criminais, BARATTA aponta: “o
poder de atribuir a qualidade de criminoso é detido por um grupo específico de funcionários
que [...] exprimem certos estratos sociais e determinadas constelações de interesses.” (2002, p.
111). Este grupo de funcionários, destaca o autor mais adiante, é um grupo que tem o poder
de influir sobre os processos de criminalização, de modo que a criminalidade passa a ser
compreendida como uma realidade social forjada, ou seja, tem sempre natureza política
(BARATTA, 2002, p. 119).
A admissão, portanto, do sistema repressivo do Estado como um ente político traz
três implicações diretas: primeiramente, que esse sistema, nele incluindo o órgão legislativo, o
judiciário, bem como as agências executórias e até mesmo a mídia, atua em função de um
interesse parcial, ou seja, de um interesse tendencioso, político. A segunda implicação,
decorrente da primeira, consiste em que a elaboração dos textos normativos penais é feita
visando atender o interesse político existente. Em terceiro lugar, estabelece-se, através de uma
simples verificação histórica, que o interesse político que move o sistema penal não se altera,
ainda que se alterem os partidos políticos, e busca, através do sistema repressivo do Estado,
manter o status quo vigente, e que esse interesse político consiste na proteção do sistema
econômico capitalista.
A inserção do elemento econômico é descrita por ROBERTI: “Em busca de um
‘culpado’, pela presença em nossa sociedade da crescente violência individual, começa-se a
explorar a existência da pobreza que, à primeira vista, nos parece ser conseqüência inevitável
de uma certa ‘ordem natural’ que comanda as relações entre os homens.” (2001, p. 110).
Evidentemente, a exploração da pobreza como causa da violência não é feita por acaso, e a
existência dela não provém de uma ordem “natural”, mas sim forjada, e ambas essas situações
são o escopo final do interesse político do Estado.
Desse modo, infere-se que os institutos penais existentes estão a serviço de um
interesse político, e, dentre tais institutos, as figuras das leis penais temporárias e
excepcionais.

4.2. Leis penais temporárias e excepcionais

As leis temporárias e excepcionais surgiram no ordenamento jurídico brasileiro com


a edição do Código Penal de 1940, ainda em vigor. O período em que foi elaborado o referido

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

código remete à implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas, em que foi adotado um
regime ditatorial e, portanto, antidemocrático. Inclusive, foi sob esse regime que foi outorgada
a Constituição Federal de 1937, a única na história do Brasil, até o presente momento, que não
previu em seu texto o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, de modo a
permitir a ultra-atividade das leis temporárias ou excepcionais. (BORGES, 2005, p. 128-130).
Durante a vigência da Constituição Federal de 1937, o instituto das leis penais
excepcionais e temporárias, e sua qualidade de ultra-atividade, apresentava-se, no plano
lógico-formal, como constitucional. No entanto, a partir da aprovação da Constituição Federal
de 1946, ocasião em que a retroatividade da lei penal mais benigna foi restabelecida em seu
art. 141, parágrafo 294, juntamente com o regime político democrático (BORGES, 2005, p.
130), aquele instituto não foi recepcionado e sua aplicação subsequente passou à
inconstitucionalidade, permanecendo irregular até os dias atuais5.
Ressalta-se aqui que a hipótese de simples impedimento da ultra-atividade dessas
leis, mas a perpetuação dessa modalidade, incidindo somente naqueles casos julgados durante
sua vigência, é igualmente inaceitável, visto que, em concordância com a maioria doutrinária,
tal norma seria injusta (JOPPERT, 2006, p. 57), ao punir somente parcela dos infratores, e
também perderia sua eficácia (JUNQUEIRA, 2005, p. 41).
A partir de uma análise para além da inconstitucionalidade do art. 3º do atual Código
Penal6, e retomando o contexto histórico-político da outorga da Constituição Federal de 1937
e da elaboração do Código Penal de 1940, extrai-se a verdadeira razão de ser das leis
temporárias e excepcionais: estas leis sempre irão prever uma situação legal mais severa do
que a anterior, sempre irão criar tipos penais para ocasiões que se pretendem de urgência e
fora da normalidade, para regular a atuação dos membros da sociedade de acordo com os
interesses políticos do Estado. Uma norma que possa enrijecer o ordenamento jurídico penal
de forma rápida e aos moldes dos interesses dos detentores de poder revela-se extremamente
conveniente, mas tal possibilidade somente pode ser admissível em um regime político
totalitário, como aquele vigente à época de sua criação. Uma vez restabelecida a democracia,
este instrumento deveria ter sido aniquilado do sistema penal, dada sua flagrante
arbitrariedade.

4
CF/46, art. 141, parágrafo 29: A lei penal regulará a individualização da pena e só retroagirá quando
beneficiar o réu.
5
CF/88, art. 5º, XL: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
6
Art. 3º, CP: A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas
as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Inclusive, a título de enfatizar o caráter antidemocrático com que a ferramenta das


leis temporárias e excepcionais atuou na história brasileira, destaca-se o Ato Institucional n. 1,
instaurado em 1964, primeiro ano de um novo regime ditatorial, uma norma temporária que
suprimiu direitos básicos dos cidadãos. Ainda que o Ato Institucional não tenha sido uma lei
temporária, apresenta a mesma linha funcional que as leis temporárias e excepcionais penais,
e, segundo BORGES, é suficiente para demonstrar “a natureza ditatorial ou antidemocrática
das referidas leis temporárias, que afrontam a estabilidade das relações jurídicas e são
circunstanciais.” (2005, p. 131).
O caráter antidemocrático das leis temporárias e excepcionais pode ser detectado,
ainda, através da observância de outros institutos, que estabelecem uma harmonia entre si para
atender a finalidade política almejada. Como exemplo, é possível citar a tentativa de contornar
a vedação constitucional de penas perpétuas com a instauração das medidas de segurança,
medidas aplicadas àqueles infratores incapazes, e que não apresenta limite temporal de sua
incidência. Regulamentada de maneira elaborada pela primeira vez no Código Penal de 1940,
as medidas de segurança passaram a desenvolver a função de “neutralização dos
‘indesejáveis’, pela simples deterioração provocada pela institucionalização demasiadamente
prolongada” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 194).
Finalmente, o fato de o atual Código Penal ter sido fruto de um decreto-lei, ou seja,
de elaboração do próprio presidente da República, dada a previsão feita pela ditatorial
Constituição Federal de 1937 (BORGES, 2005, p. 129), demonstra a tendência
antidemocrática de todo o conteúdo do referido código.

4.3.Proposta a partir da ótica do direito penal mínimo

Através dos aportes teóricos da obra de Alessandro BARATTA (2002), intitulada


“Criminologia crítica e crítica do direito penal”, tem-se um embasado panorama das
principais correntes criminológicas ao longo da história, culminando em uma criminologia
crítica, a qual busca as razões da criminalização construída pelos órgãos penais ao invés de
buscar as razões da criminalidade existente, aos moldes da criminologia clássica.
O autor estabelece três proposições básicas de onde se deve partir para se
compreender o sistema penal e para poder interferir nele: primeiramente, deve-se admitir que,
a despeito do que se encontra positivado, o direito penal não defende somente os bens
jurídicos essenciais de interesse social, e, se o faz, faz de maneira desigual perante cada
cidadão. A segunda proposição estabelecida como ponto de partida de uma criminologia

29
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crítica é a admissão de que o direito penal, contrariamente ao postulado na Magna Carta, não
é igual para todos, de maneira que a condição de criminoso é atribuída de forma desigual e
não aleatória ao longo da sociedade. Por fim, a terceira proposição estabelece que o grau de
punição exercido sobre os crimes efetivamente averiguados não corresponde ao grau de
danosidade social, mas sim de danosidade àqueles bens de interesse das classes detentoras do
poder político (BARATTA, 2002, p. 162).
Admitindo a crise de legitimidade do sistema penal, como exposto no item 4.1.,
observa-se um ordenamento jurídico penal inchado, em que ocorre o “fenômeno da
hipercriminalização”. Este fenômeno acaba por atingir uma tipificação excessiva dos atos
praticados pelos cidadãos, tendo como consequência a perda da generalidade, da
impessoalidade e da abstração (ROBERTI, 2001, p. 120-121), ou seja, a especificidade dos
tipos penais é tamanha que impede sejam eles dirigidos a toda a sociedade, acabando por se
canalizar a determinados setores sociais, isto é, aos setores de baixa renda.
Uma solução proposta é a do direito penal mínimo, isto é, a retração do direito penal
para a diminuição da criminalidade (ROBERTI, 2001, p. 138). Pode parecer, em um primeiro
momento, que tal aferição é lógica, afinal, uma vez desconstituindo tipos penais, ainda que
tais atos continuem sendo cometidos, eles deixam de ser considerados como delitos. Ocorre
que a retração do direito penal vai além, implica na reflexão sobre os tipos penais existentes,
questionando o real valor dos bens jurídicos tutelados por aqueles tipos para o interesse
social, e verificando a desnecessidade da tutela das chamadas “bagatelas criminais”. Implica,
ainda, na não inserção do infrator na prisão carcerária, evitando, com isso, em grande medida,
a reincidência, e, através de penas alternativas, ou até mesmo de sanções de âmbito
administrativo, possibilitando uma verdadeira reinserção social do indivíduo.
Tendo a proposta de um direito penal mínimo em mente, faz-se a análise do instituto
das leis penais temporárias e excepcionais. Admitindo que estas sejam criadas para
regulamentar uma situação de emergência passageira e anormal, é imprescindível o
questionamento acerca da necessidade de se fazer tal regulamentação por meio do direito
penal, e não por meio do direito administrativo, por exemplo. Ao se aceitar que essa
adequação legislativa seja feita por meio do direito penal, abre-se uma brecha para a
arbitrariedade do poder punitivo do Estado, sendo assim uma afronta à própria democracia.
Frear as possibilidades que ensejam as leis penais temporárias e excepcionais é um início
rumo à superação da crise de legitimidade por que passa o sistema penal brasileiro, e a
eliminação dessa modalidade de leis do ordenamento jurídico brasileiro promete somente a

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aproximação da realidade aos postulados constitucionais, como a democracia, a igualdade


material dos cidadãos perante a lei, a subsidiariedade do direito penal, dentre muitos outros.

5. Conclusão

O estudo das leis penais temporárias e excepcionais e sua aplicação, regulada no art.
3º do Código Penal, fez emergir a discussão acerca de sua constitucionalidade. Em esfera
doutrinária, constatou-se a manifestação de opiniões no sentido de admitir sua
constitucionalidade, a despeito de argumentos minoritários. A dedicação dos autores ao
assunto era mínima e sem qualquer aprofundamento no assunto, de modo a transmitir a ideia
de que, ainda que houvesse pequenas divergências, o assunto era pacífico. A apatia política
perante o objeto ora estudado, ao invés de emitir aceitação, gerou desconforto. Uma
averiguação mais detalhada das origens das leis temporárias e excepcionais revelou um dado
importante: elas surgiram em meio a um regime ditatorial. A reunião dessa informação com
leituras críticas de criminologia e sociologia fez despertar a indagação a respeito da
verdadeira função que tais leis exercem no sistema penal brasileiro, de modo que a
indiferença dos doutrinadores diante do tema simplesmente reiterava o desejo de manutenção
da ordem como ela está, ou seja, de uma criminalidade imensurável, os órgãos carcerários
compostos quase exclusivamente por membros das classes econômicas mais baixas,
garantindo o afastamento desses indesejáveis. As leis temporárias e excepcionais
eventualmente criadas, invariavelmente hão de ser destinadas a proteger bens jurídicos como
a propriedade privada, atendendo somente os interesses dos detentores de poder.
As leis previstas no art. 3º do Código Penal, mais do que serem uma afronta à
Constituição Federal, são uma afronta à democracia e aos limites do jus puniendi do Estado,
e, portanto, devem ser eliminadas do ordenamento jurídico penal brasileiro, como um passo
em direção à retração do direito penal, com vistas a concretizar os verdadeiros valores de
igualdade, democracia e interesse social.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

TUTELA PENAL DE BENS JURÍDICOS SUPRA-INDIVIDUAIS NO CONTEXTO


DA GLOBALIZAÇÃO: A QUESTÃO DAS INDICAÇÕES CONVENCIONAIS
CRIMINALIZADORAS E O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL

CRIMINAL PROTECTION OF SUPRAINDIVIDUAL INTERESTS IN THE CONTEXT


OF GLOBALIZATION: THE ISSUE OF CRIMINAL INDICATIONS IN
INTERNATIONAL CONVENTIONS AND THE PRINCIPLE OF LEGALITY

José Carlos Portella Junior1


Fábio André Guaragni2

RESUMO
O presente trabalho analisa de que modo o direito penal na era da globalização pode
intervir de maneira legítima para a proteção de bens jurídicos supra-individuais
internacionalmente reconhecidos. Além disso, busca-se verificar se o direito brasileiro,
diante das ameaças globais e transfronteiriças e da revisão do conceito de soberania, pode
assumir a tutela penal de bens jurídicos supra-individuais a partir da aplicação imediata dos
tratados internacionais no âmbito interno e de que forma pode fazê-lo e com quais limites.
São analisados os diferentes caminhos adotados pelo legislador pátrio para atender à
obrigação de dar cumprimento à norma internacional e preservar a reserva legal em
matéria penal.
PALAVRAS-CHAVE: Globalização; Direito Penal; Bem jurídico supra-individual;
Princípio da reserva legal; Direito Internacional Público; Direito Internacional Penal;
Convenções internacionais

ABSTRACT
This paper analyzes how the criminal law in the era of globalization can legitimately
intervene to protect supraindividual interests internationally recognized. Furthermore, this
work seeks to verify if the Brazilian law, considering the global and transnational threats
and the revision of the concept of sovereignty, can assume the criminal protection of the
supraindividual interests by the immediate application of international treaties in the
domestic level and in which way it can do it and whit what limitations. It analyzes the
different paths taken by the national legislator to meet the obligation to comply with
international law and preserve the principle of legality in criminal matters.
KEYWORDS: Globalization; Criminal law; Supraindividual interests; The principle of
legality; Public International law; International Criminal Law; International conventions

1
O autor é Advogado, Professor de Direito e mestrando vinculado ao programa de Mestrado em Direito
Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).
2
O autor é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais
(UFPR). É Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). É Professor de Direito Penal do
UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

1. Introdução

O fenômeno da globalização traz consigo mudanças nas relações sociais e


políticas que colocam em xeque o poder de regulação do Estado, que sozinho não
consegue mais dar conta de reprimir e prevenir as ameaças transfronteiriças a bens
jurídicos supra-individuais.
No contexto da globalização econômica, tem-se visto a proliferação de centros de
poder (como empresas transnacionais e organismos multilaterais). O “eixo do poder” passa
“pelas empresas e pelos organismos”, diz MÁRIO FERREIRA MONTE (2001, p. 17),
adicionando:

“É, de facto, indiscutível o poder que as empresas têm em todo o mundo,


algumas da quais chegam mesmo a ter um PIB (produto interno bruto) superior
ao de muitos Estados, poder esse que é, curiosamente, repartido com certos
organismos e organizações, nomeadamente internacionais, não com
governamentais...” (MONTE, 2001, p. 17).

Também fazem parte do contexto hodierno, dentre outros aspectos, a rapidez e


fluidez das relações econômico-financeiras em razão do desenvolvimento tecnológico, o
monopólio da informação e do conhecimento técnico pelos agentes privados e o
enfraquecimento dos direitos sociais e trabalhistas como forma de elevar a competitividade
do mercado local (HERRERA FLORES, 2010, p. 103-104). Essas características da
globalização econômica exigem dos Estados a revisão do conceito de soberania, enquanto
exercício de poder por sobre espaço demarcado de terra. Há algum tempo, GUÉHENNO
sintetizou o problema em termos:

“Agora o Estado-nação, querendo combinar numa moldura única as dimensões


política, cultural, econômica e militar do poder, torna-se prisioneiro de uma
concepção espacial do poder (...) O espaço não sendo mais critério pertinente,
será que a política sobreviverá a esta revolução? Desde sua origem, desde a
cidade grega, ela é a arte de governar uma coletividade de homens definidos pelo
fato de serem enraizados num lugar, numa cidade (polis) um numa nação. Se a
solidariedade não se deixa mais limitar pela geografia, se não há mais cidade, se
não há mais nação, pode ainda haver política?” (1994, p. 30).

A resposta é cortante e imediata: “O desaparecimento da nação implica na morte


da política” (1994, p. 31). Este desaparecimento impõe reforma e redimensionamento ao
exercício do poder estatal soberano e de tudo que o compõe: inclusive, a parte do poder
estatal e da política de Estado constituída pelo poder punitivo e pela correlata política

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

criminal, respectivamente. Reformados e redimensionados os primeiros, igual se dá quanto


aos últimos. Tudo impacta sobremaneira no direito penal contemporâneo.
A tecnologia da informação, abertura das fronteiras, a competição econômica em
âmbito global e a desterritorialização das relações econômicas levam à internacionalização
do poder de regulamentação e, em especial, da intervenção penal em âmbito transnacional.
Diante dessa realidade, analisa-se de que modo o direito penal na era da
globalização pode intervir de maneira legítima para a proteção de bens jurídicos supra-
individuais globalmente reconhecidos. Além disso, busca-se verificar se o direito
brasileiro, diante das ameaças globais e transfronteiriças e da revisão do conceito de
soberania, pode assumir a tutela penal de bens jurídicos internacionalmente protegidos a
partir da aplicação imediata dos tratados internacionais no âmbito interno, de que forma
pode fazê-lo e com quais limites.

2. A globalização e a necessidade de tutela penal de bens jurídicos supra-


individuais: a formação de um Direito Penal de âmbito global

Desde a segunda metade do século XX, a economia mundial tem se desenvolvido


a partir da pauta estabelecida pelo discurso neoliberal, que é a renovação da doutrina
econômica liberal gestada no século XVI, mas que contempla os imperativos do mercado
globalizado.
Apoiada na chamada Cartilha de Washington, um conjunto de medidas
econômicas baseadas no ideário de Friedrich HAYEK3 e Milton FRIEDMAN4 e
endossadas pelo Fundo Monetário Internacional e países desenvolvidos, como os Estados
Unidos, e em desenvolvimento, como Rússia, China e Índia, a globalização econômica
desafia o poder de regulação dos Estados. Segundo a Cartilha, a economia é mais eficiente
quando os agentes econômicos atuam no contexto de pouca ou nenhuma regulação, de

3
Defensor do liberalismo econômico, Hayek sustenta que as forças da concorrência devem ser empregadas
como um meio de coordenar os esforços humanos (individuais). Para ele, só a livre concorrência pode
favorecer o ajustamento das atividades humanas umas as outras, sem necessitar de intervenção coercitiva e
arbitrária de alguma autoridade, o que colocaria em xeque a ideia de liberdade. Ver HAYEK, Friedrich
Auguste. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto Liberal, 1987.
4
Friedman retomou o ideário liberal de Hayek nos anos 1960, e defendeu de maneira aguerrida a liberdade
dos mercados e redução da interferência do Estado nas atividades humanas. Segundo o autor, cabe ao Poder
Público intervir na economia somente para garantir o bom funcionamento do mercado. A partir da defesa
intransigente da autorregulação do mercado Friedman forneceu o substrato teórico ao neoliberalismo,
encampado pelo FMI e pela Cartilha de Washington. Ver FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade.
São Paulo: Artenova, 1977.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

modo a permitir a mobilidade do capital e a exploração econômica em qualquer lugar do


planeta. Surgem os proprietários ausentes, extraterritoriais, nas felizes sínteses de
BAUMAN, que esclarece: “O capital pode sempre se mudar para locais mais pacíficos se o
compromisso com a ‘alteridade´ exigir uma aplicação dispendiosa da força ou negociações
cansativas. Não há necessidade de se comprometer se basta evitar.” (1999, p. 18). Para
tanto, o capitalista é o único agente econômico livre, desconectado do espaço e suas
imposições (inclusive legais, como direitos trabalhistas, obrigações fiscais, etc.). Cabe aos
acionistas “mover a companhia para onde quer que percebam ou prevejam uma chance de
dividendos mais elevados, deixando a todos os demais [fornecedores, trabalhadores] –
presos como são à localidade – a tarefa de lamber as feridas, de consertar o dano e se livrar
do lixo.” (BAUMAN, 1999, p. 15).
No bojo do movimento de mundialização do capital, o Estado-nação tem assistido
à relativização de seu poder soberano em virtude do surgimento de outros centros de poder
que com ele rivalizam, como as empresas transnacionais, cuja voracidade econômica
impõe a desregulamentação dos mercados, ao argumento de que somente dessa maneira os
ganhos econômicos seriam expressivos.
Para atrair investimento estrangeiro, necessário para dinamizar sua economia e
aumentar sua riqueza, que poderá promover o desenvolvimento nacional, o Estado tem
servido como fiador da autorregulação do mercado a partir, por exemplo, da eliminação de
barreiras de entrada e saída de dinheiro, da remoção de medidas que protejam ou
fomentem os produtos nacionais, de renúncias fiscais e da mitigação de direitos
econômicos e sociais de seus cidadãos. O declínio de tais direitos atende por um apelido
eufemístico: flexão ou flexibilização das relações de trabalho. Parafraseando BAUMAN,
um direito do trabalho líquido? No todo, trata-se de um projeto que pressupõe a redução de
um “custo-estado”, tido a priori como ineficiente e dispendioso.
A mobilidade do capital em nível global, expressão do modelo econômico atual,
foi alavancada pelo movimento de desregulamentação do mercado a partir dos anos 70 do
século XX (cuja causa principal foi a crise do petróleo de 1973, seguida por uma forte
onda inflacionária), pelo progresso tecnológico e pela transformação da organização do
trabalho operada pela tecnologia (CHESNAIS, 1996, P. 13-15). Dessa maneira, o capital
está apto a mover-se rapidamente de uma parte do mundo a outro, onde a mão-de-obra é
barata ou onde o investimento será mais rentável. Essa facilidade de deslocamento do
capital no cenário dos mercados autorregulados, aliada à concorrência econômica global,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

leva os agentes econômicos a adotarem práticas que são vistas como economicamente
eficientes, mas que são lesivas à sociedade, como, por exemplo, a degradação do meio
ambiente (vista, durante décadas, como “externalidade”, i.é, problema derivado da
atividade econômica cuja resolução é externo à unidade fabril) e a exploração do trabalho
escravo, notadamente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como é o caso
do Brasil)5.
A partir da perspectiva do mercado global autorregulado, os recursos naturais e o
trabalho humano passam a ser tratados como meras mercadorias (commodities passíveis de
variação de preço, dependendo das necessidades do mercado, e que podem ser compradas
onde forem mais baratas) e como um custo da atividade empresarial que precisa ser
aplacado. Com o intuito de “reduzir os custos operacionais” e aumentar o lucro, as
empresas descentralizam a produção, transferindo-a em parte ou no todo para locais onde
podem explorar recursos naturais e mão-de-obra livremente e, assim, ganhar
competividade no mercado: “livrar-se da responsabilidade pelas consequências é o ganho
mais cobiçado e ansiado que a nova mobilidade propicia ao capital” (BAUMAN, 1999, P.
16).
Da análise dessa realidade intrincada, PUREZA (2002, p. 240) identifica as
características do paradigma hegemônico da globalização econômica, entre elas: a
prevalência do princípio do mercado sobre o princípio do Estado; a total subordinação dos
interesses do trabalho aos interesses do capital; o protagonismo incondicional das empresas
transnacionais; e o enfraquecimento dos Estados nacionais.
O enfraquecimento do poder de regulação estatal, o intenso desenvolvimento da
tecnologia da informação, o movimento contínuo de abertura das fronteiras, a facilidade de
deslocamentos de pessoas e mercadorias e a acirrada competição econômica em nível
global: todos estes traços essenciais da economia se unem pelo signo da
desterritorialização e atingem diretamente a eficácia do poder punitivo estatal. O motivo é
claro: o Estado atua como agência de poder territorial, ao passo que a criminalidade
usualmente praticada no bojo da atividade empresarial – acompanhada das circunstâncias
elencadas - afeta bens jurídicos supra-individuais (como o meio ambiente, a organização
do trabalho, as relações de consumo) de maneira supraterritorial. Assim, há necessidade de
fundar um novo modelo persecutório de tais delitos. Principia pela cooperação interestatal.

5
Para ambos os aspectos, o documentário canadense The Corporation, de 2003, direção de Mark Achbar e
Jennifer Abbott, é de inestimável valia.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Os Estados têm conjugado suas forças por intermédio da adesão a tratados


internacionais multilaterais, pelos quais ficam obrigados a adotarem internamente
mecanismos de prevenção e repressão a condutas que colocam em risco os bens jurídicos
individuais homogêneos, coletivos e difusos, enquanto espécies de bens supra-individuais.
Além disso, se submetem à autoridade de organismos internacionais que controlam e
reprimem em âmbito global as práticas lesivas a tais bens, além de estabelecerem diretrizes
a serem seguidas pelos Estados e que se estendem aos agentes econômicos, como é o caso
da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Internacional do Trabalho
(OIT).
Ao dividir seu poder de regulação com outros Estados e até mesmo com
organismos internacionais, o Estado-nação se despede da visão clássica de soberania (vista
outrora como um poder absoluto e ilimitado), pois, diante da perda do domínio estatal
exclusivo e absoluto sobre dado território, o Estado passa a ser o mediador dos processos
de governo superiores e inferiores a ele. Nesse contexto, considerando o desaparecimento
da divisão entre as dimensões internas e externas da soberania, a territorialidade deixa de
ser uma característica definitiva de soberania para ser apenas uma condição do Estado
(MENAUT, 2001, p. 71).
Segundo FARIA (2001, p. 12-13), ainda que formalmente os Estados continuem a
exercer soberanamente sua autoridade sobre determinado território, em termos substantivos
eles já não conseguem estabelecer seus objetivos para si e por si próprios de maneira
ilimitada, visto que seu poder decisório encontra-se fragilizado em virtude dos movimentos
da sociedade global.
Assim, considerando os desafios da globalização e principalmente ante a
desterritorialização das relações econômicas, os Estados têm buscado a concertação de
seus esforços para aplacar as ameaças globais a bens jurídicos supra-individuais. Para
tanto, os Estados participam da construção de uma ordem jurídica internacional, à qual
voluntariamente se submetem e que impõe o dever de implementar em âmbito interno as
normas internacionais que impõem (pacta sunt servanda, consoante previsão do art. 27 da
Convenção de Viena do Direito dos Tratados, de 1969) a tutela penal de bens jurídicos
coletivos.
Todavia, no Brasil, ainda que se reconheça a legitimidade da proteção de bens
jurídicos supra-individuais (GUARAGNI, 2009, p. 52-65), a tutela penal a partir da

38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

aplicação imediata de tratados internacionais no âmbito interno encontra limites no


princípio da reserva legal.

3. A aplicação interna dos tratados internacionais em matéria penal e o


princípio da reserva legal: os caminhos legislativos e a ênfase ao uso de elementos
normativos integradores de normas definitórias nos tipos

A análise do texto da Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais


ratificados pelo Brasil permite constatar que, apesar do enfraquecimento do poder estatal
de regulação da economia e da onda “flexibilizante” que atinge os direitos sociais,
corolários da globalização econômica, a tutela penal na proteção de bens jurídicos supra-
individuais, além de respeitar a subsidiariedade e a proporcionalidade, se justifica a partir
da ideia da função social do Direito Penal vinculada à proteção de bens jurídicos, com o
fim de “garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura,
sempre e quando essas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-
sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” (ROXIN, 2009, p. 16).

O preâmbulo da Constituição deixa claro que no Brasil foi instituído um Estado


Democrático de Direito de perfil social, fundado na proteção dos direitos individuais e
sociais, para assegurar o bem-estar de todos, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna e harmônica. Do texto constitucional se
depreende que impende a todos, Estado e sociedade civil em cooperação (é o vetor
solidariedade que emana do preâmbulo e do art. 3º, I), agir para, em qualquer domínio da
vida social, inclusive na esfera econômica, evitar a vulnerabilidade do cidadão aos riscos
advindos da desregulamentação dos mercados, asseverados pela globalização econômica.

Nesse sentido, a incriminação de condutas que afetam bens jurídicos supra-


individuais, diuturnamente violados no âmbito das atividades empresariais, está em
consonância com a função do Direito Penal em um Estado democrático: “a tutela
equilibrada de todos os bens fundamentais, individuais e coletivos” (FRANCO, 2000, p.
268). E por “tutela equilibrada” deve-se entender como a intervenção penal justificada ante
a insuficiência dos outros mecanismos não-penais menos dispendiosos socialmente,
considerando que o Direito Penal é sempre uma intervenção drástica na esfera de liberdade
dos cidadãos, devendo atuar como “ultima ratio legis”.

39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

É claro que o Direito Penal não realizará sozinho a tarefa de por a salvo os bens
jurídicos coletivos, mas pode, respeitada a proporcionalidade da intervenção penal
(subsidiariedade), reforçar a tutela dos bens jurídicos socioeconômicos que se encontram
vulnerados na era da globalização econômica (PÉREZ, 1998, p. 63).
Segundo PALAZZO (1989, p. 86-87) e FERRAJOLI (2006, p. 37), o Direito
Penal só será considerado democrático se estiver permeado pelos valores constitucionais
da ordem jurídica em que está inserido. Diante disso, é possível afirmar que o
cumprimento dos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil que impõem
a tutela penal de bens jurídicos deve estar em harmonia com o princípio da reserva legal
(art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988). Esta imposição dá-se mediante
indicações convencionais criminalizadoras, nome paralelo às indicações constitucionais
criminalizadoras.
A indicação constitucional criminalizadora ocorre quando a Constituição elege
certos setores de criminalidade para impor-lhes tratamento jurídico mais gravoso. Foi o
que a Constituição de 1988 fez, v.g., para os crimes ambientais (art. 225, 3º), inclusive no
tocante à subjetividade ativa delitiva dos entes coletivos. Explicando o fenômeno da
indicação constitucional criminalizadora, LUISI sustentava que:

“...as Constituições contemporâneas tem (...) uma série de preceitos destinados a


alagar a incidência do direito criminal no sentido de fazê-lo um instrumento de
proteção de direitos coletivos, cuja tutela se impõe para que haja uma justiça
mais autêntica (...) Este tipo de normas constitucionais tem sido chamadas de
“cláusulas de criminalização”, sendo algumas expressas e inequívocas, e outras
facilmente deduzíveis do contexto das normativas constitucionais” (1991, p. 41).

No mesmo passo, PALAZZO assinalou:

“Enquanto as indicações constitucionais de fundo (...) são, ainda, expressão de


um quadro constitucional característico do Estado liberal de direito (...) as
vertentes orientadas no sentido da criminalização traduzem a expressão de uma
visão bem diversa do papel da Constituição no sistema penal: as obrigações de
tutela penal no confronto de determinados bens jurídicos (...) sempre de
relevância constitucional, contribuem para oferecer a imagem de um Estado
empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecução de maior número de
metas propiciadoras de transformação social e da tutela de interesses de
dimensões ultraindividual e coletiva, exaltando, continuamente, o papel
instrumental do direito penal com respeito à política criminal (...) As
manifestações mais unívocas no sentido da criminalização provêm das chamadas
“cláusulas expressas de penalização...” (1989, p. 103).6

6
Acerca do mesmo tema, v. a dissertação de Mestrado Mandados de Criminalização decorrentes de
tratados de direitos humanos, de JACEGUARA DANTAS DA SILVA PASSOS, junto à PUC-SP, de
01.10.11.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Com igual escopo, tratados e convenções contêm cláusulas expressas de


criminalização a que se vinculam os Estados signatários, obrigando-se a adequar a ordem
jurídica interna àquelas. Na mesma medida em que se desloca o eixo do poder dos Estados
nacionais para organizações internacionais supraestatais, mais se incrementa o fenômeno
do que denominamos indicações convencionais criminalizadoras.
Quanto à eficácia dos tratados e convenções internacionais, os respectivos atos de
ratificação, por si só, irradiam efeitos jurídicos no plano internacional e interno,
concomitantemente, isto é, o instrumento internacional ratificado obriga o Estado e seus
súditos nos planos internacional e interno.
Todavia, no caso brasileiro, não significa que o tratado passa a ter vigência
imediata com a sua ratificação. Após ser negociado pela missão diplomática, o tratado
deve ser enviado ao Congresso Nacional para apreciação (art. 49 da Constituição Federal
de 1988). Só após a tramitação do tratado no Legislativo, e sendo ele aprovado por meio de
um decreto legislativo, poderá, então, o tratado ser ratificado pelo Presidente da República.
Finalmente, depois de sua publicação (por meio de promulgação por decreto presidencial),
adquire vigência na ordem jurídica interna. Assim, verifica-se que no Brasil se faz
desnecessária, em tese, a edição de lei interna para dar vigência ao tratado.
Independentemente da compreensão que se tenha acerca da primazia ou não do
Direito Internacional sobre o direito interno ou da separação entre as duas ordens jurídicas,
no caso de tratado que verse sobre matéria penal, o seu cumprimento no plano interno
encontra restrições impostas pelo princípio da reserva legal, como corolário de um Estado
de Direito fundado na garantia da esfera de liberdade individual, representada pelo núcleo
duro dos direitos fundamentais dos cidadãos.
O princípio da reserva legal deve ser compreendido como filtro de contenção ao
poder punitivo do Estado, mesmo quando o exerça em cumprimento a tratados
internacionais aos quais se obrigou, no sentido de aderir a um movimento global de
repressão a certas práticas lesivas, de caráter transfronteiriço, a bens jurídicos supra-
individuais.
Por isso, a fim de atender ao que preconiza o texto constitucional, cabe ao
legislador pátrio fazer uso de um destes dois caminhos: a) desencadear o processo
legislativo atinente à criação de normas penais incriminadoras (criminalização primária),
quando inexistente no ordenamento jurídico interno o crime indicado na normativa

41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

internacional; b) incorporar o texto dos tratados internacionais aos tipos penais por meio da
técnica legislativa do uso de elementares normativas jurídicas, quando tais tipos abrigarem
a indicação criminalizadora derivada da normativa internacional, ainda que parcialmente.
Em atenção à segunda opção, cabe sintetizar os contornos da técnica legislativa
sugerida. O trabalho classificatório dos elementos do tipo objetivo deu-se no marco do
neokantismo, que reorientou o direito penal para o universo dos valores e intensificou os
estudos de teoria da norma. Aqui, MAYER, GRÜNHUT e MEZGER são referências
obrigatórias.
Em 1915, o trabalho de MAYER foi fundamental para a futura compreensão da
tipicidade como juízo de desvalor, enquanto “indício da antijuridicidade” (2007, p. 64) e
não como mera descrição do comportamento interessante para o direito penal. Apontava a
existência frequente de elementos normativos nos tipos (como “coisa alheia”, no furto),
evidenciando com isso a dificuldade de conceber o tipo como estrutura analítica avalorada,
na forma proposta por BELING (1944, p. 55-56).7 Daí derivou a noção de que os escalões
analíticos da tipicidade e antijuridicidade não são independentes, embora separados,
mantendo uma relação “como a fumaça e o fogo” (MAYER, 2007, p. 12), alegoria que se
tornou famosa na história da dogmática penal. A tipicidade atua como indiciária da
ilicitude8 (servindo como “fundamentos do reconhecimento da antijuridicidade” (MAYER,
2007, p. 227), ou sua ratio cognoscendi) nos tipos que contém somente elementos
descritivos; quando contêm elementos normativos, que “não lhe são autênticos”, mas
“impróprios”, o tipo se mostra como ratio essendi da ilicitude (MAYER, 2007, p. 230-
231).9
De GRÜNHUT (um pouco antes de MEZGER) veio a contraposição entre
elementos factuais e normativos: atento aos limites do uso da liberdade, pelos juízes, no ato
decisório, o autor exortava-os a sentirem-se como um “servidor do ordenamento jurídico”,
e não como seus artífices, mesmo quando o legislador deixasse-lhes espaços de liberdade
valorativa (GATTA, 2008, p. 31). Os elementos factuais, referidos “imediatamente a
objetos do concreto mundo real, descrevem uma ação, ou representam o desenvolvimento
de um evento” (GATTA, 2008, p. 32). Opor-se-iam aos normativos, voltados a “estruturas
de pensamento da ordem normativa positivada” (GRÜNHUT apud GATTA, 2008, p. 31),

7
Ainda Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 281.
8
Curiosamente, MAYER (2007) considerava que, neste caso, o tipo continuava descritivo. Porém, um tipo
que “indicia ilicitude” não contém mera descrição, mas já encerra juízo de valor. Logo, valora.
9
Ver também ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 281.

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subdivididos em “normativos especificamente jurídicos”, em que o juízo de valor é


atingido a partir de categorias provenientes de outros ramos do direito e “normativos
gerais”, com “valoração extrajurídica” (GATTA, 2008, p. 33).
Já o catálogo classificatório dos elementos do tipo elaborado por MEZGER é
multicitado: a) descritivos, em que o legislador faz “descrições objetivas de determinadas
situações e acontecimentos (...) perceptíveis com os sentidos (...) que o juiz deve verificar
mediante a cognitio” (1935, p. 210). O verbo matar, no art. 121 do Código Penal, seria
exemplo de elemento descritivo objetivo, eis que a ocorrência da morte é aquilatada pelos
sentidos, bastando o tato, a visão, etc.. A expressão “para consumo pessoal”, art. 28 da Lei
11.343/06, exemplificaria um elemento descritivo subjetivo10, já que MEZGER (1955, p.
147) também colocava a descrição de estados psíquicos do sujeito ativo como elementos
descritivos, só que subjetivos; b) normativos, em que a descrição pura e simples do
elemento típico não seria bastante, exigindo-se “um juízo ulterior relacionado com a
situação de fato”. São elementos cuja constatação depende de cargas axiológicas ou juízos
de valor. Quando esses juízos derivam: b.1) de pautas de comportamento social, tábuas de
valores sociais, “normas11 ou critérios vigentes que não pertencem ao domínio jurídico
verdadeiro e próprio”, são elementos normativos culturais (ato obsceno, art. 233, CP) ou
“elementos de valoração cultural”; b.2) de outras leis, tem-se um elemento normativo
jurídico (“funcionário público” no crime de peculato, art. 312, CP, cuja definição é dada
pelo art. 327, CP) ou “elementos de valoração jurídica”, discretamente diversos dos
“elementos judiciários de percepção sensível”, próprios de crimes de “expressão”, como
“injúria, falso juramento, ameaças, delitos de fraude” (MEZGER, 1935, p. 212).
Frise-se que o elemento normativo jurídico eventualmente – não necessariamente
- remete a uma norma definitória, que contém “definição legal” e “é só formalmente

10
Na verdade, ERIK WOLF (apud ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas,
1997, p. 282) criticava a existência de puros elementos descritivos, no sentido acima explicitado. É que todos
os elementos, em situações limite, exigem juízos de valor. A definição de quando ocorre um “matar”, por
exemplo, exige prévia definição cultural ou mesmo jurídica de quando a vida acaba. Assim, uma pessoa com
morte cardíaca pode ser vítima de homicídio num país em que a morte seja encefálica e, não obstante a morte
cardíaca, suas funções vitais sejam mantidas com aparelhos. Também definir o que é consumo em
determinadas situações exigiria juízo de valor. Outro exemplo de MEZGER (op. cit., p. 147), “homem”,
exige juízos de valor, por ex., em situações em que houve cirurgia para troca de sexo, ou transexuais com
registros civis alterados. Todavia, com vistas à crítica de WOLF, o próprio MEZGER (Diritto Penale. Trad.
Filippo Mandalari. PADOVA: Cedam, 1935, p. 211) assinalou a conveniência de destacar elementos
descritivos para diminuir o campo de juízos de valor, por razões de direito público, já que tais juízos são
passíveis de “indeterminação e subjetivismo, que frequentemente não são isentos de perigo”.
11
Tais normas podem ser de raiz técnica ou científica, cf. MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale: parte
generale. 6ª. ed. Padova: CEDAM, 2009, p. 66.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

diversa daquela incriminadora, pois na realidade representa um fragmento dela”12. Fixa


definições legais de um objeto. Pode ter natureza penal ou extrapenal; em ambos os casos,
a implicação é de que esta norma definitória integra o tipo. É o caso do art. 327, CP, já
reportado: o conceito de funcionário público, norma penal não incriminadora explicativa
integra, para todos os efeitos, os tipos penais exigentes do intraneus como sujeito ativo. Da
mesma forma, o conceito extrapenal de tributo, do art. 3º do Código Tributário, integra o
art. 1º da Lei 8.137/90, quando tipifica a redução ou supressão de tributo. Porém, nem
sempre o elemento normativo jurídico remete a normas definitórias: o próprio art. 1º da Lei
9137/90, quando remete a cada tributo em espécie, não é integrado pela normatização
respectiva. Isto é, a criação de um tributo (ou sua extinção) não toca o tipo legal13.
Assinale-se, do exposto, um dado fundamental: as normas definitórias avultam em
importância à medida que podem derivar de documentos internacionais, tratados ou
convenções das quais o Brasil seja signatário.
Em suma, as elementares normativas do tipo – que dentro de todo o catálogo
acima desenhado são os que ora relevam - transferem para o aplicador da norma o
exercício do juízo de valor sobre determinada circunstância vinculada ao fato descrito
como delituoso pela norma penal pátria. Quando normativas jurídicas, a respectiva
apreensão de significado exige uma especial valoração da situação de fato pelo operador
do Direito, apoiada no aspecto de que são elementares que existem no mundo do Direito
(ZINI, 2012, p. 186).
Garante-se, por ambos os caminhos – “novatio legis” incriminadora ou
incorporação de elementares normativas jurídicas a tipos já existentes, materialmente
coincidentes com as indicações convencionais criminalizadoras -, a preservação do

12
GATTA, Gian Luigi. Abolitio Criminis e successione di norme ‘ integratrici´: teoria e prassi. Milano:
Guiffrè, 2008, p. 93. O autor chama estas normas de “realmente integradoras”, grupo a que pertencem
também as que integram a norma penal em branco. Porém, entende que os tipos, ao convocarem-nas, não o
fazem mediante elementos normativos. Estes, quando compõem o tipo, reclamam normas “não integradoras”.
Optamos por uma via diversa: ora os elementos normativos do tipo reclamam definições jurídicas penais ou
extrapenais (normas definitórias), ora reportam-se a contextos delineados por outras normas que, porém, não
integram o tipo. Porém, sempre são elementos normativos do tipo. Noutros termos: quando um elemento do
tipo convoca uma definição dada em lei diversa, continua sendo normativo. Trata-se de detalhe em relação ao
consistente trabalho do professor de Milão que, de toda forma, identifica na questão da integração ou não de
normas externas ao tipo penal um elemento crucial para definir consequências acerca da incidência do
princípio da reserva legal.
13
Ficariam entre os descritivos e normativos os “elementos cognoscitivos de valoração”, próprios de
situações nas quais a “experiência” e o “conhecimento experimental” permitem “uma determinada
valoração”, como o juízo sobre “a verdade ou inverdade de uma afirmação”, conforme MEZGER, Edmund.
Diritto Penale. (trad. Filippo Mandalari). PADOVA: Cedam, 1935, p. 212.

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princípio da reserva legal e o cumprimento dos tratados internacionais a que o Brasil se


submeteu. Caminhos que, segundo a panorâmica que segue, ora são observados, ora não.

4. O legislador penal brasileiro como caminhante

Traçadas as duas trilhas que se antepõem ao legislador, cumpre verificar se ambas


apresentam as pegadas do legislador brasileiro, ao tutelar penalmente bens jurídicos supra-
individuais ofendidos rotineiramente no bojo da atividade econômica globalizada. São
eles: a) a organização do trabalho, no aspecto da liberdade como direito fundamental dos
trabalhadores ofendida na redução à condição análoga a de escravo, prática criminosa
facilitada pela “flexibilização e remoção das cláusulas sociais” (GRAU, 2003, p. 42), em
prol da ampliação da competitividade do mercado; b) a paz pública em relação às
organizações criminosas (sobremaneira encravadas no universo negocial, mesclando
atividades lícitas e ilícitas com marcada supranacionalidade), cujo sucesso da atuação
depende de “territórios privilegiados onde as transações de enormes dimensões podem
ocorrer sem nenhuma forma de regulamentação ou de controle” (FRANCO, 2000, p. 262)
(a exemplo dos paraísos fiscais); c) a administração pública, sujeita a ataques corporativos
voltados à corrupção dos corpos funcionais estatais para obtenção de licenças indevidas,
vitórias em licitações dirigidas14, ambiente em que o crime é “componente necessário no
desenvolvimento das práticas negociais, abrindo oportunidades agregadas”, cumprindo a
corrupção “uma função indispensável para a consecução dos objetivos de grandes grupos
econômicos” (BAIGUN; BISCAY, 2006, p. 16).
A proteção da organização do trabalho, no particular âmbito da liberdade laboral,
dá-se através do recurso aos elementos normativos jurídicos do tipo enquanto técnica
legislativa. Signatário das Convenções n° 29 e 105 da OIT, que versam sobre a exploração
de trabalho escravo, o Brasil incorporou o texto desses tratados ao tipo penal do artigo 149
do Código Penal (crime de redução à condição análoga a de escravo) 15, fazendo constar

14
Neste sentido, PADILHA FILHO, Valmor Antonio. Corrupção e a atividade empresarial. Dissertação
apresentada junto ao Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.
Curitiba: 2010, p. 152.
15
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei
nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela
Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

como elementos normativos jurídicos do tipo as expressões trabalhos forçados, jornada


exaustiva e condições degradantes de trabalho.16
A Convenção n° 29 sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório de 1930, ratificada
pelo Brasil em 1957, impõe a abolição do trabalho forçado ou obrigatório e, no seu artigo
25, obriga a repressão penal a esse tipo de prática, forjando uma indicação convencional
criminalizadora. Em seu art. 2º, determina que, para os fins da Convenção, a expressão
“trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um
indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de
espontânea vontade. No mesmo sentido é a Convenção n° 105 da OIT, de 1957, ratificada
pelo Brasil em 1965. Desse modo, a atual redação do art. 149 do Código Penal dá às
Convenções efetivo cumprimento, sem violar o princípio da reserva legal. Naturalmente,
para ser válida, a exegese do dispositivo penal em questão, realizada pelo aplicador do
direito, fica condicionada a atentar para a convencionalidade das elementares típicas
citadas.
Situação diferente é a que se observa com a Convenção de Palermo (Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em
15 de novembro de 2000, e ratificada pelo Brasil em 2003), no que concerne à obrigação
de repressão penal a organizações criminosas, imposta pelo art. 5º da Convenção – também
aqui, uma indicação convencional criminalizadora.
Ainda que o artigo 2º da Convenção de Palermo definisse organização criminosa,
não se encontrava no direito brasileiro qualquer tipo penal incriminando a formação de
organizações criminosas ou a participação nelas. Por essa razão, o Supremo Tribunal
Federal compreendia que, em razão do princípio da reserva legal, a Convenção de Palermo
não poderia ter eficácia direta no plano interno, de modo que a repressão às chamadas

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
16
Antes da entrada em vigor da Lei n° 10.803/2003, o artigo 149 do Código Penal contava com a seguinte
redação: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

organizações criminosas deveria ser feito a partir da subsunção, quando possível, ao tipo
penal do artigo 288 do Código Penal.17
Anote-se que, mesmo com a edição da Lei n° 12.694, publicada em 25 de julho de
2012, esta exegese tende a ser mantida. Afinal, o texto legal previu norma definitória de
organizações criminosas no art. 2º. Porém, não o fez mediante a previsão de tipo penal
(norma penal incriminadora), de maneira que o mandado derivado da Convenção continua
sem específica contemplação na normativa penal interna.
No que toca à Convenção sobre Combate da Corrupção de Funcionários Públicos
Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, ratificada pelo Brasil e promulgada
pelo Decreto n° 3.678/2000, optou o legislador brasileiro por se valer da técnica de uso de
elemento normativo jurídico no tipo para dar cumprimento à obrigação imposta pelo art. 1º
de reprimir penalmente as condutas previstas no tratado (também uma indicação
convencional criminalizadora).
Ao editar a Lei n° 10.467/2002, o legislador pátrio fez uso dos dois caminhos
acima delineados. Inseriu no Título XI (“Dos crimes contra a Administração Pública”) do
Código Penal o Capítulo II-A (“Dos crimes praticados por particular contra Administração
Pública estrangeira”), contendo novos tipos penais. Em segundo lugar, incorporou neles -
os artigos 337-B e 337-C - elementos normativos reproduzidos pela mencionada
Convenção (inclusive no que toca à definição de “funcionário público estrangeiro”,
constante do artigo 337-D). Atendeu, dessa forma, à obrigação de dar cumprimento à
norma internacional e preservou a reserva legal em matéria penal.

5. Conclusões

A globalização tem trazido aos Estados o desafio de proteger bens jurídicos supra-
individuais das ameaças globais e transfronteiriças. A concorrência de centros de poder
privados tem exigido do Estado uma revisão do conceito tradicional de soberania e um
novo modo de regulação. A intervenção penal através da aplicação de tratados
internacionais que impõem a repressão e prevenção de ofensas a bens jurídicos supra-

17
Ver os precedentes Extradição 633 (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 06/04/2001), Habeas Corpus 88.914
(Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 05/10/2007), Habeas Corpus 92.958 (Rel. Min. Menezes Direito, DJ
01/08/2008) e Habeas Corpus 94.404 (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/08/2008). Tese também defendida
por parte da doutrina brasileira, conforme ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, quadrilha e
organização criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p 44-49.

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individuais pode ser a maneira mais eficaz para esses fins. Para tanto, porém, o princípio
da reserva legal não pode ser sobrepujado, pena de haver a derrocada do direito penal de
cunho democrático.
Dessa maneira, indicações criminalizadoras contidas em normativas
internacionais (tratados, convenções) das quais o Brasil seja signatário implicarão na
necessária adoção de dois caminhos alternativos, destinados a conciliar a obrigação de
criminalização com o princípio da reserva legal. (A) O primeiro é a criação de novos tipos
penais (processo de criminalização primária, mediante “novatio legis” incriminadora). É a
alternativa adequada para indicações convencionais sem qualquer contemplação pretérita
no ordenamento jurídico interno. (B) Outro caminho é constituído pela incorporação de
elementos normativos jurídicos nos tipos que já tratem, total ou parcialmente, da conduta
cuja criminalização é indicada na normativa internacional. Nesta hipótese, os elementos
normativos jurídicos devem coincidir com as redações convencionais internacionais,
sobretudo quando estas contêm normas definitórias de conceitos, institutos, etc. O caráter
valorativo dos elementos normativos do tipo torna eficazes, no plano do direito interno, os
tratados internacionais em matéria penal, ratificados pelo Brasil. Além disso, os elementos
normativos dos tipos adaptam-se à novas definições, necessárias tanto quanto mais
flexíveis são os contornos dos bens supra-individuais protegidos e, mesmo, dos modos de
ofendê-los no bojo da atividade empresária.
Ambos os caminhos apresentam-se como adequados para que o Estado brasileiro
cumpra a obrigação de dar eficácia no plano interno às normas internacionais a que está
sujeito, sem violar o princípio constitucional da reserva legal, que deve ser sempre
invocado por conta do grau de restrição aos direitos fundamentais que representa a
imposição de uma sanção penal.

Referências

BAIGÚN, David e BISCAY, Pedro. Actuación preventiva de los organismos estatales y no


estatales en el ámbito de la corrupción y la criminalidad económica. In BAIGÚN, David e
GARCIA RIVAS, Nicolás (org.). Delincuencia económica y corrupción: su prevención
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50
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A TRANSFIGURAÇÃO DA CONCEPÇÃO DE SOBERANIA COMO REFLEXO DA


SOCIEDADE GLOBAL DE RISCOS –O que o devir do século XXI reserva para o Direito
Penal?
THE TRANSFIGURATION OF SOVEREIGNTY CONCEPTION AS CONSEQUENCE
OF THE WORLD RISK SOCIETY - What the becoming of the XXI century promises for the
criminal law

Adriana Maria Gomes de Souza Spengler1


RESUMO
O momento peculiar pela qual a chamada Sociedade global de riscos passa, provoca a
necessidade de readequação de um marco ideológico básico do Estado Moderno, a concepção
de Soberania. Não se trata de seu enfraquecimento, muito embora vários autores assim
coloquem, mas de uma verdadeira transfiguração para melhor se adequar aos anseios de uma
Sociedade ávida por segurança. O presente artigo busca, a partir das reflexões da doutrina
especializada, um elo de coerência para confirmar que transfiguração, ou seja, mudança de
contornos, de objetivos também terá reflexo no Direito Penal, tido, por alguns, como último
reduto de Soberania dos Estados.

PALAVRAS-CHAVE: Soberania; transfiguração; sociedade do risco; direito penal

ABSTRACT
The peculiar moment in which the Society called global risk passes today causes the need for
readjustment of a basic ideological framework of the modern state, the concept of
sovereignty. Thus, this is not a weakness, although several authors but well put a real
transfiguration to better suit the desires of a society eager for safety. This article focuses, from
the reflections of specialized doctrine, in perform a link to confirm the consistency of that
transfiguration, namely, its changing contours, of goals also will be reflected in the Criminal
Law, considered by some as the last redoubt of State Sovereignty.

Key words: Sovereignty; risk society; criminal law

1
Doutoranda em Ciências Criminais na Universidade do Minho, UMINHO, Portugal. Mestre em Ciências
Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI. Especialista em Direito Penal Empresarial pela
Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI.

51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

INTRODUÇÃO

A partir da perspectiva da sociedade pós-industrial, tendo como base a teoria da


sociedade do risco, busca-se analisar a atual crise do princípio da soberania frente às
modificações do cenário mundial operadas nas últimas décadas.

A sociedade industrial e o desenvolvimento da idéia de Estado nacional estão em


xeque no novo contexto global de uma sociedade tecnológica e de riscos que superam a idéia
de territorialidade tipicamente relacionada ao conceito de soberania.

Neste novo formato de sociedade, ao contrário da racionalidade controladora da


sociedade industrial, aflora a incerteza, a ambivalência.

O Direito Penal, intacto refúgio de Soberania, diante desse novo paradigma pós-
moderno poderá acarretar numa transfiguração da própria Soberania nacional que, muito
embora a princípio pareça um enfraquecimento, é na verdade, uma mudança impelindo os
Estados para além de suas fronteiras na proteção dos chamados riscos globais.

O objetivo geral deste trabalho é efetivar um estudo dos atuais fatores que a
Sociedade do risco pode ocasionar ao longo do Século XXI no Direito Penal determinando
uma reavaliação racional de sua função.

1. O poder soberano a partir da concepção de soberania em Jean Bodin

Na França do final do século XVI, pairava um clima hostil com relação à supremacia
do poder político. Bem como pela disputa religiosa entre católicos e protestantes em prol da
unicidade da religião, pois ambos não aceitavam a dualidade e exigiam um posicionamento do
rei. Em 1573, o jurista François Hotman divulgou um estudo denominado Franco-Gália, onde
contestou o fortalecimento do poder real em favor de um governo misto, no qual, a
aristocracia seria a intermediária entre a autoridade real e a autoridade popular. Em defesa ao
Poder absoluto do rei estava um partido denominado “Políticos” e em conformidade aos seus

52
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ideais encontrava-se o magistrado e professor de Direito, Jean Bodin2. Na história do


pensamento político, Jean Bodin ficou conhecido como o primeiro pensador a estabelecer o
conceito de soberania3.

A principal obra de Bodin é Os seis livros da República4, escrita em 1576. O


primeiro aspecto importante a considerar, é o que se refere ao termo República. Embora a
palavra Estado já se fizesse presente no século XVI na literatura política/jurídica, para Bodin,
o termo República significava “um reto governo, de várias famílias, e do que lhe é comum,
com poder soberano”5. Nesta obra, Bodin expõe claramente seu objetivo: fortalecer o poder
do rei. Caberia ao monarca o poder soberano, sendo este perpétuo e absoluto, o único
responsável pela organização política da República6. Por isso, ele é considerado um dos
principais teóricos do absolutismo7.

A sujeição às leis naturais, que são as leis humanas comuns a todos os povos
garantiria que o soberano não possuísse um poder arbitrário. A lei divina também é
fundamental na teoria bodiniana, porque o detentor da soberania está a ela submetido e deve,
no exercício de seu poder, observá-la8.

O termo Soberania, portanto, surge no fim do século XVI, juntamente com o Estado
Moderno, sendo este, decorrente da necessidade de neutralizar um contexto de instabilidade
política, econômica e social presente no final da Idade Média. Neste sentido, o Estado estava
personificado no monarca, ou seja, o poder soberano do Estado se estendia à pessoa do

2
FERRER, Walkiria Martinez Heinrich; SILVA, Jacqueline Dias da.A soberania no processo de globalização:
tradicionais conceitos e seus novos paradigmas. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO,
Maria de Fátima (org.). Direito Empresarial Contemporâneo. São Paulo:Arte e Ciência Editora, 2007
3
RISCAL, Sandra Aparecida. Educação, História e Estado - a educação pública na obra de Jean Bodin
(1530-1596). In: II Congresso Brasileiro de história da Educação - História e Memória da Educação Brasileira,
2002, Natal. Anais do II Congresso de História da Educação - História e Memória da Educação Brasileira. Rio
de Janeiro: Editora Núcleo de Arte e Cultura da UFRG, 2002. V. I
4
O eixo desta obra é a definição jurídica de soberania, cujos alicerces eram a hierarquia e a ordem, baseadas na
justiça que estava amparada no direito natural e divino do rei.
5
COLOMBO, Silvana. A relativização do conceito de soberania no plano internacional. Revista Eletrônica
do CEJUR, Curitiba, v. 1, n. 3, 2008, p.149-167. Itálico conforme original.
6
FERRER, Walkiria Martinez Heinrich; SILVA, Jacqueline Dias da.A soberania no processo de globalização:
tradicionais conceitos e seus novos paradigmas. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO,
Maria de Fátima (org.). Direito Empresarial Contemporâneo. São Paulo:Arte e Ciência Editora, 2007
7
A construção sistemática do conceito de soberania e a ideia de absolutização e perpetuidade desta, é atribuída a
Jean Bodin. O adjetivo absoluto significa um poder ilimitado no tempo, que não sofre restrições nem pelo cargo
e nem por outro poder. Já o adjetivo ilimitado, significa que a soberania não reconhece nenhum outro poder
acima de si.
8
Conforme BARROS, Alberto Ribeiro de. Direito natural e propriedade em Jean Bodin.Trans/Form/Ação,
São Paulo, v. 1, n. 29, 2006, p. 34, entre estas, estaria o direito de propriedade, uma vez que o soberano não
poderia se apossar dos bens de seus súditos. Neste sentido, o poder absoluto seria aquele acima das leis civis.

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monarca. Situação que pode ser sintetizada em uma frase do rei da França, Luís XIV: “o
Estado sou eu”, sendo expressão máxima da teoria do direito divino do poder do monarca e do
absolutismo.9

Como visto, a idéia do Poder absoluto de Bodin está ligada à sua crença na
necessidade de concentrar o poder totalmente nas mãos do governante; o Poder soberano só
existe quando o povo se despoja do seu Poder soberano e o transfere inteiramente ao
governante. Para esse autor, o Poder conferido ao soberano é o reflexo do Poder divino, e,
assim, os súditos devem obediência ao seu soberano, mas com a evolução da Sociedade, a
concepção de Poder foge dos atributos de outrora e, segundo Cesar Luiz Pasold, o “poder
entendido como a produção dos resultados pretendidos é legítimo quando os meios utilizados
e os efeitos obtidos pelo detentor do poder correspondem aos valores dos que lhe conferiram
o poder”10

O conceito de Soberaniasempre causou, e ainda hoje causa inúmeras divergências.


As definições elaboradas no Século XIX, por exemplo, traziam com muito mais frequência o
termo “ilimitado” associado à idéia de Soberania. Blackstone definiu Soberania como "a
autoridade suprema, irresistível, absoluta, ilimitada"11 identificou-a como "o Poder originário,
absoluto, ilimitado e universal sobre os súditos individualmente e sobre as associações de
súditos"

O Estado moderno evolui de um modelo de Estado administrador/fiscal, com


Soberania e limites territoriais definidos para um Estado nacional, posteriormente
democrático. Marca também característica é a identidade simbólica e coletiva dos cidadãos
que vivem no âmbito territorial desta forma de sociedade política.12

9
FERRER, Walkiria Martinez Heinrich; SILVA, Jacqueline Dias da.A soberania no processo de globalização:
tradicionais conceitos e seus novos paradigmas. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO,
Maria de Fátima (org.). Direito Empresarial Contemporâneo. São Paulo:Arte e Ciência Editora, 2007.
10
VIVIANI, Maury Roberto. Soberania e Poder do Estado no contexto da Globalização In PASOLD, Cesar Luiz
(org). Primeiros Ensaios de Teoria do Estado e da Constituição. Curitiba:Juruá, 2010.p.78. Itálico conforme
original
11
BLACKSTONE citado por PAUPÉRIO in PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder:
Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed.,vol.2, 1997.p.06.
12
VIVIANI, Maury Roberto. Soberania e Poder do Estado no contexto da Globalização. PASOLD,Cesar Luiz
(org). Primeiros Ensaios de Teoria do Estado e da Constituição. Curitiba: Juruá, 2010. p.79.

54
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Para Luigi Ferrajoli, Soberania é o conceito, ao mesmo tempo político e jurídico, em


que confluem todos os problemas e contradições da teoria positivista do Direito e do Estado
Constitucional Moderno13

Para Hermann Heller uma característica do Estado Soberano é justamente a primazia


sobre o Direito, dado que o Estado soberano tem reclamado para si, e com êxito, o monopólio
da coação física legítima, convertendo-se em unidade social suprema de decisão e ação frente
às demais instâncias autônomas, reserva-se, por motivos de conveniência, a denominação de
direito àquela ordenação normativa social que se estabelece e assegura por meio dos orgãos
especiais da organização estatal14.

Os novos contornos da Sociedade pós-industrial, a qual será adiante exposta,


entretanto, desencadearam problemas de difícil enfrentamento para um Estado que, isolado
em sua Soberania e em sua ordem jurídica, se vê compelido a solucionar os novos desafios de
forma conjunta com outros Estados e a recepção com a consequente proteção dos riscos pelo
Direito Penal se torna ainda mais instigante, como se verá no decorrer deste artigo.

2. A sociedade global de riscos como novo paradigma

No entender de Boaventura de Souza Santos15 a sociedade está posta em cheque por


novos paradigmas16, e o paradigma da modernidade só estaria a perdurar como dominante em
função da inércia histórica.

13
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Trad. Andréa Greppi. Madrid: Alianza,
1999.p.125. Tradução livre.
14
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo : Mestre Jou,1968.
Título original: Staatslehre.
15
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição
paradigmática, vol.1, 3ªed. São Paulo:Cortez, 2001. p.15 (prefácio)
16
O conceito de paradigma vem da filosofia da ciência de KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções
científicas. São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 130. Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita
explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da
tematização e explicitação dos aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de
mundo, consubstanciados, no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais,
que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a
nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são
validas à medida que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo
prevalentes e tendencialmente hegemrminônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em
contextos determinados.

55
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Nesse contexto, a teoria da Sociedade do Risco17 formulada pelo teórico alemão


Ulrich Beck defende que houve uma ruptura dentro da modernidade que a afastou
da sociedade industrial clássica e fez surgir algo diferente: a sociedade (industrial) do risco.
Esta ruptura seria tão profunda quanto aquela exercida pela sociedade industrial sobre a
organização feudal. A sociedade industrial criticou as práticas sociais típicas da tradição, e a
sociedade de risco, por sua vez, questiona as premissas da sociedade industrial. Estes dois
momentos são chamados por Beck, respectivamente, de modernização da tradição (ou
modernização simples) e modernização da sociedade industrial (ou modernização reflexiva).
Nesta fase de desenvolvimento da sociedade moderna os riscos sociais, políticos, econômicos
e industriais tomam proporções cada vez maiores escapando da alçada das instituições de
controle e proteção da sociedade industrial.

Os problemas da sociedade industrial de risco foram gerados pelo próprio avanço


técnico-econômico. O processo de modernização volta-se para si mesmo como tema e
problema através da reflexividade.

A análise da produção dos riscos18 e seus desdobramentos constituem-se como


determinantes na mudança paradigmática na Sociedade, o processo é complexo, sujeito a
constantes (re) avaliações e transformações em que o desenvolvimento democrático destrona
o saber científico e a ação política de seus respectivos monopólios e, por fim, caracteriza-se

17
Explica Alexandre Werneck, sociólogo e pesquisador de pós-doutorado do Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana da UFRJ,o horizonte de "Sociedade de risco" é o da “sociedade industrial”, ou seja,
ele parte de uma tese sobre a própria modernidade (e, portanto, sobre a própria sociologia), afirmando o papel de
protagonista – que classicamente é apontado por vários autores, como Durkheim – da industrialização na
diferenciação entre os mundos pré-moderno e moderno. E a extensão mais poderosa disso seria o poder da
tecnologia e do desenvolvimento industrial nas próprias relações sociais. Beck afirma que elas foram
profundamente transformadas por seu próprio desenvolvimento, que produziu o risco global. E se na década de
1980 em que o sociólogo escreveu seu livro o cerne desse desenvolvimento era a produção centrada na
transformação de formas de energia (as grandes industrias do século XX são a do automóvel, a da produção de
recursos energéticos e a militar), nesse quarto de século desde o lançamento original, essa transformação se
mudou para o plano informacional, para uma, digamos, sociedade (digital) de risco. São as tecnologias
comunicacionais, a internet, a telefonia móvel, etc. Tudo configurando um conjunto de “incertezas fabricadas”
(aquelas criadas pelo próprio movimento da vida social) ainda mais intensas, que se não aparecem
concretamente descritas no livro, diante dele adquirem uma nova luz.
18
Ulrich Beck denominou em 1986, a sociedade em que vivemos de “sociedade do risco”. Outros autores
conceberam diferentes expressões como: “sociedade pós-moderna”, “sociedade da informação”, “sociedade
tecnológica”, “sociedade pós-industrial”. Anthony Giddens, refere-se a uma “modernidade amadurecida”. O uso
dessas diferentes expressões para designar a sociedade atual justifica-se desde que se queira dar ênfase a uma ou
algumas características, já que estas são as mesmas, independentemente da variação nominativa. Todas, têm em
comum a conexão com a idéia de risco global assim como Beck sustenta.

56
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pela relativização do saber científico e da ação política formando um ciclo vicioso na


produção dos riscos.19

O teórico alemão não olvida a existência de diferenças entre níveis sociais distintos
no tocante à exposição aos riscos na vida cotidiana, nos estudos, saúde, e demais aspectos da
vida em geral – aludindo aos riscos específicos de classes. Percebe, da mesma forma, a
existência de novas desigualdades internacionais, registrando neste sentido que as indústrias
geradoras de maior risco se deslocaram para os países em que se pagam os menores salários20
.

Segundo Beck os riscos atuais se diferenciam pela globalização de sua ameaça e por
suas causas modernas, são os riscos da modernização. É um produto global da maquinaria do
progresso industrial e são acentuados sistematicamente por seu desenvolvimento posterior.
São problemas decorrentes do próprio progresso científico. Dessa forma o processo de
modernização se torna reflexivo, e torna a si mesmo como tema e problema.21

Além disso, os riscos também adotaram feições bastante particulares quanto às


proporções em que se apresentam. Uma atitude ou comportamento tomado em um
determinado local do planeta pode ter suas consequências estendidas a uma grande quantidade
de países, ou até mesmo, somente se fazerem sentir em local diverso daquele em que foi
praticada sua ação desencadeadora.

Desse modo, as populações locais têm que se preocupar com as ações praticadas em
seus territórios, mas também com as executadas em qualquer outra parte do mundo. Mesmo
em relação aos supostos riscos aos quais não deu causa, a população se sente na obrigação de
ficar alerta. Tem lugar aqui o conceito utilizado por Ulrich Beck22 de glocalidade, que agrega
a possibilidade de riscos simultaneamente sentidos em perspectiva local e global.

19
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p.25
20
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p.47
21
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p.26. Importante destacar que o conceito de modernidade reflexiva é estruturante da obra de Beck e esta, por sua
vez, oferece sustentáculo teórico ao marco doutrinário representado pela sociedade do risco.
22
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p. 60.

57
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3 - Fatores decorrentes da sociedade do risco que contribuem para a transfiguração da


concepção de soberania

Os esquemas tradicionais da sociedade industrial foram impulsionados por uma forte


onda de individualismo nascida no pós-guerra; o individualismo minou de inseguranças o
processo de modernização mas a sociedade industrial e o desenvolvimento da idéia de Estado
nacional entraram em estagnação no novo contexto global de uma sociedade tecnológica e de
riscos que superam a idéia de territorialidade.

Como os limites de uma Soberania sempre foram definidos por fronteiras


geográficas; o controle do seu território é um dos mais importantes elementos que compõem a
Soberania. Na perspectiva pós-moderna e diante dos riscos globais, a natureza e a importância
da Soberania necessita readequar-se.

Nesse contexto, a tendência atual é no sentido de que o Estado não pode tomar
qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os benefícios que
lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada vez mais satisfações
no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só à sua população, mas
também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O poder de julgar sem ser
julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo consideravelmente.

Daniel Sarmento23, em estudo sobre o tema, dispõe que a globalização vem


alimentando o processo de esfacelamento do Estado-Providência, na medida em que vai
corroendo o seu poder de efetivamente subordinar, de modo soberano, os fatores econômicos
e sociais que condicionam a vida de cada comunidade política. Cada vez mais avulta a
importância de variáveis exógenas sobre a economia nacional, sobre as quais o Estado-nação
não exerce nenhum poder.

23
SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social- (Pós-
Modernidade Constitucional?). In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio (Coord.). Crises e desafios da Constituição
brasileira. Rio de Janeiro, 2002, p. 398

58
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Se as fronteiras são construções artificiais criadas pelos Estados, nos dias de hoje,
mais do que nunca, há necessidade de se enfrentar os desafios decorrentes desse fato e seus
reflexos no direito24.

A idéia de repensar as fronteiras, como decorrência do efeito globalização, que


provocou o desenvolvimento da tecnologia, a expansão das comunicações e o
aperfeiçoamento do sistema de transportes, tem permitido a integração de mercados em
velocidade avassaladora e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços,
tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária. Isso tudo provocou, no
entender de José Eduardo Faria25, "a desconcentração, a descentralização e a fragmentação do
poder."

Essa intensificação da interdependência em escala mundial desterritorializa as


relações sociais, e a multiplicação de reivindicações por direitos de natureza supranacional
relativiza o papel do Estado-nação, que tem como uma de suas características principais a
territorialidade.

A ocorrência de "associações" entre Estados, como no caso da União Européia, por


exemplo, têm forçado os Estados, no entender de Cláudio Finkelstein26, a uma compartilhação
das soberanias dos Estados-membros. Isto implicou, no momento considerado oportuno, na
cessão de parcelas de soberania dos estados aos órgãos comunitários supranacionais. A
soberania compartilhada exprime um desejo e um anseio dos próprios Estados-membros e a
parcela desta cedida ao órgão supranacional refletiu as vontades soberanas das nações.

Claúdio Finkelstein defende, ainda, que a interpretação do conceito de soberania


deve sofrer uma flexibilização, para viabilizar o movimento integracionista atual e que as
definições clássicas de soberania já não prevalecem no Estado de Direito imposto pela nova
ordem mundial27.

24
BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São
Paulo, n. 40, p. 40, julho/set. 2002.
25
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. p.07.
26
FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco. 2000 p.
65.
27
FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco.2000 p. 70,

59
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Também Manoel Gonçalves Ferreira Filho28 defende a idéia da superação do Estado-


Nação, com a conseqüente necessidade de associação entre os Estados, e da necessidade de
revisão da Soberania.

Embora o princípio de não-interferência nos assuntos internos de um poder soberano


seja um dogma da legislação internacional, sempre que há um problema envolvendo, por
exemplo, a violação de direitos humanos e destruição do meio ambiente, a opinião pública –
que tudo acompanha, simultaneamente, pelos meios de comunicação – acaba pressionando os
outros países para que interfiram e resolvam o problema. Tem-se, inclusive, questionado o
conceito do que seriam assuntos internos e vem-se construído um argumento no sentido de
que a comunidade internacional tem a obrigação de intervir em defesa desses direitos em
qualquer lugar do mundo.

Além disso, a poluição não respeita os limites territoriais do Estado, o ecossistema


global é interligado, interdependente, e a destruição de uma floresta não prejudica apenas o
ecossistema em cujo território está inserido, mas os povos de todo o globo. Nesse exemplo
pode-se dizer que os riscos passam a ser globais.

No que se refere à clássica concepção de Soberania, percebe-se que a abrangência


deste princípio é invocada até hoje como uma premissa intocável e incontestável. Alguns
sequer conseguem vislumbrar o funcionamento de um Estado sem esta prerrogativa histórica
de que não pode haver interferência externa no "domínio reservado" deste Estado,
fundamentando-se numa premissa que foi concebida em um contexto histórico próprio, e que
não mais condiz com a realidade atual.

Para Arthur Machado Paupério29 supremo não quer dizer ilimitado, pois não há
nenhum poder que possua tal qualidade e citando Brucculeri, referido autor lembra que o
Estado não é o criador do Direito, ele apenas determina-o e aplica-o, não passa de instrumento
de revelação das normas jurídicas. Assim, essas normas jurídicas estatais obrigam, da mesma
forma, governantes e governados.

28
FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves In: O Estado do Futuro. Martins, Ives Gandra (Coord.), São Paulo:
Pioneira, 1998. p. 102-113.
29
PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997

60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Valerio de Oliveira Mazzuoli30 ensina que não existem direitos globais,


internacionais e universais, sem uma soberania flexibilizada, o que impediria a projeção
desses direitos na agenda internacional.

Nesse sentido, e levando em consideração que o Estado, e, por conseguinte, a


Soberania devem existir em prol do bem comum, é que se pode partir para uma justificativa
das interferências, de um Estado em outro, que vêm acontecendo, por exemplo, quando
direitos humanos são desrespeitados ou o meio-ambiente é prejudicado.

ParaPaulo Márcio Cruz31 “A Soberania, um dos paradigmas do Estado Constitucional


Moderno que convertia o poder estatal num poder supremo, exclusivo, irresistível e substantivo,
único criador de normas e detentor do monopólio do poder de coerção física legitima dentro de
seu território, ao tempo que único interlocutor autorizado a falar com o exterior, está se
desmanchando, o que faz afundar os alicerces sobre os quais se sustentava a teoria clássica do
Estado Constitucional Moderno”.

Contudo, percebe-se, por outro lado, não se tratar de uma Soberania simplesmente
enfraquecida32 mas tomando outros contornos, transfigurando-se, como afirmam Everton das
Neves Gonçalves e Joana Stelzer33 na constatação de que a Soberania, com efeito, não se trata
mais do Estado-territorial, referência elementar surgido após a Paz de Vestfália e que se
consolida até o Século XX, viabilizando a emergência do Direito internacional sob amparo da
idéia soberana. Esse é um quadro alterado que se transfigura de internacional (inter-nações) para
transnacional (trans-nações), de soberania absoluta para soberania relativa, de relações
territoriais para relações virtuais, de trânsito entre fronteiras para trânsito em espaço único.

30
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Soberania e a proteção internacional dos direitos humanos:dois
fundamentos irreconciliáveis. Revista de Informação Legislativa, n.156, p. 169-177, out/dez., 2002
31
CRUZ, Paulo Márcio. Da soberania à transnacionalidade: Democracia, Direito e Estado no século XXI.
Itajaí: Univali Editora, 2011.p. 97
32
A referência ao enfraquecimento da soberania nesse estudo está sendo de forma unidimensional, pois se
concorda tanto com Ulrich Beck (BECK, Ulrich. O que é globalização. Tradução de André Carone. São Paulo:
Paz e Terra, 1999, p. 230) no que tange ao fortalecimento dos Estados relativamente à ‘soberania inclusiva’,
quanto com Anthony Giddens, quando esse autor lembra o caráter dialético da globalização, ao afirmar: “A
perda de autonomia por parte de alguns Estados ou grupo de Estados tem sido frequentemente concomitante com
um aumento dela por parte de outros, como resultado de alianças, guerras ou mudanças políticas e econômicas
de diversos tipos.” GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São
Paulo: Unesp, 1991, p. 72.
33
GONÇALVES, Everton das Neves e STELZER, Joana. Estado, Globalização e Soberania: fundamentos
político jurídicos do fenômeno da Transnacionalidade. in Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI,
São Paulo – 2009. p.10948 10971

61
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Portanto, a Soberania no atual estágio da Sociedade passa por uma transfiguração para
se adequar às expectativas internas e externas que o devir do Século XXI impõe e o Direito Penal
é um mecanismo importante nesse contexto ao recepcionar e proteger os chamados riscos
globais.

4. O Direito Penal do Risco para o Devir do Século XXI.

Os aspectos essenciais decorrentes da moderna sociedade do risco vêm suscitando ao


Direito penal, por consequência, problemas novos e incontornáveis para o devir do Século
XXI. Percebe-se a superação da ideia de que os riscos para a existência individual e
comunitária, ou provinham de acontecimentos naturais ou derivavam de ações humanas
próximas e definidas, para contenção das quais era suficiente uma tutela penal dispensada aos
bens jurídicos clássicos como a vida, a saúde, a propriedade, o patrimônio, ou seja, dos bens
jurídicos individuais.

Na perspectiva dessa atual sociedade do risco, verifica-se uma tendência


expansionista do Direito Penal, cujo fenômeno apresenta algumas características peculiares:
consagração de novos âmbitos de proteção através da figura dos bens jurídicos coletivos;
aumento de tipos penais em branco e de conceitos jurídicos indeterminados na redação típica;
antecipação da barreira de punibilidade mediante a crescente utilização de delitos de perigo
abstrato; ampliação do uso de tipos omissivos e de tipos culposos; esfumaçamento das
diferenças entre ação e omissão, dolo e culpa consciente, autoria e participação, preparação e
tentativa; aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, etc.

Nesse mesmo sentido sustenta André Luiz Callegari34 ao afirmar que dessa forma,
percebe-se uma alteração na clássica função de limitação e justificação da punição penal pela
proteção de bens jurídicos, fazendo-se com que essa proteção passe a ser vista, pelo contrário,
como um critério de ampliação da intervenção do poder punitivo estatal.
Estes instrumentos moldam a imagem de um Direito Penal que relativiza ou até
mesmo ignora os clássicos princípios de legitimação garantista (exclusiva proteção de bens
jurídicos, subsidiariedade, fragmentariedade, legalidade, ofensividade, causalidade,
responsabilidade subjetiva, culpabilidade, etc.) em favor do atendimento às demandas de
34
Callegari, André Luiz. Op.cit. p.25

62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

eficiência na gestão política ou administração da (in) segurança objetiva e subjetiva da


população mundial atual.

A ação humana, agora, se revela suscetível de produzir riscos, também eles globais.
Apesar disso, não é necessário um maior esforço para constatar o fato de que o "risco", de
certo modo, não é uma expressão nova no âmbito do Direito Penal – tendo em vista os
estudos desenvolvidos pelos penalistas da "primeira geração" do Direito penal do risco, aos
quais CorneliusPrittwitz35 tem denominado os "dogmáticos do risco", na medida em que o
ponto principal de suas reflexões sobre a imputação era a criação ou o aumento do risco.

Contudo, as reflexões se originaram paralelamente ao real descobrimento sociológico


do risco, de maneira que a política criminal e a teoria penal, sobretudo a dogmática jurídico-
penal, desde há muito têm sido influenciadas pelo desenvolvimento social da assim chamada
sociedade do risco.

Há autores que consideram que essa transformação do Direito Penal é fenômeno


irreversível segundo o atual estágio histórico-cultural de evolução das necessidades sociais.
Para eles, neste novo Direito Penal do risco, há uma nítida finalidade expansionista utilizada
pelo legislador conduzindo à justificação dogmática e político-criminal dos mesmos.
Entretanto, esta aceitação não se dá de forma ilimitada e acrítica, mas sim através da releitura
de determinados princípios-garantias e critérios de imputação, em certa medida relativizados
em prol de sua compatibilidade com as novas exigências dirigidas ao Direito Penal. Ou seja,
aceita-se de forma restritiva e condicionalmente as “novas formas de criminalidade” e seus
elementos (bens jurídicos coletivos, imputação objetiva, delitos de perigo abstrato, etc.) como
realidades político-criminais e empírico-normativas face às quais já não se pode voltar atrás e
que precisam ser devidamente explicadas a partir do paradigma do risco36.

35
In: SILVA, Pablo Rodrigo Alflenda. O risco da técnica de remissão das leis penais em branco no Direito
Penal da Sociedade do Risco, in Política Criminal, n.º, 2007, A.7. [disponível em
http://www.politicacriminal.cl/n_03/a_7_3.pdf]; um amplo panorama em SILVA, Pablo Rodrigo Alflenda. Leis
penais em branco e o Direito Penal do Risco, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004 Ver: PRITTWITZ, Cornelius.
Strafrecht und Risiko.In:RechtlichesRisikomanagement. Form, Funktion und Leistungsfähigkeit des Rechts in
der Risikogesellschaft. Berlin: Duncker&Humblot, 1999, p. 194; também HERZOG, Felix.
GesellschaftlicheUnsicherheit und strafrechtliche Daseinsvorsorge, 1.ª edição. Heidelberg: Decker’s Verlag,
1991; KUHLEN, Lothar. Zum Strafrecht der Risikogesellschaft. Goltdammer’sArchiv.1994, p. 347-467;
36
Esta orientação encontra-se em: ROXIN, Claus. El legislador no lopuede todo. In: Iter Criminis. Revista de
ciências penales. México, nº. 12, 2004/2005, pp. 321-347; IDEM. ¿Es la protección de bienes jurídicos una
finalidad del Derecho penal? In: TBJ, pp. 443-458; SCHÜNEMANN, Bernd. [nota 2], pp. 11 e ss.; IDEM.
Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milenio. Madrid: Tecnos, 2002, passim;
HEFENDEHL, Roland. El bien jurídico como eje material de la norma penal. In: TBJ, pp. 179-196;

63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Como afirma André Luiz Callegari37 as contaminações nucleares ou químicas, por


meio de radioatividade ou substâncias nocivas e tóxicas presentes no ar, na água e nos
alimentos; a degradação ambiental e o aquecimento global, por exemplo, podem causar danos
irreversíveis à saúde humana, podendo, tais lesões, inclusive, permanecer invisíveis por
extenso período de tempo. Pode-se dizer, nesse diapasão, que esses riscos de procedência
humana são indeterminados espacial (globalização) e temporalmente, e, ademais, muitas
vezes, podem possuir dimensões e potenciais destrutivos maiores do que aqueles provenientes
da natureza.
Peter-Alexis Albrecht, nesse sentido, refere-se à ampliação do próprio conceito de
bem jurídico, que, segundo ele, passa a abarcar não somente os delimitados bens individuais,
mas também os imprecisos bens jurídicos supraindividuais de caráter difuso.38

Jesus Maria Silva Sanchez alerta para a proteção demasiada de bens jurídicos
supraindividuais ao ponderar que a combinação da introdução de novos objetos de proteção
com antecipação das fronteiras da proteção penal vem propiciando uma transição rápida do
modelo “delito de lesão de bens individuais” ao modelo “delito de perigo (presumido) para
bens supraindividuais”, passando por todas as modalidades intermediárias. O legislador por
razões como as expostas, vem promulgando numerosas novas leis penais, e as respectivas
ratione legis, que obviamente não deixam de guardar relação – ao menos indireta – com o
contexto ou previas da fruição de bens jurídicos individuais mais clássicos, são elevadas de
modo imediato à condição de bens penalmente protegíveis (dado que estão protegidos).
Assim, junto aos delitos clássicos, aparecem outros muitos, no âmbito socioeconômico de
modo singular, que recordam muito pouco aqueles. Nesse ponto, a doutrina tradicional do
bem jurídico revela que diferentemente do que sucedeu nos processos de despenalização dos
anos 60 e 70, sua capacidade crítica no campo dos processos de criminalização como os que
caracterizam os dias atuais – e certamente o futuro – é sumamente débil.39

TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal y nuevas formas de criminalidad. Traducción de Manuel Abanto
Vásquez. Lima: Grijley, 2007, passim; STRATENWERTH, Günther. Desarrolos modernos delDerecho penal
en Europa Central. In: Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia penal. Buenos Aires, nº. 8, 1998, pp. 53-66.
Entre nós: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003, pp. 89
37
Callegari, André Luiz. Op.cit. p.19
38
Albrecht, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la politica populista. In: La
insosteniblesituacióndelderecho penal. Coord. Carlos Maria Romeo Casabona.Granada:EditorialComares, 2000.
P.471-487
39
SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal. Aspectos da politica criminal nas sociedades
pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2 ed. 2011. p.146

64
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Os aspectos críticos resultantes da moderna "sociedade do risco" para o Direito Penal


já foram amplamente analisados e criticados pela Escola de Frankfurt, originariamente, e de
modo imediato pelo próprio Prittwitz40, o qual já observava o surgimento de um "Direito
Penal do risco" que, longe de aspirar conservar o seu caráter fragmentário, como ultima ratio,
tem se convertido em sola ratio – em outras palavras, em um Direito Penal expansivo, cujo
aspecto é caracterizado pelo significado tridimensional, que assume: a acolhida de novos
candidatos no âmbito dos bens jurídicos (tais como meio ambiente, saúde pública, mercado de
capital, processamento de dados, tributos), o adiantamento das barreiras entre o
comportamento punível e o não punível, e, em terceiro lugar, a redução das exigências para a
reprovabilidade.

Em relação a isso, Hassemer tem ressaltado ainda o fato de que este moderno Direito
Penal se apresenta na forma de crimes de perigo abstrato, que exigem somente a prova de uma
conduta perigosa, renunciam a todos os pressupostos clássicos de punição, e, com isso,
naturalmente, também reduzem as respectivas possibilidades de defesa e, além disso, no
campo da moderna política criminal, como a criminalidade organizada, o meio ambiente, a
corrupção, o tráfico de drogas ou a criminalidade econômica, encontram-se cada vez mais
novos tipos penais e agravamentos de pena.41

Fica claro que os diversos aspectos que resultaram no "discurso social do risco",
intermediados através deste, levaram ao discurso jurídico-penal e político-criminal do risco.

Contudo, para o devir do Século XXI resta claro o questionamento se é o Direito


Penal o instrumento mais adequado, com o qual se pode reagir aos riscos, pois, adaptando-se
à ótica da sociedade do risco, o Direito Penal recebe a função de um eminente instrumento de
prevenção, e para responder a esta sociedade insegura o Direito Penal recebe ainda uma
função simbólica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

40
PRITTWITZ, Cornelius. Sociedaddelriesgo y Derecho penal.In: CJDP, pp. pp. 263 e ss
41
Paradigmático nesse sentido Hassemer, Wilfried. Absehbare Entwicklungen in Strafrechts dogmatik und
Kriminal politik, in Strafrechtsproblemean der Jahrtausendwende. Nomos, 1999. p. 18 (Há tradução portuguesa
de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, intitulada "Desenvolvimentos Previsíveis na Dogmática do Direito Penal e na
Política Criminal", in Revista Eletrônica de Direitos Humanos e Política Criminal – REDHCP, N.º 2, abril de
2008, [disponível em http://www.direito.ufrgs.br/dir1/revista.asp]. Acesso em 25/07/12.

65
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Na perspectiva pós-industrial da Sociedade do risco, a tendência atual é no sentido de


que o Estado não pode tomar qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em
consideração os benefícios que lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece
dever cada vez mais satisfações no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não
só à sua população, mas também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais.

O poder de julgar sem ser julgado – que sempre norteou o Poder soberano – vem
tomando novos contornos.

Questionou-se, portanto, que a atual transfiguração da Soberania exsurge para lidar,


dentre outras questões, com os chamados riscos globais. Através dessa readequação é capaz de
abarcar uma concepção interna, dentro dos limites territoriais do Estado, e uma concepção
externa, limitada e flexibilizada, em razão das relações com os demais Estados e organizações
internacionais ou supranacionais.

Para o Direito Penal resta, no devir do Século XXI, sofrer os influxos dessa Sociedade
ávida por segurança e demonstrar se será capaz ou não, como instrumento de controle que é, de
assegurar uma efetiva proteção indo além de um caráter meramente simbólico.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEGITIMIDADE DA PENA CRIMINAL A


PARTIR DO CONCEITO DE ESTADO DE DIREITO

CONSIDERATIONS REGARDING THE LEGITIMACY OF THE CRIMINAL


PUNISHMENT FROM THE CONCEPT OF RULE OF LAW

João Alfredo Gaertner Junior

RESUMO

A ideia de Estado de direito está associada a uma longa tradição que se desenvolve paralelamente
à história do Ocidente, na qual se busca o estabelecimento de uma relação entre indivíduo, direito
e poder político. Contemporaneamente, o conceito de Estado de direito é síntese de um processo
histórico-evolutivo e cultural, resultado do diálogo entre diferentes experiências em torno das
quais é desenvolvida a ideia da necessidade do estabelecimento de limites ao poder
tendencialmente transbordante do ente estatal através do direito, a fim de assegurar o respeito aos
direitos e garantias fundamentais que assistem aos indivíduos. O objetivo do presente artigo é a
inserção do debate acerca da legitimidade da pena criminal nesse contexto. Sabe-se que a pena é
instituto sobre o qual repousa uma atmosfera de tensão entre direitos fundamentais. De um lado, a
pena pode ser entendida como um remédio através do qual se busca garantir os direitos
fundamentais dos membros da coletividade em face do delito; de outro, a pena é uma medida
imposta pelos órgãos estatais que atua de modo a restringir o âmbito de liberdade do indivíduo
desviante. Assim, pretende-se apresentar elementos idôneos à construção de uma teoria na qual se
demonstre a legitimidade da pena criminal de modo harmônico aos postulados do paradigma do
Estado de direito.

PALAVRAS-CHAVES: ESTADO DE DIREITO; DIREITOS FUNDAMENTAIS; PENA


CRIMINAL.

ABSTRACT

The idea of rule of law is associated with a long term tradition that develops parallel to the
Occidental history, which is seeking to establish a relationship between individual, law and
political power. Currently, the concept of rule of law is the synthesis of a historical-evolutive and
cultural process, as a result of dialogues between different experiences around which is developed
the idea of the necessity of establishing limits on the power that tendentiously overflows the state
by law, in order to ensure the respect of fundamental rights and guarantees to individuals who
attend. The purpose of this article is the insertion of the debate about the legitimacy of the
criminal punishment in this context. It is known that the criminal punishment is an institute on
which rests an atmosphere of tension among the fundamental rights. On one hand, the punishment
can be understood as a remedy through which it seeks to guarantee the fundamental rights of the
members of the collective over the crime, on the other, the punishment is a measure imposed by
state bodies that acts to restrict the scope of freedom of the deviant individual. Thus, this article
intends to provide suitable evidence for the construction of a theory in which it can be
demonstrated the legitimacy of the criminal punishment in a harmonic way to the postulates of the
paradigm of the rule of law.

KEY-WORDS: RULE OF LAW; FUNDAMENTAL RIGHTS; CRIMINAL


PUNISHMENT.


Acadêmico do 10º período do curso de graduação em Direito do UNICURITIBA.

71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

1 INTRODUÇÃO

O entendimento contemporâneo acerca do conceito de Estado de direito


consubstancia-se em uma síntese de diferentes experiências em torno das quais se
desenvolveu a ideia da necessidade do estabelecimento de limites ao poder tendencialmente
transbordante do ente estatal em relação aos indivíduos. Tal concepção tem como fundamento
a premissa de que deve haver uma vinculação formal e substancial dos poderes públicos à lei,
a fim de que os direitos e as garantias fundamentais que assistem aos indivíduos sejam
respeitados e assegurados.
Nesse contexto, o debate acerca das teorias que procuram justificar existência da
pena criminal, determinando sua função e estabelecendo seus fins, é tema bastante instigante e
controverso. Isso porque a pena é instituto sobre o qual repousa uma atmosfera de tensão
entre direitos fundamentais. Por um lado, a pena pode ser entendida como um remédio através
do qual se busca garantir os direitos fundamentais dos membros da coletividade e afirmar o
próprio Estado de direito face ao delito, o qual caracteriza uma violação ao direito; por outro,
a pena é uma medida imposta pelos órgãos estatais, mediante o devido processo legal, cuja
atuação se dá de modo a restringir o âmbito de liberdade do indivíduo que se conduziu de
forma desviante – liberdade esta que também é direito fundamental e, portanto, é objeto de
tutela do Estado de direito.
Dessa forma, o presente artigo baseia-se em uma revisão bibliográfica e tem como
objetivo apresentar elementos idôneos à construção de uma teoria que justifique a existência
da pena de modo harmonioso em relação aos postulados do paradigma do Estado de direito.
Para tanto, serão desenvolvidos objetivos específicos, dentre os quais, inicialmente, o
apontamento dos elementos essenciais da teoria do Estado de direito, e o estabelecimento da
relação de suas premissas conceituais com construção do discurso constitucional nos países
ocidentais. Posteriormente, serão analisadas as principais correntes teóricas que procuram
justificar e explicar a função e os fins da pena, a fim de assinalar os aspectos que as tornam
incompatíveis com os postulados do Estado de direito. Por fim, partindo das reflexões de
Luigi Ferrajoli, serão apresentados argumentos que procuram demonstrar a legitimidade da
pena de maneira a aproximá-la dos objetivos consubstanciados no modelo de Estado de
direito.

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2 UMA CONCEPÇÃO DE ESTADO DE DIREITO

A ideia de Estado de direito está associada à busca do estabelecimento de uma relação


entre indivíduo, direito e poder político, cujo desenvolvimento se dá paralelamente à história
política e intelectual do Ocidente1. Contemporaneamente, o que se entende a respeito do
conceito de Estado de direito e dos elementos que o caracterizam, é resultado de um processo
histórico-evolutivo e cultural, elaborado a partir do diálogo entre diferentes experiências
vivenciadas por países ocidentais, nas quais os governos, em alguma medida, submetiam-se à
observância das leis. Nesse sentido, atualmente o Estado de direito traduz-se em “um
paradigma jurídico-político da cultura ocidental e do Estado liberal do Ocidente”2.
Pode-se afirmar que o processo de construção do conceito de Estado de direito
remonta à Antiguidade, uma vez que se constatam na literatura grega registros acerca da ideia
de que o governo não deve atuar de modo arbitrário, mas segundo leis previamente
estabelecidas – o que, de modo geral, era entendido como positivo pelo pensamento grego3.
Contudo, deve-se destacar, ainda, a relevante contribuição do mundo antigo consubstanciada
nas reflexões elaboradas por Platão e Aristóteles acerca da dicotomia entre governo e lei, ao
tratarem, embora a partir de perspectivas diversas, da oposição entre regimes de governo4.
Séculos mais tarde, após um lento e confuso processo de centralização do poder que
teve início no fim do período medieval, o Estado assume a feição de “absoluto”, o que, em
uma acepção jurídica pode ser entendido como uma “forma de Estado em que não se
reconhece mais outro ordenamento jurídico que não seja o estatal, e outra fonte jurídica do
ordenamento estatal que não seja a lei”5.
Como consequência de uma série de eventos como a Revolução Gloriosa (1688-1689)
na Inglaterra, a Revolução Americana (1776) nos Estados Unidos e a Revolução Francesa
(1789-1799) na França difundiram-se “modelos teórico-sociais que assumem a liberdade e a

1
COSTA, Pietro. O Estado de direito: uma introdução histórica. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.). O
Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 98.
2
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. 1999. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/43038759/Canotilho-Estado-de-Direito-LIVRO>. Acesso em: 25 ago. 2011. p. 7.

3
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução de Marylene Pinto Michael.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 32-33.
4
COSTA, op. cit., p. 99-100.
5
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 2. ed. São
Paulo: Mandarim, 2000. p. 19.

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propriedade dos sujeitos como o elemento fundamental da ordem e atribuem ao soberano o


ônus de respeitar e tutelar as estruturas fundamentais das mesmas”6. Nesse contexto, cabe
assinalar o surgimento das doutrinas contratualistas, isto é, teorias de caráter voluntarista em
que o fundamento do poder é buscado “no livre acordo dos homens que, num determinado
período do desenvolvimento histórico, decidiram a criação do Estado”7. Entre os filósofos que
elaboraram teorias contratualistas cujas reflexões influenciaram diretamente na construção do
conceito de Estado de direito destacam-se John Locke, Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau
e Emanuel Kant.
Em meados de 1798, a expressão lexical “Estado de direito” é utilizada pela primeira
vez por J. W. Placidus, na Alemanha, ao referir-se à obra de Kant8. A partir de então,
evidencia-se a instituição de modelos de governo baseados na ideia de que o poder político,
de alguma forma, deve vincular-se ao respeito às leis em uma série de países ocidentais. Essas
diferentes experiências históricas deram origem aos principais modelos teóricos de Estado de
direto, tais como o Rechtsstaat alemão, o Rule of Law inglês, o Rule of Law na versão
americana e o État de Droit francês. O entendimento contemporâneo acerca do conceito de
Estado de direito é resultado da conjugação de elementos originários dessas diferentes
tradições.
A partir desses elementos, Danilo Zolo sustenta que o modelo individualista de
sociedade e o primado ontológico do sujeito individual são pressupostos filosófico-políticos
de Estado de direito9. O modelo de sociedade individualista representa uma ruptura em
relação ao modelo sólido e antigo de sociedade organicista, segundo o qual os interesses do
Estado sobrepõem-se aos interesses individuais10. Já o primado ontológico do sujeito
individual e o valor axiológico da sua liberdade e autonomia traduz-se na consolidação da
perspectiva do direito natural moderno e desdobra-se, por um lado, no pessimismo
potestativo, caracterizado pela ideia de que o poder político é perigoso, tendo como
consequência a exigência de “que no Estado estejam presentes aparelhos normativos e órgãos

6
COSTA, 2006, p. 112.
7
BOBBIO, 2000, p. 29.
8
COSTA, op. cit., p. 116.
9
ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.). O Estado de
direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 32-34.
10
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
p. 56.

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institucionais que desempenhem a função de identificar, contrastar e reprimir o abuso e o


arbítrio do poder”11; por outro, no otimismo normativo, ou seja, na noção de que através do
direito o indivíduo pode reprimir os excessos e abusos por parte do poder político. Esse
aspecto resulta na necessidade de “que os poderes do Estado (antes de tudo o executivo e o
judiciário) estejam vinculados ao respeito de regras gerais”, uma vez que “o direito como 'lei'
pode obter, por meio da imposição de formas e de procedimentos gerais […] uma drástica
redução da discricionariedade política”12.
Danilo Zolo explica, ainda, que o Estado de direito orienta-se pelo princípio da difusão
e pelo princípio da diferenciação. O princípio da difusão caracteriza-se pela limitação, por
meio de vínculos explícitos, dos poderes estatais a fim de que haja uma dilatação no âmbito
das liberdades individuais. Por tal razão, referido princípio implica “uma definição jurídica
dos poderes públicos e da sua relação com os poderes dos sujeitos individuais, também eles
juridicamente definidos”13. Nas diferentes experiências do Estado de direito, o princípio da
difusão manifesta-se através da unicidade e individualidade do sujeito jurídico, da igualdade
jurídica dos sujeitos individuais, da certeza do direito e do reconhecimento constitucional dos
direitos subjetivos14.
O princípio da diferenciação, por sua vez, traduz-se, sob uma perspectiva externa, na
autonomia e independência do sistema político-jurídico em relação a outros subsistemas, tais
como o ético-religioso e o econômico, ao passo que, a partir de uma perspectiva interna, pode
ser entendido “como critério de delimitação, coordenação e regulamentação jurídica de
distintas funções estatais, sumariamente correspondentes à posição de normas (legis latio) e à
aplicação de normas (legis executio)15”. Tal princípio expressa-se através de modalidades
institucionais, tais como a delimitação do âmbito de exercício do poder e de aplicação do
direito, a separação entre instituições legislativas e instituições administrativas, o primado do
poder legislativo, o princípio da legalidade, a reserva de legislação, a subordinação do poder
legislativo ao respeito dos direitos subjetivos constitucionalmente definidos e a autonomia do
poder judiciário16.

11
ZOLO, 2006. p. 35.
12
Ibid., p. 36.
13
Ibid., p. 31.
14
Ibid., p. 36-43.
15
Ibid., p. 32.
16
Ibid., p. 45-47.

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Nesse panorama, cabe assinalar que a construção do discurso constitucional acerca das
Constituições modernas vincula-se às premissas conceituais do Estado de direito, haja vista o
alinhamento de tal conceito à perspectiva da primazia da proteção do indivíduo nas
sociedades ocidentais.
Luigi Ferrajoli aponta para dois modelos distintos do Estado de direito: o Estado
legislativo de direito e o Estado constitucional de direito. O Estado legislativo de direito
identifica-se com “qualquer ordenamento no qual os poderes públicos são conferidos pela lei
e exercidos nas formas e com os procedimentos por ela estabelecidos”17. Assim, embora o
legislador encontre-se vinculado aos aspectos formais prescritos na lei, não há referenciais
que orientem sua atividade em termos materiais.
No Estado constitucional de direito, ao contrário, “todos os poderes, inclusive o
Legislativo, estão vinculados ao respeito de princípios substanciais, estabelecidos
costumeiramente por normas constitucionais, como a separação dos poderes e os direitos
fundamentais”18. Tal modelo caracteriza-se pela vinculação formal e substancial da atividade
legislativa a preceitos constitucionais, uma vez que a Constituição deve ser entendida como
uma lei hierarquicamente superior à legislação ordinária.
Há uma tensão de difícil equação entre essas duas formas de compreender do Estado
de direito e o papel da legislação e da Constituição. De um lado, projeta-se a legitimidade do
Estado na sua função protetora do indivíduo, reservando um espectro de direitos inalienáveis
não submetidos à deliberação pública. De outro, afirma-se que a autonomia individual não se
impõe sobre o interesse público ou a vontade da maioria. Essa tensão muitas vezes dificulta a
compreensão do papel das garantias constitucionais, razão pela qual se deve buscar construir
uma concepção de Estado de direito, que promova uma conciliação entre discursos
igualmente legitimados na cultura jurídico-político ocidental.
Para Joaquim José Gomes Canotilho os elementos fundamentais do Estado de direito
são “a liberdade do indivíduo, a segurança individual e colectiva [sic], a responsabilidade e
responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a proibição de
discriminação de indivíduos e de grupos”19. Para dar eficácia e concretude a esses valores e

17
FERRAJOLI, Luigi. O Estado de direito entre o passado e o futuro. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.).
O Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 417.
18
Ibid., p. 417-418.
19
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. 1999. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/43038759/Canotilho-Estado-de-Direito-LIVRO>. Acesso em: 25 ago. 2011. p. 7.

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princípios, ele argumenta que o modelo de organização mais adequado é o Estado


constitucional, o qual deve constituir uma associação das fórmulas do Estado de direito e do
Estado democrático. Isso porque além da necessidade da legitimação do direito, dos direitos
fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico, através da lógica do Estado de
direito, é necessário também a legitimação de uma ordem de domínio e do exercício do poder
político, concretizada por meio de um Estado democrático20. Em outros termos, pode-se
afirmar que

o Estado “impolítico” do Estado de direito não dá resposta a este último problema:


donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo o
poder vem do povo’ assegura e garante o direito igual à participação na formação
democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular
concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de ‘charneira’
entre o ‘Estado de direito’ e o ‘Estado democrático’ possibilitando a compreensão da
moderna fórmula Estado de direito democrático21.

Desta forma, compreende-se que o Estado constitucional deve estruturar-se como uma
ordem de domínio legitimada pelos cidadãos, ou seja, um Estado democrático de direito,
concebido a partir do princípio da soberania popular e concretizado em conformidade com
procedimentos regulados através da legislação22. Isso significa dizer que no Estado
constitucional, o poder estatal deve ser organizado e exercido com observância dos princípios
democráticos, tanto em termos de articulação do direito quanto do poder. Nesse contexto,
conforme bem ensina Joaquim José Gomes Canotilho, “o princípio da soberania popular é,
pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político deriva do ‘poder dos
cidadãos’”23.
Para Luigi Ferrajoli, o Estado de direito identifica-se com a democracia em um sentido
substancial e social, podendo, nessa perspectiva, ser entendido como sinônimo de
“garantismo”. Em outros termos, ele argumenta que

20
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Edições Almedina, 2003. p. 100.
21
CANOTILHO, loc. cit.
22
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. 1999. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/43038759/Canotilho-Estado-de-Direito-LIVRO>. Acesso em: 25 ago. 2011. p. 10.
23
CANOTILHO, op. cit., p. 98.

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em um sentido não formal e político, mas substancial e social de “democracia”, o


Estado de direito equivale à democracia, no sentido que reflete, além da vontade da
maioria, os interesses e necessidades vitais de todos. Neste sentido, o garantismo,
como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o
que estes não devem e o que devem decidir, pode bem ser concebido como
conotação (não formal, mas) estrutural e substancial da democracia: as garantias,
sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos
contra os poderes do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes,
a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias
integradas, as razões de baixo relativamente às razões do alto 24.

De acordo com essa concepção, no Estado de direito, constitucional e democrático em


sentido material, existem matérias sobre as quais não se pode deliberar nem mesmo a partir do
consenso da maioria. Da mesma forma, por outro lado, no Estado de direito há questões que
devem ser decididas mesmo quando não há iniciativa política por parte da maioria. Tal
raciocínio é sintetizado por Luigi Ferrajoli, relacionando-o ao contexto do processo penal:

Não se pode punir um cidadão só porque isso satisfaz a vontade da maioria.


Nenhuma maioria, ainda que esmagadora, pode tornar legítima a condenação de um
inocente ou sanar um erro cometido em prejuízo de um cidadão, único que seja. E
nenhum consenso político – do parlamento, da imprensa, dos partidos ou da opinião
pública – pode suprir a prova ausente em uma hipótese acusatória. Em um sistema
penal garantista o consenso majoritário ou a investidura representativa do juiz não
acrescenta nada à legitimidade da jurisdição, uma vez que nem a vontade ou o
interesse geral e tampouco nenhum outro princípio de autoridade podem tornar
verdadeiro aquilo que é falso ou vice-versa25.

A democracia, entendida enquanto regime de governo em que a vontade da maioria é


inquestionável e absoluta, aproxima-se do que Gustavo Zagrebelsky denomina concepções
dogmáticas e acríticas da democracia. Para ele, tais concepções devem ser rechaçadas, ao
passo que a democracia crítica, compreendida como regime marcado pela inquietação e pela
autocrítica, sempre aberto a reconhecer os próprios erros e colocar-se em discussão, e por
isso, indisposto a aceitar decisões irreversíveis, é por ele defendida26.
Em síntese, pode-se afirmar que a concepção de Estado de direito adotada no presente
artigo está intrinsecamente associada a um modelo de Estado democrático, o que pressupõe a

24
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p.
797.
25
Ibid., p. 510.
26
ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de Monica de Sanctis Viana. São
Paulo: Saraiva, 2011. p. 139-142.

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igualdade entre os cidadãos em um sentido material. Isso implica em um modelo de Estado


em que os direitos e as garantias fundamentais individuais não se submetem aos interesses da
maioria, ao clamor social ou a qualquer outro argumento que tenda a fragilizá-los, mas, ao
contrário, são respeitados e assegurados pelos órgãos estatais da forma mais plena possível.
Tendo em vista esse referencial teórico, na última parte do presente artigo serão
apresentadas considerações que apontam no sentido da legitimidade da pena criminal,
justificando-a de forma conciliadora e harmônica em relação aos postulados do paradigma do
Estado de direito, de modo a afastar a ideia equivocada de que tal instituto não seria
compatível com tal modelo de Estado, por sua aplicação pelos órgãos estatais constituir
violação à liberdade do delinquente. Entretanto, preliminarmente, serão analisados os aspectos
mais relevantes das principais correntes teóricas que buscam explicar a função e os fins da
pena, assinalando em que medida cada uma delas torna-se inconciliável com o paradigma do
Estado de direito.

3 UMA BREVE ANÁLISE DAS PRINCIPAIS TEORIAS DA PENA

Dentro da lógica do Estado de direito, parece não restar dúvidas acerca do fato de que
a pena desempenha importante função de instrumento por meio do qual o ente estatal busca
tutelar valores e direitos fundamentais dos quais são titulares os indivíduos integrantes do
corpo social. Em tese, o indivíduo que age de forma desviante em relação às regras
estabelecidas por determinada comunidade, torna-se sujeito à aplicação de uma sanção pelos
órgãos estatais. Na esfera criminal, mais especificamente, as condutas praticadas de modo a
afrontar bens jurídicos tutelados pelo direito penal, caracterizam infrações penais e tornam os
seus agentes incursos nas respectivas penas a elas cominadas previamente em dispositivos
legais.
Ocorre que na seara criminal, a pena atua diretamente de maneira a restringir de forma
gradual a esfera de liberdade do indivíduo desviante, como forma de assegurar direitos e
garantias fundamentais que assistem a todos os membros da coletividade. Contudo, a pena
revela-se um instrumento que atua exatamente a partir da violação do direito fundamental à
liberdade delinquente, o que, em tese, é contrário aos objetivos do Estado de direito. Verifica-
se, desde logo, a existência de um aparente conflito entre o instituto da pena e o paradigma do
Estado de direito.

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Tendo em vista a necessidade da existência de um mecanismo por meio do qual o


pacto social violado pela conduta do delinquente seja restabelecido e reafirmado, para alguns
estudiosos a ideia de pena é pressuposto inafastável da lógica do Estado de direito. Por outro
lado, é inegável que a pena aplicada pelos órgãos estatais representa uma violência em relação
à liberdade individual do indivíduo desviante, razão pela qual se afirma que a pena é “uma
grave e imprescindível necessidade social”27. Nesse sentido, Douglas Fischer procura
justificar a aplicação da sanção penal como forma de controle social necessária à manutenção
do Estado de direito, afirmando que a pena deve ter como finalidade

a efetiva realização dos objetivos traçados pelo Estado Democrático e Social de


Direito, mediante a observância das garantias insertas na Carta Maior, com a
consideração essencial de que não se pode entender que a Constituição imponha ao
Estado somente o dever de respeitar os direitos fundamentais, mas também de
sancionar penalmente (de modo eficaz) a sua vulneração 28.

No entanto, considerando diferentes momentos históricos e diferentes modelos de


Estado, verifica-se que diversas são as razões que podem justificar a pena. Com Cezar
Roberto Bitencourt, pode-se afirmar que as concepções acerca de Estado, pena e
culpabilidade relacionam-se entre si, ou seja, para “uma concepção de Estado corresponde
uma de pena, e a esta, uma de culpabilidade”29.
Pode-se elencar uma série de teorias que procuram justificar a existência da pena,
atribuindo-a funções e finalidades.. De acordo com Luigi Ferrajoli30, tais teorias, denominadas
justificacionistas, podem ser agrupadas em duas categorias: as teorias retributivistas ou
absolutas, e as teorias preventivas ou relativas, também chamadas de utilitaristas.
Enquanto as teorias retributivistas podem ser agrupadas de acordo com o critério do
valor moral ou jurídico atribuído à retribuição penal, as teorias preventivas podem ser
classificadas como teorias da prevenção geral e da prevenção especial ou individual, na
medida em que orientam o fim preventivo aos cidadãos em geral ou à pessoa do delinquente,
respectivamente. Ambas as concepções podem ser entendidas, ainda, a partir de uma

27
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Vol. 1. Parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 84.
28
FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e Estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da
Constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 105.
29
BITENCOURT, op. cit., p. 83.
30
FERRAJOLI, 2010, p. 236.

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perspectiva positiva, quando se busca a correção do delinquente ou a afirmação da ordem


jurídica face à comunidade, bem como de uma perspectiva negativa, quando se busca a
neutralização do criminoso ou a intimidação dos membros da coletividade. Além disso,
embora não constitua objeto de análise do presente trabalho, deve-se registrar também a
existência de uma terceira categoria de teorias justificacionistas denominadas mistas ou
unificadoras, as quais justificam a pena com base em elementos tanto das teorias
retributivistas quanto das teorias preventivas.

3.1 AS TEORIAS RETRIBUTIVISTAS DA PENA

As teorias retributivistas da pena, também denominadas de teorias absolutas,


caracterizam-se por concebê-la como mera retribuição ao delinquente em razão da conduta
delituosa por ele praticada. De acordo com essas concepções, a pena não é um instrumento
utilizado para que se possa alcançar determinado fim, mas, ao contrário, constitui um fim em
si mesmo. Ou seja, essas doutrinas “concebem a pena como um fim em si própria, ou seja,
como ‘castigo’, ‘reação’, ‘reparação’ ou, ainda, ‘retribuição’ do crime, justificada por seu
intrínseco valor axiológico”, constituindo “não um meio, e tampouco um custo, mas, sim, um
dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento31”.
Para Jorge de Figueiredo Dias, a essência da pena nas teorias retributivistas

reside na retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do crime e nesta


essência se esgota [...] uma tal essência e natureza é função exclusiva do facto [sic.]
que (no passado) se cometeu, é a justa paga do mal com que o crime se realizou, é o
justo equivalente do dano do facto [sic.] e da culpa do agente32.

Essa concepção da pena fundamenta-se nas ideias de caráter religioso de vingança, de


expiação e de reequilíbrio entre pena e delito. No século XIX, Kant e Hegel retomaram tais
ideias e elaboraram teses laicas acerca da pena como instrumento de retribuição33.
A tese elaborada por Kant sobre a pena parte da premissa de que o homem deve ser
considerado com um fim em si mesmo em todas as suas ações. Isso implica na

31
FERRAJOLI, 2010, p. 236.
32
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 67-68.
33
FERRAJOLI, op. cit., p. 237.

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impossibilidade do homem ser utilizado como meio para atingir fins alheios a ele, ou seja, o
homem não é suscetível de instrumentalização. Sendo assim, Kant entende que a pena jamais
poderá ser aplicada como um meio a buscar a realização de outros fins, devendo ser imposta
ao indivíduo desviante tão somente em razão de ter ele incorrido na prática de um delito.
Cezar Roberto Bitencourt observa que tal argumentação rechaça todas as teorias que
justificam a pena como instrumento de prevenção de delitos:

Kant considera que o réu deve ser castigado pela única razão de haver delinquido,
sem nenhuma consideração sobre a utilidade da pena para ele ou para os demais
integrantes da sociedade. Com esse argumento, Kant nega toda e qualquer função
preventiva – especial ou geral – da pena. A aplicação da pena decorre da simples
infringência da lei penal, isto é, da simples prática do delito34.

Percebe-se que, de acordo com a teoria da pena elaborada por Kant, a aplicação da
pena atendendo a fins utilitários ou pragmáticos transforma a pessoa a ela submetida em
objeto, violando a sua eminente dignidade35. Ademais, pode-se afirmar ainda que “pretender
que o direito de castigar o delinquente encontre sua base em supostas razões de utilidade
social não seria eticamente permitido”36.
A teoria da pena elaborada por Hegel37, por sua vez, parte da premissa de que o crime
é a negação do direito, ao passo que a pena é a negação do crime. Em outros termos, a pena é

34
BITENCOURT, 2009, p. 89.
35
DIAS, 2001, p. 73.
36
BITENCOURT, loc. cit.
37
Embora a maior parte da doutrina brasileira afirme que a teoria elaborada por Hegel é retributivista, esse
entendimento não é unânime. Para Eugênio Pacelli de Oliveira, ainda que se possa reconhecer na elaboração de
Hegel “um partidário de uma teoria absoluta da pena, no sentido de que, praticado um delito, deve-se lhe seguir
uma sanção”, sua dialética, “segundo a qual o crime seria uma negação do direito, e que, assim, a sua negação
seria a afirmação do direito, não pode ser interpretada como uma manifestação retributivista, unicamente”
(OLIVEIRA, 2004, p. 31). Ao contrário, entende o doutrinador brasileiro que a teoria hegeliana acerca dos fins
da pena apresenta objetivos preventivos (especial e geral). Sobre a prevenção geral, Eugênio Pacelli de Oliveira
afirma que “Hegel irá concluir que a vontade do criminoso, representada pela coação não jurídica, pode e deve
ser destruída por outra vontade, que seria a coação jurídica, de modo que, no momento dialético da totalidade, o
crime se visse superado pela afirmação do direito. É então que se manifesta a prevenção especial: a vontade do
criminoso, uma vez realizado o crime (a coação não jurídica) permaneceria existente enquanto não contrariada
por outra coação (a jurídica); eis porque a imposição de uma sanção (da pena) revela-se juridicamente necessária
para a afirmação do Direito. E eis porque, atuando diretamente na vontade do criminoso (que existiria enquanto
não afrontada), a pena se justificaria como uma prevenção especial, voltada, primeiramente, para a reabilitação
do agente, em face da concepção eticizante do Direito e do Estado que fundamenta a teoria hegeliana”
(OLIVEIRA, 2004, p. 32). Em relação ao objetivo da prevenção geral, Eugênio Pacelli de Oliveira explica que
“o Estado Democrático de Direito, não só reconhece, mas institui a proteção dos direitos fundamentais, por meio
de inúmeras garantias individuais oponíveis contra o Estado e mesmo contra o particular. Nessa medida, a
necessidade de afirmação do Direito é, em si mesma, uma necessidade de proteção dos direitos individuais e
coletivos passíveis de violação [...] Por que intervém o Estado no âmbito do Direito penal? [...] para a proteção

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a negação da negação do direito. Assim, para Hegel a pena justifica-se pela necessidade de
restabelecimento da ordem jurídica, negada com o crime praticado pelo delinquente. Dito de
outro modo, “a imposição da pena implica, pois, o restabelecimento da ordem jurídica
quebrada” e deve retribuir ao condenado proporcionalmente ao crime por ele praticado, ou
seja, “o quantum ou intensidade da negação do direito será também o quantum ou intensidade
da nova negação que é a pena”38.
Embora a teoria elaborada por Hegel afirme que a pena é determinada pela conduta do
delinquente, tal teoria não se confunde com o sistema talional. Isso porque na formulação
hegeliana não há fixação de correspondência entre determinadas modalidades de penas e
determinados delitos. Hegel apenas demonstra a equivalência entre conduta e pena, pois a
concebe como “a maneira de compensar o delito e recuperar o equilíbrio perdido”39.
Para Jorge de Figueiredo Dias, as teorias retributivistas da pena são inadmissíveis no
âmbito de um Estado democrático, pluralista e laico40, haja vista resultarem de uma confusão
entre direito e moral. Ao contrário, tais teorias são idôneas a justificar modelos não liberais de
direito penal máximo, conforme aponta Luigi Ferrajoli:

a confusão é explícita nas concepções da pena enquanto “retribuição ética”, que lhe
atribuem diretamente um valor moral correspondente ao desvalor moral
ontologicamente associado ao delito. Entretanto, é implícita também nas doutrinas
que consideram a pena uma “retribuição jurídica”, as quais, conferindo valor ético,
antes mesmo que às penas, à ordem jurídica que as mesmas deveriam reintegrar,
equivalem a uma legitimação moral ainda mais apriorística e incondicionada
daquelas41.

No entanto, Jorge de Figueiredo Dias assinala que o mérito das doutrinas


retributivistas reside na afirmação do princípio da culpa, segundo o qual “não pode haver pena
sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”42. Com
a elaboração das referidas teorias, o princípio da culpa tornou-se marco orientador da toda a

dos direitos, consubstanciados em bens e/ou valores juridicamente reconhecidos, contra a violência e contra o
arbítrio” (OLIVEIRA, 2004, p. 32-33). Daí o caráter preventivo geral da concepção hegeliana da pena.
38
BITENCOURT, 2009, p. 90.
39
Ibid., p. 91.
40
DIAS, 2001, p. 71.
41
FERRAJOLI, 2010, p. 239-240.
42
DIAS, op. cit., p. 70.

83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

aplicação da pena, resultando em “um veto incondicional à aplicação de uma pena criminal
que viole a eminente dignidade da pessoa humana”43. Além disso, deve-se considerar que,
embora toda pena suponha a existência de culpa, o contrário não é verdadeiro, uma vez que
somente a culpa que se manifestar simultaneamente à necessidade de pena deverá ser punida,
razão pela qual se pode afirmar que “a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento
único da pena”44.

3.2 AS TEORIAS PREVENTIVAS DA PENA

As teorias preventivas ou relativas da pena, também denominadas utilitaristas,


justificam a pena a partir da necessidade de prevenção das práticas delituosas. De acordo com
essa concepção, a sanção penal deve ser imposta como forma de impedir que o indivíduo
desviante reincida no delito.
Luigi Ferrajoli explica que as teorias preventivas são “todas as doutrinas utilitaristas,
que consideram e justificam a pena enquanto meio para a realização do fim utilitário da
prevenção de futuros delitos”45. Por conceberem a pena como instrumento para a realização
de outros fins é que essas concepções são consideradas teorias de fins propriamente ditos46.
As teorias preventivas são agrupadas de acordo com a perspectiva pela qual
compreendem a pena. Sendo assim, têm-se, de um lado, as teorias que entendem a pena como
instrumento de prevenção geral, na medida em que defendem que seu caráter preventivo atua
diretamente em relação a todos os membros da coletividade; de outro, as teorias que
concebem a pena como instrumento de prevenção especial ou individual, visto que
consideram que sua finalidade preventiva atua diretamente em relação ao indivíduo desviante.

3.2.1 As Teorias da Prevenção Geral

43
DIAS, 2001, p. 70.
44
Ibid., p. 71-72.
45
FERRAJOLI, 2010, p. 236.
46
DIAS, op. cit., p. 72.

84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

As doutrinas da prevenção geral caracterizam-se por conceberem a pena como


instrumento destinado a atuar em relação à generalidade dos indivíduos de uma determinada
comunidade, como forma de afastá-los das práticas delituosas. De acordo com essa
concepção, a pena tem a função de desencorajar os indivíduos da prática de condutas
criminosas tanto por meio da ameaça legislativa de sua aplicação, quanto através do exemplo
dos condenados ao seu cumprimento. Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias observa que

o denominador comum das doutrinas da prevenção geral radica na concepção da


pena como instrumento político-criminal destinado a actuar [sic.] (psiquicamente)
sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de
crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da aplicação judicial
das penas e da efectividade [sic.] da sua execução47.

As teorias da prevenção geral são agrupadas ainda segundo compreendem a finalidade


preventiva da pena sob uma perspectiva negativa ou positiva. As teorias da prevenção geral
negativa concebem a pena como instrumento destinado a intimidar os indivíduos de uma
determinada comunidade, afastando-os da prática de condutas delituosas. A intimidação é
resultado da ameaça de aplicação da pena estabelecida na legislação penal, bem como do
sofrimento que a sua imposição representa aos condenados. Daí falar-se em teorias da
prevenção geral negativa ou de intimidação48. Por outro lado, as teorias da prevenção geral
positiva consideram a pena meio adequado a afirmar à comunidade a vigência e a validade do
ordenamento jurídico-penal. Nessa perspectiva, os fins da pena identificam-se com a
manutenção e o reforço da confiança dos indivíduos na eficácia da lei penal. Essa concepção é
denominada teoria da prevenção geral positiva ou de integração49.
Um dos principais defensores da teoria da prevenção geral foi Ludwig Feuerbach,
formulador da “teoria da coação psicológica”, segundo a qual “a pena é, efetivamente, uma
ameaça da lei aos cidadãos para que se abstenham de cometer delitos”50. Disso decorre que,
de acordo com essa concepção, “a finalidade precípua da pena seria a de criar no espírito dos

47
DIAS, 2001, p. 74.
48
DIAS, loc.cit.
49
Ibid., p. 74-75.
50
BITENCOURT, 2009, p. 93.

85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

potenciais criminosos um contra-motivo suficientemente forte para os afastar da prática do


crime”51.
Considerando que a “teoria da coação psicológica” entende que a ameaça da pena é
motivo suficiente para afastar os indivíduos do delito, pode-se dizer que, sob essa perspectiva,
o direito penal é o instrumento pelo qual se pode solucionar o problema da criminalidade.
Para tanto, é necessário, preliminarmente, a tipificação e a cominação penal, ou seja, “a
ameaça de pena, avisando aos membros da sociedade quais as ações injustas contra as quais
se reagirá”52. Além disso, em um momento posterior, faz-se necessário o cumprimento da
ameaça contida na legislação mediante a aplicação da pena cominada.
No entanto, diversas críticas são dirigidas à “teoria da coação psicológica”.
Primeiramente, argumenta-se que tal concepção ignora a confiança do delinquente em não ser
descoberto, o que implica em admitir que a ameaça da pena por si só não é suficiente para
afastá-lo de práticas criminosas53. Esse argumento é reforçado a cada novo crime cometido,
demonstrando que, em termos práticos, os efeitos preventivos pretendidos pela teoria não são
alcançados. Além disso, considerar a pena como instrumento de intimidação dos membros da
comunidade pode levar legisladores e magistrados a estabelecerem e aplicarem penas
demasiadamente elevadas, que excedem os limites impostos pela culpabilidade do
delinquente, tendo em vista que tal pena, em tese, provocaria maior intimidação54.
Finalmente, critica-se a “teoria da coação psicológica” em razão da necessidade
imprescindível de que todos os destinatários conheçam os termos exatos da lei penal,
especialmente a espécie e a quantidade de pena cominada para cada delito, a fim de que se
abstenham de praticar condutas delituosas em virtude da ameaça da pena.
Para Luigi Ferrajoli, as doutrinas da intimidação podem, ainda, ser agrupadas em
outras duas categorias: por um lado, as teorias nas quais a intimidação é dirigida a todos os
membros da comunidade através do exemplo fornecido pela aplicação da pena com a
condenação; por outro, as teorias que compreendem a intimidação como efeito da ameaça da
pena contida na lei, exercido em relação aos indivíduos em geral.
Contra as doutrinas que buscam a intimidação dos membros da comunidade em geral
por meio do exemplo da aplicação da pena, pode-se argumentar com base na elaboração
51
DIAS, 2001, p. 75.
52
BITENCOURT, 2009, p. 93.
53
Ibid., p. 84.
54
DIAS, op. cit., p. 77.

86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

kantiana, uma vez que a punição exemplar de um indivíduo com vistas a intimidar todo o
corpo social, caracteriza a utilização do homem como meio a realizar fins a ele estranhos, de
modo a violar sua eminente dignidade55. Além disso, essa concepção da pena é apta a
legitimar modelos de direito penal máximo, caracterizados pela incerteza processual, pela
inobservância de garantias individuais e por uma sanção penal que se orienta segundo a
máxima severidade. Para conseguir a intimidação pretendida pelos defensores dessa
concepção, seria até mesmo justificável a punição de inocentes, ou seja, a aplicação da pena
desvinculada da culpabilidade ou até mesmo em face da ausência de provas da ocorrência do
crime56. Nesse sentido, Luigi Ferrajoli entende que

tal doutrina da pena é virtualmente solidária com modelos substancialistas de direito


penal ilimitado e com esquemas de processo que excluem as garantias de defesa, em
particular o princípio do in dubio pro reo” [...] uma prática penal orientada pela
função dissuasiva da imposição e não da ameaça da pena pode efetivar-se em
punição discricionária e desigual, segundo as conveniências políticas ou o alarme
social, em relação aos quais o condenado é destinado a servir como ‘bode
expiatório’57.

Por outro lado, as doutrinas da prevenção geral negativa, caracterizam-se por buscar a
intimidação de todos os membros da comunidade a partir da ameaça da pena contida na lei,
isto é, relacionam “a função dissuasiva do direito penal em relação à generalidade dos
associados não imediatamente ao caráter exemplar da imposição da pena, mas sim, e
mediatamente, à ameaça contida na lei penal que ela representa”58. Nessa perspectiva, pode-se
afirmar que a sanção penal consubstancia-se

no efeito (desincentivador) estabelecido pela lei penal para dissuadir a sua própria
infração, ou, ainda, garantir-lhe a eficácia, não diverso, entretanto, de qualquer outro
tipo de efeito jurídico, cuja previsão por parte de uma norma primária possui sempre
o objetivo de assegurar a eficácia da norma secundária que disciplina o ato ao qual
aquele é imputado59.

55
FERRAJOLI, 2010, p. 257.
56
FERRAJOLI, loc. cit.
57
Ibid., p. 258.
58
FERRAJOLI, loc. cit.
59
FERRAJOLI, loc. cit.

87
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Luigi Ferrajoli entende que o aspecto positivo das doutrinas da prevenção geral
negativa reside no fato de serem as únicas a não confundirem o direito com a moral ou a
natureza. Isso porque tais teorias têm como escopo a comunidade em geral, e não apenas
indivíduo desviante60. Além disso, tendo em vista a previsão legal abstrata dos delitos e das
penas, a função preventiva geral tem o mérito de enfocar o delito, protegendo os delinquentes
de “tratamentos desiguais e personalizados com fins corretivos de emenda ou de terapia
individual ou social ou para fins políticos de repressão exemplar”61.
No entanto, embora as teorias da prevenção geral através da ameaça legal da pena
procurem estabelecer parâmetros legais de modo a assegurar garantias individuais em face
dos possíveis abusos do judiciário, tais doutrinas não são idôneas a impedir os possíveis
excessos do legislativo na tarefa de prescrever os tipos de penas e suas quantidades. Isso
porque, em tese, quanto mais elevada e severa a pena, maior seria a sua eficácia em relação ao
objetivo de dissuadir os indivíduos em relação à prática de delitos62.
Em relação à vertente positiva das teorias da prevenção geral, cabe destacar a teoria da
prevenção geral positiva fundamentadora e a teoria da prevenção geral positiva limitadora.
Welzel e Jakobs são os principais defensores teoria da prevenção geral positiva
fundamentadora. De forma sintética, pode-se dizer que Welzel entende que

o Direito Penal cumpre uma função ético-social para a qual, mais importante que a
proteção de bens jurídicos, é a garantia de vigência real dos valores de ação da
atitude jurídica. A proteção de bens jurídicos constitui somente uma função de
prevenção negativa. A mais importante missão do Direito Penal é, no entanto, de
natureza ético-social. Ao proscrever e castigar a violação de valores fundamentais, o
Direito Penal expressa, da forma mais eloqüente [sic.] de que dispõe o Estado, a
vigência de ditos valores, conforme o juízo ético-social do cidadão, e fortalece sua
atitude permanente de fidelidade ao Direito63.

No mesmo sentido, Jakobs acredita que as normas jurídicas têm a função de orientar a
conduta dos indivíduos nas suas relações sociais, com vistas a estabilizá-las e institucionalizá-
las. Assim, quando uma norma é violada, faz-se necessário reafirmar a sua vigência, a fim de
manter a confiança da comunidade no ordenamento jurídico, bem como afirmar sua função

60
FERRAJOLI, 2010, p. 257.
61
Ibid., p. 259.
62
Ibid. p. 260.
63
BITENCOURT, 2009, p. 100-101.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

orientadora. Portanto, “enquanto o delito é negativo, na medida em que infringe a norma,


fraudando expectativas, a pena, por sua vez, é positiva na medida em que afirma a vigência da
norma ao negar a infração”64.
Entretanto, autores como Mir Puig e Baratta apontam para alguns equívocos da teoria
de Jakobs. Enquanto Baratta argumenta que a referida teoria não explica por que a
estabilização de expectativas deve ocorrer por meio da aplicação da pena, ao invés de outros
meios equivalentes e menos graves, conservando e legitimando a tendência à expansão do
direito penal diante dos problemas sociais, Mir Puig pondera que tal teoria permite a
utilização da pena até mesmo em casos em que a proteção dos bens jurídicos não é
necessária65.
Por outro lado, a teoria da prevenção geral positiva limitadora sustenta que “a
prevenção geral deve expressar-se com sentido limitador do poder punitivo do Estado”66. Essa
teoria parte da premissa de que o direito penal é apenas um dos meios de controle social
existente, cujo aspecto característico é a sua formalização. Assim, a aplicação da pena deve
obedecer a determinados pressupostos e submeter-se a determinadas limitações, isto é, “a
pena deve manter-se dentro dos limites do direito penal do fato e da proporcionalidade, e
somente pode ser imposta através de um procedimento cercado de todas as garantias jurídico-
constitucionais”67. Dessa forma, segundo Hassemer, um dos seus defensores, por meio da
pena torna-se possível ao Estado garantir a juridicidade e formalização do direito penal, eleito
o modo social adequado para punir o delito68.
Vale registrar, ainda, que Luigi Ferrajoli dirige relevante crítica às doutrinas da
prevenção geral ao assinalar que, embora elas estabeleçam limitações garantistas internas à
função penal, não são idôneas a assegurar limitações externas no sentido de conter a tendência
a um direito penal máximo. Ou seja, deve-se considerar que “o objetivo da eficácia das
proibições penais não condiciona, de nenhuma forma, a quantidade e a qualidade das penas.
Ao contrário, sugere a máxima crueldade punitiva”69.

64
BITENCOURT, 2009, p. 101.
65
Ibid., p. 102.
66
Ibid., p. 103.
67
BITENCOURT, loc. cit.
68
BITENCOURT, loc. cit.
69
FERRAJOLI, 2010, p. 260.

89
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

3.2.2 As Teorias da Prevenção Especial ou Individual

As teorias que concebem a pena como instrumento de prevenção especial ou


individual também objetivam evitar a prática de delitos. No entanto, ao contrário das teorias
da prevenção geral, as teorias da prevenção especial entendem a pena como instrumento de
prevenção de delitos que atua direta e exclusivamente em relação ao indivíduo desviante. Para
Jorge de Figueiredo Dias, “as doutrinas da prevenção especial ou individual têm por
denominador a ideia de que a pena é um instrumento de actuação [sic.] preventiva sobre a
pessoa do delinquente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes”70. Por
esta razão, fala-se em “prevenção da reincidência”.
Von Liszt, cujas reflexões foram importantes no desenvolvimento dessa teoria,
entende que a necessidade de pena é medida em função de critérios preventivos especiais. A
pena deve ser aplicada atendendo a uma ideia de ressocialização e reeducação do delinquente,
de intimidação em relação aos indivíduos que não necessitem ressocializar-se, e de
neutralização e inocuização em relação aos considerados incorrigíveis71. Verifica-se, portanto,
que a prevenção especial orienta-se exclusivamente ao indivíduo desviante com vistas a
prevenir a reincidência.
No entanto, uma crítica relevante que é dirigida às teorias de prevenção especial diz
respeito a situações em que apesar da gravidade do delito cometido, o delinquente não
necessite intimidação, reeducação ou inocuização. Nesses casos, a consequência seria a
impunidade do agente delituoso, visto que não haveria razão suficiente que justificasse a
aplicação de pena.
Igualmente relevante é a crítica dirigida por Jorge de Figueiredo Dias à teoria da pena
como instrumento de prevenção especial:

é hoje seguramente de recusar uma acepção da prevenção especial no sentido da


correcção [sic.] ou emenda moral do delinquente [...] De recusar será igualmente o
paradigma médico ou clínico da prevenção especial, sempre que ele se tome como
tratamento coactivo [sic.] das inclinações e tendências do delinquente [sic.] para o

70
DIAS, 2001, p. 78.
71
BITENCOURT, 2009, p. 96.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

crime. Ainda aqui não cabe ao Estado uma tal tarefa, a qual se apresentaria sempre
como violadora da liberdade de autodeterminação do delinquente 72.

Já a crítica que Luigi Ferrajoli dirige às teorias utilitaristas da prevenção especial parte
da afirmação de que tais doutrinas, assim como as doutrinas retributivistas, confundem o
direito com a moral ou a natureza:

a confusão entre direito e moral ou entre direito e natureza afeta não apenas a
concepção do delito, mas, também, aquela da pena, a qual vem compreendida,
moralistica ou naturalisticamente, como instrumento benéfico de reabilitação do
condenado, e, sob este prisma, rotula projetos autoritários de moralização individual
ou de ortopedia social conflitantes com o direito da pessoa a permanecer imune às
práticas coativas de transformação73.

Ao conceber a pena como instrumento de prevenção destinado a atuar exclusivamente


em relação ao delinquente, diferenciando-os em razão das suas características pessoais ao
invés de tomar em consideração os delitos praticados, as doutrinas da prevenção especial
aproximam-se de concepções de direito penal de autor. Dessa forma, o direito penal torna-se o
meio destinado não apenas à prevenção de delitos, mas também apto a “transformar as
personalidades desviantes por meio de projetos autoritários de homologação ou,
alternativamente, de neutralização das mesmas mediante técnicas de amputação e de melhoria
social”74.

4 A LEGITIMIDADE DA PENA A PARTIR DO CONCEITO DE ESTADO DE


DIREITO

Após brevemente apresentar os principais aspectos das teorias retributivistas e


preventivas da pena, bem como apontar aqueles que as tornam incompatíveis com o modelo
de Estado de direito, agora serão apresentadas algumas considerações levantadas por Luigi
Ferrajoli que entendemos relevantes na tentativa de elaboração de uma concepção que
justifique a existência da pena no âmbito do Estado de direito.

72
DIAS, 2001, p. 81.
73
FERRAJOLI, 2010, p. 256.
74
Ibid., p. 247.

91
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Ao iniciar a análise acerca da legitimidade da pena no Estado de direito, Luigi


Ferrajoli explica que o utilitarismo de origem contratualista e iluminista orienta-se segundo
duas premissas distintas: de um lado, a máxima utilidade possível garantida à maioria
formada pelos não desviantes; de outro, o mínimo sofrimento necessário a ser impingido à
minoria formada pelos desviantes. Nesse sentido, o jusfilósofo italiano afirma que

a primeira reporta a finalidade (apenas) aos interesses da segurança social, distintos


dos daqueles que suportam a pena, e, portanto, torna possível a avaliação entre
custos e benefícios. A segunda, ao invés, reporta a finalidade (também) aos
interesses dos destinatários da pena, que, sem esta, poderiam sofrer males
extrapenais maiores, tornando assim possível a comparação entre estes e os meios
penais adotados. É claro que a primeira versão não pode exigir nenhum limite ou
garantia na intervenção punitiva, sendo idônea, pois, para fundar, inclusive, modelos
de direito penal máximo. A segunda, por seu turno, é uma doutrina sobre os limites
do direito penal, consentindo-lhe, pois, a justificação somente se suas intervenções
forem limitadas ao mínimo necessário. Se, realmente, a finalidade a ser alcançada
contra a repetição de futuros delitos for somente aquela da máxima segurança social,
tal fato, por si só, servirá para legitimar, aprioristicamente, os meios máximos, ou
seja, as penas mais severas, inclusive aquela de morte, bem como os procedimentos
mais anti-garantistas, compreendidas a tortura e as medidas policiais mais
pervasivas e não liberais75.

Percebe-se, portanto, que o utilitarismo penal moderno caracteriza-se por partir de


uma interpretação parcial dos postulados do utilitarismo tal como concebido no período
iluminista. Isso porque o utilitarismo penal moderno adota como premissa somente a garantia
da máxima utilidade possível em relação à maioria composta pelos indivíduos não desviantes.
Por esta razão, verifica-se que as teorias preventivas da pena, apresentam um limite em razão
do tipo de utilitarismo que adotam, qual seja “a comissuração do objetivo utilitário da pena
somente por meio do parâmetro beccariano e benthamiano da ‘máxima felicidade dividida
pelo maior número possível de pessoas’”76. Com acerto, fala-se de um “utilitarismo partido ao
meio”, uma vez que tal interpretação diz respeito somente à máxima utilidade para maioria77.
Nesse sentido, Luigi Ferrajoli sustenta que as doutrinas utilitaristas

sempre conferiram à pena um objetivo único, qual seja a prevenção dos futuros
delitos, tutelando, assim, a maioria não desviante, e deixando de lado aquele da
prevenção das reações arbitrárias ou excessivas, tutor da minoria desviante e

75
FERRAJOLI, 2010, p. 243.
76
Ibid., p. 308.
77
FERRAJOLI, loc. cit.

92
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

daqueles assim considerados, a ponto de justificar a indistinta qualificação das


mesmas como doutrinas da “defesa social” em sentido lato 78.

Analisando os escopos das doutrinas utilitaristas, quais sejam, a emenda ou correição


do réu (no caso da prevenção individual positiva), a neutralização do réu ou sua colocação em
uma condição na qual não possa causar mal (no caso da prevenção individual negativa), a
dissuasão de todos os membros da comunidade em relação ao delito por meio do exemplo da
punição ou de sua ameaça legislativa (no caso da prevenção geral negativa), ou ainda, o
reforço da ordem mediante a reafirmação dos valores jurídicos lesados (no caso da prevenção
geral positiva), verifica-se que em todos os casos a prevenção é concebida exclusivamente
para o cuidado com os delitos futuros. Por esta razão, o moderno utilitarismo penal é
considerado “um utilitarismo bipartido, voltado somente para a utilidade da maioria e,
consequentemente, exposto à tentação da autolegitimação e a desdobramentos autoritários em
direção a modelos de direito penal máximo”79. Como consequência, a maior parte das
doutrinas utilitárias não responde satisfatoriamente “à objeção moral kantiana segundo a qual
nenhum homem pode ser tratado como um ‘puro meio’ para fins que não são seus”80, haja
vista que tais concepções baseiam-se na instrumentalização do homem com o objetivo de
alcançar fins alheios a ele.
Dessa forma, para que a sanção penal encontre legitimação no contexto do Estado de
direito, é necessário justificá-la recorrendo, também, ao segundo parâmetro utilitário, ou seja,
deve-se considerar “além do máximo bem-estar possível dos não desviantes também o
mínimo mal-estar necessário dos desviantes”81. Ao adotar como objetivo da pena apenas a
prevenção de delitos, estabelece-se somente o limite mínimo das penas, isto é, o parâmetro
abaixo do qual a sanção revela-se imprópria, inadequada e desprovida de justificação.
Entretanto, tal concepção é insuficiente para estabelecer o limite máximo das penas82.
Conforme explica Luigi Ferrajoli, faz-se imperioso, além do objetivo de prevenir delitos, o
reconhecimento da necessidade da prevenção da

78
FERRAJOLI, 2010, p. 244.
79
Ibid., p. 245.
80
Ibid., p. 246.
81
Ibid., p. 308.
82
Ibid., p. 308-309.

93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

maior reação – informal, selvagem, espontânea, arbitrária, punitiva mas não penal –
que, na ausência da pena, poderia advir da parte do ofendido ou de forças sociais ou
institucionais solidárias a ele. É o impedimento deste mal, do qual seria vítima o réu,
ou, pior ainda, pessoas solidárias ao mesmo, que representa [...] o segundo e
fundamental objetivo justificante do direito penal [...] a pena não serve apenas para
prevenir delitos injustos, mas igualmente injustas punições [...] Tutela não apenas a
pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinquente contra reações informais,
públicas ou privadas. Nesta perspectiva a pena ‘mínima necessária’ de que falavam
os iluministas [...] não é apenas um meio, constituindo, ela própria, um fim, qual
seja, aquele da minimização da reação violenta ao delito. E este objetivo,
diferentemente daquele da prevenção dos delitos, é também idôneo a indicar, em
razão da sua homogeneidade com o meio, o limite máximo da pena, além do qual
não se justifica que esta substitua as penas informais83.

Assim, entende-se que o direito penal deve ter como objetivo tanto a prevenção geral
dos delitos quanto a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. Enquanto a
prevenção dos delitos estabelece o limite mínimo das penas e reflete o interesse da maioria
não desviante, a prevenção geral das penas arbitrárias impõe o limite máximo das penas e
representa o interesse do indivíduo que se encontra na situação de suspeito ou acusado da
prática de um delito. Embora tais objetivos e interesses sejam aparentemente conflitantes,
tanto a prevenção dos delitos quanto a prevenção de penas arbitrárias, apresentam um aspecto
comum que se confunde com o objetivo geral do direito penal, qual seja, o “impedimento do
exercício das próprias razões”, ou, de modo mais abrangente, “a minimização da violência na
sociedade”84. Conforme explica Luigi Ferrajoli,

tanto o delito como a vingança constituem exercício das próprias razões. Em ambos
os casos ocorre um violento conflito solucionado mediante o uso da força: da força
do réu, no primeiro caso; da força do ofendido, no segundo. E, em ambos os casos, a
força é arbitrária e incontrolada não apenas, como é óbvio, na ofensa, mas também
na vingança, que é, por natureza, incerta, desproporcional, desregulada, e, às vezes,
dirigida contra um inocente. A lei penal é voltada a minimizar esta dupla violência,
prevenindo, através da sua parte proibitiva, o exercício das próprias razões que o
delito expressa, e, mediante a sua parte punitiva, o exercício das próprias razões que
a vingança e outras possíveis reações informais expressam85.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o direito penal destina-se à proteção do fraco
contra o mais forte, ou seja, o direito penal tem como objetivo, no caso do delito, tutelar o
ofendido em relação ao delinquente, e no caso da vingança, proteger o réu em relação ao

83
FERRAJOLI, 2010, p. 309.
84
Ibid., p. 310.
85
Ibid., p. 311.

94
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ofendido e aos demais que lhe são solidários86. Evidencia-se, assim, que as duas finalidades
preventivas do direito penal não são incompatíveis, mas, ao contrário, guardam conexão entre
si. Isso porque tanto a prevenção dos delitos quanto a prevenção das penas arbitrárias

legitimam, conjuntamente, a ‘necessidade política’ do direito penal enquanto


instrumento de tutela dos direitos fundamentais, os quais lhe definem,
normativamente, os âmbitos e os limites, enquanto bens que não se justifica ofender
nem com os delitos nem com as punições87.

Cabe assinalar que a legitimidade do direito penal – e consequentemente, da pena –,


enquanto meio através do qual se objetiva a proteção dos direitos fundamentais, não é
meramente formal, ou seja, não se baseia no simples consenso da maioria. Ao contrário, a
legitimidade do direito penal deve ser materialmente democrática, ou, ainda, “garantista”,
conforme terminologia adotada por Luigi Ferrajoli, no sentido de instrumento destinado à
tutela de valores e de direitos fundamentais mesmo contra os interesses da maioria:

esta legitimidade [...] não é ‘democrática’ no sentido que não provém do consenso
da maioria. É, sim, ‘garantista’, e reside nos vínculos impostos pela lei à função
punitiva e à tutela dos direitos de todos. ‘Garantismo’, com efeito, significa
precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação,
mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito
penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e
das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a
dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia da sua liberdade,
inclusive por meio do respeito à sua verdade88.

Dessa forma, pode-se afirmar, ainda, que um sistema penal justifica-se na medida em
que a violência representada pelos delitos, vinganças e punições arbitrárias for superior à
violência racionalizada e instituída por meio do aparato estatal, consubstanciada na aplicação
da pena criminal, com vistas a prevenir delitos futuros e reações não jurídicas a estes. Em
outros termos, a pena justifica-se apenas enquanto mal menor, isto é, enquanto menos violenta
e menos aflitiva se comparada à violência decorrente das práticas delituosas e das reações
arbitrárias que poderiam ocorrer em sua ausência. Em síntese, “o monopólio estatal do poder

86
FERRAJOLI, 2010, p. 311.
87
Ibid., p. 312.
88
FERRAJOLI, loc. cit.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

punitivo é tanto mais justificado quanto mais baixos forem os custos do direito penal em
relação aos custos da anarquia punitiva89”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o desenvolvimento dos objetivos específicos propostos na busca de apontar


elementos idôneos à construção de uma teoria que legitime e justifique a existência da pena
criminal a partir dos postulados do conceito de Estado de direito, nos é possível enunciar
algumas considerações que sintetizam os resultados a que chegamos.
A concepção de Estado de direito adotada no presente trabalho desenvolve-se em
torno da ideia da necessidade do estabelecimento de limites aos poderes do ente estatal por
meio da vinculação formal e substancial destes ao direito, a fim de assegurar o respeito aos
direitos e garantias fundamentais. Para realização desse fim, a lógica do Estado de direito
encontra-se intrinsecamente associada à ideia de Estado democrático, entendido enquanto
modelo que pressupõe a igualdade entre os cidadãos em um sentido material.
Partindo desse aporte teórico, foram assinalados os aspectos que tornam as teorias
retributivistas e preventivas da pena inconciliáveis com o paradigma de Estado de direito. As
teorias retributivistas da pena são inadmissíveis no âmbito de tal modelo de Estado por
resultarem de uma confusão entre direito e moral, o que as torna idôneas a justificar modelos
autoritários de direito penal máximo. As teorias preventivas, por sua vez, são inadequadas da
ótica do conceito de Estado de direito por se assentarem em uma interpretação parcial do
utilitarismo de origem iluminista, tendo como escopo exclusivamente a prevenção dos delitos
futuros, ou seja, a máxima utilidade da maioria somente.
Assim, entende-se que a construção de uma teoria que busque legitimar a pena de
modo harmônico em relação aos postulados do paradigma do Estado de direito, deve partir da
premissa de que o direito penal tem como objetivo geral a minimização da violência na
sociedade. Isso implica entender o direito penal como instrumento por meio do qual se
objetiva tanto a prevenção geral dos delitos quanto a prevenção geral das penas arbitrárias ou
desmedidas. A prevenção dos delitos vincula-se ao interesse da maioria não desviante,
visando assegurar os direitos fundamentais dos indivíduos que compõem o corpo social, e
estabelece o limite mínimo das penas. Por outro lado, a prevenção das penas arbitrárias

89
FERRAJOLI, 2010, p. 312.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

representa o interesse do indivíduo que se encontra na situação de suspeito ou acusado da


prática de um delito e impõe o limite máximo das penas, caracterizando uma garantia
fundamental que o assiste. Compreendido o direito penal simultaneamente sob essas
perspectivas, a pena criminal encontra fundamento no conceito de Estado de direto, pois ao
adotar como objetivo a minimização da violência na sociedade, ao mesmo tempo busca-se
maior efetividade e eficácia aos direitos fundamentais.

97
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Elsevier, 2004.

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Coimbra: Edições Almedina, 2003.

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Fontes, 2006. p. 95-198.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra: Coimbra Editora,
2001.

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uma teoria à luz da Constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.

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Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo:
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KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução de Marylene
Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos
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ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de Monica de Sanctis


Viana. São Paulo: Saraiva, 2011.

ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo
(Org.). O Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes,
2006. p. 3-94.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL:


CONSEQUÊNCIAS E PARADOXOS

LA EXPANSIÓN DEL DERECHO PENAL EN SOCIEDADES


POSTINDUSTRIALES: CONSECUENCIAS Y PARADOJOS

Luis Gustavo Blaskesi de Almeida 1

RESUMO
O Direito Penal na atualidade sofre uma onda de criminalização orientada, em grande parte,
pelo anseio de que ele possa solucionar os vácuos deixados pelo governo, em razão de sua
parca atuação no sistema econômico. Todavia, sabe-se que a lei penal não possui vocação
para atuar fora de seus matizes originais e quando o faz, acaba por infringir o maior dos
princípios, exatamente, o da legalidade. Nesse sentido, o presente estudo visa desvelar o
passado, o presente e algumas possíveis consequências em relação ao futuro desta
malsucedida intervenção, sobretudo, no que diz respeito à lei penal, quando se pretende lançar
mão de sua proteção em matéria financeira, econômica e tributária.
PALAVRAS-CHAVE: Expansão; Direito Penal; Estado Democrático.

RESUMEN
El derecho penal en la actualidad sufre una ola de criminalización, impulsado en gran medida
por el deseo de que puede resolver los vacíos dejados por el gobierno debido a su escaso
rendimiento en el sistema económico y administrativo. Sin embargo, se sabe que el derecho
penal no tiene vocación para actuar fuera de sus colores originales, y cuando lo hace, se
termina rompiendo el mayor de los principios exactamente la legalidad. Por consiguiente, este
estudio tiene como objetivo revelar el pasado, el presente y algunas posibles consecuencias
para el futuro de esta intervención excesiva, sobre todo en lo que respecta al derecho penal,
cuando se quiere hacer uso de su protección en materia financiera, económica y fiscal.
PALABRAS CLAVE: Expansión; Derecho Penal; Estado Democrático.

1
Analista Processual da Justiça Federal do Rio de Janeiro, Especialista em Ciências Criminais pela PUC/RS,
Mestrando do PPGSD da UFF

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INTRODUÇÃO

O Estado provedor, originado após o abandono das idéias iluministas do século


XVIII, teve como característica a índole da intervenção, esta sob todos os aspectos. A partir
das Constituições modernas, inúmeros foram os princípios que passaram a nortear e a
ressaltar a maior regulamentação estatal no meio econômico e financeiro.
No Brasil, entretanto, foi adotado um modelo econômico que privilegia a livre
iniciativa e a propriedade privada, onde o Estado atua meramente como agente supletivo da
esfera de mercado.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por seu turno, prima pela
concretização do pleno Estado Democrático de Direito, cujo equilíbrio está na posição
intermediária a ser adotada entre dois sistemas, o liberal e o social, mas com preponderante
defesa da dignidade da pessoa humana, bem como da promoção de maior justiça social.
Sobre este prisma, ainda, o modelo ocidental de “Estado-Nação” subdesenvolvido
vem sendo assolado sobremaneira pelo fenômeno globalizante, cujos efeitos acabam por
enfraquecer as estruturas estatais, cujas conseqüências imediatas são a exclusão dos mais
necessitados e a violação dos direitos humanos.
Reflexo destes elementos objetivos e subjetivos que circundam a esfera estatal, tendo
como paradigma o Brasil, verifica-se o aumento do poder interventivo, não em saúde,
educação ou cultura, mas em matéria de criminalização.
Cerceado pela insuficiência de recursos e por inúmeros outros fatores negativos, o
Estado, por meio de intensa legiferação, em detrimento de princípios constitucionais, utiliza-
se do Direito Penal para intervir na sociedade, mesmo que simbolicamente, imaginando-se
estar esmorecendo o fervor social.
A expansão do Direito Penal, principalmente no Brasil, tem-se transformado em
tortuoso processo para os juristas, haja vista a polêmica técnica de estruturação dos
respectivos tipos penais, revelando uma defasagem dogmática em relação a este novo
paradigma penal.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO PROVEDOR

Com o advento do Estado do Bem-Estar Social – Welfare State2 – no início do século


XX, em detrimento do Estado liberal, e particularmente com a sua formatação jurídica como
Estado Democrático de Direito, as velhas ideologias, em parte, foram deixadas de lado3.
Contudo, para esta transformação foi necessária uma compreensão de que para a
realização de finalidades superiores, constitucionais, que abrangessem a todos imprescindível
seria a união das esferas privada e estatal. Explicando esta mutação, Fábio Konder Comparato
assim explica:

No primeiro caso, o Direito apresentava um caráter meramente declaratório


da ordem natural das coisas; no segundo, ele se torna um instrumento de consecução
de fins, ou seja, assume o caráter de norma técnica4.

Diante desse quadro, as Constituições contemporâneas, espelhadas nas Constituições


Mexicana, de 1917, e Weimar, surgida em 1919, passaram a conter princípios e normas sobre
a ordem econômica. Tal ingerência, alavancada pelo Estado moderno, teve como fundamento,
a priori, inúmeras transformações ocorridas no mundo dos negócios, passando por uma
acentuada crise enfrentada pelo capitalismo 5.
Bolzan e Streck traçam diversas causas que desencadearam tal processo, entre elas
estariam: a) revolução industrial, b) a primeira guerra mundial, c) a crise econômica de 1929
e a depressão e d) a segunda guerra mundial, fatores estes que redundaram em mudanças em
âmbito das condições de trabalho, acentuaram um desagregamento e produziram a
necessidade de uma economia interventiva 6.

2
Segundo Lênio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais, este modelo estatal tinha como escopo a intervenção
e a promoção, caracterizando-se como sendo aquele que capaz de garantir “[...] tipos mínimos de renda,
alimentação, saúde, habitação, educação,, assegurados, a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito
político” (STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e teoria geral do estado. 2.ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p.71).
3
“A História desta passagem, de todos conhecida, vincula-se em especial à luta dos movimentos operários pela
conquista de uma regulação para a convencionalmente chamada questão social. São os direitos relativos às
relações de produção e seus reflexos, como a previdência e a assistência sociais, o transporte, a salubridade
pública, a moradia, etc., que vão impulsionar a passagem do chamado Estado Mínimo – onde lhe cabia âmbito
do mercado – para o Estado Intervencionista - que passa a assumir tarefas até então próprias à iniciativa privada
– expressas como intervenção do Estado no ou sobre o domínio econômico”. (MORAIS, José Luís Bolzan de.
As funções do estado contemporâneo. o problema da jurisdição. Cadernos de Pesquisa da Unisinos, n.03, s.d.
p.12).
4
COMPARATO, Fábio Konder. Ordem econômica na constituição brasileira de 1988. RDP, n.93, p.264.
5
PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais,1973. p.08.
6
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Op. cit., p. 63.

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2 O PARADIGMA DA POLÍTICA ECONÔMICA ESTATAL INTERVENTIVA E A


UTILIZAÇÃO DO DIREITO PENAL COMO MEIO E NÃO COMO FIM

A intervenção econômica sobre a qual se comenta se materializa de forma mais


intensa ou menos, dependendo do modelo econômico adotado por determinado Estado. No
Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de
1988, em seu art. 170, oferece uma organização de ordem socioeconômica, equilibrada sobre
uma mistura de "socialismo" e "liberalismo" 7. Outrossim, a Constituição consagra um
princípio básico do liberalismo, que é a iniciativa privada e, por outro lado, como forma de
contrabalançar esta relação, privilegia os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa
humana8. Esta seria, em tese, a caricatura do chamado Estado Providência.
Desta complexa interação entre mercado econômico e trabalho, tornou-se necessária
a ingerência do Estado por meio de uma legiferação adequada, na medida em que as normas
do Direito comum, por si só, não seriam suficientes. Assim, o dirigismo econômico 9 torna-se
uma realidade, juntamente com um novo ramo do Direito: o econômico.
O Direito Econômico vem previsto na Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988; em seu art. 24, I, é concebido especialmente como meio de traduzir, em
normas, a instrumentalização das políticas econômicas a serem adotadas pelo Estado
brasileiro.
Nesse sentido, conceituando este ramo do Direito, Fábio Konder Comparato
assevera:

O novo Direito econômico surge como o conjunto das técnicas jurídicas de


que lança mão o Estado contemporâneo na realização de sua política econômica. Ele
constitui assim a disciplina normativa da ação estatal sobre as estruturas do sistema
econômico, seja este centralizado ou descentralizado10.

7
Exemplo disso pode ser observado nos incisos XXII: É garantido o direito de propriedade, e XXIII: A
propriedade atenderá a sua função social, respectivamente, do artigo 5º da Constituição Federal da República
Federativa do Brasil/1988.
8
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 763 e
ss. Streck e Bolzan criticam esta posição, afirmando que “No Brasil, a modernidade é tardia. O intervencionismo
estatal, condição de possibilidade para a realização da função social do Estado e caminho para aquilo que se
convencionou chamar de Estado Social ou Estado de Bem-Estar Social, serviu apenas para acumulação de
capital e renda para as elites brasileiras” (STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Op. cit., p.73).
9
Ricardo Antunes Andreucci explica que: “Ao dirigismo correspondeu um aumento da estrutura burocrática
estatal, sem a qual a administração não encontraria meios adequados à execução de suas atividades e, ainda,
correlatamente, um aumento de poder, sem o qual estas atividades não se concretizariam. Surge, portanto, um
aparato administrativo de enorme extensão, com condições de, não raro operar como redutor de liberdades e
direitos, embora não se possa dizer que liberdade e intervencionismo sejam antitéticos” (ANDREUCCI, Ricardo
Antunes. O direito penal econômico e o ilícito fiscal. Revista dos Tribunais, n.426, 1971. p.301).
10
COMPARATO, Fábio Konder. O indispensável direito econômico. Revista dos Tribunais, n.353, 1965. p.22.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

No mesmo sentido, o professor Eros Roberto Grau entende o Direito Econômico


como sendo um:

[...] sistema normativo voltado à ordenação do processo econômico,


mediante a regulação, sob o ponto de vista macrojurídico, da atividade econômica,
de sorte a definir uma disciplina destinada à efetivação da política econômica11.

A intervenção estatal sobre a ordem econômica, buscando a consecução de seus


objetivos de índole econômica e financeira, diante de condutas abusivas e contrárias ao
direito, estendeu esta ingerência ao campo do Direito Penal como forma de não ver abalado o
desenvolvimento econômico, criando tipos e respectivas sanções penais protetivas de
interesses jurídicos que, em tese, seriam dignos de uma proteção especial.
Antecede, contudo, à intervenção do Direito Penal, uma filtragem que tem como
ponto de partida os fins a que o Direito Penal se propõe, sob pena de os valores
constitucionais, os quais legitimam toda e qualquer intervenção penal, serem renegados a
segundo plano.
Sob este prisma, Márcia Dometila Lima de Carvalho entende que:

Partindo-se do fato de ter a ordem constitucional vigente projetado um


modelo econômico capaz de concretizar os direitos sociais (nela sensivelmente
alargados) e implementar a justiça social (por ela almejada), não é difícil concluir
que a criminalidade contra a ordem econômico-financeira solapa a concretização dos
direitos sociais e a consecução da justiça social12.

Em sentido contrário, Marcelo Bertolucci elenca diversos argumentos que apontam


para os inconvenientes deste tipo de criminalização, dando destaque à própria impunidade
como um dos fatores13.
De qualquer forma, esta “nova” criminalidade, sob a influência de E. Sutherland,
cunhada de White-collar criminality, ou criminalidade do colarinho branco; erigida
justamente com o Estado contemporâneo, com denotações econômicas, financeiras e
tributárias, produziu, na dogmática penal, um verdadeiro surto. Ante as características que lhe
são peculiares, os comportamentos antieconômicos trouxeram consigo uma profunda

11
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p.175.
12
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 1992. p.92.
13
BERTOLUCCI, Marcelo Machado. O crime de não-recolhimento de tributos e contribuições: aspectos
críticos. Revista de Estudos Tributários, n.14, jul.-ago. de 2000, p.148.

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modificação nos bens jurídicos, colocando-os na categoria de ultima ratio para garantir o
adequado desenvolvimento de um dado modelo econômico 14.
Deste enfrentamento, qual seja, Direito Penal versus criminalidade moderna, William
Terra de Oliveira tece o seguinte comentário:

[...] o Direito Penal Clássico tende a resistir à quebra de seus postulados,


apresentando e dando sustentáculo (ainda nos dias de hoje) a um arsenal punitivo
incompatível, em termo de eficácia repressora e preventiva, com muitas das
querências coletivas. Por conseqüência, de plano torna-se evidente que o aparato
penal tradicional, construído sobre fundamentos dogmáticos afetos à condutas
vicejantes no século passado, tende a buscar novas soluções contra a aparição e
proliferação desses neófitos comportamentos delitivos, os quais, nem sempre,
encontram estrita adequação aos tipos penais clássicos 15.

Embora a doutrina trave constantes discussões acerca das políticas criminais


adotadas pelo Estado, por outro lado, é unânime na constatação desta nova criminalidade
(macrocriminalidade) 16, com características de danosidade transindividual.
Sobre esta nova realidade, Jesús-María Silva Sánchez aduz que:

En lo momento actual, en suma, el tema en debate social no es la


criminalidad de los desposeídos, leit-motiv de la doctrina penal durante todo el siglo
XIX y buena parte del siglo XX, sino, sobre todo, la criminalidad de los poderosos y
de las empresas (crime of the powerful, corporate and business crime) 17.

Vale referir, entretanto, que o mesmo autor18 adverte para a perspectiva de que 80%
da criminalidade ainda se manifesta como aquela definida como lower class ou criminalidade
de massa.

14
CORREIA, Eduardo. Introdução ao direito penal econômico, direito penal económico e europeu: textos
doutrinários. Lisboa: Coimbra Ed., 1998. v.I, 299 e ss.
15
OLIVEIRA, William Terra de. Algumas questões em torno do novo direito penal econômico. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n.19, 1995. p.232.
16
Como ilustração, vale trazer um exemplo típico deste tipo de criminalidade que, por meio das denominadas
contas CC5, disseminaram no Brasil, o crime de evasão de divisas (CARVALHO, Joaquim de. O paraíso CC5.
Revista Veja, 25.08.1993, p.88 e ss.).
17
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las
sociedades postindustriales. Barcelona: Civitas, 1999. p.41.
18
Sobre a criminalidade de massa, Wingfried Hassemer faz a seguinte dedução: "Assaltos de rua, invasões de
apartamentos, comércio de drogas, furtos de bicicletas ou delinqüência juvenil crescem, ao passo que sua
elucidação policial bem como sua real elucidação tendem a zero. Estas manifestações da criminalidade afetam-
nos diretamente, seja como vítimas reais ou possíveis. Os efeitos não são apenas econômicos, mas sobretudo
atingem nosso equilíbrio emocional e nosso senso normativo: trata-se da sensação de desproteção e de debilidade
diante de ameaças e perigos desconhecidos, que nos leva a duvidar da força do direito" (HASSEMER,
Wingfried. Segurança pública no estado de direito. In: Três temas de direito. Porto Alegre, AMP/Escola
Superior do Ministério Público, 1993. p.64).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Importante assim refletirmos sobre a adequação dos princípios gerais do Direito


Penal, como o princípio da legalidade, com o atual modelo de intervenção do Estado na área
penal.

3 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE COMO PARADIGMA LEGITIMADOR DE


TODA E QUALQUER INTERVENÇÃO NO CAMPO PENAL

O principio da legalidade ou principio da reserva legal ou, ainda, intervenção


legalizada, divulgado pela fórmula "nullum crimen nulla poena sine lege"19, é tido, dentro do
ordenamento jurídico, como o princípio mais relevante e, por isso, consagrado em quase todos
os códigos dos países civilizados, bem como nas Constituições modernas. Ao contrário do que
entendem alguns autores, Luiz Luisi esclarece que o surgimento deste primado se deve ao
pensamento iluminista, liderados pelos pensadores liberais 20.
Luisi elucida tal princípio ao desdobrá-lo em três postulados, quais sejam : o da
reserva legal, que concerne à fonte das normas penais incriminadoras, da taxatividade, ou
seja, relativo à formulação do tipo penal e, por último, o da irretroatividade que é justamente a
validade da lei penal no tempo 21.
Logo, conforme entende o mestre gaúcho, no século XVIII, insurgindo-se contra o
sistema penal de seu tempo, Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, lançou, com Dei delitti e
delle pene, as bases deste princípio fundamental; esteio do Estado Democrático de Direito 22.

19
O Principio da legalidade, ao longo do tempo, sofreu mutações e adições que lhe conferiram o status de maior
garantia à liberdade individual, principalmente, dentro do regime democrático. Vale referir, pelos ensinamentos
de Maurício Antonio Ribeiro Lopes que, a partir da formulação clássica da expressão nullum crimen nulla poena
sine lege, sucederam-se a ela desdobramentos, cujos conteúdos trataram de reconhecer a irretroatividade da lei
penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia), banir do sistema a eleição de comportamentos penais pelo
costume (nullum crimen nulla poena sine lege scripta), proibir o emprego de analogia para criar crimes,
fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nula poena sine lege certa), e proibir incriminações vagas,
desprovidas de certeza (nullum crimen nula poena sine lege stricta), também chamado de princípio da
taxatividade (LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal – projeções contemporâneas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p.15).
20
LUISI, Luiz. Pena e constituição. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, v.3, n.1,
1990, p.28.
21
Ibid., p.24.
22
Conforme Cesare Beccaria afirmara: “Quando as leis forem fixas e literais, quando apenas confiarem ao
magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para indicar se esses atos são conformes à lei escrita, ou
se a contrariam; quando, finalmente, a regra do justo e do injusto, que deve orientar em todos os seus atos o
homem sem instrução e o instruído, não constituir motivo de controvérsia, porém simples questão de fato, então
não se verão mais cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos, tanto mais intoleráveis
quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido; que se fazem tanto mais cruéis quanto maior
resistência encontram, pois a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, porém aos entraves que
lhes são opostos; e são tanto mais nefastos quanto não há quem possa libertar-se de seu jugo senão submetendo-
se ao despotismo de um só. Com leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os
inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do
crime" (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. [s.l.]: Martin Claret, 2000. p.23-24).

105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O princípio da legalidade representa, atualmente, a primeira garantia do cidadão em


face do poder punitivo do Estado e, portanto, a determinação segura do campo específico da
ilicitude penal. Trata-se, segundo Nilo Batista23, da "[...] pedra angular de todo direito penal
que aspire à segurança jurídica".
Na esteira da expansão do Direito Penal no Estado pós-moderno, é possível
identificar que o princípio da legalidade vem sofrendo séria mitigação de sua eficácia, do que
serve de exemplo o uso indiscriminado das normas penais em branco quando se trata de
criminalizar condutas afetas às áreas econômico-financeiras e tributárias.
O princípio da legalidade, principalmente em âmbito criminal, vale lembrar, garante
ao cidadão a faculdade de conhecer os fatos que pode ou não praticar, ou seja, de forma
prévia, sem qualquer tipo de surpresa, aquele que cometer um fato tido como delituoso,
automaticamente será passível de punição, visto que previsto em lei. Como visto, entretanto, a
exceção, vem se transformando em regra.
A norma penal em branco configurar-se quando a norma penal alçada pelo poder
legislativo necessitar de complementação, ou seja, dentro do ordenamento jurídico ela
encontra-se incompleta. Sendo assim, o preenchimento deste vazio, por sua vez, será afeto a
órgãos de esfera diversa, v.g., o Poder Executivo 24.
Segundo Salo de Carvalho, a norma penal em branco, consoante afirmara Binding,
seria “um corpo errante em busca de alma” e explica que a doutrina admite tal norma nos
crimes ambientais, de entorpecentes e na criminalidade econômica, na medida em que a
proteção dos bens jurídicos lesados ou em perigo restaria prejudicada em razão da lenta
formulação legislativa25.
Por exemplo, nos crimes tributários o aplicador da lei penal-tributária poderá se
deparar com normas incompletas, ditas em branco, aquelas nas quais a conduta incriminada
não está integralmente definida, como visto, necessitando de complementação 26. Batista
entende que esta complementação pode ser feita por outro dispositivo de lei (complementação
homóloga), pela própria lei penal (complementação homóloga homovitelina), por lei diversa

23
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4.ed. São Paulo: Renavam, 2001. p.67.
24
CARVALHO, Salo de. A política de drogas no Brasil: do discurso oficial às razões de descriminalização.
2.ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997. p.82.
25
Ibid., p.83.
26
No dizer de Pimentel, as norma penais em branco "[...] caracterizam-se pelo fato de não determinarem, no
preceito primário, o comando de ação ou de omissão de maneira completa, delegando à autoridade
administrativa a sua complementação" (Op.cit. p.49).

106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

(complementação homóloga heterovitelina), ou por fontes legislativas de hierarquia inferior


(complementação heteróloga)27.
Nesse sentido, tem-se que as normas penais em branco de complementação
heteróloga seriam inconstitucionais por violar a concepção de reserva absoluta e, por
conseguinte, o princípio da reserva legal.
Consoante explica Nilo Batista:

A concepção de 'reserva absoluta' postula que a lei penal resulte sempre do


debate democrático parlamentar, cujos procedimentos legislativos, e só eles, teriam
idoneidade para ponderar e garantir os interesses da liberdade individual e da
segurança pública, cumprindo à lei proceder a uma 'integral formulação do tipo'
[...]28.

Como bem destaca Misabel Derzi, poderá ocorrer uma afronta aos princípios
delineados, nos casos em que obrigações tributárias acessórias, constitutivas dos tipos penais
da Lei 8.137/90 (tipificadora dos crimes contra a ordem tributária), necessitarem de
complementação29.
Explica a professora mineira que, quando os tipos desta lei remetem sua
complementação à lei tributária, v.g., informando apenas o vocábulo "em desacordo a
legislação", deve-se interpretar à luz da Constituição e em detrimento do art. 96, do CTN 30,
que tal expressão não poderá significar que decretos e atos administrativos criem ou
modifiquem substancialmente estas obrigações 31.
Além disso, o princípio da segurança jurídica, aquele em que, conforme J. J.
Gomes Canotilho:

[...] o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos [sic] ou às decisões
públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados
ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos
duradouros, previstos ou calculados com base nessas normas32,

27
BATISTA, Nilo. Op. cit., p.75.
28
Ibid., p.73.
29
DERZI, Misabel. Crimes contra a ordem tributária, normas penais em branco e legalidade rígida.
Repertório IOB, n.13, 1ª quinz. jul. 1995. p.214.
30
Art. 96. A expressão "legislação tributária" compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os
decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles
pertinentes.
31
DERZI, Misabel. Op. cit., p.214.
32
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p.371.

107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

estará a salvo, sempre que as normas penais, ditas em branco, forem preenchidas por lei, sem
lacunas ou atos administrativos providos do poder executivo.
Ademais, toda e qualquer exceção ao princípio da legalidade, que implique
modificação de conceitos, deveres ou obrigações deverão estar amparadas e autorizadas por
norma constitucional, na medida em que esta transformação poderá influir na caracterização
da responsabilidade penal.

4 A LEGITIMAÇÃO DA ESCOLHA DOS BENS JURÍDICOS DIFUSOS QUE


MERECEM A TUTELA PENAL: TRÊS OUTROS PRINCÍPIOS

A teoria do bem jurídico penal, sem dúvida, apresenta-se como o norte principal para
a moderna ciência penal. É mediante a determinação de certo bem (objeto concreto de tutela
penal), que tal ciência obtém suporte para ligar-se à realidade.
Antecede, contudo, aos critérios pelos quais há a seleção dos bens e valores
essenciais da sociedade e que, por isso, devem ser tutelados pelo Estado, um importante
fenômeno pelo qual a sociedade é atingida, qual seja: o processo de massificação.
A massificação da sociedade (ou seja, uma sociedade de produção, troca e consumo
em massa) acabou por produzir situações e conflitos por demais complexos, sendo possível
imaginar que os prejuízos decorrentes deste processo afetam, não mais a um particular, mas
sim a uma gama de pessoas, envolvendo grupos, classes e coletividades. São as chamadas
violações de massa33.
Sobre este quadro é que se debruça o moderno operador do Direito Penal, na medida
em que, consoante Faria Júnior bem explica: “No âmbito econômico, como conseqüência do
dinamismo da sociedade moderna, chegou-se à configuração de bens jurídicos chamados
difundidos ou difusos”34.
Os direitos difusos, segundo explicita Teori Zavaski, seriam transindividuais, ou seja,
portadores de uma indeterminação absoluta e indivisíveis, porquanto afeitos a todos os seus
titulares35. Neste prisma, o Direito Penal lança o seu feixe de proteção justamente sobre estes
bens jurídicos, visto passíveis, quando atingidos, de irradiarem danosidade coletiva.

33
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de Processo,
n.5, 1977. p.130.
34
FARIA JÚNIOR, César de. Crimes contra a ordem tributária. Cadernos de Direito Tributário e Finanças
Públicas, n.4, jul./set. de 1993, p.115.
35
ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. Revista Forense, Rio de
Janeiro, n.329, 1995. p.148 e ss.

108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Nesse aspecto, o ponto mais polêmico, quiçá, que circunscreva a intervenção penal
sobre determinadas práticas anticontributivas, fiscais ou econômicas seria o processo e
critérios de individualização e determinação de bens jurídicos, feito pelo legislador, para a
elaboração das respectivas normas incriminadoras. E isto pressupõe o fim a que se destina o
Direito Penal.
O sistema penal visa à proteção de determinados bens jurídicos, mas o legislador ao
legislar, sempre terá princípios constitucionais limitadores à função por ele exercida,
principalmente para a escolha de um bem jurídico passível de ser protegido.
Desta forma, o poder punitivo do Estado nunca poderá proibir condutas, senão,
consoante noticia Juarez Freitas:

[...] quando impliquem em lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos, tomados


como valores concretos que tornam possível a proteção da pessoa humana, como seu
destinatário final, ou que assegurem a sua participação no processo democrático,
sem qualquer referência a um dever geral de obediência36.

Não por acaso, que o conceito de bem jurídico resultou de cansativa elaboração
doutrinária, primeiramente buscando-se um conteúdo material na lesão ou exposição de
perigo de direitos subjetivos. Noutra fase, fim do século XIX, a lesão ou exposição a perigo
de interesses vitais, chegando a doutrina, por fim, à conclusão de que o conteúdo material do
injusto recairia sobre a lesão ou exposição a perigo de um bem jurídico 37.
Com efeito, Assis Toledo entende serem os bens jurídicos “[...] valores éticos-sociais
que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção
para que não sejam expostos a perigo de ataque ou lesões efetivas” 38. O mesmo autor,
entretanto, acrescenta que nem todo bem será necessariamente um bem jurídico e que nem
todo bem jurídico será passível de ser acobertado pela tutela penal 39.
Eventualmente, o que ocorre é a má escolha de bens jurídicos a serem tutelados
penalmente. O legislador, muitas vezes por desconhecimento, renega a segundo plano três
princípios fundamentais e que servem de base formal e material para o surgimento de novos
tipos penais.
O primeiro deles seria o princípio do Estado Democrático de Direito, que está
identificado com a ordem democrática, cuja função primordial è garantir e resguardar a

36
FREITAS, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n.º especial de lançamento, dez. 1992, p.80.
37
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.p.16.
38
Ibid.
39
Ibid., p.17.

109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

dignidade da pessoa humana40. O segundo princípio fundamental seria o da intervenção


mínima, expresso pela máxima ultima ratio; está no ordenamento jurídico para limitar o
direito de punir estatal41. E, por último, mas não menos importante, o princípio da
fragmentariedade, que postula a intervenção penal somente naqueles casos em que haja um
ataque ou agressão intoleráveis, dirigidas contra bens fundamentais 42.

CONCLUSÃO

O Estado brasileiro, há décadas enfraquecido com os inúmeros fracassos, vê-se


impossibilitado de transmitir qualquer legitimidade de seus atos à sociedade. A sociedade
menos favorecida, por sua vez, está acuada, pois é sobre ela que recai e é ela que suporta os
infortúnios43 estatais.
O Direito Penal, desta forma, passa a ser utilizado como um direito voltado para a
gestão de problemas administrativo-sociais. Por isso, o tratamento punitivo emprestado a
essas condutas, tipicamente reguladas pelo Direito Administrativo, em uma tentativa
desesperada de minimizar o vazio deixado pela omissão do Estado na solução das mazelas
sociais, acaba por distanciar o Direito Penal de seu fim e, principalmente, de princípios que
lhe são inerentes, tais como o da legalidade e o da culpabilidade.
E, nesse sentido, importante destacar a seguinte afirmação de Mariz:

A fúria legiferante, no campo penal, em verdade é uma fuga de


responsabilidades e funciona como uma cortina de fumaça lançada sobre os olhos da
população, que clama por soluções para seus cruciais problemas e se ilude com a
tutela penal e agora, com a pena de morte, desonestamente, apresentada como
panacéia para os males da violência. Por falta de capacidade para remover as causas
de inúmeras violações de direito, ou por ser conveniente mantê-las, procura-se a via
cômoda e enganosa de lei penal, ao invés de se trilhar o penoso caminho da
renovação do entulho e do lixo, representado pela má distribuição de rendas, pelos
privilégios, pela corrupção, pela insensibilidade criminosa de parte das elites e pelo
desprezo da classe política, em geral, pelo bem comum44.

40
PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p.52.
41
Ibid.
42
Ibid., p.51.
43
Falta de fiscalização, falta de políticas tributárias ou má aplicação das mesmas e a corrupção são apenas alguns
destes fatores.
44
OLIVEIRA, Antônio Cláudio Mariz de. Reflexões sobre os crimes econômicos. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n.11, 1995, p.94.

110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Em outro giro, pode-se afirmar que o Direito Penal, nessa medida, passa a ser
administrativizado. Essa administrativização, tipologia utilizada por Jesús-María Silva
Sánchez, traz consigo, igualmente, o fenômeno da expansão do Direito Penal para além dos
seus limites, com a flexibilização dos princípios político-criminais e de regras de imputação.
Assim, a medida coercitiva diversa e desviante das históricas conquistas do Direito
Penal resulta, sem sombra de dúvida, em excesso de criminalização, o que deslegitima a
própria lei penal, uma vez que o mau uso deste instrumento ou o seu uso indiscriminado acaba
por gerar impunidade e descrédito perante a sociedade.

111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ANTECEDENTES E REINCIDÊNCIA CRIMINAIS: NECESSIDADE DE


RELEITURA DOS INSTITUTOS DIANTE DOS NOVOS PARADIGMAS DO
DIREITO PENAL.

CRIMINAL BACKGROUND AND RECURRENCE: Replay NEED OF INSTITUTES


IN FRONT OF THE NEW CRIMINAL LAW PARADIGMS.

Antonio José F. de S. Pêcego1

Sebastião Sérgio da Silveira2

RESUMO:

Os antecedentes criminais são utilizados pelo Juiz para majoração da pena-base, na primeira
fase do processo trifásico da fixação da pena. Tal é feito de forma automática, sempre que a
condenação não é considerada para fins de reincidência. Da mesma forma, não existe limite
temporal para a aplicação de tal circunstância judicial. A falta da fixação de um tempo para a
eficácia da circunstância viola diversos princípios da Constituição e do Direito Penal. Da
mesma forma, a reincidência é utilizada como agravante genérica, também de forma
automática, sem que o Estado cumpra o seu dever de ressocialização dos condenados e
assistência ao egresso. Esse comportamento provoca uma assimetria legal e constitucional.
Em atenção aos novos parâmetros do Direito Penal, é necessária a releitura dos dispositivos
da lei penal que disciplinam o instituto, como forma de adequá-los aos paradigmas atuais do
Direito Penal.

PALAVRAS CHAVE: Antecedentes criminais; reincidência; releitura

1
Juiz de Direito em Minas Gerais. Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão
Preto.
2
Mestre e Doutor pela PUC-SP. Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor e
Coordenador do Programa de Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da Universidade de Ribeirão
Preto, Professor do Departamento de Direito Público da FDRP/USP e Promotor de Justiça.

112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ABSTRACT:

The criminal records are used by the judge to increase the sentence in the first phase of the
process of fixing the penalty phase. This is done automatically whenever an order is not
considered for purposes of recurrence. Likewise, there is no time limit for the implementation
of such a circumstance court. The lack of setting a time for the effectiveness of circumstance
violates several principles of the Constitution and the Criminal Law. Similarly, relapse is used
as a generic aggravating, also automatically, without the state fulfills its duty of care and
resocialization of convicts to egress. This behavior causes an asymmetry legal and
constitutional. In response to the new parameters of criminal law, it is necessary to reconsider
the provisions of criminal law governing the institute, in order to adapt them to current
paradigms of Criminal Law.

KEYWORDS: Background; criminal recidivism; rereading

1. INTRODUÇÃO

Rotineiramente são levados em consideração, em desfavor do réu, os maus


antecedentes, cumulados com a reincidência, para agravar a pena daquele que está sendo
condenado pela prática de um novo crime, sendo que essa prática tem apoio de parte da
doutrina, exceto daquela de visão mais garantista.

Muitas vezes, a majoração da pena se dá de forma automática, sem a consideração


objetiva de tais antecedentes (gravidade dos crimes, quantidade de antecedentes, etc.), com a
consideração de critérios definidos pela prática jurídica, sem qualquer critério científico ou
amparo legal, criando situações de profunda injusta, em desrespeito a garantias fundamentais.

Conforme é sabido, inexiste parâmetro legal para a determinação o quantum de


exasperação a ser aplicado em razão dos maus antecedentes criminais, quando da fixação da
pena-base. Tal omissão, exige do Juiz redobradas cautelas, como forma de garantir a
equânime distribuição da justiça.

Da mesma forma, também inexiste paradigma legal para a majoração decorrente da


reincidência, na segunda fase do processo trifásico de fixação da pena, sendo que tais
situações permitem um grau de subjetivismos absolutamente incompatível com os princípios
do direito penal.

113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Assim, a proposta do presente trabalho é fazer reflexões a respeito dos maus


antecedentes e reincidência como parâmetros utilizados dentro do processo trifásico de
fixação da penal.

2. DEFINIÇÃO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS

Os antecedentes do acusado devem ser considerados pelo Juiz como circunstância


judicial para dosar a pena-base, na primeira fase do processo trifásico de fixação da pena, na
forma do disposto no artigo 59 do Código Penal Brasileiro.

Para a expressiva maioria da doutrina nacional, incluindo Roberto Lyra3, Fernando


Capez4, Guilherme de Souza Nucci 5, e Cézar Roberto Bittencourt6, devem ser entendidos
como quaisquer envolvimentos criminais que não geram reincidência.

É certo que existe outra parte da doutrina, capitaneada por Rogério Greco7, insistindo
que somente os fatos decorrentes de sentenças penais condenatórias transitadas em julgado
podem ser consideradas como antecedentes. Todavia, tal questão é meramente semântica e
não merece maiores considerações, na medida em que o relevante é a determinação de quais
antecedentes podem ser considerados pelo Juiz.

Embora não se possa negar que como antecedentes devem ser considerados todos os
fatos que pontilham a vida anteacta do acusado, seja para lhe beneficiar ou, permitir o
agravamento da sanção penal, o fato é que tal consideração in pejus somente é possível nas
hipóteses de sentenças condenatórias que não são consideradas para efeito da reincidência.

Quanto aos outros demais antecedentes, que não se transformaram em sentenças


criminais definitivas, eles não podem ser considerados, sob pena de vulneração da garantia
constitucional da presunção de inocência, prevista no artigo 5º, inciso II, de nossa Carta
Republicana.

3
LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. V. II. Forense: Rio de Janeiro, 1.958, p.211.
4
Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. I, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 412.
5
Código Penal Comentado. 12ª ed. São Paulo: RT, 2012, 428.
6
Tratado de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 590.
7
Código Penal Comentado. São Paulo: Impetus, 2009, 128.

114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Embora parte da doutrina e da jurisprudência teime em sustentar ao contrário8, o


Supremo Tribunal Federal vem entendendo que

somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a


exacerbação da pena, pois, com o trânsito em julgado, descaracteriza-se a
presunção ‘juris tantum’ de inocência do réu, que passa, então, a ostentar o
“status” jurídico-penal de condenado, com todas as consequências legais daí
decorrentes.9

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 444, negando a


consideração de decisões diversas de sentença condenatória, com o seguinte verbete: “É
vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-
base.”

Assim, embora antecedente criminal deva ser considerado como qualquer registro
criminal, somente podem ser considerados como maus antecedentes, para fins de agravamento
da pena-base, aqueles que decorram de sentença judicial definitiva.

3. DEFINIÇÃO DE REINCIDÊNCIA CRIMINAL

A reincidência criminal deve ser entendida como o ato de praticar novamente uma
conduta definida na lei penal, após ter sido condenado anterior e definitivamente por outro
crime, de conformidade com o “caput” do artigo 64 do Código Penal.

Todavia, a reincidência é uma nódoa que contamina o agente por um prazo de 05


(cinco) anos após a declaração da extinção da pena, sendo que após o transcurso de tal
período, o condenado volta à condição de primário, na forma do disposto no artigo 64, inciso
I, do Código Penal, passando tal condenação à condição de simples antecedente.

Na forma do artigo 61, inciso I, do Código Penal, a reincidência é uma agravante


genérica, que deve ser considerada para exasperar a pena do acusado na segunda fase do
processo trifásico de aplicação da pena, isto porque, segundo Basileu Garcia10, “o acertado
intuito da lei é criar obstáculos maiores à repetição de crimes e ao desenvolvimento da

8
FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1.998, p. 238: “Não há ofensa ao art. 5º
LVII da Constituição Federal, o fato de se considerarem como antecedentes aqueles decorrentes de processos
que ainda não transitaram em julgado.”
9
STF, AP nº 503-PR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 31.01.2013. Disponível em www.stf.jus.br, consulta em
17.03.2013.
10
Instituições de direito penal. v. I. t. II. 5ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1.978, p. 473.

115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

criminalidade. É natural que procure o legislador aumentar as penalidades que se mostram


insuficientes”.

Por outro lado, merece registro que parte minoritária da doutrina entende que a
consideração da reincidência se constitui em bis in idem vedado no direito penal, implicando
em dupla sanção, isto porque o réu que já foi condenado e cumpriu integralmente sua pena
não pode mais ser punido por aquele fato. Sustentando neste sentido, destacam-se Zaffaroni e
Pierangeli11 e Alberto Silva Franco12. No direito comparado também existem os críticos da
possibilidade de utilização de fatos pretéritos como critério para a dosimetria de pena um
delito atual. Jiménez de Asúa, nesse sentido anota que:

Estímase por quines así razonan que castigar más gravemente a un hombre a
causa de un delito anterior, cuya condena había sido ya cumplida,
constituiría una grave injusticia, um quebramiento de la máxima non bis in
idem, o que apreciar la recaída con efectos jurídicos sería mezclar La Moral
y el Derecho, que tinenen propias áreas, puesto que es justo que la pena siga
a La manifestación de voluntade criminal.13

Todavia, ainda prevalece à clássica idéia de Aníbal Bruno, para quem

hoje se pode justificar a exacerbação da pena, ao segundo crime, pela maior


culpabilidade do agente, pela maior reprovabilidade que sobre ele recai em
razão de sua vontade rebelde particularmente intensa e persistente, que
resistiu à ação inibidora da ameaça da sanção penal e mesmo da advertência
pessoal, mais severa, da condenação infligida, que para um homem
normalmente ajustável à ordem do Direito.14.

Além de critério de fixação da pena, a reincidência é considerada em diversas outras


situações, como impedimento para a concessão da suspensão condicional da pena (Art. 77, I,
CP); substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito ou multa, na
hipótese de crime doloso (CP, arts. 44, II; 60, § 2º); aumento do prazo de cumprimento da
pena para obtenção do livramento condicional, se dolosa (CP, art. 93, II); não permite que o
regime inicial de cumprimento da pena seja aberto ou semi-aberto, salvo em se tratando de
pena de detenção (CP, art. 33, § 2º, b e c); determina revogação obrigatória do sursis quando

11
ZAFFARONI, Eugênio Raúl & PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pp. 843/844.
12
Código penal e sua interpretação jurisprudencial. v. 1. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.007,
pp.1.179/1.180.
13
JIMÉMEZ DE ASÚA, Luis. Princípios de derecho Penal. La Ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1.997, pp. 536/537.
14
Direito penal: parte geral. t. 3. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 114.

116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

se trate de condenação por crime doloso (CP, art. 91, I), além da revogação facultativa, na
hipótese de condenação por crime culposo ou por contravenção (CP, art. 91, § 1º); determina
a revogação obrigatória do livramento condicional, quando o réu é condenado a pena
privativa de liberdade (CP, art. 96) e revogação facultativa, no caso de crime ou contravenção
(CP, art. 97); invalida a reabilitação criminal sobrevindo condenação a pena diversa da multa
(CP, art. 95); provoca o aumento um terço o prazo de prescrição da pretensão executória (CP,
art. 110, caput); é causa interruptiva da prescrição (CP, art. 117, VI); obsta o reconhecimento
de causas especiais de diminuição de pena (CP, arts. 155, § 2º; 170 e 171, § 1º),

4. MAUS ANTECEDENTES E REINCIDÊNCIA CRIMINAL NUMA VISÃO


AXIOLÓGICA

O direito penal que se legitima num Estado Democrático e Social de Direito, deve se
centrar na responsabilidade penal do agente sobre o fato (direito penal do fato ou da culpa),
não pelo quem é o autor, não sendo razoável cogitar do direito penal do autor.

Nessa linha, das oito circunstâncias judiciais constantes do art. 59 do CP


(“culpabilidade; motivo; conduta social; personalidade, antecedentes; circunstâncias;
consequências do crime; comportamento da vítima”), é inegável que os antecedentes
criminais, a conduta social e a personalidade dizem respeito diretamente ao passado do autor,
ao seu modo de vida ou a sua maneira de ser, mas não ao fato em julgamento, de forma que as
orientações do referido dispositivo legal indicam, nesse ponto, um sistema híbrido, no qual
prevalecem os dois modelos de direito penal (direito penal do fato ou da culpa e direito penal
do autor).

No mesmo sentido, mas já na fase seguinte de aplicação da pena (2ª fase do processo
trifásico), a agravante da reincidência, igualmente diz respeito ao passado do autor, do seu
envolvimento com outros crimes, mas nada diz respeito ao fato em julgamento.

Hodiernamente não mais se afigura lógico e razoável a obrigatoriedade de se


considerar, para a fixação da pena, fatos praticados no passado, principalmente os mais
remotos, notadamente quando tal procedimento é uma prática automática, que desconsidera os
princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.

Embora possa ter relevância em situações particulares, o fato é que a generalização


decorrente da obrigatoriedade de aplicação das chamadas circunstâncias pessoais, acaba
gerando um balizamento que tende a igualar todas as pessoas que tiveram a infelicidade de

117
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

envolvimento em um fato criminal do passado.

Na hipótese específica dos antecedentes, eles passam a se constituir em marca


indelével na vida pregressa do agente, como um estigma que passa a acompanhá-lo pelo resto
de sua vida, sendo que o mesmo não ocorre com a reincidência (CP; art. 64, I), tornando
desarrazoada essa metodologia porque não há valores diferentes a serem considerados.

Dentro dessa ótica, Juarez Tavares sustenta, com acerto, que o sujeito não pode ser
reduzido a uma mera engrenagem de um processo causal, mas que possa

ser tratado dentro de um sistema exclusivo de regras que nele se reproduzem


e auto-reproduzem, simplesmente porque, desconsiderando essa relação
dialética da inclusão e exclusão, os defensores de tal estrutura não poderão
traçar um quadro de valores sobre os comportamentos que ensejaram essas
regras.15

Aceitar esse efeito estigmatizante (maus antecedentes) é reconhecer o malfadado


permanente etiquetamento, tão combatido pela moderna visão da criminologia crítica,
colocando o condenado de outrora, por toda a sua vida, à margem da sociedade, dificultando
sobremaneira a ressocialização do condenado e produzindo efeitos perversos em sua vida
futura.

Ainda que se pudesse aceitar a aplicação dos maus antecedentes como critério
perpétuo de fixação da pena, conforme anotado por Jimenez de Asúa.

(...) no basta con la repetición de actos delictivos, y la facilidad para


realizarlos, como consecuencia de la práctica en este ejercicio, implica
ordinariamente la comisión de pluralidad de infracciones, aunque puede
existir em los delictos continuados y coletivos que están constituídos por
pluralidad de hechos, sin necesidad de más de una infracción.16

Nessa conformidade, se a pena deve ser considerada modernamente como “reacción


17
del orden jurídico perturbado o lesionado por la acción del delincuente” , não se justifica a
consideração de fato ocorrido no passado para a determinação do grau de tal reação estatal.

Dentro dessa ótica, é necessário que em respeito à dignidade da pessoa humana,


princípio básico de um Estado Democrático e Social de Direito, essa mácula dos antecedentes

15
Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 102.
16
Op. cit. p. 542.
17
BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal. Trad. Faustino Gutiérrez-Alviz y Conradi.
Barcelona. Bosch, 1.977, p. 146.

118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

criminais devem desaparecer dos registros criminais do agente, decorridos o igual prazo de
cinco anos aplicável aos reincidentes, tendo como termo a que a data do cumprimento ou
extinção da pena, conforme proposto José Antônio Paganella Boschi18,

De fato, se a reincidência é uma circunstância de maior gravidade, tanto que produz


efeitos muito mais danosos para o agente, tem a cessação de seus efeitos depois de decorridos
5 (cinco) anos do cumprimento da pena, não é razoável que os maus antecedentes, que são
menos graves, possa subsistir por toda a vida do apenado.

Nesse sentido, não é demasiado invocar o princípio da intervenção mínima, que


consoante Antonio Carlos da Ponte, indica que: “O Direito penal deve ter caráter subsidiário,
devendo atuar como ultima ratio legis, depois que todos os demais ramos do direito tenham se
mostrado inócuos e incapazes de salvaguardar bens jurídico-penais relevantes.” 19

O princípio da proporcionalidade, que segundo Canotilho, “coloca a tônica na idéia


de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível.” 20, também deve ser aplicado na
tentativa de reinvenção do conceito de maus antecedentes, como forma de determinar um
limite temporal para a sua eficácia.

Finalmente, também o princípio da alteridade deve ser invocado na tentativa de


enquadramento dos maus antecedentes dentro dos parâmetros ditados pelo direito penal
moderno, isto porque, conforme bem sintetizado por Claus Roxin, “a proteção de bens
21
jurídicos tem por objeto a proteção frente à outra pessoa, e não frente a si mesmo” Nesse
sentido, não se compreende como a perpetuação dos efeitos dos antecedentes criminais
poderia melhorar a proteção do direito penal em face da coletividade.

Nesse ponto, o caráter perpétuo dos maus antecedentes, que não possui limitação
legal mereceu pertinente crítica de Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho:

Ensinam Zaffaroni e Pierangeli que a norma constitucional do art. 5º, XLVII,


b, que veda a prisão perpétua, não pode ser lida de forma restrita. Segundo
os autores, o dispositivo constitucional é indicador do princípio da
humanidade e racionalidade das penas, conforme o qual as penas cruéis

18 Apud. CARVALHO, Amilton Bueno de & carvalho, Salo, Aplicação da Pena e Garantismo. 2.ed. amp. , Rio
de Janeiro: Lumen Iuris, 2002, p. 52.
19
Crimes Eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2.008, p. 74.
20
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2.003, p. 270.
21
A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. André Luis Callegari e Nereu José
Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2.006, p. 23.

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estão proscritas do direito penal brasileiro. Todavia, há um sucedâneo que


deve ser depreendido do princípio constitucional: A exclusão da pena
perpétua de prisão importa que, como lógica consequência, não haja delitos
que possam ter penas ou consequências penais perpétuas... Por mais grave
que seja um delito, a sua consequência será, para dizê-lo de alguma maneira,
que o sujeito deve 'pagar a sua culpa', isto é, que numa república se exige
que os autores de delitos sejam submetidos a penas, mas não admite que o
autor de um delito perca a sua condição de pessoa, passando a ser um
indivíduo 'marcado', 'assinalado', estigmatizado pela vida afora, reduzido à
condição de marginalizado perpétuo.22

De fato, se a pena, que é a maior expiação possível de ser imposta a um cidadão, em


razão de uma prática criminosa, por certo admitir que efeito secundário da condenação possa
ter duração eterna é no mínimo assimetria injustificável.

Ora, se a pena não pode ser perpétua e possui um limite temporal máximo de
cumprimento, por certo, não é possível admitir que o efeito de antecedente criminal
provocado pela sentença penal possa subsistir por prazo indeterminado.

A discussão aqui travada não é nova. Embora não possa indicar a existência de
posição majoritária na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, já decidiu que:

O art. 61, I do CP determina que, para efeito da reincidência, não prevalece à


condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a
infração anterior houver decorrido período superior a cinco anos. O
dispositivo se harmoniza com o Direito Penal e a Criminologia modernos. O
estigma da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo.
Transcorrido o tempo referido, evidenciando-se a ausência de
periculosidade, denotando, em princípio, criminalidade ocasional. O
condenado quita sua obrigação com a Justiça Penal. A conclusão é válida
também para afastar os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a
agravante e persistir genericamente para recrudescer a sanção aplicada.23

No âmbito do Supremo Tribunal Federal a dúvida aqui suscitada não foi solucionada,
isto porque a matéria recebeu repercussão geral nos autos do Recurso Extraordinário nº
593.818-SC, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, em apreciação concluída em 26 de
fevereiro de 2.009, mas ainda não foi submetida à deliberação do Plenário da Corte.

Diante desse quadro, nos afigura absolutamente necessária a adoção do entendimento


segundo o qual os antecedentes criminais do condenado não podem ter efeitos perpétuos ou
permanentes.

22
Op. cit., p. 52-53
23 RHC nº 2.227-2 MG, 6ª Turma STJ, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 29/03/93, p. 5.268.

120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

No sentido da tese aqui esposada, deve ser observado que inexiste conceito legal de
antecedentes criminais ou de sua regulação no tempo, de forma que não há qualquer objeção
concreta para a adoção.

Diante da inexistência de parâmetro legal, a adoção da fórmula para a sua aplicação


deve observar os mesmos critérios traçados para a colmatação de lagunas. Nesse contexto, a
analogia que possui preferência sobre os demais, deve ser o aplicado. Assim, deve ser
utilizado o disposto no artigo 64, inciso I, do Código Penal, que disciplina a cessação dos
efeitos da reincidência.

Como os maus antecedentes possuem natureza diversa da reincidência, a contagem


de prazo para a cessação dos dois institutos não pode ser coincidente. Assim, o parâmetro
mais razoável é a aplicação do mesmo prazo de 5 (cinco) anos. Todavia, o dies a quo do prazo
de duração dos maus antecedentes deve ser considerado após o cômputo do qüinqüênio de
duração da reincidência. Dessa forma, vencido o prazo de efeito da reincidência, deve ter
início o prazo qüinqüenal no qual os maus antecedentes devem ser utilizados como critério de
fixação da pena-base.

Em defesa da impossibilidade de cômputo do mesmo qüinqüênio para a cessação dos


efeitos da reincidência e maus antecedentes, deve ser invocada a Súmula nº 241 do STJ, que
veda a consideração simultânea da mesma condenação para fins de antecedentes e
reincidência.

Portanto, a única forma de permitir a consideração de uma condenação tanto para


reincidência e quanto para maus antecedentes é a adoção de dies a quo distintos para ambos
os institutos, na forma aqui defendida.

5. A INEFICIÊNCIA COMO CAUSA DE REITERAÇÃO NA DELINQUÊNCIA

O Estado não consegue cumprir a sua obrigação de ressocializar todo o condenado


que passa pelo falido sistema prisional, que remonta à idade média e, acaba por infligir ao
sentenciado sanções muito mais graves que aquelas previstas nas respectivas sentenças
condenatórias.

Após o cumprimento da pena, apegado à falsa idéia de que o agente não foi
reintegrado à sociedade e, por essa razão voltou a praticar novo crime, o Estado estabelece
critérios legais de majoração da pena para aqueles que haviam sido condenados anteriormente

121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

por outra prática delituosa.

Sem embargo de que, efetivamente não se tenha lhe dado qualquer chance concreta
de reintegrar ou ressocializar, o Estado entrega os condenados, principalmente os egressos do
sistema carcerário à própria sorte, sem lhes oferecer qualquer tipo de ajuda na difícil tarefa de
reintrodução na sociedade. Além disso, lhe exige comportamento criminal exemplar, sob pena
de lhe tratar de forma rigorosa, inclusive na aplicação das penas.

Assim agindo, o Estado opta por punir novamente o agente, majorando a pena pelo
novo crime praticado, que não possui qualquer relação com o anterior, como se tal
comportamento gerasse uma prevenção especial, sem permitir qualquer tipo de digressão a
respeito dos motivos que determinaram o primeiro dos delitos ou a sua reincidência. Nesse
sentido, é a oportuna lição de Souza de Xavier:

O próprio Estado que pune não deixa de ser um dos estimuladores da


reincidência, na medida em que submete o recluso a um processo
dessocializador e de aculturação, desestruturando sua personalidade por
meio de um sistema penitenciário desumano e que marginaliza, não sendo
razoável que exacerbe a punição a pretexto de que o agente desrespeitou a
sentença anterior, ou porque desprezou a advertência formal contida na
condenação anterior, revelando assim uma culpabilidade mais intensa.24

Com esse comportamento o Estado se apega ao modelo liberal e individualista,


fundado na legalidade formal, se afastando dos postulados do Estado Social de Direitos, que
tem o cidadão como centro de sua existência e, “em favor e da realização das condições de
25
desenvolvimento harmônico e equilibrado do sistema social.” Para atender aos valores da
atual Constituição, seria necessário, de fato, a adoção de políticas de ressocialização dos
condenados e de assistência aos egressos, como forma de prevenir a reincidência e garantir a
dignidade humana, que não foi perdida com a condenação.

Aqui, não é demasiado lembrar que: “No Estado Democrático de Direito instituído
pelo constituinte de 1988, a dignidade da pessoa humana ostenta status de princípio
fundamental, de modo a constituir diretriz obrigatória para todos os operadores do Direito.” 26

Portanto, não é razoável, à luz de tal princípio, a automática majoração da pena para
aqueles que voltaram a praticar novos crimes, sem que o sentenciado tenha sido

24
XAVIER DESOUZA, Paulo S. Individualização da Pena no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 159-160.
25
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1.999, p. 30.
26
FAVORETTO, Affonso Celso. Princípios Constitucionais Penais. São Paulo: RT, 2.012, p. 36.

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adequadamente assistido e, sem que sejam avaliados os motivos e condições que


determinaram a prática delituosa. Nesse sentido é a conclusão de Xavier de Souza:

Portanto, o agravamento da pena em razão da reincidência, soa como de


duvidosa constitucionalidade diante do princípio non bis in idem, que possui
assento no princípio constitucional da legalidade; porquanto, difícil
compreender como um indivíduo possa ser duplamente punido, isto é, como
um fato criminoso que desencadeou a primeira condenação possa servir
também de fundamento para o aumento da pena-base na condenação por
delito posterior. Admitir-se isso, haver-se-ia de admitir como possível
também no Estado Democrático de Direito, a existência de um Direito Penal
atado ao tipo de autor – em razão de ser este reincidente -, constituindo tal
duplicidade uma contradição lógica.27

Sem embargo das ponderações aqui lançadas, a jurisprudência ainda insiste no


reconhecimento da tese contrária, segundo a qual a reincidência e os maus antecedentes são
de aplicação automática no processo de fixação da pena, sendo que isso não induz a qualquer
ilegalidade ou inconstitucionalidade. Nesse sentido:

A reincidência, como circunstância exasperante, não pode e nem deve ser


recebida como degenerativa ao direito do autor, uma vez que é o próprio
quem dá causa à mesma, numa demonstração de que a punição anterior não
serviu para coibi-la, evidenciando desprezo à lei e persistência na prática
delitiva, não havendo, assim, que se falar em ferimento à individualização da
pena (ao contrário, trata-se de um critério desta), ou mesmo incentivo a um
estigma que impede a integração social do apenado, já que, repetindo,
referida circunstância, além de advir de lei codificada, pretende punir aquele
que teima em permanecer na reiteração delitiva.28

Nesse ponto é necessário reconhecer que o Estado é co-responsável pela reincidência


que da causa aos maus antecedentes criminais, sendo que tais fatores quando da aplicação da
pena, deveriam ser considerados atenuantes numa visão crítica, já que o sistema atual macula
a dignidade da pessoa humana, a racionalidade das penas e a integridade física e mental de
todo aquele que é apenado pela segunda vez - agora por meio da responsabilidade penal
objetiva - pelo mesmo fato, agravando a pena do novo crime, em razão da ineficácia da
máquina estatal que dá azo à reiteração criminosa.

Sem embargo da prevalência do entendimento contrário, já surgem às primeiras


manifestações jurisprudenciais de inconformismo com esse modelo atual de consideração
automática da reincidência e maus antecedentes. Nesse sentido, encontramos:

27 Op. cit., p. 159-160.


28 TJMG-ACr 1.0720.03.011202-6/001, Rel. De. (a) Reinaldo Portanova, v.vencedor, j. 13/11/2012, pub.
23/11/2012.

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Prestigiar a reincidência importa em dar ares de legalidade ao direito penal


do autor e puni-lo pelo que ele é, estigmatizando-o a partir das concepções
patológicas de Lombroso.29
Impor a reincidência para majoração da sanção fere o principio da
individualização da pena e o princípio do non bis in idem.30

Arrematando, salienta Adler Chiquezi31, que na atualidade já há países que aboliram


os efeitos da reincidência de suas legislações penais, como fez a Colômbia que em 1980 e
mais recentemente, em 1986, a Alemanha que excluiu de seu Código Penal a reincidência
para o fim de agravação da pena pela prática do novo fato.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O antecedente criminal, da forma com que é visto nos dias atuais, é uma nódoa
permanente, que acompanha o cidadão condenado por decisão criminal definitiva, pelo resto
de sua vida.

Inexiste definição legal de antecedente ou mesmo a fixação de seu limite de eficácia


temporal, sendo que tal omissão legislativa é a responsável pelo desarrazoado entendimento
de o antecedente criminal sempre deve ser considerado na fixação da pena-base na primeira
fase do processo trifásico.

Todavia, os princípios da vigente Constituição da República e a reformulação de


conceitos universais do Direito Penal, nos obriga a uma releitura de dispositivos de nosso
vetusto Código Penal, como forma de possibilitar a interpretação dos seus dispositivos à atual
realidade.

Dessa forma é forçoso reconhecer que a atribuição de caráter vitalício a tal efeito da
condenação (antecedente criminal), vulnera o disposto no artigo 5º, inciso XLVII, aliena “b”,
da Constituição da República, que veda a instituição de penas perpétuas, além dos demais
princípios acima nominados.

De igual forma, o automático reconhecimento da agravante da reincidência como


critério de majoração, na segunda etapa da dosimetria da pena, também não pode ser

29 TJMG-ACr 1.0295.11.003796-3/001, Rel. Des. (a) Reinaldo Portanova, j. 20/11/2012, pub. 30/11/2012.
30 TJMG-ACr 1.0720.03.011202-6/001, Rel. De. (a) Reinaldo Portanova, j. 13/11/2012, pub. 23/11/2012.
31
CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação de
mestrado na PUCSP, tendo como orientador Dr. Prof. Dirceu de Mello. São Paulo, 09/06/2009, p. 89

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

admitida, salvo diante de análise pormenorizada das circunstâncias e motivos das práticas
delitivas e, após cumprido o dever do Estado de ressocialização dos condenados.

Diante desse quadro, o operador do Direito, em obediência aos superiores princípios


da Constituição Federal e, do próprio Direito Penal, deve promover a releitura dos
dispositivos de nosso Estatuto Repressivo e leis especiais, dentro de um processo
hermenêutico, como forma de alterar a interpretação que vem sendo dada aos institutos da
reincidência e maus antecedentes em matéria penal.

5. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

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126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

POLÍTICA CRIMINAL DAS DROGAS: O PROIBICIONISMO E SEU BEM


JURÍDICO
DRUGS CRIMINAL POLICY: PROHIBITIONISM AND ITS HEALTH LEGAL
INTEREST
Katie Silene Cáceres Arguello1
Vitor Stegemann Dieter2
RESUMO
Analisa-se o discurso oficial das drogas responsável pela criminalização primária e secundária
que incide seletivamente nos estratos sociais marginalizados, como política penal negativa. É
assim, mediante o bem jurídico de saúde pública, que se busca legitimar a incriminação de
drogas proibidas. O discurso oficial proibicionista divide-se em quatro planos: moral,
sanitarista, segurança pública e segurança internacional. Dentro do plano sanitarista, o bem
jurídico de saúde pública não representa uma necessidade individual, pelo qual não é legítima
as incriminações de droga no âmbito do bem jurídico, desprovida de políticas públicas
voltadas às necessidades reais da população vulnerável. Os efeitos perversos e mais nefastos
de tal política penal podem ser notados tanto no encarceramento em massa promovido pelas
agências de controle oficial por tráfico de entorpecentes, quanto na utilização constante de
metáforas bélicas em matéria de política criminal, com a efetiva militarização da segurança
pública. Há que se pensar, portanto, em uma política criminal diversa, de redução dos danos
causados pela criminalização, associada à descriminalização das substâncias ilícitas, em face
do fracasso da política repressiva no que diz respeito aos seus objetivos declarados de redução
do consumo, além dos graves prejuízos que ela representa para a democracia e para os direitos
humanos.

Palavras-Chave: proibicionismo; política criminal das drogas; bem jurídico;

ABSTRACT
It analyzes the official discourse of the drugs responsible for primary and secondary
criminalization that selectively focuses on marginalized social strata, as negative penal policy.
Therefore the criminalization of forbidden drugs seeks its legitimation through the legal
interest of public health. The prohibitionist discourse is divide in four planes: moral,
sanitarian, public security and international security. Inside the sanitarian plane, the legal
interest of public health does not represent an individual necessity, therefore drug offences are
not legitimate in the legal interest scope, stripped of public policies towards the real needs of
the vulnerable population. The perverse effects of such adverse penal policy can be noticed in
both the mass incarceration promoted by official agencies for control of narcotics trafficking,
as the constant use of war metaphors in criminal policy, with the effective militarization of
public security. We have to think, therefore, in a different criminal policy, of harm reduction
from criminalization associated with decriminalization of illicit substances, given the failure
of enforcement policy with respect to its stated goals of reducing consumption, beyond
serious harm it poses to democracy and human rights.

1
Professora adjunta da Faculdade de Direito da UFPR. Mestra em Direito pela UFSC. Doutora em Direito pela
Universidade Paris 8.
2
Professor da Escola Superior da Polícia Civil do Estado do Paraná. Mestrando em Direito pela UFPR.

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Keywords: prohibitionism; drugs criminal policy; legal interest;


1 INTRODUÇÃO
A aproximação sobre o tema de drogas não é simples, há muitas vias possíveis dada a
amplitude do assunto. Porém, com o incrível aumento de encarceramentos no Brasil em razão
do artigo 33 da Lei 11.343/06 torna-se difícil negar a prevalência da discussão de política
criminal de drogas sobre outros campos – embora também importantes. Este artigo pretende,
destarte, partir do problema da criminalização e a partir deste pilar expandir a discussão com
as áreas adjacentes, tais como os discursos morais, sanitaristas, de segurança internacional e
de economia subterrânea. Estes discursos, ou planos, aderem ao que Sala de Carvalho (2006),
chama de ponta de lança da política criminal no Brasil.
A hipótese elencada era que a seletividade do Sistema de Justiça Criminal se apoia na
política criminal de drogas, porém para ser sustentada ela precisa entrecruzar como outros
discursos que manterão sua validade democrática. Para tal em primeiro momento se aproxima
da construção social que leva à seletividade penal das drogas, posteriormente a uma teoria de
análise sobre esta evolução histórica política de drogas, formando assim uma teoria sobre os
pilares da política criminal de drogas. Somente então nos aproximamos do Brasil, primeiro
em termos históricos-sociológicos, e posteriormente de forma legislativa para poder entender
esta política no nosso contexto histórico e social. Confirmada a hipótese e uma vez analisado
esses aspectos passamos a discutir se existem outras alternativas à política de drogas, quais
são e sob quais fundamentos devem partir.

2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS DISCURSOS SOBRE A DROGA


Segundo dados estatísticos do DEPEN, de dezembro de 2011, temos uma população
carcerária de 514.582 pessoas, sendo que a prática dos crimes patrimoniais (240.642) e do
tráfico de entorpecentes (125.744) responde pela maior parte da população encarcerada
(366.386). O perfil do traficante é, segundo tais estatísticas, o do jovem, afrodescendente e
pobre, embora nos últimos anos tenha aumentado significativamente o encarceramento de
mulheres por tráfico de drogas, acrescentando mais um problema social às famílias pobres,
cujos filhos ficam órfãos de mãe precocemente.
Esses dados confirmam apenas a seletividade do sistema de justiça criminal, pois a
criminalidade, na perspectiva criminológico-crítica, não é uma qualidade ontológica de
determinados comportamentos e de determinados indivíduos, e sim a atribuição de um status
a determinados indivíduos, por meio de uma dupla seleção: primeiramente, “a seleção dos

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bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos
penais” (processo de criminalização primária); depois, “a seleção dos indivíduos
estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente
sancionadas” (processo de criminalização secundária). Desse modo, conclui-se que “a
criminalidade é um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos
interesses fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os
indivíduos” (BARATTA, 2002, p.161).
Assim como a criminalidade é uma realidade socialmente construída segundo
processos de definições e reações sociais, a droga é objeto de um discurso construído na
obscuridade para que se possa atuar sobre ela de forma arbitrária. Segundo Del Olmo, a
palavra droga generaliza qualquer substância capaz de alterar condições físicas ou psíquicas, o
que comporta tanto substâncias ilícitas como lícitas (caso do álcool, do tabaco, dos
medicamentos controlados). O que interessa não parece ser a substância, sua definição e
menos ainda sua “capacidade ou não de alterar ao ser humano”, mas o discurso sobre ela, de
tal modo que se fala na “droga” no singular e não nas “drogas”, pois quando são agrupadas
em uma única categoria, tem-se uma estratégia para “confundir e separar em proibidas ou
permitidas”, de acordo com a conveniência (1988, p.3-4). O mesmo discurso sobre as
características das substâncias comportará o discurso sobre as características do ator:
consumidor ou traficante, vítima/vitimado, enfermo/perverso, cuja utilidade está no
estabelecimento discursivo de uma polarização entre bem e mal, necessária ao sistema social
para induzir a determinados consensos axiológicos e normativos no sentido de manutenção do
statu quo (OLMO, 1988, p.4).
A definição de drogas lícitas ou ilícitas depende de decisões de ordem econômica,
moral e social sempre valorativas, tal é o caso exemplar da proibição do consumo da folha de
coca que não tem qualquer poder viciante como a substância psicoativa que dela se deriva
(BOITEUX; CHERNICHARO, 2012, p. 8)
Rosa Del Olmo analisa os diversos discursos constitutivos sobre a droga a partir do
fim da Segunda Guerra Mundial, quando a ONU se torna um regulador internacional do
fenômeno. Partiremos da análise de Rosa Del Olmo como eixo fundamental para
compreender a consolidação de um discurso “oficial-científico” sobre as drogas (2003, p.
122).
Na década de 50, os opiáceos (morfina e heroína) e a maconha, consumidos pelo
underground (desde intelectuais, músicos a habitantes dos guetos etc.), constituíam o principal

129
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objeto de preocupação das agências oficiais de controle, particularmente a maconha, por ser
considerada “a erva maldita”, geradora de violência e criminalidade, sobretudo por estar
associada aos imigrantes portorriquenhos e aos negros que lutavam pelos seus direitos civis à
época. O consumidor passou a ser tratado como um “degenerado” e o traficante como
“inimigo externo” (discurso geopolítico), pois havia uma teoria da conspiração comunista que
pretendia corromper a juventude norte-americana com as drogas ilegais. O resultado disso foi
o discurso oficial (ético-jurídico), que representou o aumento de leis penais punitivas e o
discurso científico em torno da preservação da “saúde pública” (OLMO, 2003, p.122).
Na década de 60, a maconha, o LSD e outras drogas sintéticas eram consumidas por
jovens estudantes de classe média, especialmente em virtude do movimento hippie. A
maconha passa a ser a responsável pela “passividade e a ‘síndrome amotivacional’”.
Consolidou-se nesse período o discurso “médico-sanitário-jurídico”, pois o consumidor
recebe o estereótipo de enfermo (OLMO, 2003, p. 125-126) e o traficante o de delinquente.
Há nesse período o crescimento da indústria da “saúde mental”, de tratamentos como o uso da
metadona e de intervenções terapêuticas que reforçaram o “estereótipo da dependência” ao
mesmo tempo que em matéria de segurança se reforça o papel geopolítico do “inimigo
interno”, no caso, a atitude dos jovens contestadores nas universidades. Ao final da década de
sessenta, a “Operação intercept” (OLMO, 1988, p.24) fecha a fronteira mexicana para impedir
a entrada da maconha e assim se inaugura o “discurso do ‘inimigo externo’” e propriamente a
“guerra contra as drogas” do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (OLMO,
2003, p. 125-126).
Na década de 70, a droga considerada mais perigosa era a heroína, depois anfetaminas
e barbitúricos. Desenvolve-se nesse período um “discurso jurídico-político-médico”, ao
mesmo tempo em que no âmbito geopolítico a China comunista era considerada o “inimigo
externo”, a droga era responsável pelo aumento da criminalidade, portanto, o “inimigo
interno”. Nesse período se enfatiza a necessidade de internacionalizar a política criminal
contra as drogas percebidas como ameaça à segurança interna do país. Em 1971, em Viena,
houve o convênio sobre substâncias psicotrópicas para aumentar o controle sobre os fármacos.
Em 1973, criou-se a Drug Enforcement Agency (DEA) (OLMO, 2003, p.126-129). No
entanto, o programa de recuperação dos adictos em heroína pela metadona foi um fracasso. A
Drug Enforcement Agency, em 1974, informou que as mortes pelo consumo ilegal da
metadona se tornaram superiores às mortes pelo consumo da heroína (OLMO, 1975, p.84).

130
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Na década de 80, Reagan iniciou a Estratégia nacional para a prevenção do abuso e do


tráfico de drogas. Em 1986, o seu governo publica o National Security Decision Directive
(NSDD-221), documento em que o tráfico de drogas aparece como ameaça à segurança
nacional e um dos pontos fundamentais da “agenda diplomático-militar” do país (ao lado da
Guerra Fria) (RODRIGUES, 2005, p.298). A droga mais temida seria a cocaína e seu
derivado, o crack, enquanto o cenário de combate seria o da região dos Andes na América
Latina, estendendo-se por todo continente. O discurso oficial seria o “jurídico-transnacional”,
que se torna “discurso geopolítico”, dividindo os países em vítima/vitimado. O “inimigo
externo” é o narcotráfico ou narcoterrorismo, criando-se o “estereótipo político-delitivo
latino-americano” (Cartel de Medellín). Ocorre nesse período a efetiva militarização da
política criminal. Ao plano internacional, no final da década de 80, foi aprovada, em 1988, a
Convenção contra o tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (OLMO, 2003,
p,129-132). A principal preocupação da administração Reagan sobre as drogas centrou-se no
aspecto econômico, pois o mercado subterrâneo das drogas estimava-se equivaler a 10% da
produção industrial do país (algo em torno de mais de 100 milhões de dólares à época)
(OLMO, 1988, p.53).
Na década de 90, segundo Rosa Del Olmo, a mudança no tratamento do fenômeno das
drogas se associa ao fim da Guerra Fria e ao surgimento de ameaças multinacionais à
segurança global. A preocupação gira em torno da globalização do próprio mercado de
ilicitudes e da sua relação com o mercado lícito. Portanto, trata-se de um discurso
“econômico-transnacional”, vinculado ao discurso geopolítico contra o “inimigo global”. O
discurso oficial incorpora-se tanto do discurso científico sobre a “saúde mundial” quanto de
novos inimigos, como os cartéis colombianos (em especial o de Cali), além de organizações
criminosas transnacionais, resultantes da globalização do mercado. Esse novo inimigo
mundial aparece associado sempre à violência, ao terrorismo, ao controle de bancos, de modo
a reforçar o estereótipo financeiro ligado à “lavagem de dinheiro”, o que permite, por sua vez,
construir um consenso em torno de políticas e estratégias para auferir a cooperação
internacional, especialmente na América Latina, interferindo na legislação nacional (2003,
p.133-136). Essa cooperação internacional auferida pela influência na legislação interna de
cada país foi a grande vitória dos Estados Unidos na sua “guerra particular” às drogas. Apesar
disso, o proibicionismo só fez com que o mercado da droga continuasse a se expandir, a se
ramificar, a se tornar um negócio vultoso do ponto de vista econômico e trágico em suas
consequências sociais e políticas.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Na atualidade, apesar dos elevados índices de encarceramento por tráfico de drogas e


as incontáveis mortes causadas pela “guerra às drogas”, sem obtenção de êxito na derrota
desse “inimigo global”, depois do evento de 11 de setembro de 2001, a “guerra ao terror”
desencadeada pelo governo George Bush, intensificou o combate ao narcotráfico.
(RODRIGUES, 2005, p.307-308).

3 DROGAS: OS PLANOS DE AMEAÇA À SOCIEDADE


Principalmente sobre o enfoque político-penal de prevenção geral, no tocante a
consolidação da política proibicionista, há quatro planos de ameaça à sociedade,
interpenetrantes entre si, que instrumentalizam a proibição. Estes planos são moral,
sanitarista, segurança e segurança internacional (RODRIGUES, 2004, p. 131-151). Não se
trata de planos necessariamente cronológicos, mas correspondem a uma consequência lógica.
Não é por outro motivo que Alessandro Baratta (2004, p. 122) chamou a questão das
drogas de sistema fechado. Pois ele se autoreproduz a partir uma imagem inicial, de modo que
a imagem inicial não precisa, necessariamente, ser real, mas tão logo o sistema é posto em
movimento, esta imagem será constantemente reforçada.
Ao longo de todo o século XX, é dos EUA que virá grande força motriz do
proibicionismo. Nesse sentido, paradigmática, historicamente, foi a aprovação da Lei Seca
(1919) que bania bebidas alcoólicas no território estadunidense.
A emenda constitucional foi fruto de movimentos sociais que demandavam uma
atuação paternalista do Estado. Destacaram-se “The temperance movement” que, como
movimento ramificou-se em diversas associações tais como “The anti-saloon league”. O
“temperance movement” defendia que direitos individuais deveriam ser sacrificados pelo bem
comum; daí que o “anti-saloon league” conduzisse essa política contra os locais de corrupção
moral, vendo nos bares (“saloon”) os antros a ser combatidos (MACCOUN; REUTER, 2009,
p. 157-163). Estes grupos assentavam-se no absenteísmo de forte tradição na moral ocidental
religioso. Importante lembrar que esta moral não é universal. Nos seus cultos outras práticas
religiosas como Santo Daime, Umbanda, Candomblé etc. modestamente fogem desta
perspectiva. Porém a moral mainstream arraigada nos valores religiosos judaico-cristãos –
destacando-se aqui principalmente as vertentes protestantes do cristianismo – valoriza o
absenteísmo em contraposição a outros estados mentais.
De fato, os grupos puritanos do começo do século tiveram decisiva influência nas
políticas estatais. As primeiras legislações que incriminavam o uso das drogas ilícitas –

132
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

principalmente ópio e maconha – apoiavam-se muito no preconceito com as substâncias;


preconceito este que muitas vezes advinha da vinculação entre as minorias étnicas e as drogas.
Nos EUA, o ópio difundiu-se entre chineses, negros e porto-riquenhos, enquanto que a
maconha era mais difundida entre os marginais mexicanos e também negros. Era por esse
motivo que durante as primeiras décadas do século XX o haxixe era chamado de droga
assassina (“killer weed”), isto porque, associava-se a imagem da maconha aos seus usuários
(popularmente rotulados como criminosos, violentos, agressivos etc.) (OLMO, 1998, p. 13).
Sob um segundo plano há também um entrelaçamento entre a prática medicinal e o
Estado. No começo do século o Estado limita a prescrição de medicamentos, impondo
controle à atividade médica. A contrapartida desta atitude de limitação estatal foi a atribuição
de legitimidade a um saber médico “científico”, enunciador de verdade, em contrapartida a
um “curandeiristas”, em essência questionável. Inegável o benefício da atribuição de status
aos médicos, mas o custo deste status foi uma restrição de sua autonomia no exercício da
profissão (RODRIGUES, 2004, p. 136-137).
Outro relevante aspecto foi a intromissão do Estado em aspectos que eram antes
próprios do indivíduo, não suscetível de intromissão de terceiros. Porém, apoiado nos
interesses da classe médica, a intromissão era mais do que legitimada.
“Em ambas as dimensões, a das ingerências sobre médicos e usuários, a proibição
consolidou a transformação da questão do uso de psicoativos em um problema de segurança
sanitária.” (RODRIGUES, 2004, p. 137)
Esta é a origem do discurso da saúde pública, cerne do discurso legitimante da política
pública de proibição do uso de drogas (ilícitas). Como se observa, o discurso oficial presente
nos tratados internacionais tende a ressaltar mais este aspecto sanitarista do que o plano
moral.
Não há, nada obstante, como ignorar um plano de controle social. Conforme André
Giamberardino (2010) o conceito de controle social, na sua perspectiva sociológica, provém
da tradição estadunidense que rejeita a centralidade a priori do Estado, contestando a visão
europeia contratualista que privilegia a vigilância e o poder do Estado. Assim, a “força da lei”
tem um papel mais marginal, subordinado às necessidades de produção de consenso.

Em outras palavras, as conexões com problemas macro-sociológicos, tais como


ordem, autoridade e poder, perderam importância em face de uma perspectiva
essencialmente socio-psicológica[sic], ou seja, voltada à socialização do indivíduo
em uma sociedade pluralista. Consequentemente, o “controle social” se apresentou
sobretudo como motivação, ao invés de repressão. (GIAMBERARDINO, 2010, p.
189) .

133
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A visão norte-americana, sem embargo, passa por dificuldades na aplicação no Brasil


e demais países do chamado “terceiro mundo”. Isto porque na nossa tradição antes de um
capitalismo de origem liberal predominam relações autoritárias de sujeição, pelo qual, se fala
de violência estrutural (GIAMBERARDINO, 2010). Outrossim, incorporamos a noção que a
política de drogas impõe um efetivo controle das classes despossuídas, de modo que, na
medida em que grupos sociais de maior poder aquisitivo – para além das minorias étnicas –
vão consumindo a substância, a criminalização deixa de se dirigir ao consumo para ter por
foco o traficante (OLMO, 1998, p. 20-21) – que, nunca é demais recordar, são na sua
esmagadora maioria compostos dos grupos mais marginalizados da sociedade.
O plano do controle social constitui a política bélica e do Estado – do qual o sistema
penal é apenas uma parte – que circunscreve grupos sociais marginalizados ao gueto e ao
cárcere. Desse modo, parece ser útil para o sistema de controle social a incriminação de
condutas marginalizadas, seja ela como consumidor ou como pequeno distribuidor. Não é por
acaso que dados referentes ao contexto brasileiro indicam que um quinto da população
carcerária masculina e dois terços da feminina brasileira permanecem presos condenados por
tráfico de drogas.
A rígida política estatal em relação às drogas não se restringe a territórios nacionais
conforme se constata inclusive antes da Guerra do Ópio entre Inglaterra e China. Desde a
colonização americana houve um tratamento diferenciado dessas substâncias assim que
pisavam em território europeu. Os colonizadores espanhóis, por exemplo, utilizavam a
cocaína como forma de remuneração e disciplina da mão de obra nos territórios colonizados,
agindo como empresas legais. “Sin embargo, son empresas legales mientras explotan
mercados extrangeros no capitalistas y pasan a ser ilegales em el momento em que intentan
crear y explotar um mercado metropolitano.” (OLMO, 1975, p. 38)
Porém, o atual cenário internacional se aproxima mais de um plano de segurança
internacional, que, como tal, emerge nos EUA a partir da década de setenta do século XX com
a declaração de “guerra às drogas” do governo Nixon.

Novos “responsáveis” pela disseminação das drogas ilegais são apontados. Eles
estão na América Latina – colombianos, peruanos, bolivianos, mexicanos –, na
África – nigerianos, marroquinos, senegaleses – e na Ásia – birmaneses, afegãos,
tailandeses. A lógica em operação é a identificação da ameaça no além-fronteiras
[...] divide o mundo em países consumidores, as “vítimas”, e países produtores, os
“agressores”. (RODRIGUES, 2004, p. 140)

Esta política não ocorre unicamente no Sudeste asiático e no Oriente Médio, ela tem
forte influência nos países da América Latina. A acusação de ser um narcoestado é forte

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

argumento para intervenção estadunidense nesses países. A política dos EUA em relação à
droga tem promovido um tratamento muito rígido, militarizado, principalmente no México e
Colômbia. Com menos intensidade, mas igualmente rígidas têm sido as atuações militares dos
EUA no Equador, Peru, Bolívia e Paraguai.
Este quarto plano de segurança internacional não deve ser visto como uma completa
inovação, mas como desdobramento dos outros três planos da moral, saúde e segurança
pública.
É importante lembrar que todas essas ameaças foram combatidas historicamente por
vias de controle social muito rígidas como a polícia, o cárcere e inclusive forças armadas. Não
tendo, sem embargo, alcançado a meta “um mundo sem as drogas”. Conforme o Relatório
Mundial sobre as Drogas da Organização das Nações Unidas (UNODC):

The overall number of drug users appears to have increased over the last decade,
from 180 to some 210 million people (range: 149-272 million). In terms of
prevalence rate, the proportion of drug users among the population aged 15-64,
however, remained almost unchanged at around 5% (range: 3.4%-6.2%) in
2009/2010. (UNODC, 2011)

Esta conclusão não é recente. Há mais de cinquenta anos diversos intelectuais tem
denunciado o fracasso destas políticas estatais, propondo-se, no lugar, uma série de outras
medidas, sejam elas de Redução de Danos, despenalização, descriminalização, legalização,
tributação, regulamentação etc. Porém, independente da denúncia intelectual, a política de
drogas de forma global tem permanecido estável como uma política criminal que por ter esta
característica propaga uma confusão sobre os reais efeitos das substâncias, um constante
sentimento de alarme social e uma marginalização dos consumidores de drogas ilícitas.
Aliás, uma política penal destinada a usuários e traficantes pode ser extremamente
ineficiente, como relatam estimativas feitas nos EUA que indicam que de plano seria possível
a redução do uso de cocaína em um por cento se investido apenas trinta e quatro milhões de
dólares dos um bilhão e trezentos e noventa e cinco milhões gastos com aprisionamento,
intercepção e controle de fronteira de drogas. Inclusive,

A later study using a similar model [...] estimated that $1 million spent on treatment
could reduce U.S. cocaine consumption by 104 kilograms, much more than if the
same money were spent on trying to lock up more dealers (26 kilograms) or
providing longer sentences for convicted dealers (13 kilograms). (MACCOUN;
REUTER, 2009, p. 34)

Em outras palavras o proibicionismo tem se mostrado pouco efetivo para o seu


objetivo. Portanto, da mesma forma que o cardápio não é a refeição e o mapa não é o
território, há uma contradição entre os objetivos declarados e os objetivos reais do controle

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

penal de determinadas drogas. Os planos de prevenção geral – objetivos declarados – podem


ser observados no Preâmbulo da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961,

Preâmbulo. As Partes, Preocupadas com a saúde física e moral da humanidade,


Reconhecendo que o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para o
alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para
garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais fins, reconhecendo que a
toxicomania é um grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e
econômico para a humanidade, Conscientes de seu dever de prevenir e combater
êsse mal.

Durante este excurso encontramos os pontos de sustentação dos objetivos declarados,


os quais não parecem ter alcançado os efeitos prometidos. Há uma disparidade entre seus
objetivos declarados e seus efeitos reais. Efeitos reais, contudo, não se confundem com os
objetivos reais.

4 A POLÍTICA BÉLICA DE CONTROLE SOCIAL


No Brasil, a política de drogas se alinha ao proibicionismo norte-americano, às
convenções e protocolos internacionais para o combate às drogas.
Segundo Nilo Batista, o período de combate às drogas no Brasil pode ser dividido em
dois: o sanitário e o bélico. O período “sanitário” (1914-1964), inicia-se logo após a
subscrição do protocolo suplementar de assinaturas da Conferência Internacional do Ópio, em
1912. Trata-se do modelo higienista de internação compulsória que durou ao menos meio
século (o usuário de drogas ou adicto era tratado como doente, não era criminalizado). A
partir de 1921, sob influência da Conferência de Haia (1912), surge o decreto legislativo
4.294/21 que revoga o artigo 159 do Código Penal de 1890, introduzindo o termo “substância
entorpecente” no direito penal brasileiro (1998, p. 79-81).
O período bélico, por sua vez, tem como referencial o golpe de estado de 1964. Esse
período foi marcado por movimentos estudantis e sociais contestatórios, contraculturais,
duramente reprimidos pela Ditadura Militar que se alinhava aos Estados Unidos na
polarização entre países de socialismos reais e países capitalistas. Assim, no cenário de
relações internacionais militarizadas contra o “inimigo externo”, a doutrina de segurança
nacional opera com o conceito de “inimigo interno” para tratar dos dissidentes políticos do
regime militar, o qual sobrevive ao fim da guerra fria, encontrando abrigo no sistema de
justiça criminal. As drogas eram vistas pelos militares como estratégia comunista para
“envenenar” a juventude ocidental e o seu enfrentamento deveria se dar a partir de
dispositivos bélicos (BATISTA, 1998, 2001, p.85-86).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Com o fim da guerra fria e a aparente vitória da economia de mercado e de suas leis
darwinistas de competitividade, surgem com toda força as políticas neoliberais para redução
do Estado a um mínimo no que tange à construção de um modelo econômico e político de
inclusão social, a fim de que as forças do mercado atuem livremente, pois na impossibilidade
de prover a segurança dos direitos fundamentais, incumbe-se apenas de “gestão policial e
judiciária” (WACQUANT, 2001, p. 30) dos sobrantes que supostamente atrapalham a ordem
instituída. Ao retirar-se das funções que fundamentaram sua legitimação política, na esfera de
um consenso de cidadania, o Estado desloca sua autoridade para a esfera da “proteção contra
os perigos à segurança pessoal”, onde se vislumbra o espectro de um “potencial inimigo
interno” a ser combatido (BAUMAN, 2008, p. 193).
Os Estados Unidos constituem caso emblemático de que o discurso oficial contra um
inimigo potencial pode ser muito lucrativo para a indústria e o comércio de armamentos e
demais serviços de segurança privada. Para Nils Christie, o dinamismo na economia
americana se deve em grande parte à indústria de controle do crime, cujos gastos anuais
chegaram a US$ 210 bilhões, enquanto as Forças Armadas, em 1998, gastaram US$ 256
bilhões, o que demonstra que o custo da guerra contra os “inimigos internos” se aproxima do
custo da guerra contra os “inimigos externos” (2000, p.140-141).
Segundo Vera Malaguti Batista, no período de transição da ditadura para a democracia
(1978-1988), no Brasil, o “inimigo interno” passa a ser o traficante em vez do “terrorista”,
pois o sistema de controle social, inclusive o midiático, “convergiu para a confecção do novo
estereótipo. O inimigo, antes circunscrito a um pequeno grupo, se multiplicou nos bairros
pobres, na figura do jovem traficante” (2003, p. 40).
De fato, apesar de os meios de comunicação e a polícia instigarem o medo,
relacionando a participação de determinados setores sociais subalternos no tráfico ao aumento
das prisões e da violência, é a própria repressão penal ao tráfico que opera segundo
determinados estereótipos e atua com violência. A “guerra às drogas” tem como alvo o setor
mais inofensivo no tráfico ilícito:

Hoje, a grande maioria dos presos no tráfico de drogas é formada pelos chamados
‘aviões’, ‘esticas’, ‘mulas’, verdadeiros ‘sacoleiros’ das drogas, detidos com uma
‘carga’ de substância proibida, através da qual visam obter lucros insignificantes em
relação à totalidade do negócio. Estes ‘acionistas do nada’, na expressão de Nils
Christie, são presos, na sua imensa maioria, sem portar sequer um revólver
(ZACCONE, 2007, p. 116-117).

Nesse sentido, para além da inegável seletividade do sistema de justiça criminal, a


situação é ainda mais perturbadora pelo fato de a metáfora da guerra constituir a melhor

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

expressão do populismo penal na atualidade (PAVARINI, 2011, p.19). O Estado


“abandonou” esses setores mais pobres, que disputam o mercado entre si e se matam,
enquanto a polícia extermina os grupos. O sistema penal da nova ordem mundial, conforme
assevera Nilo Batista, cumpre a tarefa de “filicídio”, antes desempenhada pela guerra (1998,
p.91).
A instalação das UPP’s no Rio de Janeiro tem elevado a violência e a violação de
direitos individuais nas áreas ocupadas. Especialmente problemática é a utilização das Forças
Armadas para intervir em conflitos civis. A militarização da segurança pública envolve o
risco da “policização” das Forças Armadas e tantos outros riscos à democracia e aos direitos
fundamentais quando se confunde poder militar e poder punitivo, no Estado de Direito: “onde
há guerra não pode haver direito” (BATISTA, 2012, p.51).
Segundo Vera Malaguti Batista, o deslocamento do modelo de “segurança nacional”
para o de “segurança urbana”, pós ditaduras militares, produz violência policial dos agentes,
os quais se tornam também clientela do sistema de justiça criminal:

É o caso emblemático do Trovão, policial civil incensado pela mídia no primeiro


massacre do Alemão, em que aparecia fumando um charuto sobre corpos negros e
ensanguentados num beco daquela favela, trajando roupas de guerra. Hoje, é ele que
se adapta ao conceito de vida nua de Agamben. A licença para matar produz um
embotamento da capacidade de negociar melhorias trabalhistas, além de adoecer os
agentes e, suas famílias, jogados depois à própria sorte (2012, p. 68-69).

Portanto, nesse cenário de “guerra às drogas” todos com exceção da “indústria de


controle do crime”, saem perdendo com o aumento da violência, da corrupção, do desrespeito
aos direitos fundamentais, enfim, com o recrudescimento de todos os males que colocam em
risco a democracia.

5 A SAÚDE PÚBLICA: UM OBJETO SIMBÓLICO DA PROIBIÇÃO


Em que pese as Ordenações Filipinas terem legislado a proibição ao uso de rosalgar e
ópio, não há grandes repercussões práticas no seu controle, aliás, antes da fuga da corte
portuguesa ao Brasil, é difícil, senão anacrônico e ahistórico, falar de um coeso sistema de
justiça criminal no Brasil.
Os Código Penal do Império (1830) e o Código Penal de 1890 simplesmente não
tratam da questão – com a pequeníssima ressalva deste último contar com um setor que
regulamenta os crimes contra a saúde pública.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

É apenas com a Consolidação das Leis Penais em 1932 que se incrementa a expressão
substância entorpecente, mas o seu controle somente encontrará seu primeiro grande impulso,
no Brasil, com os Decretos 780/36 e 2.953/38 (elaborados conforme a Convenção de
Genebra, 1936). Esse período pode ser classificado como a pré-história da questão das drogas
no Brasil visto que “[...] somente a partir da década de 40 é que se pode verificar o surgimento
de política proibicionista sistematizada.” (CARVALHO, 2010, p. 12)
A característica marcante é a criação de sistemas punitivos autônomos que produzem
uma criminalização primária coesa e, simultaneamente, incidência dos aparatos repressivos
(criminalização secundária) com uma independência própria em relação a outros tipos de
delito. Assim, temos com o Código Penal de 1940 a previsão do:

Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título
gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de
qualquer maneira, entregar a consumo substância entorpecente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar; Pena - reclusão, de um a
cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis.

Havia à época um esforço de manter toda a legislação penal no Código Penal, mas, a
criminalização das drogas, por origem, exige uma legislação à parte. Esta se daria com o
Decreto-Lei 4.720/42 disparando um amplo processo de descodificação da matéria que
reverbera na expansão descontrolada da matéria criminal e processual criminal no âmbito de
drogas até a contemporaneidade.
Adequando-se aos parâmetros já consolidados internacionalmente com a Convenção
Única sobre Entorpecentes de 1961 e o Convênio sobre substâncias Psicotrópicas de 1971,
virá, posteriormente, a Lei 6.368/76 que revogará o dispositivo do artigo 281 do Código Penal
e, atualmente, a Lei 11.343/06 que revogou os dispositivos anteriores.
Conforme literatura penal nacional e internacional o bem jurídico tutelado pelos
crimes de uso, fabricação e tráfico de drogas corresponde à saúde pública. Nesse sentido
Vicente Greco: “Todas as condutas violam igualmente o bem jurídico protegido que é a saúde
pública, colocando-a em perigo.” (GRECO FILHO, 1991, p. 79)
Em relação especificamente ao tipo de tráfico (art. 12 da antiga lei de drogas – Lei
6.368/76; e art. 33 da nova Lei 11.343/06) “O bem jurídico protegido pelo delito é a saúde
pública. A deterioração causada pela droga não se limita àquele que a ingere, mas põe em
risco a própria integridade social.” (GRECO FILHO, 1991, p. 83) Mais adiante dirá que a
presunção de perigo é juris tantum (perigo abstrato) “Para a existência do delito não há
necessidade de ocorrência do dano. O próprio perigo é presumido em caráter absoluto,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

bastando para a configuração do crime que a conduta seja subsumida num dos verbos
previstos.” (GRECO FILHO, 1991, p. 83)
Em relação ao tipo de uso Vicente Greco dirá que “A lei não pune, e não punia, o vício
em si mesmo, porque não tipifica a conduta de usar (entendimento acolhido por nossos
tribunais).” (GRECO FILHO, 1991, p. 116) Em relação ao bem jurídico de simples posse que
“Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública
em perigo, porque é fator decisivo na difusão dos tóxicos.” (GRECO FILHO, 1991, p. 119)
O Supremo Tribunal Federal já entendeu que a incriminação de drogas corresponde ao
bem jurídico saúde pública como se observa do julgado:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. PENAL. EXTRADIÇÃO: ESPANHA.


TRÁFICO DE DROGAS. DEFESA: SISTEMA DE CONTENCIOSIDADE
LIMITADA: Lei 6.815/80, art. 85, § 1º. I. - Extraditando processado pela Justiça da
Espanha, pelo delito de crime contra a saúde pública -- tráfico de drogas, no Brasil --
tendo sido expedido contra o mesmo mandado de prisão. [...] III. - Extradição
deferida.

Parece, portanto, haver consenso na literatura penal e jurisprudencial sobre o bem


jurídico da proibição de uso e venda de drogas ilícitas. Mas se a incriminação de drogas não
traz benefícios, ao menos patentes, para a saúde pública, havendo talvez mais motivos que
mostrem prováveis prejuízos à saúde pública; então porque a associação com este bem
jurídico?
Bem disseminado pela literatura penal, vê-se o princípio da legalidade como baluarte
das liberdades individuais. Contudo, este princípio leva consigo sua outra cara metade, qual
seja, o princípio de presunção de evidência.
Na medida em que a punição se exerce em função da causalidade do ato atrelado a um
tipo se afirma a presunção de legitimidade. Assim, a presunção de legitimidade é a ocorrência
de um perigo ou lesão material que torna evidente a validade da norma. Esta validade está
ligada a um sentimento que orienta uma ideologia repressiva de assinalar a culpa e exigir a
pena (TAVARES, 2011, p. 3).
Por outro lado, o direito não opera apenas com o sentimento. Opera com argumentos
que perpetuam a legitimidade de suas normas. A racionalidade então age trazendo a
legitimidade da norma principalmente ligando-se ao Estado: “Cai-se, assim, num círculo
vicioso: legítimo é o que Estado declara como tal por meio da legalidade, que por sua vez é
racional, porque o Estado a declara como legítima.” (TAVARES, 2011, p. 4)
Este processo racional, no âmbito da teoria do bem jurídico, funciona de modo
primordial com aqueles que admitem uma teoria monista coletiva de bem jurídico ou mesmo

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

uma teoria dualista. Porque em ambas as hipóteses é possível legitimar a incriminação


remetendo a uma funcionalidade da norma para o Estado.
Este processo pode passar despercebido:

A discrepância entre os objetivos manifestos ou diretos e os ocultos ou latentes dá


lugar à discussão em torno da questão da ilegitimidade das normas penais e da
pretensão à sua legitimação simbólica. Na medida em que a doutrina busca enfrentar
as dificuldades de uma racionalização das normas penais a partir de sua
identificação com a legalidade, está claro que cada vez mais irá se valer de
argumentos e objetivos simbólicos, os quais passam a se entranhar em toda
produção jurídica. (TAVARES, 2011, p. 5-6)

A necessidade de fugir da estrita legalidade cria então objetivos simbólicos


racionalizantes que acabam por justificar a norma.

O simbólico passa a fazer parte da argumentação, como meio pelo qual a doutrina se
faz comunicar com a realidade, justificando as normas incriminadoras como obra de
uma legalidade racionalizada. [...] O argumento simbólico se insere como um
reforço da legalidade. (TAVARES, 2011, p. 5-6)

Logo, é natural que no processo de incriminação o intérprete busque a legitimação da


norma penal mediante uma racionalização da norma. Parece-nos bastante evidente o nexo que
existe entre este processo de legitimação racional e o bem jurídico da incriminação das drogas
ilícitas como saúde pública.
Ora, em realidade a perspectiva sanitarista é apenas um dos planos pelo qual se
articula o discurso de prevenção geral. Há, ainda, mais três planos pelo qual a Proibição se
articula e, não obstante, estes aparecem obscurecidos pela perspectiva sanitarista.
O motivo parece ser que a norma penal não pode se fundamentar numa perspectiva moralista,
porque tal argumento é facilmente desmontado pelo princípio da lesividade. Não se pode
fundar numa perspectiva de controle social, porque um direito penal do autor é fruto de severa
crítica por estar em descompasso com os valores propugnados como a democracia e a busca
pela igualdade. Não se pode fundar apenas numa perspectiva internacional porque ela existe
apenas como desdobramento de um fundamento anterior, maniqueísta, funda-se, então, em
um bem jurídico universalmente aceito – como é o caso da saúde pública.
Paradoxalmente, o próprio plano sanitarista não tem correspondência entre seus
objetivos declarados e reais. Porque como demonstrado, sua origem histórica não é a de
prevenção e tratamento das drogas – ainda que, eventualmente, em alguns períodos tenha
levado a uma diminuição do consumo. Em realidade o plano sanitarista teve como seu eixo
uma colonização do saber médico por parte do Estado que acarreta na falsa concepção de um
Estado paternalista. Em decorrência, deu-se legitimidade ao Estado para atuar na intimidade

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da vida das pessoas, o que, antes, pelo forte discurso liberal e iluminista, seria simplesmente
inaceitável.
Juarez Tavares, nesse sentido, apresenta feliz contribuição para a nossa análise. O
conteúdo dos textos apresenta outros objetivos que são “tão diversos quanto diversos os
interesses das da autoridade que os manifesta.” (TAVARES, 2011, p. 7) É, portanto, nos
sentimentos e interesses da autoridade que se expressará os verdadeiros objetivos da
legalidade. O julgador, porém, no ímpeto de simbolizar a necessidade de suas aplicação, quer
apresentar os códigos como legítimos e inacessíveis. Remetendo a “O Processo” de Kafka,
Tavares dirá:

No fundo, os códigos do julgador do Sr. K são absolutamente ilegítimos, mas essa


ilegitimidade é ocultada graças precisamente à sua legalidade, imposta pela
autoridade. Não é à toa que os partidários do positivismo veem a validade de uma
norma a partir de sua emissão por ato de autoridade. (TAVARES, 2011, p. 7)

Em conclusão, adotando o conceito de bem jurídico a partir de uma perspectiva


limitadora do poder de punir do Estado e, mais do que isso, aderindo-se a uma concepção
monista personalista do bem jurídico – no qual toda incriminação vai do alfa ao ômega com
centro nas necessidades individuais. Mais do que nada centrado numa concepção de bem
jurídico que operacionalize os direitos humanos, parece-nos que a delimitação do bem
jurídico saúde pública para as incriminação dos tipos de drogas – uso, fabricação, tráfico, uso
compartilhado etc. – é uma política criminal antidemocrática por corresponder aos objetivos
ocultos da norma penal.
Porém, uma norma penal não pode ter objetivos ocultos,

En tanto que una política criminal democrática implica que la persona no puede ser
objeto de manipulaciones, la selección de los objetos de protección ha de hacerse
superando enmascaramientos ideológicos que puedan conducir a algo que encubra
otra realidad. (BUSTOS RAMÍREZ; MALARÉE, 1997, p. 59-60)

Uma coisa é certa, agasalhá-la sob o manto do bem jurídico da saúde pública é muito
conveniente, uma vez que as esferas da moral e da segurança pública – controle de minorias –
não podem ser objetivos declarados da lei proibicionista. Não é preciso lembrar que por mais
reprovável moralmente que se considere uma conduta, em face do princípio da secularização,
uma conduta não pode ser penalmente reprovada por motivos morais. Salo de Carvalho (2010,
p. 270) dirá que:

[....] nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções
pessoais ou se impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais.
A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos
valores do pluralismo, da tolerância e do respeito à diversidade, blinda o indivíduo

142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

de intervenções indevidas na esfera da interioridade. Assim, está garantido ao sujeito


a possibilidade de plena resolução sobre os seus atos (autonomia), desde que sua
conduta não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo concreto) bens
jurídicos de terceiros.

Podemos concluir, portanto, que a colocação do bem jurídico penal das drogas ilícitas
na “saúde pública”, convenientemente disfarça sua legitimidade, uma vez que os outros
planos de prevenção geral, não podem tomar cobertura num guarda-chuva argumentativo
democrático. Assim, enquanto a política proibicionista é aplicada, vitimizando
simultaneamente vendedores e consumidores, não se debate o que efetivamente está fazendo a
política, mas se ela diminui ou não o consumo de drogas. Numa exemplar lição de ideologia,
o argumento sanitarista elide para iludir.
A tutela do bem jurídico pode apenas ser, em última análise, aos direitos individuais,
pois mesmo os bens jurídicos universais – e os interesses gerais – são apenas condição (uma
etapa) para a realização da pessoa individual. No tocante a atender a necessidade de proteger
interesses individuais o bem jurídico saúde pública da incriminação dos tipos do artigo 28 e
33 da Lei de drogas não atende a este requisito.
Em realidade é plenamente possível a construção de um bem jurídico que tenha como
fundamento a afetação da saúde pública. Só que estará sempre adstrito aos mandamentos de
uma política criminal democrática, isto é, o tipo apenas pode ser de perigo concreto ou dano a
um bem jurídico; o bem jurídico deve estar abraçado pela Constituição e leis internacionais de
direitos humanos.

6 POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS E DE DESCRIMINALIZAÇÃO


A lógica de mercado é válida para qualquer mercadoria, então, por que insistir numa
política penal que produz mais encarceramentos, mortes, violência, corrupção e ainda agrava
a condição do adicto em drogas, mediante a sua estigmatização e marginalização?
Talvez seja o caso de olhar não apenas o fracasso da criminalização das drogas, e sim
a sua funcionalidade nas relações econômicas e políticas, segundo sugere Alessandro Baratta,
pois os lucros são muito elevados (aumenta-se até mil vezes o valor da substância ilícita) se
comparados aos lucros num mercado sem proibição, o que torna o mercado das drogas ilícitas
um negócio altamente lucrativo (sem ter de pagar tributos, direitos trabalhistas, submeter-se à
fiscalização e ao controle de qualidade das substâncias); além de ser responsável por inserir a
criminalidade organizada nesse mercado e tornar atrativa a participação proletária
(subempregados e desempregados) na economia da droga, transformando o “ser humano em
instrumento de acúmulo de capital no interesse da reprodução do sistema econômico global”

143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

(2004, P. 132-133). Acontece com a criminalização das drogas o que aconteceu com a Lei
Seca nos EUA (RODRIGUES, 2004, p.134-15-35), originou a máfia, aumentou a violência, a
corrupção policial e política. Nesse mercado, eventuais êxitos de políticas repressivas na
redução de oferta de determinadas drogas ocasionam a entrada de novos produtos mais
lucrativos e, por vezes, ainda mais potentes. Segundo Maria Lúcia Karam (2009, p. 38), a
chegada do crack na década de 80 se deve a essa lógica de mercado que leva produtores,
distribuidores e consumidores a buscarem substâncias psicoativas novas para substituir as que
estão em falta ou se tornaram muito caras.
A maior parte dos efeitos mais graves da droga sobre a saúde e o status social do
adicto “depende das condições em que tal consumo se realiza em um regime de proibição”
(BARATTA, 2004, p. 123). Com o proibicionismo, não há controle de qualidade das
substâncias e os riscos à saúde se tornam elevadíssimos; as condições de higiene e de vida do
consumidor são precarizadas, desumanizadas; para adquirir a droga bem mais cara, o
consumidor pode vir a praticar a “criminalidade de provisão” (ALBRECHT, 2010, p. 509),
inserir-se no comércio de drogas ou se prostituir. A estigmatização do consumidor aumenta o
sofrimento seu e dos seus familiares, bem como dificulta encontrar uma saída para a adicção.
O consumo existe em todas as classes sociais, mas a incidência dos efeitos é diferenciada,
sendo bem mais nociva sobre os setores mais vulneráveis da população. Há consumidores
ocasionais que não são dependentes da droga (e conseguem desempenhar seus diferentes
papéis sociais de modo estável), mas há os que são dependentes químicos (seja de drogas
lícitas ou ilícitas). A confusão e a falta de esclarecimento sobre as diferenças entre
consumo/adicção, drogas leves/drogas pesadas e a visão generalista de uma degradação física
e psíquica do consumidor apenas dificultam ainda mais o diálogo e a mensagem pedagógica
aos jovens para que se mantenham distantes do uso de drogas.
No Brasil, atualmente, o art. 28 da Lei 11.343/2006 mantém a criminalização da posse
para uso pessoal e afasta a imposição de pena privativa de liberdade, mas comina penas de
advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso
educativo e, se houver descumprimento, admoestação e multa. O fato de ainda ser
considerado crime, mantém a estigmatização, fere o princípio da lesividade no direito penal e
os direitos civis à liberdade, à intimidade e à vida privada, tutelados pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
conforme observa Maria Lúcia Karam, “o reconhecimento da dignidade da pessoa impede sua
transformação forçada” (2009, p. 30).

144
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

As políticas de redução de danos alcançaram um lugar de política social em alguns


Estados como Holanda, Suíça, Inglaterra e Austrália (RODRIGUES, 2004, p. 143). O
princípio que a norteia, inicialmente, é a constatação pragmática de que é impossível eliminar
o uso de drogas ilícitas, daí a necessidade de medidas para proteger o usuário, visto que as
políticas repressivas constituem um fracasso do ponto de vista da redução do consumo.
Segundo Maurício Fiore (2005, p. 284), a redução de dano “se opõe às políticas que proíbem
e combatem as drogas, considerando que, além de não conseguirem reduzir seu consumo,
terminam por permitir que um mercado paralelo ameace o Estado e a sociedade de maneira
violenta”.
A política criminal fundamentada na dignidade da pessoa humana deve caminhar ao
lado de reformas descriminalizadoras e ser pautada por uma redução dos danos produzidos
pelo abuso das drogas ilícitas ou lícitas, “tais como, a dependência química, a contração de
doenças infecto-contagiosas, a violência dos ‘tratamentos’ coercitivos e, em última instância,
o sequestro realizado pelas instituições punitivas (cárcere e manicômios)” (CARVALHO,
2006, p. 139).
Peter-Alexis Albrecht estabelece três premissas para uma reforma da política de
drogas, que podem ser resumidas da seguinte maneira: a) Primeira: parte do “princípio da
prevenção da política de saúde”, segundo o qual, é dever do Estado utilizar estratégias de
esclarecimento e de propaganda para evitar que o cidadão consuma substâncias que provocam
dependência; e do “princípio de intervenção da política de saúde” que se compreende como
medida para resguardar o dependente do risco do consumo ilegal de drogas e lhe dar
assistência médica para se libertar da dependência a médio ou longo prazo. b) Segunda: no
Estado de Direito a autolesão deve ser enfrentada por meios não repressivos, ou seja, o único
caminho é o da “razão convincente” aliada à regulamentação e controle do acesso às
substâncias causadoras de vício. c) Terceira: combater as drogas por intervenção econômica,
de modo a reduzir a margem de lucro dos produtores e traficantes para que, a médio/longo
prazo, houvesse um desinteresse do mercado ilegal das drogas (2010, p. 523-524).
Para além dessas premissas, que certamente devem fundamentar uma política de
descriminalização do consumo – tal como fizeram as legislações holandesa, italiana,
espanhola e alemã, como resposta alternativa à penal no que tange ao problema social da
drogadição –, há que se pensar na descriminalização também da produção e do comércio.
Uma política de descriminalização não implicaria em ausência de regulamentação, ao
contrário, assim se permitiria uma intervenção mais adequada (do ponto de vista informativo,

145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

educacional, terapêutico e assistencial), com base em normas administrativas e fiscais de


controle com sanções apropriadas, para impedir a formação de monopólios e a inserção da
criminalidade organizada. Acompanhando tais medidas, seria fundamental o controle de
qualidade das substâncias; proibição de publicidade (até das drogas hoje consideradas lícitas);
proibição de subministrá-las a menores e adictos; controle do uso em meios de transportes e
em determinados trabalhos; intervir de forma não repressiva para incentivar a produção
agrícola em países produtores, a fim de que a produção dos cultivos de base da droga não
ultrapasse seus limites culturais originários; finalmente, estabelecer novas relações políticas
internacionais mais equilibradas, equitativas, conforme a proposta antiproibicionista de
Alessandro Baratta (2004, p. 137-138).

7 CONCLUSÃO
A droga tem uma ampla definição legal que começa no Brasil a partir de 1912 até os
dias atuais. Na medida em que as legislações se desenvolvem cada vez mais sustentam-se em
um meta discurso que remete à “saúde pública” como fundamento legislativo. Ocorre,
entretanto, que não é possível encontrar respostas de saúde pública nas legislações sobre
droga, porque esta não é a função desta política.
A droga instrumentaliza a seletividade do Sistema de Justiça Criminal, a definição de
droga é fruto de uma avaliação valorativa – nem técnica, nem científica – que se foi
conformando ao longo das décadas, progressivamente. No cenário brasileiro o período bélico
de tratamento das drogas ilícitas (que começa a partir de 1964) será o momento de inflexão
que leva um deslocamento do inimigo interno do “terrorista” ao “traficante”. Este inimigo
interno insufla discursos e campanhas políticas do denominado populismo penal.
Nenhuma perspectiva criada em todo este período permitiu tratar de forma séria e
vertical a questão da saúde pública ou mesmo saúde individual, se esse fosse o objetivo
verdadeiro da lei penal há algum tempo seria preciso chamar a atenção para o gritante
fracasso. Ocorre, sem embargo, que a política de drogas tem sido um sucesso para outros fins,
como o de estigmatização e seletividade do Sistema de Justiça Criminal a grupos sociais
marginalizados. Como exposto ao longo do texto, de fato, a política criminal de drogas
precisa se apoiar em outros discursos, que não sejam o de “estigmatizar e criminalizar” é por
isso que a droga se apoia tanto no âmbito do discurso de saúde pública. Uma política
democrática não pode permanecer apoiada em termos escusos, ela precisa ser radicalmente

146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

transformada, unido a perspectiva de redução de danos, descriminalização e uma séria política


econômica que trate simultaneamente da questão do comércio e do uso de drogas ilícitas.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A Nova Ordem Socio-econômica e a Indústria do Controle Penal

La Nuova Ordine Socio-economica e l’Industria di Controllo Penale


Washington Pereira da Silva dos Reis1

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre pontos centrais da evolução dos métodos
punitivos como meio de controle social e sua forma de atuação como política penal de
repressão das minorias excludentes dos meios de produção da vida material. O Estado como
instituição política gerenciadora das necessidades de mercado pautou seu controle e
dominação legitimando seu poder através de saberes, entre eles o penal, que por sua
característica coercitiva foi instrumento de terror no Medievo e ainda mantém seu status de
mecanismo político eficiente para manter a paz social. De acordo com as necessidades de
mercado o Estado adota determinada política de controle social e suas respectivas sanções.
Assim o texto aborda os contrastes que as necessidades do mercado refletiram na política de
controle social do século XVI até o século XVIII com a conseqüente expansão do capital e da
propriedade privada que motivaram o Estado a adotar políticas penais de controle de massa.
Norteando-se por David Garland e Loïc Wacquant o conjunto do texto aqui desenvolvido
deixa claro o papel que a Europa, e, principalmente os Estados Unidos desempenharam como
ditadores de políticas de controle social, não só em seus territórios, mas também nas periferias
dependentes do modelo de seus mercados econômicos.

PALAVRAS-CHAVE: Estado; Capitalismo; Economia; Controle Social; Poder Punitivo;


Pena; Prisão.

RIASSUNTO

Questo articolo si propone di discutere i punti principali della evoluzione dei metodi punitivi
come mezzo di controllo sociale e il modo in cui opera la politica di repressione penale delle
minoranze escludenti dei mezzi di produzione della vita materiale. Lo Stato come una
istituzione politica di gestione del mercato ha bisogno di guidare il suo controllo e la
dominazione legittimando il suo potere attraverso le conoscenze, tra cui il penale, che per le
sue caratterische coercitive è stato strumento di terrore nel Medievo e ancora conserva il suo
status di efficiente mecanismo politico per mantenere la pace sociale. Secondo le esigenze del
mercato lo Stato adotta alcune politiche di controllo sociale e le rispettive sanzione. Così il
testo analizza i contrasti che il mercato ha riflesso nella politica di controllo sociale del XVI
secolo fino al XVIII secolo, con la conseguente espansione del capitale e della proprietà
privata che ha motivato lo Stato ad adottare politiche criminale di controllo di massa. Guidare
se stessi di David Garland e Loïc Wacquant l’intero testo qui svilupato rende evidente il ruolo
che l’Europa, e in particolare gli Stati Uniti hanno avuto come dittatori delle politiche di
controllo sociale, non solo nei loro territori, ma anche nelle periferie dipendenti dei suoi
modeli di mercati economici.

1
Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC);
Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

150
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

PAROLE-CHIAVE: Stato; Capitalismo; Economia; Controllo Sociale; Potere di Punire;


Pena; Prigione.

Sumário

1. Introdução; 2. O Estado previdenciarista como base para a consolidação da nova política


penal; 3. As contradições do controle penal previdenciário e a política governamental
discriminatória e excludente; 4. Os limites do Estado no controle penal; 5. O declínio do
previdenciarismo penal e a cultura do controle penal repressivo; 6. Considerações Finais: As
novas formas de controle social na pós-modernidade; 7. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

O desenvolvimento histórico da economia a partir do século XVI foi marcado por uma
forma de controle social estreitamente ligada ao modo de produção da vida material da
sociedade e das necessidades, interesses e valores das classes sociais hegemônicas detentoras
do poder político e econômico. A transição do feudalismo ao mercantilismo e deste ao
capitalismo industrializado da mesma maneira manteve o controle social de acordo com a
ideologia do poder punitivo e os mecanismos de repressão penal correspondentes, tendo como
centro de projeção a pena de prisão. De igual modo, a pena como centro de projeção da
ideologia do poder punitivo evoluiu em determinado lugar, qual seja, o cárcere como meio de
controle social e instituição penal visível da desigualdade social e a divisão de classes
daqueles tempos persiste até a atualidade, com indicadores de realidade que demonstram que
sua existência acompanhará a humanidade ainda por longos tempos. Tendo suas formas
punitivas correspondentes à forma econômica de sua época,2 que variaram da imposição de
castigos corporais, suplícios e pena capital, as necessidades que a revolução industrial impôs
ao desenvolvimento da economia em seu projeto de expansão mundial – cujo êxito dependia
dos pressupostos de liberdade e igualdade que a época das luzes irradiou, bem como pela
consolidação do mito do contrato social como ilusão da participação de todos e de uma
suposta vontade geral – transformou significativamente o modelo punitivo até então existente.
De uma forma ruralista de economia que rumou às formas industriais, a estas já não
interessava a imposição de castigos corporais e penas infamantes. A nova dinâmica
econômica, pautada pela acumulação de capital, busca por novos mercados e lucro obtido pela
mais-valia, determina a nova forma de controle social e a prisão passa a significar nesse

2
RUSH, Georg. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, 83.

151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

contexto, “um mecanismo expiatório que realiza a troca jurídica do crime em tempo de
liberdade suprimida”.3 Sendo o homem um dos elementos que promovem a produção e a
circulação da vida material, sua proteção se mostra fundamental para o interesse da nova
economia capitalista, mas, é o grau de inserção do homem como objeto de proteção e força de
trabalho necessária para promover os interesses da nova economia, não só nos modos de
produção, mas principalmente na capacidade de consumo necessário para o crescimento e
expansão do capital, é que determinará a sua posição na divisão de classes sociais, seja como
proprietário, seja como possuidor da força de trabalho.4 Em linhas gerais, com base nos
fundamentos reais que demonstram o controle social em seu processo evolutivo, é na
perspectiva materialista histórica que se inicia o presente trabalho para os fins aqui propostos.
O curso evolutivo natural de uma realidade econômica marcada pelo contínuo desvalor da
essência humana, basicamente marcada pelos valores de mercado, transitou, nas palavras de
Young, “de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente”.5

De igual modo, e, buscando uma fundamentação filosófica para a legitimação punitiva


da ideologia oficial, a construção do conceito de sujeito pelo filósofo iluminista Immanuel
Kant, contribuiu para fundamentar dogmaticamente a capacidade individual daqueles que se
desviavam das normas de controle social, pois, tendo conhecimento de seus pensamentos,
eram responsáveis pelas suas ações, portanto, capazes de punibilidade. Os conceitos de Kant
sobre o sujeito e a gênese de sua vontade, assim delineado, influenciou na construção das
definições da ação, da culpabilidade e da pena no Direito Penal e, sendo esse o ramo do
ordenamento jurídico que define as condutas humanas como objeto e fundamento de
reprovação de ações típicas, passa a ser o centro de legitimação e garantia dos interesses na
economia capitalista. Como fundamento filosófico para a legitimação do poder punitivo o
conhecido imperativo categórico formulado por Kant consolida-se em lei moral inviolável,
cuja violação legitima a coerção estatal punitiva. Embora não seja o tema aqui a discorrer,
cumpre ressaltar que a moral kantiana como moral universal6 – cujo fundamento foi
construído sob a ilusão de uma suposta liberdade de vontade do homem – metafísica, e

3
SANTOS, Juarez dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 13.
4
Idem, p. 6.
YOUNG, Jock. A sociedade excludene: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
5

Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2002. p. 23.


6
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret,
2005. p. 51.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

portanto, indemonstrável – serviu para manifestar as conveniências da classe burguesa em sua


época de ascensão, cuja crítica materialista foi primeiramente vislumbrada por Pasukanis.7

Após a consolidação do capitalismo industrial, os principais acontecimentos que


alteraram a economia, certamente foram a grande depressão de 1929, seguida das duas
guerras mundiais. Desses acontecimentos o último foi o que mais influiu na economia, bem
como na atuação do Estado em sua política de controle social, em razão das duas prioridades
que passam a nortear as ações do Estado devido as necessidades que o mercado impunha no
contexto do pós-guerra.

Esse novo quadro de necessidades impulsionou o Estado a germinar novas instituições


voltadas para práticas penais-previdenciárias a fim de afirmar o Estado do bem estar social
que se consolidava nos anos 1950.

2. O Estado previdenciarista como base para a consolidação da nova política penal

Nesse contexto exposto nas linhas iniciais o Estado passa a atuar sob as diretrizes de
uma política previdenciarista, cujo controle social do crime é tipicamente correcionalista.
Nesse sentido, David Garland expõem as bases dessa nova política:

Com raízes na década de noventa do século XIX e vigorosamente desenvolvido


nos anos 1950 e 1960, o previdenciarismo penal era, nos anos 1970, a política
estabelecida tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos. Seu axioma
básico – medidas penais devem, sempre que possível, se materializar mais em
intervenções reabilitadoras do que na punição retributiva – proporcionou o
aperfeiçoamento de uma nova rede de princípios e práticas inter-relacionados.
Estes incluíam a edição de leis que permitiam a condenação a penas
indeterminadas, vinculada à liberdade antecipada e à liberdade vigiada; vara de
crianças e adolescentes informadas pela filosofia do bem-estar infantil; o uso da
investigação social e de relatórios psiquiátricos; a individualização de
tratamento, baseada na avaliação e classificação de especialistas; pesquisa
criminológica focada em questões de fundo etiológico e na efetividade do
tratamento; trabalho social com os condenados e suas famílias; e regimes de
custódia que ressaltava o aspecto ressocializador do encarceramento e, após a
soltura, a importância do amparo no processo de reintegração. [...] No
enquadramento penal-previdenciário, a reabilitação não era apenas um elemento

7
PASUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. PASUKANIS, E. Coimbra. Editora Perspectiva
Jurídica, 1972. p. 167-168.

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entre outros. Ao revés, era o princípio hegemônico, o substrato intelectual e o


valor sistêmico que unia toda a estrutura e que fazia sentido para os operadores
do sistema. Ela provia uma rede conceitual, abraçada por todos, que poderia ser
lançada em toda e qualquer atividade no campo penal, conferindo sentido e
coerência à atividade dos operadores, bem como um sentido benigno e científico
às práticas outrora desagradáveis e problemáticas.8

Como se percebe “o previdenciarismo penal se voltava aos problemas do


desajustamento individual, altamente concentrado nos setores mais pobres da população, e
que eram por ele atribuídos à pobreza, à socialização deficiente e à privação social”. 9 O papel
fundamental de funcionários públicos na aplicação prática dos princípios norteadores da
política previdenciarista, bem como a legitimação do saber criminológico dos especialistas da
época motivaram os governos (EUA e Inglaterra) a propiciarem meios para que a
cientificidade do saber criminológico não somente contribuísse, mas também legitimasse as
decisões políticas no campo do controle social e o aperfeiçoamento e entrelaçamento das
instituições do sistema de justiça criminal. A base social do Estado do pós-guerra foi
construída sob uma ampla rede de seguridade e recompensa,10 e a prosperidade financeira
promovida pelo desenvolvimento econômico da época favoreceu a distribuição de renda em
proporções mais justas, uma vez que o nível de desemprego baixo nas duas principais
economias capitalistas permitia a inserção de uma ampla camada de pessoas no mercado de
trabalho, ainda que sob as formas de exploração de trabalho assalariado.

No entanto, apesar do empenho dos governos dos Estados Unidos e Inglaterra em


promover meios de controle social garantidores do desenvolvimento econômico, as
contradições da política penal previdenciarista não tardou a revelar as exclusões das massas
trabalhadoras e de forma ainda mais explícita, de determinados grupos sociais ao acesso dos
reais benefícios econômicos dessa política, reservando às classes menos favorecidas a punição
como consequência de comportamentos desviantes que lesionavam a produção e circulação de
mercadorias e às elites todos os benefícios do Estado do bem-estar social.

3. As contradições do controle penal previdenciário e a política governamental


discriminatória e excludente

8
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea (tradução:
André Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.104-105.
9
Idem. p. 119.
10
Idem. p. 123.

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As políticas de segregação racial, principalmente aquelas promovidas nos Estados


Unidos, passaram a reservar determinadas áreas de concessão de crédito imobiliário
exclusivamente para a classe social branca e, durante o período da “Grande Imigração de
1916-1930, que já marcava o início do abandono das políticas previdenciárias do Estado norte
americano, as áreas chamadas de gueto11 – exclusivamente formada por negros – passaram a
compor a região habitada exclusivamente pela população negra norte-americana.12 As
consequências que esse fato social influirá na mudança de paradigma estatal na política de
controle social, certamente será determinante na crise do previdenciarismo penal, bem como
sua ruína.

No que tange às características especificas das condições sociais, culturais e


econômicas do gueto negro norte-americano, Loïc Wacquant diz que:

O gueto negro norte-americano, o único que veio à luz do outro lado do


Atlântico – os brancos de diversas origens, inclusive judeus, conheceram apenas
bairros étnicos, de recrutamento essencialmente voluntário e heterogêneo, e que,
mesmo miseráveis, sempre permaneceram abertos para o exterior por meio de
pequenos canais de comunicação com uma sociedade branca norte-americana
compósita -, representa a realização hiperbólica dessa lógica de dominação
etnorracial imposta por um poder exterior. Nascido nas primeiras décadas do
século passado sob o impulso da grandes imigrações de negros dos estados do
Sul, descendentes de escravos libertos, o gueto é uma forma urbana específica
que conjuga os quatro componentes do racismo recentemente repertoriados por
Michel Wieviorka – preconceito, volência, segregação e discriminação – e os
imbrica numa mecância de exclusão total. Sob a pressão implacável da
hostilidade branca, endossada, quando não ativada, pelo Estado e expressa pelo
uso rotineiro da violência física direta lançada sob a forma de agitações raciais
assassinas, constitui-se então nesse espaço oprimido e inferior uma verdadeira

11
Nesse ponto, cumpre destacar a origem e o significado da palavra gueto, conforme transcrição de Loïc
Wacquant: “o termo guet, surgido em Veneza em 1516 e derivado do italiano giudeica ou gietto, designa, em sua
origem histórica nas sociedades da Europa Medieval, a reunião forçada de judeus em certos bairros, para
proteger os cristãos, de acordo com a Igreja, da contaminação dos quais os judeus eram portadores (ad scandala
evitanda). Progressivamente, à segregação espacial regulamentada de modo cada vez mais estrito ao longo dos
séculos de XIII a XVI, fonte de superpopulação, promiscuidade e miséria, superpõe-se um emaranhado de
medidas discriminatórias e vexatórias, seguidas de restrições econômicas, que incentivaram os habitantes a se
prover de instituições específicas, instrumentos de ajuda mútuas e fontes de solidariedade interna que
funcionavam como proteção contra a alienação então inscrita na própria estrutura do espaço urbano. Assim, a
Judenstadt de Praga, considerada o maior gueto da Europa no século XVIII, com cerca de dois mil habitantes
apinhados em condições geralmente no limite da salubridade, abrigava ainda assim um denso tecido de empresas
e associações, feiras, lugares de culto, guildas e até mesmo sua própria prefeitura, símbolo da relativa autonomia
e de força comunitária de seus habitantes (WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo
Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 17,18).
12
WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 25 e 26.

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cidade negra dentro da cidade, com uma rede comercial, seus órgãos de
imprensa, sua vida política e cultural próprias.13

Todos esses indicadores sociais negativos formaram as bases de um terreno fértil para
o aumento de comportamentos desviantes que se confrontaram com a política da “lei e
ordem” apregoada pelo Governo norte-americano e para designar os grupos que habitavam no
gueto, bem como associá-los à “desordem”, uma nova categoria foi inventada – alardeada
principalmente pelos holofotes da mídia – a underclass. Em franca oposição aos quatro
componentes que Ken Auletta atribuiu à underclass, Loïc Wacquant os considerou confusos,
embora tenham norteado as ações políticas daquele tempo, sendo eles: “o pobre passivo”, “os
criminosos de rua hostis”, “os gigolôs” e “os alcoólatras traumatizados, os vagabundos, as
mulheres desabrigadas com sua sacolas e os doentes mentais soltos na rua”. 14 Evidente que a
política penal-previdenciária promovida pelo Governo norte-americano, política essa que,
ainda que tendo como base o correcionalismo que acreditava na recuperação dos sujeitos,
começou a conflitar com os ideais e valores da elite branca americana, devido, segundo ela,
ao falso discurso que representava os custos dos benefícios ao orçamento.

Cumpre ressaltar que nos anos 1960 o movimento civil negro em busca de igualdade
racial era uma realidade nos EUA e as lutas contra um sistema de justiça criminal que
reprimia através do encarceramento em massa exclusivamente a maioria negra foram
motivadas nas bases da política penal previdenciária. No entanto, as políticas do Estado
paternalista e correcionalista não logravam êxito em baixar as altas taxas de criminalidade,
uma vez que as reformas estruturais necessárias para promover a inclusão social das maiorias
excluídas jamais se tornaram realidade. Assim, a seleção criminalizante, especialmente a
secundária, recrutava para o cárcere uma maioria negra. A crise que se iniciaria
especificamente nos anos 1970 seria crucial para a consolidação da “nova” economia em suas
pretensões a nível global e, nesse sentido é importante transcrever as linhas de David Garland
à respeito do relatório do Partido Trabalhista do American Friends Service Commitee que
representou as primeiras críticas publicadas ao então Estado paternalista:

O relatório consubstanciava uma crítica completa do Estado de justiça criminal e


da ideologia correcionalista que o sustentava. A “penalogia progressista” era
criticada por seu paternalismo e hipocrisia, por sua fé ingênua de que a pena
poderia produzir resultados úteis e por sua inclinação a impor “tratamento” num
ambiente punitivo, com ou sem o consentimento dos criminosos. As teorias

13
Idem. p. 18 e 19.
14
Idem. p. 44-45.

156
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deterministas e métodos positivistas da criminologia correcionalista foram


atacados, bem assim suas crenças de que a violação da lei penal era sintomática
de patologias individuais e de que os costumes da classe média branca eram
sinônimos de boa saúde social.15

Nesse contexto, a opinião e pressão exercida por setores da sociedade passam a


influenciar as políticas públicas de controle social e indiretamente compõem o sistema de
justiça criminal, contribuindo, portanto, para a manutenção da realidade social e com o
declínio do Estado paternalista.

4. Os limites do Estado no controle penal

A desqualificação do poder estatal voltado para uma política criminal correcionalista


não tardou a reconhecer seus limites, uma vez que diante da realidade do controle social
punitivo do Estado americano que para garantir as condições sociais para a expansão de seu
projeto econômico punia exclusivamente os pobres e negros, ainda assim, as altas taxas de
criminalidade típicas dessas categorias não baixavam. Questionamentos como as funções
declaradas da pena em sua proposta reabilitadora e seu evidente fracasso contribuíram para
causar o colapso do Estado previdenciário e ideias como “nada funciona” impulsionou as
reações em prol dos movimentos progressistas, que, segundo Hirschman, possuem três teses
centrais:

A tese da perversidade: o correcionalismo produz resultados perversos e não


desejados. Ele torna o criminoso pior e não o inverso. Políticas de reabilitação
provocam o aumento no crime e não sua redução. “O resultado é sempre o
avesso”. A tese da futilidade. O correcionalismo sempre falhará. Não é possível
reformar as pessoas ou produzir a mudança correcional. Os esforços de
reabilitação são fúteis e desnecessários. “Nada funcionará”. A tese do risco. As
práticas correcionalistas minam valores fundamentais, como a autonomia moral,
os direitos do indivíduo, o devido processo legal e o princípio da legalidade. As
políticas de reabilitação põem em risco os acalentados valores democráticos
liberais. “A justiça está em risco”.16

No contexto norte-americano, que não foi diverso do contexto político-penal inglês, a


resposta à ruína do Estado paternalista e a necessidade de reagir a fim proteger o bem maior
da sociedade, qual seja, a economia de mercado, não tardou a adotar políticas penais cada vez

15
GARLAND, David. Op. cit. p. 147.
16
A. Hirschman. The rhetoric of reaction: perversity, futility, jeopardy. Cambrige-MA: Harvard University
Press, 1991. Apud. GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea (tradução: André Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.168-169.

157
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mais punitivas e excludentes. É marcante nessa nova fase da modernidade as contradições


entre a prosperidade econômica e a imensa desigualdade na distribuição de renda justa. As
conseqüências dessas contradições refletiram-se rapidamente no crescimento vertiginoso das
taxas de criminalidade e o crescente encarceramento, fundamentais para que o Estado se
conscientize de vez de suas limitações na utópica pretensão de conter o avanço dos índices de
criminalidade. A prisão passa a representar um grande depósito de dejetos humanos e sua
hiperinflação é bem demonstrada conforme o quadro abaixo formulado por Loïc Wacquant:17

1975 1980 1985 1990 1995


Casas de detenção (cidades e 138.800 182.288 256.615 405.320 507.044
condados)
Penitenciárias estaduais e federais 240.593 315.974 480.568 739.980 1.078.357
Total encarcerado 379.393 498.262 737.183 1.145.300 1.585.401
Crescimento em 5 anos - 31,3% 47,9% 55,4% 38,4%

Os números acima, além de demonstrar a rápida expansão do arquipélago


penitenciário nos EUA, revelam ainda que a preferência na seleção de sua clientela é
essencialmente pelas minorias.18 A realidade brasileira seguiu o modelo norte-americano e
nos últimos dez anos dobrou o nº de habitantes nas penitenciárias, que atualmente, segundo
dados do Ministério da Justiça conta com 549.577 encarcerados distribuídos em 1420
estabelecimentos penitenciários em toda a Federação.19

5. O declínio do previdenciarismo penal e a cultura do controle penal repressivo

Diante desse quadro a reação estatal caminhou para a supressão das conquistas sociais
até então praticadas na área de política criminal, passando a fortalecer todo o sistema de
justiça criminal que, por sua vez, passou a reagir de forma violenta às formas de desvio. Os
cortes do orçamento nas políticas assistencialista são drásticos, ao contrário dos crescentes
investimentos para expandir o território carcerário. Gradativamente a resposta penal aos
conflitos sociais passa a ser o principio norteador da atuação estatal em políticas de governo
que ao invés de solucionar os conflitos, suprimem-nos segundo os interesses da classe
hegemônica do poder político e econômico.

17
WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De l’Etat social à
l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 14.
18
Nesse sentido, Wacquant, se referindo ainda aos estudos realizado na Casa de Detenção de Los Angeles em
1980: “Como é de se esperar, o grosso dos clientes da casa vem da base da pirâmide social: 46% são latinos e
33% negros, para somente 18% brancos, apesar de estes serem majoritários no condado” (Idem. p. 18).
19
Ministério da Justiça. Disponível em: http://portal.mj.gov.br. Acesso em: 18 de mar. 2013.

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A eleição do presidente Ronald Reagan nos EUA e de Margareth Thatcher no


parlamento inglês, marcou, a partir dos anos 1980 a consolidação da política reacionária do
controle social cuja repercussão se deu em nível mundial. Os princípios que regiam o Estado
das duas principais potências mundiais eram “controle econômico e liberação social” que
viriam a ser radicalmente invertidos para “liberdade econômica e controle social”.20 Inicia-se
a fase de expansão do neoliberalismo, cuja ordem mundial no campo da ideologia do poder
punitivo revelou-se “não tanto impedir o crime, mas estabelecer uma guerra sem tréguas
contra os pobres e contra todos os marginalizados pela ordem neoliberal”.21 Segundo
Wacquant chama a atenção para a conversão das classes dominantes que outrora apoiaram as
políticas previdenciárias, mas, convertidas a nova ideologia neoliberal, propiciaram três
grandes mudanças na atuação do Estado, sendo elas: remoção do Estado econômico,
desmantelamento do Estado social e fortalecimento do Estado penal.22 A guerra às drogas
iniciada por Ronald Reagan, demonizando tanto traficantes como usuários também foi a
grande característica do início do neoliberalismo, característica essa que espalhou-se pelas
América e Europa, perdurando na atualidade e, a que tudo indica, ainda por muito tempo.

A maior repercussão da política Reagan antidrogas foi a ainda maior repressão dos
aparelhos estatais sobre as minorias étnicas da população, aumentando sua presença,
principalmente nos bairros pobres. Os Estados Unidos que desde o início de projeção do saber
criminológico pretendeu ditar as regras de controle social em nível mundial, principalmente
patrocinando os principais eventos do saber do sistema penal, exerceu na Europa e,
principalmente na Inglaterra, forte influência na era neoliberal em seu viés ideológico de “lei
e ordem”.23 Wacquant identificou três estágios de difusão da ideologia neoliberal nesse campo
podendo resumi-los em: o primeiro refere-se à “fase de gestação, implementação e
demonstração nas cidades americanas”. O segundo é o da fase de “importação-exportação” e
o terceiro “consiste em aplicar uma cobertura de argumento científico sobre tais medidas”. 24
Projetando essas ideologias no cenário europeu, as conseqüências foram totalmente diversas

20
GARLAND, David. Op. cit. p. 217.
21
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2008. p. 102.
22
Idem. p. 96.
23
Das primeiras sociedades de assistências – aparentemente criadas sob um viés humanitário – bem como do I
Congresso Penitenciário Internacional realizado em Londres em 1872 aos inúmeros eventos internacionais que
ditariam as regras de controle social legitimadas pelo saber penal ao longo dos séculos IXI e XX, conforme o
aprofundado estudo de Rosa del Olmo, os Estados Unidos da América sempre foi o principal promotor de tais
eventos (DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004. p. 54 e
81).
24
Idem. p. 97-98.

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das que ocorreram no cenário americano. A realidade de alguns conflitos existentes na


Europa, principalmente aqueles referentes à imigração e que com conotação racial diversa da
do cenário norte-americano, ao sofrerem a mesma forma de intervenção punitiva para manter
o controle social característico do neoliberalismo, esbarraram nas múltiplas questões de
identidades que envolvem as relações entre as nações que integram o continente europeu.
Uma vez que o alvo da repressão punitiva é todo aquele em que comportamentos desviantes
afrontam a ordem estabelecida e, nesse sentido a questão imigratória tem sido criminalizada
no velho continente, a proximidade que a Europa tem com os Estados Unidos no campo do
controle social revela, não só a unidade de reações na perseguição das minorias, mas também
antagonismos que refletem os conflitos inerentes às diversas soberanias que lá atuam. Nesse
ponto, conforme Dario Melossi, “é pois a questão da união política europeia que se
transforma na questão central”,25 com as devidas peculiaridades que a nova política
econômica mundial marcará as novas diretrizes da política criminal globalizada.

O neoliberalismo determina, nesse novo cenário, uma mudança radical na forma que
os governos trataram as questões criminais e a atuação do sistema de justiça criminal alterou-
se profundamente após o fim das políticas previdenciaristas promovidas especialmente pelos
EUA. Os discursos políticos eleitoreiros, bem como as concretas ações dos governantes
eleitos passaram a depender do escrutínio da população e essa, guiada pelos interesses das
elites dominantes através do crucial apoio das mídias de massa, fez de tais discursos apelantes
ao populismo ilusório que na prática agravou ainda mais as questões sociais do controle
social. O poder de comunicação da mídia revela-se como grande propagadora da legitimação
da ideologia dominante nas consciências das massas, facilitando o controle e a dominação dos
aparelhos repressivos do Estado, cujo ápice se deu com a política da tolerância zero
promovida pelo seu mentor – Rudolph Giuliani – e se aprimora através das políticas de
criminalização do risco. Outra evidência – à guiza do papel dos meios de comunicação – que
contribuiu para a queda do Estado que norteou suas políticas criminais na solução de
conflitos, foi a concentração do poder midiático nas mãos de poucos, em que pese aos
inúmeros periódicos que tiveram curta existência em sua missão de propagar o medo através
dos acontecimentos eleitos como delituosos. Lola Aniyar de Castro ao analisar o conteúdo das
informações sensacionalistas que compõem as principais notícias dos jornais de massa as
distinguiu em notícias de sexo, esporte e crime.26 Prossegue a criminóloga latino-americana

25
MELOSSI, Dario. A imigração e a construção de uma democracia europeia. In: BORDIEU, Pierre (Org.).
De l’Etat social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 102.
26
DE CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005. p. 207.

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afirmando que as distorções da mídia “orienta a possibilidade de que as pessoas incorporem


um maior ou menor grau de insegurança, especialmente quando se trata de informações sobre
delitos”, legitimando, assim, ações autoritárias do Estado, confirmadas pela aceitação da
opinião pública.27 Os protagonistas dessas ações, segundo Garland, envolve principalmente a
figura do ator político e do administrativo, ambos guiados por valores e interesses diferentes.
Ao se referir aos políticos, especificamente aos ministros e secretários de Estado, a eles assim
se referiu:

Estes se situam no contraditório ponto entre os domínios políticos e


administrativos – comandam um departamento e são responsáveis por suas
ações; são autoridades que devem representar a política para o público e seu
partido, bem como disputar futuras eleições. 28

Já ao se referir aos administradores destaca que o compromisso destes com os


processos internos inerentes às suas funções, não são guiados por compromissos eleitoreiros,
preocupando-se mais com a eficiência da organização. O trecho abaixo melhor esclarece:

O administrador pode e deve focar nos interesses de uma única organização,


orienta-se de acordo com um horizonte de tempo mais longo e opera a partir de
uma distância maior da imprensa e do escrutínio público. Dados estatísticos,
gerenciamento de recursos e análises de custo/benefício são os requisitos da
administração institucional. O administrador possui uma compreensão mais
realista dos processos e impactos da organização e acesso mais direto à
informação sobre custos e consequências. Sua preocupação primária é com a
área de atuação da organização. Opinião pública, posições políticas e
preocupação apaixonada com casos atípicos são distrações pertubadoras para a
missão principal.29

Embora contendo conotação idealista, uma vez que é sabido a forte influência dos
governantes na condução das políticas públicas, sempre em vista aos objetivos partidários,
considerando que os administradores cumprem a rigor a missão delineada pelas plataformas
de governo, no âmbito da justiça criminal acabam por cumprirem de forma satisfatória as
prioridades do Estado e, indiretamente das diretrizes do neoliberalismo.

Diante do até aqui exposto, a forma de execução do projeto neoliberal no campo do


controle social consiste em adaptar as exigências que a pós- modernidade dita como ideologia

27
Idem, p. 208 e 217.
28
GARLAND, David. Op. cit. p. 252.
29
Idem. p. 251-252.

161
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de mercado de consumo.30 O novo homem objeto e ao mesmo tempo alvo do controle é


aquele que, segundo o grau de inserção no mercado de consumo será ou não digno da tutela
penal. Nesse sentido, em completo antagonismo como a nova ideologia da economia
neoliberal e em franca oposição com a antiga política de Estado previdenciarista, o status
social do sujeito passa a ser o referencial oculto de projeção da criminalização secundária, que
é criminalizado segundo a nova ordem socioeconômica vigente. Assim, completamente
submetido às exigências da pós-modernidade, conforme Zygmunt Baumann, esse homem
mercantiliza sua moral, ora consumindo, ora sendo consumido pelo mercado de consumo,31
porém, de acordo com sua posição social, bem como capacidade de consumo, terá maiores ou
ínfimas possibilidade de ser criminalizado.

Ainda no que concerne às principais decisões políticas relacionadas ao controle penal,


Garland propõe seis formas de respostas de adaptação, sendo elas tematizadas como:

1ª) profissionalização e reconciliação da justiça: priorizando os custos da justiça criminal;32

2ª) comercialização da justiça: considerando a expansão do sistema prisional, bem como o


reconhecimento dos limites do Estado em controlá-lo, as parcerias entre o público e privado
passam a ser uma realidade na administração carcerária;33

3ª) restrição da criminalização: com ênfase no efeito redutor; processo de descriminalização,


principalmente na seleção criminalizante secundária;34

4ª) redefinição do êxito: afirmação da função especial negativa da pena;35

5ª) concentração nas consequências: concentração nos efeitos danosos do crime, voltando-se
para a vítima e o sentimento de insegurança causado pelo do medo do crime;36

30
A essa nova forma de adaptação do controle social e sua forma de atuação diz Garland: “Ao longo do tempo,
nossas práticas atinentes ao controle do crime e à realização da justiça tiveram que se adaptar a uma economia
cada vez mais insegura, que marginaliza setores substanciais da população; uma cultura de consumo hedonista,
que combina amplas liberdades pessoais com controles sociais relaxados; a uma ordem moral pluralista, que luta
para criar relações de confiança entre estranhos que pouco tem em comum; a um Estado “soberano”, que é
crescentemente incapaz de regular uma sociedade de cidadãos individualizados e de grupos sociais díspares; e às
cronicamente elevadas taxas de criminalidade que coexistem com o baixo grau de coesão familiar e de
solidariedade comunitária. O caráter inseguro e arriscado das relações sociais e econômicas atuais constitui a
superfície social que propicia uma nova preocupação, mais enfática e exacerbada, para com o controle, bem
como a urgência com a qual segregamos e excluímos” (Idem. p. 414-415).
31
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008. p. 74 e 76.
32
Idem. p. 254-257.
33
Idem. p. 257-259.
34
Idem. p. 259-262.
35
Idem. p. 262-264.

162
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6ª) realocando e redefinindo responsabilidades: compartilhamento da responsabilidade pelo


controle do crime; participação comunitária como solução; estratégias de responsabilidades;
repartição de poderes.37

A última resposta de adequação revela duas dimensões nesse processo de distribuição


de atribuições do monopólio estatal do controle social na área punitiva. A primeira revela uma
dimensão aparente declarada num discurso encobridor de seus verdadeiros objetivos.38
Vejamos:

A nova estratégia do Estado não é comandar e controlar, mas persuadir e alinhar,


organizar, assegurar que outros atores façam a sua parte. Proprietários,
moradores, logistas, industriais, engenheiros, autoridades escolares, funcionários
de transporte, empregadores, pais, cidadãos – a lista é interminável – devem ser
levados a reconhecer sua responsabilidade nesta matéria. Eles devem ser
convencidos a exercer seus poderes informais de controle social e, se necessário,
a modificar suas práticas habituais, de modo a ajudar a reduzir as oportunidades
criminosas e aperfeiçoar o crime.39

A segunda dimensão revela os reais objetivos do discurso aparente de distribuição de


poderes, evidente nas linhas de David Garland:

A motivação por trás destas estratégias de “responsabilização” não é o puro e


simples alívio de funções estatais problemáticas, embora a divisão de
responsabilidades seja claramente uma estratégia atraente para as autoridades da
justiça criminal que buscam evitar a culpa pelas limitações de suas instituições.
Nem é simplesmente a “comutarização’ ou a “privatização’ do controle do crime,
conquanto o desiderato de reduzir os gastos públicos certamente seja um fator e
um dos efeitos desta estratégia consista em estimular o mercado já crescente da
segurança privada. Ao contrário de tudo isto, a motivação é uma nova concepção
de exercício de poder no campo do controle do crime, uma nova forma de
“governar à distância” que introduz princípios e técnicas de governo que, a esta

36
Idem p. 264-
37
Idem. p. 267-274.
38
A referência a uma dimensão aparente aqui empregada diz respeito à definição adotada por Juarez Cirino dos
Santos ao distinguir os objetivos declarados dos objetivos reais do Direito Penal (SANTOS, Juarez Cirino dos.
Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007. p. 4 e, ainda, A criminologia radical.
Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2006. p. 42).
39
Ibidem. p. 272.

163
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

altura, já estão bem sedimentadas em outras áreas da política econômica e


social.40

As possibilidades de participação indireta de outros entes além do Estado no controle


penal aumentaram ainda mais a repressão contra as minorias sociais dominadas, porém, foi
sobre a raça negra – sofredora de um triplo estigma – 41 que as ações se voltaram com maior
intensidade, principalmente durante as afirmações punitivas no cumprimento de pena. A
prisão que antes não funcionava, nos tempos de neoliberalismo passa a funcionar de maneira
eficiente em seu objetivo de cumprir a funções reais da pena. Assim sendo, a política de
tolerância zero dos anos 1990 promovida em Nova Iorque reprimiu essencialmente pobres e
negros nos guetos das subclasses e como delineado por Loïc Wacquant a técnica que tornou-
se seu símbolo foi: “parar e revistar”.42 Parar e revistar os bodes expiatórios – objetos do
controle penal – símbolos da expiação pela culpa de todos. No entanto, reconhecido os limites
do Estado em controlar e vigiar a totalidade da população, e, diante dessa limitação a busca de
uma distribuição de funções – seja terceirizando ou privatizando funções de poder repressivo
– entre os membros da sociedade, uma nova forma de controle opera silenciosamente, porém
com eficácia cuja racionalidade se ajusta às novas tecnologias da modernidade, conforme
pensamento profundamente apresentado por Foucault. As funções punitivas revelam-se
articuladas através da participação de entidades deslegitimadas a exercer o monopólio do
poder punitivo, mas indiretamente legitimadas a controlar e vigiar as ações do homem pós-
moderno, de modo a classificar aqueles que estão inseridos nos processos de circulação da
vida material, daqueles que sequer estão inseridos como objetos que impulsionam a vida
material.43 Nos dias atuais, esse sistema silencioso e bem articulado de autocontrole, de gestão
total do espaço comum e em algumas situações até do privado e íntimo, estão muito bem
sintetizado no pensamento de Alessandro De Giorgi, quando discorre sobre o controle
disciplinar para além do cárcere. O autor afirma que as novas políticas de controle “alimentam
uma geografia social totalmente independente dos comportamentos individuais (ausência de

40
Idem. p. 274-275. Conforme a nota de citação sob n. 64 em referência a este trecho mencionado, o autor, em
menção à J. Kooiman, informa que a participação de outros entes no controle do crime mais tarde revelou-se
frustrada.
41
Segundo Wacquant, o estigma aparece sob três formas: “moral (infringindo a lei, são banidos da cidadania), de
classe (são pobres em uma sociedade que venera a riqueza e concebe o sucesso social como resultado do esforço
individual) e de casta (são majoritariamente negros, saídos então de uma comunidade desprovida de “honra
étnica)” (WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De l’Etat
social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 35-36).
42
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2008. p. 100.
43
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. XVI e XVII.

164
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uma norma), preparada para a segregação e a contenção de classes de indivíduos definidas


pelo status.44

6. Considerações Finais: As novas formas de controle social na pós-modernidade

A realidade demonstra que o controle penal monopolizado pelo Estado teve que se
adaptar à nova forma de vivência do homem na sociedade pós-moderna. Uma rede de controle
total foi construída para dominar a vida de todos os membros da sociedade. Passado décadas
após o início da expansão territorial do sistema prisional em todo o mundo, o crescimento das
taxas de criminalidade faz parte realidade, parecendo ser um fato social normal no cotidiano
das grandes cidades. Atualmente, o sentimento coletivo de insegurança nas grandes capitais –
quer ou não alardeados pelos meios de comunicação – já se tornaram rotina e se incorporaram
ao cotidiano de todos, banalizando a violência e tornado cada vez mai distante a possibilidade
de um dia haver laços de solidariedade entre as pessoas. A delinquência continua a
desempenhar um papel relevante na sociedade ao ser fundamental para a manutenção do
sistema de justiça criminal, bem como por ser o grande alicerce que movimenta uma
milionária indústria que cresce constantemente, batendo suas metas de acordo com o aumento
das taxas de criminalidade. Evidente que tal papel influencia a inclusão/exclusão no mercado
de trabalho de sujeitos provenientes das classes sociais fragilizadas no processo de
inserção/ascensão social. Bens sociais negativos típicos das populações pobres reforçam os
estereótipos dos potenciais criminosos, motivado pelas meta-regras e idiossincrasias dos
operadores do direito que contribuem para a manutenção do sistema social, e, ainda, contribui
para que a repressão penal se concentre nas camadas pobres da sociedade. Não somente pela
produção de novas tecnologias para segurança de penitenciárias e os empregos que por elas
são mantidos, desde o mais simples servidor público até o mais alto cargo do Poder Judiciário,
mas, também, na indústria cinematográfica e setores de segurança privada. O papel relevante
que o crime e o criminoso desempenham na sociedade é fundamental para a manutenção de
toda uma rede de interesses dentro da sociedade em que, tendo sido transformada em relações
de consumo, coisificou o homem ao mesmo nível das mercadorias, porém, sendo essas mais
valorizadas que o protagonista que a cria.

44
Ainda antecedendo o trecho citado, De Giorgi pontua: “Não mais simplesmente teatro do controle, a cidade
torna-se agora, ela mesma, um regime de práticas de controle. A arquitetura urbana não se limita a tornar
possível a vigilância, segundo o modelo foucautiano da cidade punitiva, mas sim se transforma, ela mesma, em
dispositivo de vigilância, modalidade de uma repressão que se exerce, ainda uma vez, não mais sobre os
indivíduos singulares, mas sobre classes inteiras de sujeitos” (DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada
através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. p. 102 e 103).

165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O estudo dessa nova realidade do controle penal em que mergulha a sociedade pós-
moderna instiga várias indagações que envolvem como ponto central das controvérsias as
contradições das funções da pena, a comercialização do controle penal, as demandas do
público, os resultados e consequências dos arranjos do controle do crime, os limites da
proteção privada e as consequências do encarceramento. Todas aquelas proposições que
David Garland expõe na conclusão de umas das obras que norteou o presente trabalho, podem
ser bem sintetizadas nas seis indagações que o mesmo formula na tentativa de explicar as
raízes sociais do controle do crime,45 cuja resposta depende de um certo ajuste da estrutura
social da sociedade pós-moderna e a resposta política aos problemas específicos do controle
penal.

7. Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

DE CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005.

DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:


Revan: ICC, 2006.

DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan: ICC,
2004.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade


contemporânea (tradução: André Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São


Paulo: Martin Claret, 2005.

45
1ª) Por que a prisão deixou de ser uma instituição desacreditada, condenada à abolição, e se tornou um pilar
cada vez mais indispensável da vida social pós-moderna?; 2ª) Por que os governos adotam, tão rapidamente,
soluções penais para lidar com o comportamento de populações marginalizadas, em vez de cuidarem das fontes
sociais e econômicas de sua marginalização?; 3ª) Por que fizemos tantos investimentos em segurança privada e
criamos mercados tão prósperos em matéria de comercialização do controle? 4ª) Por que a ênfase agora se
direciona à prevenção situacional do crime e não mais aos programas de reforma social que dominavam o
campo*?; 5ª) Por que a imagem da vítima sofredora agora é tão central para a questão do crime e para as nossas
respostas a ela? Finalmente, 6ª) por que as políticas contemporâneas se assemelham tanto às políticas
antiprevidenciárias que surgiram exatamente no mesmo período? * O termo “campo” empregado pelo autor,
refere-se ao inter relacionamento numa estrutura diferenciada e tenuamente ligada dos discursos criminológicos,
as práticas de controle do crime e as instituições da justiça criminal, conforme p. 68 da obra citada (GARLAND,
David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea (tradução: André
Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.422-424).

166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

MELOSSI, Dario. A imigração e a construção de uma democracia europeia. In:


BORDIEU, Pierre (Org.). De l’Etat social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro:
Revan, ano 7, n. 11, 2002.

PASUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. PASUKANIS, E. Coimbra.


Editora Perspectiva Jurídica, 1972.

RUSH, Georg. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro:
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WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cesar Castanheira. São
Paulo: Boitempo, 2008.

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social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002.

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na


modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2002.

167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

LESÕES CORPORAIS DECORRENTES DA CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO:


REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO SOCIAL DE ADEQUAÇÃO DA CONDUTA
MÉDICO-TERAPÊUTICA

INJURY ARISING FROM SURGERY FOR CHANGE OF GENDER: REFLECTIONS


ON THE MEANING OF SOCIAL ADEQUACY OF CONDUCT MEDICAL
THERAPY

Pedro Paulo da Cunha Ferreira*

Flávia Siqueira Costa Pereira**

SUMÁRIO: Introdução – 1. O transexualismo como transtorno de identidade de gênero e o


método da transgenitalização: considerações sobre a conduta médico-terapêutica – 2. A
adequação social da conduta médica: apreciação crítica – 3. Conclusão – Referências.

RESUMO

O presente trabalho busca promover um exame crítico acerca da problemática jurídico-penal


da conduta médica e das resultantes lesões corporais decorrentes do procedimento terapêutico
de resignação sexual, enquanto meio curativo do desequilíbrio de personalidade sexual típico
do transtorno de identidade denominado transexualismo. O artigo apresenta inicialmente o
fenômeno do transexualismo, bem como as consequências negativas para o livre e sadio
desenvolvimento individual e as dificuldades de autoafirmação quanto à personalidade de
gênero. A pouca eficácia na otimização do quadro de desequilíbrio biopsíquico do transexual
exige uma análise e uma reflexão apuradas acerca do único instrumento autenticamente
curativo, a saber: a cirurgia de transgenitalização. Todavia, por tratar-se de um tipo de
esterilização terapêutica do paciente, tal procedimento engendra alguns questionamentos em
torno da repercussão jurídico-penal da conduta médica. O propósito do presente ensaio centra-
se nesse aspecto da problemática, expondo as compreensões doutrinárias acerca do objeto de
estudo e tomando, ao final, a partir da apresentação de seus fundamentos, a postura que
reconduz a solução da responsabilidade penal do médico ao expediente da conduta
socialmente adequada.

PALAVRAS-CHAVE: Paciente transexual; conduta médica; consentimento; adequação


social.

*
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR). Especialista em Ciências Penais pelo
programa de pós-graduação lato sensu da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-MG). Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Professor de Direito Penal.
**
Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG), pós-graduanda em Ciências Penais e mestranda em Direito Público pela mesma instituição.
Advogada Criminalista.

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ABSTRACT

This paper seeks to promote a critical examination about the legal and criminal problems of
the medical conduct and the resulting personal injury derived from the therapeutic procedure
of sexual resignation, as a manner to remedy the imbalance of sexual personality that is
typical of the identity disorder called transsexualism. The article first presents the
phenomenon of transsexualism, as well as its negative consequences for the free and healthy
individual development and the difficulties of self-assertion regarding the personality of
genre. The low efficiency in optimizing the the transsexual’s biopsychic imbalance requires
an analysis and reflection about the only instrument that is truly curative, namely: the sex
reassignment surgery. However, because it is a type of sterilization treatment of the patient,
this procedure generates some questions about the legal and criminal repercussions of the
medical conduct. The aim of this study focuses on this aspect of the problem, exposing the
doctrinal understandings about the object of study and taking, at the end, from the
presentation of its fundamentals, the stance which brings the solution to the criminal
responsibility of the physician to the expedient of a socially appropriate behavior.
KEYWORDS: Transsexual patient; medical management; consent; social adequacy.

INTRODUÇÃO

A composição social, do ponto de vista da classificação sexual dos sujeitos,


primariamente os distinguem em duas classes de gênero, qual sejam, o feminino e o
masculino. Todavia, há nessa mesma configuração uma ordem de indivíduos cuja
idiossincrasia não permite sua ubiquação imediata em quaisquer dos referidos grupos. Nessa
exceção, na proporção em que as identidades psicológicas e anatômicas se conflitam,
encontra-se a delimitação do particular caso do denominado transexualismo.
O transexualismo caracteriza-se pela identificação do sujeito com o sexo oposto
àquele que comporta anatomicamente. Como consequência decorrente dessa identidade
conflitiva, o transexual nutre permanente e necessário desejo em pertencer em sua totalidade,
a saber, do ponto de vista físico e psicológico, ao gênero descrito e representado em seu
comportamento mental.
Essa inadequação entre os aspectos objetivos e subjetivos – neurodiscordância de
gênero – acarreta um sem-número de efeitos negativos e nocivos à saúde mental do sujeito
que se encontra em perene conflituosidade interna, posto que não goza plenamente de um
status sexual definido que o identifique socialmente. O fenômeno genético do transexualismo
e sua classificação enquanto transtorno de identidade fundam-se no desajuste entre o
componente psicológico do sujeito e a concomitante discordância com relação aos seus
demais elementos físicos de definição sexual.

169
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A intersexualidade peculiar a esse transtorno sexual possui justificativa etiológica,


segundo as ciências médicas, nas alterações genéticas do componente cerebral associadas a
mutações hormonais pelas quais passa o sujeito desde sua formação embrionária.
Ulteriormente, em concurso com os fatores sociais de inserção e busca pela determinação
sexual, o transexual sofre pelo inconformismo entre o morfologicamente perfeito órgão
genital que possui e o sexo com o qual se identifica psicologicamente.
A reprovação de seus caracteres sexuais extrínsecos conduz o transexual, na maioria
das vezes, a atitudes extremadas de extirpação por mutilação dos próprios órgãos genitais.
Outros, na tentativa de adequação, submetem-se a longos tratamentos endocrinológicos com
vistas a correções físicas que possibilitem seu bem-estar individual. Embora essa seja uma via
da qual se possa valer o transexual, a referida medida não tem se revelado eficaz, já que acaba
por causar o atrofiamento dos genitais e sua consequente perda de função.
Por seu turno, mediante os avanços técnicos da medicina, outras alternativas surgiram
como critérios terapêuticos à aludida necessidade adaptativa. Nesse diapasão, a intervenção
médico-cirúrgica de alteração de sexo - também denominada transgenitalização - eclode como
o mecanismo de correção da ambiguidade sexual ínsita ao sujeito intersexuado. A despeito da
irrefragável função utilitária que desempenha a administração da terapia curativa, a mesma
encontra barreiras no campo jurídico e bioético, mormente quanto à natureza das
consequências da conduta médica de intervenção. Do ponto de vista jurídico-penal, um exame
perfunctório e geral conduziria ao juízo positivo de adequação típica entre a conduta do
médico e o delito de lesões corporais gravíssimas insculpido no artigo 129, § 2º, III, do
Código Penal.

1. O transexualismo como transtorno de identidade de gênero e o método da


transgenitalização: considerações sobre a conduta médico-terapêutica

Como exposto acima, o transexualismo consiste em uma inadaptação natural do sexo


fisiológico ao gênero psíquico do sujeito. Constitui um tortuoso dilema no âmbito da
medicina com relação à sua controvertida etiologia, embora haja na literatura médica
resultados parcialmente conclusivos acerca da origem do fenômeno transexual. A
inadequação entre o sexo físico e a orientação psicológica tem existência tão logo do início do
processo de formação somática dos órgãos e tecidos que originam as genitálias do indivíduo.

170
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Contudo, a consciência e a sensação desse desacordo são tomadas quando o sujeito adentra a
fase da puberdade, período em que, estando convicto da anomalia, hostiliza-se
psicologicamente pelo conflito que vivencia entre seus genitais e atributos secundários e o
sexo presente em seu psiquismo.
O sexo fenotípico ou morfológico, ou seja, aquele que dota o sujeito de características
e aparências externas que o singularizam como espécie humana do gênero feminino ou
masculino, é verificável por um exame dos sentidos que permite constatar os elementos
sexuais componentes do corpo do homem ou da mulher. São caracteres primários no gênero
masculino a existência do “pênis, da bolsa escrotal e dos testículos. No organismo feminino
os aspectos genitais são definidos pela presença da vagina, do útero, das trompas, dos ovários,
do clitóris e do hímen1”.

Já o sexo psicossocial constitui o conjunto de impulsos psicológicos e


comportamentais de cada indivíduo cuja consequência prática é expressão de instintos que são
peculiares a cada um dos sexos, tais como a atração física e afetiva pelo sexo oposto, o
comportamento no seio comunitário, a maneira de se apresentar socialmente, a opção por
determinados tipos de vestimentas, etc. É do ponto de tensão entre a caracterização dessas
duas espécies de manifestação sexual – a biológica e a psicológica – que advêm as
considerações relativas à configuração do transexualismo.
Eis aqui o ponto distintivo entre o intersexual e a maioria dos indivíduos (não-
transexuais): o grau ou nível de variações, que nos sujeitos sexualmente definidos são
proporcionalmente pequenas e, por isso, não repercutem em absoluto em sua personalidade de
gênero. Os indivíduos não-transexuais não apresentam a variabilidade psicossomática capaz
de gerar a mesma colisão de identidade sexual típica do transexual.
São tais variações que levam o componente psicológico do transexual a marcar-se pela
convicção íntima de pertencimento a um determinado sexo, que está em discordância com
seus componentes de ordem física (primários e secundários) que designaram o sexo
(fenotípico) quando do momento do nascimento2. Essa oposição fatorial entre os aspectos
anímicos de orientação sexual e os materiais de formação das genitálias desenvolve no sujeito
intersexual situações de inaceitabilidade do estado das coisas, associado aos constrangimentos
sociais decorrentes da falta de identidade sexual. Demais disso, o transexual se encontra

1
CAVALLI, Luciana. Disposição do próprio corpo do transexual e as novas diretrizes jurídicas. Três Lagoas,
Sociedade e Direito em Revista, n. 2, ano. 2, 2007, p. 143.
2
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do transexualismo. São Paulo,
Psicólogo In Formação, n.4, ano. 4, jan./dez. 2000, p. 65.

171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

envolvido em um cotidiano de angústia e preconceito, o que torna irrealizável sua satisfação


pessoal e compromete acentuadamente seu bem-estar individual e social.
Diante desse quadro, a unidade sexual consiste na causa primeira e no fim último
perseguido pelo transexual como forma de alcance da almejada normalidade e de definição de
sua identidade sociocultural. À revelia do patente estágio de avanço técnico das ciências
clínicas, a medicina, hoje por hoje, não dispõe de recursos terapêuticos3 definitivamente
eficazes para a cura ou que ao menos ofereçam perspectivas otimistas à questão da anomalia
transexual, mormente por sê-la oriunda de causas genéticas - portanto, imutáveis – e por não
existir um tratamento curativo senão por intermédio da intervenção cirúrgica de alteração de
sexo.
O procedimento da transgenitalização sucede o esgotamento de uma série de etapas
clínicas e psiquiátricas anteriores às quais, necessariamente, deve submeter-se o paciente
transexual. A intervenção cirúrgica de resignação do sexo é executada em três fases de
complexidade, quando se refere à alteração do sexo feminino para o masculino; o inverso –
alteração do sexo masculino para o feminino – é um processo mais simples, que se
desenvolve em apenas uma única etapa interventiva. A conversão do órgão sexual feminino à
forma masculina perfaz-se pela reunião de manobras cirúrgicas cujo início consiste na
extração do útero, ovários e anexos. Superada essa fase preliminar, tem-se, após um período
de recuperação, o segundo momento procedimental, agora objetivando a constituição da
uretra, a retirada da vagina e sua concomitante alteração até que dê forma e condição à
estrutura da bolsa escrotal. A realização da etapa conclusiva de intervenção requer – após o
término da fase anterior – um lapso temporal necessário, para fins de cicatrização, de
aproximadamente 30 dias. Nesse terceiro estágio, é introduzido no paciente um novo escroto,
com duas estruturas ovoides simulando os testículos. Nesse mesmo momento, é também
implantada a estrutura peniana denominada enxerto de Chang.
Com notória evidência, a reconfiguração cirúrgica do sexo pelo método acima
elucidado trabalha através da extração e remoção de órgãos sexuais e reprodutivos
(esterilização), que, no caso destes últimos, compromete totalmente sua função no sistema
reprodutor. Consequentemente, sobrevêm os questionamentos jurídico-penais acerca da
conduta do médico que realiza a operação, dado que esta implica em inutilização da função
reprodutiva do ser humano.

3
Quanto à variabilidade de técnicas médico-terapêuticas, elencam-se as terapias hormonais, medicamentosas,
psicopedagógicas e psiquiátricas. Em que pese isoladamente esses meios não solucionarem em definitivo a
inadaptação sexual entre os aspectos anatômicos e psíquicos do intersexual, são todos eles etapas que antecedem
obrigatoriamente a ulterior fase de intervenção cirúrgica de resignação sexual.

172
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Essa perda observa Cezar Roberto Bitencourt, dá-se quando cessa o sentido da função
ou quando há a referida amputação do membro ou remoção do órgão que compõem o sistema
com o qual desempenha ou executa a função doravante prejudicada4. A interrupção definitiva
e funcional do membro ou órgão, no isolado caso da cirurgia de correção sexual, não pode ser
entendida igualmente como sua inutilização, tendo em vista que essa pressupõe a subsistência
daqueles, porém com o perecimento de suas funções típicas. De outro modo, trata-se de uma
perda que traz consigo uma debilidade permanente. Isso pode ser claramente visto, por
exemplo, no caso da resignação do sexo fenotípico masculino, quando a ablação dos órgãos
genitais (falo e testículos) acarreta a simultânea cessação intermitente da função reprodutora.
A relação de causa e consequência entre a conduta médico-reparadora e o efeito
negativo à função reprodutora, in casu, é totalmente indiscutível, quer pela idoneidade, quer
por sua adequação à produção do resultado lesivo. As manobras cirúrgicas promovidas em
favor da adaptação entre os disformes aspectos sexuais objetivos e seu caráter subjetivo
tornam a assimilação da noção de lesividade seu produto direto, cuja relação de síntese, na
qual se baseia a causalidade, resta estabelecida, tendo como pontos de ligação as
deformidades acima apontadas e a intervenção médica, sendo aquelas imputadas ao médico
enquanto obra sua.
O nexo de imputação que nestes casos se estabelece inegavelmente a título de dolo –
já que o cirurgião dirigiu de modo voluntário e consciente uma série de empreendimentos
tendentes à causação da debilidade da função reprodutora e dos órgãos a seu serviço –
acarreta ao médico a responsabilidade penal pela conduta anunciada no artigo 129, § 2º, III,
do Código Penal. É essa, ao menos, a posição de respeitável setor da doutrina que se ocupa
das questões relativas às equivocadamente denominadas intervenções cirúrgicas de caráter
curativo ambíguo. Para Albin Eser, por exemplo, a tipicidade das lesões não pode ser negada,
de acordo com os limites descritos no injusto penal, sendo, porém, a conduta médica
concretamente carecedora de ilicitude formal em razão do consentimento justificante do
paciente transexual5.
A defesa do consentimento como causa de justificação claudica em seus próprios
fundamentos, especialmente quando aplicada às hipóteses de lesões com fins médico-

4
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial – dos crimes contra a pessoa. 7.ed.
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 168.
5
ESER, Albin. Estudios de Derecho Penal médico. Trad. Manuel A. Abanto Vásquez. Lima: IDEMSA, 2001, p.
37-38. Sobre emblemático caso de condenação de cirurgião plástico pela prática da transgenitalização ver com
detalhes o caso exposto por PEREIRA, Carolina Grant. Bioética e transexualismo: para além da patologização –
uma questão de identidade de gênero. Fortaleza, Anais do XIX Congresso Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação (CONPEDI), jun. 2010, p. 850-851.

173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

terapêuticos. A falibilidade metodológica desse posicionamento radica na construção do


injusto penal sobre um desvalor puramente formal de contrariedade a um preceito proibitivo
normativo. O reconhecimento da existência de uma suposta lesão ao bem jurídico não afasta a
assunção de que esta não teria o significado de menoscabar a integridade corporal do
intersexual, mas verdadeiramente uma orientação curativa, com o propósito de aproximar o
paciente da máxima satisfação pelo equilíbrio entre sua integridade física e psíquica.
A face oposta da ilicitude penal, a saber, a antijuridicidade material, conceito
diverso do seu correspondente formal, obedece à ideia de que a contrariedade da conduta com
relação ao direito reveste-se de um conteúdo substancial, real, que consiste em uma
verificação muito mais profunda do que o simples exame de oposição do fato a uma especial
norma jurídico-penal6. O diagnóstico da manifestação desse ângulo material da ilicitude diz
respeito à essência do desvalor do resultado, enquanto cofundamentador7 do injusto penal, já
que representa a extensão e concreta materialização de uma degradação do bem jurídico sem
qualquer correspondente que autorize e justifique a lesão.
Existe, nesse ponto, uma questão tangente à própria problemática da racionalidade
normativa enquanto condição de elaboração das leis penais (no processo de criminalização
primária), e como critério fundante8 de aplicação do direito em respeito à realidade empírica.
Sob essa perspectiva, Jiménez de Asúa reforça que a missão do Direito Penal consiste em
regular a vida social em comum dos membros do corpo social, portanto, uma norma
corresponde à sua determinação (finalidade) de ser meio justo para cumprir um fim justo,
quando oferece um manejo (aplicação) para a adequada regulação da vida social comum. Essa
última (a vida social), por sua vez, encontra suas condições de existência no fato de que cada
indivíduo elege fins objetivamente justificados e aplica os meios adequados à sua consecução.
Em consequência, o indivíduo, por sua vez, endereça seu querer e seu atuar de acordo com a
máxima formal de sorte que seu querer e atuar mostrarem-se como meios justos para o
alcance de um fim justo9.
Na esteia argumentativa, o paciente transexual, mediante a prestação de seu
consentimento10 informado, outorga ao médico a autorização necessária que afasta a

6
NUÑEZ, Ricardo. Manual de Derecho Penal: PG. 4.ed. Buenos Aires: Córdoba, 1999, p. 154.
7
PRADO, Luiz Regis. La norma penal como norma de conduta. Revista de Derecho Penal y Criminología,
Madrid, n. 5, 2011, p. 158.
8
FERNÁNDEZ CRUZ, José Ángel. La legitimación social de las leyes penales: limites y ámbito de aplicación.
Madrid, Revista de Derecho Penal y Criminología, n.5, 2011, p. 201.
9
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de Derecho Penal: la ley y el delito. Buenos Aires: Sudamericana,
1958, p. 272.
10
Sobre o consentimento como causa de exclusão do tipo, vide CEREZO MIR, José. Derecho Penal: PG. São
Paulo; Lima: RT/Ara, 2007, p. 762-763. Quando o bem jurídico é disponível em caráter geral, há que se entender

174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

antijuridicidade de sua conduta, posto que o comportamento, nestes termos, soma o conjunto
de condições para a busca de uma finalidade tida como imprescindível: a ideia de justa
satisfação de bem-estar pessoal. O desvalioso juízo que recaí sobre o advento do resultado
lesivo vê-se suficientemente equilibrado e compensado pelo sentido e teor do valor da ação
médico-terapêutica que, orientada à uma finalidade diversa da lesão meramente agressiva,
supera o déficit do conteúdo normativamente negativo que, a princípio, pudesse conter. A
aceitação de um fato punível – objeto do consentimento – renuncia a proteção ao bem jurídico
que lhe confere o direito, por sê-lo disponível e realizar-se nos limites da válida capacidade
para consentir e da autonomia da vontade11 do paciente.
A capacidade de consentir do titular do bem jurídico, a saber, suas circunstâncias
biopsicológicas que no particular lhe tornam apto a deliberar e a interagir com o médico na
consciência e permissão das lesões a ele dirigidas, por levar em conta sua validade em razão
da maioridade e do pleno uso de sua capacidade mental – expressa sem vícios e coações –,
tem importância não só quanto à autorização da conduta médico-curativa, mas, sobretudo, traz
reflexos no âmbito do tipo12 e, portanto, não pode ser ignorada quando do juízo de subsunção
de tipicidade penal. Reforçando o afirmado, Puppe ensina que esse consentimento informado
e válido do paciente outorgado em favor de uma intervenção médica curativa não só exclui o
injusto das lesões, como também sequer permite que este apareça, pois o próprio titular do
interesse é quem decidiu validamente sobre o bem jurídico integridade corporal13.

Convém destacar, ainda, que a condução da discussão do tema em epígrafe no âmbito


da ilicitude parece superficial, pois confere tratamento equiparador entre as lesões médico-
terapêuticas advindas da transgenitalização e aquelas causadas pelo socorro médico, que
configuram manifesto estado de necessidade, mormente nas ocasiões em que a intervenção
terapêutica ocorre arbitrariamente, sem o consentimento do paciente. O rechaço da tese do
estado de necessidade justificante, nesse caso, encontra acolhida no próprio fundamento dessa

que forma parte integrante dele a livre disposição do mesmo. É, portanto, a validade lógica do argumento de que
o consentimento do portador do bem jurídico elide o juízo de adequação típica entre a conduta médica que ex
ante poderia denotar ofensa à sua integridade.
11
Sobre a autonomia da vontade pessoal, disserta Gisele Mendes de Carvalho que “o princípio da autonomia
consiste no reconhecimento da livre decisão individual sobre seus próprios interesses sempre que não afete aos
interesses de um terceiro ou no respeito à possibilidade de adoção pelo sujeito de decisões relacionais não
consternadas”. Segue a autora explicando que, aplicado à relação médico-paciente, esse princípio impõe o dever
de respeitar e facilitar a autodeterminação do paciente na tomada de decisão sobre seu destino médico. Acerca da
nota, vide, CARVALHO, Gisele Mendes de. Suicidio, eutanásia y Derecho Penal: estúdio del art. 143 del
Código Penal español y propuesta de lege ferenda. Granada: Comares, 2009, p. 3-4.
12
GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT, 2004, p. 163.
13
PUPPE, Ingeborg. La justificación de la intervención médica curativa. Barcelona, Revista para el Análisis del
Derecho, n. 1, 2007, p. 4.

175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

causa de exclusão da ilicitude. A existência de choque de interesses igualmente valiosos ao


sujeito é conditio sine qua non para que se possa considerar qualquer atitude eximente, tendo
em vista a circunstância que lhes insira em um contexto que os tornem (os ditos interesses)
colidentes14 e justifique o sacrifício de um deles.

A inocorrência do pressuposto conflito de bens jurídicos é patente no caso da


transgenitalização. O tipo penal de lesões corporais, em todas as suas formas, está construído
em favor da tutela da incolumidade da pessoa humana15, referendando a proteção da
integridade física e psíquica do homem. Como elucida Luiz Regis Prado, a “tutela penal
dispensada não se circunscreve à normalidade anatômica, mas abarca também a regularidade
fisiológica e psíquica” e, acima de tudo, o ponto de estabilidade entre ambos os aspectos da
saúde humana. Manter um desvalor de injusto plasmado na conduta médico-reparadora de
busca pela estabilidade de ambos os elementos constitutivos do bem jurídico é a negativa de
que a dignidade jurídico-penal do indivíduo não deva ser levada em conta em sua totalidade e
cria arbitrariamente um critério tarifado que diferencia em valor os caracteres fundantes da
saúde humana.

Ademais, cada bem jurídico guarda com seus titulares um vínculo de funcionalidade,
enquanto a magnitude variável16, cujo valor depende de um eixo axiológico de outro escalão,
sendo, pela lógica, uma relação que associa os membros de uma classe (os sujeitos) com
certos entes (bens) de outra categoria. Essa associação se faz às bases do valor utilidade, cujo
liame se expressa na construção, manutenção e alteração de uma condição do sistema global.
É dessa resultante que surge o traço mais paradigmático no tocante a teoria do bem jurídico,
ao revés de suas polissêmicas17 compreensões. Alude-se à possibilidade de disposição por
parte do titular de um determinado interesse representativo de certo valor ético social quando
tal abdicação for imprescindível à sua realização. Isso se dá, pois, por ser, outrossim, este um
dos esteios para que seja reconhecido a um dado bem o status de valor jurídico da ordem
positiva.

14
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Sobre el estado de necesidad en Derecho Penal Español. Madrid, Anuario de
Derecho Penal y Ciencias Penales, n.35, 1982, p. 664.
15
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte especial – v2. 9.ed. São Paulo: RT, 2011, p. 141.
16
TAVARES, Juarez E. X. Bien jurídico y función en Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004, p. 56.
17
Sobre essa variabilidade das correntes teoréticas e sua interpretação acerca do bem jurídico, vide a principais
considerações feitas por HORMAZABAL MALARÉE, Hernán. Bien jurídico y Estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. 2.ed. Santiago: Conosur, 1992, p. 38 e ss; PRADO, Luiz Regis.
Bem jurídico-penal e Constituição. 5.ed. São Paulo: RT, 2011, p. 39 e ss; BIANCHI PÉREZ, Paula Beatriz.
Evolución del concepto de bien jurídico en la dogmática penal. Mérida, Revista Semestral de Filosofía Práctica:
Universidad de los Andes, ene./jun. 2009, p.33 e ss.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Há ainda um setor da doutrina que sustenta que a conduta médica nesses casos de
lesões corporais consentidas pelo paciente transexual em favor de sua adequação anatômica se
encontra amparada pelo exercício regular de direito. Nessa trilha, são invocados os
ensinamentos de Nelson Hungria18, para quem a lesão corporal decorrente de operação
cirúrgica, ainda que não seja para evitar perigo de vida, mas consensiente o enfermo, nos
casos aconselhados pela arte médica, insere-se no exercício de direito que lhe outorga o
Estado e lhe autoriza o exercício. Todavia, essa solução parece a mais desacertada para
dirimir a questão da responsabilidade penal do médico, tendo em vista que viola as regras
gerais que são indispensáveis para a aplicação da justificante em apreço. O fato de considerar
a conduta médico-terapêutica no marco do exercício regular de direito dependeria, antes, que
esta tivesse respaldo em regulamentação normativa de valor jurídico, e não apenas previsão e
disciplina em código de ética profissional. E, ainda, porque essa primeira exigência excluiria,
como dito alhures, a formulação de uma regra geral válida e aplicável a todos os casos de
lesões curativas, dado que a existência de disciplina legal que dê fundamento a essa
modalidade de excludente não é uma constante nas diversas ordens jurídicas. Assim é o caso
do Brasil, que disciplina a questão na Resolução nº. 1.482/1997 do Conselho Federal de
Medicina (CFM), cuja regulamentação trata da autorização, a título experimental, em
hospitais universitários ou públicos adequados à pesquisa, da realização de cirurgia de
transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos
complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, como tratamento dos casos
de transexualismo.

É claro que a ponderação entre o benefício global auferido pelo paciente transexual e o
prejuízo decorrente das lesões cirúrgicas – embora sua normativa gravidade descrita nos
taxativos limites do injusto de lesões corporais – implica barreiras mesmo externas à vontade
do paciente que se agregam cumulativamente para o estabelecimento de escalas de atuação,
sobre as quais pode seguramente ser realizado o procedimento cirúrgico.

18
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal: v. 5. 5.ed. Rio de Janeiro:
Forense 1979, p. 335 e ss. “Fora dos casos de estado de necessidade, a intervenção cirúrgica, levada a efeito
pelo médico, pode, em certas circunstâncias, ser excepcionalmente protegida pelo instituto do exercício regular
de direito, excludente da ilicitude prevista no art. 23, III, do Código Penal. Assim, constitui exercício regular de
direito a iniciativa de a pessoa dispor do próprio corpo para permitir expressamente ao médico realizar cirurgias
como: plástica, vasectomia, mudança de sexo (transexualismo)”, vide OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, erro
médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 168. Sobre a duplicidade de consequências do
exercício regular de direito, vide a compreensão sobre o tema apresentada por BRODT, Luis Augusto Sanzo.
Entre o dever e o direito. Porto Alegre, Juris: Direito/FURG, v.11, n. 45, 2005, p. 44, para quem o instituto pode
acarretar duas consequências jurídicas, a saber: a exclusão da ilicitude da conduta - como tradicionalmente
reconhece a doutrina majoritária- ou então sua atipicidade.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A premissa de todas essas balizas encontra-se na submissão19 estrita do atuar médico


às disposições da lex artis. A observância das regras técnicas que disciplinam o início e o fim
da intervenção terapêutica evita desnecessários traumas ao paciente.

Logo, a operação de reajustamento sexual é uma exigência ante a livre, consciente e


acompanhada escolha do paciente em definir sua identidade sexual e de gênero residindo,
portanto, acima de tudo, nisso a razão pela qual o “Direito Penal médico tem como referente a
construção social da realidade20”, quer em seus postulados, quer em seus conceitos ou
princípios e ainda, por fim, em suas regras de aplicação, sob pena do culto a uma bioética
puramente parnasiana21 em formalismo e vazia de conteúdo.
Nesse mesmo sentido, emanam de preceitos de ordem constitucional orientações que
rejeitam qualquer consideração que, em âmbito infraconstitucional, não comportem
flexibilização quanto às proibições de lesões corporais com fins terapêuticos e/ou curativos,
dando azo a uma inconsistente e aparente incoerência22 normativa e sistêmica23 no
ordenamento jurídico. Ou seja, caso não houvesse mecanismos interpretativos que
corrigissem a incompatibilidade normativa, estar-se-ia, neste particular, ante normas idênticas
em conteúdo e finalidade, todavia, em bases e conceitos divergentes.
Essa antinomia – que se afirma ser e dever ser meramente aparente – observa-se do
preceito constante no artigo 196 da Constituição Federal que estabelece o direito à saúde
como prerrogativa de todos, cabendo ao Estado, mediante suas políticas, dentre outros fins,
prestar-se à sua promoção, proteção e recuperação.
A antinormatividade aqui, como bem ensina Zaffaroni, não se revela apenas na
simples oposição entre a “norma deduzida do tipo legal e a conduta, postulando também a
consideração conglobada24” da norma deduzida do tipo com outras normas dedutíveis de
outros preceitos legais. Não é possível que se imagine que em uma mesma unidade de direito
positivo possa haver espaços vagos que abriguem contradições internas entre suas
justificativas. E isso resta muito menos admissível quando os contrastes conceituais dos

19
Cf. TRIVIÑO CABALLERO, Rosana. Autonomía del paciente y rechazo del tratamiento por motivos
religiosos. Barcelona, Revista para el Análisis del Derecho, n. 3, 2010, p. 12.
20
Vide ANDRADE, Manuel da Costa. Direito Penal médico. São Paulo/ Coimbra: RT/Coimbra,2008, p. 90 e ss.
21
Cf. MARQUES, Daniela de Freitas. Sobre a bioética, o sofrimento e a tortura: medicina e política no sistema
jurídico-penal. In: RIBEIRO, Bruno de Morais (Org.). Direito Penal na atualidade: escritos em homenagem ao
Professor Jair Leonardo Lopes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 31.
22
Sobre a coerência como característica da ordem jurídica, vide BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento
jurídico. 6.ed. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1995, p. 71-110.
23
Cf. BARROSO, Luís Roberto. In: FERNANDES, Bernardo Gonçalves (Org.). Interpretação constitucional:
reflexões sobre (a nova) hermenêutica. Salvador: Juspodium, 2010, p. 166-167.
24
Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
brasileiro: v 2. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan , 2010, p. 233.

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preceitos e de seu alcance veem-se entre normas de hierarquia distintas. O Estado não só
chancela o direito à saúde, como fomenta sua realização plena, de modo que considerar as
lesões corporais de natureza cirúrgica conflitivas, principalmente, com o disposto a nível
constitucional, faria com que diante do (falso) antagonismo de deveres o cumprimento de um
deles não subsistisse sem a flagrante violação do outro.
Nesse tocante, a saúde humana não pode ser posta no centro de tensão entre dois
postulados normativos, em especial entre aqueles oriundos de fontes nas quais as
considerações acerca da dignidade da pessoa humana tomam contornos e significados tão
específicos. O respeito apenas formal à dignidade do homem impede a consideração do
Estado de Direito sob uma perspectiva material. O Estado de Direito, como bem pontifica
Helena Lobo, “legitima-se pela subordinação à lei e, ao mesmo tempo, a determinados valores
fundamentais, consubstanciados na dignidade humana25”, e, portanto, conatos à personalidade
do homem enquanto Ser.
E a respeito dessa, ou seja, da personalidade26, incide um núcleo essencial de direitos
próprios, sendo aqueles reconhecidos à pessoa tomada em si mesma e em suas projeções na
sociedade, com previsão no ordenamento jurídico para a defesa de valores inerentes 27 ao
homem, como a vida, a higidez, a intimidade, a honra, a intelectualidade e tantos outros. O
reflexo dos direitos da personalidade associado ao direito à saúde condiz ao fato de que a cada
um, em determinadas circunstâncias, tenha tratamento condigno, em conformidade com sua
particularidade e a situação atual da medicina. Em decorrência do sofrimento e do constante

25
Cf. COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo:
RT, 2008, p. 37.
26
Em poucas linhas sobre a relação entre a personalidade do homem e sua inerente ideia de dignidade vide,
PRADO, Luiz Regis. Princípios da dignidade da pessoa e humanidade das penas na Constituição Federal de
1988. In. MARTINS, Ives Gandra; REZEK, Francisco. (Orgs.). Constituição Federal: avanços, contribuições e
modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: RT, 2008, p. 213. O penalista leciona que o
princípio jurídico-constitucional, “busca proteger a dignidade da pessoa, salvaguardar sua esfera mais íntima e
personalíssima, entendida como direito originário de todo ser humano”.
27
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.
18. Os direitos da personalidade enquanto feixes de direitos fundamentais são aqueles que correspondem a todos
os seres humanos enquanto indivíduos ou pessoas. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y garantias: la ley del más
débil. Trad. Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 1999, p. 99. Roxa Cardoso em pontual estudo sobre
os direitos da personalidade ocupa-se dentre outros aspectos acerca da questão da síndrome transexual, o direito
a mudança de sexo e seus reflexos para essa específica categoria de direitos. A autora aponta que há divergência
entre os estudiosos quanto ao enquadramento do assunto – seja alocando-o nas implicações do direito sobre o
próprio corpo ou integridade corporal (física), seja ainda como defendem outros quanto ao direito a integridade
psíquica. O sentido dessa discussão torna-se estéril ante as considerações sob as quais assiste razão tomar os
direitos da personalidade como um todo unitário protetor da pessoa em suas diversas expressões. Cf. BORGES,
Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
118.

179
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estado de infelicidade vivenciado pelos transexuais, a cirurgia28 de resignação aparece como


relevante solução para trazer este indivíduo ao convívio social e ao desfrute de uma vida
digna.
Em face disso, chega-se ao ponto de partida para a tomada de postura acerca da
conduta do médico que age com propósito curativo na intervenção cirúrgica de alteração de
sexo do paciente transexual. A assunção irrestrita desse tipo de conduta nas considerações
negativas do desvalor do injusto penal é a acolhida conformada de que a intervenção punitiva
atinge um patamar intolerável de irracionalidade, dado pretender que o sujeito use o bem
jurídico apenas de certo modo, ainda que sua natureza seja individual e disponível.

2. A adequação social da conduta médica: apreciação crítica

Partindo da infranqueável premissa de que o Direito Penal presta-se ao papel de


salvaguarda dos bens jurídicos mais essenciais à coexistência social, o mesmo (o Direito
Penal), em sua mais rica e acertada formulação teórica, não despreza o contexto dinâmico no
qual estão imersos os objetos jurídicos que tutela e nem desconsidera, portanto, a relação de
disponibilidade entre eles e seu titular. Com isso, faz-se alusão à concepção que Welzel29
denomina como natureza dinâmica dos bens jurídicos, em oposição à sua concepção
meramente estática. Os bens jurídicos “não podem ser considerados peças de museus,
custodiadas cuidadosamente em vitrines frente à influência lesiva e só expostos à vista dos
que contemplam, pois a realidade social30” que o direito regula é muito distinta dessa ilusão
idealista. Os bens somente comportam razão de existir e são elevados a determinada categoria

28
Cf. SILVEIRA, Esalba Maria Carvalho. De tudo fica um pouco: a construção social da identidade do
transexual. 2006. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) -
Faculdade de Serviço Social, Porto Alegre, p. 84.
29
WELZEL, Hans. Derecho Penal: PG. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 136. “O
bem jurídico constitui uma síntese concreta de uma relação social dinâmica com o qual se compreende a posição
dos sujeitos, suas formas de vinculação entre eles e os objetos, suas intenções e seu transcurso dentro do
desenvolvimento histórico do contexto social. Só a partir daqui se pode dar um conteúdo material ao injusto e
com ele a tipicidade. A ação surge como uma forma de vinculação dos sujeitos e implica um determinado
rendimento social dos sujeitos” Sobre essas considerações, vide HORMAZABAL MALARÉE, Hernán;
BUSTOS RAMÍREZ, Juan José. Significación social y tipicidad. Santiago de Compostela, Estudios Penales y
Criminológicos, n. 5, 1980-1981, p. 27. O bem jurídico e sua função permitem demonstrar e determinar o
porquê do injusto e quais os fins por ele perseguidos, bem como possibilita levantar as razões que explicam a
irrelevância de certas condutas aparentemente típicas ou o fundamento para que, embora formalmente descritas
no injusto, não sejam socialmente desvaloradas.
30
GRACIA MARTÍN, Luis. El finalismo como método sintético real-normativo para la construcción de la teoría
del delito. Granada, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, v.6, n.7, 2004, p. 7.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

jurídica na medida em que assimilam uma função social. Segundo Gracia Martín, os “bens
jurídicos não estão simplesmente postos na realidade, mas têm existência para que estejam em
função de, ou seja, em favor de produzir e suportar efeitos em seu contexto social31”. Nessa
perspectiva, apropriada e imanente à realidade social, o Direito pode dispensar ou suspender a
proteção que confere a determinados bens jurídicos diante de certas ações, desde que
ajustadas ao socialmente adequado.

Adequado socialmente é, num primeiro instante, aquele comportamento que, por


mover-se funcionalmente32 dentro de uma ordem historicamente constituída, encontra-se fora
do conceito de injusto. O mundo do Direito, por comportar o valor dos sentidos e por ser,
sobretudo, fiel aos sentidos dos atos, considera no Direito Penal e em seus elementos seus
ingentes reflexos sociais. O sentido conforme e admitido pelo social “funda-se no esquema
valorativo prévio de ponderação de interesses33 a partir do qual se estabelece a medida do
tolerável34” para que a exposição e o consumo racional de bens jurídicos possam conceber o
próprio desenvolvimento da vida social, a superação de estágios culturais e a máxima
realização pessoal do indivíduo. Esclarece Rueda Martín que o critério mais utilizado para
estabelecer os limites do suportável (atípico) e do não suportável (típico) pela ordem social é a
determinação da relação custo-benefício35, jungida a diferentes institutos jurídicos que
isentam determinado desvalor penal, tais como as causas de justificação36v.g. do estado de
necessidade e da legítima defesa.

Trata-se de levar em conta a localização37 sistemática das considerações do referido


critério. Assim, se o que se pondera são circunstâncias alheias ao tipo, a ponderação se orienta
à exclusão da antijuridicidade da conduta; caso contrário, se o juízo de ponderação se projeta

31
Idem, ibidem.
32
CANCIO MELIÁ, Manuel. La teoría de la adecuación social en Welzel. Madrid, Anuario de Derecho Penal y
Ciencias Penales, n.46, v. 1, ene./abr. 1993, p. 698-699.
33
Neste caso particular, a saber, notadamente aquele de intervenção médica com fins curativos, tal ponderação
tem sentido objetivo com relação às vantagens e desvantagens terapêuticas do tratamento ou procedimento
interventivo.
34
Cf. RUEDA MARÍTIN, María Ángeles. La concreción del deber objetivo de cuidado en el desarrollo de la
actividad médico-quirúrgica curativa. Barcelona, Revista para el Análisis del Derecho, n. 4, 2009, p. 41.
35
Idem, ibidem.
36
“[...] se distingue a adequação social das causas de justificação porque – efetivamente – estas concebem
também uma liberdade de ação, mas de natureza especial, ou seja, uma permissividade especial que autoriza a
realização de ações típicas, ou seja, socialmente inadequadas”. Vide MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael. Teoría de la
antijuridicidad. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003, p. 54. Sobre o elenco de críticas
acerca da teórica da adequação social de Welzel, ver os apontamentos feitos por VARGAS, José Cirilo de. Do
tipo penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 160.
37
Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995,
p. 38.

181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

sobre a ofensa de bens jurídicos que são inerentes ao normal funcionamento da vida social, tal
ponderação se situa na esfera da tipicidade38.

O critério da ponderação de interesses, como acima dito, constitui o ponto nevrálgico


para a contextualização das lesões corporais de natureza médico-cirúrgica. No particular caso
da intervenção terapêutica de transgenitalização, a evidência da mensuração dos custos e
benefícios para o equilíbrio biopsíquico do transexual afasta quaisquer dúvidas acerca de sua
tolerância por parte do paciente, que, mediante seu prévio consentimento informado, anui na
execução da conduta curativa. A autorização do paciente transexual para a realização do
procedimento terapêutico e, consequentemente, a admissão de suas consequências necessárias
emanam de seu livre convencimento acerca da eficácia do meio à sua adequação sexual.

O médico, ao longo da aplicação procedimental da técnica cirúrgica da


transgenitalização, seja ocasionando lesões superficiais – leves e simples– para iniciar a
intervenção, seja acarretando as lesões de nível secundário e superior, encontra-se frente a
uma situação determinada que lhe concede uma “liberdade de ação39”. Em realidade, essa
liberdade de agir está contida na natureza do valor ínsito à ação empreendida com o propósito
curativo ou paliativo para alguma moléstia de afetação física e/ou psíquica do paciente.
Portanto, sob essa óptica, assinala Pierangeli que as intervenções médico-cirúrgicas
“de conformidade com a lege artis, após um cuidadoso diagnóstico, não reclamam
justificação porque são atípicas em face de sua adequação social40”. Desta feita, a finalidade
que orienta a conduta médica impede seu enquadramento no tipo das lesões pessoais. Ainda
que o cirurgião tenha produzido dor e amputações no organismo do paciente, a conduta
empreendida se ajusta perfeitamente às exigências de ordem ético-jurídico-social orientadas à
harmonização da sexualidade corporal do sujeito intersexuado41.
A desaprovação ético-social da conduta médica, nestes casos, seria elidida pelo
próprio sentido curativo que guia a atuação do médico durante as etapas e procedimentos de
alteração somática do sexo. A aparente intenção desvaliosa42, - consubstanciada na suposta
finalidade lesiva da conduta médica - vê-se neutralizada pela salvaguarda do próprio bem
jurídico em questão, sob a consideração de que sua dupla dimensão (aspectos relativos a

38
Idem, ibidem.
39
HORMAZABAL MALARÉE, H; BUSTOS RAMÍREZ, J. J .Obra citada, p. 27.
40
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3.ed. São Paulo; RT, 2001, p.
199.
41
Idem, ibidem.
42
Cf. ESER, Albin. La adecuaciónsocial,¿figura legal superflua o necesaria? Buenos Aires, Revista de Derecho
Penal, n.3, 2002, p. 461.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

integridade física e psíquica) requer inegável harmonização entre seus caracteres constitutivos
para sua máxima funcionalidade.
Romeo Casabona, ao tratar das lesões corporais de natureza grave resultantes dessa
espécie de cirurgia, ensina que a perda da capacidade de reprodução afeta uma faceta muito
importante do ser humano: a possibilidade de ter filhos; porém, aduz que o desequilíbrio
psíquico pelo qual passa o indivíduo alcança o desenvolvimento total de sua personalidade e
suas relações com os demais43, o que o inclina a proteger prioritariamente este último aspecto
de sua saúde, já que somente assim é possível promover de modo mais producente o governo
sadio de seu desenvolvimento, tanto físico quanto psicológico.

A atividade do médico aqui é no sentido de favorecer - e não de menoscabar- o valor


que a lei penal tutela, o que corrobora a aceitação da adequação social como um princípio de
validade geral na exclusão do tipo de ilícito44. De conseguinte, quando a intervenção cirúrgica
contiver nítido caráter terapêutico-curativo, como é o caso da transgenitalização, a
observância das regras técnicas45(cuidado diligente com relação ao emprego da técnica
médica), contribui na exclusão do desvalor da ação próprio de um delito de lesões corporais.

Desta feita, a adequação social, enquanto referência dogmática, figura como


componente normativo (ao lado de elementos ontológicos) no campo do injusto, constituído
por juízos valorativos contrários de adequação e inadequação social de determinada conduta.
Tais valorações desempenham “significativo papel político-criminal e dogmático no âmbito
da categoria da tipicidade, dado traçar um limite preciso entre o penalmente relevante e o
irrelevante46”.

Trata-se, pois de um critério que recepciona e conduz para o interior de um específico


escalão dogmático e estrutural do delito, um elemento de significado social extraído e

43
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos-María. El médico y el Derecho Penal: la actividad curativa – tomo I.
Barcelona: Bosch, 1981, p. 182. Essa opção é feita conscientemente pelo paciente cuja capacidade racional de
deliberar não se encontra prejudicada em razão de seu transtorno; ao contrário, este refere-se, especificamente, a
uma anômala inaceitabilidade, pelo sexo psíquico, do sexo morfológico. Isso torna o transexual mais ciente da
anomalia de que é portador, de seus efeitos e, por conseguinte, mais decidido pela busca dos meios postos a
corrigir tal desajuste.
44
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Transexualismo: cirurgia – lesão corporal. Rio de Janeiro, Revista de Direito
Penal:Forense, n. 25, 1979, p. 33.
45
Cf. GÓMEZ RIVERO, María del Carmen. La responsabilidad penal del médico. 2.ed. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2008, p. 268.
46
GRACIA MARTÍN, Luis. La estructura dogmática y la función político criminal de la “adecuación social”
como “cierre” normativo de lo injusto en el sistema finalista del Derecho Penal y abismo que la distancia de la
doctrina de la imputación objetiva. Derecho Penal, Constituición y Derechos. REBOLLO VARGAS, Rafael;
TENORIO TAGLE, Fernando. (Dir). Barcelona: Bosch, 2013, p.220.

183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

originário da própria realidade social47. Com semelhante formulação, a adequação social


estrutura-se, como assinala Gracia Martín, como uma categoria neutralizadora e negativa da
aparência jurídico-penal (típica) do fato, já que sua função consiste na conversão daquela
“aparência” em uma “certeza”, concretamente na certeza de que o fato socialmente adequado,
supostamente relevante para um tipo penal determinado está completamente fora do injusto,
dado sê-lo, aprovado pela comunidade social em caráter geral48.

Por derradeiro, tudo isso associado a finalidade curativa inerente à conduta descontrói
o desvalor ético social de menoscabo a qualquer bem jurídico por que ao contrário, prestigia
sua funcionalidade integral a seu titular, o que repercute na configuração de um juízo de
tipicidade lacunoso e imperfeito, impedindo portanto, a adequação típica entre a conduta do
médico e o delito de lesões corporais.

3. Conclusão

O desequilíbrio biopsíquico que acomete o indivíduo intersexuado acarreta a


mitigação de sua plena satisfação pessoal e obstaculiza sua inserção social devido à sua
indeterminada personalidade de gênero.

A carga eminentemente genética do fenômeno transexual encontra percalços nos


recursos médico-terapêuticos e químicos para sanar a disformia entre os aspectos
morfológicos do organismo sexual e os caracteres do gênero psicológico do sujeito. Soluções
pautadas na administração de hormônios e acompanhamento psiquiátrico e psicopedagógico
não ofertam expectativas definitivas de cura, restando, portanto, como único meio eficaz, o
recurso à intervenção médico-cirúrgica de alteração de sexo.

Contudo, o procedimento clínico resulta na ablação dos genitais somáticos do paciente


e sua paralela esterilização, o que ajustaria a conduta do cirurgião no tipo de injusto descritivo
de lesões corporais de natureza grave, pela perda de membro e/ou função (reprodutora). Não
obstante tais consequências, isso propicia ao transexual o estabelecimento de sua saúde e a

47
RUEDA MARTÍN, María Ángeles. La teoria de la imputación objetiva del resultado en el delito doloso de
acción. Barcelona: Bosch, 2001, p. 416.
48
GRACIA MARTÍN, Luis. La estructura dogmática y la función…p, 225.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

harmonização de suas dimensões física e psíquica, enquanto condição indispensável para seu
sadio desenvolvimento pessoal e a obtenção de sua autêntica identidade social.

A partir do balanço entre os custos e os benefícios que acompanham a disposição


consciente e autônoma do transexual de fração de sua integridade corporal, associado ao
propósito que dirige a conduta médica (perseguido à custa da observância da técnica
aplicada), insere-se o procedimento na esfera do socialmente adequado. Na adequação social,
tem-se uma ponderação de interesses de caráter geral que se verifica na esfera do tipo, e que
culmina com a correção da ação: por um lado, deve-se avaliar a utilidade, o valor ou o
interesse de uma conduta socialmente relevante; por outro lado, o resultado lesivo que essa
conduta pode acarretar quando realizada. De acordo com a proposta em exame, após a
ponderação dos interesses em jogo, tem-se que a ação socialmente adequada não é
considerada tipicamente relevante porque pretende atingir uma utilidade social e, para tanto,
atinge um bem jurídico (in casu, a integridade física do paciente). O procedimento cirúrgico
realizado pelo médico, portanto, embora formalmente ajustado ao tipo penal, não implicaria
em um desvalor penal do resultado, já que a afetação do bem jurídico protegido não constitui
o resultado descrito pelo tipo penal. Exclui-se, portanto, a tipicidade da conduta.
Conforme já salientado, os bens jurídicos encontram-se continuamente expostos a
situações de risco, que são suportadas quando inerentes ao regular funcionamento da vida em
sociedade. Desse modo, a dinâmica das relações vitais pode ensejar uma exposição a perigo
do bem jurídico integridade física – ou, inclusive, sua efetiva lesão – que se revela necessária
para que o transexual, in casu, alcance a plenitude de seu desenvolvimento biopsicológico.
Quando assim for, tais condutas serão consideradas adequadas socialmente. A figura da
adequação social tem como principal característica a necessidade da afetação de um bem
jurídico, no sentido de que o legislador não considera, com caráter geral, como tipicamente
relevante uma ação que pretende alcançar uma utilidade social e para a qual é absolutamente
necessária a afetação de um bem jurídico conforme o ordenado funcionamento da vida social.
Em tais hipóteses, não existe desvalor da ação e, portanto, apenas uma aparente lesão ao bem
jurídico.
Nas situações de adequação social, o risco ou a afetação do objeto material não
configuram um resultado típico. Logo, ainda que abarcado pela vontade de realização do
cirurgião, inexiste dolo, se entendido este como consciência e vontade de realização dos
elementos objetivos do tipo. Um leitura, nesse sentido, mostra-se, mais coesa à construção e

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

funcionamento pragmático do Direito Penal guiado pela racionalidade e sobretudo, voltado


para as reais exigências do homem.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E RESPONSABILIDADE PENAL EM MATÉRIA


AMBIENTAL

PRINCIPIO DE PRECAUCIÓN Y RESPONSABILIDAD PENAL EN MATERIA


AMBIENTAL

Érika Mendes de Carvalho1


Gustavo Noronha de Ávila2

RESUMO: A configuração da normativa penal ambiental se encontra estreitamente vinculada à


definição, à percepção e ao modo de enfrentar e gerir os riscos que afetam a sociedade pós-moderna.
Nesse contexto, a consagração do princípio da precaução em instrumentos legais nacionais (art.1°, Lei
11.105/2005) pretende transformá-lo em supedâneo do desenvolvimento sustentável e de uma
incipiente responsabilidade penal em situações de riscos globais e transnacionais. Posto que a hipótese
de risco zero é puramente ficcional e implicaria na completa paralisação do desenvolvimento
científico e tecnológico, sugere-se que a dogmática penal e a política criminal contemporâneas se
detenham na reavaliação e readaptação de seus institutos e princípios tradicionais, a fim de adequar o
sistema penal ao contexto social de riscos. Nessa perspectiva, defende-se a incorporação do princípio
da precaução como um importante instrumento na gestão e controle de condutas de risco em matéria
ambiental, desde que identificadas três condições fundamentais: 1) a existência de razões sérias,
fundadas em dados científicos, que permitam deduzir que certa atividade ou tecnologia pode acarretar
algum tipo de dano grave de dimensão coletiva, seja para a saúde das gerações presentes ou futuras,
seja para o meio ambiente e seus elementos; 2) a falta de certeza científica acerca da natureza e
dimensão dos possíveis danos implicados; 3) a necessidade de se tomar medidas que se antecipem à
superveniência do dano e que possam prevenir seus graves e irreversíveis desdobramentos. Sob a
perspectiva dogmática, serão examinadas algumas vias de ingresso do princípio da precaução no
sistema penal, notadamente nos tipos penais dos delitos de perigo abstrato e dos delitos de perigo
abstrato-concreto (como um desvalor da ação adicional), nos tipos penais culposos (na delimitação do
dever objetivo de cuidado) e na fixação da posição de garante em delitos omissivos impróprios. Do
ponto de vista político criminal, será avaliado como o principio da precaução poderia funcionar como
critério interpretativo extensivo e instrumento de política legislativa. Em qualquer caso, o presente
trabalho avalia a legitimidade do recurso ao princípio da precaução como meio de adaptação
normativa e político-criminal ao desenvolvimento científico e tecnológico, favorecendo uma
aproximação das valorações jurídico-penais à realidade concreta. Identifica-se, a partir daí, um campo
problemático de contradições, que contrapõe princípios tradicionais do sistema penal às exigências de
controle e segurança dos fenômenos da sociedade de risco.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal do risco; Princípio da precaução; Delitos de perigo abstrato;


Dever objetivo de cuidado.

RESUMEN: La configuración de la normativa penal ambiental se encuentra estrechamente vinculada


a la definición, percepción y al modo de afrontar y gestionar los riesgos que afectan a la sociedad post
1
Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá. Doutora e pós-doutora em Direito Penal pela
Universidad de Zaragoza (Espanha). Pesquisadora do CNPq. Professora Associada de Direito Penal na
Universidade Estadual de Maringá.
2
Mestre e Doutor em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor
de Direito Penal e Direito Processual Penal na graduação e na pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos
Reis.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

moderna. En este contexto, la consagración del principio de precaución en instrumentos legales


nacionales (art.1°, Ley 11.105/2005) pretende transformarlo en la base del desarrollo sostenible y de
una incipiente responsabilidad penal en situaciones de riesgos globales y transnacionales. Dado que la
hipótesis de riesgo cero es claramente una ficción y supondría la completa paralización del desarrollo
científico y tecnológico, se sugiere que la dogmática penal y la política criminal contemporáneas se
detengan en la evaluación y readaptación de sus institutos y principios tradicionales, con el propósito
de adecuar el sistema penal al contexto social de riesgos. En este sentido, se sostiene la incorporación
del principio de precaución como un importante instrumento de gestión y control de conductas de
riesgo en materia ambiental, desde que identificadas tres condiciones fundamentales: 1) la existencia
de razones serias, fundadas en datos científicos, que permitan deducir que determinada actividad o
tecnología puede desplegar algún tipo de daño grave de dimensión colectiva, sea para la salud de las
generaciones presentes o futuras, sea para el medio ambiente y sus elementos; 2) la incertidumbre
científica sobre la naturaleza y dimensión de los posibles daños involucrados; 3) la necesidad de se
tomar medidas que se anticipen a la superveniencia del daños y que puedan prevenir sus graves e
irreversibles consecuencias. Desde la perspectiva dogmática, se examinaran algunas de las vías de
ingreso del principio de precaución en el sistema penal, especialmente en los tipos penales de los
delitos de peligro abstracto y de los delitos de peligro abstracto-concreto (como un desvalor de acción
adicional), en los tipos penales imprudentes (en la delimitación del deber objetivo de cuidado) y en la
determinación de la posición de garante en los delitos de omisión impropia. Desde el punto de vista
político criminal, se analizará como el principio de precaución podría funcionar como un criterio de
interpretación extensiva e instrumento de política legislativa. En cualquier caso, el presente trabajo
plantea la legitimidad del recurso al principio de precaución como medio de adaptación normativa y
político criminal al desarrollo científico y tecnológico, contribuyendo a la aproximación de las
valoraciones jurídico-penales a la realidad concreta. Se identifica, a partir de ahí, un campo
problemático de contradicciones, que contrapone principios tradicionales del sistema penal a las
exigencias de control y seguridad de los fenómenos de la sociedad de riesgo.

PALABRAS-CLAVE: Derecho Penal del riesgo; Principio de precaución; Delitos de peligro


abstracto; Deber objetivo de cuidado.

1.Introdução

As constantes referências doutrinárias ao chamado princípio da precaução


demonstram que a sociedade contemporânea atinge uma nova etapa na gestão dos riscos
inerentes à globalização. De fato, mais do que debater acerca da existência de novos riscos,
faz-se necessário abordar sua percepção, definição e formas de avaliação, como passo prévio
à sua gestão e ao seu controle. As características próprias da globalização e a complexidade
dos processos e fenômenos que se produzem na sociedade pós-industrial, o alto grau de
incerteza acerca dos eventuais efeitos das múltiplas atividades desenvolvidas em contextos
empresariais e as dificuldades de identificação dos indivíduos responsáveis pela realização de
condutas potencialmente lesivas aos recursos naturais demonstram a necessidade de reavaliar
os instrumentos e o papel do Direito Penal do Ambiente. De certo modo, é possível afirmar
que a configuração da normativa penal ambiental se encontra estreitamente vinculada à

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

definição, à percepção e ao modo de enfrentar e gerir os riscos que afetam a sociedade


hodierna3.
A consagração do princípio da precaução em instrumentos legais nacionais (art.1°,
Lei 11.105/2005) e internacionais corrobora uma “radicalização na percepção social do
risco”4. E não só. Essa incorporação pretende transformar o princípio da precaução em
supedâneo do desenvolvimento sustentável e em garantia de uma incipiente responsabilidade
penal em um contexto global e transnacional. E isso sob o argumento de que existem indícios
sérios de que determinadas atividades acarretam consequências graves e provavelmente
irreversíveis a bens jurídicos fundamentais – como o meio ambiente -, o que exigiria medidas
precoces para conter a concretização desses riscos. Em seara penal ambiental, esse seria o
fundamento para a criminalização de condutas que envolvam, por exemplo, a manipulação, o
transporte, a produção, a transferência, a importação, a exportação, a pesquisa, o consumo e a
liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus
derivados.
O princípio da precaução surge no Direito Administrativo Ambiental alemão nos
anos setenta e adquire importância nodal, sobretudo, na esfera do Direito Internacional.
Recentemente, porém, debate-se sua possível aplicação no âmbito do Direito Penal –
notadamente em matéria ambiental -, sendo de todo pertinente e oportuno precisar seus
contornos teóricos, suas possíveis funções e o papel que desempenha no que diz respeito à
configuração da responsabilidade penal.
Um dos principais problemas da extensão do princípio da precaução ao contexto
penal ambiental reside justamente na sua imprecisão. Por uma parte, defende-se que sua
noção importa em um instrumento de gestão de riscos destinado apenas a situações de
incerteza científica, que se expressa na adoção de medidas orientadas a alijar as
consequências potencialmente nocivas de uma atividade, mesmo antes de se determinar
cientificamente as relações de causa-efeito. Nesse sentido é a interpretação que a União
Europeia faz do princípio da precaução (Comunicação da Comissão das Comunidades
europeias sobre o recurso ao Principio da Precaução, de 01 de fevereiro de 2000). Por outro
lado, há formulações que exigem uma prova absoluta da segurança ou inocuidade de uma
3
Sobre a questão, vide especialmente MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la sociedad del
riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p.34 e ss.; e MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e Direito
Penal. Uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim, 2005, p.91 e ss.
4
CAMPIONE, R. El que algo quiere algo le cuesta: notas sobre la Kollateralschädengesellschaft”. In: AGRA,
C.; DOMÍNGUEZ, J. I.; GARCÍA AMADO, J. A.; HEBBERECHT, P.; RECASENS, A (Orgs). La seguridad en
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191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

nova técnica ou tecnologia antes de sua adoção, de tal modo que o ônus da prova caberia a
quem pretende introduzir a nova atividade, tecnologia ou produto. Nessa perspectiva,
argumenta-se que praticamente nenhuma tecnologia poderia satisfazer essa exigência, dado
que a hipótese de risco zero é pouco plausível e implicaria na completa paralisação do
desenvolvimento científico e tecnológico5. Por fim, há elaborações doutrinárias que sustentam
a avaliação discricionária da relação custo-benefício, de forma que a adoção de medidas de
precaução dependeria, sobretudo, de considerações econômicas, e não tanto do exame das
consequências graves, irreversíveis ou previsivelmente catastróficas da atividade em questão.
Assim, por exemplo, a Declaração aprovada pela Conferência do Rio de Janeiro sobre meio
ambiente e desenvolvimento, de 1992, que estabelece que a falta de certeza científica plena
não deve ser uma razão para postergar medidas efetivas de acordo com seu custo para
prevenir a degradação do meio ambiente.
Apesar de suas diferentes formulações teóricas, é possível identificar três traços que
caracterizam o princípio da precaução: 1) a existência de razões sérias, fundadas em dados
científicos, que permitam deduzir que certa atividade ou tecnologia pode acarretar algum tipo
de perigo grave de dimensão coletiva, seja para a saúde das gerações presentes ou futuras, seja
para o meio ambiente e seus elementos; 2) a falta de certeza científica acerca da natureza e
dimensão dos possíveis danos implicados; 3) por derradeiro, a necessidade de se tomar
medidas que se antecipem à superveniência do dano – ao ambiente ou à saúde, por exemplo –
e que possam prevenir seus graves e irreversíveis desdobramentos6.
Em síntese, a ideia nuclear que informa o princípio em apreço radica na
exteriorização de medidas de precaução, mesmo ante a impossibilidade de se demonstrar a
presença de uma relação causal entre determinada atividade ou tecnologia e as lesões
produzidas ao meio ambiente ou à saúde7.
Na atualidade, a natureza jurídica do princípio da precaução encontra-se
estreitamente relacionada à formulação concreta de políticas públicas em matéria de saúde e
meio ambiente. Figura, assim, como uma diretriz amplamente reconhecida para a orientação
das decisões tomadas pelos poderes públicos em contextos de incerteza, como aqueles
vinculados à biotecnologia. Apesar de ser um princípio ainda genérico, cuja aplicação e
funções carecem de contornos claros e inequívocos, trata-se de um instrumento hábil a nortear

5
Nesse sentido, por exemplo, SCHROEDER, Friedrich-Christian. Principio de precaución, Derecho Penal y
riesgo. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). Principio de precaución, Biotecnología y Derecho.
Granada/Bilbao: Comares/Fundación BBVA/Diputación Foral de Bizkaia, 2004, p.428.
6
Cf. MENDOZA BUERGO, Blanca, op.cit., p.323.
7
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Genética, biotecnologia e ciências penais. Salvador: JusPodivm,
2012, p.41-42.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

um desenvolvimento sustentável em uma perspectiva transnacional, na medida em que os


riscos a serem enfrentados e prevenidos assumem uma dimensão igualmente global. No
âmbito da União Europeia, por exemplo, consta expressamente como diretriz em matéria de
políticas públicas relacionadas ao meio ambiente (art. III-233, item 2, do Tratado que
estabelece uma Constituição para a Europa). Na esfera da União Europeia, o principio da
precaução pode ser invocado nos casos em que uma avaliação científica objetiva preliminar
indicar que existem motivos razoáveis para temer efeitos potencialmente perigosos para o
meio ambiente, a saúde humana, animal ou vegetal de um determinado experimento, produzo
ou procedimento, mas sem que seja possível estabelecer tal risco com certeza suficiente. Uma
completa avaliação científica prévia embasará a decisão política acerca das medidas adotadas,
a qual levará em consideração o risco aceitável por uma determinada sociedade. Em todo
caso, a Comissão das Comunidades Europeias sobre o Princípio da Precaução, de 1° de
fevereiro de 2000, estabelece que todo o processo deverá assegurar a máxima transparência e
a participação de todos os setores envolvidos, limitando a inversão do ônus da prova em
função da necessidade do caso concreto.
Posto isto, tem-se no cenário contemporâneo um acentuado engajamento da
dogmática penal em uma discussão acirrada acerca de seus limites e das condições de
legitimidade de sua atuação. Por um lado, ao buscar soluções normativas às questões de risco,
o Direito Penal passa por um inegável processo de expansão; por outro, essa expansão do
sistema penal aponta para uma significativa transformação das categorias dogmáticas
tradicionais. E, nesse contexto, a ampliação do campo de atuação do Direito Penal para
atender aos ideais de prevenção enfrenta dilemas estruturais. Com efeito, a dúvida quanto à
legitimidade de um Direito Penal preventivo se apresenta em diversas etapas, principalmente
na construção e aplicação dos tipos penais. Assim, a introdução de novos tipos penais não
seria mais que um aspecto da tendência expansionista do sistema penal. Identifica-se, a partir
daí, um campo problemático de contradições, que contrapõe princípios tradicionais do sistema
penal às exigências de controle e segurança dos fenômenos da sociedade de risco8.
Aventa-se, diante de tal quadro, a utilização dos delitos de perigo abstrato como
elemento principal do modelo de incriminação no âmbito da sociedade de risco. O uso dos
tipos de perigo abstrato contribui para a ampliação do aparato penal, abandonando a lesão ao
bem jurídico (desvalor do resultado) como centro gravitacional do sistema punitivo. Em

8
Cf. HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo: RT, 1994, nº 8, p.41-51.

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última análise, essa técnica legislativa insere-se em um contexto de obtenção de segurança


pública na proteção de bens jurídicos transindividuais.
O desvalor do resultado é substituído pelo desvalor da ação e os tipos penais
direcionam-se para o perigo. Através da proibição de comportamentos que colocam em perigo
os bens jurídicos penais, o Direito Penal busca conferir proteção a uma pluralidade de
interesses pretensamente carecedores de uma intervenção antecipada. Volta-se, portanto, à
inibição de ações arriscadas ou potencialmente perigosas em detrimento de suas
consequências concretas.
É nesse contexto de conflitos que se desenvolve o Direito Penal da precaução.
Coletivamente, o que se tem é uma imensurável necessidade de se normatizar juridicamente
certas áreas da vida comunitária, como, por exemplo, o ambiente. O reclamo social por
proteção conduz o Direito Penal a coibir condutas perigosas, antecipando-se ao resultado
lesivo. A norma penal adentra em um campo que, até então, lhe era estranho: o campo da
precaução.
O Direito Penal passa a orientar sua atuação à prevenção, à inibição de atividades
perigosas em um momento anterior à lesão do bem jurídico protegido. Evidencia-se, pois,
uma tendência à criminalização em âmbito prévio, cujo principal instrumento é o uso
crescente dos tipos de perigo abstrato, categoria que reflete a antecipação da intervenção
penal estatal9.
Em seara ambiental, embora a assunção da legitimidade da intervenção jurídico-
penal seja questionada, o que certamente conta com o respaldo da doutrina francamente
majoritária é afirmação de que a elaboração de seus tipos penais não pode abdicar do
indispensável respeito aos princípios penais constitucionais e, demais disso, deve afastar-se
do mero simbolismo. Sobretudo ante a crescente demanda social pela minimização da
sensação de insegurança frente a novos riscos através da intervenção penal, é possível
identificar uma inequívoca “tensão entre a inclinação à antecipação da intervenção punitiva,
alentada por demandas em constante aumento de segurança em todos os níveis, e a utilização

9
Cf., entre outros, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal. Aspectos de la política
criminal en las sociedades postindustriales. 2 ed. Madrid: Civitas, 2001, p.113 e ss.; GRACIA MARTÍN, Luis.
Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de
resistência. Trad. Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p.47-61; ESCAJEDO
SAN EPIFANIO, Leire. El medio ambiente en la crisis del estado social: su protección penal simbólica.
Granada: Comares, 2006, p.102-104; CALLEGARI, André Luís; ANDRADE, Roberta Lofrano. Sociedade de
risco e Direito Penal. In: CALLEGARI, André Luís (Org.). Direito Penal e globalização. Sociedade do risco,
imigração irregular e justiça restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.31; MACHADO, Marta
Rodriguez de Assis, op.cit., p.128 e ss.; MARQUES, Daniela de Freitas. Sistema jurídico-penal do perigo
proibido e do risco permitido. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008, p.238 e ss.

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do instrumento penal como ultima ratio, para reprimir, conforme o princípio da intervenção
mínima apenas aqueles comportamentos claramente lesivos aos interesses de maior
importância dos indivíduos e da sociedade, realizados de modo culpável”10. Nesse contexto de
franca expansão punitiva, nada mais aconselhável que compreender os limites e analisar as
perspectivas e desafios que o princípio da precaução oferece à ciência penal na pós-
modernidade.

2. Princípio da precaução e medidas de prevenção

Na atualidade, são muitos os estudos que procuram acentuar as incertezas que


permeiam a sociedade contemporânea. Determinadas atividades – toleradas e admitidas em
razão de sua reconhecida importância socioeconômica – comportam inegáveis riscos à
incolumidade individual e coletiva, nem sempre passíveis de avaliação precisa e rigorosa.
Cabe questionar, nesse contexto, qual papel incumbe ao Direito Penal e quais os limites de
sua intervenção, especialmente diante do imparável desenvolvimento biotecnológico. Mais
precisamente, busca-se, com esse estudo, contribuir no sentido de melhor instrumentalizar a
intervenção penal, assinalando, inicialmente, parâmetros concretos à análise e à gestão das
situações de risco. Sugere-se, fundamentalmente, a incorporação, nos domínios da ciência do
Direito Penal, do princípio da precaução, como estratégia de controle e prevenção das novas
formas de risco11.
O impacto socioeconômico de determinadas atividades impele o Direito penal à
aceitação de certo nível de risco à integridade de bens jurídicos individuais e transindividuais,
já que o contrário pode significar a estagnação do desenvolvimento biotecnológico e a
paralisação da política de crescimento econômico aliada à inovação. Como já assinalava
WELZEL, a incolumidade absoluta dos bens jurídicos é inviável, pois a realização de sua
função social implica a tolerância e a aceitação de uma margem de risco12. Esse risco –
permitido -, porém, normalmente é o risco conhecido e, por essa razão, mensurável e
previsível.

10
MENDOZA BUERGO, Blanca. Principio de precaución, Derecho Penal del riesgo y delitos de peligro. In:
ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). Principio de precaución, Biotecnología y Derecho.
Granada/Bilbao: Comares/Fundación BBVA/Diputación Foral de Bizkaia, 2004, p.446.
11
ROMEO CASABONA, Carlos María. Aportaciones del principio de precaución al Derecho Penal. In:
Modernas tendencias en la ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid: UNED, 2001, p.79.
12
WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. Parte General. 11 ed. Trad. Juan Bustos Ramírez e S. Yáñez Pérez.
Santiago: Jurídica de Chile, 2002, p.5.

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Nas sociedades pós-industriais, o autêntico problema ocorre em relação à limitação e


ao controle do risco não previsível e não mensurável. Esse risco não pode ser avaliado em
suas dimensões reais, e sua incerteza decorre da insuficiência dos instrumentos científicos
conhecidos utilizados para a identificação e a descrição dos riscos 13. Surge, assim, um
importante desafio à atuação do Direito Penal, tradicionalmente orientado à prevenção de
riscos e assentado na ideia de previsão ou na previsibilidade dos cursos causais pela ciência14.
A ideia de precaução, todavia, assume como ponto de partida a incerteza acerca da magnitude
essencial do risco, que não pode ser dimensionado com precisão pela ciência. Como o risco
não é conhecido em sua essência, tampouco é possível avaliar os possíveis cursos causais dele
decorrentes. Ou seja, embora o objetivo fundamental e comum seja o de evitar situações de
lesão efetiva a bens jurídicos, no modelo da precaução – diversamente do modelo tradicional,
da previsão – a estratégia de prevenção não é pautada pelo conhecimento do risco e pelo
cálculo dos danos decorrentes de cursos causais previsíveis. É precisamente nesse peculiar
contexto que o princípio da precaução pode colaborar, legitimando uma superação das
limitações próprias do modelo da previsão (ou da previsibilidade).
O princípio da precaução, do ponto de vista jurídico, propugna que sejam tomadas
todas as medidas necessárias e aceitáveis – do ponto de vista social e econômico – para a
detecção e avaliação das situações de risco, a fim de reduzi-las a um patamar tolerável e, na
medida do possível, eliminá-las. Demais disso, engloba a necessidade de informação,
especialmente por parte do poder público, aos possíveis afetados acerta de atividades que
possam implicar em grave perigo à saúde ou à segurança das gerações atuais ou futuras ou
para o meio ambiente.
O recurso ao princípio da precaução, porém, deve ser limitado a algumas situações
de risco, sendo legitimado apenas diante de contextos de incerteza científica nos quais haja
probabilidade de ocorrência de danos graves e irreversíveis15. O contexto de incerteza
científica abarca diversas hipóteses, tais como o desconhecimento do nexo causal, a incerteza

13
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.80 e ss.
14
Assim, enquanto “o Direito Penal tradicional da prevenção foi sendo baseado invariavelmente na ideia de
previsão ou de previsibilidade, isto é, nas certezas mais ou menos precisas, conforme os casos, da ciência –
acerca das leis causais gerais, poderíamos precisar -, buscando a redução dos riscos e de sua probabilidade, a
precaução se orienta a outra hipótese, a da incerteza: a incerteza dos saberes científicos enquanto tais” (ROMEO
CASABONA, Carlos María, SOLA RECHE, Esteban, HERNÁNDEZ PLASENCIA, José Ulises, FLORES
MENDOZA, Fátima et alii. Informe sobre los intentos de adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y
tecnológico: líneas de investigación y conclusiones. In: ROMEO CASABONA, Carlos María; SÁNCHEZ
LÁZARO, Fernando Guanarteme (Ed.); ARMAZA ARMAZA, Emilio José (Coord.). La adaptación del
Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Granada: Comares, 2010, p.516).
15
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Aportaciones del principio de precaución al Derecho Penal. In:
Modernas tendencias en la ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid: UNED, 2001, p.81.

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acerca das dimensões e da própria natureza dos danos futuros e de seus desdobramentos
nefastos, que podem assumir proporções catastróficas, hábeis a comprometer de modo
indelével o substrato de bens de natureza transindividual ou coletiva.
Nesse contexto, faz-se oportuno aventar quais medidas de prevenção de riscos devem
ser adotadas nos mais diversos âmbitos, orientadas à contenção dos danos, mesmo diante da
inexistência de estudos técnicos e científicos que atestem de modo inequívoco a nocividade de
um produto ou o caráter prejudicial de uma determinada atividade. A medida de prevenção
mais drástica consiste na completa paralisação da atividade. Os detratores do princípio da
precaução se mostram particularmente críticos com relação à adoção de medida tão radical,
que poderia implicar em comprometimento do progresso científico e tecnológico. Apenas
como último recurso seria viável recorrer à paralisação da atividade ou ao emprego de
estratégias capazes de neutralizá-la completamente. É altamente recomendável, porém, que as
medidas de precaução sejam proporcionais à magnitude dos danos projetados, não
discriminatórias e sujeitas a revisões periódicas, além de resultado de detida reflexão, que
sopese inclusive os custos e benefícios de sua eventual adoção16.

3. Princípio da precaução: origem e reconhecimento jurídico

O princípio da precaução (Vorsorgeprinzip) foi previsto, inicialmente, no programa


do governo alemão de proteção ambiental de 1971 e, nos anos posteriores, foi incorporado de
modo explícito - como na Lei de Proteção contra a contaminação de 1974 (art.1°), na Lei
sobre o uso de energia atômica de 1985 (art.7º, II) e na Lei sobre produtos químicos de 1980
(art.1º) – ou implícito – como na Lei de técnicas genéticas de 1990 (art.1°) e na Lei de
proteção das águas de 1996 (art.4°) – em diversas leis ambientais alemãs. Diversos outros
ordenamentos europeus agasalharam o princípio da precaução como diretriz fundamental em
matéria ambiental e também em temas de saúde pública e segurança alimentar17, tais como a
França (Lei Barnier, de 2 de fevereiro de 1995, que modificou o art.200-1 do Código Rural), a
Dinamarca (Lei n° 583, de 1993, sobre produtos e substâncias químicas) e a Suécia (Código
do Meio Ambiente, de 1999). Em 1987, na II Conferência Internacional sobre a proteção do
mar do Norte, realizada em Londres, o documento final do encontro, em seu parágrafo VII,

16
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.83 e ss.
17
A esse respeito, vide ANDORNO, Roberto. Validez del principio de precaución como instrumento jurídico
para la prevención y la gestión de riesgos. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Ed.). Principio de
precaución, Biotecnología y Derecho. Bilbao-Granada: Cátedra Interuniversitaria de Derecho y Genoma
Humano/Fundación BBVA/ Diputación Foral de Bizkaia/Universidad del País Vasco/Comares, 2004, p.20-26.

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consagrou em nível internacional o princípio da precaução nos seguintes termos: “para


proteger o Mar do Norte dos efeitos das substâncias mais perigosas suscetíveis de causas
danos, é necessária uma atitude de precaução, que pode exigir a adoção de medidas para
limitar os efeitos dessas substâncias, mesmo antes do estabelecimento de uma relação de
causa e efeito baseada em provas científicas irrefutáveis”18. Em 1990, a III Conferência
Internacional sobre a proteção do Mar do Norte reafirmou o princípio da precaução e, em
junho 1992, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento confere ao referido princípio dimensão universal: “com o fim de proteger o
meio ambiente, os Estados deverão aplicar amplamente o critério de precaução segundo suas
capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica
absoluta não deverá ser utilizada como argumento para postergar a adoção de medidas
eficazes, em função dos custos, para impedir a degradação do meio ambiente”. Nessa
oportunidade, o princípio da precaução também passou a integrar outros dois expressivos
documentos internacionais ambientais. O preâmbulo da Convenção sobre Diversidade
Biológica (CDB – Decreto Legislativo n° 2, de 3 de fevereiro de 1994; Decreto n°
2.519/1998) considera que quando existir “ameaça de sensível redução ou perda de
diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para
postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça”. Também o Protocolo de Cartagena
sobre Biossegurança - que complementa a Convenção sobre Diversidade Biológica - firmado
em Montreal em 29 de janeiro de 2000, assinala em seu artigo 1° o princípio da precaução
como marco regulatório dos objetivos do documento. Já o artigo 3°, III, da Convenção-
Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas preceitua que:

“As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou


minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos.
Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena
certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas
medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para
enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de
modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”.

18
Sobre a questão, vide SANDS, Philippe. O princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU,
Ana Flávia Barros. Principio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.32 e ss., quem reforça que “o
elemento de antecipação é fundamental nesse texto, refletindo a necessidade de medidas ambientais eficazes
baseadas em ações que tenham um enfoque a longo prazo e que possam predizer mudanças, na base de nosso
conhecimento científico”.

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Tem-se, portanto, que em sua origem o princípio da precaução situa-se no Direito


Ambiental e os limites de sua aplicação foram especialmente desafiados pelas novas
biotecnologias, que fomentaram sua disciplina jurídica internacional e nacional.

A política ambiental da União Europeia é orientada pelo princípio da precaução


desde o Tratado de Maastricht, que em seu artigo 130-R o previa expressamente. Também o
Tratado de Amsterdam - que revisou o texto do Tratado de Maastricht em 1997 - reafirma o
princípio da precaução no artigo 174. Em 2 de fevereiro de 2000, a União Europeia aprova
uma Comunicação que estabelece que é possível invocar o princípio da precaução sempre que
“detectados os efeitos potencialmente perigosos de um fenômeno, de um produto ou de um
procedimento através de uma avaliação científica e objetiva”, ainda que tal avaliação não
consiga “estabelecer o risco com certeza suficiente”. Em dezembro do mesmo ano, o
Conselho Europeu realizado em Nice aprova o Tratado de Nice, que em seu Anexo III contém
uma Resolução sobre o Princípio da Precaução. Esta última acentua que o princípio de
precaução afirma-se “progressivamente como princípio de direito internacional nos domínios
da proteção da saúde e do ambiente” (ponto 3) e o recurso a ele se justifica “sempre que for
identificada a possibilidade de efeitos danosos para a saúde ou para o ambiente” e desde que
“avaliação científica preliminar, feita a partir dos dados disponíveis, não permita decidir com
certeza quanto ao nível do risco” (ponto 7).
No Brasil, o reconhecimento constitucional do princípio da precaução reside no
artigo 225, §1°, IV, da Constituição Federal, que determina a realização do estudo prévio de
impacto ambiental para a “instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente”, “ditando a cautela jurídica que deve reger as
atividades enquadradas num quadro de incerteza científica quanto a possíveis danos e riscos
que possam causar ao ambiente, mesmo que potenciais”19. O princípio da precaução foi
introduzido no ordenamento infraconstitucional brasileiro com a Lei 11.105, de 24 de março
de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do §1º do artigo 225 da Constituição Federal,
bem como estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que
envolvam organismos geneticamente modificados e seus derivados e dispõe sobre a Política
Nacional de Biossegurança. Em seu artigo 1°, preceitua que tem como diretrizes “o estímulo
ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde
humana, animal e vegetal”, além da “observância do princípio de precaução para a proteção

19
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Estudos sobre a
Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: RT, 2011, p.237, nota 31.

199
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do meio ambiente”. Antes, porém, do referido diploma, a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de


1998, já sancionava com as mesmas penas previstas para as modalidades qualificadas do
crime de poluição a conduta de quem deixasse de adotar, quando assim o exigisse a
autoridade competente, “medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou
irreversível” (art.54, §3°), tipificando-a como delito omissivo puro de poluição20.
Em síntese, o princípio da precaução figura, na atualidade, como “um princípio
emergente de direito internacional”21 com acentuada importância em matéria ambiental.
Reconhecido em nível internacional e também nacional, faz-se necessário dirimir as
controvérsias existentes acerca das condições de sua aplicação, a fim de precisar – na
sequência – suas possibilidades e limites em seara jurídico-penal.

4. Condições de aplicação das medidas de precaução

O princípio da precaução é expressão da acentuada importância conferida à


preservação do ambiente e da saúde pública, como bens de natureza supraindividual e
coletiva, respectivamente. Nessa perspectiva, o progresso científico e tecnológico e o
crescimento econômico, ainda que incentivados, devem sofrer restrições impostas em nome
do referido princípio. Não se trata, porém, de obstaculizar ou impedir o desenvolvimento
científico, tecnológico ou econômico, mas antes de fomentar o chamado desenvolvimento
sustentável22. A paralisação do exercício de uma atividade ou a proibição da comercialização
de um produto, por exemplo, seriam medidas extremas, reservadas para os casos nos quais a
potencialidade lesiva é acentuada. Devem ser incentivadas, em nome do princípio da
precaução, uma série de medidas orientadas, por exemplo, ao controle e limitação da
atividade ou ao aprimoramento do produto, sempre com caráter provisório – até que
estabelecido o nível de risco – e, de conseguinte, reversíveis.
Assim, enquanto não há total certeza científica acerca do nível de risco e de suas
dimensões concretas, o princípio da precaução abarca uma ampla gama de medidas

20
Como destaca Paulo Affonso Leme Machado, “não se trata de outro tipo de precaução senão aquele inserido
no princípio ora estudado, tanto que as medidas a serem exigidas serão cabíveis ‘em caso de risco de dano
ambiental grave ou irreversível’” (Princípio da precaução no Direito brasileiro e no Direito Internacional e
comparado. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Principio da precaução. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p.369.).
21
ANDORNO, Roberto, op.cit., p.26. Nesse sentido, vide ROMEO CASABONA, Carlos-María, op.cit., p.84.
22
Portanto, o que o princípio da precaução busca, na verdade, é “incentivar as propostas de modos alternativos
de desenvolvimento, que sejam compatíveis com a qualidade de vida da geração presente e das gerações futuras”,
o que significa que “o novo princípio constituiu um chamado a um maior esforço imaginativo em matéria de
desenvolvimento tecnológico” (ANDORNO, Roberto, op.cit., p.26).

200
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acautelatórias. Esse catálogo mais ou menos abrangente de medidas, que apresentam como
denominador comum a circunscrição da atividade de risco, conferem ao princípio um
conteúdo flexível e cambiante, hábil a amoldar-se às variações culturais e sociais, por
exemplo. O que uma sociedade aceita e permite, dentro de determinadas margens toleráveis
de risco, pode ser absolutamente rechaçado por outra. O certo é que o princípio em exame
exige a fixação de condições mínimas para sua aplicação, com o propósito de evitar o recurso
leviano a suas pautas restritivas.
A aplicação do princípio da precaução depende da constatação de algumas condições
legitimadoras, reunidas em diversos documentos jurídicos internacionais e assim
sistematizadas pela doutrina: 1) incerteza científica acerca do risco; 2) possibilidade de dano
grave e irreversível; 3) identificação científica dos efeitos potencialmente perigosos derivados
de uma atividade, produto ou técnica; 4) transparência e proporcionalidade das medidas; 5)
inversão do ônus da prova.
As medidas de precaução atuam diante de situações de incerteza científica, o que
significa dizer que não há prova científica de que uma determinada atividade, técnica,
processo ou produto possam causar um dano grave e irreversível, mas tão somente fundada
suspeita de que esse nexo causal possa ser desencadeado. Há um risco potencial, e não real.
Nesse sentido, as estratégias ou medidas de precaução diferem das medidas preventivas, já
que estas atuam frente a situações de periculosidade real, conhecida pela ciência.
Ademais, exige-se a presença de um risco de dano grave e irreversível ao ambiente,
por exemplo. O nível do risco deve ser suficientemente elevado, de modo que “a total certeza
científica não deve ser exigida antes de se adotar uma ação corretiva” 23. Os prejuízos que
podem advir da atividade, processo, técnica ou produto devem apresentar notável magnitude e
apresentar caráter irreversível. A valoração da gravidade do possível dano vincula-se à
possibilidade de lesão de bens coletivos (v.g. saúde pública) ou transindividuais (v.g. meio
ambiente); de outra parte, o caráter irreversível do possível dano dependerá da avaliação de
seus possíveis efeitos diretos e indiretos, imediatos e mediatos, e da efetiva impossibilidade
de retorno ao status quo ante.
A terceira das condições diz respeito à avaliação científica das dimensões do risco.
Embora o princípio da precaução opere em situações de incerteza científica, faz-se necessário
que exista fundada suposição científica de que o produto ou a atividade ofereça perigo para o
meio ambiente ou para a saúde pública. Logo, é preciso que a suspeita encontre lastro em

23
KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA,
Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Principio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.11.

201
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algum mínimo fundamento científico, de modo que “embora exista incerteza científica, haja
também uma base científica para o temor ou a suspeita”24.
O temor injustificado cientificamente ou o alarmismo infundado não podem
corroborar estratégias ou medidas de precaução. É preciso que exista uma séria avaliação
cientifica do risco potencial, claramente voltada para sua identificação e caracterização da
verossimilhança do risco e de seus possíveis desdobramentos, na medida do avanço científico
e técnico da época. Para tanto, é recomendável que a avaliação seja transparente,
independente, contraditória e conduzida de modo pluridisciplinar por um adequado quadro de
investigadores, com lastro nos trabalhos científicos de maior relevo. A eficiente gestão do
risco depende diretamente de uma cuidadosa e exaustiva avaliação de suas possíveis
projeções. A ausência de uma base científica sólida que corrobore a adoção de medidas de
precaução tende a motivar soluções políticas desarrazoadas, precipitadas e meramente
simbólicas. Por isso, ainda que não existam certezas científicas, a adoção de medidas de
precaução deve pautar-se pela realista avaliação do risco potencial em termos científicos.
Como quarta condição, apontam-se a transparência e a proporcionalidade das
medidas de precaução. A transparência se refere ao conhecimento das medidas a serem
adotadas pelas autoridades públicas por parte de seus destinatários e da coletividade em geral.
É recomendável, nesse sentido, que a coletividade seja informada acerca dos procedimentos
que serão implementados para gerenciar o risco potencial (exigidos, por exemplo, quando se
firma um termo de ajustamento de conduta), bem como ouvida a respeito da conveniência e
oportunidade das medidas. Dado que os danos temidos são graves e irreversíveis, com
dimensões coletivas, é importante que todos os interessados sejam consultados sobre o
conteúdo das soluções acautelatórias e de suas repercussões concretas (por exemplo, através
de audiências públicas). Mas a transparência não se limita à informação acerca do conteúdo e
oportunidade das medidas e procedimentos. Atividades e produtos geradores de risco
potencial devem ser conhecidos por seus usuários, consumidores e pela coletividade como um
todo. Nesse contexto, os alimentos que contém organismos geneticamente modificados devem
etiquetados, os medicamentos em fase de testes precisam conter essa informação em sua bula,
a concessão de um ato administrativo para realização de atividade que encerre risco potencial
deve ser conhecida pelos moradores da região. De conseguinte, a transparência demanda o
compromisso daqueles que promovem produtos ou atividades de risco potencial “de difundir
os estudos que tenham efetuado acerca da magnitude dos riscos potenciais e dos esforços

24
MENDOZA BUERGO, Blanca, op.cit., p.451.

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feios com vistas a minimizá-los ou a eliminá-los”25. De outro lado, as medidas de precaução


devem ser economicamente viáveis, já que seus custos são partilhados pela sociedade.
Reconhecida a importância da tutela conferida à saúde pública e ao meio ambiente, é preciso,
então, selecionar entre as alternativas possíveis aquelas que efetivamente impliquem em
contenção do risco potencial, sem ônus excessivo para a própria coletividade. As medidas de
precaução devem ser proporcionais à magnitude do risco potencial de dimensões coletivas e
seus custos devem ser justificados pela importância dos possíveis efeitos prejudiciais. Os
custos da ação e da inação devem ser cuidadosamente sopesados, já que são arcados pela
coletividade. A opção pela adoção das soluções de precaução deve ser o resultado de
avaliação econômica criteriosa, que leve em consideração todas as alternativas possíveis para
enfrentar o risco potencial.
A possibilidade de que condutas humanas causem danos graves e irreversíveis a bens
jurídicos coletivos permite que, mesmo diante da falta de provas científicas acerca de seus
possíveis efeitos catastróficos e dos temidos nexos causais envolvidos justifique-se a
implementação de estratégias e medidas de precaução, transparentes e proporcionais,
resultado de estudos técnicos e científicos confiáveis. A inversão do ônus da prova, nesse
contexto, significa que quem, por exemplo, desempenha uma atividade de risco potencial ou
introduz um novo produto potencialmente lesivo deve oferecer respaldo científico que afaste a
presunção de risco26. Entretanto, cabe ressaltar que a situação de incerteza científica acerca
dos cursos causais que podem ser gerados ou desencadeados por uma atividade ou produto
não permite um conhecimento real e objetivo da dimensão do risco e de seus possíveis efeitos
prejudiciais. Por essa razão, é preciso relativizar essa exigência e aceitar que o gerador do
risco potencial não conseguirá provar cientificamente a ausência do risco. O que sim se
pretende é que o responsável pela introdução do risco potencial esclareça às autoridades e à
coletividade participe ativamente e se esforce por demonstrar, com base em estudos
científicos, que o risco potencial pode ser tolerado e assumido pela coletividade. Quando há
elevado potencial de risco de dano grave e irreversível, exige-se que estudos científicos
corroborem a liberação da atividade ou do produto, e que aquele que desempenhe a atividade
ou fabrique ou comercialize o produto, por exemplo, disponibilize toda informação capaz de
25
ANDORNO, Roberto, op.cit., p.31.
26
Com efeito, “especialmente quando em causa a tutela ambiental, a inversão do ônus probatório permite um
equilíbrio de fato, tanto nas relações entre particular e Estado como também nas relações entre particulares,
tendo em vista que, muitas vezes, estar-se-á diante de uma relação desigual em termos de poder social,
econômico, técnico, político, etc., geralmente exercido pelo ator privado ou ente estatal empreendedor de
atividades lesivas ou potencialmente lesivas ao ambiente” (SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER,
Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Estudos sobre a Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção
do Ambiente. São Paulo: RT, 2011, p.237).

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atestar, na medida do possível, o caráter inócuo da atividade ou do produto em questão. Posto


que o introdutor da situação de risco potencial se beneficiará economicamente com a
realização da atividade ou com a produção e comercialização do produto e se encontra em
condições técnicas mais favoráveis para examinar em profundidade suas implicações causais
para o ambiente e a saúde pública, por exemplo, nada mais justo que a autorização para o
exercício da atividade ou para comercialização de um produto que impliquem risco potencial
de dano grave e irreversível esteja condicionada à informação técnica e cientifica o mais
exaustiva possível, fornecida por quem pretende introduzir a situação de risco sobre a qual
não existe certeza científica suficiente.
O princípio da precaução surge, assim, como um instrumento jurídico novo,
inspirado por exigências de transparência, cautela, proporcionalidade e profundo respeito
pelos bens jurídicos de dimensões coletivas e metaindividuais. Para que não figure apenas
como uma declaração de boas intenções e tenha efetiva aplicação, cabe agora salientar como
esse princípio poderia intervir na configuração da responsabilidade penal - individual e
coletiva - em matéria ambiental.

5. Princípio da precaução e delimitação da responsabilidade penal nos delitos ambientais

A acentuada importância do princípio da precaução em seara extrapenal,


especialmente como instrumento de gestão e controle de riscos ambientais em atividades
vinculadas à ciência e à tecnologia, conduz a ciência penal a perquirir se o mesmo poderia
desempenhar algum papel específico também em seus domínios. Sob a perspectiva
dogmática, são apontadas, preliminarmente, algumas categorias nas quais o referido princípio
poderia intervir diretamente: 1) nos tipos penais dos delitos de perigo abstrato; 2) nos tipos
penais culposos; 3) na relação de causalidade; 4) na fixação da posição de garante em delitos
omissivos com repercussão coletiva27. Do ponto de vista político criminal, o principio da
precaução poderia funcionar como critério interpretativo extensivo e como instrumento de
política legislativa. Em qualquer caso, subjaz a essa discussão a investigação do papel do
princípio da precaução como mecanismo de legitimação de um processo de expansão
legislativa e como meio de adaptação normativa ao desenvolvimento científico e tecnológico,
favorecendo uma aproximação das valorações jurídico-penais à realidade concreta.

27
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.90 e ss.

204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A primeira das possibilidades dogmáticas assinalada para o princípio da precaução


em matéria penal seria a construção da noção de periculosidade da conduta nos delitos
ambientais de perigo abstrato. A técnica dos delitos de perigo abstrato representa um dos
traços mais marcantes do desenvolvimento atual das legislações penais, que optam por seu
uso nos campos mais problemáticos da regulação positiva, como, por exemplo, aquele
relacionado à proteção penal do ambiente. Essa tendência tem justificativa no enfoque
preventivo que o Direito Penal contemporâneo adota, orientado à limitação do risco e à busca
incessante por segurança jurídica28. Com efeito, a política criminal em seara ambiental tem
mostrado clara preferência pelos delitos de perigo, em detrimento dos delitos de lesão ou de
dano.
Na construção do modelo típico dos crimes de perigo abstrato, o legislador, adstrito à
realidade e à experiência, tipifica determinadas condutas que, necessariamente, atendida a
natureza das coisas, trazem ínsito um perigo ao bem objeto de tutela. Nos delitos de perigo
abstrato a conduta típica é em si perigosa, isto é, o perigo é inerente à conduta. A
periculosidade da conduta típica é determinada ex ante, através de um juízo hipotético do
legislador. O perigo atua apenas como a ratio legis para a criação do delito. O perigo não é,
pois, elemento constitutivo do tipo, senão o motivo que inspira a atuação do legislador29.
Os delitos de perigo abstrato possuem como objeto comportamentos que não se
definem pelo resultado (de lesão ou de perigo concreto). Ao carecer de uma referência lesiva,
o que se pune, segundo parte da doutrina, é apenas o desvio ou desobediência à norma. Em
outras palavras, para a consecução desse tipo delitivo, será suficiente comprovar a realização
da conduta (ação ou omissão), prescindindo da constatação de um efetivo perigo ao bem
jurídico tutelado. Diversamente dos delitos de perigo concreto - onde a exposição a perigo do
bem jurídico deve ser comprovada pelo julgador, já que figura como elemento normativo do
tipo -, os delitos de perigo abstrato desobrigam o juiz de avaliar a superveniência do perigo.
Os crimes de perigo abstrato não são propriamente delitos de perigo – entendido o perigo
como resultado produzido -, mas delitos de periculosidade da conduta (de risco)30. Nos tipos
de perigo abstrato, não é exigido qualquer resultado (nem de lesão, nem de perigo), mas sim é
descrita uma conduta (ação ou omissão) de risco, ou seja, portadora de periculosidade. Já nos

28
De conseguinte, é possível notar que, “frente aos movimentos sociais clássicos de restrição do Direito Penal,
aparecem cada vez com maior clareza demandas de uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos
nominalmente, à angústia derivada da insegurança” (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, op.cit., p.41).
29
Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 4 ed. São Paulo: RT, 2012, p.127.
30
Sobre a distinção entre perigo e periculosidade, vide HIRSCH, Hans-Joachim. Peligro y peligrosidad. Trad.
Esteban Sola Reche. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid: Ministerio de Justicia/Boletín
Oficial del Estado, 1996, p.509 e ss.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

denominados delitos de perigo abstrato-concreto ou de aptidão para a produção de um dano, a


conduta realizada deve ser perigosa, de acordo com um juízo de valor ex ante feito pelo juiz.
Ante a magnitude dos efeitos possíveis, o legislador penal adianta sua intervenção,
antecipando-se à produção de danos graves e irreversíveis ao patrimônio ambiental. Essa
atuação preventiva importa em considerável expansão sancionadora e tem merecido diversas
críticas. Com o propósito de contornar as objeções assinaladas – muitas delas relacionadas à
violação ao princípio da intervenção mínima e ao princípio da lesividade -, sugere-se o
recurso ao princípio da precaução como instrumento útil na determinação da periculosidade
concreta da conduta.
Nos ilícitos penais ambientais de perigo abstrato, o ilícito assume uma configuração
monista, esgotando-se no desvalor da ação. É fundamental, portanto, fixar com precisão o
alcance da periculosidade da conduta, já que nos delitos de perigo abstrato o juiz não
precisará comprovar a presença de um nexo causal e tampouco demonstrar a criação de uma
situação real de perigo ao bem jurídico tutelado. Nesse mister, indaga-se se o princípio da
precaução não poderia funcionar como um importante instrumento de auxílio para o
magistrado na captação da periculosidade da conduta31.
Normalmente, uma conduta é considerada perigosa quando, no momento de sua
realização, sob uma perspectiva ex ante, não é absolutamente improvável a produção da lesão
a um bem jurídico32. Essa valoração objetiva deve levar em consideração todas as
circunstâncias do caso concreto cognoscíveis pelo autor e também pelo juiz (saber
ontológico), bem como o conhecimento ou a experiência comum da época sobre as relações
causais (saber nomológico)33. As situações que poderiam ensejar a aplicação do princípio da
precaução – de incerteza científica – restariam alijadas dessa noção de periculosidade, ou seja,
não seriam consideradas objetivamente perigosas. E isso porque não existe um conhecimento
científico ou comum (saber nomológico) acerca dos desdobramentos causais possíveis. Em
síntese, nas hipóteses abarcadas pelo princípio da precaução faltaria a periculosidade da
conduta porque faltaria a previsibilidade objetiva dos possíveis cursos causais.
Entretanto, aplicado o princípio da precaução aos delitos de perigo abstrato (ou
delitos de periculosidade ou de risco) e aos delitos de perigo abstrato-concreto (ou de ação
perigosa, ou de aptidão para a produção de um dano), seria possível elaborar um conceito de

31
Nesse sentido, ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.91.
32
Cf. CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal español. Parte General. Tomo II. 6 ed. Madrid: Tecnos,
1998, p.113-114.
33
Cf. CEREZO MIR, José, op.cit., p.113; SOLA RECHE, Esteban. La peligrosidad de la conducta como
fundamento de lo injusto penal. In: Estudios Jurídicos. Tomo II. Libro Conmemorativo del Bicentenario de la
Universidad de La Laguna. La Laguna, Facultad de Derecho de la Universidad de La Laguna, 1993, p.998 e ss.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

conduta perigosa com independência do critério da previsibilidade objetiva, normalmente


invocado. O desvalor da ação (ou a criação de um risco juridicamente relevante) seria
vislumbrado sob a ótica das condições e do conteúdo acima assinalado para o princípio da
precaução. Na própria descrição típica da conduta de risco, o recurso à remissão normativa
extrapenal (acessoriedade administrativa de ato ou de direito) seria uma forma de limitar o
exercício da conduta, com a introdução no âmbito do tipo do conteúdo específico do princípio
da precaução.
É precisamente isso o que ocorre no artigo 27, da Lei 11.105/2005 (Lei de
Biossegurança): são descritas condutas de risco, portadoras de periculosidade - a saber,
“liberar ou descartar OGM no meio ambiente”- e, em seguida, inserida expressa remissão à
normativa administrativa disciplinadora de seu exercício – “em desacordo com as normas
estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização”. O mesmo
proceder é adotado no artigo 29 do referido diploma legal: tipificam-se as condutas de risco
“produzir, armazenar, transportar, comercializar, importar ou exportar OGM ou seus
derivados” e, ao depois, faz-se referência ao ato administrativo individual e à normativa
extrapenal cuja inobservância atesta sua periculosidade objetiva - “sem autorização ou em
desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e
fiscalização”. Nessas hipóteses (arts.27 e 29, Lei 11.105/2005), a periculosidade das condutas
é determinada com apoio na infração da normativa extrapenal ou na violação do ato
administrativo individual (autorização), inspiradas no princípio da precaução. A violação da
normativa extrapenal que realiza a gestão da situação de risco e da exigência de autorização -
cuja outorga depende da adoção de medidas de precaução – introduz, no âmbito da descrição
típica, conteúdo específico do princípio da precaução que permitiria fundamentar a imputação
penal. A construção do desvalor da conduta, nesses casos, ademais do dolo (dado subjetivo),
contaria com elementos objetivos apreciados à luz do princípio da precaução.
Também na Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) e na Lei 6.453/77
(Responsabilidade civil e criminal por atos relacionados com atividades nucleares)
encontramos hipóteses nas quais o reenvio típico à normativa administrativa e/ou a exigência
de ato administrativo prévio à realização da (s) conduta (s) funcionam como elementos que
acentuam o desvalor da conduta, fundamentando a realização do juízo de periculosidade ex
ante feito pelo juiz (v.g. arts. 50-A, 54, §3°, 55, 56, 60, da Lei 9.605/98; arts.21, 25, Lei
6.453/77).
Em todas as hipóteses legais mencionadas, o conteúdo do princípio da precaução
contribuirá para fundamentar a responsabilidade penal pela realização de conduta de risco

207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

(nos delitos de perigo abstrato) ou perigosa (nos delitos de perigo abstrato-concreto) do ponto
de vista ex ante, adicionando ao desvalor da ação dados objetivos capazes de auxiliar o juiz na
captação da periculosidade da conduta e na interpretação dos tipos penais.
O princípio da precaução também poderia ser aplicado aos delitos culposos e neles
desempenhar uma dúplice função: fixar pautas para a realização de condutas de risco
potencial de dano ambiental grave e irreversível e relativizar a exigência da previsibilidade
objetiva para a configuração dos tipos penais culposos. A primeira das funções pode ser
assim sintetizada:

“quem se dispõe a realizar uma conduta cujo risco para bens jurídicos penalmente
protegidos não pode valorar, deve informar-se; se não é possível, ou parece que em
nada adiantará informar-se, deve se abster da conduta. E quem pretende empreender
algo que provavelmente coloque em perigo bens jurídicos e não é capaz de afrontar
os perigos devido a insuficiências físicas ou por falta de prática ou habilidade, deve
omitir a conduta; caso contrário, existe no empreendimento ou na assunção da
atividade uma imprudência”34.

A primeira das atribuições do princípio da precaução no âmbito dos delitos culposos


seria, portanto, a fixação de pautas ou limites para a realização de condutas de risco potencial
para a incolumidade de bens jurídicos penalmente protegidos. Já a segunda das funções do
princípio da precaução na esfera dos delitos culposos diz respeito, inicialmente, à
previsibilidade objetiva. O princípio da precaução poderia atuar como uma alternativa à
exigência de configuração da previsibilidade objetiva. Esse ponto é particularmente polêmico,
já que a previsibilidade objetiva significa a possibilidade de antecipação, por parte do sujeito,
da possibilidade de ocorrência de um resultado de lesão ou de perigo concreto para o bem
jurídico. Por outro lado, nas hipóteses de atuação do princípio da precaução, existe uma
situação de incerteza científica acerca dos desdobramentos causais lesivos que podem
acompanhar a realização de uma determinada conduta. O sujeito, portanto, não pode antecipar
mentalmente a ocorrência do resultado de lesão ou de perigo para o bem jurídico, já que estes
e os próprios cursos causais são desconhecimentos em termos científicos e não são previsíveis
ex ante. Pretende-se evitar “um hipotético resultado grave, catastrófico ou irreversível”,
derivado de uma ação sobre a qual recai “uma suspeita a respeito de sua periculosidade”35.
Prescindir da previsibilidade objetiva na imputação de resultados nos delitos culposos em
nome do princípio da precaução pode acarretar uma dose de inadmissível insegurança
jurídica.

34
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas,
1997, p.1.009.
35
ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.96.

208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Todavia, uma forma de aproximar o princípio da precaução dos elementos típicos


dos crimes culposos seria vinculá-lo ao dever objetivo de cuidado36. Se uma lei, portaria ou
regulamento, por exemplo, determinasse a observância de certas cautelas na realização de
uma conduta de risco - mesmo que não fosse objetivamente previsível a produção de um
resultado concreto e desconhecido o possível nexo causal -, a infração da normativa fundada
no princípio da precaução significaria a violação do dever objetivo de cuidado. O dever de
cuidado inspirado pelo princípio da precaução poderia, por exemplo: a) indicar a retirada de
um produto sobre o qual recaia séria suspeita de produção de danos irreversíveis à saúde ou
ao ambiente; b) exigir exaustivas preparação e informação, prévias à realização de atividades
de risco, a fim de elevar o nível de conhecimento e a capacidade técnica para sua execução; c)
recomendar a omissão de condutas perigosas, quando não se dispõe dos conhecimentos
técnicos ou da capacitação necessária para empreendê-las, mesmo sem saber exatamente
quais efeitos prejudiciais podem advir de sua realização37.
Por outra parte, ainda que produzido o resultado típico, este não poderá ser imputado
ao sujeito que tenha obedecido ao cuidado objetivo determinado pelas medidas de precaução
fixadas pela normativa disciplinadora da atividade. Quando não há desvalor da ação (infração
do dever objetivo de cuidado/criação de risco juridicamente relevante), não há desvalor do
resultado (lesão ou perigo ao bem jurídico/realização do risco juridicamente relevante).
Em matéria de relação de causalidade, estima-se aqui que o princípio da precaução
não pode substituir sua comprovação nos delitos de resultado material. Não é possível
prescindir da demonstração do nexo causal ou substituir sua comprovação por outros
elementos ou pela realização de cálculos de probabilidade. Nos delitos de resultado, a
presença da relação de causalidade é elemento objetivo inafastável. O desconhecimento das
relações causais ou as dificuldades probatórias que acompanham aqueles nexos causais que se
protraem no tempo podem conduzir o legislador penal a optar pela técnica dos delitos de
perigo abstrato ou abstrato-concreto, nos quais se exige apenas a presença de uma conduta de
risco ou de uma conduta perigosa do ponto de vista ex ante. Quando o delito for de resultado
(de lesão ou de perigo concreto), porém, este deve vincular-se causalmente à ação e é preciso
provar cientificamente que os desdobramentos lesivos e perigosos foram causados por esta.
O princípio da precaução pode atuar, ainda, como critério de orientação na tomada de
decisões em matéria ambiental por parte das autoridades e funcionários responsáveis pela

36
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal ante la globalización: el papel del principio de precaución.
In: BACIGALUPO, Silvina; CANCIO MELIÁ, Manuel (Coords.). Derecho Penal y política transnacional.
Barcelona: Atelier, 2005, p.332 e ss.
37
Cf. MENDOZA BUERGO, Blanca, op.cit., p.452-456.

209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

gestão e controle de atividades de risco. Sempre que a normativa conferir certa margem de
discricionariedade na avaliação do risco ou transferir para a autoridade a competência para
sua aferição concreta – como na concessão de atos administrativos individuais -, o princípio
da precaução atuará como importante instrumento na análise da conveniência e oportunidade
da realização da conduta de risco. Nessa perspectiva, o princípio da precaução fundamenta
indiretamente a responsabilidade penal do funcionário público que concede “licença,
autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para atividades, obras ou
serviços cuja realização dependa de ato autorizativo do Poder Público” (art.67, Lei 9.605/98),
já que o as normas administrativas infringidas se baseiam nas exigências do princípio da
precaução. A Administração Ambiental atua, portanto, “como garante de um correto
aproveitamento ambiental, ao decidir quais atividades ou processos prejudicam o ambiente, ao
estabelecer a ponderação de riscos e utilidades possíveis e ao estipular as medidas de cuidado
a serem tomadas”38.
Por derradeiro, cabe salientar que o princípio da precaução pode desempenhar um
importante papel político-criminal, servindo como critério de orientação ao legislador no
momento da tipificação penal de condutas em matéria ambiental. Pautado pelas exigências do
princípio da precaução, o legislador pode inserir no ordenamento jurídico-penal tipos de
perigo abstrato e de perigo abstrato-concreto, além de tipos culposos de resultado. Entretanto,
nunca é demais advertir que essa atuação deve observar o princípio da intervenção mínima e o
caráter subsidiário do Direito Penal, ademais do princípio da exclusiva proteção de bens
jurídicos. Todo exagero na tipificação de condutas de risco pode significar uma nefasta
expansão da intervenção penal, comprometedora do avanço científico e tecnológico sob o
pretexto de atuar preventivamente na contenção de riscos potenciais.
A desobediência às medidas de precaução fixadas pela administração ambiental
figura como um ilícito penal no ordenamento brasileiro. Foi introduzido no ordenamento
jurídico-penal como um tipo de amplos contornos, que abarca toda omissão de medidas de
precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível. O disposto no artigo 54,
§3°, da Lei 9.605/98 tipifica a omissão na adoção, quando assim o exigir a autoridade
competente, das medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou
irreversível, o que evidencia a importância que a infração das medidas de precaução assumiu
em seara penal. Cabe ressaltar que, todavia, que a mera violação de medidas de precaução

38
DE LA MATA BARRANCO, Norberto J. Protección penal del ambiente y accesoriedad administrativa.
Tratamiento penal de comportamientos perjudiciales para el ambiente amparados en una autorización
administrativa ilícita. Barcelona: Cedecs, 1996, p.75-76.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

fixadas pela autoridade administrativa competente esgota do conteúdo do ilícito penal em


apreço, de modo que o Direito penal, por meio de tipos como este, acaba por desempenhar
funções de “gestão (punitiva) de riscos gerais”39.
Por essa razão, é preciso advertir que o recurso ao princípio da precaução –
especialmente através da adoção da técnica das leis penais em branco – não pode retirar do
ilícito o seu conteúdo especificamente penal e tampouco transferir à administração ambiental
a fixação da totalidade do conteúdo do tipo penal.
A referência à normativa administrativa na elaboração dos ilícitos penais permite que
o conteúdo do princípio da precaução penetre no âmbito dos tipos penais, mas, ao mesmo
tempo, exige que sejam precisados os limites dessa acessoriedade.
Poucos são os tipos penais que não apresentam qualquer forma de conexão com a
normativa de caráter administrativo40. A noção de acessoriedade implica a outorga à
Administração Pública da importante função de fixar e delimitar o âmbito do cuidado
objetivamente devido e do risco permitido em seara ambiental. E isso tanto do ponto de vista
geral, através da elaboração de uma legislação e de uma regulamentação adequadas à proteção
do ambiente, como do ponto de vista individual, concedendo licenças, autorizações e
permissões que expressem a correta ponderação entre a tutela da incolumidade ambiental e a
admissibilidade de atividades potencialmente lesivas a esta última.
Nesse domínio, importa assinalar que a atividade dos órgãos vinculados à
Administração Ambiental deve orientar-se pelas condições legitimadoras da aplicação do
princípio da precaução. Cabe àqueles, portanto, a conciliação de interesses aparentemente
antagônicos – como podem ser a conservação ambiental e a exploração dos recursos naturais -
, prescrevendo a adoção de medidas preventivas quando da instalação e funcionamento de
instalações poluidoras ou quando do desenvolvimento de atividades de exploração ambiental,
por exemplo.
A relativa dependência do Direito Penal do Ambiente em relação à disciplina
administrativa de forma alguma compromete a função de tutela do ambiente como bem
jurídico dotado de inegável autonomia. A relação de acessoriedade pode figurar, no âmbito do
injusto penal, como um desvalor da ação adicional. Ou seja, a conduta tipificada, ao não
observar o disposto pela regulamentação administrativa, “demonstra um maior desvalor da
ação, revelado pelo modo ou forma de realização desta ou, conforme o caso, pela infração de

39
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal. Aspectos de la política criminal en las
sociedades postindustriales. 2 ed. Madrid: Civitas, 2001, p.123.
40
Cf. CARVALHO, Érika Mendes de. Limites e alternativas à administrativização do Direito Penal do
Ambiente. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, 2011, nº 92, p.302 e ss.

211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

deveres jurídicos específicos”41. Uma conduta com essas características é, do ponto de vista
ex ante, portadora de maior periculosidade42.
Quando o tipo penal exprime com clareza o conteúdo de injusto específico de uma
determinada conduta delitiva, o reenvio à normativa extrapenal inspirada pelo princípio da
precaução se limitará a traçar com maior precisão os limites da conduta típica. O recurso à
técnica das leis penais em branco, se corretamente empregado, figura como um elemento
normativo capaz de denotar um incremento do desvalor da conduta, contribuindo para
fundamentar o ilícito penal e conferir atualidade ao seu conteúdo. A norma incriminadora em
branco, porém, deve conter a essência (núcleo) da conduta proibida43. Só esse modo de
proceder permitirá uma uniformidade na fixação do risco permitido e assegurará que a
intervenção penal alcance apenas aquelas condutas portadoras de risco ao ambiente.

6. Conclusões

O Direito Penal não pode assegurar, de forma absoluta, a total incolumidade dos bens
jurídicos diante de situações de risco ou de perigo à sua integridade. É aceitável, assim, certo
nível de risco ou perigo aos bens jurídicos – risco permitido -, previsível e mensurável. O
chamado Direito Penal da prevenção fixa, portanto, determinada margem de risco tolerável,
devendo a conduta circunscrever-se aos limites impostos com vistas à proteção dos bens
jurídicos. O âmbito do risco permitido, porém, refere-se aos riscos conhecidos, previsíveis,
mensuráveis. No contexto da sociedade pós-moderna, todavia, surgem situações nas quais o
risco não pode ser precisado em termos científicos. Os riscos incertos e imprevisíveis, a
possibilidade de danos graves e irreversíveis, fundada em cálculos e probabilidades, oferecem
grandes desafios à ciência penal.
Nesse contexto, o princípio da precaução pode representar um importante
instrumento para o controle e gestão de riscos, notadamente em matéria ambiental. É
compreensível que suas notáveis contribuições ingressem nos domínios da dogmática penal e
da política criminal. A via mais óbvia de penetração do princípio da precaução reside na
adoção da técnica das leis penais em branco – ou do modelo da acessoriedade de Direito

41
CARVALHO, Érika Mendes de, op.cit., p.312.
42
Assim, DE LA MATA BARRANCO, Norberto, op.cit., p.87, MORALES PRATS, Fermín. La técnica de la
ley penal en blanco y el papel de la legislación de las comunidades autónomas en el delito ambiental. In:
Estudios jurídicos en memoria de Luis Mateos Rodríguez. Santander: Universidad de Cantabria, 1993, p.361-
363.
43
CEREZO MIR, José. Las leyes penales en blanco en la protección del medio ambiente. Obras completas.
Derecho Penal. Otros Estudios. Lima: Ara, 2006, t.II, p.381.

212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Administrativo -, pela qual, na descrição da conduta punível, o legislador penal faz referência
à normativa extrapenal. A legislação que completa o conteúdo do tipo penal pode, desse
modo, traçar limites à realização da conduta potencialmente perigosa, expressando a adoção
de diversas medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave e irreversível.
Também ingressa o princípio da precaução na esfera do tipo penal com a incorporação do
modelo da acessoriedade ao ato administrativo individual, segundo o qual a exigência de
autorização, licença ou permissão - e a necessidade de observar os limites, condições e
recomendações estabelecidas - expressa um importante reforço ao conteúdo do ilícito penal,
que incorpora as medidas de precaução provenientes da esfera administrativa. Nos delitos de
perigo abstrato, a infração das pautas administrativas inspiradas princípio da precaução
contribui para robustecer o desvalor da ação, acentuando a periculosidade da conduta. O
desconhecimento das dimensões do risco e a imprevisibilidade de seus possíveis efeitos
prejudiciais aconselham que a intervenção jurídico-penal se faça de modo meticuloso,
respeitando o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e obedecendo à diretriz
político-criminal de mínima intervenção. Por isso mesmo, é que apenas as condutas perigosas
do ponto de vista ex ante – ou portadoras de acentuado nível de risco – devem merecer a
sanção penal. O princípio da precação pode contribuir, assim, para a determinação da
periculosidade da conduta nos delitos de perigo abstrato.
O princípio da precaução não representa, porém, uma via para a imputação objetiva
de resultados, mas revela-se especialmente útil enquanto instrumento de “delimitação da
conduta jurídico-penalmente adequada”44. Não se pretende, com sua adoção, prescindir da
exigência de previsibilidade objetiva nos delitos culposos. Todavia, a determinação do dever
objetivo de cuidado pode contar com o auxílio do princípio da precaução. Deve ser afastada a
imputação de resultados ao sujeito que tenha obedecido ao cuidado objetivo determinado
pelas medidas de precaução fixadas pela normativa disciplinadora da atividade. Quando não
há desvalor da ação (infração do dever objetivo de cuidado/criação de risco juridicamente
relevante), não há desvalor do resultado (lesão ou perigo ao bem jurídico/realização do risco
juridicamente relevante).
Por derradeiro, o princípio da precaução pode influir, ainda, nas decisões em matéria
ambiental tomadas pelas autoridades e funcionários responsáveis pela gestão e controle de
atividades de risco. Sempre que a normativa conferir certa margem de discricionariedade na
avaliação do risco ou transferir para a autoridade a competência para sua aferição concreta –

44
ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.104.

213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

como na concessão de atos administrativos individuais -, o princípio da precaução atuará


como importante instrumento na análise da conveniência e oportunidade da realização da
conduta de risco.

7. Referências

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prevención y la gestión de riesgos. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Ed.). Principio
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216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

TÍTULO: Bens Jurídicos Mediatos e Imediatos Tutelados nos Tipos Penais contra a Ordem
Tributária
TITLE: Mediate and Immediate Legal Assets Wards in Criminal Types against Tax Order
AUTOR: Ariosto Teixeira Neto – Mestrando UNICURITIBA – Membro do Grupo de
Estudos de Direito Penal-Econômico coordenado pelo Prof. Fábio André Guaragni.
RESUMO: o artigo trata sobre os bens jurídicos imediatos e mediatos tutelados pelos tipos
penais nos crimes contra a Ordem Tributária, sendo que em sentido imediato existe a defesa
dos interesses estatais patrimoniais e institucionais, sendo que no sentido mediato há uma
defesa de interesses supraindividuais. Pelo fato dos tipos penais expostos pelos artigos 1º e 2º
da Lei nº 8.137/1990 possuírem o intuito de defesa da Ordem Tributária e não apenas do
Estado faz-se necessário que os bens jurídicos supraindividuais (e mediato) estejam
devidamente representados no sentido imediato (defesa do Estado em sentido patrimonial e
institucional). Nessa verificação há também a problemática da teoria fiscal e sua vasta
influência no âmbito do Direito Penal-Tributário que pode influenciar a criação de leis e a
aceitação de bens jurídicos desconexos com o objetivo do Direito Penal, como apenas para a
cobrança de tributos.

PALAVRAS-CHAVE: crimes contra a Ordem Tributária, bens jurídicos mediatos e


imediatos, interesse público.

ABSTRACT: The article discusses the immediate and mediate legal protection by criminal
types in crimes against Tax Order, the immediate sense is the defense of State interests in
patrimonial and institutional, on the other hand, in mediate meaning there is an
supraindividuais interests, cause the criminal types exposed in articles 1 and 2 of the Law nº.
8.137/1990 aims to defend the Tax Order and not just States interests, so it is necessary that
the legal protection of supraindividuais interests (and mediate sense) are properly represented
in the immediate sense (State defense in patrimonial and institutional sense). In this check
there is also the issue of tax theory and its wide influence under the Criminal Law Tax that
may influence the creation of laws and legal acceptance of aims unconnected with the
objective of criminal law, for as example, tax collection only.
KEY-WORDS: Tax Order crimes, mediate and immediate legal interests, the public interest.

SUMÁRIO: I. Introdução. II. Bens jurídicos mediatos e imediatos dos Crimes Tributários. III.
A arrecadação tributária e o interesse público primário e secundário. IV. Teoria fiscal aplicada
no Direito Penal – algumas observações relevantes V. Conclusão. VI. Referências
Bibliográficas

I. INTRODUÇÃO

A forma de Estado conhecida como Estado Liberal possui como ápice a Revolução
Francesa, em que é a primeira Revolução da história da humanidade, em que o homem deixa
de ser súdito para ser cidadão, incentivado exatamente por interesses econômicos da
burguesia contra o monarca absoluto (BONAVIDES, 2011, p. 25).
O Estado Liberal floresce e, como um pêndulo, torna-se a figura radicalmente oposta

217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ao momento histórico anterior, exigindo maiores liberdades individuais e, para isso, vislumbra
retirar todos os poderes do monarca conseguindo êxito em grande parte.
Vale lembrar que o monarca nessa visão era a figura do próprio Estado, então a
tentativa de reduzir os poderes do rei absoluto era também uma forma de reduzir a
interferência estatal na vida privada, sendo que um dos mecanismos mais conhecidos para
isso foi o estabelecimento da separação dos poderes (BONAVIDES, 2011, p. 27/29).
Contudo, o principal objetivo da Revolução Francesa não foi a igualdade ou
fraternidade, mas sim a liberdade para os burgueses poderem atuar livremente no “mercado”
de forma autônoma e sem nenhuma necessidade de autorização estatal ou confisco de suas
propriedades sem justificativa ou lei previamente estipulando isso.
Por isso, não há sequer a possibilidade de cogitar em uma definição de Ordem
Econômica propriamente dita ou mesmo de Direito Econômico, ao menos não como um
conjunto de regras e sistemas próprios, vez que a diretriz do Liberalismo era exatamente a não
intervenção estatal e consequentemente “desordem” econômica, com base na clássica doutrina
de Adam SMITH que os mercados se regulariam a si mesmos.
Apenas ao longo do séc. XIX, coagido pela pressão das massas em exigir direitos
antes não tutelados pela esfera pública, o Estado tem que se preocupar com várias áreas que
antigamente eram exclusivas da iniciativa individual, ante a impossibilidade da iniciativa
privada resolver a maioria dos problemas, em especial, ligados às áreas sociais e ao
descontrole econômico. Assim, o chamamento do Estado para regular essas áreas foi
necessário, tanto por meio de legislação e como pelo controle e intervenção direta ou indireta.
Diante da possibilidade do Estado intervir na Economia, houve a inclusão em uma
relação até então entendida exclusivamente por interesses entre particulares de um interessado
não muito comum: o Estado.
Com isso, a principal e óbvia mudança foi a intervenção estatal na economia, bem
como o surgimento de novos campos no Direito, entre eles o Direito Econômico. O resumo
desse transpasse é muito bem exposto por Egon Bockmann MOREIRA e Leila CUELLAR:

As diretrizes políticas tornaram-se carregadas de deveres econômicos, num


grau ascendente: já não bastavam as previsões normativas liberais de um
Direito Civil ou de um Direito Comercial. As relações que se punham
exigiam uma normatividade de hierarquia superior e os textos
constitucionais passaram a prever um feixe normativo específico, que a
doutrina convencionou de denominar “Constituição Econômica (MOREIRA;
CUELLAR, 2010, p. 157).

Ora, nitidamente surge um bem jurídico (conceito que já havia sido criado no âmbito

218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

penal por BIRNBAUM no séc. XIX) de importância suficiente para ser apto de defesa pelo
Direito Penal, iniciando os primeiros passos do Direito Penal Econômico.
Veja-se que em tal momento histórico ainda há o clima das guerras para fomentar o
nascedouro da Ordem Econômica, qual seja, o agitado final do séc. XIX e início do séc. XX,
sendo que há um notório agravamento da recusa do modelo liberalista após a Primeira Grande
Guerra, como lembra Fábio André GUARAGNI:
O fato é que os estados posteriores à primeira guerra mundial são
claros contrapontos ao estado liberal do XIX. Se este não interveio nos
processos econômicos, consagrando a economia de livre-mercado,
aqueles fizeram o processo reverso: os estados com governos
totalitários de direita intercederam na vida econômica, controlando
minuciosamente o ciclo da produção e distribução de bens e serviços
levado a termo na esfera privada, sobretudo para financiamento das
máquinas de guerra que – a partir de uma atitude imperialista e
preventiva em relação à “ameaça comunista” - emergiram na Europa
Ocidental. Os totalitarismos de esquerda assumiram a condição de
produtores e distribuidores de bens e serviços, eliminando toda a
iniciativa privada, em obediência à cartilha marxista (GUARAGNI,
2009,150)

Não apenas a recusa do modelo liberal puro, mas finalidade principal desse recente
ramo de Direito Econômico era controlar os direcionamentos econômicos elaborados por
normativas administrativas estatais, como bem lembram Jorge Figueiredo DIAS e Manuel da
Costa ANDRADE (2000, p. 71), sendo que “recorriam (abusivamente, por vezes) às sanções
penais como garantia de eficácia e de prevenção”.
Contudo, o Direito Penal Econômico não só coibia os excessos causados no âmbito
do Direito Econômico-Administrativo, mas tinha o objetivo específico de financiar os
conflitos bélicos entre Estados-Nações que tiveram seu auge com a Primeira e Segunda
Guerra Mundial.
Em resumo, a intervenção do Estado na economia nos Estados Liberais não era com
finalidade outra senão a preservação do próprio capitalismo de seus excessos, pois “não há
preocupações sociais, mas sim de ordem técnica, com o próprio liberalismo” (TAVARES,
André Ramos, 2003, p. 55).
Iniciado o transpasse do Estado Liberal ao Estado Social que fica claramente
expostos em textos constitucionais no início do séc. XX, cujos principais marcos são a
Constituição Mexicana e de Weimar, em que houve uma quebra do paradigma predominante
do liberalismo da não intervenção estatal nos interesses privados, em especial, na economia.
Percebe-se a nítida evolução do Estado Liberal, passando pelo Estado Interventor e
desembocando no Estado Social da Sociedade, termo de Paulo BONAVIDES (2011, p. 55),

219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ou também conhecido como Estado Social de Direito, em que é visto como o Estado Social
dos direitos fundamentais (2011, p. 55) em que há inclusive uma visão supranacional em que
o “respeito da Humanidade aos direitos fundamentais, ponto de partida para a futura
Constituição de todos os povos” (2011, p. 55).
Todo esse histórico é necessário para entender as características da Ordem
Econômica em sentido estrito, ou seja, o direito do Estado em intervir na economia, e a
Ordem Econômica em sentido amplo que abarca tanto a Ordem Tributária, como a Financeira,
do Consumidor e outras Ordens não só vinculadas ao Estado em si, mas com relação a todos
os ramos que afetem a própria produção, distribuição e consumo de quaisquer bens
econômicos.
Assim, aprofundando no tema do presente artigo, no coração desse Direito
Econômico, dessa Ordem Econômica, encontra-se a figura do tributo, clássico meio de
arrecadação estatal e principal forma de intervenção do Estado na economia.
O surgimento do tributo em si é muito mais antigo que o nascedouro da Ordem
Econômica, haja vista que o tributo surge como conhecemos atualmente com a formação dos
Estados-Nações, com o intuito de financiá-los, mas apenas com a criação da Ordem
Econômica que os tributos passam a ser uma parte desse ramo do Direito.
No campo da sanção penal, os meios utilizados para fraudar a cobrança de tributos
(Direito Penal Tributário) são a base do Direito Penal Econômico, que por obviedade, trata de
uma amplitude muito maior de bens jurídicos e tipos penais em que as sofisticações ou
mecanismos criadas para transformação de valores ilícitos em lícitos (lavagem de dinheiro por
exemplo) ou qualquer outra vantagem frente ao Estado, ganharam mais a atenção do Direito
Penal Econômico, fazendo com que tal ramo abarcasse o tributo entre um de seus muitos
objetos.
Tão acentuada foi essa diferenciação entre os mencionados sub-ramos do Direito
Penal que se fala em Direito Penal Econômico e Direito Penal Tributário como se fossem
coisas totalmente distintas, influenciados muitas vezes pela estrutura da nossa Constituição da
República, que discorre sobre a tributação e orçamento nos artigos 145 e seguintes, enquanto
o art. 170 e seguintes menciona o Direito Econômico.
Contudo, tanto em sentido histórico, como em sentido estrutural, ambos possuem o
mesmo radical, sendo na verdade que a tributação tornou-se uma parte da ordem econômica
em sentido amplo, separada em nossa Constituição apenas por questão de didática.
Pois bem, esclarecido que o Direito Tributário é do parte do Direito Econômico e que
a Ordem Econômica em sentido amplo abarca também a Ordem Tributária, passa-se ao tema

220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

central desse artigo, vez que ambos os ramos citados sofrem de uma problemática ao tratar da
tutela de seus bens jurídicos: a defesa de seus bens jurídicos.
Isso porque no âmbito do Direito Tributário e, até mesmo no Direito Econômico, a
tutela dos bens jurídicos abrange apenas o ente estatal ou transborda aos interesses do Estado
para outros interesses?
Para responder a essa pergunta é necessário uma passagem pelo bem jurídico em
sentido mediato e imediato, para depois aprofundarmos na doutrina do Direito Administrativo
sobre qual é considerado um interesse público primário ou secundário, obviamente que tal
questionamento será verificado com base nos crimes contra a Ordem Tributária.

II. BENS JURÍDICOS MEDIATOS E IMEDIATOS DOS CRIMES CONTRA A


ORDEM TRIBUTÁRIA

Os crimes contra a Ordem Tributária e seus bens jurídicos tutelados não são passíveis
de unanimidade ou mesmo definição uma “corrente” doutrinária e jurisprudencial mais
pacificada.
Isso resulta de dois fatores muito claros: o crescimento da aceitação do
funcionalismo do Direito Penal como principal teoria penal brasileira, a qual coloca os bens
jurídicos no centro dessa teoria, e; a mudança social do modo como se enxerga os bens
jurídicos tutelados pelos tipos penais dos crimes contra a Ordem Tributária, em especial, a
questão da supraindividualidade e da Ordem Econômica em sentido amplo.
Veja-se que tais fatores são eventos relativamente recentes para o Direito, já que
ganham espaço significativo após a década de 70, por meio de Claus Roxin (funcionalismo) e
Ulrich Beck (sociedade de risco e supraindividualidade), um lapso temporal curto em
comparação com aos fundamentos existentes na ciência do Direito e até mesmo com o próprio
Direito Penal.
Assim, a supraindividualidade nos bens jurídicos é uma técnica avessa ao Direito
Penal clássico em que foi fundado e criado todo o sistema do Direito Penal Brasileiro, ainda
mais se inserir um terceiro fator nessa análise: o Estado. Exatamente isso o que ocorre nos
crimes contra a Ordem Tributária.
Desnecessário adentrar na discussão acerca da controvérsia que gira em torno do
conceito de bem jurídico, tendo em vista o objetivo desse artigo de ser específico e focar outro
aspecto de tal instituto, contudo, à título de esclarecimento, expõe-se a visão em que é

221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

verificado o conceito de bem jurídico nesse trabalho.


A definição dada por Eugênio Raul ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI
(1997, p. 464) ressalta o foco do bem jurídico para uma perspectiva pessoal em que é
considerado como a “relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto”.
Devem ser lembradas também as palavras de Juarez TAVARES (2003, p. 180), em
que afirma que o bem jurídico, na qualidade de valor, “cumpre a função de proteção, não dele
próprio, senão da pessoa humana, que é objeto final de prestação da ordem jurídica”. Ora, a
proteção do bem jurídico é visto como uma finalidade para o próprio Direito Penal, na visão
de Claus ROXIN (2009, p. 16/18), portanto, de suma importância é esse objeto para a ciência
criminal hodierna.
Tais bens jurídicos podem ser classificados de várias maneiras, sendo que a
classificação que ora interessa e é útil para o presente estudo consiste na distinção entre o bem
jurídico imediato e bem jurídico mediato.
Sobre o bem jurídico imediato, é considerado o bem jurídico “em sentido técnico,
elemento básico de todo delito” (PEREZ, 2007, p. 159), é a parte indispensável de qualquer
tipo penal, e se aproxima da noção mais comumente utilizada do termo.
Já o bem jurídico mediato é um conceito mais amplo e possui uma correlação muito
próxima com o próprio legislador no momento da criação do tipo penal, haja vista que trata da
“finalidade objetiva da norma”, conforme expressado por Carlos Martinez-Bujan PEREZ:

(...) la nócion de bien jurídico mediato posse un significado diferente, que se


vincula al más amplio concepto de “ratio legis” o “finalidade objetiva de la
norma” y que, dicho sintéticamente, expresa las razones o motivos que
conducen al legislador penal a criminalizar un determinado comportamento
(PEREZ, 2007, p. 157)1

Continua Carlos Martinez-Bujan PEREZ (2007, p. 159), o primeiro a definir tal


conceito, em seu texto discorre sobre o bem jurídico mediato, afirmando que tal aspecto do
bem jurídico “não aparece incorporado a um tipo de injusto de uma infração correspondente”,
ou seja, não seria possível a lesão do bem jurídico mediato unicamente, dependendo da
coincidência com o bem jurídico imediato, possuindo assim uma função mais expressiva
como interpretativa, sistêmica e até mesmo para a determinação e aplicação da pena (2007, p.
161/163).
Ademais, sobre os crimes econômicos, que são o nosso interesse de modo analógico

1
Tradução livre: “(...) a noção de bem jurídico mediato passa um significado diferente, que se vincula ao
mais amplo conceito de “ratio legis” ou “finalidade objetiva da norma” e que, digo sinteticamente, expressa as
razões e motivos que conduzem o legislador penal a criminalizar um determinado comportamento”.

222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

no presente estudo, Carlos Martinez-Bujan PEREZ (2007, p. 163/163) informa que todos eles
tem como bem jurídico mediato a proteção do ordenamento econômico, que possui a nítida
característica de ser um bem jurídico supraindividual.
Pois bem, com essa distinção em mente, passa-se a análise do bem jurídico nos
crimes contra a Ordem Tributária, que são conhecidos comumente os artigos 1º e 2º da Lei n.
8.137, de 27 de dezembro 20032.
Primeiramente, é bem observado por Andréas EISELE (1998, p. 14) que com a
formação de um Estado Democrático de Direito “a noção de bem jurídico vem se
modificando, de modo a abranger outros interesses sociais tidos como valores relevantes em
tal sistema social e político, do qual são expressão exemplificativa os bens jurídicos coletivos
e difusos”.
Nessa classificação exposta por Andréas EISELE (1998, p. 14), podem ser inclusos
os crimes contra a Ordem Tributária que tem como escopo primordial a defesa do Erário, não
no sentido apenas patrimonialista ou individualista (como patrimônio da Fazenda Pública),
mas também “como bem jurídico supra-individual, de cunho institucional” (PRADO, 2007, p.
309).
Percebe-se que Andréas EISELE traz uma visão dupla do bem jurídico dos crimes
contra a Ordem Tributária, em que seu bem jurídico mediato seria um bem jurídico

2
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e
qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer
natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento
relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a
venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a
legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que
poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto
ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude,
para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado,
na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a
parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto
liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da
obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

supraindividual, haja vista que é de interesse não apenas estatal, bem como há também no
bem jurídico imediato um cunho institucional que vai além da mera “arrecadação”.
Neste sentido, Guilherme de Souza NUCCI afirma que a proteção do sistema
tributário nacional é uma função constitucional por estar previsto nela em seu art. 145 e
seguintes, ou seja, define claramente quais são os bens jurídicos mediatos dos crimes contra a
Ordem Tributária. NUCCI afirma com base nesse pensamento que:

O Estado precisa manter serviços, promover o bem-estar social e cumprir o


idealizado pelo art. 3º da Constituição Federal, que é a constituição de uma
sociedade livre, justa e solidária, com garantia ao desenvolvimento nacional,
a erradicação da pobreza e a marginalização, bem como buscando a redução
da desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. (...)
Os tributos em geral, se bem empregados, promovem justiça social,
garantindo o mínimo de bem-estar a todos os brasileiros. Sem haver exagero,
é natural (NUCCI, 2007, p. 860/861).

Do mesmo modo Luis Regis PRADO (2007, p. 309) ainda complementa que “a
tutela da ordem tributária se encontra justificada pela natureza supra-individual, de cariz
institucional, do bem jurídico, em razão de que são os recurso auferidos das receitas que darão
o respaldo econômico necessário para a realização das atividades destinadas a atender às
necessidades sociais”.
Desta forma, seguindo a linha de raciocínio exposta, os bens jurídicos mediatos
justificam a utilização dos crimes contra a Ordem Tributária (dentro da lógica do sistema
penal) para a correta aplicação do sistema tributário.
O transpasse dessa interpretação para os bens jurídicos imediatos não é tão
traumática, haja vista que tal aspecto visa à defesa do Erário Público em um duplo sentido:
patrimonialista, em que haverá um dano aos cofres públicos e na disponibilidade de tal
amonte financeiro para sua aplicação, e; institucional, em que protegerá quando houver um
desrespeito ou dano a instituição do Estado e seu Poder de arrecadar (crime contra a
Administração Pública).
Contudo, a grande problemática é exatamente se a defesa dos bens jurídicos
imediatos, tanto no sentido patrimonialista, como no sentido institucional, abrange o aspecto
supraindividual dos bem jurídico dos crimes contra a Ordem Tributária em sentido mediato.
Para isso, é interessante trazer a baila a teoria do Direito Administrativo sobre
interesse público primário e interesse público secundário.

224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

III. A ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA E O INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E


SECUNDÁRIO

Não obstante a verificação do caráter supraindividual existente nos crimes contra a


Ordem Tributária, faz-se necessária a observação dos interesses primários e secundários do
Estado do Direito Administrativo, para composição com o bem jurídico dos crimes contra a
Ordem Tributária.
Com a formação do Estado Moderno, investido das vontades gerais pelo contrato
social rosseauniano, o Estado seria o representante dos seus súditos, visando um bem comum
a todos.
Contudo, tal entendimento deve ser melhor aprofundado, tendo em vista que só se
pode falar em interesse público quando há manifestação do próprio Estado, não se relevando
por vezes um interesse de toda a sociedade, mas apenas do órgão estatal como se fosse um
particular.
Mas não estaria o Estado sempre agindo em favor dos interesses de todos segundo
essa interpretação? Em bem verdade, não. É necessário que seus atos visem um bem comum,
conforme lembra Andreas J. KRELL:

Já o interesse público tem sido na história do Estado moderno o


conceito-chave para expressar o bem comum; ele demonstra que há
uma permanente necessidade de justificação de qualquer exercício de
poder estatal, visto que o objetivo final da atuação dos entes públicos
é a comunidade integral dos cidadãos, não a soma dos indivíduos
(KRELL, 2011, p. 13)

Dessa forma, o “bem-comum” ou mesmo o interesse geral não são conceitos


definidos ou definíveis claramente, mas mesmo assim, o agente público “deve perseguir na
sua atuação” (KRELL, 2011, p. 14) tal interesse geral.
Contudo, na atuação cotidiana surgem diversos interesses públicos, interesses que
são por muitas vezes conflitantes ou convergentes, portanto, faz-se necessário saber o que é
um interesse chamado primário e um interesse secundário, mais ainda, para fins didáticos
deve-se analisar dois aspectos: o interesse público estatal sobre a arrecadação e a
representação do Estado em crimes cujo legitimidade é uma coletividade.
Sobre o interesse público em geral, o Celso Antônio Bandeira de MELLO já afirma
que:
O Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa
jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência

225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato


de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter,
tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares,
individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras
individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não
são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois
(sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito (MELLO,
2007, p. 63)

Tal interesse “secundário” do Estado é rechaçado pela ordem jurídica, conforme


expõe o mesmo Celso Antonio Bandeira de MELLO a seguir:

este discrímen, contudo, é exposto com exemplar clareza por Renato Alessi,
colacionando lições de Carnelutti e Picardi, ao elucidar que os interesses
secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes
com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente
ditos (MELLO, 2007, p. 63)

Mais adiante, Celso Antônio Bandeira de MELLO exemplifica com situação


semelhante a enfrentada neste estudo:

O autor (referindo-se a Renato Alessi) exemplifica anotando que,


enquanto mera subjetivação de interesses, à moda de qualquer sujeito,
o Estado poderia ter interesse em tributar desmesuradamente os
administrados, que assim enriqueceria o Erário, conquanto
empobrecesse a Sociedade; que, sob igual ótica, poderia ter interesses
em pagar valores ínfimos aos seus servidores, reduzindo-os ao nível
de mera subsistência, com o quê refrearia ao extremo seus dispêndios
na matéria; sem embargo, tais interesses não são interesses públicos,
pois estes, que lhe assiste prover, são os de favorecer o bem-estar da
Sociedade e de retribuir condignamente os que lhe prestam serviços.
(MELLO, 2007, p. 63/64)

Nesse momento, ao nos depararmos com o direito de arrecadação do Estado ser o


único interesse envolvido na extinção da punibilidade em crimes contra a Ordem Tributária,
questiona-se sobre a classificação desse interesse, como primário ou secundários, ou seja, se é
um legítimo interesse estatal, ou apenas um interesse secundário do Estado, da pessoa
jurídica.
Os estudos de Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO esclarecem tal dúvida, vez
que afirma:

As funções desempenhadas pelo Estado e seus delegados para a satisfação


desses interesses públicos primários, que se referem às necessidades da
própria sociedade, caracterizam as atividades-fim da Administração

226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Pública, que, por referirem-se diretamente aos administrados, conformam a


administração pública externa, ou extroversa. (MOREIRA NETO, 2006, p.
116, grifo nosso)

Ora, é nítido que arrecadação é essencial para o Estado, vez que é um dos meios para
sua sustentação e possibilidade de atender os anseios da sociedade.
Contudo, ela é uma atividade-meio, vez que o próprio tributo (o principal modo de
arrecadação do Estado, e a que nos interessa no momento) possui por finalidade “suprir os
cofres públicos dos recursos financeiros necessários ao custeio das atividades do Estado”
(MACHADO, 2007, p. 79).
Desta maneira, é correto afirmar que o direito à arrecadação estatal é um interesse
público secundário.
Pode parecer estranho ao início dizer que a atividade arrecadatória do Estado é uma
atividade-meio e de interesse secundário, vez que seria impossível à ele garantir e prover (em
alguns casos) todos os direitos fundamentais dos seus administrados.
Vale lembrar que o interesse público primário do Estado é exatamente garantir os
direitos de seus administrados, independente da maneira ou forma que consiga fazê-lo, vez
que ele possui inúmeros instrumentos para adquirir recursos financeiros e, o Estado, não pode
de maneira alguma sobrepor um interesse público primário para satisfazer um interesse
público secundário, conforme Celso Antônio Bandeira de MELLO (2007, p. 63) afirmou na
passagem a pouco referida “os interesses secundários do Estado só podem ser por ele
buscados quando coincidentes com os interesses primários”.
Desta forma, se o interesse público primário dos crimes contra a Ordem Tributária,
ou seja, a devida proteção ao sistema tributário nacional de atitudes fraudulentas e maliciosas,
está sendo sobreposto por um interesse público secundário, direito de arrecadação do Estado,
desfigurando e questionando a própria necessidade dos crimes contra a Ordem Tributária.
Com isso, fica claro que o interesse único e exclusivo de arrecadação do Estado é
ilegítimo no âmbito administrativo, não sendo considerado nem interesse público, quando
dissociado de um interesse público primário, o que exatamente ocorre no caso dos crimes
contra a Ordem Tributária, e não deve ser utilizado por nenhum ramo do direito, ainda mais
pelo Direito Penal.
Sobre a representação da coletividade pelo Estado na elaboração das leis, reconhece-
se que o Estado possui tal legitimidade para a essa elaboração, contudo remetemos ao que foi
dito na introdução do presente trabalho, em que as regras devem obediência e fundamentação
nos princípios, algo que foi totalmente quebrado no caso concreto.

227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Deve-se observar que não é apenas pela inexistência de principio fundamentador


para o instituto, mas também pelo fato de estar quebrando toda a lógica da proteção do
sistema tributário nacional através dos crimes contra a Ordem Tributária, vez que a extinção
da punibilidade nesses delitos exclui a finalidade deles, fazendo com que o Direito Penal
torne-se instrumental, quebrando o principio da intervenção mínima.

IV. TEORIA FISCAL APLICADA NO DIREITO PENAL – ALGUMAS


OBSERVAÇÕES RELEVANTES

O presente artigo poderia muito bem ser direcionado para uma conclusão sem o
tópico que ora se inicia, contudo, seria irresponsável por parte desse autor não comentar e
criticar a legislação e interpretação ofertada sobre os crimes contra a Ordem Tributária no
Brasil e no exterior.
Isso porque ao comparar a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes
contra a Ordem Tributária no Brasil com a legislação alemã, que possui um instituto similar
designado conceituado como “autodenúncia libertadora da pena”, Alaor LEITE3 em seu artigo
sobre o assunto demonstra que o direito penal no campo fiscal possui dois tipos de panos
teóricos.
A primeira teoria no direito penal tributário alemão é chamada de teoria fiscal por
Alaor LEITE (2011, p. 115) expondo que “busca justificar a existência e também delinear os
contornos da autodenúncia libertadora de pena nos crimes contra a Ordem Tributária com
base em critérios exclusivamente atinentes à necessidade de arrecadação fiscal”.
Já a segunda teoria é a chamada teoria propriamente jurídico-penal em que possui
como
“premissa fundamental a consideração de que, se de um lado o direito penal
tributário é um direito de superposição em relação ao direito tributário como
dizia Ataliba, de outro é inegavelmente ramo do direito penal e deve, então,
estar submetido aos princípios que informam a construção das categorias
jurídico-penais” (LEITE, 2011, p. 115).

A teoria fiscal no âmbito penal é claramente aceita pela legislação brasileira ao


prever a possibilidade pelo pagamento para a extinção da punibilidade, bem como é

3
LEITE, Alaor. Abolição da chamada autodenúncia libertadora de pena no Direito Penal
Tributário alemão. Breves observações por ocasião de uma recente e polêmica decisão. In: COSTA, Helena
Regina Lobo da. [coord] Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 19. vol. 90. Maio-jun./2011.

228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

demonstrada e aceita pelos Tribunais Pátrios, inclusive o Supremo Tribunal Federal.


O maior exemplo da aplicação da teoria fiscal é que o Supremo Tribunal Federal
considera como condição objetiva para a ação penal a necessidade do trânsito em julgado
administrativo, inclusive com influência para o inquérito policial e as medidas cautelares
penais, como exemplo nos julgados sobre o assunto4.
Inclusive tal posicionamento de opção pela teoria fiscal no âmbito do Direito Penal
em alguns momentos foi pacificada no Supremo Tribunal Federal com a Súmula Vinculante
nº 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, I a IV, da
Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Esse é um exemplo da aplicação da teoria fiscal explicitada por Alaor LEITE vez que
o crime contra a Ordem Tributária é autorizado no Brasil a criminalização pelo simples não
pagamento de tributos, desconsiderando a necessidade de um engodo, fraude ou simulação
contra o Fisco para caracterizar o seu delito, como visto na previsão dos tipos penais dos
crimes contra a Ordem Tributária.
Ora, essa é uma clara influência do pensamento exposto no âmbito do Direito
Tributário (teoria fiscal) influenciando a interpretação de institutos exclusivamente penais.
Na Alemanha, a Corte Suprema considerou a extinção da punibilidade pelo
pagamento em matéria penal-fiscal (autodenuncia libertadora da pena) como inaplicável, com
o fundamento de que uma pessoa não pode ser beneficiada por esse instituto apenas para um
caso específico, parcialmente, mas que deveria se valer da extinção da pena pelo pagamento
apenas se houvesse a “completa honestidade fiscal” (LEITE, 2011, p. 125), ou seja, somente
depois de não haver mais nenhuma pendência com o Fisco, mesmo acessórias ou que não
digam respeito ao crime investigado. Ou seja, para se valer de um instituto de cunho penal,
deveria quitar suas dívidas com o Fisco previamente, algo totalmente avesso à lógica do
Direito Penal.
À primeira vista se pode considerar a extinção da punibilidade pelo pagamento na
Alemanha um progresso para a teoria jurídico-penal, contudo na verdade foi um extremismo
da teoria fiscal vez que não houve na decisão da Corte Suprema Alemã uma análise de
conduta ou desvalor de ação, mas uma análise fiscal em uma esfera penal, em que foram
considerados as técnicas de fiscalização e cooperação fiscal internacional para “dificultar” o

4
STF, Pleno, Habeas Corpus 81.611, Relatoria Min. Sepúlveda Pertence. j. 10/12/2003. p. 13.05.2003;
STF, Primeira Turma, Habeas Corpus 83.414/RS, Relatoria Min. Joaquim Barbosa. j. 23;04.2004. p. 23.04.2004;
STF, Segunda Turma, Habeas Corpus 84.092, Relatoria Min. Celso de Mello. j. 22/06/2004. p. 03.12.2004; STF,
Segunda Turma, Habeas Corpus 90.957, Relatoria Min. Celso de Mello. j. 11/09/2007. p. 19.10.2007; STJ,
Habeas Corpus 89.023/MS, Relatoria Min. Jane Silva. p. 17.11.2008.

229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

acesso a benesse da extinção da punibilidade pelo pagamento (LEITE, 2011, p. 126).


Alaor LEITE conclui sobre a aplicação da teoria fiscal no Direito Penal que “sob a
égide da teoria fiscal, argumentos teóricos valem muito pouco e a troca de roupa daquela
teoria ocorre pelas mesmas razões que vestimos um casaco quando está frio e o retiramos
quando está calor: por alterações climáticas” (LEITE, 2011, p. 127) e ressalta ainda que “a
diferença da situação jurídica alemã em relação à brasileira é que, entre nós, o legislador tem
menos pudor em matéria de direito tributário” (LEITE, 2011, p. 127).
Assim, com essa observação sobre a grande influência da teoria fiscal no Direito
Penal no Brasil, seja no Poder Legislativo, seja no Poder Judiciário, podemos concluir que a
legislação brasileira em matéria penal-tributária não possui autonomia alguma da teoria fiscal
e torna-se muitas vezes um braço punitivo para cobrança de tributos, como claramente está
previsto no art. 2º, inc. II da Lei nº 8.137/1990, no qual se considera crime o “deixar de
recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na
qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

V. CONCLUSÃO

Como visto, os bens jurídicos tutelados pelos tipos penais contra a Ordem Tributária
em sentido mediato são de caráter supraindividual, defendendo a Ordem Tributária e, por
consequência, a Ordem Econômica.
Por outro lado, os bens jurídicos tributários tutelados em sentido imediato são de
caráter patrimonial (arrecadação) e institucional (fraude, dano e entre outros), sendo que a
tutela unicamente da arrecadação é considerada ilegítima de defesa pelo Direito
Administrativo, e, portanto, assim o deveria ser pelo Direito Penal.
Dessa forma, o aspecto que deve ser ressaltado não seria a busca pela
inconstitucionalidade dos crimes contra a Ordem Tributária por defenderem a arrecadação
tributária em última análise, mas chamar a atenção para aquele que é considerado o “patinho
feio” desses tipos penais: o sentido institucional do bem jurídico em sentido imediato.
Ora, tal sentido institucional não significa apenas e exclusivamente o desrespeito ao
ente estatal, é também o desrespeito à coletividade, à supraindividualidade dos bens jurídicos
tributários em sentido mediato.
O referido desrespeito e afronta à instituição do Estado e seu leviatânico Poder
Estatal é também uma afronta a toda a sociedade e aos outros indivíduos que contribuem

230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

regularmente com os tributos exigidos, ferindo inclusive outros princípios constitucionais de


cunho econômico.
Basta observar que ao cometer uma fraude para se beneficiar no campo tributário há
imediatamente um desequilíbrio entre o fraudador e todas as outras pessoas na mesma
situação jurídica.
Diante disso, há claramente uma ofensa aos mais diversos princípios tributários
como a igualdade tributária, capacidade contributiva, e até mesmo de ordem concorrencial
como a livre iniciativa e liberdade de concorrência.
Sabiamente o legislador adicionou esse “plus” no tipo penal dos crimes contra a
Ordem Tributária, pois é o elemento que distingue o sonegador de impostos daquele que
apenas não fez o recolhimento dos impostos, mas o mais importante ainda, esse “plus” da
fraude nos crimes contra a Ordem Tributária é exatamente a necessária conexão dos bens
jurídicos tributários em sentido imediato com os bens jurídicos tributários em sentido
mediato.
Diante disso, a terminologia dos bens jurídicos imediatos em sentido institucional é
incorreta, vez que traz a ideia de defesa unicamente do Estado, quando é na verdade um
sentido “supra-institucional”, um sentido supraindividual.
Dessa feita, o bem jurídico imediato dos crimes contra a Ordem Tributária vai ao
encontro do bem jurídico em sentido mediato, excetuando o art. 2º, inc. II da Lei nº
8.137/1990, em que ambos trazem uma alta carga do aspecto supraindividual em suas
composições.

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZAFFARONI, Eugênio Raul; e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997,

233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O TRABALHO ESCRAVO E A TUTELA PENAL: ANÁLISE ACERCA DO


DELITO DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO

Carolina Augusta Bahls Maranhão 


Douglas Bonaldi Maranhão 

RESUMO

Tem o presente trabalho a finalidade de apresentar aspectos críticos acerca do


trabalho escravo existente atualmente no Brasil, bem como fazer uma análise da
necessidade de tutela penal diante desta conduta para, em seguida, buscar a
compreensão do delito de redução à condição análoga à de escravo disposto no artigo
149 do Código Penal Brasileiro. Para tanto, buscar-se-á, através de um escorço
histórico, a compreensão do que se deve entender por trabalho escravo, para
posteriormente ser delimitada a abrangência da tutela penal, no intuito de coibir o
desenvolvimento de atividade laborativa em condições análogas à do que se entende
por escravidão. Nesta senda é que se espera contribuir de forma crítica para o melhor
entendimento histórico-social do trabalho escravo e, como consequência, a resposta
jurídico-penal apresentada pelo ordenamento jurídico na busca de reprimir a referida
conduta.

Palavras-chave: delito, dignidade da pessoa humana, trabalho escravo.


Bacharela em Administração de Empresas – UNOPAR. Bacharela em Direito – UNIFIL. Advogada.

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, área de concentração Direito Penal – UEM. Especialista em
Filosofia Política e Jurídica em Direito e Processo Penal – UEL. Professor de Direito Penal da UNIFIL,
PUC campus Londrina e UEL. Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná. Advogado.

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THE SLAVE LABOR AND PROTECTION CRIMINAL ANALYSIS ABOUT


THE CRIME REDUCTION TO THE CONDITION OF THE ANALOG SLAVE

ABSTRACT
This work has the purpose of presenting critical aspects about slave labor currently
exists in Brazil, as well as to analyze the need for protection against this criminal
conduct, to then seek the understanding of the crime of reduction to conditions
analogous to slave provisions of Article 149 of the Brazilian Penal Code. To do so, it
will look through a foreshortened historical understanding of what is meant by slave
labor, to be subsequently defined the scope of the penal protection in order to curb the
development of labor activity in conditions similar to what is meant by slavery. In this
vein, it is expected to contribute to a better understanding critical social-historical slave
labor and as a consequence the response submitted by the legal-criminal legal system in
seeking to restrain such conduct.

Keywords: crime, human dignity, slave labor.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO . 2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO ESCRAVO. 2.1 Leis


abolicionistas 3.NECESSIDADE DE TUTELA PENAL. 4 A TIPIFICAÇÃO DO
DELITO DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO 4.1 Bem jurídico
protegido. 4.2 Tipo objetivo e subjetivo. 4.3 Sujeitos. 4.4 Consumação e tentativa. 4.5
Formas equiparadas. 4.5 Causas de aumento de pena. 5. CONCLUSÃO.

1. INTRODUÇÃO

Não se pode atualmente deixar de identificar práticas que nos levam aos
tempos mais remotos e que deveriam apenas figurar no imaginário de cada pessoa. O
trabalho escravo ganha preocupação internacional, uma vez que não se restringe ao
território brasileiro, mas é prática comum em várias partes do mundo.
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise crítica acerca da atual
compreensão do tipo penal descrito no artigo 149 do Código Penal, tomando por base a
evolução dessa prática ao longo da históiria, a necessidade de utilização do Direito
Penal como forma de coibir esse tipo de conduta, visando proteger os bens jurídicos
liberdade e dignidade. Certo de que várias são as disciplinas que podem direcionar o
referido desiderato como as sociais, trabalhistas, econômicas, políticas etc., é através da
dogmática penal que se tentará indicar os diversos elementos que compõem este tipo
penal.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO ESCRAVO

Primeiramente, tem-se no presente trabalho a necessidade de compreender a


evolução da escravidão, ainda que de maneira perfunctória, uma vez que foram
utilizadas diversas formas de trabalho escravo, ao longo dos tempos e em diferentes
regiões do mundo, para que então possa ser alcançada a real situação brasileira, bem
como forças que devem ser despendidas a um combate certo e eficaz das situações em
que trabalhadores são obrigados a desenvolver a sua atividade em condições análogas à
de escravo.
Com esta compreensão, poder-se-á entender o quão reprovável se mostra a
conduta de redução à condição análoga à de escravo aclarando, assim, os motivos pelos
quais recebe a tutela jurídico-penal, ou seja, pela gravosidade da referida conduta,
despende-se a esfera do ordenamento jurídico com as consequência mais gravosas, uma
vez que as práticas que historicamente foram adjetivadas como desumanas não podem
figurar no mundo contemporâneo, onde o homem não pode ser meio para a consecução
de quaisquer fins.
A escravidão, como considerada na Antiguidade Clássica, especialmente
aquela instituída pelo Direito Romano que negava a condição de pessoa aos escravos,
reduzindo-os a coisas, havia sido erradicada há séculos. Durante a Idade Média puderam
ser percebidas grandes mudanças, sendo que as diferentes formas de organizações
sociais e políticas levaram a diferentes modos de exploração da força de trabalho.1
Durante o período feudal, em razão de a economia basear-se principalmente na
agricultura, o trabalho era exercido pelos servos da gleba, que não tinham a mesma
condição jurídica dos escravos, ou seja, a condição de “coisa”. Mas, como aqueles,
também não podiam dispor de sua liberdade, pois estavam presos à terra, eram também
obrigados a trabalhar exaustivamente, poderiam ser tão maltratados e encarcerados
como eram os escravos, sendo submetidos também a outras situações atentatórias como

1
Pode-se citar que “Nesse período, alguns historiadores afirmam que a escravidão desapareceu, dando
lugar à servidão. Contudo, apesar de ter predominado o sistema feudal, no qual se praticava a servidão, a
escravidão se manteve na Europa mediterrânea e na África. Nesse período, havia um intenso tráfico de
escravos promovidos pelos Turcos, mas, realmente, não se pode tratar da mesma situação fática” (Vito
Palo Neto 2008, p. 31).

236
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aquela em que o senhor da gleba poderia desfrutar da “noite de núpcias da serva que se
casasse” (BARROS, 2006, p. 54).2
Bom é dizer que a servidão começou a ser substituída, no final da Idade Média,
pelas corporações de ofício, com um início de profissionalização das atividades
laborais, mas logo se tornou outro meio de exploração da mão-de-obra. A vergonhosa
forma de exploração do homem pelo homem, ou seja, a mão-de-obra escrava ressurgiu
muitos séculos depois. Com o descobrimento da América, surge um novo ciclo de
escravidão, cuja exploração perdurou por volta de trezentos e cinquenta anos. O que
começou com a escravidão do negro africano, embora tenha se iniciado pelos árabes no
século nove, “adquiriu grande amplitude com a fixação dos primeiros entrepostos
portugueses na África Ocidental” (DAVIS apud PALO NETO, 2008, p.31), no início do
século XV.
Esse novo ciclo foi considerado como “o mais vasto sistema de escravidão
jamais organizado em toda a história. Até então, a servidão era consequência da guerra
ou de alguma forma de endividamento, mas a nova forma de escravidão praticada no
continente americano distinguiu-se nitidamente da antiga pelo seu caráter empresarial”
(COMPARATO apud PALO NETO, 2008, p. 32).
No Brasil, a escravidão decorre da descoberta do país pelos portugueses, que
inicialmente exploraram o trabalho do índio.3 “A mão-de-obra indígena foi um fator de
contribuição decisivo no desenvolvimento econômico da colônia e o escravismo
praticado levou a um efetivo genocídio do indígena de proporções incomparáveis”
(PEDROSO, 2006, p. 50).4

2
Corroborando a citada descrição Segadas Vianna, afirma que os servos “tinham o direito de herança de
animais, objetos pessoais e, em alguns lugares, o de uso de pastos, mas o imposto de herança cobrado
pelos senhores absorvia, de maneira escorchante, os bens dos herdeiros” (VIANNA, 2005. p. 29).
3
Vale ressaltar que, quando se fala em escravidão no período colonial, geralmente associa-se essa
escravidão à do negro, no entanto, esquece-se do índio, conforme pontua Jaime Pinsky (1998, p. 10): “É
comum encontrar em certa literatura histórica a idéia de que o índio era livre por vocação, enquanto o
negro ajustava-se melhor à escravidão. Nenhum homem tem vocação para ser escravo, assim como
nenhum ser humano nasceu para burro de carga, ou para servo, ou para operário superexplorado. Todos
nascemos para usufruir a vida não para produzir para que outros a usufruam graças ao nosso trabalho. È
um mito a idéia de que algumas pessoas nasceram para gozar a vida enquanto outras só têm talento para
trabalhar”.
4
Sobre esse malfadado genocídio vale ressaltar Manuela Carneiro da Cunha (apud PEDROSO, 2006, p.
50): “Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como conseqüência do que hoje se chama,
num eufemismo envergonhado, „o encontro‟ de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio
nunca visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e microorganismos mas cujos
motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que
se convencionou chamar de capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos e não uma deliberada política de
extermínio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir uma população que estava na casa dos
milhões em 1500 aos parcos 200 mil índios que hoje habitam o Brasil”.

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Após as ações iniciais de escravização do indígena, tem-se um direcionamento


à utilização do negro como mão-de-obra escrava. Assim, o negro foi trazido ao Brasil
“para preencher o papel de força de trabalho compulsório numa estrutura que se
organizava em função disso. A grande lavoura colonial não se preocupava em prover o
sustento dos produtores, mas em produzir para o mercado. Em razão disso, “a
„racionalidade‟ e a eficiência de sua organização só podiam ser avaliadas na medida em
que atingissem esses objetivos para os quais o escravo era fundamental” (PINSKY,
1998, p. 21).
A violação da dignidade humana e as torturas começavam ainda em terra. Os
negros eram aglomerados em depósitos, feitos de madeira ou pedra, e ficavam
aguardando a chegada do navio negreiro ao porto. Geralmente eram capturados em
tribos distintas, “praticantes de outras religiões, conhecedores de outras línguas” o que
dificultava a comunicação entre eles, evitando-se, assim, possíveis rebeliões (PINSKY,
1998, p. 26).
Para demonstrar o direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra e para
“materializar a solicitação da Igreja e, através da humilhação, reduzir o homem negro à
sua nova condição – de escravo – ele era, durante a viagem, marcado a ferro no ombro,
na coxa ou no peito. A praxe era também colocá-lo a ferros, ao menos até se perder de
vista a costa africana” (PINSKY, 1998, p. 28).
Os escravos, assim que desembarcavam em um dos portos de destino no
Nordeste, Norte ou no Rio de Janeiro, regiões consideradas como “áreas de grande
demanda de escravos nos séculos XVI e XVII”, eram vendidos. Essa venda poderia ser
realizada no próprio porto ou através de negociações diretas, ou ainda pela realização de
leilões. “A presença de intermediários - os chamados tratantes - só iria se afirmar com o
desenvolvimento da atividade aurífera em Minas Gerais. Esses comerciantes fariam o
papel de ponte entre o traficante que chega até o litoral e o futuro proprietário dos
escravos” (PINSKY, 1998, p. 31).
Vale frisar que nos dias atuais existem práticas semelhantes, pois os grandes
proprietários de terras que “pretendem utilizar a mão-de-obra forçada contratam os
gatos5, que são os recrutadores de trabalhadores. Esses aliciadores percorrem regiões
distantes, em que os ciclos agrícolas são diferentes dos do local onde irão trabalhar”

5
Entende-se por “gatos” os aliciadores de trabalhadores que serão submetidos à atividade laboral análoga
à condição de escravo. Trata-se de pessoas interpostas entre empregados e empregadores e, geralmente
mancomunados com esses, acobertam o vínculo empregatício.

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(SILVA; SILVA, 2006, p. 37), com falsas promessas de bom pagamento e boas
condições para trabalhar.
Os escravos, ao chegarem ao local de trabalho, eram acomodados em senzalas
que, de acordo com Jaime Pinsky, tratava-se de “construções bastante longas, sem
janelas (ou com janelas gradeadas), dotadas de orifícios junto ao teto para efeito de
ventilação e iluminação” (PINSKY , 1998, p. 38). Eram construídas geralmente de pau-
a-pique e cobertas por sapé, as camas se resumiam a um estrado com esteiras ou
cobertores e travesseiros de palha.6
Como se pode perceber além de toda a problemática existente quanto às
condições de desrespeito às pessoas que eram submetidas àquela forma de trabalho,
mais como um objeto do que propriamente um ser humano, também se identificava que
o sofrimento dispensado aos escravos e suas famílias transcendia a relação
trabalhador/empregador.
Atualmente, a escravidão contemporânea é encontrada principalmente no meio
rural brasileiro, e justifica-se em razão da estrutura agrária baseada no latifúndio e em
relações autoritárias de “coronelismo”. Os “grandes proprietários de terras no interior do
país ainda agem como senhores feudais, exercendo autoridade em sua área de influência
que desafia o estado democrático de direito” (PALO NETO, 2008, p. 34-35).

2.2 Leis Abolicionistas

Juntamente com a compreensão das características da escravidão ao longo dos


tempos, é de bom alvitre identificar também as insurgências contra esta forma de
degradação da condição humana através do desenvolvimento dessas práticas
laborativas. Em que pese os vários movimentos tanto por parte daqueles considerados
como escravos, quanto pela própria sociedade, há que se tecer algumas linhas a fim de
descrever os textos legais que buscavam a erradicação do trabalho escravo. Com a

6
As acomodações dos trabalhadores que vivem em condições análogas à de escravo, no meio rural
brasileiro, não são diferentes, como bem destacam Cristiane Sabino Silva e Renata Cristina de O. A. Silva
(2006, p. 40): “A senzala moderna pode ser assim chamada por possuir as mesmas características da
senzala do período colonial. São feitas de madeira, lona ou barro, em meio ao mato, para dificultar a
descoberta por agentes do Ministério do Trabalho. Também não possuem banheiro ou cozinha ou espaço
adequado para o descanso dos obreiros, como também não possuem, na maioria das vezes, ventilação
adequada ou iluminação. No local de trabalho, estão igualmente sujeitos às intempéries e à vigilância
ostensiva dos capatazes, sendo castigados quando não executam o trabalho corretamente, quando querem
fugir ou quando desrespeitam a lei do patrão”.

239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

promulgação das Leis abolicionistas, encontram-se respostas dadas a essas práticas,


figurando como forma de combate à escravidão.
As primeiras ideias contrárias à escravidão surgiram no pensamento Iluminista
do século XVIII. ”Se antes deste movimento a escravidão era vista como desígnio de
Deus, depois passou a ser encarada como uma obra do homem e, portanto, podia ser
revogada” (CASTRO, 2004, p. 394).
A luta pela abolição do trabalho escravo teve início na Inglaterra. Em 1807, o
Parlamento inglês aboliu o tráfico de escravos em seu território. Dessa forma, a
Inglaterra tornou-se “a paladina da emancipação dos escravos”, postura esta que
representava um marco para aquela época (CASTRO, 2004, p. 395).
O primeiro acordo para pôr fim à escravidão no Brasil foi firmado em 1810,
entre D. João e a Inglaterra, por pressão do Governo Inglês. Em 1815, no Congresso de
Viena “a Inglaterra conseguiu que D. João proibisse seus vassalos de comercializar
escravos ao norte da linha do Equador” (CASTRO, 2004, p.395).
Após a independência do Brasil, em 1827 outro compromisso foi firmado,
prevendo o fim do tráfico de escravos três anos após a ratificação do acordo. A partir de
então, o tráfico passou a ser tratado como pirataria (CASTRO, 2004, p.396).
No ano de 1831, o Brasil se comprometeu a eliminar definitivamente o
comércio de escravos de sua economia, sendo publicada uma lei que “declarava livres
os escravos vindos de fora do Império, visando, assim, ao fim do tráfico, que, na prática,
não ocorreu” (PALO NETO, 2008, p.37).
Ao contrário, nesse período houve um aumento de 85% no número de escravos
trazidos para o Brasil. Nunca tantos escravos foram traficados para o país. Foi cogitada
a hipótese de revogar a lei, já que na realidade não era cumprida (PALO NETO, 2008,
p.37). Mas a pressão inglesa não parou, e, após uma série de acordos descumpridos pelo
Brasil, foi sancionado o Bill Aberdeen, que permitiu à Marinha inglesa “o direito de
aprisionar qualquer navio negreiro e dava aos tribunais ingleses do vice almirantado o
direito de julgar os traficantes presos nestas incursões” (CASTRO, 2004, p. 397).
Toda essa pressão que o Brasil vinha sofrendo culminou na “elaboração de leis
que visavam, ao mesmo tempo, atender os interesses externos de extinção do tráfico e
garantir apoio interno, assegurando à grande propriedade a mão-de-obra que faltaria
com o fim da escravidão” (PALO NETO, 2008, p. 37).
A Lei nº 581, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, aprovada em 1851,
estabeleceu que as embarcações brasileiras, encontradas em qualquer parte, e as

240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

estrangeiras, encontradas nos portos ou mares territoriais brasileiros, ”tendo escravos a


bordo ou já desembarcados, seriam apreendidas e consideradas importadoras de
escravos” (CASTRO, 2004, p. 397-398).
Em 1871, surge a Lei nº 2040, conhecida como Lei do Ventre Livre ou dos
Nascituros, estabelecendo que seriam livres os filhos de escravos que nascessem a partir
da data da lei. Essas crianças ficariam com os senhores até os oito anos de idade, depois
poderiam ser entregues ao governo em troca de uma indenização ou ficariam “libertos”
na propriedade, até os vinte e quatro anos, devendo trabalhar para seu sustento
(CASTRO, 2004, p. 401).
Após a aprovação dessa lei, iniciaram-se debates mais acalorados acerca do
abolicionismo. Esse passou a ser o assunto do momento, “ser abolicionista era ser
identificado como moderno, favorável ao progresso e à civilização. Durante o
Ministério Dantas, foi apresentado “um projeto de lei para libertação de escravos
idosos”, o projeto não causava grandes consequências, “libertava os pouquíssimos
escravos que conseguiam chegar a seis décadas de vida” (CASTRO, 2004, p. 402-403).
A Lei Saraiva-Cotegipe, mais conhecida por lei dos Sexagenários, foi aprovada
em 1885, preconizando a liberdade para escravos maiores de 60 anos completos antes e
depois da data em que entrasse em execução a lei. Porém, ficariam obrigados a título de
indenização pela sua alforria, a prestar serviços pelo espaço de três anos aos seus
senhores. A decisão foi considerada de pouco efeito, pois a expectativa de vida do
escravo não ultrapassava os quarenta anos (CASTRO, 2004, p. 403).
Vale ressaltar que a alforria para os maiores de sessenta anos, na verdade, era
um presente para os proprietários, haja vista que estes ex-escravos já se encontravam
velhos e inválidos, para os intentos dos proprietários que se “libertavam” do fardo de ter
que “garantir alimentação e moradia a pessoas imprestáveis aos fins econômicos de seus
senhores” (PEDROSO, 2006, p. 61).
A escravidão foi abolida formalmente em 1888, com a promulgação da Lei
Áurea, pela Princesa Isabel, colocando termo ao direito de propriedade de uma pessoa
sobre a outra. Mas a situação dos trabalhadores não melhorou, como ensina Eliane
Pedroso (2006, p. 67): “Sem um planejamento político que viabilizasse a integração da
grande massa de ex-escravos necessitados de trabalho remunerado e permanecendo as
melhores áreas de terra cultiváveis no domínio dos senhores de engenho, a vida do novo
trabalhador era livre e remunerada, porém submetida às condições de trabalho e
remuneração encontráveis [...]”.

241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Atualmente, embora proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro, e


combatido por diversos órgãos públicos como privados7, algumas características
daquela relação de exploração persistem, ainda que de forma dissimulada8, ou seja, tem-
se o trabalho escravo com contorno modernos, que diferenciam em parte das práticas
antigas, como pode ser percebido pela própria tipificação constante no artigo 149 do
Código Penal brasileiro, onde a conduta proibida é a redução do trabalhador à uma
condição análoga à de que eram submetidos os antigos escravos.
Esta conduta criminosa de redução de trabalhadores à condição análoga à de
escravo, descrita no artigo 149, do Código Penal, teve substancial alteração feita pela
Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que acabou por ampliar as formas e os meios
pelos quais as condutas podem ser subsumidas ao tipo legal.
Pelas diretivas aqui implementadas, “pode-se concluir que o trabalho escravo
contemporâneo é uma realidade cruel que ainda assola o país, mostrando pessoas
privadas de sua liberdade de diversos modos. Vale ressaltar que o escravizador não os
priva apenas da liberdade, mas também não respeita direitos mínimos para manter a
dignidade humana dos trabalhadores, que, por diversas vezes, são encontrados em
condições piores que a dos escravos no período colonial” (SALADINI; MARANHÃO,
2009, p. 141), motivos estes que justificam uma reação por parte do ordenamento
jurídico, com a utilização da tutela penal como forma de estancar tais práticas, como a
seguir será abordado.

3. NECESSIDADE DE TUTELA PENAL.

7
Quanto às Políticas de Combate ao Trabalho escravo vale citar Ana Paula Sefrin Saladini e Carolina
Augusta Bahls Maranhão, que abordam a atuação de diversas frentes de combate ao trabalho escravo
como o Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Organização Internacional do
Trabalho e Comissão Pastoral da Terra (2009, p. 146-150).
8
Como Ensina Eliane Pedroso (2006, p. 69): “Os elementos desta antiga e desproporcional relação
permanecem quase intactos através dos tempos, ainda que suas formas sejam cada vez mais dissimuladas.
A proibição de largar definitivamente o trabalho no momento desejado, a exploração aviltante da força de
trabalho humana, a submissão aos maus-tratos e à absoluta falta de higiene, o constrangimento físico ou
moral e a sujeição a condições indignas, estão ainda bem presentes. A violência vibra tão intensamente
quanto o antigo sistema escravocrata. Atualmente, também são executados castigos, agressões e até
homicídios, tudo com a finalidade de disciplinar o escravo rebelde e também os demais em uma
verdadeira ameaça indireta”.

242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Tem-se, atualmente, como posicionamento majoritário da doutrina, que o


Direito Penal tem a função primordial de proteção de bens jurídicos que sejam
essenciais à coexistência e desenvolvimento do homem. “Para cumprir tal desiderato,
em um Estado democrático de Direito, o legislador seleciona os bens especialmente
relevantes para a vida social e, por isso mesmo, merecedores da tutela penal” (PRADO,
2013, p. 70).9
Desta feita, há que se analisar o merecimento dos bens jurídicos que são
agredidos através da conduta descrita no artigo 149 do Código Penal brasileiro, com o
escopo de compreender se a referida tipificação é condizente com as premissas exigidas
pela tutela penal, bem como, se essa tipificação cumpre com o seu intento dentro da
realidade fática.
Assim, em que pese este ponto ser analisado à frente, cumpre inicialmente
levantar que o crime de redução à condição análoga à de escravo, acaba por atentar
contra a liberdade pessoal, bem como, contra a própria dignidade da pessoa humana. O
primeiro bem através da privação do seu direito de ir e vir (status libertatis), sendo o
segundo pelas condições a que ficam submetidos tais trabalhadores, que pela diretiva do
dispositivo penal (condições análogas à de escravo) já remete o intérprete a
compreender tal situação como a colocação do trabalhador em condições sub-
humanas.Neste sentido, cumpre analisar esses bens jurídico-penais para uma melhor
compreensão e justificação da sua proteção pela tutela penal, especificamente pela
conduta descrita no artigo 149 do Código Penal.
Mesmo que ao longo da história da civilização, tente-se justificar a escravidão,
em nenhum momento ela deveria ter sido legítima, ou juridicamente aceita. Mesmo que
as relações e o tipo de sociedade tentassem provar o contrário, o ser humano sempre foi
o mesmo, sempre teve “alma”, independente de sua cor, raça, etnia ou religião e, por
isso, a coisificação do ser humano será sempre algo contrário à natureza humana.
A ideia de dignidade vem da expressão latina dignitas que significa valor
intrínseco, prestígio, mérito, qualidade, estima, nobreza, ou seja, aquilo que merece
respeito, consideração. Pode-se afirmar que a dignidade humana surge no mundo
ocidental através da doutrina cristã, por meio da vinculação à ideia da criação e da ação

9
Nesse sentido: CEREZO MIR, José. Derecho Penal: parte general. São Paulo: RT; Lima, PE: ARA
Editores, 2007, p. 25 e ss.; LUIZ. Luisi. Princípios constitucionais penais. 2. ed. rev. e aum. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 168. Vale citar que a referida tutela deverá estar sob a égide dos
princípios fundamentais da legalidade, da personalidade e da individualização da pena, da humanidade,
da culpabilidade da intervenção mínima e da insignificância. (PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e
Constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 65-70).

243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

divina. Os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Sendo assim,
possuem uma igualdade essencial. Para muitos, esse é considerado como o fundamento
da dignidade humana (NOVELINO, 2008, p. 26).
Oportuno se torna dizer que a dignidade humana não é um direito outorgado
pelo ordenamento jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano, pelo
simples fato de ser humano, independentemente de raça, cor, religião, origem, idade ou
condição social.10 Cabe ao Estado garantir, preservar, proteger e principalmente prover
os meios necessários para a efetivação da dignidade humana.11
Dispositivos internacionais demonstram a importância do reconhecimento da
dignidade da pessoa humana. O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos (1948)
promulga que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. A
Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993,
concluiu que “todos os direitos humanos têm sua origem na dignidade e no valor da
pessoa humana”. E a Constituição da República Federativa do Brasil tem como um de
seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Dessa forma,
pode-se concluir que a dignidade humana deve nortear o ordenamento jurídico
(NASCIMENTO, 2009, p. 116).
Nessa esteira, o constituinte de 1988, consagrando a dignidade humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito, “reconheceu categoricamente que é o
Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, 2008, p.
168-169).
O reconhecimento dos direitos humanos fundamentais tem como base a ideia
de dignidade humana, e, através do cumprimento desses direitos, a dignidade pode ser
promovida e respeitada. Nesse sentido, “os direitos fundamentais são os pressupostos
elementares da vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a
comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é

10
Vale citar: “O mais importante fundamento constitucional da República Federativa do Brasil, a nosso
ver, é sem dúvida, a dignidade. Dela decorre todo o raciocínio jurídico interpretativo. Queremos dizer
com isso que o intérprete e o aplicador da lei, bem como todo e qualquer operador do Direito , e ainda o
legislador e o administrador do Executivo, devem ter em mente, para a prática de seus atos, esse
fundamento”. (SIQUEIRA JUNIOR, Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de.
Direitos humanos e cidadania. São Paulo: RT, 2010, p. 144)
11
Nas palavras de Luiz Regis Prado: “é possível asseverar que a dignidade da pessoa humana pode
assumir contornos de verdadeira categoria lógico-objetiva ou lógico-concreta, inerente ao homem
enquanto pessoa. É, pois, um atributo ontológico do homem como ser integrante da espécie humana –
vale em si e por si mesmo”. (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – volume 1 – parte
geral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 165)

244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

livre se for composta por homens livres e dignos” (ANDRADE apud NOVELINO,
2008. p, 26).

Por tais razões, Flávia Piovesan (2006, p. 164) afirma que o trabalho escravo
“se manifesta quando direitos fundamentais são violados, como direito a condições
justas de um trabalho que seja livremente escolhido e aceito”, e ressalta ainda que o
trabalho escravo “surge como a negação absoluta do valor da dignidade humana, da
autonomia e da liberdade, ao converter pessoas em coisas e objetos”.
Em virtude dessas considerações, conclui-se que a exploração do trabalho
escravo coíbe o exercício de uma vida digna, sob todos seus aspectos, ou seja, o
trabalho escravo impossibilita o acesso à saúde, à educação, à moradia (uma vez que
esses trabalhadores quando resgatados estão em péssimas condições e em alojamentos
precários), pois esses humildes trabalhadores são reduzidos ao status de “coisa”.
Ressalta-se ainda que, embora a prática do trabalho escravo seja vedada por
inúmeros tratados e convenções internacionais já ratificados, e que a Constituição
Federal do Brasil tenha como fundamento a dignidade humana e como objetivos
fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a erradicação
da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, a concretização desses
objetivos tem encontrado diversos obstáculos.
Há que se aventar também a afronta realizada à liberdade do trabalhador, uma
vez que com a redução à condição análoga à de escravo, além da afronta à dignidade da
pessoa humana, tendo em vista as condições a que são submetidos os trabalhadores,
tem-se também uma afronta ao status libertatis, uma vez que para o desenvolvimento
dessas atividades laborativas, são impostos obstáculos ao seu direito de ir e vir.
Como mecanismos a impedir sua ocorrência, inúmeros são os dispositivos que
visam proteger a liberdade do cidadão, em suas mais diversas formas. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 define, no artigo 4º, a liberdade como “poder
fazer tudo o que não prejudique a outrem: em conseqüência, o exercício dos direitos
naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos demais membros da
sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados
pela lei” (DECLARAÇAO, 1789, p.1).
De igual forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
proclama os ideais de liberdade. O artigo I contempla que “todos os homens nascem
livres e iguais em dignidade e direitos”; o artigo II, que “todo homem tem capacidade

245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

para gozar os direitos e liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de


qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”; o artigo
III, que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; e o artigo
IV, que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de
escravos serão proibidos em todas as suas formas” (ONU, 2009).
Por tais razões observa-se que o trabalho escravo, em dias atuais, é um
verdadeiro obstáculo à concretização das conquistas humanas, ferindo princípios
basilares da evolução da sociedade, cuja vida humana passa a ser um instrumento para
atingir determinado fim, restando mais do que cristalina a necessidade da intervenção da
tutela penal, com o fim de coibir esta odiosa prática.

3.3 A Tipificação do Crime de Redução à Condição Análoga à de Escravo no


Ordenamento Jurídico-penal Brasileiro

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a principal


característica de trabalho escravo é a falta de liberdade, e as quatro formas mais comuns
do regime se apresentar são: “servidão por dívidas; retenção de documentos; dificuldade
de acesso ao local onde o trabalhado se desenvolve e a presença de pessoas armadas
fiscalizando as atividades envolvidas”. Essas formas estão previstas no artigo 149 do
Código Penal (PAIM, 2009, p. 22).
O trabalho em condições análogas à de escravo é reconhecido, atualmente, não
só quando há a restrição da liberdade do trabalhador, mas também quando há o
desrespeito “ao atributo maior do ser humano que é a sua dignidade”, quando lhe é
negado um conjunto mínimo de direitos que a “OIT convencionou denominar trabalho
decente, e que são os Direitos Humanos específicos dos trabalhadores” (BRITO FILHO,
2006, p. 126).
A Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, alterou de forma significativa o
artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CP), que passou a dispor o seguinte:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer


submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer
sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de
dívida contraída com o empregador ou preposto:

246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da


pena correspondente à violência.
1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se
apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com
o fim de retê-lo no local de trabalho.
2° A pena é aumentada de ½ (metade), se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
origem.

Com a alteração do artigo, que anteriormente possuía um tipo penal aberto,


uma vez que não apresentava condicionantes para a consecução do fim almejado,
passou-se a adotar um tipo penal fechado. O dispositivo prevê quatro hipóteses de
tipificação do crime: sujeição alheia a trabalhos forçados; sujeição alheia à jornada
exaustiva; sujeição alheia a condições degradantes de trabalho; restrição, por qualquer
meio, da locomoção alheia em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto. Condutas estas que serão abordadas de maneira específica à frente.

3.3.1 Bem Jurídico Protegido

Como já citado acima, a referida conduta merece ser tutelada pela esfera penal,
uma vez que se mostra atentatória à liberdade e dignidade da pessoa humana, estes os
bens jurídicos aqui protegidos12. Neste sentido, classifica-se como delito pluriofensivo,
pois é possível perceber claramente que a ofensa recai sobre os dois bens jurídicos
penalmente relevantes acima citados, uma vez que a sua liberdade é cerceada, bem
como as condições de trabalho a que é submetido a vítima atinge diretamente a sua
diginidade.
Assim, com o disposto no artigo 149 do Código Penal, tutela-se a liberdade
individual, ou seja, o status libertatis, garantido pela Constituição Federal. De acordo
com Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 425), protege-se a liberdade “sob aspecto ético-
12
Construindo um conceito acerca do que se deve entender por bem jurídico, ensina Luiz Regis Prado
que: “o bem jurídico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto
social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o
desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido. E segundo a concepção aqui
acolhida, deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico (Wertbild) vazado na Constituição e
com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito” (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito
Penal Brasileiro – volume 1 – parte geral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013)

247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

social, a própria dignidade do indivíduo”. O autor ressalta que reduzir alguém à


condição análoga à de escravo, fere, em especial, o princípio da dignidade humana,
“despojando-o de todos os seus valores ético-sociais, transformando-o em res, no
sentido concebido pelos romanos”.
Em sentido semelhante, Aníbal Bruno (apud BITENCOURT, 2011, p. 425-
426) aduz que:

[...] referido fato delituoso não suprime determinado aspecto da


liberdade, mas „atinge esse bem jurídico integralmente,
destruindo o pressuposto da própria dignidade do homem, que
se opõe a que ele se veja sujeito ao poder incontrastável de outro
homem, e, enfim, anulando a sua personalidade e reduzindo-o
praticamente à condição de coisa, como do escravo romano‟ [...]

Ainda sobre o tema, Luiz Regis Prado (2013, p. 349) assevera:


O indivíduo é posto sob o domínio de outrem, que pode dele
livremente dispor. Não se suprime, in casu, uma parcela da
liberdade pessoal. Ao contrário, esse bem jurídico é
integralmente comprometido, visto que a sujeição de alguém ao
poder absoluto do agente implica afronta insanável ao princípio
da dignidade da pessoa humana, de índole constitucional (art.1.º,
III, CF). Reduzir alguém à condição análoga à de escravo
importa anulação completa da personalidade. O homem é
transformado em coisa (res), submetido ao talante do agente. A
nota característica do delito insculpido no artigo 149 do Código
Penal é a redução da vítima a um estado de submissão física e
psíquica.

Como se observa, protege-se não somente a liberdade do indivíduo, mas


também sua dignidade, direitos esses que figuram como corolário da própria existência
do ser humano, de acordo com a condição humana que a ele é inerente e que jamais
pode ser desrespeitada, bem como representam bases infranqueáveis de um Estado
democrático Social de Direito.

3.3.2 Sujeitos Ativo e Passivo

Por se tratar de crime comum, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sem
restrições, uma vez que o tipo penal não exige qualquer condição pessoal específica.
Vale ressaltar que no caso de o sujeito ativo ser funcionário público, poderá ser
configurado o crime de abuso de poder descrito no artigo 350 do Código Penal

248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

(BITENCOURT, 2011, p. 426). Quanto ao sujeito passivo do delito, também pode


figurar qualquer sujeito, independente de raça, idade, origem, sexo, condição cultural ou
capacidade jurídica, independentemente da capacidade de autodeterminação da pessoa
quanto as circunstâncias a que será submetida (PRADO, 2013, p. 349)13.
Importante citar o posicionamento Cezar Roberto Bitencourt ao afirmar que
com alteração do artigo 149 do CP, há que se levar em consideração a relação existente
entre empregador e empregado, pois “somente pode ser sujeito passivo desse crime
quem se encontrar na condição de contratado, empregado, empreiteiro, operário (enfim,
trabalhador) do sujeito passivo”. É indispensável a existência de relação ou “vínculo
trabalhista” entre os sujeitos ativo e passivo, para que se configure o tipo penal
(BITENCOURT, 2011, p 427).

3.3.3 Tipicidade Objetiva e Subjetiva

Antes de adentrar aos pontos específicos da tipicidade objetiva e subjetiva, é de


bom alvitre dividir a compreensão de quais condutas estão descritas pela norma penal.
Tem-se no caput a descrição nuclear do que se deve entender como norma do artigo
149, caput do Código Penal, sendo que as hipóteses descritas no artigo 149, § 1º, I e II
do Código Penal trazem as formas equiparadas de redução à condição análoga à de
escravo, tema que será abordado em tópico específico.
A tipicidade objetiva, que é composta pelos elementos que integram a
descrição legal do tipo penal, sendo que, na disposição do caput, do artigo 149, tem-se
“reduzir alguém à condição análoga à de escravo”. Nessa hipótese o “indivíduo é posto
sob o domínio de outrem, que pode dele livremente dispor” (PRADO, 2013, p. 349).
Essa redução à condição análoga à de escravo acaba por afrontar a personalidade da
vítima, anulando-a por completo, e, por consequência, atenta contra a dignidade da
pessoa humana.
Não obstante as diversas situações concretas possíveis de serem encontradas,
traço comum a esse ato é o de colocar a vítima “a um estado de submissão física e
psíquica” (PRADO, 2013, p. 349). Faz-se referência à redução à condição análoga à de
escravo, ou seja, coíbe-se a colocação de pessoa em situação semelhante à de escravo,
pois o escravo, historicamente, como já citado, era despido de direitos como a liberdade

13
Neste sentido: COSTA JR. Paulo José da. Curso de Direito Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
426.

249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

pessoal, figurando mais como objeto do que propriamente um ser humano (podendo ser
comprado ou vendido, impedido de se ausentar do local de trabalho, tendo que contrair
dívidas com a pessoa que o submete a essa condição, etc.).
Nesse sentido ensina Cezar Roberto Bitencourt (2011, p 427) que:

Os meios ou modos para a prática do crime são os mais variados


possíveis, não havendo qualquer limitação legal nesse sentido; o
agente poderá praticá-lo, por exemplo, retendo salários,
pagando-os de forma irrisória, mediante fraude, fazendo
descontos de alimentação e de habitação desproporcionais aos
ganhos, com violência ou grave ameaça, etc.

A primeira hipótese, que completa a diretiva do caput do artigo 149 do Código


Penal, é a de “submeter” alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, ou seja,
sujeitando a pessoa a trabalhar contra a sua vontade ou a realizar atividade esgotante,
além do que se entende por aceitável ao trabalhador médio.
A segunda conduta elencada é por meio da sujeição do trabalhador à atividade
laborativa degradante. Deve-se entender por trabalho em condições degradantes “aquele
em que não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do
trabalhador” (BRITO FILHO, 2006, p. 132).
A terceira hipótese é descrita por meio da restrição, de qualquer forma, do
direito de locomoção do empregado, por dívida contraída com empregador ou
responsável, ou seja, fica impossibilitado o trabalhador em seu direito de ir e vir, pela
dívida contraída no local de trabalho, ficando o pagamento desta como condição para
que possa se deslocar para onde queira. Vale ressaltar que atualmente essa hipótese
pode ser identificada com frequência, principalmente no meio rural brasileiro, motivo
pelo qual se faz necessário um estudo mais detalhado, o que será feito adiante, em
tópico específico.
O tipo subjetivo que compõe as ações descritas no caput do artigo 149 é
representado pelo dolo direto ou eventual, sendo que o primeiro consiste “na vontade
livre e consciente de subjugar determinada pessoa, suprimindo-lhe, faticamente, a
liberdade, embora esta remanesça, de direito” (BITENCOURT, 2011, p. 428). Já o
segundo tem a previsibilidade do resultado e a realização da conduta, assumindo o risco
de produção desse resultado, sendo, por fim, a aceitação da consumação do delito.
Vale lembrar que o consentimento do ofendido não afasta a ilicitude, pois “o
estado de liberdade integra a personalidade do indivíduo”, portanto, é direito

250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

indisponível. Mesmo que o sujeito passivo concorde com a inteira supressão de sua
liberdade pessoal, não há a exclusão do delito, uma vez que “isso importaria em
anulação da personalidade” (PRADO, 2013, p. 348).14

3.3.4 Consumação e Tentativa

O delito, quanto às condutas descritas no caput, consuma-se quando a vitima é


efetivamente reduzida à condição análoga à de escravo por um certo período. Trata-se
de delito permanente, “cuja execução se protrai ao longo do tempo, perdurando
enquanto a vítima estiver sujeita ao controle exercido pelo sujeito ativo”. A posterior
libertação da vítima não descaracteriza o delito (PRADO, 2013, p. 351). Admite-se a
tentativa, como demonstra Luiz Regis Prado, “verificando-se quando o agente pratica
atos de execução a fim de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, mas não
logra êxito por circunstâncias alheias à sua vontade”. Continua o autor através de um
exemplo: “É o que ocorre, por exemplo, se o sujeito ativo for preso em flagrante delito
quando transportava trabalhadores para a sua propriedade, onde iriam servi-lo por
tempo indeterminado, sem poder retornar” (PRADO, 2013, p. 351), caracterizando,
assim, que o crime não se consumou por questões alheias à sua vontade.

3.3.5 Formas Equiparadas

A Lei n. 10.803/2003 introduziu formas equiparadas de redução à condição


análoga à de escravo (art. 149, § 1º, I e II), determinando que incorre nas mesmas penas
quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do


trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se
apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com
o fim de retê-lo no local de trabalho.

Convém ressaltar que, diferentemente do caput, as formas equiparadas exigem,


além do dolo, o elemento subjetivo do injusto, “consistente no especial fim de agir -
com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho” (PRADO, 2013, p. 352), ou seja,
14
Neste sentido: COSTA JR. Paulo José da. Curso de Direito Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
426.

251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

há que se debruçar o intérprrete na finalidade além de tão somente realizar o elementos


objetivos do tipo, identificando o desiderato de manter o trabalhador no local de
trabalho.
O delito consuma-se “com o cerceamento do uso de qualquer meio de
transporte”, bem como com a vigilância ostensiva ou “com o assenhoramento de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador“ (PRADO, 2013, p. 352). Nas formas
equiparadas, também se admite a tentativa.

3.3.6 Causas de Aumento de Pena

A pena é aumentada pela metade se o crime for cometido contra criança ou


adolescente, ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (art.
149, § 2º, I e II, CP).
O Estatuto da Criança e Adolescente (Lei n. 8069/90) considera criança a
pessoa até doze anos incompletos, e adolescente aquele entre doze a dezoito anos. Sobre
o assunto Luiz Regis Prado (2013, p. 352) aduz que:

Trata-se de uma majorante que atua na medida do injusto,


implicando maior desvalor da ação, já que a qualidade da vítima
afasta a possibilidade de uma efetiva reação à ação delituosa e,
conseqüentemente, aumenta a probabilidade de produção do
resultado. O aumento do desvalor da ação, in casu, está
lastreado não apenas na suposta vulnerabilidade da vítima, mas
também na acentuada periculosidade da conduta.

Haverá também aumento da pena quando o crime é cometido por motivo de


preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Nesse caso, o aumento justifica-se
devido “a maior reprovabilidade pessoal da conduta” (PRADO, 2013, p.352), atuando
assim em uma maior magnitude de culpabilidade.
Sobre a majorante, Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 434) comenta:

[...] Parece que há necessidade congênita do legislador brasileiro


em demonstrar que não é preconceituoso, pulverizando com
punições especiais não apenas o Código Penal, como outros
diplomas legais repressivos, chegando a discriminar setores da
minoria, sob argumento de pretender beneficiá-los. Contudo,
para que essa majorante específica se faça presente é
indispensável que seja orientada pelo especial fim de
discriminar o ofendido por razão da raça, cor, etnia, religião ou

252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

origem (elemento subjetivo especial do injusto), a exemplo do


que acontece com a injuria preconceituosa ou discriminatória
[...].

A citada majorante atua sobre a magnitude da culpabilidade, identificando-se


maior reprovabilidade pessoal pela conduta do agente.

4. CONCLUSÃO

Com base na pequisa realizada, tem-se que a ideia de trabalho escravo mudou
ao longo dos tempos, não obstante a sua sempre caracterísitca desumanda. Isso por
conta da total desconsideração da pessoa humana que não pode ser coisificada, sob pena
de a própria civilidade restar comprometida, uma vez que o homem é o destinatário
final de todo e qualquer ato, nunca podendo ser um meio para a consecução de
quaisquer fins.
Vale ressalar que a dignidade é algo intrínseco ao homem enquanto ser,
representando princípio basilar de um Estado democrático social de Direito,
representando direito infranqueável do cidadão, sendo que no ordenamento jurídico
brasileiro figura como fundamento da República.
Não obstante a identificação dos malefícios da escravidão ao longo da história,
ainda hoje tal conduta é realizada, vinculando-se principalmente ao intento de
empregadores que se utilizam do homem, visando tão somente o aumento da sua
lucratividade. Dessa forma, o ordenamento jurídico busca coibir essas condutas através
de vários dispositivos legais, sendo que no presente trabalho, buscou-se compreender
melhor o tipo penal disposto no artigo 149 do Código Penal.
Em que pese o merecimento da proteção penal através do tipo penal: redução a
condição análoga à de escravo que protege tanto a liberdade como a dignidade do
trabalhador, há que se levantar a dificuldade de se desenvolver as políticas públicas
necessárias para se coibir tal prática, tema este que não representou a base no presente
estudo, mas que influencia sobremaneira a ineficácia das tutelas jurídicas que visem à
proteção do trabalhador, seja em área rural ou urbana.

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256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

RETROATIVIDADE BENÉFICA OU LEX TERTIA? UM ESTUDO SOBRE O


CONFLITO DE LEIS NO DELITO DE TRÁFICO DE DROGAS.

BENEFICIAL RETROACTIVITY OR LEX TERTIA? A STUDY ON THE


CONFLICT OF LAWS IN THE CRIME OF DRUG TRAFFICKING

Benedicto de Souza Mello Neto1


http://lattes.cnpq.br/3556862559458054

Renê Chiquetti Rodrigues2


http://lattes.cnpq.br/3046870280940708

RESUMO
O presente trabalho objetiva estudar o problema do conflito de leis penais no tempo
envolvendo o crime de tráfico de drogas no ordenamento jurídico brasileiro. A nova Lei de
Drogas (Lei n.º 11.343/06) determinou um tratamento mais gravoso ao traficante do que a
legislação anterior (Lei n.º 6.368/76), aumentando-se a pena mínima abstratamente cominada
no tipo penal. Conjuntamente, inovou no ordenamento jurídico ao prever uma causa de
diminuição de pena para determinados casos de traficância. Desta sistemática, surge o
questionamento acerca da possibilidade ou da impossibilidade da retroação da minorante
mantendo-se intacta a pena abstrata do diploma legal anterior, por ser mais benéfica do que a
estipulada na nova lei. Surgiram duas correntes teóricas no âmbito judicial visando resolver o
problema proposto. Este artigo analisa o posicionamento dessas duas correntes, expondo a
argumentação desenvolvida por cada uma delas.
PALAVRAS-CHAVE: CONFLITO DE LEIS; LEX TERTIA; LEI PENAL NO TEMPO;
EXTRA-ATIVIDADE LEGAL; TRÁFICO DE DROGAS.

ABSTRACT

1
Mestre em Direito Supraindividual pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), área de concentração em
Direito Penal. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenador da
Especialização em Direito e Processo Penal da Universidade Estadual de Londrina. Professor de Direito Penal
Econômico e Tributário na Especialização em Direito e Processo Penal da Universidade Estadual de Londrina
Professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Estadual de Londrina e na Faculdade Catuaí.
Advogado Criminal.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); atualmente cursa especialização em
“Filosofia Moderna e Contemporânea” pela mesma instituição e especialização em “Direito Constitucional
Contemporâneo” pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC). Advogado Criminal.

257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

This work aims to study the problem of conflict of penal laws in time involving the crime of
drug trafficking in the Brazilian legal system. The new Drug Law (Law n.º 11.343/06)
determined a more severe penalty to the drug dealer than the previous legislation (Law n.º
6.368/76), increasing the minimum penalty abstractly restraint applied by the offense.
Together, innovated in the legal system by providing a cause of reduced penalty for certain
cases of drug trafficking. From this systematic, arises the question about the possibility or
impossibility of the retroactivity of the cause of reduced penalty keeping intact the abstract
penalty of the previous statute, to be more beneficial than that stipulated by the new law. Two
theoretical positions have emerged in the courts to solve the proposed problem. This article
analyses the positioning of these two currents, exposing the arguments of each one.
KEYWORDS: CONFLICT OF LAWS; LEX TERTIA; CRIMINAL LAW IN TIME;
EXTRA-LEGAL ACTIVITY; DRUG TRAFFICKING.

INTRODUÇÃO
O advento da Lei n.º 11.343/06, popularizada como nova Lei de Drogas,
despertou vários debates no âmbito jurídico-penal brasileiro. Alguns destes debates se
encontram relativamente superados, como o da (des)criminalização do delito de porte de
drogas para uso pessoal e a possibilidade da conversão da pena privativa de liberdade pelas
restritivas de direitos3 nos delitos de tráfico de entorpecentes. Contudo, nem todos os debates
suscitados por tal diploma legal se encontram plenamente solucionados.
Neste artigo pretendemos abordar um debate ocasionado pela respectiva lei e
ainda não plenamente pacificado nos tribunais pátrios, especialmente nas cortes superiores:
trata-se da (im)possibilidade da aplicação da minorante prevista no §4º do artigo 33 da Lei n.º
11.343/06 (nova Lei de Drogas) aos crimes cometidos sob a vigência da Lei n.º 6.368/76
(antiga Lei de Tóxicos). O texto da antiga Lei n.º 6.368/76 tipificava o delito de tráfico de
entorpecentes em seu artigo 12 cominando pena abstrata de 3 a 15 anos e multa, enquanto a
redação da nova Lei n.º 11.343/06 passou a tipificar o tráfico de drogas em seu artigo 33
aumentando a reprimenda mínima em abstrato ao cominar pena de 5 a 15 anos de reclusão e
multa.

3
Sobre este último tópico, em 16 de fevereiro de 2012 entrou em vigor a Resolução nº 5 de 2012 do Senado
Federal, que reza em seu artigo 1º, in verbis: “É suspensa a execução da expressão 'vedada a conversão em penas
restritivas de direitos' do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por
decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS”. Trata-se de rara
aplicação do tão controverso art. 52, X da Constituição Federal.

258
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Em que pese ter elevado a pena mínima abstratamente cominada ao delito de


tráfico de drogas, elevando-a de 3 (três) para 5 (cinco) anos, o novo diploma legal previu em
seu § 4º do artigo 33 a seguinte causa de diminuição de pena:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,


vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda
que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar:

[...]

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão


ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas
restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons
antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre
organização criminosa.

Tal causa de diminuição de pena dirigida ao 'pequeno traficante', constitui


inovação jurídica da Lei n.º 11.343/06. A minorante foi elaborada em razão de recorrentes
pedidos para que fosse criado um tipo intermediário entre o delito de tráfico e o porte de
drogas ilícitas. Isto, pois, aquele que era eventualmente responsável pela venda de
entorpecentes, conhecido popularmente como “avião” ou “mula”, era punido da mesma forma
que o verdadeiro traficante, não havendo proporcionalidade entre as penas abstratamente
cominadas e o real desvalor da conduta dos agentes. Para que o réu faça jus à minorante
prevista no § 4º, deverá cumprir cumulativamente quatro requisitos: a) ser agente primário; b)
possuir bons antecedentes; c) não se dedicar a atividades criminosas, e d) não integrar
organizações criminosas.
Entretanto, tendo em vista que tal causa de diminuição não havia sido prevista na
lei revogada, surge o seguinte problema: sendo a pena mínima estipulada pela nova Lei (5
anos) maior do que a prevista no antigo texto legal (3 anos), seria possível fazer retroagir tão
somente a diminuição prevista no § 4º, nos crimes cometidos sob a vigência da antiga Lei
6.368/76? Em outros termos, aos crimes cometidos antes de 08 de outubro de 2006 (vigência
da nova legislação), poderíamos manter a pena abstrata de 3 a 15 anos fazendo retroagir
apenas o §4º do art. 33 para diminuir a pena de 1/6 a 2/3 da pena nos casos onde o réu é
primário, possui bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas e não integra
associação criminosa?
A jurisprudência brasileira tem se dividido em pelo menos duas posições básicas:
1) a primeira sustenta a impossibilidade da aplicação do §4º aos crimes cometidos sob a

259
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

vigência da antiga Lei de Tóxicos, sob o argumento principal da vedação de combinação de


leis no tempo para beneficiar o réu (Lex tertia); 2) a segunda posição entende pela
possibilidade da aplicação do referido parágrafo em respeito à garantia constitucional da
retroatividade da lei benéfica ao acusado.
A controvérsia chegou aos pátios do Superior Tribunal de Justiça, dividindo o
entendimento dos Ministros que compõem as Turmas responsáveis pelo julgamento das
causas criminais. Enquanto a Quinta Turma firmou entendimento em sentido negativo,
afirmando se tratar de combinação de textos legais para beneficiar o réu, o que seria proibido,
a Sexta Turma possui vários precedentes que defendem possibilidade de retroação da nova
causa de diminuição de pena.
O conflito de leis penais no tempo é tema pouco explorado pela doutrina e
jurisprudência pátria, e os Tribunais superiores ainda não pacificaram o entendimento acerca
dos problemas que envolvem casos onde a legislação mais nova é gravosa numa parte e mais
benéfica noutra.
Este artigo procura explicitar melhor as teses envolvidas neste debate
jurisprudencial analisando-se os argumentos sustentados no discurso de cada uma das
vertentes teóricas formadas especialmente nos tribunais superiores. O presente estudo possui
uma abordagem primordialmente expositiva, sendo composto de dois tópicos principais onde
se analisam as duas posições teóricas que se antagonizam, escrutinando os argumentos
sustentados por cada uma delas4. Iniciaremos pela exposição teórica dos argumentos daqueles
que advogam a impossibilidade da conjugação dos diplomas legais.

1 PRIMEIRA CORRENTE: DA IMPOSSIBILIDADE DE COMBINAÇÃO DE


DIPLOMAS LEGAIS
Tendo por paradigma a posição defendida pelo Ministro Felix Fisher, a Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento de que não é possível a aplicação
retroativa somente de parte do novo artigo 33 aos casos ocorridos sob a vigência da antiga Lei
de Tóxicos (Lei n.º 6.368/76)5.

4
O debate jurisprudencial sobre o assunto específico se inicia a partir de meados de 2006 no STJ, tendo atingido
o STF apenas recentemente. Sustentando a vedação de combinação de leis, nos valemos de vários votos
proferidos principalmente pelo Ministro Félix Fisher. Os argumentos a favor da retroativdade da minorante
foram fartamente sustentados no STJ pela Desembargadora convidada Jane Silva do TJMG e, atualmente, são
desenvolvidos principalmente pelo Ministro Jorge Mussi.
5
Colacionamos alguns precedentes recentes do STJ onde foi adotada esta primeira orientação teórica – ressalta-
se que nesta Corte este é o entendimento predominante atualmente: AgRg no HC 199.324/MS, Rel. Ministro
SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 04/12/2012, DJe 14/12/2012; AgRg no REsp
1189603/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 05/12/2012; HC
128.577/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/11/2012,

260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Esta posição não nega que a nova minorante veio atender aos princípios da
proporcionalidade e da individualização da pena na medida em que possibilita diferenciar a
conduta do agente que não se encontra plenamente envolvo no mundo do crime do agir do
traficante habitual, que faz do crime seu meio de vida6. Entretanto, sustenta-se que a ratio da
previsão desta causa de diminuição de pena justifica-se em razão do maior rigor que o atual
diploma legal dispensou ao tratamento do crime de tráfico de drogas.

DJe 16/11/2012; HC 202.557/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 06/11/2012,
DJe 21/11/2012; HC 217.742/SP, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA
CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 27/09/2012, DJe 04/10/2012; HC 240.771/SP, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 18/09/2012, DJe 03/10/2012; HC 227.353/SP, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 17/09/2012; HC 200.127/PR, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 21/09/2012; HC 193.700/SP, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 21/09/2012; HC 167.829/MG, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 05/09/2012; HC 197.210/SP, Rel.
Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 12/09/2012; HC
174.878/SP, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ),
Rel. p/ Acórdão Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 21/09/2012; HC
245.503/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 21/09/2012; AgRg
no HC 168.549/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em
07/08/2012, DJe 23/08/2012; HC 178.859/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA
TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 31/08/2012; HC 168.040/SP, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA
MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe
20/08/2012; HC 208.121/MS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe
01/08/2012; HC 181.830/RS, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 02/08/2012; HC 239.250/SP, Rel.
Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 20/06/2012; HC 163.920/SP, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 26/06/2012; HC 176.339/RJ, Rel.
Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 27/06/2012;
HC 147.208/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012,
DJe 13/08/2012; HC 155.014/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado
em 05/06/2012, DJe 18/06/2012; HC 143.987/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA
TURMA, julgado em 05/06/2012, DJe 18/06/2012; HC 232.115/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA
TURMA, julgado em 29/05/2012, DJe 18/06/2012; HC 239.250/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA
TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 20/06/2012; AgRg no AREsp 83.850/SC, Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 25/06/2012; HC 219.754/PR, Rel. Ministro GILSON
DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 10/05/2012; HC 211.882/DF, Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 27/03/2012, DJe 03/04/2012; HC 187.699/RS, Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 01/12/2011; REsp 1117068/PR, Rel. Ministra
LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/10/2011, DJe 08/06/2012; HC 136.252/SP, Rel. Ministro
OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 22/08/2011; HC 151.206/RJ, Rel. Ministro
HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), SEXTA TURMA, julgado em
16/06/2011, DJe 03/08/2011; AgRg no REsp 1075322/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA,
julgado em 14/06/2011, DJe 27/06/2011; No STF esta tese foi adotada nos seguinte casos: HC 10.7583,
Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 17/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107
DIVULG 31-05-2012 PUBLIC 01-06-2012; HC 96.430, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma,
julgado em 09/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-05 PP-
00891.
6
No HC 96.242/SP, embora tenha entendido ser indevido a combinação de leis para beneficiar o réu, o relator,
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, deixou assentado: “Inicialmente, cumpre frisar que a redução da pena
objetivou suavizar a situação daqueles que não se dedicam ao tráfico como profissão, dos que cometeram o
delito pela primeira vez, do traficante ocasional (a mulher que leva a droga para o marido ou o filho viciado na
cadeia, por exemplo)”. Deste modo, o Ministro não fez ligação da minorante com o tratamento mais rigoroso que
o tipo passou a ter debaixo da nova lei, mas entendeu que a causa de diminuição de pena veio para diferenciar a

261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Partindo do entendimento de que o motivo da criação desta minorante seria o


tratamento mais gravoso dado pela nova Lei ao delito em questão (pena mínima de 5 anos), os
adeptos deste posicionamento sustentam que o magistrado que aplicar retroativamente a
referida causa de diminuição mantendo-se a pena abstrata da Lei antiga, estará contrariando
tanto a mens legis quanto a mens legislatoris da norma: estaria atuando de modo indevido,
usurpando as atribuições do legislador ordinário. Isto, pois, agindo de tal modo – unindo
partes de dois textos legais diferentes para se extrair uma norma inédita – estaria atuando
como verdadeiro legislador positivo, criando indevidamente uma terceira lei (lex tertia) não
pretendida pelo Poder Legistativo, violando, assim, os princípios constitucionais da
separação de poderes (art. 2º da CF) e da reserva legal (art. 5º. inciso II da CF).
Argumenta-se que pinçar apenas a causa de diminuição da pena e, ainda,
substituir a reprimenda de privativa de liberdade por pena restritiva de direitos violaria a
sistemática interna proposta pelo legislador que apenas previu a diminuição porque vedou a
substituição da pena7. Não se poderia, assim, fazer retroagir a minorante aos casos anteriores
sob pena de se promover a desconstituição do dispositivo legal.
Argumenta-se, também, que a redução de pena ocasionada pela aplicação
retroativa do § 4º seria demasiada e inaceitável. Tal redução poderia ser verificada nos casos
de delito cometido sob a vigência da Lei onde a pena-base fosse fixada no mínimo (03 anos) e
fosse aplicado retroativamente a minorante em sua razão máxima (2/3). Nestes casos o réu
receberia uma pena final de apenas 01 (um) ano de reclusão.
A inaceitabilidade se daria em virtude da pena mínima possível sob os auspícios
da nova legislação ser de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão (pena base fixada em 5 anos
menos 2/3 da minorante). Assim a aplicação retroativa da minorante poderia gerar uma
redução de pena muito abaixo do mínimo possível atualmente na legislação em vigor. Tal
redução seria uma afronta ao principio da legalidade penal e à democracia, argumentam. Seria
o arbítrio do magistrado criando uma pena não prevista pelo Congresso Nacional –

apenação de condutas distintas - HC 96.242/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ de
09/06/2008.
7
Argumento sustentado principalmente pela Ministra Maria de Assis Thereza Moura. Em seu voto proferido no
Habeas Corpus HC 137161-SP, a Ministra manifesta o seguinte entendimento: “Coisa diversa é admitir a
incidência de circunstâncias da nova lei mais favoráveis ao paciente, criando-se uma terceira lei mais benéfica,
mista, que reúna dispositivos de ambas as leis. No caso em questão, trata-se de desconfigurar os termos de um
mesmo e único dispositivo, o que, segundo meu entendimento extrapola a função judicial, imiscuindo-se o
julgador na tarefa legislativa, ao rechaçar uma opção política, desestabilizando o equilíbrio entre os Poderes do
Estado”. (HC 137161 SP 2009/0099843-2, Relator: Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 03/11/2009, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe
27/09/2010). Portanto, seguindo a linha de raciocínio da nobre Ministra, poderíamos concluir, a contrario sensu,
no sentido de afirmar a validade da combinação de circunstâncias favoráveis de dois textos legais distintos, pois
o que estaria vedado seria apenas a desconstituição de um dispositivo uno.

262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

representantes da soberania popular. Frustraria a vontade do legislador, que tornou a punição


do delito mais rigorosa, fazendo uma aplicação híbrida de duas leis no tempo.
Assim, tendo em vista que a retroatividade parcial adviria de indevida
combinação de leis para beneficiar o réu, consistindo em inaceitável em invasão de
competência do magistrado na seara do Poder Legislativo, criando lei nova e violando o
princípio da separação de poderes, os adeptos dessa posição entendem que a garantia da
retroatividade deve ser total (pena abstratamente cominada + minorante). O texto jurídico em
questão não poderia ser cindido, devendo ser aplicado em sua inteireza – uma espécie de
teoria do conglobamento (Direito do Trabalho) aplicada na esfera do Direito Penal.
A solução do problema, para os que esposam tal entendimento, seria analisar a
situação mais vantajosa ao réu in concreto, caso a caso, ou seja, primeiro verifica-se a pena
em concreto sob cominação da lei antiga e em seguida efetua-se nova dosimetria penal
fixando-a no parâmetro da nova lei (5 a 15 anos) para, só então, incidir a causa de diminuição
da pena. Assim fazendo, evitar-se-ia a combinação de textos normativos para a criação de
uma terceira lei, aplicando-se ao caso concreto uma das duas disposições legislativas em sua
integralidade.
Este entendimento é a solução proposta pelo juiz da Suprema Corte argentina
Eugenio Raúl Zaffaroni:

Ante a complexidade dos elementos que podem ser tomados em


consideração para determinar qual é a lei penal mais benigna, não é possível
fazê-lo em abstrato, e sim frente ao caso concreto. Dessa maneira, resolve-
se o caso hipoteticamente conforme uma e outra lei, comparando-se em
seguida as soluções, para determinar qual é a menos gravosa para o autor.
Nessa tarefa devem-se analisar em separado uma e outra lei, mas não é
lícito tomar preceitos isolados de uma e outra, mas cada uma delas em sua
totalidade. Se assim não fosse, estaríamos aplicando uma terceira lei
inexistente criada unicamente pelo intérprete (ZAFFARONI, 1999, p. 228 e
229).

Outro ponto levantado pelos que compactuam deste entendimento é o argumento


de que o próprio ordenamento jurídico brasileiro já teria se orientado contrariamente ao
'coquetel de normas' regulamentando devidamente o problema.
Neste sentido, apontam o seguinte comando do Código Penal Militar:

Lei supressiva de incriminação

Art. 2° Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de
considerar crime, cessando, em virtude dela, a própria vigência de sentença
condenatória irrecorrível, salvo quanto aos efeitos de natureza civil.

263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Retroatividade de lei mais benigna

1º A lei posterior que, de qualquer outro modo, favorece o agente, aplica-se


retroativamente, ainda quando já tenha sobrevindo sentença condenatória
irrecorrível.

Apuração da maior benignidade

2° Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior


devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas
normas aplicáveis ao fato.

Esta é a solução proposta pelo Desembargador do Tribunal de São Paulo,


Guilherme de Souza Nucci:

Realmente, se houvesse permissão para a combinação de leis, colocar-se-ia


em risco a própria legalidade, pois o magistrado estaria criando norma
inexistente, por mais que se queira dizer tratar-se de mera integração de leis.
Ora, a referida integração não passa do processo criador de uma outra lei,
diferente das que lhe serviram de fonte. E quando se diz que o art. 2º ,
parágrafo único do CP, autoriza a aplicação da lei posterior benéfica que
“de qualquer modo favorecer o agente” não está legitimando o magistrado a
recortar pedaços da norma e aplicá-la em formação de uma outra totalmente
inédita. Quer dizer simplesmente que uma lei penal nova mais benéfica , em
qualquer ponto que seja, merece retroagir para favorecer o réu. A previsão
do mencionado parágrafo único é uma cautela positiva, para que não se
deixe de aplicar lei penal benéfica sob a assertiva de que não se cuida da
pena propriamente dita ou da descrição da conduta típica. Há detalhes
secundários que podem ser alterados na lei penal, merecedores de aplicação
imediata. Exemplificando: se uma nova lei permite sursis sem o
cumprimento de qualquer condição, embora não diga respeito ao tipo penal
incriminador e ainda que o condenado esteja em liberdade, é um modo de
favorecê-lo, logo, deve ser aplicada, eliminando-se as condições
anteriormente fixadas (NUCCI, 1999, p. 105).

Entre os adeptos desta corrente encontramos vários juristas de grande


respeitabilidade, tanto nacionais como estrangeiros. Entre os juristas brasileiros podemos
alistar Nelson Hungria, Aníbal Bruno e Heleno Fragoso8.
Sobre a questão em voga, o emérito penalista Nelson Hungria leciona:

[...] cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais
favoráveis da lex nova com os da lei antiga, de outro modo, estaria o juiz,
arvorado em legislador, formando uma terceira, dissonante, no seu
hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Trata-se de um princípio pacífico

8
A partir deste momento, nos valemos das profundas pesquisas feitas pelo Ministro Felix Fisher, registradas em
inúmeros votos, para apresentar o rol de teóricos que adotam o posicionamento ora em análise. Os votos do
referido Ministro serviram como paradigma para a consolidação deste entendimento, sendo acompanhado na
maioria das vezes pelos demais Ministros da Quinta Turma do STJ – a exceção do Ministro Jorge Mussi, como
veremos oportunamente.

264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

em doutrina: não pode haver aplicação combinada das duas leis.


(HUNGRIA, 1958, p. 112).

Também Aníbal Bruno, adverte que “esse princípio da aplicação da lei mais
benéfica, como meio de resolver o conflito de leis penais sucessivas, sugere um problema
nem sempre de fácil solução”, concluindo que “não é lícito tomarem-se na decisão elementos
de leis diversas. Não se pode fazer uma combinação de leis de modo a tomar de cada uma
delas o que pareça mais benigno. A lei considerada mais benévola será aplicada em sua
totalidade”. (BRUNO, 1967, p. 255 e 256).
Na mesma linha, Heleno Cláudio Fragoso é enfático ao se posicionar que “em
nenhum caso será possível tomar de uma e outra lei as disposições que mais beneficiem o réu
aplicando ambas parcialmente”. (FRAGOSO, 1995, p. 105).
Entre os estrangeiros que aderem a este posicionamento, podemos mencionar
Jimánez de Asúa, Sebastián Soler, Reinhart Maurach, Heinz Zipf, Edgardo Alberto Donna,
Francisco Muñoz Conde, Mercedes García Arán, Gonzalo Quintero Olivares, Diego-Manuel
Luzón Peña, Guillermo Fierro, José Cerezo Mir, Antonio García-Pablos de Molina e Germano
Marques da Silva.
Jiménez de Asúa ensina que

interesa dejar bien sentando que para hallar la solución más favorable
para el delincuente no es posible combina varias leyes; es decir, que no es
dable dividir la ley antigua y la nueva en varias partes para aplicar al
acusado las disposiciones más benignas de la una y de la otra al mismo
tiempo, sino que, debiendo hacer uso el Juez de la ley más benigna, no
puede darse al reo un trato jurídico que, por ser derivado de las dos, no es
propio de la ley neuva ni de la antigua. Lo contrario sería autorizar al
magistrado para crear una tercera ley - con disposiciones de la precedente
y de la posterior -, con lu cual se arrogaría funciones legislativas que no
tiene. (ASÚA, 1963, p. 634).

Sebastián Soler conclui que

ese examen comparativo debe conclui por la elección de una ley, es decir,
que será ilícita la aplicación al mismo caso, simultánea e sucesivamente,
de disposiciones de leyes distintas , en cuyo caso no se aplicaría en
realidad ninguna ley, dictada por el poder legislador, sino una nueva ley
confeccionada por el juez, con elementos de distintas leyes, para un caso
concreto. No son lícitos los reenvios de una e otra ley en procura de las
disposiciones más favorables: elegida una ley, ésta se aplica en su
integridad, y en todo su régimen. (SOLER, 1992, p. 260).

265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Para Reinhart Maurach e Heinz Zipf, “sólo procede la aplicación de la nueva ley
y queda excluida una combinación de posibilidades que pudieren ser más favorables al
autor”. (MAURACH & ZIPF, 1994, p. 202).
Edgardo Alberto Donna consigna que

[...] no se deben hacer mixturas o combinaciones de leyes habida cuenta de


que, en ese caso, seria el juez quien dicta una nueva ley violando el
principio que los delitos y las penas deben ser sólo obra del legislador .
Por eso aunque sea posible que la reforma parcial de la ley anterior pueda
ser más beneficiosa en algunos aspectos y más gravosa en otros, sólo és
procedente la elección de una de las leyes en cuestión. (DONNA, 2006, p.
414 e 415).

Idêntico é o ensino de Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán, que


asseveram:

El segundo problema se plantea cuando la ley posterior contiene aspectos


beneficiosos pero también perjudiciales, por ejemplo, disminuyendo la
gravedad de la pena señalada para el delito pero estableciendo
circunstancias agravantes que son aplicables al caso. Tal situación debe
resolverse comparando las consecuencias concretas que una y otra ley
supone para el caso en cuestión y aplicando de manera completa la ley que
permita las menos gravosas. Lo que no resulta posible, pese a que se ha
propuesto doctrinalmente, es aplicar los aspectos más beneficiosos de una
ley y de otra, pues con ello el tribunal estaría creando una norma nueva
(lex tertia) y desempeñando con ello funciones legislativas que no le
competen. (CONDE & ARÁN, 2002, p.144).

Gonzalo Quintero Olivares leciona que

[...] lo que resulta imposible, pues se opone al principio de legalidad, es


aplicar una ley que nunca ha existido como tal y que el intérprete compone
tomando lo que le parece mejor de cada ley en presencia, pues la
competencia para crear leyes penales no pertenece al juez. (OLIVARES,
2005, p. 150).

Diego-Manuel Luzón Peña, seguindo as lições de Jiménez de Asúa, destaca que


"hay que optar por una o por otra ley, pero que no se pueden combinar los preceptos más
favorables de la ley anterior y la posterior, pues eso sería formar uma ley nueva." (PEÑA,
1996, p.187).
Para Guillermo Fierro

[…] la doctrina ampliamente mayoritaria como así también la


jurisprudencia han concluido que no resulta lícito a los fines de establecer
la mayor o menor benignidad de una ley, componer por parte del órgano
judicial una tercera ley arrogándose facultades legislativas que le están
vedadas, utilizando los fragmentos más favorables de la ley anterior en

266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

forma conjunta con los más beneficiosos de la nueva […]. (FIERRO, 2003,
p. 324).

Para José Cerezo Mir:

Lo que no es posible es aplicar los preceptos más favorables de la ley


posterior y de la anterior, porque ello implicaría, como señala Jiménez de
Asúa, la creación de una tercera ley nueva, con la consiguiente
interrogación de funciones legislativas. (MIR, 2007, p. 283).

Esse também é o parecer de Antonio García-Pablos de Molina, segundo o qual:


"A mi juicio [...] parece más convincente la opinión tradicional, esto es, la que propone se
opte, caso de sucesión de leyes penales, por una de las normas en bloque, in toto: la anterior
o la posterior, sin otras alternativas posibles.” (MOLINA, 2006, p. 911).
No direito português, Germano Marques da Silva defende igual solução:

Note-se que a escolha dos regimes penais em confronto, em sede de


aplicação das leis no tempo, tem de ser feita em bloco, não podendo criar-se
uma norma abstracta com os elementos mais favoráveis das várias leis.
(SILVA, Germano; 1997, p. 265).

Concluímos esta breve exposição dos argumentos esposados por esta primeira
corrente nos valendo da síntese desenvolvida por seu maior defensor na jurisprudência
brasileira, o Ministro Félix Fisher9. O jurista apresenta a seguinte peroração em inúmeros
votos proferidos:

Em suma, a Constituição Federal reconhece, no art. 5º inciso XL, como


garantia fundamental, o princípio da retroatividade da lei penal mais
benéfica. Desse modo, o advento de lei penal mais favorável ao acusado
impõe sua imediata aplicação, mesmo após o trânsito em julgado da
condenação. Todavia, a verificação da lex mitior, no confronto de leis, é
feita in concreto, visto que a norma aparentemente mais benéfica, num
determinado caso, pode não ser. Assim, pode haver, conforme a situação,
retroatividade da regra nova ou ultra-atividade da norma antiga10.

2 SEGUNDA CORRENTE: DA MÁXIMA EFETIVIDADE À GARANTIA


CONSTITUCIONAL DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA.

9
Em 12 de maio de 2010 a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou os Embargos de Divergência
no Recurso Especial 1094499/MG, de relatoria do Ministro Felix Fischer, resolvendo de vez a discordância entre
as Turmas (Quinta e Sexta Turma), fixando a primeira corrente como posição prevalecente na Egrégia Corte.
(Cf. EREsp 1094499/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/05/2010, DJe
18/08/2010).
10
Por todos os julgados analisados, conferir voto do Ministro no HC 145.730/DF; 2009/0167109-4.

267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Apesar de contar com a adesão de vários criminalistas nacionais e estrangeiros de


grande respeitabilidade e de apresentar fortes argumentos em seu favor, a corrente que
sustenta a impossibilidade de combinação de textos legais, pelo menos no que toca ao
problema do delito de tráfico de drogas, passou a sofrer fortes críticas no âmbito doutrinário e
jurisprudencial. Estes outros doutrinadores, com argumentos igualmente sólidos, acham
perfeitamente possível a aplicação de norma jurídica em favor do réu advinda da consideração
simultânea de dois textos legais, formando uma segunda corrente teórica sobre o tema em
estudo.
Foi possível observar tal entendimento menos de um ano depois da entrada em
vigência da nova Lei de Drogas, em 06 de agosto de 2007, quando o Ministro Gilson Dipp da
Quinta Turma do STJ julgou o HC 73.767/RJ, de sua relatoria, registrando em seu voto que ‘a
redução da pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06, por ser instituto de direito
material, deveria ter sua aplicação retroativa determinada sempre que visualizada a
possibilidade do réu ser beneficiado, ainda que transitada em julgada a condenação’.
Após este julgado, a Sexta Turma passou a conceder vários habeas corpus
determinando a aplicação retroativa da causa de diminuição de pena no delito de tráfico de
entorpecentes. A grande maioria dos precedentes que firmou este segundo posicionamento na
Sexta Turma do STJ foi capitaneada pelos votos da Desembargadora Jane Silva, então
julgando como magistrada convocada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ulteriormente,
este entendimento tem sido firmemente defendido pelo Ministro Jorge Mussi, da Quinta
Turma do STJ11.

11
A seguir apresentamos os precedentes do STJ em que foi adotado este segundo posicionamento: HC
73.767/RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp – Quinta Turma – DJ de 06.08.2007, p. 573; HC 83.716/SP, Rel. Ministra
JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), DJU de 1/10/2007; HC 83.361/MS, Rel.
Ministro Arnaldo Esteves Lima. – Quinta Turma – DJ de 22.10.2007, p. 334; HC 88.114/MS, Rel. Ministro
Paulo Gallotti – Sexta Turma – DJU de 03.12.2007; HC 93.291/SP, Rel. Ministra JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), julgado em 25-3-2008; HC 103.541/RJ Decisão
Monocrática nº 2008/0071763-1 de Superior Tribunal de Justiça, Ministra JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) Sexta Turma, 04/04/2008; HC 100.910/DF, Rel. Ministra
JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em
03/04/2008, DJe 22/04/2008); HC 96.521/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, DJ
12.05.2008 p. 1; HC 82.587/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão
Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em
06/05/2008, DJe 09/06/2008); HC 100.442/SP, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA
CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 29/04/2008, DJe 09/06/2008); HC 101.125/SP, Rel.
Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em
12/06/2008); HC 104.798/MG, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO
TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 27/05/2008, DJe 09/06/2008; HC 107.451/RS, Rel. Ministra JANE
SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 12/08/2008, DJe
24/11/2008; HC 95.816/SP, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG),
SEXTA TURMA, julgado em 26/06/2008, DJe 01/12/2008; REsp 1042435/MG, Rel. Ministra JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 01/07/2008, DJe
01/12/2008); HC 97.971/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Ministro

268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Os que afirmam a possibilidade de aplicação da causa de diminuição de pena aos


delitos de tráfico de drogas cometidos na vigência da Lei n.º 6.368/76 o fazem baseados na
garantia constitucional da retroatividade da lei benéfica (art. 5º, LX, da CF) e no parágrafo 2º
do Código Penal Brasileiro:

A lei posterior que, de qualquer modo favoreceu o agente, aplica-se aos fatos
anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em
julgado. (BRASIL, Decreto-Lei n.º 2.848, 1940).

Como salientado anteriormente, o delito de tráfico da nova Lei de Drogas (art. 33


da Lei n.º 11.434/06) é praticamente o mesmo tipificado pela antiga Lei de Tóxicos (art. 12 da
Lei n.º 6.368/76). O legislador ordinário alterou tão somente a pena mínima abstratamente
cominada e o valor da pena de multa a ser imposta conjuntamente à pena privativa de
liberdade.
Esta segunda corrente não aceita o argumento levantado pela primeira posição
teórica, de que a causa de diminuição de pena do § 4º teria sido criada em razão do tratamento
mais gravoso agora dispensado pelo legislador pátrio ao crime de tráfico de drogas.
De fato, não havia causa de diminuição de pena legalmente prevista para o agente
primário, de bons antecedentes, que não se dedicava às atividades criminosas nem integrava
organização criminosa, que fosse condenado pelo cometimento de conduta previsto art. 12 da
Lei n.º 6.368/76. Não se fazia, então, qualquer diferença entre o indivíduo que se encontrava
envolto no ‘mundo do crime’ e fazia do tráfico seu meio de vida e o sujeito que, sem ter
passagens pela polícia, era, por exemplo, autuado em uma boate oferecendo ou fornecendo
pílulas de ecstasy ou, ainda, a mulher que levava consigo drogas ao marido detento.
Justamente por isso – defendem os teóricos que adotam este posicionamento teórico – o novo
OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe 09/08/2010; HC 94244/SP 2007/0265659-3,
Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 15/09/2009, T6 - SEXTA
TURMA, Data de Publicação: DJe 28/09/2009; AgRg no HC 119.429/SP, Rel. Ministro CELSO LIMONGI
DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 02/03/2010, DJe 22/03/2010;
No âmbito do STF os seguintes julgados seguiram esta segunda orientação teórica: HC 97.128, Relator(a):
Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 08/09/2009, DJe-195 DIVULG 15-10-2009 PUBLIC 16-
10-2009 EMENT VOL-02378-03 PP-00449; HC 97.992 SP , Relator: Min. CEZAR PELUSO, Data de
Julgamento: 08/09/2009, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-195 DIVULG 15-10-2009 PUBLIC 16-10-
2009 EMENT VOL-02378-03 PP-00477; RE 59.6152, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI,
Relator(a) p/ Acórdão: Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2011, REPERCUSSÃO
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BRITTO, Segunda Turma, julgado em 06/12/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-072 DIVULG 12-04-2012
PUBLIC 13-04-2012; HC 97094, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em
13/12/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-234 DIVULG 28-11-2012 PUBLIC 29-11-2012; HC 113254,
Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 13/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-240 DIVULG 06-12-2012 PUBLIC 07-12-2012.

269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

diploma legal, em atenção aos princípios da proporcionalidade e da individualização da


pena, veio sanar essa disparidade de tratamento, como bem reconhecem os adeptos da
primeira corrente.
Assim, conforme a segunda corrente teórica, a ratio iuris da minorante foi corrigir
a desproporção legal gerada pelo diploma anterior que condenava do mesmo modo, a uma
mesma quantidade de pena, condutas claramente desiguais.
Obviamente, o legislador brasileiro também percebeu que o tráfico de drogas
atualmente não pode ser (des)valorado do mesmo modo e receber o mesmo tratamento que foi
dado pelo legislador de 1976. Isto, pois, é público e notório que considerável parcela da
criminalidade perpetrada em território nacional se encontra de algum modo vinculada, direta
ou indiretamente, ao tráfico ilícito de drogas. Visando uma maior repressão de tais condutas
ilícitas, o legislador contemporâneo optou por valorar mais gravosamente o crime de
traficante de drogas, aumentando a pena mínima abstratamente cominada, vedando a
conversão da privativa de liberdade em restritivas de direitos e, posteriormente, equiparando o
delito de tráfico aos crimes hediondos.
Se a ratio da causa de diminuição de pena foi corrigir uma prévia desproporção
punitiva ao agente primário, ela é claramente autônoma em relação ao caput e subsiste por si
mesma, não mantendo relação necessária para com o quantum de pena abstratamente
cominado no tipo. Entretanto, se é verdade que a razão-de-ser da minorante é o novo
tratamento mais rigoroso dado ao traficante – ratio legis defendida pela primeira corrente –,
impossível será observá-la sem ligação ao caput de pena mais gravosa.
Contudo, afirmar que a ratio legis da causa de diminuição de pena é o novo
tratamento mais gravoso dispensado ao traficante, como faz a primeira corrente, implicaria
em se negar que havia uma prévia desproporção de tratamento no crime de tráfico de
entorpecentes na legislação penal anterior. Não se pode sustentar conjuntamente as duas
razões-de-ser sem incorrer em evidente contradição: ou a minorante foi criada para sanar
errôneo (injusto) juízo de (des)valoração já existente na legislação anterior ou foi criada em
virtude do tratamento mais gravoso dispensado ao tráfico ilícito de entorpecentes. Uma coisa
ou outra; não há compatibilidade entre estas duas possibilidades interpretativas. Em um caso
(segunda corrente) já existia violação ao princípio da proporcionalidade, no outro (primeira
corrente) a desproporcionalidade apenas surgiria se o novo tipo mais gravoso não previsse a
causa de diminuição da pena. Cada ratio juris importa em uma consequência diversa:
autonomia ou dependência do caput mais gravoso.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Assim, ao sustentar ambas as hipóteses, a primeira corrente não teria observado


que o parágrafo § 4º consiste em uma inovação institucional autônoma, onde a sua razão-de-
ser, sua ratio, não se encontra de modo algum vinculado ao tratamento mais rígido dado ao
criminoso. Ou seja, a causa de diminuição de pena não foi criada em virtude do novo caput,
pois, a conduta descrita no mesmo já era considerada crime na legislação anterior e já existia a
necessidade de correção dos padrões punitivos. Não foi criada em virtude do tratamento mais
gravoso agora dispensado ao delito de tráfico, como se anteriormente não houvesse
desproporção a ser sanada. Foi, sim, criada para atender aos princípios da proporcionalidade e
individualização da pena corrigindo o injusto parâmetro punitivo da Lei n.º 6.368/76 que
tratava do mesmo modo condutas claramente distintas, que exigem respostas de diferentes
pesos por parte de um Estado Democrático de Direito.
Nesta linha segunda linha de pensamento, a causa de diminuição de pena prevista
no parágrafo § 4º do art. 33 da nova Lei de Drogas possuiria evidente autonomia em relação
ao aumento da pena abstratamente cominada no novo texto legal, podendo retroagir no tempo
de modo a incidir nos casos onde o agente é primário, de bons antecedentes, não se dedica às
atividades criminosas nem integra organização criminosa e foi condenado pelo delito do art.
12 da Lei n.º 6.368/76.
Consta do voto-vista do Ministro Cezar Peluso proferido no julgamento do
Habeas Corpus 95.435/RS o depoimento do Deputado Federal Paulo Pimenta – relator do
PLS 115/2002 que deu origem a Lei 11.343/2006, nova Lei de Drogas – na Comissão de
Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, em um parecer de 10 de
fevereiro de 2004, onde o mesmo deixou claro os motivos da criação da causa de diminuição
de pena:

Não nos olvidamos da diferença existente entre pequenos e grandes


traficantes. Por isso, mantivemos uma causa especial de diminuição de pena
para o agente que seja primário e de bons antecedentes e cuja conduta
caracteriza por ausência de habitualidade e caráter não profissional.
(BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2008).

A fala do parlamentar esclarece qualquer dúvida quanto ao motivo da criação da


minorante estipulada no novo diploma legal. De tal modo, sendo a minorante fruto de uma
nova valoração da conduta menos perigosa daquele que se convencionou chamar de 'pequeno
traficante' – em oposição ao traficante organizado, habitual – não haveria motivos para se
repudiar a aplicação da causa de diminuição aos casos anteriores. Não há correlação, por si,
da minorante com as novas penas abstratamente cominadas, pois, o propósito claro do

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

legislador foi punir de modo menos severo aqueles que se encaixam no perfil do §4º,
independentemente do tratamento mais rigoroso previsto no novo caput.
A causa de diminuição de pena, em verdade, refere-se não ao caput do tipo, mas,
sim, às condutas nele descritas - condutas estas que já eram tipificadas na legislação revogada.
O fato da minorante ter sido prevista como parágrafo do artigo 33 e não estipulada em um
artigo autônomo decorre de mera técnica legislativa (forma legal), não vinculando
materialmente os dispositivos. Sustentar a dependência da minorante à pena prevista no caput
unicamente pelo fato da mesma ter sido prevista em um parágrafo do mesmo artigo, seria
privilegiar uma interpretação formalista da norma jurídica, afastando-se toda reflexão
hermenêutica que envolve seu conteúdo, suas valorações e seu contexto histórico.
Não existiria, assim, segundo este segundo entendimento, a criação judicial de
terceira lei não prevista pelo legislador ou uma invasão de competências legislativas pelo juiz.
A aplicação da nova lei à pena fixada com base na antiga Lei de Tóxicos seria mera
decorrência do preceito da máxima efetividade da Constituição na aplicação do princípio da
retroatividade da lei penal mais benéfica.
Salienta-se, também, que a vedação de combinação de leis diversas (Lex tertia) –
que não ocorreria no caso em questão – é apenas produto de interpretação doutrinária e
jurisprudencial desenvolvida em uma época de “baixa constitucionalidade” (STRECK, 2004,
p. 216/220), quando se interpretava a Constituição pela legislação ordinária, e não o contrário.
O argumento de que o próprio ordenamento jurídico brasileiro já teria se orientado
contrariamente a este entendimento no §2º do art. 2º do Código Penal Militar também não
mereceria acolhimento. Isto, pois, o CPM que contém dispositivo explícito sobre o tema é lei
especial aplicável apenas em determinados e restritos casos. Conforme a hermenêutica
jurídica clássica, não se pode tomar norma especial, de âmbito restrito, e interpretá-la como se
disposição geral tivesse. Tal operação faria uma norma jurídica criada para um delimitado e
específico campo especial ser aplicada como se regulamentasse os casos gerais do
ordenamento jurídico. Em verdade, se tal vedação vigorasse a todo o sistema de Direito Penal
(comum), o legislador teria deixado disposição explícita no Código Penal assim como o fez
no Código Penal Militar. Tal raciocínio é o bastante para se afastar o supracitado argumento.
Demais disso, além do fato de a norma especial ser interpretada sempre
restritivamente a casos a que se refere, o princípio da reserva legal seria óbice intransponível
para a aplicação do referido preceito, visto ser de conhecimento geral a impossibilidade do
emprego de analogia em desfavor do réu. Assim, não se pode aplicar analogicamente referida

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

disposição do Código Penal Militar a casos disciplinados pelo Código Penal ou legislação
penal esparsa.
De acordo com este segundo entendimento teórico, a leitura da lex mitior proposta
pela primeira corrente acaba por limitar injustificadamente o alcance de aplicação do
princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, não sendo a melhor interpretação da
garantia constitucional. Nesse sentido, alegar que o Poder Judiciário estaria invadindo a esfera
de atribuições do Poder Legislativo, na medida em que “criaria” uma terceira lei, é fazer
tábula rasa do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.
Apesar de se valer de dois diplomas legais para a produção da norma jurídica
penal, o caso da aplicação retroativa do parágrafo §4º não incorreria na construção teórica da
vedação de combinação de leis ou Lex tertia. Vejamos:
O HC 68.416 de relatoria do Ministro Paulo Brossard é recorrentemente citado
como referência para demonstrar o que seria uma vedação da lex tertia. Nesse julgamento, o
que se pretendia na verdade era, com relação à liberdade provisória do preso, a aplicação
conjunta dos requisitos da lei antiga com os da lei nova. Tal caso constitui autêntica e
inadmissível tentativa de criação indireta de lei processual penal. A Lex tertia, portanto, é uma
criação teórica que impede a combinação de partes de dois institutos para fazer surgir um
terceiro. No caso mencionado, o julgado relatado por Brossard envolvia um pedido de
aplicação de alguns requisitos da lei nova conjuntamente a alguns requisitos da lei anterior,
criando um tertium genus, uma nova lista (híbrida) de requisitos para a concessão da liberdade
provisória.
Entretanto, coisa diferente é a retroatividade da minorante no caso do tráfico de
drogas ora em estudo, pois não há que se falar em alteração do instituto jurídico. Não há
qualquer espécie de fusão entre o antigo crime de tráfico de entorpecentes e o novo delito de
tráfico de drogas, pois a materialidade típica continua a mesma. O que retroage é meramente
um instituto autônomo e independente – a causa de diminuição da pena, anteriormente não
prevista, que surgiu para tentar corrigir antigo problema decorrente da falta de
proporcionalidade na aplicação das penas, alteração que já se fazia necessária inclusive sob a
égide da lei antiga.
Ressalte-se que o próprio STJ já chancelou a possibilidade de se combinarem
validamente textos legais para que o réu fosse penalmente beneficiado. Tal fato se deu com a
combinação legal levada a efeito entre o art. 8º da Lei de Crimes Hediondos e o artigo 14 da
antiga Lei de Tóxicos, onde se evidenciou a distinção e a independência das normas que

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

definem o tipo das que regem a cominação da pena. Neste sentido, aponta-se o seguinte
julgado:

PENAL. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA TRÁFICO DE


DROGAS. LEI Nº 8.072/90, ART. 8º. LEI Nº 6.368/76, ART. 14.
INTEGRAÇÃO DE NORMAS. INTERPRETAÇÃO CORRETIVA.
- O Supremo Tribunal Federal, por decisão majoritária, proclamou o
entendimento de que em tema de associação para a prática do tráfico
ilícito de entorpecentes, impõe-se a integração das duas normas
regentes - art. 14 da Lei de Tóxicos e art. 8º da Lei nº 8.072/90 -,
tomando-se a definição do tipo para a primeira e a fixação da pena
para a segunda. - Recurso especial não conhecido. (308893 SP
2001/0027659-8, Relator: Ministro VICENTE LEAL, Data de
Julgamento: 25/02/2002, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação:
DJ 18.03.2002 p. 308).12

De tal modo, a jurisprudência sobre a vedação de Lex tertia não deve ser repetida
acriticamente e sem maiores reflexões voltadas à especificidade teórica dos problemas
jurídicos, como se fosse um mantra ou um dogma intocável. Ao produzir a norma aplicável ao
caso concreto o intérprete pode, licitamente, se valer de dois textos legais distintos,
preservando a ultratividade da pena abstrata fixada no caput fazendo incidir retroativamente a
causa de diminuição da pena prevista na nova lei em virtude da autonomia dos institutos13.
Ressalte-se que, mesmo que não se admita a “mescla” de diplomas legislativos no
caso de institutos autônomos, ainda assim o primeiro entendimento se encontraria
prejudicado. Eis que a minorante instituída pela nova lei não pode ser confrontada com a lei
anterior, pois, o texto antigo não cuidava desse tipo de causa de diminuição, sendo
completamente inédita. Inexiste assim qualquer “mesclagem de sistemas”.
Aceitar a solução proposta pela primeira corrente – uma espécie de aplicação da
Teoria do Conglobamento do Direito do Trabalho na esfera do Direito Penal – seria
reconhecer a possibilidade de aplicação da retroatividade in pejus ao réu, atribuindo-se um
desvalor inexistente à conduta do agente quando do cometimento da ação. Em outros termos,
12
No mesmo sentido: PENAL. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA TRÁFICO DE DROGAS. LEI Nº 8.072/90,
ART. 8º. LEI Nº 6.368/76, ART. 14. INTEGRAÇÃO DE NORMAS. INTERPRETAÇÃO CORRETIVA. O
Supremo Tribunal Federal, por decisão majoritária, proclamou o entendimento de que em tema de associação
para a prática do tráfico ilícito de entorpecentes, impõe-se a integração das duas normas regentes – art. 14 da Lei
de Tóxicos e art. 8º da Lei nº 8.072/90 –, tomando-se a definição do tipo para a primeira e a fixação da pena para
a segunda. - Recurso especial conhecido e provido. (Recurso Especial nº 273245 – SP, 6ª Turma, Rel. Min.
VICENTE LEAL, j. 14/05/2002, D.J.U. de 05/08/2002, p. 418).
13
Assim se manifestou a Sexta Turma do STJ, ao julgar o HC 96521/SP relatado pelo Min. Nilson Naves: “4.
Isso não significa que se esteja aqui juntando as Leis nºs 6.368/76 e 11.343/06 com o objetivo de se produzir
uma terceira lei, ou que se esteja colhendo benefícios daqui ou dali. 5. Impõe-se, isto sim, se extraiam
conseqüências de um bom, se não excelente princípio/norma, que cumpre ser preservado para o bem do Estado
democrático de direito”(HC 96521/SP, Relator Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, DJ 12.05.2008
p.1).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

aplicar um dos diplomas legais em sua inteireza no problema em questão, implicará ou na


retroatividade in pejus ou na não aplicação da lei penal posterior que beneficia o réu,
fulminando a garantia da constitucional da retroatividade (art. 5º, XL, da CF).
Muitos autores de renome, como José Afonso da Silva, Frederico Marques, Júlio
Fabbrini Mirabete, René Ariel Dotti, Rogério Grecco, Cézar Roberto Bittencourt, Luiz Flávio
Gomes, Rogério Sanches Cunha e Fernando Galvão entendem ser possível a combinação de
dois textos legais para a produção de norma que beneficia o réu.
O emérito constitucionalista José Afonso da Silva, comentando o inciso XL da
Carta Magna brasileira explana:

EXCEÇÃO DA LEI MAIS BENÉFICA: De fato, diz o inciso que ‘a lei


penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’. Tem-se, no caso, a
exceção da lei mais benéfica [...]. A lei nova também retroage se altera o
regime anterior em favor do réu – seja por exemplo, cominando pena menor
ou estabelecendo atenuante, ou qualquer outro benefício. (SILVA, José;
2008, p. 138).

Neste mesmo sentido, segue o processualista José Frederico Marques:

[...] dizer que o juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções
constitucionais, é argumento sem consistência, o julgador em obediência a
princípios de eqüidade consagrados pela própria Constituição está apenas
movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração
perfeitamente legítima. O órgão judiciário não está tirando, ex nihilo, a
regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc. A norma do caso
concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o
próprio material fornecido pelo legislador. Se ele pode escolher, para
aplicar o mandamento da Lei Magna, entre duas séries de disposições
legais, a que lhe pareça mais benigna, não vemos por que se lhe vede a
combinação de ambas, para assim aplicar, mais retamente a Constituição.
Se lhe está afeto escolher “o todo”, para que o réu tenha o tratamento penal
mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo
e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve
sobrepairar a pruridos de lógica formal. Primeiro a Constituição e depois o
formalismo jurídico, mesmo porque a própria dogmática legal obriga a essa
subordinação pelo papel preponderante do texto constitucional. A verdade é
que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação
e o ecletismo, a parcela da lei posterior não for aplicada pelo juiz; e este tem
por missão precípua velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados
fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem.
Quando está em jogo a Constituição, o juiz, para cumpri-la, pode até mesmo usar
poderes pretorianos de adjuvare, supplere, corrigere, sem que esteja se
exorbitando. Por que lhe cercear, portanto, a escolha da regra aplicável quando esta
é tirada de lei anterior ao julgamento? (MARQUES, 1997, p. 256/257).

Este também é o entendimento de Júlio Fabbrini Mirabete apontado em duas


obras distintas:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A melhor solução, porém, é a de que pode haver combinação de duas leis,


aplicando-se ao caso concreto os dispositivos mais benéficos. A conjugação
pode ser efetuada não só a inclusão de um dispositivo de lei nova, como
também com a combinação de parte de dispositivo de lei anterior e
posterior. Apesar das críticas de que não é permitido ao julgador a aplicação
de uma terceira lei formada por parte das duas em confronto, é a orientação
mais aceitável, considerando-se que o sentido do princípio constitucional da
retroatividade obrigatória da lei mais benigna é que se aplique sempre a
norma mais favorável, seja ela um artigo, um parágrafo, um inciso, ou parte
dele quando for mais favorável ao agente. (MIRABETE, 2003, p. 113).

A conjugação pode ser efetuada não só com a inclusão de um dispositivo da


outra, como também com a combinação de partes de dispositivos das leis
anterior e posterior. Apesar das críticas de que não é permitido ao julgador a
aplicação de uma “terceira” (formada por parte de duas), essa orientação
afigura-se mais aceitável, considerando-se que o sentido da Constituição é
de que se aplique sempre a norma mais favorável. (MIRABETE, 2002, p.
67).

René Ariel Dotti também adere a esta possibilidade:

Quando as leis em conflito não possam ser consideradas separadamente,


cada qual no conjunto e suas normas aplicáveis ao fato, há necessidade de
se promover uma combinação para se extrair, de uma e de outra, as
disposições mais benéficas. Essa é a orientação mais avançada segundo a
lição dos mestres e os precedentes da jurisprudência. (DOTTI, 2004, p.
271).

Rogério Grecco leciona:

Entendemos que a combinação de leis levada a efeito pelo julgador, ao


contrário de criar um terceiro gênero, atende aos princípios constitucionais
de ultra-atividade e retroatividade benéficas. Se a anterior, já revogada,
possui pontos que, de qualquer modo, beneficiam o agente, deverá ser ultra-
ativa; se na posterior que revogou o diploma anterior também existem
aspectos que o beneficiam, por respeito aos imperativos constitucionais,
devem ser aplicados. (GRECCO, 2006, p. 123).

Cézar Roberto Bittencourt, comungando com os demais autores, registra sua


posição:

A nosso juízo, esse é o melhor entendimento, que permite a combinação de


duas leis, aplicando-se sempre os dispositivos mais benéficos. O Supremo
Tribunal Federal teve oportunidade de examinar essa matéria e decidiu pela
possibilidade da conjugação de leis para beneficiar o acusado (HC 69.033-
5- Rel. Min. Marco Aurélio, DJU, 1992, p. 2925). (BITTENCOURT, 2006,
p. 169).

Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, ao estudarem a matéria


relativamente ao artigo 33, §3º da Lei 11.343/2006, enfatizam:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Conclusão: preenchidos os requisitos desse novo art. 33, §3º, ele deve ter
incidência retroativa e vai alcançar todos os fatos passados, aplicando-se a
pena privativa de liberdade da nova, mantendo-se a pena de multa da antiga.
Com isso fica patente que o juiz não está “criando” uma terceira, ou seja, o
juiz não está “inventando” nenhum tipo de sanção: apenas vai aplicar as
partes benéficas de cada lei, aprovada pelo legislador. O que está vedado ao
juiz é ele “inventar” um novo tipo de sanção. Isso não pode. Aplicar tudo
aquilo que foi aprovado pelo legislador o juiz pode (e deve). (in “Nova Lei
de Drogas: retroatividade ou irretroatividade? (GOMES & CUNHA).

Por fim, apresentamos o entendimento de Fernando Galvão:

Ao contrário, pode-se entender que a possibilidade da combinação das leis é


extraída do próprio sistema normativo. Se a finalidade da garantia
constitucional que impõe retroatividade in mellius é beneficiar o autor do
fato, impedir a retroatividade da parte benéfica da lei nova é impedir a
aplicação do benefício pretendido pela carta constitucional. Portanto, a
combinação das leis é solução acolhida pelo ordenamento jurídico, quando
resultar em benefício para o autor do fato. (GALVÃO, 2007, p. 96).

O debate que vinha sendo realizado ante o Superior Tribunal de Justiça


alcançou recentemente a mais alta Corte brasileira. No ano de 2008, a Excelsa Corta apreciou
o HC 96.430 de relatoria da Min. Ellen Gracie, enfrentando o problema pela primeira vez e
julgando que a retroatividade do § 4º implicaria na violação do princípio da separação de
poderes (1ª corrente). Mais recentemente, contudo, nos julgamentos dos HCs 97.128 e
97.992 de relatoria do Min. César Peluso, foi adotada a tese da máxima efetividade das
normas constitucionais (2ª corrente), fazendo retroagir o §4º em obediência à garantia
constitucional da retroatividade benéfica. Recentemente o plenário do Supremo Tribunal
Federal pôde apreciar a questão no julgamento do RE 59.6152/SP de relatoria do Min.
Ricardo Lewandowsky, confrontando ambos os entendimentos.
Neste julgado, os Ministros Lewandowski, Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa,
Luiz Fux e Marco Aurélio decidiram pela adoção da posição tradicional – aplicação integral
do diploma jurídico (vedação da Lex tertia). Já os Ministros Ayres Britto, Cesar Peluso, Dias
Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello entenderam pela adoção da segunda corrente,
sustentando o não impedimento da retroatividade benéfica. Tendo em vista que a Ministra
Rosa Weber ainda não havia sido empossada na ocasião do julgamento, o caso restou
empatado (5x5) resolvendo-se o problema por meio da aplicação do artigo 146 do Regimento
Interno da Corte – em caso de empate prevalece a decisão mais favorável ao réu.

CONCLUSÃO

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Das várias discussões que a nova Lei de Drogas provocou no âmbito jurídico
brasileiro, nem todas ainda foram devidamente pacificadas pela doutrina e pela
jurisprudência. Uma destas questões ainda controvertidas consiste na possibilidade de
aplicação da causa de diminuição no crime de tráfico de drogas aos fatos ocorridos
anteriormente à vigência da Lei. O presente estudo verificou a existência de duas posições
teóricas acerca desta questão. A controvérsia se deve ao fato de que a antiga Lei de Tóxicos
previa uma pena mínima abstrata de 03 (três) anos, mas não estabelecia qualquer causa de
diminuição de pena. Já a nova Lei de Drogas aumentou a pena mínima abstratamente
cominada para 05 (cinco) anos, instituindo uma minorante (1/6 a 2/3) ao agente primário, de
bons antecedentes, que se dedica a atividades criminosas e não integra organizações
criminosas.
A primeira posição segue uma linha de entendimento tradicional, sendo
atualmente a posição dominante no Superior Tribunal de Justiça. Esta corrente nega a
incidência retroativa da causa de diminuição do § 4º em conjunto com a pena abstrata
cominada pela antiga Lei de Tóxicos, pois referida aplicação implicaria na cisão de
dispositivos legais e na combinação indevida de leis, criando uma terceira hipótese não
prevista pelo legislador ordinário. Tal situação resultaria na violação do princípio da
separação de poderes. A solução do problema se daria no âmbito do caso concreto, pela
aplicação integral de um ou outro diploma legal, verificando-se qual pena é mais benéfica ao
réu.
A segunda posição surge em contraposição ao entendimento tradicional e tem
encontrado uma adesão maior no Supremo Tribunal Federal. Esta corrente afirma que o
problema em questão não importa na combinação de combinação de leis (Lex tertia), pois não
se está criando um instituto híbrido, mas apenas fazendo prevalecer a garantia constitucional
da retroatividade da lei penal mais benéfica (Lex mitior) em atenção ao princípio da máxima
efetividade da Constituição. Sustenta-se, assim, a independência da minorante em relação ao
caput, que veio para resolver uma desproporção prévia que conferia o mesmo tratamento
penal à condutas desiguais.
De nossa parte, concordamos com os argumentos desenvolvidos pela segunda
corrente teórica. Do exposto, parece-nos claro que a ratio legis da minorante prevista no novo
diploma legal não se encontra no tratamento mais gravoso dado ao delito de tráfico de drogas
e sim na correção de uma valoração penal equivocadamente feita pela antiga Lei de Tóxicos.
Pensamos que uma interpretação constitucionalmente adequada não pode se basear

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

unicamente em aspectos formais da constituição abstrata do tipo penal, mas deve levar em
conta o aspecto substancial do texto jurídico, reconstruindo o sentido histórico dos institutos.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Rediscutindo a definição do delito de tortura e sua relação com o crime de maus-tratos

Rivisitando la definizione di tortura e la sua relazione al reato di maltrattamenti

Vanessa Chiari Gonçalves1

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceituando o delito de tortura: a


tortura-prova e a tortura-pena; 3. A tortura-pena e o delito de
maus-tratos; 4. Considerações Finais.

RESUMO

A Lei 9455/97 quando criminalizou o delito de tortura no Brasil ampliou o seu âmbito de
abrangência para além da chamada tortura-prova (praticada com a finalidade de obter
informações da vítima). Incluiu no conceito de tortura as violências físicas ou psicológicas
praticadas também com a finalidade de corrigir ou de castigas crianças e adolescentes. Tal
ampliação, no entanto, tem produzido na jurisprudência confusão entre os delitos de tortura e
maus-tratos. Os excessos na maneira de castigar/corrigir os filhos e demais dependentes do
agente, por meio de violência física (quando resultam em hematomas e escoriações) têm sido
considerados tortura por alguns julgadores e maus-tratos por outros. Produz-se, assim, um
severo enquadramento penal do agente e a banalização da tortura, que é um delito equiparado
aos crimes hediondos no Brasil.

Tortura; Maus-tratos; Crianças e adolescentes.

RIASSUNTO

La Legge 9455/97, quando criminalizzato il reato di tortura in Brasile ha ampliato il proprio


ambito di copertura oltre la chiamata torture-test (fatto con lo scopo di ottenere informazioni
dalla vittima). Incluso nel concetto di tortura, violenza fisica o psicologica praticata anche per
correggere o punire i bambini e gli adolescenti. Questa espansione, tuttavia, ha prodotto
1
A autora é Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Mestre em Ciências Criminais pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio
Grande. É professora adjunta de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
do Centro Universitário Metodista IPA, além de advogada em Porto Alegre.

281
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

confusione nella giurisprudenza tra i crimini di tortura, abuso e lesioni. L'eccesso sotto forma
di correzione dei bambini e altre persone a carico dell'agente con la violenza, se è il risultato
di lividi e abrasioni sono stati considerati un crimine di tortura da parte di alcuni giudici e
maltrattamenti o lesioni di altri. Produce fino dunque al di sopra dell'agente quadro penale e
banalizzazione della tortura, che è considerato un crimine efferato in Brasile.

Tortura; Maltrattamenti; Bambini e adolescenti

Introdução:

A Lei 9455/97 quando criminalizou o delito de tortura no Brasil ampliou o seu âmbito
de abrangência para além da chamada tortura-prova. Incluiu no conceito de tortura as
violências físicas e psicológicas praticadas também com a finalidade de corrigir ou castigas
crianças e adolescentes. Tal ampliação, no entanto, tem produzido no âmbito das decisões
judiciais confusão entre os delitos de tortura e de maus-tratos. Além disso, está em desacordo
com a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, que restringe o conceito de tortura à submissão da vítima a intenso sofrimento
físico ou psicológico com a finalidade especial de obter declarações ou confissões, por parte
de agentes públicos.

Desse modo, este estudo pretende desenvolver a ideia de que a definição de tortura
possui um conteúdo histórico-normativo que não deveria ter sido desprezado pela legislação
em vigor e que deve preocupar o intérprete do direito por diversas razões. Em primeiro lugar
porque a tortura tradicional vincula-se a uma finalidade específica, que é a de obter
declarações (tortura-prova); em segundo lugar porque pressupõe a utilização de métodos e
circunstâncias especiais de imposição de sofrimento; em terceiro lugar porque a banalização
do conceito de tortura-pena permite que haja confusão entre os delitos de maus-tratos e de
tortura, especialmente quando a violência é praticada pelos detentores do poder familiar com
a finalidade de corrigir crianças e adolescentes.

1. Conceituando o delito de tortura: a tortura-prova e a tortura-pena

O delito de tortura, como foi abordado na introdução deste artigo, possui um conteúdo
histórico-normativo que não deve ser desprezado pelo operador do Direito. A tortura
relaciona-se, normalmente, com um ritual meticuloso e previamente planejado de imposição

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

de dor e de sofrimento ao corpo ou a psique do Outro. O caráter histórico da tortura revela


uma variação conceitual significativa que algumas vezes permite que se confunda a tortura,
enquanto um método com finalidade específica, ao mero ato de castigar para corrigir. Ocorre
que nem todo o ato de crueldade ou forma de violência física ou psicológica pode ser
enquadrado como tortura.

A expressão tortura deriva do latim, como sinônimo de suplício (cruciatus), mas é


inegável que existe uma relação histórica desse tipo de conduta com a finalidade de obter
algum tipo de informação por parte do supliciado. O jurista romano Ulpiano, no século III, já
definia a tortura como sendo o “tormento e o sofrimento do corpo com a finalidade de obter a
verdade”. (PETERS, 1989, P. 7). Nesse sentido, Ana Lúcia Sabadell, em seu estudo sobre a
regulamentaçãoe a prática da tortura judicial no âmbito do processo penal, entre os séculos
XVI e XVIII, definiu este instituto como um “método de prova juridicamente
regulamentado”. Esse método destinava-se a “induzir o interrogado a “dizer a verdade” por
meio do emprego de violência física, confessando a autoria e/ou fornecendo informações
sobre as circunstâncias de comissão de um delito a respeito de cúmplices”. Dessa definição
resultam duas peculiaridades que diferenciam a tortura de outras formas de violência: o seu
caráter legal e investigatório (probatório) e a utilização da dor física como mecanismo de
pressão em detrimento de ameaças e sofrimentos psíquicos (SABADELL, 2006, p. 35-36).

Contemporaneamente, reconhece-se tanto a tortura física como a psicológica como


formas possíveis de se praticar o delito em questão. A tortura física abrange toda a forma de
submissão do corpo do Outro a dor e ao sofrimento, denotando “a manifestação produzida
pelas terminações nervosas que captam” sensações desagradáveis no corpo humano. Os
métodos utilizados são os mais variados como choques elétricos, espancamentos,
afogamentos, violência sexual, entre outros. (COIMBRA, 2002, p. 177)

Já, a tortura psicológica ocorre quando, em vez do emprego de violência física contra
o corpo do indivíduo, há simulação ou ameaça de agressão contra a vítima ou seus afetos. O
sofrimento mental acontece por meio de um estado de estresse e de angústia gerado no
torturado. Reconhece-se que o sofrimento físico também acarreta sofrimento mental, podendo
reduzir as funções cerebrais mediante a privação de comida, água, oxigênio, espaço físico
adequado ou, ainda, estimulando a sensibilidade cerebral do sujeito passivo por meio da sua
exposição contínua a sons, a luz, ao frio ou ao calor excessivos, somente para citar. (PETERS,
1989, p. 9)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

No que tange à finalidade, a tortura pode ser classificada como tortura-prova e tortura-
pena. Entende-se por tortura-prova todo tipo de sofrimento físico ou psicológico infligido a
alguém com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa, mediante o emprego de violência física ou grave ameaça. A segunda, a tortura-pena,
não se diferencia da tortura-prova quanto aos seus mecanismos de produção, mas em relação à
sua intencionalidade que, neste caso, será a de submeter à vítima a um intenso e diferenciado
sofrimento físico ou psíquico como forma de aplicação de um castigo.

É importante observar, também, que a história semântica da expressão tortura possui


uma dimensão pública, porque a tortura apresenta como elemento fundamental o fato de ser
um tormento tolerado ou praticado por uma autoridade pública com finalidade pública. Não se
pode esquecer de que a ampliação da definição da tortura, para incluir outros tipos de
brutalidades ou coerções praticadas por particulares, vincula-se a um fenômeno que ocorreu
após o século XVII, quando a conceituação legal de tortura foi paulatinamente sendo
substituída, em um primeiro momento, por uma definição de ordem moral e, especialmente,
após o século XIX acabou alcançando uma proporção moral-sentimental “que designa o ato
de causar sofrimento de qualquer tipo em qualquer pessoa, para qualquer propósito – ou
mesmo sem propósito” previamente determinado. (PETERS, 1989, p. 9).

Para a Anistia Internacional a expressão “tortura” abrange “o abuso de prisioneiros


efetuado por funcionários, militares ou civis, sob a ordem e sob a cobertura das autoridades
superiores”. Assim, não haveria diferença entre a tortura imposta a um suposto criminoso,
para lhe extrair a confissão ou a delação de cúmplices, e aquela empregada com a finalidade
de criar artificialmente uma atmosfera de medo e angústia coletivos, aterrorizando o ambiente
por aversão ao inimigo. (BIOCCA, 1974, p. 182-183). Reforça-se, desse modo, o caráter
histórico das mais diversas formas de tortura, não sendo, por isso, correto afirmar que haveria
necessariamente um processo contínuo ou uma evolução linear entre a tortura praticada em
outros tempos e aquela que se pratica na contemporaneidade.

Do ponto de vista da legalidade, o processo de repúdio e, posteriormente, de


criminalização da tortura é ainda muito recente. Embora alguns autores façam referência à
abolição da tortura, sabe-se que ela nunca foi abolida na prática, permanecendo viva e sendo
aplicada cotidianamente. Michel Foucault refere que a redução do suplício consiste numa
tendência com origem na “grande transformação de 1760-1840, mas que não chegou ao
termo”. (FOUCAULT, 1993, p. 19). Ao final da primeira metade do século XX, a criação da

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Organização das Nações Unidas e a elaboração da Declaração Universal dos Direitos


Humanos (1948) deram um caráter internacional aos bens jurídicos violados mediante a
prática da tortura, que passaram a ser vistos como inerentes a todo ser humano. Seguiram-se
a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes (1984) e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985).
Mais recentemente, as Nações Unidas aprovaram o Estatuto de Roma que arrola uma série de
delitos considerados crimes contra a humanidade, entre os quais está a tortura e, por isso,
passíveis de julgamento pelo Tribunal Penal Internacional.

A Constituição da República, de 5 de outubro de 1988, em seu art. 5º, inciso III


dispõe: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”,
reproduzindo assim dispositivos dos tratados internacionais de direitos humanos. Já no inciso
XLIII do mesmo artigo, afirma que a prática da tortura, entre outros crimes, é inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia. Nessa esteira, em 1997, a tortura foi tipificada no Brasil, por
meio da Lei 9455/97. Pela referida lei, vários tipos de condutas que importem sofrimento
físico ou psíquico são consideradas tortura. A chamada tortura-prova, prevista no art. 1º, I, a,
foi assim definida: “Constitui crime de tortura constranger alguém com emprego de violência
ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação,
declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa”. No parágrafo 4º, inciso I, do art. 1º,
da Lei 9455/97, está prevista uma causa de aumento de pena quando o crime for cometido por
agente público. Pode-se perceber, portanto, que o conceito de tortura-prova na Lei brasileira é
bastante amplo e inclui qualquer tipo de violência empregada com a finalidade de obter uma
confissão. (GONÇALVES, 2011, p. 24).
Por sua vez, o art. 1º da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes define o termo “tortura” da seguinte forma:

Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual
dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a
uma pessoa a fim de obter dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões;
de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer
motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de
funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência.
Não se considerarão como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência
unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas
decorram.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Tanto a definição de tortura dada pela Convenção contra a Tortura e outros


Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, como a definição da Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura2 exigem a autoria ou a participação de agente
do Poder Público para a configuração do delito. A qualidade especial do sujeito ativo como
condição do crime é diversa da lei brasileira que considera a presença de agente público
dispensável para a configuração do crime, constituindo, dessa forma, a sua presença apenas
uma causa de aumento de pena (BIERRENBACH, 2006, P. 13).

No âmbito do direito comparado, destaca-se que, na Espanha, o crime de tortura está


tipificado no artigo 174 do Código Penal Espanhol, cujo texto corresponde ao conceito de
tortura das normas internacionais, uma vez que o referido tipo penal exige a concorrência de
três elementos para que o delito se configure: um elemento material que diz respeito às
próprias ações ou métodos que constituem tortura, a qualificação do sujeito ativo como
representante do poder do Estado e um elemento teleológico que exige uma determinada
finalidade para configurar autonomamente o delito. Segundo Muñoz Conde, o tipo penal do
artigo em questão exige efetivamente que o sujeito ativo “seja autoridade ou funcionário
público (anexo 1) ou bem, autoridade ou funcionário de instituições penitenciárias ou de
centros de proteção e correção de menores (anexo 2)”. Esse especial elemento subjetivo do
tipo é o que constitui a essência da chamada “tortura indagatória”. Isso justifica a previsão de
uma pena de maior gravidade por expressar não só um ataque contra bens jurídicos
fundamentais de caráter individual, mas também um abuso por parte do sujeito ativo da sua
condição de funcionário público. Ultrapassa as fronteiras de sua legitimidade para investigar
um determinado fato ou atribui a si mesmo faculdades que lhe são alheias, como o poder de
aplicar um castigo por um fato cometido ou que se suspeite que o sujeito passivo tenha
cometido. (CONDE, 2004, p. 194-195).

2
Art. 2º Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo o ato pelo qual são infligidos
intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, como medida preventiva, como pena ou
qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a
anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física
ou angústia psíquica. Não estão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais
que sejam unicamente consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização
dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo. Art. 3º Serão responsáveis pelo delito de tortura:
Os empregados ou funcionários públicos que instiguem, atuando nesse caráter, ordenem sua execução ou
induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam. As pessoas que, por instigação dos
funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea “a”, ordenem sua execução, instiguem ou induzam
a ela, cometam-no diretamente ou nele sejam cúmplices (Artigos da Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Ainda no tocante às críticas quanto à restrição do delito de tortura para os casos em


que o agente exerce funções públicas, José Arzamendi argumenta que a condição de
funcionário público como sujeito ativo do delito em questão é inerente à “história semântica
da tortura”. Essa, juridicamente, conectava-se com a produção de uma prova por meio da
confissão ou do testemunho de alguém e não com atividades vinculadas à vingança privada. É
justamente essa peculiaridade que distingue a tortura enquanto injusto penal das demais
formas de crueldade e maus-tratos, elevando a repressão do delito de tortura ao interesse
internacional, especialmente porque “sua prática por elementos pertencentes ao aparato de
Estado deixa as vítimas absolutamente desprovidas de proteção”. (ARZAMENDI, 1990, p.
34).

Com relação à definição do crime de tortura, percebe-se que há uma dificuldade de se


compreenderem quais condutas são consideradas graves o suficiente para se enquadrarem no
conceito de tortura ou, então, não tão graves a ponto de se enquadrarem no conceito de tratos
desumanos ou degradantes, segundo a Convenção contra a Tortura e outros tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes, de 1984. A indeterminação presente nas definições legais
do crime de tortura preocupa juristas de vários países signatários da Convenção contra a
Tortura, dada a dificuldade de precisar o que se entende por grave sofrimento físico ou
psíquico. Há quem sugira a valoração do contexto social e cultural para a determinação do
que seja grave sofrimento, uma vez que, em países onde o castigo corporal é tolerável, esse
conceito seria relativizado. Há ainda quem defenda o critério de aptidão da conduta praticada
para vencer a resistência da vítima. No entanto, tal indeterminação não tem como ser superada
com base em critérios subjetivos, ficando ao arbítrio de o julgador determinar o alcance do
delito de tortura, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. (ARZAMENDI, 1990, p.
42-43)

Já em Portugal, a tipificação do delito de tortura também pressupõe que o agente seja


funcionário público. Sua função, preferencialmente, é a investigação e a prevenção de
infrações penais, podendo praticar a conduta tanto com a finalidade de obter declaração ou
confissão do acusado como a de aplicar-lhe castigo corporal.3

3
Texto literal do Código Penal Português: Artigo 243º Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou
desumanos: 1 - Quem, tendo por função a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infracções
criminais, contra ordem nacionais ou disciplinares, a execução de sanções da mesma natureza ou a proteção,
guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa, a torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana para:
a) Obter dela ou de outra pessoa confissão, depoimento, declaração ou informação; b) A castigar por acto
cometido ou supostamente cometido por ela ou por outra pessoa; ou c) A intimidar ou para intimidar outra

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Defende-se, neste estudo, a ideia de que a nomenclatura do delito de tortura deveria


restringir-se à noção de tortura-prova, isto é, aquela que se realiza com a finalidade de obter
informações ou confissão do acusado. Qualquer outro tipo de tormento aplicado com a
finalidade de castigar deveria receber nome e classificação penal distinta, como tratos
desumanos ou degradantes, maus-tratos ou lesão corporal qualificada pelo meio cruel. Isso
também porque o delito de tortura preocupa tanto que veio elencado no rol de crimes contra a
humanidade, previstos no Estatuto de Roma.

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi promulgado no Brasil por


meio do Decreto presidencial 4388, de 25 de setembro de 2002. Esse Estatuto, em seu artigo
7º, parágrafo 1º, apresenta uma série de ações que são definidas como crimes contra a
humanidade, desde que sejam cometidas “no quadro de um ataque, generalizado ou
sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Dentre as
ações mencionadas, está a tortura (alínea f). Já, no parágrafo 2º, do mesmo artigo 7º,
aparecem algumas definições importantes. Na alínea a, consta que, por ataque contra a
população civil, deve-se entender “qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos
referidos no parágrafo 1º contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado
ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política”.
E, na alínea e, está disposto que, por tortura, entende-se

o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são
intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do
acusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente
de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas.

pessoa; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal. 2 - Na mesma pena incorre quem, por sua iniciativa ou por ordem superior, usurpar a função
referida no número anterior para praticar qualquer dos actos aí descritos. 3 - Considera-se tortura, tratamento
cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço
físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais,
com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima. 4 - O
disposto no número anterior não abrange os sofrimentos inerentes à execução das sanções previstas no nº 1 ou
por ela ocasionados, nem as medidas legais privativas ou restritivas da liberdade. Artigo 244º Tortura e outros
tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos graves: 1 - Quem, nos termos e condições referidos no artigo
anterior: a) Produzir ofensa à integridade física grave; b) Empregar meios ou métodos de tortura particularmente
graves, designadamente espancamentos, eletrochoques, simulacros de execução ou substâncias alucinatórias; ou
c) Praticar habitualmente actos referidos no artigo anterior; é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos. 2 - Se
dos factos descritos neste artigo ou no artigo anterior resultar suicídio ou morte da vítima, o agente é punido com
pena de prisão de 8 a 16 anos. Artigo 245º Omissão de denúncia: O superior hierárquico que, tendo
conhecimento da prática, por subordinado, de facto descrito nos artigos 243º ou 244º, não fizer a denúncia no
prazo máximo de 3 dias após o conhecimento, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Observa-se, assim, que o Estatuto de Roma ao definir a tortura enquanto crime contra
a humanidade, seguiu, em parte, a tradição dos tratados e das convenções internacionais, no
sentido de vincular aos agentes estatais a possibilidade de sua autoria. Estendeu, também, o
lugar de sujeito ativo aos membros de organizações subversivas ou terroristas que mantenham
as vítimas em seu poder, com restrição da liberdade de ir e vir. Salienta-se, no entanto, que o
elemento objetivo configurador do tipo passou a ser a dor ou os agudos sofrimentos físicos ou
mentais, sem a exigência de dolo específico, no sentido da obtenção de declaração ou
confissão dos torturados.

2. A tortura-pena e o delito de maus-tratos

A opção da lei brasileira por criminalizar sob a mesma nomenclatura tanto a tortura-
prova, destinada à obtenção de informações, delações ou confissões, como a tortura-pena,
método cruel de imposição de castigo para a correção, gerou um fenômeno inquietante na
jurisprudência. São raros os julgados a respeito do delito de tortura-prova praticado por
policiais contra cidadãos, o que indica que cifra obscura desse tipo de crime é elevada. Por
outro lado, são volumosos os casos de condenação por tortura praticada por pais ou
responsáveis contra crianças e adolescentes.

A consolidação de uma jurisprudência vinculando o delito de tortura aos excessos nos


meios de correção praticados contra crianças e adolescentes têm consequências preocupantes.
Confunde-se o delito de maus-tratos tipificado no Código Penal (art. 316) com o delito de
tortura-pena, previsto no artigo 1º, II, da Lei 9455/97 que é equiparado aos crimes hediondos.
Por mais que se pretenda combater a forma violenta e inadequada com que crianças
brasileiras são culturalmente e historicamente “disciplinadas”, não podem ser confundidos
ambos os delitos por diversas razões.

O direito de correção foi considerado natural e decorrente do poder do chefe do grupo


familiar durante boa parte da história. A maioria das legislações do século XIX não tipificava
o delito de maus-tratos. No Brasil, punia-se apenas as lesões corporais. O próprio Código
Imperial de 1830, no seu artigo 14, par. 3 º, considerava justificado o delito de lesões
corporais quando o mal consistisse no castigo moderado que os pais aplicassem a seus filhos,
os senhores a seus escravos e os mestres a seus discípulos. (PIERANGELI, 2005, p. 175). O
Código de 1890 não dispôs nada a esse respeito. Assim, a tipificação do delito de maus-tratos

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só foi introduzida na legislação brasileira com o Código de Menores, de 1927, que em seus
artigos 137 a 140, punia os abusos dos meios corretivos praticados “contra os menores de 18
anos, mesmo quando constituíssem simples perigo à vida ou saúde do sujeito passivo”. O
delito era qualificado quando os castigos causassem lesão corporal grave ou comprometessem
“gravemente o desenvolvimento intelectual do menor”, e se o delinquente pudesse prever esse
resultado” (HUNGRIA, 1958, p 448).

Ao tratar do delito de maus-tratos, o artigo 136 do Código Penal atualmente vigente


dispõe: “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância,
para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou
cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer
abusando de meios de correção ou disciplina”. Interessa compreender a amplitude da última
circunstância descrita no tipo penal: o abuso dos meios de correção ou disciplina. Existe uma
finalidade em princípio justa que é a da corrigir ou disciplinar, mas a conduta é tipificada
porque o justo fim não pode autorizar o excesso do meio.

Mesmo na década de 40 do século XX, época em que o Código Penal foi publicado no
Brasil, já se sabia que a violência como meio de reprovação não era adequada do ponto de
vista pedagógico porque deprime em vez de corrigir, suscita o ódio em vez da confiança,
“fomenta a hipocrisia, atrofia a dignidade, paralisa a vontade”. No entanto, a confusão que se
faz entre o antigo injusto penal de maus tratos e o recente injusto penal da tortura-pena não se
justifica juridicamente. Observa-se que é qualificado o delito de maus tratos se do fato resulta
lesão corporal de natureza grave ou morte, desde que estes eventos qualitativos sejam
preterdolosos, uma vez que se forem dolosos passarão a ser definidos como lesão corporal
grave ou homicídio doloso, respectivamente. Nelson Hungria advertia que o delito de maus-
tratos é crime de perigo, cujo dolo específico é a “vontade consciente de maltratar o sujeito
passivo, de modo a expor-lhe a perigo a vida ou saúde”. Não há necessidade de subordinação
dos maus-tratos ao critério da habitualidade, embora se reconheça que em alguns casos sem a
habitualidade não há como haver causação de perigo. (HUNGRIA, 1958, p. 452-453).

Por sua vez, o delito de tortura-pena, previsto no artigo 1º, II, da Lei 9455/97, está
assim definido: “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar
castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. A pena prevista é de dois a oito anos de
reclusão. Novamente é importante destacar que caberá ao intérprete estabelecer a amplitude

290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

da expressão intenso sofrimento físico ou mental, tomando como referência o critério da


proporcionalidade e o bom senso, especialmente quando relações familiares estão em jogo.

A Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul posicionou-


se da seguinte maneira sobre essa questão:

APELAÇÃO CRIME.
CRIME DE TORTURA CONTRA UMA CRIANÇA DE TRÊS ANOS DE
IDADE. MATERIALIDADE E AUTORIA PROVADAS.
DESCLASSIFICAÇÃO PARA OS DELITOS DE MAUS TRATOS E LESÕES
CORPORAIS. IMPOSSIBILIDADE. Impossível a desclassificação para qualquer
outro delito, quando a prova carreada aos autos, comprova, modo categórico, ter sido
a vítima, criança de três anos de idade, diariamente submetida a agressões cruéis, sem
motivo nenhum que as justificasse, gerando intenso sofrimento físico e mental. Resta
caracterizado, portanto, o crime de tortura.
QUALIFICADORA. A qualificadora prevista no § 3º do art. 1º da Lei 9.455/97,
veio devidamente comprovada pelos laudos de exame de corpo de delito que
atestaram ser as lesões de natureza grave. Por outro lado, as contradições alegadas,
quanto aos referidos laudos, não se verificam, pois aquele que silenciou quanto ao
quesito – perigo de vida –, foi referente ao exame de conjunção carnal e ato libidinoso
diverso da conjunção carnal.
PENA. REDIMENSIONAMENTO. Ocorrência de bis in idem na análise dos
vetores judiciais do artigo 59 do Código Penal. Não pode ser atribuída às
circunstâncias, consequência do crime, assim como o comportamento da vítima, a
idade da vítima, pois esta é causa da majoração de pena conforme se verifica do artigo
1º, § 4º, inciso II, da Lei nº 94.55/97. Pena reduzida.
DECISÃO MAJORITÁRIA NO SENTIDO DE DAR PROVIMENTO, EM PARTE,
AOS APELOS DEFENSIVOS, REDUZINDO OS APENAMENTOS, VENCIDO O
RELATOR, QUE NEGOU PROVIMENTO. (JAHP nº 70010433753, 2004)

Como se pode perceber no precedente critérios como a idade da vítima, a frequência e


a gravidade das lesões foram consideradas determinantes para o enquadramento da conduta
no tipo penal da tortura-pena. Mas, retornando à problematização do último aspecto do tipo
penal do artigo 136 do CP, isto é, o abuso de meios de correção ou disciplina, algumas
conclusões são relevantes. É justamente no abuso dos meios de correção que a violência física
ingressa mais fortemente. Pode-se afirmar que é o excesso do meio corretivo, colocando em
risco a vida ou a saúde da vítima, que irá caracterizar o crime de maus-tratos, em que pese
reconheça-se o direito de correção aos pais e responsáveis. Cezar Bitencourt refere que “o
corretivo aplicado pelo pai que resulta em leves escoriações ou hematomas, não afetando a
saúde do menor, nem colocando em risco sua vida, não caracteriza o excesso do ius
corrigendi”, não configurando, portanto sequer o crime de maus-tratos (BITENCOURT,
2012, p. 305).

291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Entende-se que o castigo físico imposto pelos pais aos filhos menores com moderação
e finalidade pedagógica não configura o delito de maus-tratos. Diferente será a situação de um
pai que “desfere um soco no filho menor ou produz nele lesões corporais pelo uso de ferro em
brasa” porque nesse caso estaria claro o exercício abusivo e inadequado do direito de corrigir.
(PIERANGELI, 2005, p. 179). No mesmo sentido segue precedente do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo:

Distinção com tortura – TJSP: “Se o pai cruel impunha ao filho atroz sofrimento por
não aceitar o comportamento da criança, que costumeiramente fazia necessidades
fisiológicas nas próprias vestes, o comportamento anormal não caracterizou,
certamente, o crime de tortura que é praticado por puro sadismo imotivado e sim o de
maus tratos que diz respeito ao propósito de punir para corrigir” (RT 699/308 e
RJTJESP 148/280).

É importante sintetizar as inúmeras circunstâncias e consequências que diferenciam o


delito de maus-tratos do delito de tortura-pena contra crianças ou adolescentes. A finalidade
de corrigir e disciplinar aparece em ambos os tipos penais, mas para que se configure o delito
de tortura deve-se infligir um intenso sofrimento físico ou psicológico na vítima. Para que se
possa concretamente avaliar a intensidade do sofrimento causado é preciso que se observe a
idade da vítima, a gravidade, a extensão e número de lesões provocadas que indicariam o
meio cruel, bem como a frequencia e o método ritualizado. Tudo acompanhado de uma
intencionalidade do agente voltada para a causação de sofrimento intenso e não apenas de
agressões físicas ou verbais decorrentes de uma forte emoção ou cólera momentanea. Em
alguns casos, a extrema crueldade que carcteriza a tortura-pena fica bastante evidenciada,
como se verifica no precedente a seguir:


“TORTURA - Agressão sistemática a menor sob guarda - laudo pericial -configuração
do delito do artigo 1, II da lei 9455/97 e não maus tratos. 1. Sinais de agressão física
disseminados por todo o corpo da criança, com informações de sessões de ameaça de
afogamento, configuram tortura e não maus tratos. A intenção de causar sofrimento
esta comprovada pela sistemática e indiscriminada agressão somada a outras práticas
cruéis, muito além da pretensa correção, que não teria qualquer efeito em um bebê
com um ano e oito meses. 2. Tortura pode ser física ou mental; esta não deixa
vestígios materiais, prescindindo o tipo, de laudo pericial, se o relatório médico,
somado aos testemunhos, é substancial. 3. Negado provimento. (8 fls.) (Apelação
Crime nº 70001485325, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Desª. Elba Aparecida Nicolli Bastos, julgado em 19/10/00).

Deve-se compreender que a banalização da definição de tortura não contribui para a


prevenção de novas condutas violentas. É preciso transformar a cultura de violência como

292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

forma de disciplina por meio da instrução de pais e responsáveis. A condenação de um pai ou


de uma mãe, que se excedeu nas formas de correção causando lesões corporais leves no filho,
por delito de tortura, fere o princípio da proporcionalidade. A tortura como se sabe possui um
conteúdo histórico muito expressivo que a vincula à tortura-prova. Ainda que se admita a
opção legislativa de nominar de tortura (tortura-pena), a imposição de métodos cruéis, de
verdadeiras técnicas de tortura contra crianças e adolescentes com o vago argumento da
disciplinarização, sabe-se, que as circunstancias do caso concreto são extremamente
reveladoras da real intencionalidade do agente.

Vive-se num momento em que o clamor por punições cada vez mais severas é
estimulado pelo aparato midiático, fundado na crença de que o sistema de justiça criminal tem
o poder e a função de disciplinar as pessoas, alterando padrões de comportamento culturais.
No entanto, é preciso compreender a dinâmica da violência doméstica contra crianças e
adolescentes na sua complexidade. É inegável que a violência acarreta inúmeras
consequências para o desenvolvimento da pessoa. Uma pesquisa realizada pelo Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, entre os anos de 2002 e
2003 com estudantes do curso diurno das 7ª e 8ª séries do ensino fundamental e dos 1º e 2º
anos do ensino médio de escolas públicas e particulares do município de São Gonçalo, na região
metropolitana do Rio de Janeiro, que contou com 309.216 crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos
chegou a conclusões muito reveladoras:

Os resultados deixam clara a elevada frequência com que a violência ocorre no âmbito da
família e das pessoas próximas aos adolescentes. Quase um quinto desses jovens sofre
agressões severas, que envolvem chutes, mordidas, espancamento e até ameaças com arma de
fogo ou faca. Quanto à violência psicológica, cerca de metade dos adolescentes convive com
ela direta ou indiretamente. Os adultos os humilham, não os elogiam quando agem
corretamente e não os estimulam para os desafios que precisam enfrentar. Também quase um
quinto desses adolescentes já passou por experiências sexuais traumáticas ou perturbadoras; já
testemunhou violência sexual sofrida por algum membro da família; já teve medo de sofrer
violência sexual quando um dos pais estava sob efeito de álcool ou drogas; e já se envolveu em
relação sexual com os pais.
Ficou constatado que adolescentes que sofreram maus-tratos familiares sofrem mais episódios
de violência na escola, vivenciam mais agressões na comunidade e transgridem mais as normas
sociais, fechando assim um círculo de violência. Eles também têm menos apoio social, menor
capacidade de resiliência e uma baixíssima autoestima. A violência psicológica, por sua vez,
mostrou-se mais presente entre aqueles com menos resiliência – capacidade de seguir em frente
superando as dificuldades impostas pela vida, essencial para o desenvolvimento pessoal e para
uma boa qualidade de vida do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade. Percebe-se, assim,
como essa forma de violência pouco valorizada pela sociedade é capaz de fragilizar a posição
do adolescente e dos futuros adultos no mundo (AZEVEDO, 2005, p. 18).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

No mesmo sentido, Winnicott ao abordar as raízes da agressividade na infância afirma


que a agressão tem um duplo significado: é uma fonte de energia do indivíduo e representa
uma reação direta ou indireta à frustração. (WINNICOTT, 1982, p. 262). A “tendência
antissocial não se relaciona com uma carência, mas sim como uma privação”, de modo que se
pode entender que um fracasso específico teria mais importância do que um fracasso social
geral no desenvolvimento da criança. Certas modificações ambientais podem alterar a vida
inteira da criança quando estas mudanças acontecem numa idade em que ela já possui
condições para entender as coisas. Assim, mesmo diante de uma privação decorrente do
rompimento do lar, da separação dos pais com desavenças mútuas, a sensação de insegurança
e o grau de ansiedade que atingem a criança são muito expressivos, podendo gerar quadros de
agressividade e até mesmo antissociais (WINNICOTT, 1999, p. 82 e 86). Os efeitos nocivos
da violência presenciada ou sofrida no desenvolvimento da personalidade são imensuráveis.
Há, inclusive, uma tendência de que essa criança na fase adulta venha a reproduzir o mesmo
padrão de comportamento dos seus pais com os seus dependentes alimentando o mesmo
círculo de violência na família. Por isso, o enfoque estatal deve concentrar-se em primeiro
lugar no acompanhamento das vítimas de violência na infância e no esclarecimento dos pais
agressores. Punições severas, além de tecnicamente inadequadas, não solucionam ou, ainda,
agravam os conflitos familiares. É preciso compreender a complexidade do problema da
violência contra crianças e adolescentes para que o círculo de agressividade possa então ser
quebrado.

Considerações Finais:

Entende-se que a denominação tortura deveria ter sido destinada especialmente para os
casos de tortura-prova, seguindo-se a tradição de outros países e dos tratados internacionais
do quais o Brasil é signatário. De qualquer modo, os tratos desumanos ou degradantes,
tipificados como tortura-pena no Brasil, não podem ser confundidos com o delito de maus-
tratos de crianças e adolescentes por inúmeras razões. Para que se configure a tortura-pena
para além de observar as condições da vítima (idade e gravidade das lesões) é imprescindível
que se investigue a intencionalidade específica do agente de causar um intenso sofrimento
físico ou psíquico na vítima. Nesse aspecto, critérios como a frequência das agressões e os
métodos empregados são muito importantes.

294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Não se desconhece que os efeitos da violência na infância são extremamente danosos


ao desenvolvimento de crianças e adolescentes como se pôde observar. No entanto, por se
tratar de um problema cultural: a falsa crença de que a violência é uma forma eficaz de
educar, a solução deve necessariamente passar, de um lado pelo esclarecimento de pais e
educadores e, de outro, pelo acompanhamento psicológico da vítima. A intervenção mais dura
por parte do Estado, mediante a imposição de pena privativa de liberdade e equiparação a
delito hediondo, deve-se restringir às condutas realmente graves e injustificáveis, que
denotam um especial grau de perversidade do agente. Não se pode confundir a amplitude do
delito de maus-tratos (punido com pena de dois meses a um ano de detenção, quando resulta
perigo, e com pena de reclusão de 1 a 4 anos se resulta lesão corporal de natureza grave) com
o gravíssimo delito de tortura-pena, que é equiparado para vários fins aos delitos hediondos e
para o qual está prevista uma pena de reclusão de 2 a 8 anos.

As inúmeras pesquisas na área da psicologia também podem embasar as interpretações


dos operadores do Direito, a fim de que a questão da violência familiar contra crianças e
adolescentes possa ser pensada de forma sensata. Sabe-se que adultos violentos muitas vezes
estão apenas reproduzindo com os seus filhos a mesma forma prejudicial de disciplinar que
receberam na sua infância, porque esta é a maneira de lidar com os conflitos conhecida por
eles. O desconhecimento da complexidade do problema da violência doméstica contra
crianças e adolescentes, resulta num enfoque voltado para a punição do agressor, enquanto a
vítima permanece sem a devida assistência. Ocorre que tal opção não contribui para a ruptura
do círculo de violência nas famílias.

Bibliografia:

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estructura típica del art. 204 bis del Código Penal. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S.A.,
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BIERRENBACH, Sheila e LIMA, Walberto Fernandes. Comentários à Lei de Tortura –


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295
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. Vol. 2. 12. Ed. São
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 10. ed. Tradução de
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http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/26300/tese%20FINAL.pdf?sequence
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HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. 5. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,
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WINNICOTT, D. W. A Criança e o seu Mundo. Tradução de Álvaro Cabral. 6. ed. Rio de


Janeiro: LTC, 1982.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

DO SIMBOLISMO PENAL E DA LEI MARIA DA PENHA: A (IN)EFETIVA


PROTEÇÃO DA MULHER

FROM THE CRIMINAL SYMBOLISM AND MARIA DA PENHA LAW: THE


(IN)EFFECTIVE WOMAN PROTECTION

Andréia Colhado Gallo Grego Santos


Bruno Baltazar dos Santos

RESUMO: O presente artigo analisa a questão do gênero feminino, tanto em relação às


mulheres quanto aos homens, para posteriormente enquadrá-lo no conceito de violência de
gênero e, finalmente, na violência intrafamiliar. Além disso, trata da relação da paternidade
responsável com a violência familiar, bem como, dos reflexos da Lei Maria da Penha no
exercício desse instituto. Aborda a definição e caracterização teórica e prática da atuação
meramente simbólica do Direito Penal e suas consequências, especialmente no âmbito da
Lei 11.340/2006. Partindo de uma análise da estrutura responsável pelo mero simbolismo
penal, insere-se a influência da mídia e, consequentemente, a pressão popular. Destaca-se a
questão do oportunismo legislativo, que resulta na adoção de medidas imediatistas,
contrárias às bases fundamentais do Direito Penal, bem como ao Estado Democrático de
Direito, com o objetivo de promoção pessoal do legislador. Apresentam-se os aspectos que
tornam a Lei Maria da Penha ineficaz no combate à violência doméstica e familiar e o
reflexo dessa inefetividade na estruturação da família, bem como algumas perspectivas de
solução do problema.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Direito Penal; Simbólico; Mídia; Violência Intrafamiliar.


Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do Centro
Universitário de Maringá – CESUMAR. Bolsista da CAPES pelo Projeto PROSUP. Especializanda em
Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Graduada em Direito pela Universidade
Estadual de Maringá (2008).

Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do
Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá –
CESUMAR.
Orientados por Valéria Silva Galdino Cardin, professora da Universidade Estadual de Maringá e do Centro
Universitário de Maringá-PR; mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo; pós-doutoranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Advogada em Maringá-PR.
Endereço eletrônico: valeria@galdino.adv.

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ABSTRACT: This paper analyzes the female gender question, related to women, as it is to
men, for, later, frame it in the concept of gender violence and, finally, in the family violence.
Beyond, it is about the paternity relation, responsible with the family violence, as well as the
reflections of the Maria da Penha Law in exercising this institute. It approaches the
definition and characterization of theoretical and practical work purely symbolic of the
Criminal Law and its consequences, especially under the Law11.340/2006. Starting with an
analysis of the responsible structure from the mere criminal symbolism, it is added the
media influence and, consequently, the popular pressure. The legislative opportunism is
highlighted, resulting on the immediatists measures adoption, which are against the Criminal
Law fundamental basis, as well as the Law Democratic State, which aims the personal
promotion of the legislator. The aspects that make Maria da Penha Law ineffective are
presented in the fight against the domestic and family violence and the reflection of this
ineffectiveness in family structuring, as well as some expectations for solving the problem.
KEY-WORDS: Gender; Criminal Law; Symbolic; Media; Intrafamily Violence.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo mostrar a construção do Direito Penal


simbólico e o seu confronto e desrespeito aos princípios fundamentais penais, revelar como
a edificação da legislação atinente ao combate da violência intrafamiliar é insatisfatória e,
por fim, quais seriam as perspectivas de solução para o problema. Para tanto, demonstrar-se-
á a conceituação e caracterização do gênero feminino, a fim de enquadrá-lo como motivo
principal da violência doméstica e familiar.
Em que pese o Direito Penal esteja acobertado pela intervenção mínima, vê-se que
atualmente o seu caminho tem sido oposto a isso, eis que, ao contrário do que propõe o
referido princípio, o surgimento de novos tipos penais tem aumentado drasticamente, assim
como as penas tem sido cada vez mais rigorosas.
No que diz respeito às mudanças penais no tocante à violência doméstica, será
possível verificar que o Direito Penal atua de forma simbólica e gera graves sequelas a toda
família.
Evidente que, a sociedade atual – por influência da mídia que cria um cenário de
insegurança nem sempre real –, supõe viver em uma situação de risco constante, exigindo,
portanto, o aumento do rol de condutas delitivas e, sobretudo, do rigor das penas aplicadas.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Dentro dessa perspectiva tem-se que a violência é divulgada, muitas vezes, de


maneira previamente programada e tendenciosa, incitando na sociedade o anseio por
medidas mais eficazes no controle da criminalidade, o que gera o aumento exacerbado de
leis rigorosas e imediatistas, que se prestam, repetidas vezes, para aqueles que integram o
poder, nele se manterem.
Assim, é muito mais fácil para o Poder Legislativo atender aos anseios da
população criando normas imediatistas, o que contribui para a atuação simbólica do Direito
Penal, do que resolver efetivamente os verdadeiros problemas sociais.
Diante disso, poder-se-á concluir que o Direito Penal simbólico segue um caminho
oposto às garantias estabelecidas nos princípios fundamentais da tutela penal, bem como
confronta o verdadeiro papel da pena, colocando-se como um instrumento simplista na
resolução de um problema tão complexo que é a criminalidade, sobretudo no âmbito
familiar.
O método utilizado para a feitura deste trabalho é o teórico, que consiste na
consulta de obras e artigos de periódicos que tratam do tema.

2 DO GÊNERO FEMININO E SUA PROTEÇÃO

Para compreendermos as falhas contidas na Lei 11.340/2006, é necessário


compreender primeiramente o motivo que levou o legislador a editar tal lei, ou seja, a
relação de hipossuficiência em razão do gênero nas relações familiares.
Desde as famílias mais antigas, em Roma, o homem sempre exerceu um papel de
superioridade sobre a mulher e os filhos, tanto que nas famílias romana imperava o pater
familia, ou seja, um direito soberano sobre os demais membros familiares. Os historiadores
do direito romano, tendo justamente notado que nem o afeto nem o parentesco eram o
fundamento da família, julgaram que o poder do pai ou do marido fundamentava a
organização familiar. Fustel de Coulanges ensina que a autoridade paterna originou-se da
religião e foi por ela estabelecida, e a mulher sempre foi desconsiderada, inclusive no culto
de seus antepassados, caracterizando uma sociedade patriarcal, onde a força do gênero
masculino se sobrepõe à mulher e aos filhos1.

1
COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Rio de Janeiro: Eidouro, 2004. p. 56 – 58.

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No Brasil não é diferente. Esta modalidade de pensamento está arraigada ao nosso


modelo social, onde as mulheres (gênero feminino) transmitem a ideia de hipossuficiência,
submissão, passividade e sofrem discriminação na área pública.
Com o surgimento dos movimentos feministas, as mulheres começaram a ganhar o
seu papel na sociedade, avançando na luta por direitos no campo do trabalho, da educação e
da política, que anteriormente eram reservados somente aos homens2. Contudo, mesmo após
a emancipação das mulheres e a conquista de alguns direitos básicos, a violência física,
psicológica e moral, infelizmente ainda é um problema social brasileiro.
Neste ínterim, e diante de um histórico marcado por repressão, violência e
impunidade, somados ao oportunismo legislativo e a divulgação da violência de forma
exaustiva pelos meios de comunicação no intuito de provocar um clamor social e
consequentemente uma resposta legislativa rápida, o legislador brasileiro formulou a Lei
11.340/2006, que propiciou o surgimento de um direito simbólico. Embora as medidas
protetivas possuam uma aplicação prática efetiva, a referida lei não ataca diretamente o
problema social, e por vezes acaba gerando outros problemas conforme será estudado no
item posterior.
Quanto à proteção da mulher nos moldes da Lei 11.340/06, denota-se que o artigo
5º é taxativo no sentido de que somente se configura a violência doméstica e familiar contra
a mulher, a ação ou omissão “baseada no gênero”. De tal modo, não é toda a violência
contra a mulher que recebe o tratamento dado na referida Lei, mas somente a violência
contra o gênero feminino.
Assim, surgem as seguintes indagações: O que é o gênero? Quando a violência
contra a mulher é considerada uma conduta baseada no gênero?
Embora seja aplicado como sinônimos, o gênero e o sexo, são coisas distintas. O
sexo está relacionado com as características anatômicas e fisiológicas da pessoa, o gênero
por sua vez é uma construção social. Dagmar Estermann Meyer entende que as diferenças
entre mulheres e homens são construídas de forma social e cultural, e não biologicamente
determinadas:

Neste contexto o conceito de gênero passa a englobar todas as formas de


constrição social, cultural e linguística implicadas com os processos que
diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que

2
SOUZA, Eros de; BALDWIN, Jhon R.; ROSA, Francisco Heitor da. A Construção Social dos Papéis
Sexuais Femininos. Psicol. Reflex. Crit. v. 13 n.3, Porto Alegre, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722000000300016&script=sci_arttext>. Acesso em: 16 mar
2013.

300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos


dotados de sexo, gênero e sexualidade. O conceito de gênero privilegia,
exatamente, o exame dos processos de construção dessas distinções –
biológicas, comportamentais ou psíquicas - percebidas entre homens e
mulheres; por isso, ele nos afasta de abordagens que tendem a focalizar
apenas papeis e funções de mulheres e homens para aproximar-nos de
abordagens muito mais amplas, que nos levam a considerar que as próprias
políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por
representações e pressupostos de feminino e masculino. 3

Acrescenta Dagmar Estermann Meyer, dizendo que:

Gênero aponta para a noção de que, [...] ao longo da vida, através das mais
diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e
mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que
também nunca está finalizado ou completo. Inscreve-se neste pressuposto,
uma articulação intrínseca entre gênero e educação, uma vez que esta
posição teórica amplia a noção de educativo para além dos processos
familiares e/ou escolares, ao enfatizar que educar engloba um complexo de
forças e de processos (que inclui, na contemporaneidade, instâncias como
os meios de comunicação de massa, os brinquedos, a literatura, o cinema, a
música) no interior dos quais indivíduos são transformados em – e
aprendem a se reconhecer como – homens e mulheres, no âmbito das
sociedades e grupos a que pertencem [...] Por último, o conceito de gênero
propõe, como já destaquei, um afastamento de analises que repousam sobre
uma ideia reduzida de papeis/funções de mulher e de homem, para
aproximar-nos de uma abordagem muito mais ampla que considera que as
instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as
doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas
por representações e pressupostos de feminino e de masculino ao mesmo
tempo em que se estão centralmente implicadas com a sua produção,
4
manutenção ou ressignificação.

Maria Amélia de Almeida Teles e Mônica de Melo defendem que o gênero é utilizado
para:

[...] demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes


entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e
privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados
que foram construídos historicamente, e criaram pólos de dominação e
submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das
mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos
homens, tornando-as dependentes.5

3
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE,
Jane; GOLLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.16.
4
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE,
Jane; GOLLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.16.
5
TELES; Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo:
Brasiliense, 2003. p.16.

301
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Verifica-se que não são as características físicas que definem os papéis sociais de
gênero, mas sim, uma construção social do masculino e do feminino. Esta construção tomou
repercussão com a afirmação de Simone de Beauvoir dizendo que ninguém nasce mulher,
torna-se mulher6.
Uma vez edificada a ideia da construção social do gênero, impõe-se estabelecer a
perspectiva sob a qual configura a violência de gênero.
Na contemporaneidade brasileira, ainda subsiste uma forte concepção machista no
que tange às questões de relações de gênero, tanto que o gênero feminino é marcado por
subordinação da mulher ao marido e a dedicação à prole. Por exemplo, se a mulher
transgredir quaisquer destas regras, seguindo a concepção machista, o marido pode puni-la,
para que ela aprenda o seu papel social. Neste caso estaríamos diante de uma violência de
gênero propriamente dita.
Outrossim, quando o cônjuge ou companheiro mata a mulher porque não admite
uma separação, ou quando agride física e psicologicamente a mulher para mostrar quem é
que manda, numa ideia de posse, de igual modo configura a violência de gênero.
Há que se observar ainda que a Lei 11.340/06 também é aplicável aos casais
homoafetivos, nos casos em que a mulher sofre violência de gênero por outra mulher, visto
que o sujeito ativo da conduta descrita no artigo 5º da Lei 11.340/06 é indeterminado,
devendo somente cumprir os demais requisitos para configurar a violência de gênero
descritas nos incisos do referido artigo.
Ante o exposto, verifica-se que a lei é simbólica, pois o aumento na rigidez do
sistema penal, não combate diretamente o problema social, que somente será enfrentado por
meio de políticas publicas de conscientização e reeducação quanto aos papéis sociais do
gênero, retirando a ideia de posse que o cônjuge ou companheiro tem sobre a mulher.

3 DO SIMBOLISMO PENAL

Sabe-se que o Direito Penal, pela forma de utilização da repressão às ilicitudes –


pena e medida de segurança – e pela própria natureza de ultima ratio, se reveste de um
símbolo, sendo que este cumpre uma função positiva quando pretende prevenir os delitos,
refletindo assim a ideia de proteção do mais fraco.
6
MEYER, Dagmar estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE,
Jane; GOLLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.18.

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De fato, o Direito Penal é legítimo quando, se adequando ao caso concreto, obedece


aos princípios penais fundamentais e busca se ajustar às finalidades da pena, amoldando-se,
portanto, aos ideais do Estado Democrático de Direito.
Embora tal simbolismo seja inerente ao Direito Penal, a não observância dos
princípios e finalidades acima citados, faz com que a dogmática penal assuma uma
conotação negativa, despida de efeito prático e sem garantia de aplicação coerente e efetiva,
dando azo a um Direito Penal meramente simbólico.
O simbolismo enquanto instituto que objetiva realizar o reconhecimento da força do
Direito Penal mostra-se válido e legítimo. Entretanto, contrariamente a isso tem-se o Direito
Penal simbólico que assume uma postura deturpada, com a finalidade de resolver os
problemas relacionados a segurança e a criminalidade de maneira ilusória. Ora,
evidentemente, tal situação é inadmissível.
Nesse sentido, leciona o Professor Eugenio Raúl Zaffaroni acerca da função
simbólica da pena no âmbito da prevenção geral:

É lógico que a pena, ainda que cumpra em relação aos fatos uma função
preventiva especial, sempre cumprirá também uma função simbólica. No
entanto, quando só cumpre esta última, será irracional e antijurídica,
porque se vale de um homem como instrumento para a sua simbolização, o
usa como um meio e não como um fim em si, “coisifica” um homem, ou,
por outras palavras, desconhece-lhe abertamente o caráter de pessoa, com o
que viola o princípio fundamental em que se assentam os Direitos
Humanos.7

Ainda sobre o assunto, assevera-se que,

Fim simbólico seria aquele pelo qual não se objetiva, através do


instrumental punitivo do Estado, a resolução efetiva de conflitos de
interesses sociais ou a tutela real de bens considerados relevantes para a
sociedade. Como o Direito brasileiro sustenta que a missão do Direito
Penal é a proteção de bens jurídicos, qualquer efeito simbólico da pena é
considerado ilegítimo. De forma acrítica, tais efeitos da pena são
frequentemente execrados ou simplesmente ignorados pela doutrina penal
brasileira.8.

Note-se que o Estado, sobretudo o Poder Legislativo, objetivando utilizar-se desse

7
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume I:
parte geral. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 96.
8
ANJOS, Fernando Vernice dos. Direito penal simbólico e finalidade da pena. Boletim do IBCCRIM, n.
171, fev. 2007. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/3369-Direito-penal-
simbolico-e-sinalidade-da-pena>. Acesso em: 24 fev 2013.

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símbolo, o faz através de um discurso oportunista, em que supostamente está protegendo o


mais vulnerável, criando normas com forte carga moral, porém ilegítimas, que, na realidade,
sequer amenizam os problemas enfrentados pela sociedade na esfera criminal.
Na prática, o mero simbolismo no Direito Penal mostra sua face através da intensa
edição de leis como resposta ao clamor público. Leis que contradizem a real finalidade do
sistema de normas penais. Afinal, enquanto a população se sente supostamente tranquila e
segura, o problema da criminalidade não se resolve e sequer é amenizado, o que demonstra a
ausência de efetividade da legislação e, por conseguinte, o caráter meramente simbólico da
mesma.
Acerca do tema, Paulo Queiroz alerta que,

[...]o legislador, ao submeter determinados comportamentos à


normatização penal, não pretende, propriamente, preveni-los ou mesmo
reprimi-los, mas tão-só infundir e difundir, na comunidade, uma só
impressão e uma falsa impressão de segurança jurídica.9

A despeito, o Direito Penal não pode ser transformado em um sistema de satisfação


de expectativas e anseios da sociedade, sob pena de se transformar em um instituto
desacreditado e ineficaz quanto à sua proposta original. O aumento de tipos penais e o rigor
das penas não tem necessariamente potencial para resolver o problema da criminalidade;
diferentemente da adoção pelo Poder Legislativo de uma postura que, visando resolver
efetivamente os conflitos sociais, bem como, o afastamento da reincidência criminal luta
pela prevenção dos delitos e pela ressocialização dos criminosos.
No tocante ao exercício da pena, o efeito meramente simbólico do Direito Penal
traz consequências e gera efeitos ainda mais devastadores. Ora, se o recrudescimento das
penas, bem como das suas condições de cumprimento mostrassem eficácia, há muito tempo
a redução dos crimes teria ocorrido. Ocorre que, o que se vê atualmente é justamente o
oposto, já que tal severidade, como forma de reduzir ou amenizar a criminalidade é ilusão e
surte efeitos contrários ao esperado, eis que, somente estigmatiza cada vez mais os
delinquentes.
Nessa esteira, merece destaque o alerta de Michel Foucault, quando afirmou que a
prisão “em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população

QUEIROZ, Paulo. Sobre a função do juiz criminal na vigência de um direito penal simbólico. Boletim do
9

IBCCRIM, n. 74, jan. 1999. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/1064-Sobre-a-


funcao-do-juiz-criminal-na-vigencia-de-um-direito-penal-simbolico>. Acesso em: 4 mar 2013.

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delinqüentes perigosos.”10
Observa-se ainda que a estruturação do Direito Penal simbólico não se coaduna
com nosso modelo constitucional e social, bem como, as consequentes mudanças
legislativas não alcançam os objetivos desejados. Certamente, o legislador tem
conhecimento de que a mudança da legislação quando não verifica os princípios
fundamentais penais além da justa finalidade da pena, mostra-se como um mero símbolo de
proteção do Estado sem qualquer eficácia real. Todavia, a luta pela manutenção do poder
supera a necessidade da construção de uma legislação eficaz.
Para se agregar credibilidade às funções estatais, vincula-se à pena um efeito
simbólico, evitando assim que haja uma quebra da sociedade com relação às normas,
mostrando-se útil a sua aplicação. E nessa medida, verifica-se a inclusão legítima do caráter
simbólico nas finalidades da pena. O que não se pode admitir é justamente que o caráter da
pena seja exclusivamente simbólico, isto é, que tenha por finalidade apenas utopicamente
tranquilizar a população, tutelando cada vez mais os seus anseios morais, porém, não se
preocupando com o atendimento aos princípios penais fundamentais, bem como, os
verdadeiros objetivos criminológicos da pena – retribuição, prevenção e ressocialização.
Com efeito, do mau uso do símbolo penal, surge uma série de equívocos e
incongruências legislativas, que somente agravam a situação de pânico, imprimindo na
população a necessidade de enrijecimento do sistema, sem se preocupar em solucionar
verdadeiramente o problema da criminalidade.
Nesse contexto, merece destaque a questão do oportunismo legislativo. Certo é que
a exploração do medo pela mídia não é gratuita, de modo que há um conjunto de interesses –
especialmente político – na propagação da violência. Ora, tem-se visto os nossos
legisladores submeter-se frequentemente ao clamor público, em razão, sobretudo, da
possibilidade de manutenção do poder.
Ocorre, então, o seguinte raciocínio oportunista: para a manutenção do legislador
no poder ele deve atender aos anseios da população; faz-se mais cômodo criar anseios a
serem atendidos, do que atender às reais necessidades da sociedade; assim, utiliza-se de
meios para criar vontades na população e, depois daquelas arraigadas na opinião desta,
criam-se leis que se adequam a estas pretensões, sem, no entanto, surtir efeito na resolução
dos verdadeiros problemas sociais. Assim, por fim, o oportunismo legislativo desvirtua o
fim último da lei – positivar soluções jurídicas aos problemas práticos –, fazendo do ato de

10
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. de Lígia M. Pondré Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 221.

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legislar um meio de levar a erro a opinião pública para que aqueles legisladores, tidos como
autores da norma de salvação perpetuem-se no poder.
Assim, o Direito Penal meramente simbólico deturpa os objetivos e ideais da tutela
penal, na medida em que não observa os limites estabelecidos pelo princípio da intervenção
mínima, seguindo, assim, por caminho oposto ao da resolução de conflitos, camuflando os
verdadeiros problemas sociais que tanto afligem a sociedade.
Diante disso, mostra-se necessário que haja uma mudança de mentalidade da
própria população a fim de que os abusos legislativos não mais ocorram, evitando que a
atuação meramente simbólica do Direito Penal aufira força e legitimidade.

4 DA INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO PROCESSO LEGISLATIVO

Hodiernamente a discussão do sistema penal está cada vez mais presente no


cotidiano das pessoas. Tal fato se deve não só pelo número assombroso de crimes noticiados
e o fascínio que eles exercem na população, mas, principalmente pelo papel que a mídia tem
exercido na sociedade, levando grande parte das pessoas a uma discussão fora de qualquer
parâmetro científico.
Note-se que, os meios de comunicação em massa exercem o papel de “formadores
de opinião”, sempre revestidos por uma falsa neutralidade, de modo que geram na sociedade
um senso comum forjado. Atualmente, a mídia não tem simplesmente a função de informar,
mas de formar valores. Tal problema decorre do fato de que “os que detêm a comunicação
chegam até a definir os outros, definir determinados grupos sociais como sendo melhores ou
piores, confiáveis ou não confiáveis [...]. Quem tem a palavra constrói identidades pessoais
ou sociais”.11 Ou seja, nas palavras de Shecaira e Corrêa Júnior12 “[...] a mídia, em um
sentido estrito, é um verdadeiro poder”. Ainda, nesse sentido, nos ensina Maria Lúcia Karam
que:

A publicidade do sistema penal, trabalhando com esta falsa idéia que


reduz a violência à criminalidade convencional, explora o medo, criando
um clima de pânico, de alarme social, a que costuma se seguir um
crescimento da demanda de penas mais rigorosas, clima este que
desencadeia e é alimentado pelas chamadas campanhas de lei e ordem.

11
GUARESCHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação. Visão geral do fenômeno. In: GUARESCHI,
Pedrinho A. (Coord.). Comunicação e controle social. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 15.
12
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 376.

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Tais campanhas manipulam emoções, selecionando e propagandeando


alguns crimes mais cruéis, para, assim, produzir e generalizar uma
indignação moral contra os que são identificados como criminosos. 13

Pois bem, o grande problema é que a influência da mídia não se limita à formação
da indignação moral da sociedade contra aqueles que cometeram os delitos; causa, na
verdade, um significativo clamor público, a exemplo do número surpreendente de pessoas
que marcam presença nas portas das delegacias a fim de recepcionar aqueles criminosos
“famosos” na mídia. Trata-se, pois, de problema muito mais complexo, eis que passa da
esfera da população para a esfera legislativa, que é o objeto de estudo deste trabalho
científico.
Sabe-se que, o Poder Legislativo não caminha sozinho, eis que, junto com ele está a
mídia, que se contrapõe, por vezes às decisões políticas, econômicas e até mesmo
legislativas. Ora, a mídia tem poder para isso. Note-se que, dentre os efeitos da globalização,
especial atenção deve ser dada aos meios de comunicação em massa, que hoje atuam em
tempo real, com uma instantaneidade surpreendente, com tamanho poder e influência, que
acabou se transformando em uma relação de comércio, submetida às leis da oferta e da
procura, abandonando gradativamente seus critérios éticos de existência.
Infelizmente, o Poder Público integra o rol de interessados na divulgação da
violência, já que usa essa exposição para justificar a intervenção cada vez mais rígida do
Estado, havendo, portanto, o interesse de certos políticos em “desenvolver no público uma
psicose de insegurança própria a favorecer o retorno a uma repressão sem limite.”14
Ainda, como ressalta Eugenio Raúl Zaffaroni:

A capacidade reprodutora da violência dos meios de comunicação de


massa é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel para
melhor excitar a indignação moral, basta que a televisão dê exagerada
publicidade a vários casos de violência ou crueldade gratuita para que,
imediatamente, as demandas de papéis vinculados ao esteriótipo assumam
conteúdo de maior crueldade e, por conseguinte, os que assumem o papel
correspondente ao esteriótipo ajustem a sua conduta a estes papéis. 15

13
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luan, 1991. p. 198.
14
LINS E SILVA, Evandro. De Beccaria a Filippo Gramática. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello (org.).
Sistema penal para o terceiro milênio – atos do colóquio Marc Ancel. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 36.
15
ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal.
Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 131.

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“O estado subjetivo de insegurança acaba por influenciar, inexoravelmente, o


funcionamento da justiça criminal e intervir na própria criação da legislação penal”.16
Destarte, a atitude de alarmar a população desencadeia e reproduz um processo muitas vezes
artificial de „necessidade normativa‟.17
É inegável a influência da mídia, especialmente televisiva, no processo legislativo.
Isto porque tal meio de comunicação cria uma realidade e com seu alto poder de persuasão a
impõe na sociedade. Nesse sentido, Raúl Cervini aduz que o receio a uma possível ameaça é
provocada, muitas vezes, por campanhas previamente orquestradas pelos meios de
comunicação, ou seja:

[...] isso não é gratuito nem casual, pois o temor, além de aparecer como
conseqüência social do delito, converte-se em um precipitador coletivo
facilmente manipulável e em um importante fator econômico que gera
gastos de prevenção e segurança em pessoas, empresas, instituições e no
próprio Estado, que também é atingido pelos efeitos desse medo.18

Logo, chega-se à conclusão de que a mídia induz a população a acreditar na


existência de uma violência exagerada, gerando, assim, um apelo emocional muito forte na
sociedade que acaba por desejar uma resposta imediata e eficaz, especialmente no tocante às
mudanças legislativas – devendo estas serem mais austeras.
A violência parece ser mostrada de forma previamente arquitetada, em prol dos
interesses políticos e econômicos, de modo que, infelizmente, chega-se à preocupante
conclusão de que a realidade social é construída pela informação, podendo-se constatar que
“esses acontecimentos que definem a informação não surgem espontaneamente, mas como
resultado de uma seleção programada e tendenciosa”19. Ou seja, a mídia controla a realidade
absorvida pela população, que acaba se convencendo que o rigorismo da lei é a solução
milagrosa dos conflitos, o que em hipótese alguma é verdade.
Conforme se verá a seguir, no tocante à violência intrafamiliar a população em
geral também é levada erroneamente a clamar por maior severidade no tratamento do
agressor, criando-se uma legislação carregada de problemas.

5 DA (IN)EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA

16
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 383.
17
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 86.
18
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 86.
19
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 94.

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Não é atual a ocorrência da violência doméstica contra a mulher, eis que, há


milênios a mulher é considerada, em geral, a parte vulnerável na composição da família.
Certamente, em tempos remotos a situação era mais agravada, na medida em que ao homem
era assegurado o direito de propriedade sobre a mulher – estivesse ela na condição de filha
ou de esposa – e dessa forma, a mulher não tinha vontade própria no âmbito familiar.
Atualmente, em muitas famílias, essa realidade se mantém, ainda que o sentimento
de possessão masculina seja mais velado. As mulheres ainda sofrem com a violência em
razão do gênero, o que cria a necessidade de existirem mecanismos que exterminem esse
conflito, tendo em vista a obrigação de observância do princípio da dignidade da pessoa
humana insculpido no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
Oriundo de um caso concreto de dolorosa violência de gênero e, por conseguinte,
de uma forte comoção social, a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, chamada popularmente
de Lei Maria da Penha, tem como proposta a luta contra a violência doméstica e familiar
baseada no gênero, a fim de que à mulher seja dispensada maior proteção. Para tanto, trouxe
um rol de medidas protetivas e efetuou algumas modificações no Código Penal e Processo
Penal.
A lei é uma homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, agredida violentamente
pelo marido por duas vezes, oportunidades em que o mesmo tentou matá-la. Na primeira
tentativa, com uma arma de fogo, o marido simulou um assalto deixando-a paraplégica, e na
segunda, utilizando-se de eletrocussão enquanto a esposa tomava banho, o mesmo tentou
assassiná-la novamente. O marido de Maria da Penha somente foi punido 19 anos após o
julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado. Em razão da insistênsia de Maria
da Penha na luta pela justiça, sua história teve repercussão de ordem internacional.
A citada lei, em seu art. 5º20, determinou como “família” a comunidade formada
por indivíduos e não por um homem e por uma mulher, o que significa afirmar que a

20
Lei 11.340/2006 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

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legislação nesse sentido foi bastante correta, eis que, abarcou no âmbito de proteção contra a
violência intrafamiliar também as famílias homoafetivas.
Nessa esteira, nos ensina Maria Berenice Dias que:

O reconhecimento da união homoafetiva como família é expresso, pois a


Lei Maria da Penha incide independentemente da orientação sexual (arts.
2º e 5º, parágrafo único). Assim, lésbicas, travestis, transexuais e
transgêneros, que têm identidade feminina, estão ao seu abrigo quando a
violência ocorre entre pessoas que possuem relação afetiva no âmbito da
unidade doméstica ou familiar.21

Dessa afirmação decorre o fato de que, o homem ou a mulher, identificados como


do gênero feminino, e sofrendo a violência doméstica em razão do gênero, merecerão a
proteção da Lei Maria da Penha.
Contudo, independente do modelo de família e embora a Lei 11.340/2006 tenha
surgido com o escopo de dar maior proteção à vítima da violência doméstica e familiar,
verifica-se que oferecer a esses casos tratamento penal mais severo não resolve o problema
vivido pelos envolvidos.
Infelizmente, ainda nos dias atuais, as relações de superioridade masculina e sua
consequente dominação, advindos da ideologia patriarcal, os conflitos ocorridos nas famílias
homoafetivas – eis que cada indivíduo da relação assume uma identidade diferente no
relacionamento –, os casos de alcoolismo e de uso de drogas ilícitas, entre outros, tem forte
relação com a violência de gênero, ou seja, realizada contra a mulher, ou no caso das uniões
homoafetivas, daqueles que assumem o gênero feminino na família, ostentando a mulher,
portanto, papel vulnerável na relação do casal, o que a torna alvo certo de discriminação.
Sendo assim, em uma primeira análise já se verifica que a pena de prisão não tem o
condão de solucionar a raiz do problema, que necessitaria de medidas extrapenais, ou seja,
de cunho assistencial, a fim de que o agressor seja encaminhado a tratamento psicológico, de
recuperação do alcoolismo e outros vícios, a grupos de conscientização, entre outras
medidas. O sistema penal, nesses casos, atua grande parte das vezes de forma simbólica e,
inclusive, de maneira maléfica em relação aos envolvidos, eis que, a prisão, via de regra,
conforme já analisado anteriormente, devolve para a sociedade cidadãos ainda mais
perigosos.

21
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 44.

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Sob o mesmo prisma, assegura Sérgio Ricardo de Souza, quando trata da


necessidade de criação de políticas públicas com o fito de resolver o problema da violência
intrafamiliar, que:

[...] essa política deve consistir em um “conjunto articulado” de ações, ou


seja, um integração das ações do poder público envolvendo a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem como de ações a serem
desenvolvidas no âmbito da sociedade, ou seja, em âmbito não-
governamental. Até agora o que se vê são ações desordenadas levadas a
efeito por entes da Administração Pública, principalmente em nível
municipal, de forma isolada, assim como diversas ações de organizações
não-governamentais (ONGs), mas sem que exista uma política em nível
estatal, visando integrar tais ações, para torna-las mais abrangentes,
assegurar a sua continuidade, aferir a sua eficiência e garantir a sua
efetividade, sem desperdício de tempo e dos já escassos recursos a ela
destinados.22

Ademais, há que se ressaltar que a aplicação abusiva das medidas protetivas podem
gerar efeito contrário ao esperado, eis que, o convívio familiar é fundamental para a
formação e desenvolvimento dos filhos, o que demonstra a necessidade de avaliação sobre
quais seriam as medidas mais adequadas de proteção à violência, a fim de que a família não
sofra uma desestruturação.
A violência de gênero atinge não somente a mulher, mas toda a família, eis que,
“pensando na família como um grupo de convivência, é impossível isolar qualquer um de
seus integrantes do impacto que a violência e/ou conflitos exercem sobre o conjunto.”23
É no âmbito familiar que a pessoa desenvolve suas potencialidades e sua
personalidade. Assim, tudo aquilo que os pais realizam se projeta na estruturação da
personalidade dos filhos.
Verifica-se que “o pai e a mãe formam para o filho uma unidade estrutural” 24, ou
seja, o casal tem papel fundamental para a prole e, excluir o pai da convivência familiar
como forma de solução do problema da violência de gênero, sem realizar uma
conscientização do mesmo de que o respeito mútuo deve imperar na família e sem
concretizar medidas de prevenção que evitem a reincidência, traz danos à estruturação da

22
SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher. Curitiba: Juruá,
2007. p. 55-56.
23
MUSZKAT, Malvina E; OLIVEIRA, Maria Coleta; UNBEHAUM, Sandra; MUSZAKAT, Susana.
Mediação familiar transdisciplinar: uma metodologia de trabalho em situações de conflito de gênero.
São Paulo: Summus, 2008. p. 38.
24
JURISCH, Martin. Sociologia da paternidade. Petrópolis: Vozes, 1970. p. 110.

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família e pode levar, inclusive, os filhos a constituírem suas famílias baseando-se naquilo
que aprenderam durante a vida, a violência.
Acerca do tema, José Osmir Fiorelli sustenta que:

A violência praticada, entretanto, entre os cônjuges transmite aos filhos


uma aprendizagem geral sobre os métodos de exercê-la e desenvolve uma
percepção de que tais comportamentos são válidos como forma de
relacionamento interpessoal – afinal, não possuem outras referências. Por
assimilação dos comportamentos dos modelos, serão por eles
internalizados e praticarão, no futuro, a violência que aprenderam com os
25
pais.

À evidência, nos anos que se passaram desde a criação da Lei Maria da Penha, o
número de casos de violência doméstica não foi reduzido, o que mostra que a atuação da
legislação juntamente com a ação da força policial não tem sido suficiente.
Entre alguns dispositivos que apresentam problemas, verifica-se que o artigo 4126
da Lei 11.340/2006 retirou da competência do Juizado Especial o tratamento dos casos de
violência intrafamiliar, assim, a possibilidade de conciliação da família perante uma
autoridade competente foi afastada, sendo dificultada, portanto, a conciliação do casal e,
inclusive, do exercício da paternidade responsável.
Ora, devido o princípio da paternidade responsável, a legislação pátria atribui aos
pais a missão de cuidar dos seus filhos; e isso significa zelar pelo desenvolvimento não só
físico, mas também psíquico e moral. Assim, a paternidade responsável se traduz na
formação da prole baseada na formação digna do ser humano, o que pode ser dificultado
pela forma com que alguns dispositivos tratam da proteção da violência intrafamiliar no
contexto da Lei Maria da Penha.
Em um segundo momento, vale mencionar que o déficit na criação de uma Justiça
especializada para tratar de tais casos é significativo, o que transporta a análise desses casos
para a Justiça Comum – tanto no âmbito cível quanto no criminal. As Varas Criminais estão
abarrotadas de processos envolvendo todo o tipo de delito de diferentes níveis de gravidade,
assim, torna-se impossível dar aos casos de violência de gênero atenção adequada. Observa-
se o legislador ferir completamente a perspectiva de ultima ratio do Direito Penal, além de

25
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Tagazzoni. Psicologia Jurídica. São Paulo: Atlas,
2009. p. 275.
26
Lei 11.340/2006 Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.

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parecer não se importar em criar ou melhorar os mecanismos que efetivamente tem o condão
de solucionar o problema da violência de gênero.
Além disso, como fiscalizar, por exemplo, se o agressor está cumprindo com a
determinação de se afastar do lar ou mesmo de não se aproximar da vítima, num país em que
faltam agentes públicos até nas atividades de policiamento mais corriqueiras? Nota-se com
isso, que o juiz criminal está totalmente alheio à realidade daquela família, por esse motivo é
que tais medidas, bem como o tratamento penal mais severo não nos parece uma solução
efetiva. Com efeito, o rigorismo penal aplicado aos casos de violência intrafamiliar deseja
teoricamente transmitir segurança jurídica, porém na prática, o que se tem é precisamente o
oposto.
Há que se considerar, ainda, outro grande problema que a Lei Maria da Penha se
mostrou indiferente e que diz respeito à fundamental necessidade de convivência familiar da
prole com os genitores, a fim de que se tenha adequado desenvolvimento psíquico e moral.
Nesse sentido, nos ensina Maria Lúcia Karam que,

A restrição ou suspensão de visitas a filhos viola o direito à convivência


familiar, assegurado pela Constituição Federal brasileira (caput do artigo
227) e pela Convenção sobre os Direitos da Criança (§ 3º do artigo 9º), esta
expressamente enunciando o direito da criança que esteja separada de um
ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato
direto com ambos. Ao pretender suprimir tal direito, a Lei nº 11.340/2006
ainda desconsidera a vontade da criança ou do adolescente. Preocupando-
se apenas com a audição de equipe de atendimento multidisciplinar ou
serviço similar, viola regras vindas nos §§ 1º e 2º do artigo 12 da
Convenção sobre os Direitos da Criança, que asseguram à criança, que for
capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas
opiniões livremente sobre todas as matérias que lhe forem atinentes,
levando-se devidamente em conta suas opiniões em função de sua idade e
maturidade, para esse fim, devendo lhe ser dada oportunidade de ser
ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga
respeito.27

No tocante às mudanças perpetradas no Código Penal, constatou-se a inclusão de


uma alínea no rol das circunstâncias agravantes, ou seja, quando o crime é cometido com
“abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica.”28 Além disso,

27
KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim do
IBCCRIM, n. 168, nov. 2006. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/3328-
Violencia-de-genero:-o-paradoxal-entusiasmo-pelo-rigor-penal>. Acesso em: 4 mar 2013.
28
Código Penal Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam
o crime:

313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

houve o aumento da pena máxima da lesão corporal nos casos de violência doméstica contra
a mulher.
Embora as mudanças realizadas tenham tornado a legislação mais rigorisa,
acarretando, assim, a impressão – falsa – de maior segurança, a violência de gênero no
âmbito familiar continua a aumentar, o que demonstra a falência da pena de prisão para a
efetiva solução da criminalidade.
Mais uma vez a atuação do legislador penal foi simbólica, criando um diploma
legal inócuo no sentido de atingir o seu real objetivo que seria reduzir substancialmente os
casos de violência doméstica.
A severidade, sobretudo na seara penal, no tratamento da violência doméstica
familiar definitivamente não resolve o problema, sendo imprescindível a atuação do Estado
por meio de políticas públicas de conscientização. Além disso, o rigorismo extremo na
criação e aplicação das medidas protetivas pode, inclusive, trazer maiores danos à família,
como a sua desestruturação pelo afastamento precipitado do genitor do convívio familiar, o
que certamente viola os direitos fundamentais do ser humano e contraria os ideais do Estado
Democrático de Direito.

6 DAS PERSPECTIVAS DE SOLUÇÃO

Em razão do símbolo que reveste o Direito Penal, acredita-se – erroneamente – que


o mesmo tem potencial para resolver todos os problemas que afligem a sociedade. Todavia,
a eleição da tutela penal como mecanismo de controle da violência intrafamiliar não tem se
mostrado satisfatório. Assim, o imediatismo legislativo, advindo, sobretudo da influência da
mídia sobre a população que clama por rigor e justiça, traz consequências danosas à
estrutura familiar e caminha no sentido contrário à resolução do problema da violência de
gênero.
Acredita-se, portanto, que a solução para a violência doméstica e familiar não pode
ter foco apenas na criação de novos tipos penais, no agravamento das penas, e na rigorosa
supressão de direitos, eis que, tais condutas podem temporariamente afastar o problema, mas
definitivamente não o excluem totalmente. Em verdade, a atuação imediatista e simbólica do
Direito Penal, não resolve a questão da criminalidade, e acaba provocando grande

[...]
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou
com violência contra a mulher na forma da lei específica.

314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

descrédito, na medida em que, sendo o Direito Penal a ultima ratio na solução dos
problemas, quando tais problemas não são efetivamente solucionados, o que resta é o
desespero e o caos.
Dessa forma, a adoção de medidas que garantam não somente a cessação da atitude
violenta contra a mulher, mas a prevenção desse comportamento é o que deve imperar. E
isso deve ocorrer certamente afastado do Direito Penal, de forma que o mesmo tenha
mínima atuação. Certamente, o amparo da vítima de violência familiar baseada no gênero
encontra justificativa na proteção dos direitos fundamentais do ser humano, na necessidade
de manutenção da integridade física e psicológica e na própria dignidade da pessoa humana,
não sendo admissível, portanto, a mera atuação simbólica da legislação.
Ressalte-se que, o desígnio do Direito Penal é tutelar aqueles bens jurídicos
essenciais à sociedade, atuando quando outros ramos do Direito já não conseguiram proteger
tais bens. De tal modo, verifica-se que os conflitos advindos da violência de gênero, devem
ser socorridos, primeiramente, no âmbito do Direito de Família e do Direito Civil, além de
outras áreas que estão fora do meio jurídico, como a assistência social, a psicologia, a
psiquiatria, entre outros. Além disso, é preciso estar atento à necessidade de reconhecimento
do valor da mulher na sociedade, a fim de que seja retirada de sua figura a vulnerabilidade e
o rótulo de vítima.
Resta claro, por conseguinte que, a existência de políticas públicas no sentido de
conscientização da igualdade e dignidade do ser humano, independentemente do gênero,
além da criação de mecanismos longe da esfera penal e que constituam na população o
respeito pelo próximo, é o que merece guarida, eis que, tal medida tem potencial para
exterminar verdadeiramente o problema da violência de gênero na esfera familiar.

7 CONCLUSÕES

No decorrer do presente trabalho, mostrou-se a conceituação do gênero feminino e


o seu enquadramento na Lei Maria da Penha, além dos efeitos nefastos da violência sobre os
demais entes familiares, revelando uma paternidade irresponsável por parte do agressor.
Analisou-se de forma crítica a atuação do simbolismo no Direito Penal e, para
tanto, demonstrou-se, em um primeiro momento, que o Direito Penal é composto por
princípios que norteiam os seus ideais e que, quando desrespeitados, geram consequências
devastadoras.

315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A partir disso, foi possível observar que o simbolismo agrega ao Direito Penal
características que não lhe são originalmente afetas, deformando, portanto, as funções
precípuas desse ramo do Direito, fazendo com que a norma penal perca legitimidade.
E nesse sentido é que se tornou importante tratar das questões que envolvem os
efeitos simbólicos do Direito Penal, na medida em que estando esse ramo do Direito
trilhando caminho oposto ao dos referenciais legitimadores do Direito Penal, estar-se-ia
diante de uma norma incapaz de resolver o problema da criminalidade, especialmente, no
âmbito familiar. Assim, analisando as mudanças trazidas pela Lei 11.340/2006, como o
afastamento da competência do Juizado Especial, medidas protetivas abusivas e
precipitadas, aumento da pena máxima do crime de lesão, aumento do rol das circunstâncias
agravantes do crime, entre outras medidas, o que se tem é um instrumento – norma penal –
que soluciona apenas superficialmente o problema da criminalidade. Assim, a Lei Maria da
Penha, além de não diminuir a violência, gera reflexos negativos na estruturação da família,
reforçando o não exercício da paternidade responsável.
Saliente-se que embora contenha a pena um caráter simbólico, quando se reveste a
mesma somente desse simbolismo, sem obedecer aos princípios fundamentais do Direito
Penal, bem como, sem atender as suas justas finalidades, submetemo-nos a um direito
ilegítimo e ineficaz, que ao contrário do que imagina a população em geral, não é capaz
sequer de amenizar os problemas que dizem respeito à criminalidade.
Além disso, é preciso compreender que a violência intrafamiliar é antes de tudo um
problema social e sendo assim, a legislação que trata desse assunto deveria ter um caráter
preventivo e afastado do âmbito penal.
Ora, as medidas extrapenais de combate à violência de gênero mostram-se sempre
mais efetivas, menos danosas para a família e menos estigmatizantes para o agressor. A
criação de políticas públicas de conscientização e que tenham como objetivo incutir valores
morais, como o respeito ao próximo, por exemplo, tem maior potencial para resolver o
problema da violência. Isso porque, nem sempre, o que as mulheres vítimas da violência
objetivam é a separação e desestruturação da família, mas sim a extinção do comportamento
agressor do cônjuge, o que definitivamente não ocorre com a pena de prisão.
Certamente, os mecanismos de prevenção, mediação e conciliação, realizados por
profissionais devidamente preparados não somente da área jurídica, mas também da
psicologia, psiquiatria e assistência social podem levar à resolução do problema. É preciso
lembrar que, a atuação meramente simbólica do Direito Penal, não é evidentemente legítima,

316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

na medida em que, o combate à violência doméstica contra a mulher depende, antes de tudo,
de uma drástica mudança de pensamento da sociedade, que deve voltar os olhos não para a
tutela penal, mas para a educação, a conscientização e a igualdade, elementos fundamentais
para uma convivência familiar digna e justa, em que, o que impera é o adequado
desenvolvimento físico e psíquico de toda a família.

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318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E A COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL


INTERNACIONAL

THE PRINCIPLE OF EFFICIENCY AND INTERNATIONAL LEGAL


COOPERATION IN CRIMINAL MATTERS

Sarah Maria Veloso Freire Lopes1

RESUMO

O presente artigo científico tem por objeto uma análise do princípio da eficiência e a
cooperação jurídica internacional em matéria penal. Para tanto, faz-se necessária a análise do
conceito da referida cooperação, de sua natureza jurídica, dos níveis de assistência, das
dificuldades encontradas neste processo, além da eficiência e seus fatores na cooperação
jurídica penal internacional. Contatou-se que os Estados não podem fechar-se à cooperação,
em matéria penal, a fim de unir forças no combate à criminalidade, crescente em razão da
globalização, agindo com eficiência e dinamismo na prestação da assistência mútua.

PALAVRAS-CHAVE: Eficiência, Cooperação jurídica penal internacional, Confiança.

ABSTRACT

The present article has as its object an analyses of the principle of efficiency and international
legal cooperation in criminal matters. Therefore, it is necessary to analyze the concept of that
cooperation, its legal nature, the levels of assistance, the difficulties encountered in this
process, besides the efficiency and its factors in international criminal legal cooperation. It
was found that countries cannot hamper cooperation in criminal matters, in order to join
forces in fighting crime, increasing as a result of globalization, acting with efficiency and
dynamism in the provision of mutual assistance.

KEYWORDS: Efficiency, International criminal legal cooperation, Trust.

INTRODUÇÃO

É visível que o atual panorama mundial vive uma crescente circulação de pessoas,
bens e serviços. Destarte, os Estados se deparam com situações que reclamam uma efetiva
cooperação para o exercício da jurisdição, especialmente em matéria penal, em razão do
nascimento de uma nova criminalidade, fruto da globalização e da quebra das fronteiras
mundiais, que deixaram os Estados vulneráveis às ações criminosas, diante da facilidade do
acesso entre as nações.

1
Advogada e Professora da Faculdade de Tecnologia do Piauí (FATEPI) e do Instituto Camillo Filho (ICF).

319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O estudo da cooperação jurídica penal internacional torna-se necessário, diante da


conjuntura internacional de um mundo multicultural, pois possibilita o dinamismo e a
eficácia da prestação do auxílio na tutela jurisdicional proveniente dos conflitos que se
estabeleçam envolvendo os Estados, o que passa a ser um reflexo do aumento das invasões
criminosas, fato que requer uma cooperação eficiente no sentido de coibir e punir tais
atividades criminosas.
É indiscutível, portanto, a imprescindibilidade da cooperação internacional em matéria
penal, a fim de estreitar as relações entre os países através de um mútuo auxílio resguardado
pelos princípios da eficiência, solidariedade, confiança e respeito aos direitos fundamentais.

1 A COOPERAÇÃO JURÍDICAPENAL INTERNACIONAL

1.1 DISCUSSÃO CONCEITUAL

Consiste a cooperação jurídica internacional em um “conjunto de atos que


regulamentam o relacionamento entre dois Estados ou mais, ou ainda entre Estados e
Tribunais Internacionais, tendo em vista a necessidade gerada a partir das limitações
territoriais de soberania” (BECHARA, 2011,p. 42). A referida cooperação é considerada,
assim, um intercâmbio internacional para o cumprimento extraterritorial de medidas
processuais do Poder Judiciário e um outro Estado, conforme salienta Araújo (2008, p. 40).
Afirma Machado (2005, p. 102) que a cooperação é ativa quando se referir a quem
solicita a assistência, e passiva quando se referir ao Estado a quem é solicitada.
O pedido de cooperação processa-se através dos seguintes procedimentos, conforme
destaca Bechara (2011, p. 46): a) extradição, que é o ato de entrega de pessoas processadas ou
condenadas por um Estado a outro; b) pedido de homologação de sentença estrangeira, que se
trata de um procedimento que se destina à nacionalização de decisões estrangeiras,
reconhecendo-lhe eficácia executiva; c) carta rogatória, que se destina à prática de atos
diversos daqueles que constituem objeto da extradição e homologação de sentença
estrangeira; d) pedido de auxílio direto, cujo objeto confunde-se com o objeto da carta
rogatória, porém distancia-se no procedimento, por ser dotado de maior agilidade e menor
burocracia.
Registre-se que a “cooperação jurídica” abrange a cooperação jurisdicional ou judicial,
bem como a cooperação administrativa. Já a “cooperação internacional” implica ausência de
jurisdição e competência no território de outro Estado, e indistinção se o caso envolve ou não

320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

um crime internacional (que viola bens jurídicos universais) ou transnacional (que viola o
bem jurídico de dois ou mais países).
Cervini (2000, p. 48) destaca que há três tipos de auxílio recíproco: o policial, o
judicial e o legislativo. Acrescenta que modernamente se reconhecem duas formas de
assistência ou cooperação internacional em matéria penal: a administrativa, que é
fundamentalmente policial, e as variadas formas de cooperação judicial penal internacional.
O referido autor define cooperação judicial penal internacional como

(...) um conjunto de atividades processuais (cuja proteção não se esgota nas


simples formas), regulares (normais), concretas e de diverso nível, cumpridas
por órgãos jurisdicionais (competentes) em matéria penal, pertencentes a
distintos Estados soberanos, que convergem (funcional e necessariamente)
em nível internacional, na realização de um mesmo fim, que não é senão o
desenvolvimento (preparação e consecução) de um processo (principal) da
mesma natureza (penal), dentro de um estrito marco de garantias, conforme o
diverso grau e projeção intrínseco do auxílio requerido (CERVINI, 2000, p.
51).

Reconhece-se, portanto, a necessidade e a viabilidade jurídica de uma interação


processual-funcional entre diferentes Estados, para eficácia da cooperação penal
internacional, sendo imprescindível o equilíbrio na eficiência da prestação assistencial e
garantias dos concernidos (sujeitos afetados pelas medidas de cooperação).
Entende-se que o objetivo da cooperação penal internacional, além da tutela dos
direitos individuais, é facilitar o intercâmbio de soluções e problemas estatais, garantir a
eficácia da prestação jurisdicional e o acesso à justiça, fortalecendo, o Estado Democrático de
Direito, segundo Rabelo, em “A cooperação jurídica internacional e o crime organizado
transnacional”. Para tanto, exige-se eficácia na assistência, respeito à soberania dos países
envolvidos no processo de cooperação e às garantias dos sujeitos.

1.2 NATUREZA JURÍDICA

Bechara, citando Raúl Cervini, elenca três teorias para explicar a natureza jurídica da
cooperação jurídica internacional, levando em consideração a atividade desenvolvida no
Estado requerido:

(...) para a primeira teoria, fala-se em jurisdição própria, em razão da


vinculação do juízo requerido com o processo principal. Para a segunda
teoria, haveria delegação de jurisdição, em razão da atuação do juízo
requerido de forma comissionada pelo juízo requerente. A terceira teoria
sustenta a existência de uma interação processual-funcional internacional,

321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

cujo fundamento assenta-se no Direito Internacional, no sentido de que os


Estados, como parte de uma ordem jurídica internacional, sofrem influência
determinante dos tratados internacionais, multilaterais e bilaterais, de modo
que a cooperação se apresenta como mecanismo de subsunção a esta ordem
jurídica comum (BECHARA, 2011, p. 44).

Entende-se que a cooperação jurídica internacional em matéria penal expressa um


valor de solidariedade, que inclusive corresponde a um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, expresso na Constituição Federal de 1988, no artigo 3º, inciso
I. Ressalta-se ainda que, como um dos princípios que regem as relações internacionais, no
Brasil, encontra-se a “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”, no art. 4º,
IX, da Constituição supramencionada, o que corrobora a ideia da solidariedade.
É importante mencionar que o ideal de solidariedade interetática (entre os Estados
requerentes e o requerido) aparece ao lado da necessidade da tutela das garantias do
indivíduo, cujos direitos possam ser afetados.

1.3 NÍVEIS OU GRAUS DE ASSISTÊNCIA

As medidas de assistência na cooperação penal internacional classificam-se em níveis


ou graus.
Segundo Cervini (2000, p. 66),

Toda medida de cooperação judicial penal internacional leva implícita, de


algum modo, a intromissão de uma ordem jurídica (requerente) dentro de
uma outra (requerida), e uma afetação de direitos patrimoniais e pessoais,
cuja medida e gravosidade dependerá, em primeiro lugar, da natureza
processual da medida de assistência solicitada, e, em segundo lugar, da
duração de sua coercibilidade.

Destarte, o referido teórico, compartilhando o pensamento de Polimeni, Magioli,


Nadelman e outros, reconhece três níveis de cooperação internacional em matéria
penal.Compreende um primeiro graude medidas de assistência leve e simples, como aquelas
de mero trâmite (notificações) e as medidas meramente instrutórias (averiguação de fatos,
obtenção de provas, perícias, informações, traslado de pessoas para prestar depoimentos,
dentre outras). O segundo abrange medidas de assistência processual penal internacional
suscetíveis de causar gravame irreparável aos bens das pessoas, como registros, embargos,
sequestros, interdição ou entrega de objeto. Já o terceiro compreende níveis de cooperação
extrema, capazes de causar gravame irreparável aos direitos e liberdades próprios daqueles

322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

que são alcançados pela cooperação, ficando restrito, normalmente, aos processos de
extradição.
Essa divisão em níveis de assistência na cooperação penal internacional reflete o
princípio da gradualidade nos requisitos, pois as medidas de assistência abrangem várias
formas, como as já relatadas acima.
Assim, as medidas de primeiro nível permitem um fácil e eficaz intercâmbio de ações
entre os Estados, em razão de sua natureza (vinculada à fase preparatória e instrutória dos
processos) e conteúdo (basicamente procedimental). Já as medidas de assistência penal
capazes de afrontar direitos patrimoniais dos concernidos não são frequentes e tramitam com
maior cautela e observância das garantias. Ademais, quando se trata de procedimento de
extradição, a prudência e o respeito a estas garantias e princípios atingem o maior nível da
cooperação penal internacional.

1.4 DIFICULDADES NA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

O processamento da cooperação jurídica penal internacional não tem se mostrado


eficiente. Muitas dificuldades são encontradas, especialmente, em relação a questões
burocráticas.
Grinover (1998, p. 156) dispõe que

(...) dois valores relevantes, de certo modo antagônicos, ou pelo menos


dialeticamente opostos, têm emergido recentemente em sede de cooperação
internacional em matéria penal: de um lado, a necessidade de intensificar a
referida cooperação na luta contra o crime; de outro, a consciência cada vez
mais profunda de que os direitos fundamentais devem colocar-se como termo
de referência nessa matéria e, consequentemente, como limite à cooperação
internacional em matéria penal.

Entende-se que a eficiência da cooperação jurídica penal internacional está atrelada à


observância dos direitos humanos, tendo em vista os padrões éticos normativos e o respeito às
garantias processuais.
Bechara assevera que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)2 tem
precedentes que confirmam a postura restritiva à cooperação, através de vários argumentos
para denegação do pedido de cooperação por meio de cartas rogatórias, como “caráter

2
Após a Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, compete ao Superior Tribunal de Justiça a
homologação de sentenças estrangeiras e concessão de exequatur às cartas rogatórias, conforme disposto no art.
105, I, i, da Constituição Federal de 1988.

323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

executório do pedido, necessidade de homologação de sentença estrangeira, necessidade de


procedimento judicial, atentado à soberania, atentado à ordem pública, ausência ou
insuficiência de provas” (BECHARA, p. 56-57). Acrescenta ainda que, relativamente às
cartas rogatórias que têm caráter executório, o entendimento que predomina no STF foi
sempre da inadmissão das mesmas, já que se trata de atos de constrição judicial inerentes à
execução forçada, que atentam contra a ordem pública, e que ainda exigem sentença
transitada em julgado.
Destarte, as dificuldades encontradas no processamento da cooperação penal
internacional em matéria penal referem-se à recusa de prestar assistência, fundamentada,
dentre outras razões, na proteção da soberania e na ordem pública.
Registra-se que tais argumentos concentram-se no fato da diversidade de tradição
jurídica entre os países envolvidos no processo de cooperação.
Conforme salienta Moro (2010, p. 16), fechar-se à cooperação é transformar o país em
refúgio para os criminosos, com a sua força corruptora e disruptiva e arriscar-se a encontrar
portas fechadas para os pedidos de assistência, já que a política predominante nesta seara é a
da reciprocidade. Assim, para este autor, o princípio que rege a cooperação jurídica
internacional é o de que ela deve ser a mais ampla possível, e os limites devem ser observados
como exceção e não como regra.
Segundo Gaetano de Amicis, citado por Bechara (2011, p.57), “a cooperação jurídica
internacional perseguida e almejada é aquela que se mostra inovadora e eficaz, a partir do
reconhecimento recíproco das deliberações das autoridades dos outros Estados, sem mediação
governamental e sem tantos filtros e verificações de legitimidade”.
Portanto, as dificuldades encontradas no processo de cooperação jurídica internacional
devem ser superadas através da adoção de um padrão normativo universal de direitos
humanos, o que, consequentemente, requer uma nova configuração da soberania e da ordem
pública nacional, em face da mundial, para que a assistência em comento seja mais dinâmica e
eficiente.

2 EFICIÊNCIA NA COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL INTERNACIONAL

2.1 NOVA CONCEPÇÃO DE SOBERANIA E ORDEM PÚBLICA NACIONAL

Não há como considerar os atos de cooperação internacional como atentatórios à


soberania e à ordem pública, ao se deparar com uma nova configuração das mesmas.

324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A soberania traduz a capacidade pertencente exclusivamente ao Estado de


autodeterminar-se e de autovincular-se juridicamente, além de negar a subordinação ou
limitação do mesmo por qualquer outro poder.
Tal concepção histórica de soberania encontra-se em crise, principalmente em razão da
fragilidade do constitucionalismo, em decorrência do processo de integração mundial, que
afastou dos Estados nacionais as decisões em determinadas matérias originalmente destinadas
à sua soberania.
Assim, a liberdade absoluta dos Estados foi afastada e passou a ser subordinada a dois
preceitos fundamentais: paz e tutela dos direitos humanos, conforme se depreende na análise
da Carta das Nações Unidas (1945) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Observa-se uma modificação da soberania em face do processo de integração mundial,
já que o Direito Internacional aparece como mediador de conflito, colocando, também, os
indivíduos (e não só os Estados) como sujeitos de direito, em razão do interesse universal (e
obrigação internacional) na preservação e respeito aos direitos humanos.
Salienta Bechara (2011, p. 134) que

Tanto os tratados internacionais aderidos pelos Estados como as constituições


nacionais refletem a nova configuração da soberania, qualificada como a
medida necessária para se alcançar a paz e uma melhor ordenação de
harmonia internacional. A soberania consiste no centro de emanação de força
concreta que assegura a pluralidade, a paz e a unidade política estatal, e não
em um projeto rigidamente ordenado ou em um centro de poder para o qual
tudo se converge, mas sim em um compromisso de possibilidades.

Assim, os direitos humanos devem ser obrigatoriamente respeitados pelos Estados, o


que estabelece uma relação de solidariedade entre os eles e um sentimento de fraternidade
universal, norteando o recurso à cooperação jurídica internacional, principalmente, em
matéria penal.
Acrescenta Bechara (2011, p. 135) que mesmo a modificação da concepção da
soberania, a partir do reconhecimento do valor solidariedade, pelo padrão normativo universal
dos direitos humanos, não esvaziou o conteúdo da mesma nem subtraiu de cada Estado a
autonomia e a capacidade de autodeterminação, pois tratando-se de assistência jurídica
internacional, o respeito à soberania reflete a possibilidade de controle de atos públicos
estrangeiros de natureza jurisdicional pelos órgãos nacionais.
Silva (2005, p. 289)assevera que haveria violação à soberania nacional “se não fosse
possível o controle interno, assim como com a aplicação da lei estrangeira, sem previsão em
regra nacional, ou com a atuação administrativa de agente estrangeiro, sem autorização e

325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

acompanhamento de agente público nacional”. Destarte, a soberania vê-se respeitada quando


as autoridades públicas nacionais têm o poder em suas mãos para acompanhar e autorizar a
prática de atos públicos estrangeiros no território nacional.
Quanto à ordem pública, considera-se esta como um conjunto de valores jurídicos,
políticos, sociais, éticos e econômicos que regulamentam a convivência social no interesse
público. Tais valores estão presentes no ordenamento jurídico de cada Estado e devem ser
respeitados no exercício da jurisdição.
J. de Oliveira Filho, citado por Bechara (2011, p. 137), afirma que a ordem pública
consiste no “estado social que resulta da relação que se estabelece entre os representantes dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como governantes, e os particulares, como
governados, no sentido da realização dos interesses de ambos”. No âmbito Constitucional,
reflete o conjunto de princípios fundamentais de um ordenamento.
No Direito Internacional, a ordem pública representou originalmente a autodefesa do
ordenamento jurídico soberano, determinando o conteúdo dos princípios fundamentais que
embasariam a proteção do Estado contra agressões externas. Tal situação reduzia a ordem
pública a uma lista de princípios abstratos, mas deve-se proteger as disposições irrevogáveis,
como as normas constitucionais referentes à organização política do Estado e aos seus
fundamentos, como o padrão normativo universal dos direitos humanos (que efetivamente
constituem a ordem pública).
Destaca-se que os tratados internacionais que estabelecem a harmonização das
legislações nacionais, superam a concepção da ordem pública nacional enquanto alcançam a
necessária equivalência ou homogeneidade de procedimentos.
Assim, não há motivo para negar a cooperação jurídica internacional, baseado
simplesmente na proteção arbitrária da soberania e ordem pública, quando o que se deve
considerar é o contexto da nova ordem mundial, e como o Estado nela está inserido nesta.
Ressalta-se, portanto, o valor da solidariedade da assistência entre os Estados, com base na
relação de confiança entre eles e o respeito aos direitos humanos.
Ademais, não se pode encarar a proteção dos direitos humanos como um empecilho
para a cooperação jurídica penal internacional, mas como uma forma de legitimação das
normas jurídicas dos Estados. Se estes cumprirem o padrão normativo que envolve os direitos
humanos, menor a chance de existir pressões externas.

2.2 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA

326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A confiança aparece como elemento necessário na cooperação jurídica internacional,


concretizando-se pelo esforço da solidariedade e intensificando-se com a adesão dos estados
aos tratados internacionais de direitos humanos. A partir deste princípio, garante-se a
estabilidade e a previsibilidade nas relações jurídicas.
Sobre a aplicação deste princípio no processo penal e na cooperação jurídica
internacional em matéria penal, Bechara (2011, p. 150) dispõe:

No processo penal, a manifestação do princípio da confiança está associada,


em primeiro lugar, ao direito social à segurança, tendo em vista a expectativa
que a coletividade possui em relação à manutenção da paz social e
tranquilidade pública, e à atuação dos órgãos estatais. Em segundo lugar, a
manifestação do princípio da confiança está associada à observância das
liberdades individuais, notadamente as garantias processuais, que definem o
modelo e os limites da atuação estatal.
Já no que se refere à aplicação do princípio da confiança à cooperação
jurídica internacional em matéria penal, tem-se como reflexo a possibilidade
de uma assistência mais eficiente. A assistência jurídica internacional é um
instrumento de que se vale o Estado para atender às expectativas da
coletividade no tocante à previsibilidade e estabilidade nas relações, de modo
que, quanto mais confiança recíproca houver no relacionamento entre os
Estados, tanto maiores serão as possibilidades de atendimento às
mencionadas expectativas.

Vê-se, com base no princípio da confiança, que a cooperação jurídica internacional


pode se tornar mais eficiente, pois uma maior confiança traduz maior segurança na
preservação dos elementos essenciais na relação entre os Estados, ou entre estes e os
organismos internacionais.

2.3 A EFICIÊNCIA E SEUS FATORES NA COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL


INTERNACIONAL

Segundo Fonseca, em “A eficiência processual penal a partir da dicotomia prazo


razoável e imprescritibilidade”,“a eficiência compreendida pela sociedade é aquela que
incumbe ao Direito Penal e ao Processo Penal a responsabilidade de combater a criminalidade
de forma célere, eficaz e segura, sendo assim, eficiente”.
Assevera Júnior (2011) que “o estado democrático de direito exige prestação
jurisdicional, célere, útil e efetiva; e, no mundo globalizado atual, não há como se obter
efetividade sem a cooperação internacional, que funciona, pois, como instrumento viável à
efetividade das decisões judiciais e como mecanismo garantidor de amplo acesso à justiça”.

327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A eficiência da cooperação jurídica internacional reflete a capacidade de estabelecer a


assistência mútua entre os Estados.
Salienta Souza (2001, p. 140) que os vetores da cooperação jurídica internacional em
matéria penal consistem: na definição quanto ao direito aplicável; no procedimento a ser
respeitado no atendimento da solicitação; no caráter executório do pedido; na reciprocidade
do relacionamento entre os Estados; na exigência de dupla incriminação e na contrariedade ao
ordenamento jurídico nacional.
Bechara (2011, p. 151) afirma que os vetores supra elencados consistem em fatores
determinantes para assegurar a eficiência da cooperação, se houver confiança, entendendo
como fator tudo o que possa contribuir ou dificultar o procedimento da assistência jurídica
internacional. Ainda, para garantir uma cooperação eficiente, assevera que os fatores
relevantes são: a determinação do direito aplicável, a especialidade na destinação do ato
praticado, a exigência de dupla incriminação, a existência de tratado ou acordo bilateral e a
forma de comunicação e relacionamento entre as autoridades estrangeiras.

2.3.1 Definição do direito aplicável

No que concerne à definição do direito aplicável, entende-se que, em geral,


prepondera a lei do Estado requerente, com fulcro no princípio da territorialidade. Já em
relação à lei processual, estabelece-se a aplicação da lei processual do Estado requerido.
Salienta Moro (2010, p. 27) que “na cooperação jurídica internacional, sempre será
observado o Direito aplicável do País requerido para a produção do ato requerido, salvo se
existir tratado regulando a cooperação e este dispor de maneira diversa”.
Ocorre que não há, dentre as normas internacionais, alguma que obrigue a adoção da
lei deste ou daquele Estado no procedimento do pedido de assistência, podendo os Estados
requerente e requerido determinar as condições mais adequadas ao referido processo. Este
tratamento diferenciado nos pedidos de auxílio deve respeitar as convenções internacionais,
princípios fundamentais e o direito nacional do país requerido.

2.3.2 Especialidade na destinação do ato praticado

Conforme dispõe Bechara (2011, p. 155), “em regra, o Estado requerente deve estar
restrito à finalidade que justificou a solicitação, sob pena de invalidação, salvo a hipótese em
que o Estado requerente providenciar ou for autorizado pelo Estado requerido a dar destinação

328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

diversa à pleiteada. O descumprimento do compromisso pelo Estado requerente obstará os


novos pedidos de auxílio mútuo”.
O princípio em comento abrange diversas modalidades de cooperação e, quanto à
extradição, assevera Junior (1994, p. 67), que tal princípio apresenta exceções, pois “a função
limitadora do princípio pode ser superada através da chamada extradição supletiva ou
complementar, ou seja, por um novo pedido de extradição em razão do fato não contido no
pedido original ou pelo comportamento voluntário do extraditando”.

2.3.3 Dupla incriminação

Consiste a dupla incriminação no fato objeto da cooperação ser tipificado como


infração penal nos Estados requerentes e requerido.
É imperioso notar a excepcionalidade deste fator quando se trata de medidas de
cooperação internacional em matéria penal, conforme salienta Cervini (2000, p. 73):

(...) a dupla incriminação (doble incriminación) não aparece como necessária


em se tratando de medidas de assistência procedimental de primeiro nível,
que, por sua localização dentro do processo e ausência de prejuízo, podem ser
qualificadas como meramente procedimentais.
Em câmbio, o princípio da dupla incriminação funciona em todo caso como
uma garantia fundamental no âmbito da cooperação de terceiro nível, o
direito extradicional, segundo os entendimentos doutrinários, ou seja,
tratando-se de pedidos que afetam inafastavelmente a liberdade individual.
Em nosso modo de ver, e nesse caso as soluções do direito comparado não
são uníssonas, também corresponderia a mesma exigência no caso dos
pedidos de assistência de segundo nível (registros, embargos, bloqueios,
confiscos etc.) suscetíveis de ocasionar gravames irreparáveis na esfera dos
direitos.

Acrescenta o referido autor que este é o entendimento acolhido no Congresso


Internacional de Direito Penal da AIDP (Associação Internacional de Direito Penal), ocorrido
em Budapeste, quando se expressou, na Seção IV (Direito Internacional): “Deve-se manter a
dupla incriminação como condição para extradição. Deveria abandonar-se em casos de
assistência mútua em assuntos penais, sempre que esta assistência não supusesse a adoção de
medidas coercitivas ou de medidas que possam levar a uma infração dos direitos humanos ou
a restrição das liberdades fundamentais” (CERVINI, 2000, p. 73).
Bechara (2011, p. 154) registra que, “no âmbito da União Européia, com a criação do
mandado de prisão europeu, que substituiu a extradição, foi convencionada pelos Estados a
abolição da exigência da dupla incriminação (Lei n. 2.002/84, de 13-6-2002)”.

329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Portanto, vê-se que a dupla incriminação não é uma prática comum, ela é exigida
apenas quanto à cooperação penal internacional, nos pedidos que acarretem ofensa à liberdade
individual.

2.3.4 Comunicação entre as autoridades estrangeiras

Para maior eficiência na cooperação entre os Estados e redução da burocracia,


importante se faz a comunicação direta (auxílio direto) entre autoridades judiciais ou
autoridades administrativas, além da comunicação espontânea.
Para tanto, destaca-se a carta rogatória participativa (em que a autoridade do Estado
requerente participa na persecução da prova no Estado requerido, de forma passiva –
assistindo à execução do ato – ou de forma ativa – intervindo no ato), a produção direta de
prova (a autoridade do Estado requerente produz a prova no Estado requerido, mediante
fiscalização deste) e o recurso à videoconferência (quando há impossibilidade de
comparecimento pessoal ao processo no Estado requerente).

2.3.5 Acordo bilateral ou tratado multilateral

Sabe-se que acordos e tratados não impedem a assistência entre os países, mas
facilitam e simplificam o procedimento entre os Estados, tornando a cooperação mais ágil e
eficiente.
Da análise das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal brasileiro, verifica-se que
se confirma uma maior eficiência no auxílio quando há acordo bilateral entre os Estados.
Bechara (2011, p. 165) destaca que “no julgamento do agravo regimental da Carta
Rogatória n. 9.853, o STF entendeu que a inexistência de tratado entre o país no está situada a
Justiça rogante e o Brasil não obstaculariza o cumprimento de carta rogatória,
implementando-se atos a partir do critério da cooperação internacional no combate ao crime”.
Acrescenta que o STJ3 ressaltou o princípio da efetividade do Poder Jurisdicional no novo
cenário de cooperação internacional no combate ao crime organizado transnacional.
Registra-se que mesmo que não haja acordo bilateral ou tratado multilateral
regulamentando a cooperação entre os Estados, é desnecessária a promessa de reciprocidade.

3
No julgamento da Carta Rogatória n. 2005/0015196-0.

330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deve-se promover uma cooperação internacional, especialmente em matéria penal,


mais eficiente, em razão da facilidade tecnológica de comunicação e de transmissão de dados,
que diminuiu a distância entre as pessoas e facilitou a atividade dos criminosos. Os Estados,
portanto, não podem fechar-se à cooperação que deve ser a mais ampla possível, observados
os limites da soberania e dos direitos fundamentais do acusado.
São inevitáveis os conflitos internacionais (bem como a criminalidade), e os modos de
solução destes conflitos devem prezar pelo dinamismo, sendo necessária uma cooperação
jurídica penal internacional eficaz, para que os efeitos advindos destes conflitos sejam
minimizados.
Entende-se que um dos fundamentos para garantir maior eficiência à cooperação
jurídica internacional é o padrão normativo universal dos direitos humanos, pois implica uma
nova concepção de soberania e ordem pública nacional, assentado na confiança mútua entre
os Estados, expressa através do valor da solidariedade. Tal fato justifica um auxílio jurídico
internacional que satisfaça os anseios dos Estados cooperantes e supere a diversidade
existente entre os mesmos.

REFERÊNCIAS

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Forense, v. 326, n. 90, p. 67 abr./maio/jun. 1994.
ARAÚJO, Nadia de. A importância da cooperação jurídica internacional para a atuação do
Estado Brasileiro no plano interno e internacional. In: Manual de Cooperação Jurídica
Internacional e Recuperação de Ativos. Cooperação em Matéria Penal. Brasília; Secretaria
Nacional de Justiça, 2008.
BECHARA, Fábio Ramazzini. Cooperação jurídica internacional em matéria penal:
eficácia da prova produzida no exterior.São Paulo: Saraiva, 2011.
CERVINI, Raul. Princípios de cooperação judicial penal internacional no protocolo do
Mercosul. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
FONSECA, Cristina Tider. A eficiência processual penal a partir da dicotomia prazo
razoável e imprescritibilidade. Disponível em http://www3.pucrs.br. Acesso em 30.01.2012.
GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

JÚNIOR, Márcio Mateus Barbosa. A cooperação jurídica internacional na jurisprudência


do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Jus Navigandi,
Teresina, ano 16, n. 3014, 2 out. 2011. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/20109>. Acesso em: 30.01.2012.
MACHADO, Maíra Rocha. Cooperação penal internacional no Brasil: as cartas rogatórias
passivas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n° 53, p. 102, mar./abr.
2005.
MORO, Sérgio Fernando. Cooperação Jurídica Internacional em Casos Criminais:
considerações gerais. Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal.
Organizadores: José Paulo Baltazar Júnior, Luciano Flores de Lima. Porto Alegre: Verbo
Jurídico, 2010.
RABELO, Carolina Gladyer. A cooperação jurídica internacional e o crime organizado
transnacional. Extraído do site www4.uninove.br. Acesso em 23.01.2012.
SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Auxílio direto, carta rogatória e homologação de
sentença estrangeira. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 30, n. 128, p. 289, out.2005.
SOUZA, Solange Mendes de. Cooperação jurídica penal no Mercosul: novas
possibilidades. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

332
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A “LEI DA GRAVIDADE” E O EXCESSO DE PRAZO:


estudo sobre a prisão cautelar no Superior Tribunal de Justiça

Nestor Eduardo Araruna Santiago*

Daniela Karine de Araújo Costa**

RESUMO: O presente artigo trata do posicionamento do Superior Tribunal de


Justiça (STJ) acerca da prisão preventiva, cruzando-se os dados referentes aos
critérios de gravidade abstrata, concreta e o excesso de prazo, abordando-se os
julgamentos em ações de Habeas Corpus (HC) e Recurso Ordinário em Habeas
Corpus (RHC) proferidos de janeiro de 2009 a dezembro de 2012. Demonstra-se que
o STJ tem considerado ilegal a prisão do acusado baseada na gravidade abstrata do
delito, na periculosidade presumida do agente, no clamor social decorrente da prática
da conduta delituosa, ou, ainda, na afirmação genérica de que a prisão é necessária
para acautelar o meio social. Igualmente, não havendo razoabilidade na constatação
do prazo para encerramento do feito, ou de fase dele, o STJ tem concedido ordem
liberatória em favor do acusado. Em ambas as situações verifica-se não haver um
padrão decisório seguro para se afirmar se, no caso, houve ou não excesso de prazo
e/ou a referência à gravidade abstrata (ou genérica) da infração cometida. Ademais,
dos 29 casos analisados, somente em 9 houve a concessão da ordem de HC ou o
provimento do RHC.

PALAVRAS-CHAVE: Excesso de prazo. Prisão processual. Gravidade abstrata.


Gravidade concreta. Razoabilidade. Superior Tribunal de Justiça.

THE "GRAVITY LAW" AND THE EXCESS OF TERM:


Study on preventive detention on Superior Court of Justice

ABSTRACT: The present scientific article is a study on the positioning of the


Brazilian Superior Court of Justice about preventive detention, crossing data according
to the following criteria: abstract severity, concrete severity and excess of term,
concerning the decisions on habeas corpus and ordinary appeal in habeas corpus
between the years 2009-2012. In this purpose, it was realized that the Superior Court
of Justice has repeatedly considered illegal the arrest of the accused grounded on: i)
the abstract severity of the crime: ii) presumed dangerous behavior; iii) social uproar;
iv) general statement that the arrest is necessary to safeguard the social environment.
Concerning to excess of term in criminal procedures, either related to a procedural
period or to the end of the procedure, the Brazilian Supreme Court of Justice has
allowed withholding order in favor of the accused, especially when this excess is not
justified by any means. However, it is easily verified that there is no safe
standardization in Supreme Court decisions that could allow to conclude what is
*
Doutor em Direito. Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD),
Graduação em Direito e Especialização em Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Líder do Grupo de
Pesquisa “Tutela penal e processual penal dos direitos e garantias fundamentais” e Coordenador do
Laboratório de Ciências Criminais (LACRIM) da Unifor. Professor do Curso de Direito da Universidade
Federal do Ceará (UFC). E-mail: nestoreasantiago@gmail.com
**
Discente do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Bolsista PIBIC/CNPq. Membro do
Laboratório de Ciências Criminais (LACRIM) da Unifor. E-mail: danielakcosta@yahoo.com.br

333
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

abstract severity or excess of term. Besides, from the 29 studied cases, only on 9 there
was a favorable decision for the accused.
Keywords: Excess of term. Procedural prison. Abstract severity. Concrete
severity. Reasonableness. Brazilian Superior Court of Justice.

INTRODUÇÃO
O habeas corpus (HC), medida impugnativa historicamente associada à garantia
do direito fundamental à liberdade individual, tem previsão constitucional no art.5º, LXVIII,
da Constituição Federal (CF), e se presta a resguardar o sujeito de direitos ante as situações de
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Há séculos, o HC é estandarte simbólico da democracia e principal instrumento de
garantia dos direitos fundamentais, uma vez que a sua razão de ser está ligada a necessidade
de limitar o poder e o arbítrio do Estado, bem como sua ingerência sobre os direitos
individuais do cidadão, principalmente a liberdade de ir, vir e permanecer.
Exatamente por isso, possui uma forte identificação com o início do liberalismo e
com os ideais iluministas e revolucionários, muito embora sua origem seja mais antiga,
vinculada à edição da Magna Charta Libertarum, de 1215. Tais direitos individuais, dentre os
quais se inclui a liberdade de locomoção, são classificados como de primeira dimensão
(BONAVIDES, 2006, p. 569). Ademais, a afirmação do HC perante a ordem constitucional
brasileira, diante de uma semântica libertadora, bem como o precedente histórico de essência
das sociedades democráticas, faz dele uma ação constitucional autônoma, de caráter
abrangente, pois não o exercício da impetração não está limitado aos advogados, sendo
cabível a qualquer pessoa do povo que depare uma ilegalidade atinente à deambulação,
própria ou de outrem.
Observa-se, também, que, na prática cotidiana do foro criminal, diversas impetrações
de HC são com o intuito de atacar decisões judiciais que ora se fundamentam na suposta
gravidade da infração penal, ora na duração temporal para o encerramento de determinado
procedimento. Em alguns casos, as duas linhas de argumentação são utilizadas.
Tendo como mola propulsora a impetração de HC que se baseia em um ou em ambos
os motivos acima elencados, além de eventuais Recursos Ordinários em Habeas Corpus
(RHC), este trabalho tem como escopo analisar as decisões proferidas em ações de habeas
corpus julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A principal relevância deste estudo é
verificar de que forma este Tribunal vem se posicionando acerca do deferimento e denegação
da prisão preventiva segundo os critérios de gravidade abstrata, concreta e o excesso de prazo.
Procurar-se-á investigar, de acordo com a metodologia abaixo proposta, se há alguma

334
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

padronização decisória no âmbito do STJ no que se refere à impetração de HC, de acordo com
os parâmetros propostos na metodologia do trabalho, que segue melhor descrita abaixo.
1 METODOLOGIA DO TRABALHO
Para a elaboração deste artigo, lançou-se mão de pesquisa direta no sítio eletrônico
do STJ (http://www.stj.jus.br), realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2013. Utilizando-
se os critérios disponíveis para a pesquisa do repertório jurisprudencial daquele Tribunal,
grafou-se o termo “gravidade prox20 excesso adj2 prazo”, de forma a relacionar decisões
colegiadas, tirante as súmulas, que constassem na ementa os termos “gravidade abstrata”,
“gravidade concreta” e/ou “gravidade efetiva”, combinando-as com “excesso de prazo”.
Combinou-se o critério acima referido com a variável temporal, de caráter aleatório,
mas importante para se delimitar o âmbito da pesquisa. Assim, o critério utilizado teve como
data inicial o dia 01 de janeiro de 2009, e a final, 31 de dezembro de 2009.
Combinando-se os dois critérios – tempo e expressão de pesquisa - chegou-se ao
quantitativo de 33 (trinta e três) ocorrências. Para manter a fidedignidade da pesquisa, foram
utilizados somente os acórdãos em que a palavra “gravidade” ou a expressão “excesso de
prazo” tenha constado de forma explícita na ementa, de forma a facilitar a pesquisa. Desta
forma, o quantitativo de decisões foi reduzido para 29 (vinte e nove).
2 RESULTADOS OBTIDOS
2.1 Quantidade de concessões em HC e RHC
Em razão da metodologia empregada, verificou-se que, dos 29 acórdãos obtidos,
houve concessão da ordem e/ou provimento ao recurso ordinário em 9 (nove) casos, com um
percentual de 31,03%.
Observou-se, também, que, mesmo quando aplicado um intervalo maior entre a
palava “gravidade” e a expressão “excesso de prazo”, não houve uma variação digna de nota
no tocante à quantidade de concessões – no total de 10 - embora, obviamente, houvesse uma
variação significativa no percentual. Assim, ao se utilizar o critério “gravidade prox30
excesso adj2 prazo”, chegou-se a 47 resultados; “gravidade prox40 excesso adj2 prazo”, a 55
resultados; “gravidade prox50 excesso adj2 prazo”, a 57 resultados; “gravidade prox60
excesso adj2 prazo”, a 59 resultados. Ao se utilizar “gravidade prox70 excesso adj2 prazo” e
“gravidade prox80 excesso adj2 prazo”, chegou-se ao mesmo número de resultados: 62.
Desta feita, como não houve diferença importante na quantidade de concessões,
houve preferência metodológica em se trabalhar com o número de concessões de HCs e
provimento de RHCs obtidos com o primeiro critério metodológico.
2.2 Motivos pelos quais houve a concessão da ordem e o provimento do recurso

335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Anotou-se, também, que, dos 9 resultados positivos aos impetrantes e recorrentes, 2


(dois) se deram em razão do reconhecimento de que o argumento da gravidade abstrata da
infração não deveria ser aplicado para se determinar ou manter a prisão preventiva (HC
138.383/SP e 113567/RJ).
Relativamente ao excesso de prazo, ou seja, de que havia demora irrazoável na
finalização do procedimento ou de fase processual, deu-se resultado positivo em 3 (três) casos
(RHC 27213/RS; HC 86157/SC ; HC 71406/BA).
No tocante à utilização combinada dos dois critérios – excesso de prazo e gravidade
– verificou-se a concessão da ordem em 4 (quatro) casos (HC 191085/SP; HC 165964/SP; HC
161676/AL; 136829/SP).
2.3 Crimes praticados e concessões
Considerando-se os 29 (vinte e nove) acórdãos obtidos, observou-se que vários
foram os crimes praticados pelos impetrantes e recorrentes. A enumeração a seguir não leva
em consideração a quantidade de vezes que as condutas foram descritas no mesmo ou em
acórdãos diferentes, e nem se houve concurso material ou formal de infrações ou crime
continuado: i) extorsão mediante sequestro (art. 159, CP); ii) roubo em sua forma majorada
(art. 157, § 2º, CP); iii) formação de quadrilha (armada ou não) (art. 288, CP); iv) tráfico de
entorpecentes (art. 33, Lei n. 11.343/2006) e associação para o tráfico (art. 35, Lei n.
11.343/2006); v) homicídio qualificado (art. 121, § 2º, CP – não se levou em consideração a
qualificadora, havendo, às vezes, mais de uma); vi) furto qualificado (art. 155, § 4º, CP); vii)
ato infracional (roubo); viii) porte de arma de uso permitido e porte de arma de uso proibido
(arts. 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003); ix) corrupção de menores (art. 244-B, Lei n.
8.069/1990); x) ameaça (art. 147, CP); xi) estupro (art. 213, CP); xii) disparo de arma de fogo
em via pública (art. 15, Lei n. 10.826/2003); xiii) receptação (art. 180, CP).
Das condutas praticadas e que foram objeto de provocação perante o STJ, verificou-
se que o maior número de concessões referiu-se ao crime de homicídio qualificado, sendo 3
(três) concessões levando-se em consideração os dois motivos de provocação (gravidade
abstrata e excesso de prazo – HCs 161.676/AL; 136.829/SP; 191085/SP) e uma
fundamentando-se na demora excessiva para a conclusão do procedimento (HC 86157/SC). A
concessão também se baseou nos dois critérios de impetração no HC 165964/SP, referente aos
crimes de receptação e formação de quadrilha, e no HC 71406/BA, referente ao crime de
tráfico de entorpecentes.
Houve concessão de HC reconhecendo-se somente o excesso de prazo como
constrangimento ilegal em ato infracional equivalente ao roubo majorado (RHC 27213/RS).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

No que tange à gravidade abstrata ou genérica da infração, a ocorrência desta forma


de constrangimento ilegal foi motivo para concessão do HC 138383/SP (furto qualificado) e
do HC 113567/RJ (tráfico de entorpecentes).
2.4 Concessões e provimentos por ano
Observando-se o quantitativo de concessões, pôde-se anotar que, no ano de 2009,
houve 4 (quatro) resultados favoráveis à defesa; em 2010, 3 (três); nos anos de 2011 e 2012,
apenas uma concessão por ano, o que pode sugerir que o STJ vem se tornando mais rigoroso
nas concessões de HC e provimentos de RHC.
2.5 Concessões e denegações por turma julgadora e por relator
São quatro os órgãos do STJ que detêm competência para julgar crimes: a 5ª e a 6ª
Turmas, a 3ª Seção (junção das 5ª. e 6ª. Turmas) e a Corte Especial (nos casos de crimes
praticados por pessoas que detenham foro por prerrogativa de função). As ocorrências objeto
deste estudo referem-se tão somente às 5ª. e 6ª. Turmas.
Para a 5ª. Turma, no período de tempo delimitado e pelos critérios de busca definidos
na metodologia de pesquisa, foram distribuídos 17 (dezessete) HCs e 1 (um) RHC, totalizando
18 (dezoito) julgados. Dos 8, houve 3 (três) concessões de HC e 1 (um) provimento a RHC,
com um percentual de 22,3% de resultados positivos, ante o quantitativo de processos
distribuídos. Dos ministros que compõem referido órgão julgador, duas concessões tiveram
como Relator a Ministra Laurita Vaz (HC 191085/SP e 86157/SC), ambos referentes a
homicídio qualificado; uma concessão teve como Relator o Ministro Gilson Dipp (HC
165964/SP, referente a receptação e formação de quadrilha) e outra, o Ministro Arnaldo
Esteves Lima (RHC 27213/RS, ato infracional equiparado a roubo).
Já para a 6ª. Turma, utilizando-se da mesma formatação metodológica da
investigação, foram distribuídos 11 (onze) HCs, com percentual de 45,5% de concessões. Dos
5 Ministros que compõem o órgão turmário, apenas dois figuram na pesquisa: Og Fernandes
(HC 13689/SP, homicídio qualificado tentado; HC 161676/AL, homicídio qualificado; HC
113567/RJ, tráfico de entorpecentes) e Maria Theresa Rocha de Assis Moura (HC 138383/SP,
furto qualificado; HC 71406/BA, tráfico de entorpecentes).
3 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS OBTIDOS
Em razão dos resultados obtidos, notadamente nos casos em que houve resposta
satisfatória ao acusado por parte do STJ, faz-se necessário estudar com mais minúcias as
razões que levaram aquela Corte a adotar determinado posicionamento.
3.1 Correlação entre ordem pública e gravidade concreta
A prisão cautelar, medida por demais excepcional por anteceder à condenação

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

definitiva que transita em julgado, só deve ser cabível em situações extremas e quando
presentes os requisitos básicos para sua decretação. Aliás, esta foi a orientação traçada pelo
legislador ao reformar o texto das medidas cautelares prisionais e não prisionais por
intermédio da Lei n. 12.403/2011, modificando-se, assim, toda a sistemática processual penal,
que girava em torno da prisão preventiva como medida supostamente eficiente no combate ao
crime. Em outras palavras, era a prisão preventiva ou liberdade provisória, numa autêntica
“bipolaridade cautelar”, deixando pouco espaço de manobra ao aplicador da lei para acautelar
o resultado final do processo penal.
Como se sabe, a garantia da ordem pública constitui um dos fundamentos para a
decretação da prisão preventiva (art. 312, Código de Processo Penal). Ocorre que a
indefinição do conceito de ordem publica, por si só, já causa uma perturbação da ordem
publica. E apesar das várias tentativas em defini-la, os decretos de prisão preventiva com base
na ordem publica muitas vezes se fundamentam no acautelamento do meio social, na
periculosidade do acusado, no clamor publico, na gravidade abstrata do crime ou na segurança
do próprio acusado.
O conceito adotado pela doutrina tem se tornado tão amplo que, por vezes, assume
dois significados, o de manutenção material da ordem de rua com a paz indispensável à
convivência coletiva e a de manutenção da ordem moral com a designação de parâmetros de
comportamento social (FILOCRE, 2009).
Segundo Filocre (2009), a segurança das pessoas e dos bens, a salubridade, a
tranquilidade, bem como a ordem moral, estética, política e econômica são fundamentos da
ordem pública, segundo o seu conceito metajurídico. Disso, é possível concluir que, a
compreensão do que é ordem publica varia tanto no seu sentido formal como material,
estabelecendo limites fluidos, que variam conforme o pensamento do magistrado apto a
aplicar a medida cautelar prisional. Polastri Lima (2009, p. 646) alerta que a prisão preventiva
deve ter por escopo assegurar o resultado útil do processo, de forma a impedir que o acusado
possa continuar a praticar crimes, resguardando-se o princípio da prevenção geral. Entretanto,
algumas decisões sobre prisão preventiva se detém em repetir a necessidade de se garantir a
ordem publica sem sequer tentar defini-la ou explicar o porquê de ela estar em perigo.
Situação não menos intrigante nesta curta investigação foi constatar que, nos crimes
de tráfico de entorpecentes, a gravidade concreta que justificava a custodia cautelar
fundamentada na necessidade de preservar-se a ordem pública era evidenciada pela
quantidade de droga apreendida, com grande variação no critério de aferição para se
determinar tal gravidade, e assim, decretar-se ou manter a prisão preventiva.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Em um primeiro caso, a quantidade de maconha encontrada foi de 1kg em tablete e


11 petecas de cocaína (STJ, HC n. 244897/PA, 5ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,
DJe 20/09/2012). Já em outro, a quantidade de maconha apreendida foi de 66,5 g e 10g de
crack (STJ, HC n. 228546/PA, 5ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 12/06/2012).
Em um terceiro caso, apreenderam-se 24 papelotes de cocaína e 164 pedras de crack (STJ,
HC n. 197358/ES, 5ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 25/11/2011). Numa
quarta situação, foram apreendidos mais de 4 kg de crack (STJ, HC n. 208976/BA, 5ª Turma,
Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 22/11/2011). Em mais outro, apreenderam-se 262
pedras de crack, 30 cápsulas de cocaína e 4 porções de Cannabis sativa L (STJ, HC n.
103502/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 14/12/2009). E por fim, a
quantidade de maconha apreendida foi de 200kg (STJ, HC n. 84673, 5ª Turma, Rel. Min.
Laurita Vaz, DJe 09/03/2009).
Da análise dos julgados constata-se que em relação à maconha a quantidade variou
de 66,5g a 200 kg; quanto à cocaína, variou-se de 11 a 30 papelotes; e, em relação ao crack,
foi de 10g a 4 kg. Interessante observar que esta disparidade é visível nos cinco casos postos
sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, componente da 5ª. Turma do STJ,
demonstrando não haver qualquer referencial decisório para concessão ou denegação da
ordem. Assim, para este Ministro, poder-se-ia deduzir que a gravidade abstrata da conduta,
aqui materializada pela quantidade, ínfima ou não, já seria motivo suficiente para se manter o
acusado no cárcere, que, assim, seria presumidamente perigoso. Aliás, lembra Almeida (2003)
que a periculosidade do agente é o fundamento mais vigoroso para a decretação da prisão
preventiva.
No HC n. 251761/SP, como em muitos outros, o STJ corrobora a premissa de que a
gravidade concreta dos delitos e o modus operandi das condutas criminosas denotam a
periculosidade do agente, legitimando a manutenção da custodia cautelar para a garantia da
ordem pública e que as condições pessoais favoráveis, tais como primariedade, bons
antecedentes, ocupação licita e residência fixa, não tem o condão de, por si sós, desconstituir a
custodia antecipada, caso estejam presentes outros requisitos de ordem objetiva e subjetiva
que autorizem a decretação da medida extrema (STJ, HC n. 251761/SP, 5ª Turma, Rel. Min.
Laurita Vaz, DJe 01/02/2013).
Observa-se também que o STJ vem seguindo a corrente de que argumentos abstratos
sobre a natureza do delito ou no sentido de que se trata de crime grave que "causou certa
perplexidade social", de que houve "repercussão dos fatos na imprensa falada e escrita" ou
sobre a “credibilidade do Poder Judiciário”, não se prestam a justificar a imposição da

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

custódia cautelar. (HC 145.564/SP, 6.ª Turma, Rel. Ministro CELSO LIMONGI
(Desembargador convocado do TJ/SP), DJe de 30/08/2010).
Com relação ao crime de roubo, algumas considerações especiais necessitam ser
feitas. A figura típica já é, por si só, dotada de certa gravidade e reprovabilidade imposta
desde logo pelo legislador, em razão da descrição normativa, que estabelecem a grave ameaça
e/ou a violência como elementos do tipo, bem como a redução da capacidade de resistência da
vítima à agressão contra ela perpetrada. Dessa forma, não é função do julgador agravar ainda
mais o delito sem apoio nos fatos, vez que o legislador já o fez em sua plenitude, sob pena de
autêntico bis in idem.
Entre as decisões pesquisadas, duas dizem respeito ao crime de roubo e tinham por
fundamento da prisão cautelar a manutenção da ordem publica e conveniência da instrução
criminal. O HC 205350/PA foi denegado e tratava de crime de roubo duplamente majorado e
estupro, no qual o apenado já estava em prisão cautelar há 2 anos e 5 meses. O Tribunal
entendeu que o modus operandi do paciente e o delito ser considerado hediondo justificavam
a manutenção da segregação cautelar do apenado, apesar do evidente excesso de prazo, pois
expressava gravidade concreta do crime e a periculosidade do agente.
O outro HC, de n. 123715/PI, versava sobre o crime de roubo circunstanciado e
formação de quadrilha, no qual o apenado já estava preso cautelarmente há 1 ano e 2 meses.
Na decisão, o STJ afirmou que “a prisão não se baseia apenas na gravidade em tese dos
delitos, mas amparada, ainda, no modus operandi da conduta e na necessidade de coibir a
reiteração dos delitos e trazer novamente a paz ao meio social”. Mais uma vez, desprezou-se o
excesso de prazo na prisão do acusado, em função da paz social.
A gravidade concreta do delito praticado, evidenciada pelo modo de agir dos agentes,
constitui circunstância que autoriza a segregação cautelar para garantia da ordem pública,
mesmo após a edição da sentença condenatória. (Habeas Corpus n. 112727/RJ, 6a Turma do
STJ, Rel. Og Fernandes, j. 05.02.2009, unânime, Dje 04.03.2009).
Também há constrangimento ilegal se o magistrado de primeira instância indeferiu a
liberdade provisória do paciente apenas com base na gravidade genérica do crime de roubo,
no clamor social por ele causado, na necessidade de citação pessoal do acusado e na
possibilidade de intimidação de testemunhas. Tais fundamentos não se revelam idôneos para
justificar a necessidade da medida extrema, ante a falta de qualquer elemento concreto dos
autos, não se admitindo presumir que o paciente poderá intimidar testemunhas somente com
presunções (HC 89.665/SP, 6a. Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe
15.3.10).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Há vários entendimentos dessa Corte que firmam a posição que mesmo na hipótese
do crime ser considerado hediondo ou equiparado, como no caso do crime de tráfico de
entorpecentes, é imprescindível que se demonstre com base em elementos concretos a
necessidade da custódia, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, sendo a
simples vedação contida na Lei n. 11.343/2006 insuficiente para o indeferimento da liberdade
provisória (HC 125.667/RS, 6a. Turma, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, DJe 26/10/2009).
Via de regra, entende-se pela jurisprudência que há um conjunto de causas viáveis
autorizadoras da prisão preventiva, com base na garantia da ordem pública: a) gravidade
concreta do crime; b) envolvimento com o crime organizado; c) reincidência ou maus
antecedentes do agente e periculosidade; d) particular e anormal modo de execução do delito;
e) repercussão efetiva em sociedade, gerando real clamor público.
Almeida (2003), citando Borges da Rosa, afirma que a expressão “garantia da ordem
pública” não tem significado especial, sendo meramente explicativa e poderia ter sido omitida
do texto processual penal, visto que toda prisão decretada em processo penal se destina a
garantir a ordem pública. O que não se pode olvidar, de forma alguma, é que, sob o
fundamento de “ordem pública”, negue-se a garantia da liberdade individual em face do seu
conceito indeterminado, o que fere o princípio da segurança jurídica.
3.2 O excesso de prazo
O princípio da razoável duração do processo está disposto no artigo 5º, LXXVIII, da
CF, introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/04 (EC 45), que dispõe que “a todos, no
âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação". Dispositivo semelhante já fazia parte do
ordenamento jurídico brasileiro desde a edição do Decreto n. 678/1992, que internalizou a
aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), com previsões específicas
nos arts. 7º, item 5, e 8º, item 2.
Por mais que o legislador constitucional tenha legitimamente se preocupado em
estabelecer e positivar esse direito, contudo não determinou o significado da expressão prazo
razoável. Com isso, ficou a cargo da doutrina e jurisprudência estabelecer o que seja e, por
consequência, determinar a partir de quando se configura o excesso de prazo, especialmente
em causas penais, já que seus reflexos são sentidos de forma mais grave pelos sujeitos
passivos da situação processual. Santiago e Pinho (2010, online) buscaram delimitar
conceitualmente tal princípio como

o espaço de tempo normativamente previsto em que os órgãos administrativos de


persecução penal e os órgãos jurisdicionais têm à sua disposição para a solução do

341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

caso penal, de modo efi ciente, admitindo-se a extrapolação justificada e razoável


dos prazos, respeitando-se a liberdade do imputado, de forma imediata, como modo
de consecução do princípio da dignidade da pessoa humana, e, mediatamente, o
devido processo penal.

Muitos consideram esse princípio como uma cláusula aberta, que pouco efeito
prático traz, já que a previsão da razoabilidade do prazo não é acompanhada de qualquer
sanção pelo seu descumprimento, sequer existindo previsão categórica de prazos na
legislação, nomeadamente a processual penal, que possa interferir diretamente na celeridade
da prestação jurisdicional. Assim, torna-se imprescindível a existência de meios materiais para
que o direito se torne realidade, ou seja, que garantam a celeridade de sua tramitação
(SOUZA, 2004).
Há que se lembrar que a duração razoável do processo, antes de mais nada, é um
direito fundamental, e, desta feita, o próprio Estado tem por finalidade básica garantir o seu
cumprimento, por meio de proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de
condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (BONAVIDES,
2006).
A análise de decisões oriundas do STJ, de acordo com os parâmetros estipulados para
a realização da presente pesquisa, pode trazer um quadro que, se não é absoluto, ao menos
fornece uma amostra da realidade no tocante à caracterização e delimitação do que seja prazo
razoável ou não razoável, gerando insegurança jurídica. Para este momento, serão utilizadas
não só as decisões concessivas, em que, evidentemente, houve extrapolação do prazo, mas,
também, as decisões denegatórias, independentemente do crime praticado.
Na formulação das decisões de 8 (oito) HCs teve peso decisivo o enunciado da
Súmula n. 52 do STJ, que entende estar superado o constrangimento ilegal por excesso de
prazo se a instrução criminal foi encerrada. No HC n. 71406/BA, embora tenha havido a
aplicação deste entendimento sumular, os Ministros decidiram que, mesmo encerrada a
instrução processual, seria o caso de se conceder a ordem de HC, já que o acusado, preso por
tráfico de entorpecentes, já se encontrava em prisão cautelar há quase 3 (três) anos, pois o
atraso na prolação de sentença não poderia ser imputado à defesa, creditando-se claramente à
Administração a responsabilidade pela demora em razão da greves dos servidores da Justiça
(STJ, HC 71406/BA, 6a Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 27/04/2009).
Em outro caso, no sentido de afirmação do enunciado da Súmula n. 52, a alegação de
excesso de prazo na formação da culpa restou prejudicada em razão da prolação de sentença
condenatória (STJ, HC 84673/RN, 5a. Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 09/03/2009). Como
critérios para denegação do writ, utilizou-se o próprio entendimento pacificado nos Tribunais

342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Superiores que eventual excesso de prazo deve ser analisado sempre à luz do princípio da
razoabilidade, sendo permitido ao Juízo, em hipóteses excepcionais, ante as peculiaridades da
causa, extrapolar os prazos previstos na lei processual penal, já que essa aferição não resulta
de simples operação aritmética (STJ, HC 244897/PA, 5a Turma, Rel. Min. Marco Aurélio
Bellizze, DJe 20/09/2012). E esta peculiaridade se dá, especialmente, em casos cuja gravidade
abstrata se mostra evidente, como no tráfico de entorpecentes, em que Ministro Marco Aurélio
Belizze, invariavelmente, negou concessão aos HCs impetrados, sem a elaboração de um
parâmetro quantitativo com relação à droga apreendida.
Igual relação de forças para a denegação de ordens de HCs tem o enunciado da
Súmula n. 21 do STJ. Diz o texto da súmula que “pronunciado o réu, fica superada a alegação
de constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução”, e, baseando-se nele,
em dois jugados da 5ª. Turma do STJ (HC 179830/SP, HC 185456/PE) afastou-se a alegação
de excesso de prazo. Em três outros julgados, não houve o exame do mérito no tocante ao
excesso de prazo, sob a alegação de que a análise realizada por meio de impetração de HC
poderia caracterizar supressão de instância (HC 205350/PA, HC 208976/BA, HC
243604/MG).
Nos HCs 86157/SC, 191085/SP, 165964/SP, 136829/SP, 161676/AL houve
concessão da ordem devido ao prazo de segregação cautelar encontrar-se desmedido. Os
argumentos para se chegar a um resultado favorável para os acusados foram os seguintes: i)
feito não se reveste de complexidade; ii) ausência de elementos que possam atribuir à defesa a
lentidão do feito; iii) paciente preso por mais de 5 anos, sem submissão ao júri; iv) instrução
encerrada sem qualquer movimentação processual subsequente, ou seja, sem decisão quanto
ao mérito ou necessidade de remessa do acusado ao Tribunal do Júri.
No julgamento do HC 225.210/MG, o STJ entendeu que o excesso de prazo deve ser
analisado à luz do princípio da razoabilidade, sendo, então, permitido ao juízo, em hipóteses
excepcionais de complexidade, a extrapolação dos prazos processuais. O paciente, por sua
vez, encontrava-se preso há 11 meses e o processo possuía 16 denunciados, bem como a
audiência de instrução e julgamento já havia sido designada para data próxima. Entendeu o
STJ pela denegação do HC por entender que diante da gravidade concreta dos delitos
praticados inclusive com violência e arma de fogo, justificar-se-ia a adoção de medida
extrema (STJ, HC 225210/ MG, 5ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe
10/04/2012).
Conclusão

343
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, sendo


exceção à regra. Assim, é inadmissível que a finalidade da custódia cautelar, qualquer que seja
a modalidade, seja deturpada a ponto de configurar uma antecipação do cumprimento de pena.
O princípio constitucional da não culpabilidade, se por um lado não resta malferido diante da
previsão no nosso ordenamento jurídico das prisões cautelares (Súmula n. 9, STJ), por outro
não permite que o Estado trate como culpado aquele que não sofreu condenação penal
transitada em julgado. Desse modo, a constrição cautelar deve ter base concreta, por atingir
diretamente o direito à liberdade ambulatória. Assim, a prisão preventiva se justifica desde
que demonstrada a sua real necessidade com a satisfação dos pressupostos a que se refere o
art. 312 do Código de Processo Penal, não bastando, frise-se, a mera explicitação textual de
tais requisitos. Não se exige, contudo, fundamentação exaustiva, bastando que o decreto
constritivo, ainda que de forma sucinta e concisa, analise a presença, no caso, dos requisitos
legais ensejadores da prisão (HC 133310/BA, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA
TURMA, julgado em 01/09/2009, DJe 05/10/2009).
O STJ, em reiteradas decisões, tem reconhecido que os fundamentos da prisão
preventiva baseados na gravidade abstrata do delito, na periculosidade presumida do agente,
no clamor social decorrente da prática da conduta delituosa, ou, ainda, na afirmação genérica
de que a prisão é necessária para acautelar o meio social, são tidos como ilegais, resultando na
concessão de ordens de HC, permitindo que o paciente retome a liberdade perdida.
Contudo, observa-se que sob o manto argumentativo do “modus operandi”, esconde-
se um discurso de natureza repressiva, notadamente nos casos de roubo, que aponta
diretamente para a proteção da sociedade em razão da conduta praticada, o que denota a
ausência de fundamentação da decisão denegatória da ordem.
Todo crime já traz em sua essência uma gravidade abstrata, decorrente da própria
proteção ao bem jurídico conferida pelo Direito Penal, em autêntica realização do critério de
prevenção geral. Contudo, tal caracterização não é suficiente para se decretar a prisão cautelar
do agente, ou qualquer outra medida cautelar não prisional.
A falta da demonstração concreta do periculum libertatis do acusado, ainda que a
conduta seja tipificada como hedionda, por mais reprovável que seja e por mais repulsa social
que cause, não pode constituir motivo idôneo a ensejar a prisão preventiva, sob pena – sem
trocadilho – de transformá-la em prisão cautelar obrigatória.
O quadro agrava-se sensivelmente quando o parâmetro avaliativo do
constrangimento estatal fundamenta-se no excesso de prazo. Conforme já se observou em
pesquisa anterior, que envolveu o estudo da duração razoável do processo penal em crimes

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

hediondos, com análises de decisões do STJ e do Supremo Tribunal Federal, a noção de


razoabilidade, adotada amplamente por estes tribunais, não consegue criar um paradigma de
prazos máximos no encarceramento provisório (SANTIAGO E BARROS, 2012).
Verificou-se ainda, que, mesmo quando confrontados a gravidade da infração e o
excesso de prazo para o encerramento do feito ou de etapa do procedimento, mostrou-se
prevalente o argumento da gravidade do crime, notadamente em casos de tráfico ilícito de
entorpecentes e roubo, em que invariavelmente denegaram-se os HCs impetrados, sem a
elaboração de um parâmetro quantitativo com relação à droga apreendida, ao arrepio de
qualquer ideia de razoabilidade.
Deve-se levar em consideração que, ao mesmo tempo que um conceito
indeterminado capacita o juiz a tomar decisões mais próximas aos casos concretos, tornando
mais perene o texto legal, ele deve fundamentar de forma mais sólida suas decisões, de forma
a proporcionar mais estabilidade ao próprio direito (WAMBIER, 2009). Mas, a partir do
momento em que não há uma parametrização, por meio de elaborações de decisões colegiadas
sumulares, preferencialmente de caráter vinculante, entende-se ser imperiosa a necessidade de
fixação legal de limites menos elásticos destinados à atuação dos magistrados no tocante à
gravidade dos crimes e do excesso de prazo, com imposição de sanções administrativas e
processuais efetivas, de modo que tanto o princípio da motivação das decisões judiciais
quanto o princípio da duração razoável do processo tenham aplicabilidade real.

Referencias

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LIMITES E POSSIBILIDADES CONSTITUCIONAIS À CRIAÇÃO DO BANCO DE


PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL

CONSTITUTIONAL LIMITS AND POSSIBILITIES FOR THE CREATION OF THE


GENETIC PROFILES DATABASE FOR PURPOSES OF CRIMINAL INVESTIGATION IN
BRAZIL

Carolina Grant*

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo contribuir para o debate nacional acerca da criação de um
banco de perfis genéticos para fins de investigação criminal no Brasil, a partir da análise
acerca da constitucionalidade da Lei nº. 12.654/12, à luz da adoção de um processo penal
constitucional e dos postulados do devido processo legal, do estado de inocência e do direito
de não auto-incriminação, dentre outros direitos fundamentais em conflito, bem como
pautando-se nos riscos de um direito penal emergencial ou simbólico, na prelazia das
finalidades de política criminal e, sobretudo, na possível utilização do indivíduo como “meio”
ou “instrumento” no decurso do processo penal, afetando a sua dignidade. Para tanto,
considerará as discussões travadas no contexto do neoconstitucionalismo e da necessidade de
efetivação de direitos fundamentais, aplicando a metodologia proposta por Robert Alexy,
numa crítica preliminar, embora conclusiva, sobre o tema.

PALAVRAS-CHAVE: PERFIS GENÉTICOS (DNA/ADN); CONSTITUIÇÃO; PROCESSO


PENAL.

ABSTRACT

This article aims to contribute to the national debate about the creation of a database of
genetic profiles for purposes of criminal investigation in Brazil, from a critical analysis of the
constitutionality of the Law 12.654/12, in view of the adoption of a constitutional criminal
procedure and the principles of due process, the state of innocence and the right not to self-
incrimination, among other fundamental rights in conflict, and basing on the risks of a
criminal emergency or symbolic, in prelacy of the purposes of criminal policy, and especially
the possible use of the individual as "medium" or "instrument" in the course of criminal
proceedings, affecting their dignity. For that, it will consider the discussions in the context of
neoconstitutionalism and the need for realization of fundamental rights, applying the
methodology proposed by Robert Alexy, in a preliminary review, although conclusive, on the
subject.

KEYWORDS: GENETIC PROFILES (DNA / DNA); CONSTITUTION; CRIMINAL


PROCEDURE.

*
Carolina Grant – Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da
Bahia (PPGD/UFBA). Pós-Graduanda em Filosofia e Direitos Humanos pela Universidade Cândido Mendes
(UCAM-AVM). Extensionista do Curso de Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça promovido pelo
NEIM/UFBA. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenadora de Pesquisa
junto ao Centro de Direito Internacional (CEDIN). Diretora de Produção Científica do Centro Acadêmico Ruy
Barbosa (CARB - Gestão 2012/2013). E-mail: carolinagrant@hotmail.com.

350
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

1. INTRODUÇÃO.

Os avanços da ciência e da técnica correspondem a uma realidade presente e


inconteste em todas as esferas da vida em sociedade, sobretudo em um panorama de
globalização e fluxo acelerado de troca de informações e tecnologias como o atual.
A engenharia genética, nesse contexto, foi responsável por avanços paradigmáticos
tanto no que tange ao autoconhecimento humano, quando na prevenção e cura de doenças,
reprodução assistida, identificação de cadáveres e de pessoas desaparecidas e solução de casos
penais – nesta última seara, observa-se a repercussão que os seriados norte-americanos que
envolvem a utilização de altas tecnologias nas investigações criminais tem tido ao redor do
planeta.
O recurso à utilização do DNA (ou ADN) para identificação ou armazenamento de
dados genéticos com finalidades de persecução criminal, justamente em razão do êxito dos
avanços técnico-científicos nesta área, tem encontrado espaço em diversos países, os quais já
travam, inclusive, significativas discussões jurídico-constitucionais a esse respeito, dispondo
de legislação já consideravelmente consolidada1.
No Brasil, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), autor do PLS 93/11, procurou lançar as
bases para a construção de um banco nacional de perfis genéticos para fins de persecução
criminal2, o que se consolidou com a promulgação da Lei nº. 12.654/2012. Em linhas gerais,
o referido diploma normativo se refere ao armazenamento de material genético não-
codificante (isto é, que não contém informações relativas a características pessoais do
indivíduo, apenas permitindo a sua identificação), relativamente aos condenados por crime
praticado com violência contra a pessoa ou considerado hediondo.
Não obstante a ampliação do trato à matéria conferida pelo substitutivo do projeto
inicial que veio a se consolidar com a Lei nº. 12.654, o tema é por demais delicado e ainda
exige um debate mais amplo e aprofundando, na medida em que, no próprio âmbito jurídico-
1
Nesse sentido, também Sónia Fidalgo assevera e alerta que: Os avanços da ciência e da tecnologia têm, nos
últimos anos, trazido grandes novidades em matéria de prova em processo penal. As últimas décadas conduziram
à massificação dos meios de agressão e devassa [...]. Coloca-se, agora, o problema da utilização no processo
penal das aquisições da engenharia genética. Não há dúvida, hoje, que os testes genéticos produzem a prova
de identificação mais segura que existe. Torna-se, pois, tentadora a possibilidade de utilização desta técnica no
processo penal: pode resolver-se em poucos dias e com um elevado grau de fiabilidade aquilo que, de outro
modo, conduzirá a um procedimento moroso e sempre com alguma equivocidade de determinação da autoria de
um crime. […]. Desde logo, [entretanto] ao nível do direito constitucional, antevê-se, com facilidade, que a
determinação do perfil genético pode colidir com certos direitos fundamentais. [...] (FIDALGO, 2006, p.
116 – grifo nosso).
2
“O DNA não pode por si só provar a culpabilidade criminal de uma pessoa ou inocentá-la, mas pode
estabelecer uma conexão irrefutável entre a pessoa e a cena do crime”. (Senador Ciro Nogueira (PP-PI).
Dinponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/aprovado-banco-de-dados-geneticos-de-condenados-por-
crimes-violentos.aspx>. Acesso em: 25.11.11).

351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

doutrinário nacional, ainda é esparsa a discussão e escassas as obras de referência.


O objetivo deste trabalho, com efeito, é contribuir para o debate acerca da
constitucionalidade da criação de bancos de perfis genéticos para fins de investigação
criminal no país, em momento tão oportuno, bem como em um plano mais teórico e menos
analítico, nesse primeiro momento, tomando-se como parâmetro a adoção de um processo
penal constitucional, com destaque para os postulados do devido processo legal, do estado de
inocência e do direito a não autoincriminação.

1.1. A opção (por) e a necessidade imperiosa de um Direito Penal/Processual


Penal Constitucional.

Em um contexto contemporâneo de recrudescimento da atuação punitiva do Estado,


em que é possível aludir-se às propostas de redução da maioridade penal, a indícios de criação
de um direito penal do inimigo3 e à edição de normas penais abertas, bem como outras que
contém descrições por demais genéricas do fato típico (sobretudo na legislação penal
extravagante), imperioso se faz um retorno à necessária observância da opção jurídico-política
da sociedade brasileira por uma democracia constitucional.
O conceito e a compreensão hodierna do fenômeno político-jurídico da Democracia
têm sido tópicos recorrentes nas principais discussões publicistas e jurídico-sociológicas dos
últimos anos. O advento da Carta de 1988 conferiu nova roupagem a este quadro de
discussões, sobretudo ao adotar o modelo do Estado Democrático de Direito, revestindo a
ideia de Democracia de garantias e pautas valorativo-constitucionais que assegurassem a sua
real efetivação, encontrando-se, dentre estas, os direitos e garantias fundamentais.
Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2010) esclarece que a noção de Estado
Democrático de Direito consagrada no art. 1º da Constituição Federal de 1988 representa a
síntese histórica de dois conceitos que, embora recorrentemente utilizados de forma quase que
indissociável, não se confundem, quais sejam: constitucionalismo e democracia.
Constitucionalismo corresponde à limitação do poder e à supremacia da lei (“estado de
direito”); democracia, ao seu turno, traduzir-se-ia em soberania popular e governo da maioria.

3
De acordo com Aury Lopes Jr.: O processo penal do inimigo segue a mesma fórmula do simbolismo cada vez
maior, acrescentando-se boas doses de utilitarismo, aceleração antigarantista, eficientismo (que não se confunde
com eficácia), agravado pela perigosa mania dos tribunais de flexibilizar as formas processuais através da
relativização das nulidades (e conseqüente enfraquecimento das garantias do devido processo). (LOPES JR,
2008, p. 497). Nesse diapasão, seria exagero afirmar que o indivíduo cujo armazenamento de dados genéticos foi
determinado em função do tipo e/ou gravidade do delito cometido será tratado como verdadeiro “inimigo” em
processos ulteriores? Fica a reflexão.

352
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Tensões entre ambos os conceitos, face ao exposto, podem surgir, tendo a vontade da maioria
que refrear seus impulsos perante determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais
previstos na Constituição. Caberia, portanto, à jurisdição constitucional efetuar esse controle
para assegurar que a deliberação majoritária observe o procedimento prescrito e não vulnere
os consensos mínimos estabelecidos na Constituição.
Ou seja, democracia constitucional representa uma forma democrática específica, que
combina o princípio majoritário (presente no legislativo, por exemplo), com premissas
contramajoritárias (a necessidade de respeito aos conteúdos valorativos previstos na CF,
controlada pelo judiciário). Tudo para evitar-se a “ditadura das maiorias”. Os dois conceitos
que, numa leitura extremista, poder-se-iam dizer até mesmo antagônicos (soberania da lei
versus soberania popular), na prática, coadunam-se, complementam-se, de modo a garantir
uma democracia real e não meramente formal, além de, inclusive, estabelecer formas de lidar
e/ou atenuar os déficits de representatividade4.
Partindo, então, de uma visão substancialista do paradigma da democracia
constitucional, é também Roberto Barroso quem fala na necessidade da realização de uma
filtragem constitucional de todo o ordenamento jurídico brasileiro, ressaltando, quanto ao
Direito Penal que “a repercussão do direito constitucional sobre a disciplina legal dos crimes
e das penas é ampla, direta e imediata, embora não tenha sido explorada de maneira
abrangente e sistemática pela doutrina especializada”.
Isso porque, aponta o autor, a Constituição impõe ao legislador ordinário a obrigação
de criminalizar determinadas condutas, bem como impede a criminalização de outras; torna
questionáveis tipificações preexistentes à luz dos novos ditames da Carta de 1988, que
consubstanciam, dentre outros, a transformação dos valores sociais; e alude, ainda, à
possibilidade de se excepcionarem determinadas incidências da normal penal no caso
concreto, na hipótese de o resultado desta aplicação mostrar-se incompatível com o novo
paradigma constitucional. Conclui a breve análise da confluência entre Constituição e Direito
Penal, por fim, asseverando que este ramo do Direito, tal qual os demais, sujeita-se aos
princípios e regras constitucionais, daí resultando a centralidade dos direitos fundamentais;
dessa forma, colocar-se-iam três premissas para o trabalho do legislador penal/processual
penal: (i) reserva legal e liberdade de conformação do legislador; (ii) garantismo; e (iii) dever
4
Afirma Barroso: Longe de serem conceitos antagônicos, portanto, constitucionalismo e democracia são
fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo. Ambos se destinam, em
última análise, a prover justiça, segurança jurídica e bem-estar social. Por meio do equilíbrio entre Constituição e
deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores
essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do dia a dia, a
cargos dos poderes políticos eleitos pelo povo. [...] (BARROSO, 2010, p. 91).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

de proteção, destacando-se, ao final, o papel do princípio da razoabilidade-proporcionalidade.


(BARROSO, 2010, pp. 378-380).
Segundo o renomado constitucionalista brasileiro já citado, haveria, portanto, uma
verdadeira tensão permanente entre a pretensão punitiva do Estado e os direitos individuais
dos acusados. Com efeito, para serem consideradas válidas, tanto as medidas relativas à
criminalização de condutas, quanto à imposição de penas e o regime de sua execução deverão
observar, de forma imprescindível, os desígnios da constituição, com destaque para o
princípio da razoabilidade e proporcionalidade e a vedação do excesso5.
A constitucionalização do Direito Penal, portanto, torna-se imperiosa.
O que se tem observado, contudo, na prática, é um recurso constante às finalidades de
política criminal, sobretudo no que tange à persecução criminal, para relativizar direitos e
garantias fundamentais em nome da observância e atendimento ao direito da maioria à
segurança. Busca-se o instrumento imediatista da lei penal como panaceia para os problemas
de segurança pública e para os déficits do aparato do Estado no combate à criminalidade. Eis
a faceta eficientista, funcional do sistema penal.
Falar-se em funcionalização do processo penal sem ressalvas tem levado, no plano de
delimitação e compreensão do seu caráter instrumental, a uma utilização do processo como
instrumento político-repressivo, tal qual alertou Luiz Flávio Gomes (GOMES, 2010) ao tratar
da instrumentalização política da legislação penal. Este aspecto funcional, capaz de aproximar
Direito Penal e Direito Processual Penal sob a ótica estrita da contenção da criminalidade, em
termos de política criminal, ocasiona uma sucessiva supressão de “barreiras processuais” para
alcançar este único e exclusivo fim, inclusive no que tange às garantias processuais
constitucionais – as quais passam a ser vistas como verdadeiros obstáculos à persecução
criminal.
O direito da maioria à segurança pública, garantido e salvaguardado pelo Estado,
passa a imperar sobre os direitos e garantias do indivíduo. O juiz penal legalista, nesse
diapasão, considera apenas a legislação penal especial a ser aplicada ao caso concreto e viola,
às vezes sem a real dimensão das consequências destes atos, não apenas postulados
processuais penais, mas, sobretudo, constitucionais; compreende o Direito Processual Penal
como instrumento apenas do Direito Penal e não como mecanismo concretizador da
5
Em suma: o legislador, com fundamento e nos limites da Constituição, tem liberdade de conformação para
definir crimes e penas. Ao fazê-lo, deverá respeitar os direitos fundamentais dos acusados, tanto no plano
material como no processual. Por outro lado, tem o legislador deveres de proteção para com a sociedade,
cabendo-lhe resguardar valores, bens e direitos fundamentais de seus integrantes. Nesse universo, o princípio da
razoabilidade-proporcionalidade, além de critério de aferição da validade das restrições a direitos fundamentais,
funciona também na dupla dimensão de proibição do excesso e de insuficiência. (BARROSO, 2010, p. 382).

354
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Constituição Federal.
A atuação repressiva do Poder Legislativo é, ainda, temerária, na medida em que dá
vazão, justamente, à prevalência inconteste e inconsequente da legislação penal de
emergência ou legislação álibi6. Ou seja, representa a adoção de medidas paliativas e
ilusórias, adotadas por parte do Estado com base na crença no poder simbólico do Direito
Penal e Processual Penal em conter os ânimos e anseios da população que clama por uma
resposta imediata e por “justiça”, num contexto em que esta última se assemelha muito mais à
“vingança”.
Fauzi Hassan Choukr assevera que a associação entre emergência e urgência é
inegável. Na esfera jurídico-penal, tal qual constata Ferrajoli, Choukr identifica duas formas
de emergência, distintas e simultâneas: a legislação de exceção e as mutações legais das leis
do jogo, afirmando que “[...] em ambas percebe-se a derrogação dos valores dominantes em
face da suposta necessidade de resposta ao fenômeno emergente, com a implícita insinuação
da fraqueza da cultura da normalidade perante a crise a legitimar a adoção de medidas
excepcionais” (CHOUKR, 2002, pp. 02-03).
Leonardo Sica, por sua vez, esclarece que o simbolismo penal funda-se em uma
constatação empírica, pervertendo a lógica da prevenção geral positiva. O Direito Penal estar-
se-ia deixando quedar a mercê da sua forte carga emocional, tornando-se “[...] fonte de
expectativas para a solução dos grandes problemas políticos e sociais, ante o fracasso de
outras esferas de controle social ou ante a própria ausência de políticas destinadas a
garantir prestações públicas essenciais à população” (SICA, 2002, p. 73).
O poder simbólico presente na legislação penal de emergência evoca o caráter
meramente retributivo da pena e ignora os riscos e a falência deste modelo tradicional
repressor, capaz, unicamente, de estigmatizar e, inclusive, agravar os problemas sociais de
segurança pública (reais motivadores do clamor social por medidas repressivas mais
gravosas), ao inviabilizar a ressocialização do indivíduo e propiciar um ambiente favorável ao
crescimento do crime (sobretudo no que tange à criminalidade organizada) no âmbito das
próprias penitenciárias.
6
Conforme esclarece Flavia D'Urso: A sociedade brasileira em geral, aí incluído um grande número de
operadores do direito penal e processual penal, acredita na eficiência de imposição mais gravosa de pena e
medidas cada vez mais restritivas da liberdade, como aptas a conter a criminalidade violenta . [...]
Ingressam [nesse contexto] no ordenamento jurídico leis, e ainda, são utilizados de forma absolutamente
distorcida mecanismos processuais já existentes, com indesejável assiduidade, particularmente quanto à custódia
cautelar, de forma a atender a uma intervenção de caráter emergencial na tentativa de solucionar essa
problemática questão da criminalidade. O emergencialismo diz com a adoção de providências legais e
jurisdicionais cunhadas pela improvisação, rigorismo, ausência de coordenação sistemática, pouca ou nenhuma
técnica e, em grande parte, inconstitucionais. (D’URSO, Flavia. Princípio Constitucional da
Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 88 – grifo da autora e grifo nosso).

355
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

No que concerne especificamente à utilização do DNA (ou ADN) para fins de


identificação do indivíduo no âmbito criminal (suspeito/indiciado ou acusado), embora se
reconheça o inquestionável interesse público/social no emprego desta técnica – que já deu
provas inequívocas da sua eficácia e superioridade comparativamente aos meios tradicionais
de identificação –, é preciso evitar-se recair em mais uma utilização insidiosa do poder
simbólico do Direito Penal, com o escopo de abrandar o clamor social pela contenção da
criminalidade e efetivação da segurança pública.
Víctor Rodríguez (RODRÍGUEZ, 2008, p. 211) nos adverte acerca da experiência
inglesa, em que o primeiro-ministro Tony Blair anunciou a criação de um banco genético de
todos os delinquentes do país (cerca de três milhões de cidadãos), em setembro de 2000,
“refletindo sua preocupação com uma opinião pública que parecia considerar ‘brandas’ suas
iniciativas de ordem pública, como narra de Herrera Bravo”7.
Também a França – primeiro país a regulamentar a formação de um banco de dados
genéticos para fins de investigação criminal –, informa este autor, ainda que tenha, a
princípio, regulamentado a possibilidade de criação de arquivo de impressões genéticas
apenas para “proteção de menores vítimas de infrações sexuais” (art. 706-754 da Lei nº. 98-
468), progressivamente optou por alargar suas hipóteses de cabimento, desrespeitando, em
sua opinião, “el principio de la proporcionalidad que ha de inspirar, con carácter general, las
medidas restrictivas de derechos fundamentales, y, en particular, la práctica de los análisis de
ADN y posterior incorporación de los resultados genéticos obtenidos a ficheros
automatizados o informatizados8”.
No atual contexto político-criminal, ressalta Rodríguez, de incremento do interesse em
persecução face ao crescimento da delinquência (crime organizado em nível nacional e
terrorismo, no plano internacional), “será difícil conter o afã do legislador brasileiro em
prever esse tipo de identificação criminal, via DNA” (RODRÍGUEZ, 2008, pp. 211-215).
É para evitar este indesejado cenário, cada vez mais presente em se tratando de
legislação álibi ou emergencial, que se prega a necessária e imbricada correlação entre
complementaridade funcional e instrumentalidade constitucional9. Nesse sentido, Aury Lopes

7
Rodríguez cita e indica a obra de H. Bravo, qual seja: HERRERA BRAVO, Rodolfo. Los registros de ADN y
los derechos constitucionales: Cómo esquilar sin despellejar?, trabalho apresentado no II CONGRESSO
MUNDIAL DE DIREITO INFORMÁTICO, da Universidade Complutense de Madrid, set. 2002, disponível em:
<http://www.ieid.org/congreso/Ponencias/Herrera%20Bravo>, p. 2.
8
Aqui, Rodríguez remete-se à J. F. Etxeberría Guridi, em sua obra: ETXEBERRÍA GURIDI, José Francisco.
Evolución expansiva en la regulación francesa de los ficheros de huellas genéticas tras las recientes reformas
(Parte I). In: Revista de Derecho y Genoma Humano, 19 jul./dic. 2003, Diputación Foral de Bizkaia de
Derecho y Genoma Humano, p. 111.
9
Nas palavras do ilustre doutrinador italiano, Luigi Ferrajoli: Según una primera acepción, "garantismo"

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Jr. assevera que “é fundamental compreender que a instrumentalidade do processo não


significa que ele seja um instrumento a serviço de uma única finalidade, qual seja, a satisfação
de uma [exclusiva] pretensão (acusatória)” (LOPES JR., 2006, p. 08).

1.2. Garantias constitucionais e a teoria geral da prova no processo penal


brasileiro: o devido processo legal, o estado de inocência e o direito de não
autoincriminação como limites constitucionais à criação de um banco de perfis
genéticos para fins de persecução criminal.

Face à necessidade supra-evidenciada de uma imprescindível abordagem


constitucional do Direito Penal e do Processual Penal, passar-se-á, pois, ao exame de alguns
dos postulados constitucionais do processo penal brasileiro, pilares de todo o sistema
processual penal, quais sejam: as garantias do devido processo legal, da presunção de
inocência e do direito ao silêncio, dentre outros direitos e garantias fundamentais.

1.2.1. O postulado do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) aplicado
ao processo penal e a opção por um determinado modelo/sistema
processual: o modelo acusatório.

O artigo 5º, em seu inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, assim determina:

Art. 5º, LIV, CF/88 - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal.

O correto entendimento da aplicação deste postulado processual na seara penal

designa un modelo normativo de derecho: precisamente, por lo que respecta al derecho penal, el modelo de
"estricta legalidad" propio del estado de derecho, que en el plano epistemológico se caracteriza como un
sistema cognoscitivo o de poder mínimo, en el plano político como una técnica de tutela capaz de minimizar la
violencia y de maximizar la libertad y en el plano jurídico como un sistema de vínculos impuestos a la potestad
punitiva del estado en garantía de los derechos de los ciudadanos. En consecuencia, es garantista todo sistema
penal que se ajusta normativamente a tal modelo y lo satisface de manera efectiva. Al tratarse de un modelo
límite, será preciso hablar, más que de sistemas garantistas o antigarantistas tout court, de grados de
garantismo; y además habrá que distinguir siempre entre el modelo constitucional y el funcionamiento efectivo
del sistema. Así, diremos por ejemplo que el grado de garantismo del sistema penal italiano es decididamente
alto si se atiende a sus principios constitucionales, mientras que ha descendido a niveles bajísimos si lo que se
toma en consideración son sus prácticas efectivas. Y mediremos la bondad de un sistema constitucional sobre
todo por los mecanismo de invalidación y de reparación idóneos, en términos generales, para asegurar
efectividad a los derechos normativamente proclamados: una Constitución puede ser avanzadísirna por los
principios y los derechos que sanciona y, sin embargo, no pasar de ser un pedazo de papel si carece de técnicas
coercitivas - es decir, de garantías- que permitan el control y la neutralización del poder y del derecho ilegítimo.
(FERRAJOLI, 1997, pp. 851-852).

357
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

perpassa pela compreensão de cada termo que compõe a expressão devido processo legal.
No que tange ao termo “legal”, o seu entendimento é relativamente pacífico no que
tange à observância não só das formas legais (forma é garantia, para Aury Lopes Jr. - LOPES
JR., 2008, p. 497), mas principalmente do seu conteúdo, que deve atender às finalidades
consubstanciadas em direitos e garantias constitucionais e processuais, seguindo a ideia de um
processo penal constitucional, tal qual defendemos no item anterior.
Sobre processo, Távora e Alencar prelecionam que “o processo penal deve ser
compreendido de sorte a conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e o
caminho para materializar a aplicação da pena ao caso concreto [...]”, uma vez que o jus
puniendi concentra-se na figura do Estado (TÁVORA; ALENCAR, 2009, p. 30). Já Aury
Lopes Jr., assevera que o processo penal “é um instrumento [...] de reconstrução
aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir o
julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um
fato. Nesse contexto, as provas são os meios através dos quais se fará essa reconstrução do
fato passado (crime). [...]” (LOPES JR., 2008, p. 489). Nesse diapasão, é válido conceituar,
de antemão, também o termo prova, já inserindo um dos temas centrais deste tópico (teoria
geral da prova), para o que seguimos o entendimento de Elmir Duclerc, quando este afirma “a
possibilidade de compreender prova como uma espécie de comunicação, como troca de
mensagens entre emissores (partes, testemunhas, peritos) e receptor (o juiz), que deve
receber, processar, interpretar e valorar os dados que lhe são transmitidos, como etapa
necessária do processo decisório” (DUCLERC, 2011, p. 493).
Ou seja, o processo penal, de modo a legitimar a atuação repressiva do Estado
(detentor do jus puniendi) manifesta através da aplicação de uma sanção penal, representa um
caminho, um esforço de reconstrução de um determinado evento histórico ensejador da
pretensão punitiva do Estado, sempre de forma aproximativa, a fim de proporcionar a
formação do convencimento do órgão julgador por intermédio da exposição e exame das
provas, entendidas enquanto mensagens ou comunicações trocadas ao longo deste processo,
dialeticamente entre os nele envolvidos.
Quanto à expressão devido, por fim, entendemos que esta, em processo penal, aponta
para a adoção de um modelo ou sistema específico de processo: o acusatório10, conforme

10
Assim reforça Aury Lopes Jr.: A questão é de suma relevância quando compreendemos que o sistema
processual brasileiro é o (neo)inquisitório (pois o art. 156 e tantos outros atribuem a iniciativa probatória ao juiz)
e que possui, como agravante, a prevenção como causa de fixação da competência, de modo que o juiz-ator da
fase pré-processual será o mesmo que, pela regra do art. 83 do CPP, irá atuar na fase processual (admitindo,
portanto, a prova que ele mesmo colheu). [...]. (LOPES JR., 2008, p. 495).

358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

explicar-se-á a seguir. Nesse sentindo, também Elmir Duclerc indica que:

[...] o princípio do devido processo legal, que se encontra expressamente previsto no


art. 5º, LIV, da CR, pode ser compreendido de duas maneiras diferentes. Assim, há
quem entenda que dele só se pode extrair a exigência de que a sentença condenatória
seja sempre precedida de um processo, e que esse processo obedeça aos trâmites
legais previamente instituídos. Outros, todavia, com os quais nos alinhamos,
entendem o texto constitucional como exigência de um determinado tipo de
processo (o processo devido). Mas, o que significa exatamente um processo
justo ou devido? Nas palavras de SILVA JARDIM, fazendo coro com a melhor
doutrina pátria, o devido processo legal está vinculado à depuração do sistema
acusatório de processo penal. [...] o princípio do devido processo legal, consagrado
no texto constitucional, impõe um modelo de processo orientado segundo o sistema
acusatório de processo penal, com juiz imparcial e inerte, e partes parciais, em
igualdade de condições. [...]. (DUCLERC, 2011, p. 498-520 - grifo do autor e grifo
nosso).

O sistema acusatório apresenta como características elementares: 1) a separação de


funções (acusar, defender e julgar) – atribuídas, cada uma, a um órgão ou ator processual
específico; 2) a imparcialidade ou inércia do órgão julgador – que não vai atrás das provas,
não é dotado de iniciativa probatória, mas, sim, julga os fatos a partir do quadro probatório
delineado pelas partes através dos elementos colhidos e por elas evidenciados (juiz
espectador); 3) observância dos postulados do contraditório, ampla defesa e publicidade; 4) e
o livre convencimento motivado, enquanto sistema de apreciação das provas, justamente em
contraposição ao sistema das provas legais, que fere a presunção de inocência. Nessa mesma
linha de raciocínio, Aury Lopes Jr.:

[...] no sistema acusatório (que se pretende), o juiz mantém uma posição - não
meramente simbólica, mas efetiva - de alheamento [...] em relação à arena das
verdades onde as partes travam sua luta. Isso porque ele assume uma posição de
espectador, sem iniciativa probatória. Forma sua convicção através dos elementos
probatórios trazidos ao processo pelas partes (e não dos quais ele foi atrás). [...] no
processo acusatório o que se tem é uma pura operação técnica, onde um resultado
equivale ao outro (tanto faz a condenação ou a absolvição, ao contrário da lógica
inquisitiva dirigida para a condenação). O grande valor do processo acusatório está
na justiça, o que equivale dizer, no jogo limpo. Literalmente, afirma o autor que este
modelo (acusatório), ideologicamente neutro, reconoce un solo valor: la justicia, El
juego limpio (fair play). (LOPES JR., 2008, p. 496 - grifo do autor).

O sistema antagônico, que prevaleceu durante séculos no direito ocidental, é o


inquisitivo, marcado justamente pela concentração das funções de acusar, defender e julgar
em um única figura: o juiz (verdadeiro ator processual); o órgão julgador é quem iniciará de
ofício a persecução, irá em busca das provas e, ao final, proferirá a decisão, tudo isso sob uma
atmosfera sigilosa, obscura, sem compromisso com o contraditório ou a ampla defesa. Diante
desse quadro, afirmam Távora e Alencar: “o réu, mero figurante, submete-se ao processo

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

numa condição de absoluta sujeição, sendo em verdade mais um objeto da persecução do que
sujeito de direitos” (TÁVORA; ALENCAR, 2008, p. 34).
Com efeito, o sistema inquisitivo ou qualquer previsão que contenha o ranço das
características supra-descritas, capaz de conferir poderes investigativos/inquisitoriais ao juiz,
leva à prevalência de hipóteses (abstratas e imaginárias) sobre fatos, bem como conduz a um
resultado específico: a condenação do réu. Senão, vejamos: se as provas carreadas aos autos
pelas partes (acusação e defesa) não são suficientes para a formação do convencimento do
juiz acerca da ocorrência ou imputação do fato criminoso ao réu (sua materialidade ou
autoria) e abre-se, então, a este juiz, a possibilidade de que ele mesmo vá atrás de outras
provas, não há outra consequência lógica senão a de crer que este juiz pretende condenar o réu
a todo custo, posto que convicto (íntima e abstratamente, conforme suas conjecturas pessoais)
de sua responsabilidade penal, afinal, se fosse para inocentá-lo, bastava aludir à insuficiência
de provas e, especificamente no Direito brasileiro: ao estado de inocência, bem como ao
consequente princípio do in dubio pro reo (não tendo o órgão acusador se desonerado da
carga do ônus da prova, presumida a inocência)11.
É justamente a previsão constitucional inequívoca do estado de inocência (art. 5º,
LVII), a ser discutida infra, que nos leva a consolidar o entendimento de que a previsão do
devido processo legal, aplicada à esfera processual penal, aponta para a adoção do modelo
acusatório de processo. Concordamos, pois, com Lopes Jr., ao indicar o “acerto de
GOLDSHMIDT ao afirmar que a estrutura do processo penal de uma nação não é senão um
termômetro dos elementos autoritários [inquisitoriais] ou democráticos [acusatórios] de sua
Constituição. [...]” (LOPES JR., 2008, p. 493).
Nesse contexto, é possível afirmar-se, pois, que, quanto à utilização de dados
genéticos para individualização ou armazenamento, o postulado do devido processo
legal, por si só, já representaria um importante limite a ser observado, no seguinte
sentido: 1) esta utilização precisará estar prevista por lei que regulamente a matéria em
conformidade com os ditames constitucionais (forma e conteúdo); 2) utilizada como prova ao
longo do processo, deverá estar sujeita ao diálogo entre as partes, isto é, ao contraditório e à
ampla defesa (técnica e pessoal, esta última positiva e negativa, conforme se discutirá infra);
3) deverá sujeitar-se, também, ao modelo acusatório, não podendo ser, por exemplo, solicitada
de ofício pelo juiz.

11
Foi exatamente isso que desacreditou o sistema inquisitório, aponta GOLDSHMIDT: o erro psicológico de
crer que uma mesma pessoa possa exercer funções antagônicas como acusar, julgar e defender; ou, em termos
probatórios, ter iniciativa (probatória), realizar o juízo de admissibilidade e gerir sua produção. (LOPES JR.,
2008, p. 495).

360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

1.2.2. O estado de inocência (art. 5º, LVII, CF/88) e a busca pela


(mitológica) “verdade real”.

A premissa do estado de inocência, ou postulado constitucional da presunção de


inocência, encontra previsão expressa no art. 5º, LVII, da Carta de 1988, nos seguintes termos,
in verbis:

Art. 5º, LVII, CF/88 - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória.

Este postulado representa verdadeiro pilar do processo penal, podendo verificar-se a


qualidade de um sistema processual mediante exame do seu grau de observância e eficácia; a
sua relevância é tamanha que Lopes Jr. destaca, também, a afirmação de A. B. de Carvalho de
que “o Princípio da Presunção de Inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é
‘pressuposto’ [...], neste momento histórico, da condição humana”12. Dele decorre, ademais,
um dever de tratamento em duas dimensões, ainda conforme lição de Lopes Jr., uma interna
(no âmbito mesmo do processo penal, destinada ao julgador e ao acusador, que devem tratar o
réu como inocente, refreando o recurso às medidas cautelares e atribuindo o ônus probatório
integralmente ao acusador, sendo este quem deve superar a presunção de inocência); e uma
externa, impondo limites à publicidade abusiva e à estigmatização do acusado (LOPES JR.,
2008, pp. 501-502).
Da presunção de inocência, erige-se o princípio do in dubio pro reo, tal qual indicado
supra, levando à necessária absolvição do acusado nas hipóteses em que o órgão acusador não
se desincumbir do onus probandi.

Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução da


incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da
carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento (não condenar o réu
sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada). A única certeza
exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade,
necessárias para que se prolate a sentença condenatória. Do contrário, em não sendo
alcançado esse grau de convencimento (e liberação de cargas), a absolvição é
imperiosa. Isso porque, ao estar a inocência assistida pelo postulado de sua
presunção, até prova em contrário, esta prova contrária deve aportá-la quem nega
sua existência, ao formular a acusação. Trata-se da estrita observância ao nulla
accusatio sine probatione. (LOPES JR., 2008, p. 503).

Não obstante a evidente, expressa e inequívoca opção política pela tutela


12
Aury Lopes cita Amilton Bueno de Carvalho, remetendo-se à obra: CARVALHO, Amilton Bueno de. “Lei,
para que(m)?”. In: Escritos de Direito e Processo Penal, p. 51.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

constitucional do estado de inocência, a doutrina processual penal tem relutado em atribuir ao


processo penal o objetivo, senão o dever, de buscar a “verdade real” supostamente presente
em cada caso examinado, chegando a utilizar este como critério distintivo entre o processo
civil e o processo penal. Neste ponto (dever), também se encontraria a pretensa “justificativa”
para a assunção de um sistema inquisitivo e para a atribuição de poderes investigativos ao
juiz.
Daí porque intimamente relacionados a presunção de inocência e o problema da
verdade almejada no processo. Nesse contexto, questionamos, junto com Lopes Jr., que
verdade seria essa, afinal, “quando se trata da prova no processo penal, culminamos por
discutir também ‘que verdade’ foi buscada no processo. Isso porque [...] o processo penal é
um ‘modo de construção do convencimento do juiz’, fazendo com que as limitações
imanentes à prova afetem a construção e os próprios limites desse convencimento. Daí
porque de nada serve lutar pela efetivação de um modelo acusatório e a máxima eficácia do
sistema de garantias da Constituição, quando tudo isso esbarra na atuação substancialista
de quem busca uma inalcançável ‘verdade real’” (LOPES JR., 2008, p. 521).
Em todos os momentos, contudo, que se pretendeu alcançar a verdade real ou material,
supostamente mais consistente e com menos limites à atividade de investigação, o resultado
obtido foi uma verdade prejudicada, forjada ou obtida à força (força bruta, inclusive). No
ambiente sem freios desta inquisição, confessa-se tudo, até o inexistente e impossível.

O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema


inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento para
as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma
“verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados
momentos históricos); e com a figura do juiz ato (inquisidor). [...] Noutra dimensão,
devemos sublinhar - na esteira de FERRAJOLI - que a verdade substancial, ao ser
perseguida fora das regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação
empírica das hipóteses de indagação, degenera o juízo de valor, amplamente
arbitrário de fato, assim como um cognocitivismo ético sobre o qual se embasa o
substancialismo penal, e resulta inevitavelmente solidário com uma concepção
autoritária e irracionalista de processo penal. (LOPES JR., 2008, pp. 521-522).

Em nome desta “verdade”, autorizam-se e fundamentam-se as mais diversas atividades


e práticas probatórias – os fins justificam os meios (a qualquer custo).
Para a prevalência de uma verdade assim obtida não teriam sido necessários anos de
evolução da disciplina e modelo processual penal, nem sequer a existência de um processo
seria preciso, quiçá um processo legal, devido e, conforme tudo o que já se expôs,
constitucional. Com efeito, no processo penal constitucional hodierno, com destaque para a
realidade brasileira, só a conclusão processualmente válida, obtida sob um viés dialético,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

democrático e em observância aos direitos e garantias fundamentais poderá ter lugar de forma
legítima.

Trata-se de uma verdade perseguida pelo modelo formalista como fundamento de


uma condenação e que só pode ser alcançada mediante o respeito das regras precisas
e relativas aos fatos e circunstâncias consideradas como penalmente relevantes. [...]
Como explica FERRAJOLI, a verdade processual não pretende ser a verdade. Não é
obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, mas sim
condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa. A
verdade formal é mais controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida
quanto ao conteúdo informativo que qualquer hipotética verdade substancial.
(LOPES JR., 2008, pp. 522-523).

Fala-se aqui, pois, em verdade processual, enquanto uma verdade aproximativa,


limitada pelo que é possível saber a partir do que é trazido ao processo (na linha do que
leciona Luigi Ferrajoli – FERRAJOLI, 1997).
Ao adotar as premissas epistemológicas lançadas por Ferrajoli na paradigmática obra
“Direito e Razão”, Elmir Duclerc afirma que o seu objetivo no capítulo acerca da teoria da
prova do seu manual de Direito Processual Penal é “tentar identificar caminhos racionais,
democráticos e garantistas de reconstrução da verdade fática no processo penal. Nesse
sentido, parece claro que precisamos sair um pouco da discussão estritamente técnico-
jurídica para tentar identificar alguns fundamentos filosóficos que devem estar na base de
qualquer concepção teórica e normativa sobre a prova” (DUCLERC, 2011, p. 494).
Tais fundamentos filosóficos teriam sido erigidos a partir do pensamento liberal do
séc. XVIII, tendentes a assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo
formulado em um processo penal, limitando a atuação punitiva do estado e salvaguardando o
indivíduo contra o império da arbitrariedade estatal. Tratam-se do convencionalismo penal e
do cognoscitivismo processual.
O primeiro (convencionalismo) teria relação direta com a estrita legalidade,
determinando, de um lado, que os fatos puníveis deveriam ser sempre convencionados –
indicados previamente pela Lei, sem que remanescesse espaço para referência a condutas
ontologicamente criminosas; de outro, que a descrição legal necessitaria abarcar
exclusivamente fatos, jamais aspectos subjetivos próprios à condição pessoal do agente. O
segundo fundamento (cognoscitivismo), por sua vez, poderia ser compreendido a partir da
determinação de que as acusações formuladas em um processo devem estar sujeitas à
demonstração empírica; imperioso se faz, em conformidade com o cognoscitivismo
processual, que seja possível, na prática, averiguar e refutar a tese acusatória. Eis “a máxima
veritas non auctoritas facit iudician, isto é, a decisão sobre a verdade fática deve ter

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

compromisso com uma verdade que decorra de um determinado tipo de procedimento, e não
na confiança depositada na autoridade do juiz, por mais confiável e competente que ele seja
(tendência flagrantemente autoritária e antigarantista, conhecida como decisionismo
processual)” (DUCLERC, 2011, p. 495).
Acerca da famigerada “verdade real” é possível afirma-se, ainda, que mesmo que a sua
busca fosse autorizada através de meios menos insidiosos, tal busca seria completamente
infrutífera, na medida em que simplesmente não existe tal verdade – em primeiro lugar,
porque correspondente a fatos passados, impossíveis de serem revividos, rememorados de
forma direta; em segundo, por questões filosóficas que podem vir a ser estudadas
oportunamente, mas que, em linhas gerias, evidenciam as próprias limitações humanas e da
linguagem para apreender tamanha pretensão de Verdade. Já dizia João Ubaldo Ribeiro, “não
existem fatos, só existem histórias”, isso porque toda a percepção humana da realidade
circundante é intermediada pelas vivências, historicidade e limitações (pré-compreensões) de
cada indivíduo, apenas sendo possível um diálogo entre estas percepções. Dessa forma, o que
se alcança ao final do processo não é exatamente uma verdade, seja ela real, material ou
processual, nem bem uma certeza, mas o mais próximo disso que seja humanamente possível.

[...] A única certeza que pode ter [o juiz], na verdade, porque isso depende dele, em
cada ato do processo, é que todas as garantias processuais foram respeitadas, e aí,
ainda que venha a cometer uma injustiça, ele (e o Estado) terá pelo menos a certeza
de que o erro era realmente inevitável. É forçoso reconhecer, portanto, que também
no processo penal a verdade possível é apenas a verdade processual, que está
necessariamente comprometida com condições de convalidação, traduzidas em
regras que disciplinam um método legal de comprovação processual. (DUCLERC,
2011, p. 497).

O recurso à utilização do DNA para identificação e investigação criminal, bem


como a criação de um banco de dados genéticos encontraria, face ao panorama ora
traçado, um limite muito nítido na tutela constitucional do estado de inocência e no in
dubio pro reo, à medida que poderia representar uma nova perspectiva de busca pela
mitológica e utópica “verdade real”. As possibilidades advindas do emprego desta nova
técnica, a fiabilidade, eficiência e relativa agilidade dos resultados assim obtidos podem
despertar o afã do órgão julgador pela flexibilização de garantias constitucionais em prol da
“realização da justiça” e do “interesse público”. Poder-se-ia, nesse contexto, inclusive,
legitimar a obrigação de o indiciado ou acusado fornecer material de coleta para estes fins,
produzindo prova contra si mesmo (quem sabe até criminalizando a hipótese de negativa), ou
ainda a recolha de material desprendido do seu corpo para análise sem o seu consentimento ou

364
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

qualquer tipo de fundamentação/procedimento idôneo(a); ambas as hipóteses por demais


temerosas.
Sónia Fidalgo ressalva, por fim, que mesmo os exames de DNA não operam com
certeza, mas com probabilidade, não devendo ser, portanto, interpretados como “a” prova,
mas como mais um meio probatório, nitidamente subsidiário em razão da sua afetação aos
direitos e garantias individuais. Esta mesma autora pontua que “uma das finalidades do
processo penal é a realização da justiça e a descoberta da verdade material. Todavia, não
podemos esquecer outra finalidade do processo penal, a protecção dos direitos fundamentais
do cidadão perante o Estado, que impõe que a verdade que se procura seja uma verdade
processualmente válida. (FIDALGO, 2006, p. 120).

1.2.3. O direito ao silêncio/não autoincriminação (art. 5º, LXIII, CF/88) e a


coleta de material genético.

O direito ao silêncio remanesce logrado no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal:

Art. 5º, LXIII, CF/88 - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

Também o art. 8.2, letra “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos


determinou que toda pessoa tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma nem a
declarar-se culpada. Ainda que tardiamente, ademais, o próprio direito processual penal
incorporou, especificando-o, o direito ao silêncio, mediante a alteração do art. 186 do CPP,
onde, agora, lê-se:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da


acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do
seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe foram
formuladas.

Este direito, desmembramento do direito à (ampla) defesa, neste caso pessoal e


negativa, representa uma faceta do princípio nemo tenetur se detegere, de acordo com o qual
não poderá haver prejuízo jurídico em virtude da opção, por parte do acusado, em calar,
omitir-se, não corroborar com os esforços probatórios no decurso do processo.
Acerca do direito ao silêncio e, por conseguinte, à não autoincriminação, afirma
Duclerc que: “a defesa pessoal do acusado [...] não está restrita a atos comissivos, mas
abarca também determinadas omissões que tenham por objetivo impedir a atuação da

365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

pretensão punitiva. Estamos falando, fundamentalmente, das repercussões do chamado


direito ao silêncio, ou direito de não declarar contra si mesmo, previsto no art. 5º, LXIII, da
CR [...]” (DUCLERC, 2011, p. 507).
Sónia Fidalgo, ao seu turno, segue o mesmo raciocínio, asseverando que acompanha
“Wolfslast quando afirma que ‘não se é apenas instrumento da própria condenação quando
se colabora mediante uma conduta activa, querida e livre, mas também quando (...) contra a
vontade, uma pessoa tem de tolerar que o próprio corpo seja utilizado como meio de prova.
Deresto, será difícil discernir porque é que a dignidade humana do argüido só é atingida
quando forçado a uma acção e já não quando compelido a ter de tolerar uma acção’”
(FIDALGO, 2006, p. 141).
Aury Lopes Jr., por fim, sempre preciso, pontua que: “através do princípio do nemo
tenetur se detegere, o sujeito passivo não pode ser compelido a declarar ou mesmo participar
de qualquer atividade que possa incriminá-lo ou prejudicar sua defesa. Não pode ser
compelido a participar de acareações, reconstituições, fornecer material para realização de
exames periciais (exame de sangue, DNA, escrita, etc.) etc. Por elementar, sendo a recusa um
direito, obviamente não pode causar prejuízo ao imputado e muito menos ser considerado
delito de desobediência” (LOPES JR., 2008, p. 588).
Com efeito, diante do quadro delineado pelos autores supracitados, não resta dúvida de
que, senão impossível, muito difícil é falar-se em obrigatoriedade do indiciado ou acusado em
ceder material para exame genético que possa vir a ser utilizado como prova contra si,
incorrendo o cedente em autoincriminação. Qualquer tipo de coleta sem o seu consentimento,
bem como o recurso a amostras já existentes em um banco de perfis genéticos destinado à
persecução criminal, além de meios atentatórios ao estado de inocência, também
comprometem, sobremaneira, o direito ao silêncio. É preciso observar-se, com muita
cautela, pois, em que medida, hipóteses e de que forma estes direitos e garantias fundamentais
podem vir a ser flexibilizados.

2. OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO: O DIREITO À


AUTODETERMINAÇÃO INFORMACIONAL, PRIVACIDADE, INTIMIDADE E
INTEGRIDADE.

Além das prerrogativas constitucionais do devido processo legal, estado de inocência,


direito ao silêncio e à não autoincriminação já analisadas acima – garantias de cunho mais
processual penal –, outros direitos do indivíduo merecem ser examinados com cautela na

366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

oportunidade em que for realizado o enfrentamento da colisão entre direitos fundamentais, tal
qual já se discutiu, ensejado pela implementação da medida que visa à possibilitar a criação
de um banco de perfis genéticos no Brasil.
Estes direitos também contam com um status constitucional de direito fundamental,
merecendo tutela assegurada tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto pelo Código
Civil (1916 e 2002), quais sejam: o direito à privacidade, intimidade, à autodeterminação
informacional e integridade (física/corporal e/ou moral).
O texto constitucional assim determina:

Art. 5º, X, CF/88 - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação; [...]

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; […].

O Código Civil de 2002, ao seu turno, prevê que:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e
reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do


interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato
contrário a esta norma.

De acordo com a doutrina constitucional (MENDES, 2009, p. 420), o direito à


privacidade destinar-se-ia à salvaguarda contra a divulgação ou conhecimento público de
informações pertinentes à vida privada do indivíduo, isto é, referentes ou que possam afetar as
suas relações pessoais em geral, comerciais e/ou profissionais. O direito à intimidade, ao seu
turno, restringiria ainda mais a abrangência dessas informações ao âmbito pessoal do próprio
indivíduo e seu núcleo mais próximo, qual seja, de relações familiares e de amizade.
Com a doutrina civilista (FARIAS, 2007, pp. 108-111), encontra-se a definição dos
chamados direitos da personalidade, compreendidos como “direitos subjetivos reconhecidos
à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais”; isto é, tratam-se de
direitos relacionados intrinsecamente ao desenvolvimento da pessoa humana, abarcando suas
projeções físicas, psíquicas e intelectuais, bem como individualizando cada titular destes
direitos de forma a garantir-lhes tutela jurídica plena e segura. São direitos conhecidos, em
sua grande maioria, por serem absolutos, relativamente indisponíveis, imprescritíveis e
extrapatrimoniais, que tomam por base a dignidade e a integridade da pessoa humana.
Esta integridade pode ser mais bem delineada se compreendida a partir da subdivisão

367
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

em integridade física ou corporal e integridade moral ou psíquica.


A integridade física ou corporal, decorrência indiscutível da proteção maior à vida
humana, destina-se à tutela jurídica do corpo humano, da incolumidade corporal, aqui
englobando-se o corpo vivo, morto, além dos tecidos, órgãos e partes suscetíveis de
separação e individualização. Já a integridade moral ou psíquica, por sua vez, decorrência da
tutela da dignidade da pessoa humana, destina-se a proteger o conjunto psicológico da
estrutura humana , isto é, a incolumidade moral ou higidez psíquica da pessoa, abarcando a
sua honra, liberdade, recato, imagem, vida privada e nome; representa, por fim, a salvaguarda
das “emanações da alma, essencialmente incorpóreas, distintas das projeções físicas do
indivíduo” (FARIAS, 2007, p. 139).
A defesa da integridade moral perpassa, tal qual mencionado, pelo fomento ao
resguardo também da privacidade, aqui destacando-se a teoria dos círculos concêntricos da
vida privada ou teoria das esferas da personalidade de Heinrich Hubmann (HUBMANN,
1995, p. 36), elaborada e incorporada pela doutrina alemã a partir de 1953, para esclarecer a
relação entre privacidade, intimidade e segredo. Para Hubmann, a vida privada do ser humano
poderia ser compreendida a partir da formulação de três círculos concêntricos a delimitar, de
acordo com a densidade de cada camada, três esferas de privacidade: a privacidade
propriamente dita, que representaria o refúgio do indivíduo diante da coletividade, o direito de
viver a sua própria vida sem interferências ou ingerências externas; o direito ao segredo, isto
é, de não-divulgação dos fatos relacionados à própria vida da pessoa que só a ela e ao seu
núcleo mais próximo dizem respeito, não aos demais; e, por fim, a intimidade, que a esfera
mais pessoal e próximo do próprio indivíduo, devendo por ele ser controlada, afinal, existem
fatos e informações que nem à família ou amigos dizem respeito.
O direito à privacidade pode ser ainda apontado, conforme o difundido ensinamento
de Paulo José da Costa Júnior (COSTA JR., 1995, p. 14), como a necessidade do indivíduo de
“encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometido pelo
ritmo da vida moderna”.
A utilização de amostras de material genético para fins de identificação ou
armazenamento (civil ou criminal), nesse contexto, representa potencial mecanismo de
violação aos direitos supra indicados, na medida em que:
1) A depender da forma de coleta das amostras, se não revestida de justificação e
fundamentação legal e constitucionalmente proporcional, poderá representar agressão à
integridade corporal do indivíduo; neste ponto, para configurar a ofensa não se faz necessária
lesão significativa, evidente ou capaz de ensejar dor ao corpo da pessoa, mas apenas que a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

amostra colhida contenha potencial lesivo à sua integridade. No caso das amostras de DNA
(ou ADN), ainda que diminutas (fio de cabelo, saliva ou esperma), elas contém, em cada
célula, todo o mapa genético do indivíduo, uma pequena síntese de todo o seu corpo e ser.
Dessa forma, para os usos a que se destinam, estas amostras, independentemente do tamanho,
representam, sim, uma ameaça de lesão à integridade física.
2) O mais grave, contudo, é a forma de análise e armazenamento destas amostras,
uma vez que, justamente por conter, em cada célula, o DNA completo de uma determinada
pessoa, para além de identificá-la, o código genético pode revelar características pessoais
(físicas e, para alguns, inclusive psicológicas/de personalidade), traços de hereditariedade
(informações relativas ao núcleo familiar, que transcende a esfera do indivíduo) e anomalias
congênitas ou patologias genéticas (muitas que sequer poderão vir a se desenvolver ao longo
de toda a vida da pessoa).
Tais informações contidas no DNA, se manipuladas de forma inidônea ou descuidada,
podem provocar o vazamento de dados relacionados às esferas da privacidade e intimidade do
indivíduo, afinal, esta divulgação poderá afetar as suas relações de trabalho (discriminação em
razão da compleição física ou potencial para desenvolvimento de alguma patologia que, por
ventura, venha a impossibilitar a pessoa para o trabalho), familiares (doenças hereditárias),
dentre outras.
No âmbito da intimidade, fala-se ainda em intimidade genética (direito à intimidade
genética, bem explicado e defendido por Víctor Gabriel Rodríguez (RODRÍGUEZ, 2008)) e
em autodeterminação informacional. Este último direito individual tem ampla previsão no
Direito Europeu, sendo bastante debatido quando o tema é justamente a criação de bancos de
perfis genéticos. O seu conteúdo, em linhas gerais, diz respeito à prerrogativa conferida ao
indivíduo de controlar (incluir, retirar, modificar, atualizar e acompanhar, a qualquer tempo)
qualquer base de dados pessoais que lhe diga respeito e possa afetar-lhe; é o direito de
autodeterminar-se relativamente a informações pessoais. No Brasil, esse direito poderia ser
compreendido como abarcado pelo direito à privacidade e intimidade, inclusive no que tange
à intimidade genética e à proteção das informações contidas no DNA.
Face ao panorama ora construído de direitos fundamentais e da personalidade
passíveis de violação em caso de desvirtuamento da finalidade a que se destina a criação de
bancos de perfis genéticos (FIDALGO, 2006, pp. 120-128; RODRÍGUEZ, 2008, pp. 209-
216), a separação da parte não-codificante da molécula de ADN para fins de análise (parte do
DNA que não contém características pessoas ou hereditárias), apenas se observada de forma
rigorosa, controlada e sancionada, poderá garantir a salvaguarda dos direitos do doador – do

369
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

contrário ensejará a correspondente responsabilização civil, mediante reparação (danos


materiais) ou compensação (danos morais), ou, ainda, através do exercício da
contemporaneamente tão discutida função punitiva da responsabilidade civil –, sem que se
possa, por fim, prescindir da já indicada necessidade de ponderação dos bens em confronto
quando da aplicação da medida (coleta/armazenamento de amostras).

3. COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A MÁXIMA DA


PROPORCIONALIDADE ALEXYANA: UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL.

Em face do panorama delineado supra acerca do processo penal constitucional


brasileiro e dos direitos fundamentais potencialmente afetados com o uso do material genético
para fins de investigação criminal, com destaque para a garantia do devido processo legal, da
presunção de inocência e do direito ao silêncio, é possível inferir-se que tanto a utilização
pontual de material genético para fins de identificação na esfera criminal, quanto a formação
de um banco nacional de perfis genéticos para fins de persecução interferem por demais na
esfera dos direitos e garantias constitucionais do indivíduo.
Para enfrentar esta colisão que ora se delineia entre os direitos e garantias individuais e
o direito da coletividade à segurança pública, é possível recorrer-se à máxima da
proporcionalidade formulada pelo jurista alemão Robert Alexy.
Com base em um conceito não-positivista de Direito, o qual conduz a uma proposta de
união necessária entre Direito e Moral em virtude da aproximação entre a dimensão real e
fática do Direito (“o decretado e o eficaz”) e uma dimensão ideal ou discursiva (“pretensão de
correção”) imperiosa a partir da II Guerra Mundial, Robert Alexy constrói a sua “Teoria dos
Direitos Fundamentais” e a noção de um “Constitucionalismo Discursivo”, cuja ideia de
proporcionalidade, compreendida enquanto razão efetivadora de direitos fundamentais, visa a
resguardar ao máximo o núcleo essencial de cada um dos direitos em colisão – racional e
argumentativamente. Dessa forma, Alexy leva para diversos países as construções teóricas do
“Tribunal Constitucional Alemão”.
Também esta visão não-positivista do Direito leva o jurista alemão a compreender,
seguindo o quanto já fora indicado pelo americano Ronald Dworkin, as normas (sobretudo
aquelas que veiculam direitos fundamentais) como passíveis de apresentar uma estrutura de
regras ou de princípios (ou, ainda, uma estrutura mista), ambas com caráter verdadeiramente
jurídico-normativo.
O ponto decisivo acerca da distinção entre estas duas estruturas seria o fato de os

370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

princípios corresponderem a normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida
possível, no limite das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios jurídicos
representariam, pois, mandamentos de otimização, cuja marca seria justamente a possibilidade
de serem satisfeitos ou realizados em graus variados, enquanto as regras, por sua vez,
representam normas que deverão ser plenamente satisfeitas, exatamente como determinam os
seus comandos, ou terão a sua validade comprometida. A distinção entre regras e princípios,
nesse contexto, é uma distinção qualitativa e não uma distinção de grau.
A partir desta diferença qualitativa, também a colisão entre regras e princípios merece
tratamento diferenciado, destacando-se, para efeitos deste trabalho, a colisão entre princípios.
Princípios podem colidir abstrata ou concretamente, isto é, enquanto previsões normativas e
no caso concreto, a título ilustrativo. Em um primeiro momento, poderá o Legislador, ele
mesmo e mediante lei ordinária que tenha passado, necessariamente, pelo crivo da
compatibilidade com a Constituição Federal, solucionar a contenda, atribuindo maior proteção
a um ou a outro bem jurídico e definindo as hipótese e/ou condições em que tal proteção se
dará. Também nesta atividade legislativa recorre-se a considerações relativas à ponderação de
valores, princípios ou direitos – compreendidos, aqui, enquanto razões que guiam, diretrizes e
mandamentos de otimização. Não obstante, é em face do caso concreto, da aplicação e
efetivação destes direitos fundamentais colidentes, que se fará mais nítida e imprescindível
(em razão da necessária fundamentação das decisões judiciais) a utilização da ponderação.
No direito constitucional alemão, a ponderação é uma impostante etapa do que é
exigido por um princípio mais amplo. Esse princípio mais amplo é o princípio da
proporcionalidade.
O princípio ou máxima da proporcionalidade decompõem-se em três princípios
parciais ou subprincípios: 1) princípio da idoneidade; 2) da necessidade; 3) e da
proporcionalidade em sentido estrito. Todos os três expressam a ideia supramencionada de
otimização.
Os princípios da idoneidade e da necessidade consubstanciam a otimização no que
tange às possibilidades fáticas. Idoneidade (ou adequação) equivale à noção de que o meio
empregado para realizar um princípio ou direito fundamental deve ser, impreterivelmente,
idôneo, adequado, apto à consecução do fim pretendido; do contrário, a mitigação que a
escolha deste meio ou medida implica ao direito fundamental contrário será em vão e nenhum
direito fundamental, enfatiza Robert Alexy em seus escritos, pode vir a ser afetado sem que
haja uma razão justificadora muito forte para tanto. Este subprincípio, primeira etapa do
exame acerca da proporcionalidade de uma medida a ser adotada, exclui o emprego de meios

371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

que prejudiquem a realização de um princípio sem que, ao menos, outro princípio de igual
relevância seja fomentado. Esta nada mais é que a expressão da ideia da Otimidade-Pareto:
uma posição pode ser melhorada sem que nasçam desvantagens para outras.
No mesmo sentido deve seguir o raciocínio em torno do subprincípio da necessidade.
Este determina que, face à constatação da existência de dois meios aptos a fomentarem
igualmente bem um determinado direito fundamental, deve-se escolher aquele que menos
intervenha no outro direito fundamental colidente com o primeiro. Isto é, se existe um meio
menos intensivamente interveniente e igualmente idôneo, então, na linha da Otimidade-
Pareto, uma posição pode ser melhorada sem que nasçam custos para a outra. Em outra
palavras, ainda, um dado meio de realização de um princípio/garantia/direito fundamental só
deve ser empregado se não houver, disponível, nenhum outro que interfira menos no
princípio/garantia/direito fundamental colidente com o primeiro e seja igualmente idôneo ao
alcance dos mesmos fins pretendidos; apenas se for realmente necessário e não houver outra
solução tanto idônea, quanto menos gravosa.
Se custos ou sacrifícios não podem ser evitados, todavia, torna-se necessária uma
ponderação.
O terceiro e último subprincípio da proporcionalidade alexyana é, pois, a ponderação,
também conhecida como proporcionalidade em sentido estrito. Este princípio parcial traduz o
significado da otimização relativamente às possibilidades jurídicas e corresponde a uma regra
que Robert Alexy denomina como “lei da ponderação”.
De acordo com a “lei da ponderação”, esta atividade (etapa), este ponderar, também
decompõe-se em três passos: a) no primeiro, deve ser verificado o grau do não-cumprimento
ou prejuízo de um princípio; b) em seguida, seria necessário proceder-se à análise da
importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; c) e, por fim, no terceiro
momento, questionar-se-ia se a importância do cumprimento do princípio em sentido
contrário justificaria o prejuízo ou não-cumprimento do primeiro princípio.
Ao seguir-se as três etapas da máxima da proporcionalidade, incluindo-se os três
passos da ponderação, seria possível enfrentar a inevitável colisão entre direitos fundamentais
de forma racional, argumentativa, fundamentada e legítima, salvaguardando-se o máximo
possível do núcleo de cada um destes direitos de status constitucional, ao menos de acordo
com o entendimento do jurista alemão Robert Alexy e em conformidade com o que tem
entendido e manifestado também o Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Qualquer determinação do legislador penal/processual penal nesse sentido, portanto,
levando em consideração a relevância das finalidades de política criminal, deve assegurar,

372
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

impreterivelmente, a realização de um juízo de proporcionalidade abstrata entre os direitos em


conflito, observando os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito da previsão legislativa, restringindo as hipóteses de utilização/armazenamento
do material genético.
Também o órgão julgador, quando estiver diante do caso concreto e da prerrogativa já
conferida por lei de manuseio destes dados pessoais deverá realizar, in concreto, o
sopesamento de direitos a justificar a aplicação da medida, constatando a inexistência de
outro(s) meio(s) adequado, necessário e proporcional em sentido estrito.
Afinal, retornando às bases filosóficas kantianas do hoje já quase famigerado princípio
da dignidade da pessoa humana, aqui resgatado em seu sentido mais nobre, o homem só pode
ser considerado enquanto fim e jamais meio ou instrumento a serviço de finalidades outras.
Daí falar-se, também, em bioconstituição13, em razão da sua preocupação bioética, a qual deve
ser parâmetro ético-filosófico das discussões em torno da temática ora proposta.

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Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovada pela Banca
Examinadora composta pelo orientador Prof. Dr. Paulo Vinícius Sporleder de Souza, Profa.
Dra. Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó e Profa. Me. Lívia Haygert Pithan.

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merecido atenção por parte dos textos constitucionais. Oliveira Baracho, em instigante artigo intitulado
Bioconstituição: bioética e direito; identidade genética do ser humano, esclarece que o discurso jurídico
constitucional, que tem como base a identidade genética, proporcionou o surgimento da palavra bioconstituição,
entendida como conjunto de normas (princípios e regras) formal ou materialmente constitucionais, quem tem
como objeto as ações ou omissões do Estado ou de entidades privadas, com base na tutela da vida, na identidade
e integridade das pessoas, na saúde do ser humano atual ou futuro, tendo em vista também as suas relações com
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374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

DO BERÇO À CELA – A EXTENSÃO DAS PENAS NA PENITENCIÁRIA


FEMININA MADRE PELLETIER

FROM THE CRADLE TO THE CELL – THE EXTENTION OF PENALTIES IN


MADRE PELLETIER WOMEN'S PRISON

Larissa Urruth Pereira1

RESUMO

A pesquisa aqui sintetizada tem como objetivo apresentar a problemática da maternidade no


cárcere baseada na rotina institucional da Unidade Materno Infantil na Penitenciária Feminina
Madre Pelletier, em Porto Alegre/RS. Nessa senda, pretende-se apontar as principais
consequências da extensão das penas das mães à pessoa dos filhos, salientando a
estigmatização decorrente do ingresso no sistema prisional, bem como o caráter seletivo que
esse sistema adota ao eleger como seus clientes aqueles oriundos das camadas mais débeis da
população. Além disso, a pena restritiva de liberdade acaba caracterizando-se uma resposta
totalmente inadequada, já que o que se analisa nos conflitos penais, na maior parte dos casos,
são problemas de origem social. Ao optar por uma conduta agressiva como retorno ao
cometimento de delitos que, na maioria das vezes, são oriundos da falta de recursos e de
amparo àquele que vem a cometer o ato típico, o Estado acaba por gerar novas situações-
problema. Assim, o que se observa é uma total inversão de valores. O Estado Democrático de
Direito, que tem como cerne a Dignidade da Pessoa Humana, visando à Proteção Integral da
Criança, ignora essa principiologia, elegendo a sanção penal como a mais absoluta prioridade,
submetendo crianças e mães a um total abandono em prol do cumprimento de uma pena a
qual não se justifica, uma vez que não previne a violência, dessocializa aquele que a ela é
submetido e não impede que essa pessoa cometa novas infrações. A análise realizada se
consubstancia, principalmente, nos estudos da Criminologia Crítica e do Abolicionismo
Penal, os quais nos levam a acreditar que a sanção é uma forma irracional de controle social,
que só reproduz violência no lugar de preveni-la.

1
Acadêmica do X Eixo do Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis, Campus Canoas.

375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Palavras-Chave: Aprisionamento Feminino. Personalidade da Pena. Criminologia Crítica .


Abolicionismo Penal.

ABSTRACT

The research here synthesized has as subject to present the issue of motherhood inside the
prison, based in the institutional routine from the maternal Child Unit in Madre Pelletier
Women´s Prison, located in Rio Grande do Sul, Porto Alegre. In this path, it is intended to
point the major results from the extension from the penalty from mothers to children,
emphasizing the stigmatization due to the inflow in the prison system, as well as the selective
character that this system adopts when it chooses as clients the ones that came from the
weakest groups from society. Besides that, the prison sentence characterizes an answer totally
inappropriate, whereas what is seen in penal conflicts, in most cases, are social problems.
When the State chooses an aggressive way to respond the committing of crimes that, in most
cases, are derived from the lack of resources and support to those who practice the
criminalized act, the State ends up to generate new problem-situations. Thus, can be seen a
complete value inversion. The Democratic Rule of Law, which has his center in the Human
Dignity, looking for a Complete Child Protection, ignores these principles, electing the
penalty as the absolute priority, subjecting the children and their mothers to a total
abandonment in favor of the enforcement of a sentence which is not justified, once doesn’t
prevent the violence, withdraws from society that one who is submitted to and doesn’t
prevents the person became to do the same violation. That analysis mainly consubstantiates in
the Critical Criminology studies and Abolitionist Movement, which bring us to believe that
the punishment is an irrational social control form, that only reproduces the violence instead
of prevent it.

Keywords: Female Imprisonment. Personality of the Penalty. Critical Criminology.


Abolitionist Movement.

1. Breve introdução ao aprisionamento feminino

A vida institucionalizada, levada por aqueles que cumprem pena em


estabelecimentos prisionais, acaba por refletir muito da realidade – em especial das
desigualdades – apresentadas na sociedade da qual se origina. Frente a essa premissa, oriunda

376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

dos estudos criminológicos (CAMPOS, 1999, p. 14), nos deparamos com o caráter seletivo do
Direito Penal que tende a reproduzir a discriminação que a sociedade projeta sobre as
minorias, selecionando “as pessoas, quer para criminalizá-las quer para vitimizá-las,
recrutando sua clientela entre os mais miseráveis” (ESPINOZA, 2002, p. 35).
É da natureza humana não aceitar o outro, o diferente, excluindo-o dos grupos,
marginalizando-o. Figurando nessa parcela tida como “diferente” aos olhos da sociedade
podemos apontar as classes mais baixas, as crianças, as mulheres, a população negra, dentre
outros grupos (BECKER, 2008, p. 28-30). Em reflexo disso, os hipossuficientes, com menor
representatividade nos grupos sociais, costumam sofrer, com maior incidência, o controle
exercido pelos órgãos mantenedores da ordem social, quais sejam, a polícia, o judiciário e o
governo.
Dessa forma, analisando-se a população carcerária do Brasil, facilmente
perceberemos uma maior presença de homens, negros e pobres. Já no que diz respeito ao
encarceramento feminino, mesmo que constituído de contingente consideravelmente menor
que o masculino2, reveste-se de peculiaridades, impostas por diversos fatores, dos quais
imperioso se faz salientar dois dos mais evidentes: as diferenças biológicas entre os sexos e a
característica patriarcal da nossa sociedade (ESPINOZA, 2004, p. 122-123).
Por consequência desses dois fatores evidenciados, insurgem as peculiaridades do
aprisionamento feminino e, em especial, a problemática da maternidade durante o
cumprimento de pena restritiva de liberdade. Assim, para que se possa realizar uma melhor
compreensão a respeito das consequências e da forma em que essa maternidade ocorre, nos
valeremos de perspectivas criminológicas associadas às teorias oriundas do movimento
feminista.
Nesse contexto, importante salientar que tanto o feminismo, como a criminologia não
permitem um conceito fechado, ou uma análise de sua evolução histórica onde se observe a
exclusão de uma teoria através de sua superação por outra mais atual (CARVALHO, 2009, p.
294-338). Ao contrário disso, observam-se diversas teorias aplicáveis ao momento histórico
que se vive, das quais faremos uso na tentativa de compreender as especificidades do
encarceramento feminino.

2
A população carcerária feminina, no Rio grande do Sul, representa 7% do total de indivíduos cumprindo pena
nos estabelecimentos prisionais do estado, ou seja, um total de 2.000 detentas. (Dados obtidos através de
relatório gerado pelo Departamento de Planejamento da SUSEPE, atualizado em 06/07/2012. Disponível em:
<http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=31>. Acesso em 11 jul. 2012.

377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

As teorias feministas, conforme classificação adotada por Alimena3, podem ser


divididas em três ondas. A primeira fundada no feminismo liberal, que tem como principal
característica a luta por igualdade entre os sexos, buscando ampliar os direitos à educação e
ao trabalho ao âmbito feminino; a segunda, calcada no chamado feminismo radical, que
assinala-se pela diferença, procurando dirimir a disparidade de poder entre os sexos através
de mecanismos, principalmente estatais, de defesa à mulher; e a terceira assentada no
feminismo socialista, que considera a pluralidade das “diversas mulheres” presentes na
sociedade, apontando a multiplicidade de fatores que acabam por provocar desigualdades
entre os gêneros, tais como classes sociais, etnias, idade, etc (ALIMENA, 2010, p. 19-21).
A última onda feminista aproxima-se da chamada teoria queer4, a qual aduz que a
diferenciação dos sexos é cultural, é a cultura que os trata de forma peculiar, fixando os
papéis sociais de cada gênero (RODRIGUES, 2005, p. 180). Dessa forma, é possível
estabelecer um ponto de encontro entre as teorias feministas e a Criminologia Crítica e
Cultural, uma vez que as diferenças de gênero se dão, principalmente, através das criações
culturais de cada sociedade e para as mencionadas vertentes criminológicas, os tais aspectos
culturais relacionam-se com a violência, com o desvio e com o controle da sociedade,
fundindo as abordagens feministas com os principais objetos de estudo da Criminologia
(ALIMENA, 2010, p. 165-170).
A criminalidade feminina vem sendo pauta dos estudos criminológicos desde o
determinismo Lombrosiano, que defendia que as mulheres delinquiam em menor escala que
os homens por fatores unicamente biológicos. Lombroso acreditava que as mulheres teriam
evoluído menos que os homens, não estando aptas a realizar os desafios que o crime lhes
exigiria (FERRERO; LOMBROSO, 1903, p. 31-47). Já Freud acreditava que a criminalidade
feminina consistia em um complexo de masculinidade, uma vez que as atitudes agressivas e
as condutas desviantes eram características da psique masculina (LEMGRUBER, 1999, p. 2).
Além do estigma normalmente atribuído àquele que delinque, a mulher desviante, em
face dessa cultura patriarcal, carrega o rótulo de “criminosa”, bem como o de inconsequente e
irresponsável (por agir sem pensar na criação dos filhos) (LARRAURI, 1996, p. 13-45) e
também acaba perdendo, perante os demais, a sua feminilidade, por praticar condutas
3
Optamos por utilizar a classificação adotada por Carla Alimena, no entanto, a respeito também nos valemos dos
ensinamentos de Carmen Hein Campos in CAMPOS, Carmen Hein de (org.); BARATTA, Alessandro;
STRECK, Lenio Luiz; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina,
1999. p. 14.
4
“A palavra queer pode significar estranho, excêntrico, fora do lugar, ridículo. Pode também ser uma expressão
pejorativa para designar sexualidades não heterossexuais. Os estudos queer re-significam a expressão
pejorativa, questionando ordens de sexo, gênero e sexualidade.” ALIMENA, Carla Marrone. A tentativa do
(im)possível: feminismos e criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.p.7.

378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

socialmente atribuídas ao gênero masculino. Acaba que, mesmo delinquindo em menor


expressão, a mulher tem sua punição majorada pelos pré-conceitos da sociedade (ANTONY,
2007, p. 78).
Ao adentrar no aparelho prisional, passa, por exemplo, a carecer de atenção médica
especializada, levando-se em consideração que a maior parte das casas penitenciárias da
América Latina não contam com atendimento ginecológico ou obstétrico. Não obstante tal
falta de cuidado, diversos estabelecimentos prisionais não possuem recursos humanos
suficientes, tendo que, por muitas vezes, valer-se de contingente masculino para exercer as
funções operacionais da casa, deficiência que proporciona uma maior vulnerabilidade, por
parte das detentas, à ocorrência de abusos sexuais (ANTONY, 2007, p. 83).
Em relação às atividades laborais ofertadas, o que se vislumbra massivamente são
serviços de tapeçaria, lavagem de roupas e artesanato, reforçando o papel submisso da mulher
na sociedade e, ao contrário do se espera, não dando a essas mulheres condições de manter-se,
durante a vida extramuros, de forma independente, através dos trabalhos ensinados no cárcere
(LEMGRUBER, 1999, p. 135-146). Esse modelo acaba infantilizando as mulheres, impondo-
as a uma condição de dependência e incapacidade de tomar decisões5.
Considerando-se que 78,5% da população carcerária feminina do Rio Grande do Sul
cumpre pena por envolvimento com tráfico de entorpecentes6, imperioso se faz averiguar que,
na maior parte das vezes, essas mulheres cometem tais delitos a fim de prover o sustento de
sua família. Dessa forma, como durante o cumprimento da pena não são preparadas para
exercerem o seu papel de arrimo de família, tendem a delinquir novamente.
A situação agrava-se em relação à questão da maternidade durante o cumprimento da
pena, circunstância que apresenta uma série de fragilidades ignoradas pelo ordenamento
penal. Dentre elas, podemos ressaltar que, quando estas mães adentram nas penitenciárias,
possuindo filhos de menor idade, acabam afastadas destes, muitas vezes pelo preconceito de
suas famílias, que hesitam em levá-los para visitação e não raras vezes por falta de condições
para recebê-los, por parte dos estabelecimentos prisionais (OLIVEIRA, 2003, p. 165).

5
Em relação a esta institucionalização, importante salientar o pensamento de Goffman a respeito das
consequências causadas pelo confinamento em instituições totais, tais quais as prisões: “Se ocorre mudança
cultural, talvez se refira ao afastamento de algumas oportunidades de comportamento e ao fracasso para
acompanhar mudanças sociais recentes no mundo externo. Por isso, se a estada do internado é muito longa,
pode ocorrer, caso ele volte para o mundo, o que já foi denominado desculturamento ou destreinamento - que
o torna temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária.” GOFFMAN, Erving.
Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 23.
6
Dados obtidos através do InfoPen – Estatística, relatórios Estatísticos - Analíticos do sistema prisional de
cada Estado da Federação, divulgados pelo Ministério Público Federal (versão dez 2011). Disponível em: <
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRN
N.htm >. Acesso em 11 jul. 2012.

379
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Por estarem afastadas dos filhos, as detentas acabam submetendo-se a diversas


privações ocasionadas pela arbitrariedade da administração e do corpo funcional das
penitenciárias, cedendo a tais abusos a fim de não terem obstaculizado o seu direito de receber
visitas e informações a respeito dos filhos. Por outro lado, em várias situações, além de
afastarem-se das mães, tais crianças acabam não tendo para onde ir, muitas vezes sendo
direcionadas a abrigos ou casas de parentes distantes e em outras, até mesmo, tornando-se
moradores de rua (SOARES; ILGENFRITZ, 2002, p. 27).
Quando a gestação se dá no ambiente prisional, a situação agrava-se ainda mais. As
enfermarias, responsáveis pelos atendimentos médicos das penitenciárias, não suportam os
cuidados especiais que uma gestante necessita, restringindo o atendimento pré-natal a meras
consultas ambulatoriais. Não é difícil encontrar uma gestante que no quinto mês de gravidez
ainda não realizou nenhuma ecografia, procedimento que, quando a gestante encontra-se em
liberdade, normalmente se dá nas primeiras semanas subsequentes à descoberta do estado de
puerpério.
Após o nascimento, a Constituição Federal prevê, em seu art. 5º, inciso L, que as
apenadas poderão permanecer com seus filhos durante o período de amamentação, bem como
o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 9º, dispõe que o poder público deverá
propiciar condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães
submetidas à medida privativa de liberdade. Já a Lei de Execuções Penais, em seu art. 89, faz
menção a um período que compreende a idade de seis meses a sete anos, no qual os filhos das
apenadas poderiam manter-se em berçários ou creches, dentro dos estabelecimentos
prisionais. No entanto, a legislação não determina um período exato de permanência dos
filhos junto às mães.
Com a finalidade de regulamentar tal situação, a Resolução n. 3, do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária7, define que os filhos de apenadas devem
permanecer junto às mães pelo período mínimo de um ano e seis meses. Passado esse período,
deve-se iniciar o procedimento gradual de separação e adaptação da criança à família que o
acolherá durante o cumprimento de pena da mãe, processo que deverá levar mais seis meses.
Dessa forma, as crianças deverão permanecer com as mães até os dois anos de idade, tendo a

7
Resolução n. 3/2009, CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA – CNPCP,
publicada no Diário Oficial da União no dia 16/7/2009, na Seção 1, p. 34-35.

380
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

possibilidade de permanecerem até os sete anos, desde que o estabelecimento prisional


cumpra com as exigências estruturais previstas no artigo 6º8 da referida resolução.
Tendo em vista que nessa primeira fase da vida, essas crianças compartilham o
cárcere com as mães, vislumbra-se mais uma debilidade do aprisionamento feminino. Nesta
faceta, além do sofrimento da apenada, em gerar um filho em um ambiente violento e deveras
inadequado, passamos a nos deparar com a extensão de sua pena para a pessoa do filho. O
“encarceramento” desses menores justifica-se pela manutenção do vínculo materno, bem
como como pela efetivação do aleitamento, tão necessário para o sadio desenvolvimento de
uma criança. No entanto, os submete ao ambiente prisional, sem o convívio com os demais
parentes, em locais de estrutura precária, geralmente inapropriados para alojarem até mesmo
adultos, quanto mais crianças.
Considerando-se a decadência do sistema penitenciário brasileiro, o que se observa é
uma total falta de estrutura dos estabelecimentos prisionais para abrigar indivíduos em estado
de peculiar desenvolvimento, tais quais crianças que vivem a chamada primeira infância.
Dessa forma, assim como as gestantes, esses infantes carecem de atendimento médico
especializado, bem como permanecem aprisionados, como se condenados fossem. Essa
condenação extensiva infringe um dos principais princípios penais constitucionais, o Princípio
da Personalidade da Pena, ou seja “no direito penal, responsabilidade coletiva, subsidiária,
solidária ou sucessiva. Nada pode, hoje, evocar a infâmia do réu que se transmitia a seus
sucessores.” (BATISTA, 2007, p. 104).
Uma vez que crianças – sujeitos com aparelho psíquico em formação (ZIMERMAN;
COLTRO, 2002, p. 87-101) – são submetidas a um sistema opressivo, de medidas aplicadas
em ultima ratio, como se trata o Direito Penal, vislumbra-se a aplicação de uma política
criminal confrontante à principiologia cerne de nosso ordenamento jurídico. Afastar o infante
da presença materna, sem dúvida, acarreta-lhe danos, no entanto, fazer-lhe cumprir uma pena
que não merece, em um estabelecimento de condições precárias (como são os
estabelecimentos prisionais brasileiros), parece-nos tão danoso quanto.

2. A gestação, a maternidade e o contexto prisional na Penitenciária Feminina Madre


Pelletier

8
Art. 6º Deve ser garantida a possibilidade de crianças com mais de dois e até sete anos de idade permanecer
junto às mães na unidade prisional desde que seja em unidades materno-infantis, equipadas com dormitório
para as mães e crianças, brinquedoteca, área de lazer, abertura para área descoberta e participação em creche
externa. Resolução n. 3/2009, CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA –
CNPCP, publicada no Diário Oficial da União no dia 16/7/2009, na Seção 1, p. 34-35

381
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A fim de se averiguar a situação específica da maternidade no âmbito da


Penitenciária feminina Madre Pelletier, localizada na cidade de Porto Alegre/RS, realizamos
pesquisa de campo voltada à unidade materno-infantil de tal estabelecimento. Estamos
falando de espaço destinado à acomodação de gestantes e de apenadas que possuem filhos
concebidos no cárcere, com no máximo um ano de idade. No entanto, o período de dois anos
disposto na mencionada resolução, não é atendido pela penitenciária, por falta de
acomodações suficientes para atender as crianças por um período tão extenso.
Importante salientar que só permanecem na unidade crianças até os seis meses de
idade, podendo a mãe optar por ficar como o bebê até um ano, desde que aceite a sua
transferência para a penitenciária de Guaíba/RS. Apenas permanecem no Madre Pelletier as
crianças com mais de seis meses que tenham alguma complicação médica que necessite de
tratamento específico, realizável apenas em Porto Alegre/RS, nestes casos, o período máximo
de permanência passa para um ano.
Também em cumprimento da referida resolução, a equipe técnica providencia a
adaptação das crianças com a família que irá recebe-las ao término do prazo de permanência
na unidade, realizando visitas supervisionadas e possibilitando a saída de tais crianças para
estimular o convívio com os novos cuidadores. Estes familiares normalmente são indicados
pela apenada, indicação essa que dá início ao trabalho social e psicológico de adaptação e
integração da criança à família, de acordo com os assistentes sociais.
A presente pesquisa deu-se entre os dias 10 e 20 de julho de 2012, realizando-se
através de entrevistas com as detentas alojadas na unidade e com as funcionárias que
exerciam suas funções nesse local, bem como foi realizada análise (parcialmente) etnográfica
das rotinas e do local. Foram entrevistadas três gestantes, nove mães, a agente penitenciária
responsável pela Unidade Materno e a assistente social da Unidade.
O primeiro contato com a administração penitenciária foi feito através de e-mail,
pelo qual se obteve autorização para a realização do trabalho, mediante envio do Projeto e de
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Desde a primeira visita, todos os funcionários
foram atenciosos, demonstrando interesse em contribuir, deixando-nos à vontade para realizar
a pesquisa da forma que considerássemos mais adequada.
A seleção das apenadas que seriam entrevistas foi realizada através de indicação da
assistente social, na tentativa de que se pudesse analisar casos distintos uns dos outros,
podendo-se extrair dados tanto de gestantes, como de mães, bem como de presas com
condenações definitivas e provisórias, como também se pudesse conversar com apenadas que

382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

além dos filhos alojados na unidade tivessem filhos fora dali. Todas as entrevistadas
participaram voluntariamente da pesquisa.
No primeiro dia de trabalho, ao conhecermos o andar térreo da unidade, pudemos
averiguar a presença de diversos vidros quebrados, situação que resulta em um ambiente frio e
úmido. Além das péssimas condições das vidraças, a construção possui arquitetura antiga,
edificada para abrigar um convento, sendo, desse modo, muito alta, o que propicia corrente de
vento, deixando o local ainda mais gelado.
O chão de concreto, já deteriorado pelo tempo, apresenta muitas rachaduras e um
aspecto de sujo, impressão que se tem, principalmente, por se tratar de alvenaria muito antiga,
que poucas vezes se sujeitou a reformas. Fria, úmida, suja e com piso irregular é a área de
convivência, nada propícia para crianças, que sequer podem engatinhar nesse espaço. Existem
grades que delimitam o ambiente da unidade, o que ressalta a ideia de encarceramento. O
pouco mobiliário presente é muito antigo, não havendo lugar próprio para o armazenamento
de materiais como leite em pó, cigarros, fraldas e chupetas, os quais dividem espaço em
caixas alocadas no sofá da sala da assistente social.
Esse andar térreo é composto por: um banheiro; uma sala dedicada ao atendimento
psicossocial; uma sala para atendimento pediátrico; um amplo espaço destinado à feitura das
refeições; uma sala com televisão e alguns livros, chamada de sala de lazer; uma sala
específica para a administração; uma pequena “lavanderia”, com uma máquina de lavar
roupas e um tanque; um espaço não coberto destinado ao “banho de sol” e à secagem de
roupas. A entrada na unidade se dá através de uma pequena porta gradeada, para a qual se tem
acesso por meio de um pátio não muito utilizado. Do corredor central, pode-se avistar uma
escada com dois lances de degraus, dando acesso ao segundo andar, local em que se
encontram os alojamentos. Nessa primeira visita, apenas conhecemos o andar térreo ora
descrito.
Somente no último dia de nosso trabalho fomos apresentados aos demais ambientas
que compõem a unidade. Acompanhados da agente que coordena os serviços na “creche”,
subimos os dois lances de escadas e deparamo-nos com os quartos – alojamentos divididos
conforme a idade dos bebês, nos quais as apenadas e as crianças passam a maior parte do
tempo. Os alojamentos são compostos por camas e colchões, e cada “família” guarda seus
pertences, tentando criar uma atmosfera que lembra um quarto infantil. O que mais se pode
observar nesses locais é a presença de muitas roupinhas dobradas pelos cantos e alguns
(poucos) brinquedos.

383
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Outro local ao qual fomos apresentados é a sala de brinquedos, espaço patrocinado


pelos cursos de pedagogia e letras do Centro Universitário Ritter dos Reis. Tal sala é
composta por vários brinquedos, desenhos, almofadas e fotos dos bebês. Nesse local os
estagiários dos mencionados cursos realizam um trabalho voluntário de estimulação dos
bebês, o que ocorre apenas duas vezes por semana. A sala só é utilizada nesses dias, dessa
forma, os bebês só engatinham e brincam quando os estagiários estão presentes.
As mães e os bebês passam o dia inteiro juntos, boa parte dele nos quartos, descendo
apenas para o banho, a lavagem de roupas e a feitura das refeições. Quando uma mãe precisa
ir a enfermaria, ou a qualquer outro local da penitenciária que não seja a Unidade Materno,
tem de deixar o bebê com outra detenta, o que nem sempre é fácil, uma vez que nem todas
possuem relações de amizade. Assim também ocorre para a realização de visita íntima, a
presa só pode usufruir desse recurso se seu companheiro vier acompanhado de outro familiar
que possa ficar com a criança durante a visita.
Após definidas as participantes, reunimo-nos na chamada sala de lazer, onde
explicamos a todas as participantes como ocorreria a pesquisa e a importância da sua
participação. As entrevistas iniciaram naquele mesmo dia, levando em torno de uma hora para
cada entrevistada, motivo pelo qual se estenderam durante dez dias, uma vez que a visita à
casa penitenciária só ocorria no turno da tarde, no qual a rotina institucional deixava maior
lapso temporal para a realização da pesquisa.
Foram realizados os questionamentos de forma individual, em sala isolada dos
demais ambientes do estabelecimento, estando nela presentes apenas a pesquisadora e a
entrevistada. Utilizamos entrevista no sentido referido por Minayo: “Conversa a dois, feita
por iniciativa do entrevistador, destinada a fornecer informações pertinentes para um objeto
de pesquisa, e entrada (pelo entrevistador) em temas igualmente pertinentes com vistas a este
objetivo.” (MINAYO, 2010, p. 11).
Foi elaborado roteiro prévio, com questionamentos abertos, de modo a permitir que
as entrevistadas fizessem as colocações que julgassem pertinentes. Tentamos obter certa
simetria entre as abordagens, aplicando-se sempre as mesmas questões a fim de se obter
respostas diversas. Nosso objetivo não era avaliar dados quantitativos, mas sim de obter as
informações necessárias para consubstanciar a pesquisa. Assim, a coleta dos dados de campo
se deu afim de contextualizar o referencial teórico à vivência prática por intermédio da análise
da subjetividade dos depoimentos, bem como das situações observadas.
As perguntas formalizadas tinham como finalidade averiguar as características
individuais das presas, a qualidade e periodicidade da prestação de atendimento médico na

384
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

unidade, a frequência do recebimento de visitas externas, os motivos e os tipos de


condenação, os aspectos psicológicos das apenadas e das crianças, bem como as condições
estruturais da “creche”. O instrumento estava estruturado da seguinte forma:

1. Nome (identificação que consta em documentação oficial):


2. Como é conhecida na comunidade (designação especial,
apelido):
3. Idade:
4. Naturalidade:
5. Estado Civil: ( ) casada ( ) solteira ( ) viúva ( ) divorciada ( )
separada ( ) união estável
6. Cor: ( ) branca ( ) negra ( ) parda
7. Escolaridade:
8. Profissão (atividade que exercia profissionalmente, ocupação,
fonte de sustento, subsistência, etc.):
( ) mercado formal Atividade:
( ) mercado informal Atividade:
( ) nenhuma
9. Caso possuísse alguma ocupação anterior, qual era sua renda
mensal?
10. ( ) menos de 1 salário ( ) 1 a 3 salários ( ) 3 a 5 salários ( )
acima de 5 salários
11. Possuía residência fixa? ( ) sim ( ) não
12. Quantas pessoas residiam com você?
13. Recebe visitas? ( ) sim ( ) não
14. Frequência:
15. Quem costuma vir?
16. Recebe visita íntima? ( ) sim ( ) não.
17. Exerce alguma atividade nessa unidade? ( ) sim ( ) não
18. Se sim, qual?
19. Se não, gostaria de exercer?
20. Está em prisão provisória ou condenação definitiva?
21. Motivo da condenação:
22. Pena total:
23. Pena cumprida:
24. Teme ser discriminada quando sair? ( ) sim ( ) não
25. Frequenta o serviço médico? ( ) sim ( ) não
26. Realizou atendimento ginecológico ou obstétrico após o início
da pena? ( ) sim ( ) não
27. Esteve grávida durante o cumprimento da pena? ( ) sim ( ) não
28. Se sim, recebeu acompanhamento pré-natal? ( ) sim ( ) não
29. Possui filhos? ( ) sim ( ) não
30. Número de filhos:
31. Idade dos filhos:
32. Filhos na Unidade Materno Infantil? Quantos?
33. Se na Unidade Materno Infantil:
Recebem atendimento pediátrico? ( ) sim ( ) não
Costumam sair do ambiente prisional? ( ) sim ( ) não
Tem contato com outros membros da família? ( ) sim ( ) não

385
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

34. Frequência que vê os filhos:


35. Você acha que atendimento prestado pela Unidade Materno
Infantil é adequado?
36. Você considera que as crianças atendidas pela Unidade Materno
Infantil recebem todos os cuidados necessários?
37. O que você pensa a respeito da presença de crianças no
ambiente prisional?
38. Qual procedimento você julga adequado a ser tomado em
relação aos filhos das apenadas?
39. Se não estão na Unidade Materno, com quem estão os filhos?
40. Quais as suas perspectivas para o pós-cárcere?
41. Quando questionada se gostaria de registrar mais alguma coisa,
ou contar algo importante, disse:

Também deixamos claro, desde já, a necessidade de ler as observações de campo de


acordo com o referencial abordado. Isto porque, quando da realização de nossas observações,
não procuramos nos despir dos valores incorporados em nossas concepções.
Assim, por não aplicarmos um roteiro fechado e por nos permitirmos um contato
mais estreito com os sujeitos objeto desta pesquisa, obtivemos muitas informações pra além
do esperado. Ao término da aplicação de cada questionário e durante as interações realizadas
pelos corredores da penitenciária, informações bastante relevantes eram discutidas e ajudaram
a formar os contornos do microcosmo trabalhado a seguir.
Deste modo, após expormos muito brevemente a metodologia utilizada para a
realização do estudo de campo, passaremos a relatar o observado. Dentre as entrevistadas
observamos que a maioria é muito jovem, situando-se na faixa etária compreendida entre os
22 e 32 anos, apesar de contarmos com uma participante de 19 e outra de 42 anos, no entanto
são as únicas que destoam da faixa etária destacada. Dentre todas as entrevistadas apenas uma
era oficialmente casada, enquanto as demais oscilavam entre convivência marital e solteiras.
Apenas três das doze participantes percebiam renda igual ou superior a um salário mínimo
mensal, sendo que o restante, em sua maioria, nem possuía fonte de renda.
Dessa forma, o que se observa é que a maioria das apenadas alojadas na Unidade-
Materno pertencia a extratos sociais inferiores, não possuindo renda significativa que lhe
desse condições de sustento. Deste modo, mesmo dentro deste microcosmo analisado,
podemos observar a seleção realizada pelo Direito Penal, que elege como seus clientes
aqueles já estigmatizados pela sociedade, uma vez que o próprio Estado permeia-se por

386
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

estereótipos, valendo-se das chamadas “teorias de todos os dias”9 para exercer o seu poder de
criminalização e punição àqueles que desrespeitarem as normas impostas.
Além disso, importante salientar que, das doze entrevistadas, onze estava
respondendo por envolvimento com tráfico e a única que foi processada por outro crime
(roubo), alegou já ter passado pelo sistema em decorrência de envolvimento com o tráfico. A
maior parte delas afirma ter se envolvido com esse tipo de prática a fim de prover o sustento
da família.
Além dos baixos salários averiguados nas respostas dos questionamentos, o próprio
envolvimento com tráfico de pequeno porte evidencia que a desigualdade social é o maior dos
problemas vivenciados pela população carcerária analisada. Por estar tão clara essa
problemática em nossa vivência, imperioso destacarmos o pensamento de Mathiesen, o qual
afirma que ao descriminalizarmos os crimes de drogas, além de diminuirmos,
significativamente, os outros delitos decorrentes de seu comércio ilegal, esvaziando,
consideravelmente as prisões, efetivamente ameaçaríamos e liquidaríamos “o poder dos
figurões que hoje em dia não terminam na prisão, porque ela está sistematicamente reservada
para os pobres” (MATHIESEN, 2003, p. 97).
O que Mathiesen quer dizer é o mesmo que vislumbramos em nossa pesquisa: as
grandes figuras do tráfico de drogas, os grande “patrões” desse comércio, não acabam nas
penitenciárias, esses possuem recursos o suficiente para não se submeterem ao sistema penal.
O tráfico que é punido, é o tráfico da subsistência, é o tráfico da mãe, que para sustentar os
filhos se submete à lei paralela das drogas, é o tráfico da esposa que leva entorpecentes para o
presídio, para manter a dignidade do marido recluso. São os pequenos que figuram no banco
dos réus, enquanto o problema que tanto a sociedade quer combater, por escolha dessa mesma
sociedade, permanece em liberdade.
Já em relação à estigmatização oriunda pelo ingresso no cárcere, observamos que,
dentre as doze entrevistadas, nove temem ou já foram discriminadas em decorrência do
aprisionamento. Nota-se que a preocupação maior destas apenadas é a dificuldade em inserir-
se no mercado formal de trabalho, ideia essa que parece de acordo com o paradigma do

9
As “teorias de todos os dias” são as predisposições dos julgadores, legisladores e da sociedade em geral de
esperar daqueles que costumam cometer certas condutas, que as venham cometer sempre, realizando um pré-
julgamento em relação a determinados indivíduos apenas com base em suas posições sociais, ou suas
características psicológicas ou biológicas. A respeito ver BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 176-
177.

387
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

labelling approach10, principalmente no que diz respeito às consequências oriundas à reação


social projetada pela sociedade, frente aqueles indivíduos egressos do cárcere.
Em decorrência desse processo de estigmatização, além dos rótulos socialmente
atribuídos quando o indivíduo é identificado como infrator, as possibilidades legítimas de
manter suas rotinas convencionais vão esgotando-se, levando o desviante primário a uma
carreira criminosa, através de uma espiral que o leva a cometer novas infrações, pois o
cometimento da primeira lhe restringe as chances de manter-se respeitando o regramento
imposto, uma vez que a sociedade já não mais o vislumbra como um indivíduo normal e ele
próprio já construiu uma perspectiva diversa sobre a sua pessoa (BECKER, 2008, p. 42-44).
Dessa forma, passaremos a analisar alguns diálogos que julgamos mais expressivos a
fim de averiguar a realidade local comparada à realidade apontada pelos demais
pesquisadores, que foram fonte do referencial teórico aqui utilizado.

Pesquisadora: Teme ser discriminada quando sair?


Mãe 1: ( x ) sim ( ) não
Em relação ao trabalho. Meu companheiro dirige táxi e não consegue
o “carteirão” porque já teve “condena”. Ele mudou de vida e está
incorreto porque não consegue o “carteirão”.

Pesquisadora: Teme ser discriminada quando sair?


Mãe 4: ( x ) sim ( ) não
Já fui, quando saí. No posto de gasolina todo mundo ficava olhando,
cidade pequena, sabe. Mesmo sem algema, na rua um fala pro outro,
se afastam. Tentei achar serviço, mas não consegui, quando estava no
semiaberto. Não aguentei e foragi, fui pega em um passeio de sete
dias.

Pesquisadora: Teme ser discriminada quando sair?


Mãe 5: ( x ) sim ( ) não
A gente já é né.

Pesquisadora: Teme ser discriminada quando sair?


Mãe 5: ( x ) sim ( ) não
Com serviço, principalmente para começar do zero.

Pesquisadora: Quais as suas perspectivas para o pós-cárcere?


Mãe 6: Fazer enfermagem, quero cuidar das pessoas.
Abrir uma lancheria.
Não posso mais ser professora por causa da “condena”.

10
Expressão americana traduzida por alguns autores como teoria do etiquetamento (BARATTA, Alessandro.
Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002 e SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: R. dos Tribunais,
2011).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Em relação ao atendimento médico-pediátrico prestado pela casa, a maior parte


salientou ser inadequado, ou insuficiente, sendo feito seletivamente através de um pré-exame
realizado pelas funcionárias. Nesse sentido vejamos os seguintes depoimentos:

Pesquisadora: Você acha que o atendimento prestado pela Unidade


Materno Infantil é adequado?
Mãe 1: É bom. O problema não é o atendimento médico, são as
funcionárias. Quarta chamei a supervisora porque minha filha estava
ruim, mas eles disseram que o bebê estava bem, aí quando consegui
convencer elas de levar no médico ela já tinha feito pneumonia.

Pesquisadora: Você acha que o atendimento prestado pela Unidade


Materno Infantil é adequado?
Mãe 2: Não. As crianças ficam doentes e elas nem dão bola, no final
de semana ninguém dá importância.

Pesquisadora: Você acha que o atendimento prestado pela Unidade


Materno Infantil é adequado?
Mãe 3: Fraldas dão, roupa não é sempre, depende de doação e comida
é normalmente horrível. As funcionárias daqui são legais, mas no fim
de semana não tem pátio, não tem médico, eles só levam quando tem
febre.
Pesquisadora: Você considera que as crianças atendidas pela
Unidade Materno Infantil recebem todos os cuidados necessários?
Mãe 3: O pediatra nem sabe o que é pediatria. Só sabe dizer Sorine e
muito “mamá”. Esses dias minha bebê estava mal, eu pedi várias
vezes pra levar no médico e elas não queriam, aí levaram e me
disseram: “se não tiver quando voltar vai para o castigo”. Nesse dia a
bebê ficou baixada.
Aqui não tem despertador para dar remédio, tem que ficar acordada a
noite toda para não perder a hora.

Pesquisadora: Em relação aos filhos alojados na Unidade Materno


Infantil:
Recebem atendimento pediátrico?
Mãe 5: ( x ) sim ( ) não
É a mesma coisa que nada, ele não examina, só manda dar Sorine e
peito. Mau examina, manda dá Sorine e depois a gente leva no
hospital e vê que a criança está com bronqueolite. Ele só olha se a
gente fala. O meu bebê ficou com o ouvido infeccionado vários dias e
o pediatra nem viu, disse que não tinha nada.

O atendimento ginecológico/obstétrico também apresentou dados preocupantes,


como o caso da “Gestante 3”, que havia sido consultada apenas uma vez em sete meses e
meio de gravidez. Sobre o quadro funcional, fomos informados pela Assistente Social que na

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penitenciária, no que diz respeito ao atendimento direto às detentas trabalham apenas


mulheres, no entanto, para realização de escoltas, serviços de motorista e outros cargos que
realizam menor contato com as apenadas existem funcionários do sexo masculino.
Em relação às atividades laborais exercidas na penitenciária, salientamos que, na
unidade materno infantil, essas são bem limitadas em decorrência do cuidado que as apenadas
precisam despender às crianças. As opções de trabalhos ofertadas pela instituição, constituem,
em sua maioria, trabalho artesanal, que como já abordado anteriormente, reforça o caráter
submisso da mulher na sociedade e não a prepara para o mercado de trabalho atual, que cada
vez mais requer mão de obra especializada e qualificada. Dessa forma, essas mulheres, que já
não tinham uma fonte sólida de sustento por não terem conseguido um lugar no mercado
formal, continuam sem preparação alguma, o que, em conjunto ao estigma a elas atribuído
pela passagem no sistema prisional, acaba por dificultar ainda mais a sua reinserção na
sociedade.
Ao que diz respeito ao contato com demais membros da família, a situação relatada
se dá conforme segue:

Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de fazer algum


comentário ou deixar algum registro, a entrevistada relatou o que
segue:
Mãe 1: [...] a maioria não tem visita, o povo é meio que abandonado.
A família não vem muito.

Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de fazer algum


comentário ou deixar algum registro, a entrevistada relatou o que
segue:
Mãe 6: A gente passa a gravidez sozinha, estou bem abalada porque
daqui a pouco vou ficar sem o meu bebê.

Ao se analisar a situação do contato com a família, verificamos que cinco das


entrevistadas não recebe nenhum tipo de visita, vivenciando uma situação de isolamento e
desamparo. Ao decorrer da pesquisa percebemos que a maior parte das detentas que não
recebe visitas, vivencia essa situação por estar aprisionada na Capital e ter seus familiares no
interior, distanciamento que ocorre em decorrência da gestação, uma vez que, no âmbito do
Estado do Rio Grande do Sul, só a Penitenciária Madre Pelletier e a Penitenciária de Guaíba
possuem estrutura para receber gestantes e bebês. Assim, essas mães abrem mão de
cumprirem a pena em sua comarca de origem, submetendo-se a transferências para a Capital
ou para Guaíba.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Além do sofrimento causado pelo afastamento da família, outra circunstância que


gera tormento às apenadas é a situação em que se encontram os filhos deixados fora do
cárcere. Algumas carecem de informação, enquanto outras padecem ao saber que seus filhos
passam por diversas necessidades, não podendo contar com o amparo materno. Não são
poucos os relatos nesse sentido:

Pesquisadora: Frequência que vê os filhos:


Mãe 2: Visita assistida de dois em dois meses.

Pesquisadora: Frequência que vê os filhos:


Mãe 4: Não vejo. A de 10 anos faz 4 anos que eu não vejo.
Pesquisadora: Se não estão na Unidade Materno, com quem estão os
filhos?
Mãe 4: Uma com o pai e uma com a avó em Vacaria.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais
alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 4: Tenho uma filha de oito anos que quando eu fui condenada o
pai veio de Brasília, aí ela ficou com o pai. Ela mora em Brasília, com
ele. Eu falava com ela por telefone. Ela sofre muito, passa até por
psicólogo. Ela teve convulsão emocional. O pai não quer que eu fale
com ela, porque ela fica mal. Pra ela não adoecer eu não quis mais
ligar. Eu sinto bastante falta, por isso eu escolhi vir pra cá, pra não
perder o meu bebê.
A outra tá com a vó, ela levava pra me visitar, a vó tem auxílio-
reclusão. Agora ela nem me reconhece mais, chama a avó de mãe.
Agora a avó tem a guarda provisória dela. Aqui é muito longe.
[...]
A gente devia se fixar, se organizar, deixar o filho bem.

Pesquisadora: Quando questionada se queria registrar mais alguma


coisa ou contar algo importante, disse:
Mãe 7: O de um ano é uma barra, quando eu vim pra cá foi uma barra
para o meu esposo. A minha cunhada até ajuda. Teve uma vez que ele
ficou doente e meu esposo teve que ficar três dias sem trabalhar. Eu
sempre cuidei do meu filho, agora estou aqui e não posso cuidar.
Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças
no ambiente prisional?
Mãe 7: Se pudesse deixar em casa deixaria, mas fico com o bebê pra
amamentar e porque não tem ninguém pra cuidar dele.

Pesquisadora: Idade dos filhos:


Mãe 5: 20 anos, 18 anos (ele é deficiente, tem atrofiamento), 14 anos,
11 anos, 8 anos, 6 anos, 4 anos (essa de quatro nasceu da outra vez
que eu estava aqui), 8 meses.
Pesquisadora: Frequência que vê os filhos:
Mãe 5: Eu não vejo eles.
Pesquisadora: Se não estão na Unidade Materno, com quem estão os

391
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

filhos?
Com a avó.
Pesquisadora: Quais as suas perspectivas para o pós-cárcere?
Mãe 5: Cuidar dos meus filhos.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de fazer algum
comentário ou deixar algum registro, a entrevistada relatou o que
segue:
Mãe 5: Minha mãe tem 65 anos, os meus filhos precisam de mim.
Obs.: A Assistente Social informou que esta detenta já perdeu a
guarda de quase todos os filhos, ao quais estão em abrigos.

Pesquisadora: Frequência que vê os filhos:


Gestante 1: Aqui eu não vejo, a minha filha acha que estou viajando,
ela não sabe que eu estou aqui. Ela está com a avó materna.

Pesquisadora: Frequência que vê os filhos:


Mãe 8: Não vejo, eles tão num abrigo.

Pesquisadora: Se não estão na Unidade Materno, com quem estão os


filhos?
Mãe 1: Avó paterna.
Estou bem porque minha filha tá comigo, tive tempo para refletir. Eu
sei que meu filho tá bem, aí a gente fica bem.

Como podemos observar, a pena restritiva de liberdade acaba estendendo seus efeitos
à família das condenadas, em especial à pessoa dos filhos. Na composição atual das famílias
que integram nossa sociedade, o papel da mulher vai além do papel de mãe. Nessa nova
organização familiar, a mulher, além de cuidar dos filhos, provê o sustento e administra a
família. Quando o Estado a retira desse núcleo causa um problema estrutural, deixando essas
crianças sem recursos e sem cuidados, onerando, por muitas vezes, pessoas alheias à relação
familiar.
O isolamento gerado pela falta de procura por parte da família é somado ao fato de a
mulher ainda sofrer restrições em relação à visita íntima. É comum que as penitenciárias
femininas, ao contrário das masculinas, não disponham de local apropriado para a realização
dessa visita. Além da falta de estrutura, boa parte das prisões, através de seus regulamentos
internos, impõem uma série de restrições à entrada de parceiros das apenadas, fazendo-os
passar por procedimentos que não são observados em estabelecimentos prisionais masculinos.
Em certas instituições, a presa só pode receber visita íntima se for casada, o que se aplica a
minoria da população carcerária (ESPINOZA, 2002, p. 53). Assim, as apenadas padecem de
um conforto que o contato com seus entes queridos poderia vir a proporcionar-lhes.
Em relação à permanência dos filhos no cárcere, além da submissão dessas crianças

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ao ambiente prisional, as apenadas acabam tendo de se subordinar a um comportamento ainda


mais submisso, tendo que, por vezes, aceitar situações que lhes desagradem, sob pena de
quando proferirem reclamações, serem privadas dos filhos. A administração aduz que age
com tal rigor a fim de proteger as crianças, evitando brigas e maus comportamentos dentro do
ambiente da “creche”. Ilustrando tal situação, salientamos os seguintes diálogos:

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Gestante 2: O bebê nasceu aqui, quando ele estava com três meses
elas queriam dar o berço, mas eu não quis, aí elas me tiraram ele.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais
alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Em relação ao filho que foi embora:
Gestante 2: Acho ruim, sofri muito quando ele foi embora.
O nenê era novinho, não ficava no berço. A creche é para as crianças,
ele não dormia longe de mim. Ele já pegava mamadeira, foi para um
abrigo e depois minha irmã pegou ele com 7 meses.

Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais


alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 1: [...] Se tu tem três registros no livro, perde o bebê.

Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais


alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 8: Qualquer briguinha perde os filhos.

Por fim, destacamos a opinião das detentas em relação à presença das


crianças em uma unidade prisional, bem como o abalo psicológico que
estas sofrem quando o bebê precisa ir embora:

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Mãe 1: Terrível, devia ter uma domiciliar. Aqui é úmido, a gente
precisava de acompanhamento, tinham que nos dar oportunidade.
Pesquisadora: Qual procedimento você julga adequado a ser tomado
em relação aos filhos das apenadas?
Mãe 1: Domiciliar com acompanhamento para cuidar dos filhos,
quem não é acompanhada volta para o crime.

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Mãe 4: Penso em mandar pra casa, não é lugar pra ninguém aqui, eu
errei, ele não tem que estar preso, não tenho com quem deixar ele, se
não ele não estaria aqui.
Pesquisadora: Qual procedimento você julga adequado a ser tomado
em relação aos filhos das apenadas?
Mãe 4: Aqui não tem caso gravíssimo, é só fuga e nada, devia ter

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

domiciliar.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais
alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 4: [...] Decidi ficar com ele, mesmo que ele me culpe. Desde
pequeno eles já carregam que foram preso, eles pagam pelos nosso
erros.
Eles deviam dar oportunidade pras pessoas.
A gente espera, espera, ninguém olha por nós, algumas merecem.
Que deem uma domiciliar, a brigada que passe nas casas pra cuidar.
A gente devia se fixar, se organizar, deixar o filho bem.

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Mãe 7: Se pudesse deixar em casa deixaria, mas fico com ela pra
amamentar e porque não teria ninguém para cuidar dela.
Pesquisadora: Qual procedimento você julga adequado a ser tomado
em relação aos filhos das apenadas?
Mãe 7: Domiciliar, rígida. Aqui é triste sem ter a família.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais
alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 7: Não queria estar com ela aqui, se tivesse quem cuidasse não
gostaria de ver ela aqui dentro. Eu acho que pra ficar com os filhos
eles podiam botar aquelas tornozeleiras, sabe?

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Mãe 6: Ela tem asma. Aqui é assim: estrutura pouca, vontade
bastante. Não é o mesmo desenvolvimento que ela teria na rua.
Pesquisadora: Qual procedimento você julga adequado a ser tomado
em relação aos filhos das apenadas?
Mãe 6: Prisão domiciliar até um ano, aqui não tem remédio nem
psicológico.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais
alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 6: Chorando: “Não tinha que separar a gente, eu lutei pra ficar
com ela, vim pra cá pra ficar com ela até o fim. Eu ia até o fim do
mundo pra ficar com ela. Tem mãe que manda o filho embora, eu não.
Faltam quatro meses. Vai ser uma eternidade longe dela.
Fim do mês ela faz um ano, vai ter festinha aqui. Não é motivo de
festa porque ela vai ter que ir embora, mas precisa registrar. Não podia
ser separada do filho, arranca um pedaço. Parece que ela tá sentindo,
sabe? Depois que ela for embora eu só vou ver ela duas vezes por
mês. A criança vai embora e que se vire. Não tem atendimento
psicológico pra gente.

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Gestante 1: Por um lado é bom, por outro é ruim. É bom pra a mãe, é
ruim pra a criança. Já vai nascer preso.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais


alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 8: Aqui tem muita briga, não é bom para criança. [...] Guaíba é
bom pras crianças, mas ruim pras apenadas. É frio e fica longe da
família.

Pesquisadora: Qual procedimento você julga adequado a ser tomado


em relação aos filhos das apenadas?
Gestante 2: A cadeia não é bom para a criança, mas tem a FASE,
podia ter algo parecido, por um tempo, mas o nenê ficaria mais a
vontade.

Pesquisadora: O que você pensa a respeito da presença de crianças


no ambiente prisional?
Mãe 3: Não é ambiente para criança, mas o bom é que elas tão com a
gente. Passa os dias mais rápido e é a única alegria de estar presa.

Tanto para as crianças, como para as mães, a situação da “creche”, da forma que se
dá hoje, é extremamente inadequada. As crianças encontram-se em um local úmido, sujeitas
às brigas que ocorrem entre as detentas e a um ambiente totalmente hostil, que apesar de ser
diferenciado do restante da penitenciária, não perde seu caráter institucional e seu perfil
prisional. As mães e bebês carecem de atendimento especializado, alimentação adequada e
amparo familiar, o que vai contra toda e qualquer percepção de humanidade, ferindo,
drasticamente, a Dignidade da Pessoa Humana, fundamento do Estado Democrático de
Direito, que é a diretriz maior para a aplicação e efetividade das normas (SARLET, 2008, p.
63-68).
Logo, os castigos corporais que tanto nos orgulhamos de termos extinguido de
nossos sistemas de controle, se fazem presentes. A pena de prisão, com a privação de ar, de
sol, de luz, de espaço; o odor, a cor da prisão, as refeições sempre frias, a falta de atendimento
médico, a proliferação das doenças, todos esses são fatores que degradam o corpo
(HULSMAN, 1993, p. 62). Assim, mães e crianças são sujeitas a essa modalidade de tortura
física, que mascarada por detrás de um processo no qual o acusado, devidamente julgado,
merece a pena que recebeu, fazem essa degradação corpórea aceitável. Os esforços para
infligir apenas uma pena justa, criam esses sistemas rígidos, insensíveis às necessidades
individuais (CHRISTIE, 1984, p. 7), permitindo que situações como essas se concretizem sem
causar estranheza.
Além de todas as limitações já expostas, a restrição do desenvolvimento de crianças
a um local restrito e sem o devido acompanhamento familiar é tão prejudicial porque, como
nos ensina a psicologia, é nos primeiros anos de vida que se vislumbram as principais fases de

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

desenvolvimento dos indivíduos, é nesse período que, através de fatores hereditários e


ambientais, é alicerçado o aparelho psíquico do ser humano, bem como são atribuídas as suas
principais habilidades motoras e a sua capacidade sensorial (TRINDADE, 2004, p. 59-75).
Dessa forma, só estará amplamente resguardada a dignidade prevista no art. 227 da
Constituição, quando o desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial desses infantes
estiverem preservados e não submetidos a um ambiente repreensor e isolado, como o dos
estabelecimentos prisionais.
Além disso, as mães, que já estão com seu sistema psíquico abalado, acabam
sofrendo mais um trauma quando separam-se prematuramente dos filhos, perdendo o último
contato familiar que mantinham dentro do cárcere, ferindo, também nesse sentido, a dignidade
dessas mãe, causando-lhes desnecessário sofrimento (se é que se pode dizer que algum
sofrimento imposto seja necessário). Por todas as fragilidades aqui apontadas, não há como
sustentar-se uma justificativa para a maneira em que se dá o cumprimento de pena por
mulheres que passam pela experiência da maternidade. O aprisionamento acaba se tornando,
como bem sustenta Christie (1984, p. 39-40), um aparelho intensificador da dor, que não
possui funcionalidade alguma a não ser a de causar sofrimento.
Estas mães, que acabaram delinquindo, no mais das vezes, por serem oriundas de
estratos mais baixos da população, tendo suas chances de desenvolvimento econômico-social
reduzidas, além de sofrem por este primeiro “descaso” estatal, acabam sofrendo, novamente,
uma intervenção impensada, que desmorona suas famílias e traz seus filhos ao encontro de um
sistema opressor e segregatício. Dessa maneira, ao impor a pena restritiva de liberdade, o
Estado “cria” um novo problema: a institucionalização dessas crianças, bem como a falta de
suporte para que estas se mantenham longe das mães.
Assim, como pode-se observar através dos relatos, os problemas que chegam à
penitenciária, antes de serem penais, são sociais. Nesse sentido, toda a seleção realizada pelo
sistema penal, aludida pelos autores que embasam esse trabalho, se concretiza na
Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Resta muito claro que a população ali encarcerada é
oriunda dos estratos mais débeis da sociedade, os quais são eleitos, pela coletividade, como
indesejáveis, podendo ser “eliminados” através do cárcere.
Por conseguinte, aquele que não pode comprar o que a televisão vende, ou aquele
que comercializa a felicidade plena que a droga oferece, em um mundo no qual, se não somos
felizes em tempo integral, não temos uma vida digna, deve ser esquecido nas masmorras de
nossos presídios. Nas palavras de Deleuze,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça


impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de
rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a
disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não
é mais o homem confinado, mas o homem endividado (DELEUZE,
1992, p. 219-226).

Assim, nessa sociedade de controle que se forma, na qual a empresa substitui a


fábrica em seu modelo de contínuo e eterno aperfeiçoamento do indivíduo, aqueles que não
conseguem seguir nessa carreira, que introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como
motivação que contrapõe os indivíduos entre si, não conquistam um lugar no mercado de
trabalho e na sociedade de consumo. Frente a isso, o que ocorre é uma nítida “higienização”
da população, na qual se faz uma “faxina” onde se excluí aqueles que veem, pela televisão, o
mundo que não existe e que resta conquistar, mesmo que pela violência, fazendo com que
incida sobre estes o controle penal, tirando da sociedade, aqueles que não lhes servem, por
não fazerem parte da lógica do consumo.
Assim, “em sociedades loucas por higiene, quem representa a sujeira não pode ter
outro destino que não a eliminação” (ROSA, 2006, p. 22). No entanto, muitos delitos
consistem apenas na tentativa de se dizer algo. Assim, em vez de isolar essas pessoas através
da pena restritiva de liberdade, deveríamos entender suas ações violentas como oportunidade
para o início de um diálogo, ao invés de submetê-las a uma resposta igualmente torpe às ações
desaprováveis que cometeram (CHRISTIE, 1984, p. 15).
Portanto, o que se pode concluir, de forma muito superficial, é que os ambientes
prisionais não estão preparados para receber crianças e que, mesmo que contassem com boa
estrutura para abrigá-las, ainda assim não seriam a resposta mais adequada para a solução da
maternidade no cárcere. Pensamos que, diante de uma condenação dirigida a uma mãe,
imprescindível se faz que o sistema penal conheça seus diversos efeitos e que o julgador
conheça a realidade de quem está julgando e a realidade dos locais aos quais a condenação
exporá as apenadas, bem como seus filhos (HUSLMAN; CELIS, 1993, p. 77). Só assim,
crianças não seriam submetidas a um processo de institucionalização e exposição ao cárcere,
bem como não se formariam novos problemas sociais, oriundos dos primeiros que levaram
essas mães a uma carreira desviante.
Deste modo, encerramos a análise do contexto prisional da Unidade Materno-Infantil
da Penitenciária Feminina Madre Pelletir, no entanto, salientamos que, por maior que tenha
sido nosso esforço, essas singelas páginas demonstram apenas uma pequena parcela de tudo
que foi observado no campo. Além da falta de estrutura, do sofrimento, do tédio e da dor da

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

separação os dias passados na penitenciária nos deixaram clara a ideia de que um novo
sistema se faz necessário e que a mudança deve partir de cada um de nós. Talvez esse tenha
sido o momento de nosso “salto mortal”, conforme bem salienta MARCO SCAPINI (2012, p.
08), na leitura de Louk Husman.

3. Considerações Finais

Ao projetarmos esse trabalho acreditávamos que nos basearíamos sobremaneira no


garantismo penal de Ferrajoli, no entanto, ao conhecer a realidade prisional e ao termos
contato com as ideias abolicionistas, o foco de nossos estudos se distanciou de tal referencial
teórico. Passamos a perceber que o sistema prisional, por mais humano que possa vir a ser um
dia (se é que isso é possível), não se trata de uma resposta adequada aos problemas sociais
que encontramos hoje.
Afirmamos isso porque o sistema carcerário elege, entre os mais miseráveis, aqueles
que não lhe interessam, que deseja excluir ou isolar. Tal afirmação se solidifica quando
averiguamos a chamada “cifra oculta” da criminalidade, que demonstra, de forma clara, que a
maior parte dos atos considerados crimes pela lei penal não são alvo da incidência de seu
controle, acabando nas prisões somente aqueles que não tem recursos suficientes para escapar
do poder punitivo. Dessa forma, o cárcere estigmatiza aqueles que por ele têm passagem, os
quais já eram oriundos de um processo de exclusão, negando-lhes, mais uma vez, um lugar ao
sol quando os põem em liberdade rotulados como egressos do sistema criminal.
Dessa forma, o aprisionamento não cumpre com função alguma. Não inibe o
cometimento de novos delitos, uma vez que a maior parte deles acaba impune; não
ressocializa o infrator, já que o institucionaliza e o “etiqueta” como indesejável ou criminoso;
e não o impede de realizar novos crimes, uma vez que, como bem sabemos, muitos presos
continuam a exercer suas condutas ilícitas, mesmo dentro das prisões. Assim, a pena restritiva
de liberdade só cumpre um papel: infligir dor àqueles que a sociedade de consumo não pode
utilizar como potenciais compradores.
Toda essa irracionalidade se mantém, e se mantém de maneira sólida, passando por
cima até mesmo da dignidade de crianças totalmente alheias a esses castigos impostos, porque
a sociedade não consegue enxerga-la. Não a vê porque não é agradável dizer que distribuímos
dor, então distribuímos sanções. Não a vê porque aquele a quem se pune não está próximo
daquele que está sendo punindo. Não a vê porque os meios de comunicação em massa não a
mostram, apenas divulgam em seus outdoors os não-sujeitos de consumo como os grandes

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vilões, que devem ser castigados a fim de proteger os cidadãos de bem, que no fim do mês
têm condições para adquirir os produtos de suas patrocinadoras.
Assim, uma cultura punitivista se solidifica e mesmo quando deflagrada a
desumanidade dos ambientes prisionais, a população esmorece apenas no sentido de que
deveriam ser reformados os presídios. Não se reflete se esse investimento não seria melhor
utilizado para tratar dos problemas sociais que inundam as prisões. Não se fala que mesmo em
países com penitenciárias exemplares a reincidência e a criminalidade se dão em números
muito semelhantes aos nossos. A sociedade não se permite aceitar que existem outros
métodos de se resolver os conflitos sem dispor da violência da institucionalização.
Dentro da micro realidade analisada pudemos averiguar uma alta incidência de
delitos oriundos do tráfico de drogas (isso para não se dizer que vislumbramos apenas esse
tipo de delito). Mas com que tipo de tráfico nos deparamos? Fomos apresentados ao “tráfico
social”, ao “tráfico da subsistência”. Como punir esse tipo de crime, que se origina na vontade
de manter-se vivo, no intuito de sustento? Como aprisionar mães por tentar sustentar seus
filhos? Somente através de uma irracionalidade cega que podemos considerar a pena restritiva
de liberdade como meio idôneo de resolver esse tipo de situação.
E a conclusão a que chegamos não foi uma resposta, foi um questionamento: por que
não investimos em uma rede social sólida em vez de causar mais problemas sociais com o
encarceramento de mães, que além de mães/mulheres/pobres, são arrimos de família? Em
busca dessa resposta, só pudemos concluir que a mudança deve ser total e não parcial, que
uma reforma não é suficiente, mas apenas a exclusão de um sistema que somente causa
problemas, no lugar de solucioná-los, é capaz de diminuir a imposição de tantos sofrimentos.
Assim, filiarmo-nos a uma ideologia que oferece a mudança através de da adaptação
do sistema existente não nos parece suficiente. Reformar o que se tem é, para nós, reforçar a
legitimidade de um Direito Penal que seleciona, estigmatiza e isola seus clientes – as camadas
inferiores da sociedade. Dessa forma, acreditamos que apenas negando o modelo atual e
tentando formas totalmente diversas, alcançaremos a verdadeira mudança.
Há quem diga que essa perspectiva é utópica, inalcançável e que ignora os problemas
imediatos. No entanto, as mudanças concretas só ocorrem quando dadas de forma radical,
desprendidas dos antigos paradigmas. Portanto, se não acreditarmos na utopia estaremos
estanques a um reformismo limitado, que provavelmente nunca venha a atacar o cerne do
problema. Portanto, não vislumbramos impedimentos que obstaculizem uma solução humana,
quando esta é possível. Não há motivos para fazer dos casos insolúveis a regra, quando se
pode resolver boa parte das situações de forma mais branda e mais eficiente.

399
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Acreditamos que essa forma, como bem sustentam Mathiesen, Christie e Hulsman, é
realizável através da aproximação das partes, em um cenário público alternativo “onde a
argumentação e o pensar escrupuloso sejam valores dominantes; um espaço público com uma
cultura diferente que no final possa competir com o espaço público superficial dos meios de
comunicação de massa” (MATHIESEN, 2003, p. 108). Por fim, entendemos que a extensão
das penas aos filhos de apenadas vai contra todos os valores predominantes em nossa
sociedade e em nosso ordenamento, mas só se concretiza porque se dá prioridade a um castigo
irracional, em detrimento da dignidade dos seres.

400
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

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403
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A REALIDADE CARCERÁRIA

THE PRISON REALITY

Denise Hammerschmidt
Gilberto Giacoia

RESUMO: Este texto objetiva propiciar uma leitura crítica no âmbito da execução penal, de
modo a orientar o intérprete, sob inspiração do permanente contraste entre o conteúdo
técnico-jurídico da norma e as mazelas carcerárias, a sempre mediar a distância entre o
modelo proposto e o efetivamente implementado, de modo a cobrar, cada vez mais, reformas
racionais no modo de condução de um dos processos mais complexos do ordenamento
jurídico. Cuida, pois, destas distorções estruturais, vistas sob viés histórico, voltado à
cobrança de um sistema humanitário, centrado na condição de dignidade do recluso, enquanto
pessoa humana. Esse balanço entre o normativo e o estrutural, o teórico e o prático, o virtual e
a realidade, no contexto do complexo ambiente penitenciário, se faz sempre impositivo para a
concepção de políticas públicas de segurança. Assim, sob encaixe na área da criminologia e
sociologia criminal, busca o artigo enfatizar, no marco teórico da temática da execução penal
digna, pela objetiva do retrospecto histórico das políticas de estratégias repressivas e de suas
perspectivas a partir da aguda crise da prisão que a abate, seus graves efeitos sobre a
personalidade do recluso, pontuando como tem atuado em quase todo mundo como fator
criminológico, tudo derivado das adversas condições materiais e deformação psicológica à
pessoa submetida a tratamento carcerário, com afetação à dimensão de sua dignidade humana.
Seu conteúdo crítico tenta indicar o claro diagnóstico atual do cárcere, extraindo o sentido
prático de melhor compreender os mecanismos pelos quais a pena vive um constante e
incessante processo de busca de legitimação, invariavelmente sem melhor êxito ideológico.

ABSTRACT: This paper aims to provide a critical reading about the penal execution, in order
to guide the reader, under the inspiration of the permanent contrast between the technical and
legal content of the law and the woeful situation of prison, to always mediate the distance
among the proposed model and the one effectively implemented, in order to charge more and
more rational reforms in how to conduct one of the most complex procedure of the legal

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

system. It revolves about these structural distortions, allied with an historical view, geared to
the recovery of a humanitarian system, focused on the condition of the prisoner's dignity as a
human being. This balance, between normative and structural, theoretical and practical,
virtual and reality, in the context of the complex prison environment, must always occur for
the conception of public security policies. Therefore, dealing with criminology and criminal
sociology areas, the article seeks to emphasize, on the theoretical framework issue of the
dignified criminal enforcement, by the historical retrospective of the repressive strategies and
its prospects, from the acute crisis of the prison system, its serious effects on the personality
of the prisoner, pointing the worldwide action as a criminological factor, derived from all the
adverse material conditions and psychological strain to the person submitted to custodial
treatment, reflecting on the measurement of his human dignity. Its critics contents seek to
indicate a clear diagnosis of the current prison, extracting the practical sense of an accurate
understanding of the mechanisms, by which the penalty is experiencing a constant and
unremitting process of self-legitimation, invariably without a ideological growth.

PALAVRAS-CHAVE: Execução penal. Sistema penal. Cárcere. Direitos humanos. Prisão.

KEYWORDS: Criminal Enforcement. Penal system. Jail. Human rights. Prison.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. TENDÊNCIAS DE CRISE DO SISTEMA PENAL. 2.


PASSADO DA REAÇÃO PENAL. 3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PENA A PARTIR DA
APARIÇÃO DA PRISÃO. 4. ABORDAGEM TEÓRICA DE ERVING GOFFMAN. 5.
CRISE ATUAL DA PRISÃO. 6. ADVERTÊNCIAS CONCLUSIVAS. 7 BIBLIOGRAFIA.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

INTRODUÇÃO

Um Manual de Execução Penal não comporta uma leitura puramente técnico-


jurídica. Será sempre prudente, na interpretação de uma Lei de Execução Penal –
especialmente como a nossa, de natureza progressista, pois abarcando propostas e institutos
mais modernos, de orientação humanista, de forma a se destacar, em comparação com outras
inclusive de nações de mais antiga tradição jurídica -, contrastar sua estrutura formal com as
conhecidas mazelas carcerárias. Enfim, ter em mente a distância entre o modelo proposto e o
implementado, de modo a cobrar, permanentemente, reformas racionais no modo de condução
de um dos processos mais complexos do ordenamento jurídico. Afinal, o estágio da execução
acaba, muitas vezes, por reproduzir a estrutura social injusta de um país, rotulando, do
resultado, anomalias individuais que sujeitam um segmento expressivo da sociedade à
infelicidade, além de não protegê-la adequadamente. Este capítulo cuida, pois, dessas
distorções, vistas sob viés histórico, ainda que com ligeiras notícias, apenas no propósito de
não deixar fora da tratativa execucional sua real crise de efetividade, voltado à cobrança de
um sistema cada vez mais humanitário, centrado na condição de dignidade do recluso,
enquanto pessoa humana, gênero que acena à dimensão de verdadeira majestade moral. Da
virtualidade à prática, há, pois, o mundo real da pena, que não pode ser desconsiderado em
qualquer reflexão excecucional.

1.Tendências de crise do sistema penal

Os objetivos do sistema penal não estão sendo alcançados em todo mundo, apesar dos
avanços tecnológicos mais sofisticados. A administração do regime penitenciário, para a
execução da pena privativa de liberdade por meio da prisão, desvia-se cada vez mais das
metas idealizadas. Assim, apesar das legislações estabelecerem propostas de reabilitação do
preso, não passam elas, geralmente, de mitos que compõem a enorme lista de declarações
retóricas, sem muito sentido de eficácia. Pelo contrário, tais ficções acabam, devido a sua
inaplicabilidade prática, por produzir os fenômenos da estigmatização carcerária e da
reincidência que compõem o drama trágico e as consequências nefastas da vida na prisão.
Esta tendência mostra-se clara ao longo do tempo e é melhor percebida a partir de
uma breve resenha histórica das origens da prisão, dos efeitos nocivos que a pena privativa de
liberdade produz no recluso, em sua familia e na sociedade em geral. Desde a perspectiva do
interacionismo simbólico e especificamente do conceito de Instituição Total, proposto e

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

desenvolvido por Erving Goffman ainda em 1961, pode-se observar os propalados fins
utilitários de reabilitação e reinserção social apenas propostos pelo Estado repressor, mas
difícilmente atingidos.
Fatores psicológicos e sociológicos compreendidos no desenvolvimento de um
tratamento em recinto fechado, sem possibilidade de saída, comunicam-se com os valores ali
dominantes e acabam por criar um ambiente antagônico às relações próprias da vida em
liberdade. Em outras palavras, o mau uso da prisão, além de gerar distorsões entre políticas
criminais e programas de governo que se dizem democráticos, ergue muros intransponíveis
entre a prisão e a sociedade livre, de modo a se manter a verticalidade que, tradicionalmente,
sustenta o status quo.

2 Passado da Reação Penal

A história da pena, pode-se afirmar, acompanha a da humanidade. No entanto, a


prisão não existiu sempre1. Somente bem mais tarde é que o cárcere surgiu como forma de execução
da pena privativa de liberdade.
Mas, em função disso, o Direito Penal foi o precursor de todas as outras ramificações
do Direito por referir-se às normas de condutas da sociedade vinculadas a valores relevantes,
aos respectivos atos tipificados como delitos e às sanções correspondentes e suas diversas
formas de aplicação.
No começo, detinham-se as pessoas pelos pés, mãos, pescoço. Os homens e os outros
animais, do mesmo modo, eram atados, amarrados, acorrentados. De fontes zoológicas
provém a utilização da detenção. Cavernas, tumbas subterrâneas, trincheiras, torres, tudo
servia para deter.
O Direito não era escrito, imperando os costumes. Só depois que se estruturaram os
Códigos seguindo sempre as ideologias dominantes em cada época, protegendo bens e direitos
dos detentores do poder, tal qual ocorre ainda hoje.
No que concerne à evolução da pena, destacam-se, na história do Direito Penal,
algumas fases, como a da vingança privada, divina e pública. Estes períodos não se seguem de
forma linear, devido ao fato de se misturarem, na história, as definições conceituais que
confundiam direito e moral, delito e pecado, religião e Estado.
A prisão religiosa ou eclesiástica, por exemplo, que era destinada aos clérigos
rebeldes e se inspirava nas ideias de caridade, redenção e fraternidade pregadas pela Igreja,
dava ao internamento um sentido de penitência e meditação. Importava no recolhimento dos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

infratores em determinada ala de monastérios, para despertar o arrependimento do pecador


através da oração e penitência. Mais tarde, estes lugares de segregação dos eclesiásticos foram
destinados aos herejes. Esta cela difundiu fluxos arquitetônicos e psicológicos que ainda
permanecem2. Com o tempo, o poder dos pontífices começou a debilitar-se. A Igreja, com o
risco de não sobreviver, contraiu-se e o poder dos políticos aumentou. A aplicação dos
castigos de ordem penal passou, então, diretamente à responsabilidade do poder estatal.
Portanto, os fatos contra a ordem institucional e o castigo correspondente a quem os
praticassem, variavam de acordo com as concepções morais e as condições de vida de um
dado momento. A evolução histórica dos conceitos de crime e pena foi deixando, assim, no
decorrer do caminho que traçou ao longo do tempo, marcas profundas notadamente no mundo
ocidental.

3 Evolução Histórica da Pena a partir da aparição da Prisão


Na segunda metade do século XVI, houve um movimento de grande transformação
no emprego das penas privativas de liberdade. Alguns antecedentes históricos indicam que se
pode localizar uma incipiente ideia de cárcere no ano1600 em resposta à alta demanda de
trabalho e escassa mão de obra verificada mais intensamente no século XVII. Seria, então,
absurdo manter regular aplicação de penas corporais a delinquentes, como pena capital, ou
inutilização de partes do corpo que os dificultassem ou impossibilitassem o trabalho. Portanto,
a prisão, em suas origens, em nada se aproxima dos objetivos atuais da privação de libertade.
Já no final do século XVI, os métodos punitivos começaram a experimentar lentas,
mas profundas mudanças. O interesse por explorar o trabalho do preso, enquanto durasse a
pena, passou a ser a principal meta. Escravidão, galera, deportação, servidões de trabalho
forçado se apresentavam como formas de castigo de fim econômico que interessavam aos
detentores do poder.
Estas mudanças não foram resultado de considerações humanitárias, mas sim de um
certo desenvolvimento financeiro que mostrava o potencial valor econômico do aparelho
repressivo3. Vê-se, portanto, a correlação entre poder econômico e encarceramento. Como
pontuado por George Rusche e Otto Kirchheimer: “Já assinalamos que a reforma do sistema
punitivo encontrou terreno fértil somente quando princípios humánitarios coincidiram com as
necessidades econômicas da época”.4
Entre o século XVII e princípio do século XVIII, em virtude dos distúrbios sociais
sucedidos na Europa como resultado da crise do sistema feudal e da economia agrícola,

408
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

muitos saques passaram a ocorrer nas cidades e incêndios nos povoados e vilarejos. As
intensas guerras verificadas nesse período provocaram redução da população e miséria cada
vez maior. Daí o surgimento em grande escala de vagabundos e mendigos nos arredores das
cidades. A prisão, portanto, em seu desenvolvimento histórico, não foi criada propriamente
com o propósito de encarcerar delinquentes. A privação da libertade como espécie de castigo
institucionalizado pelo Direito Penal aparece somente há cerca de duzentos anos, no século
XVIII, ou seja, no apogeu da Revolução Industrial, mais para regular mercado de trabalho,
produção, consumo de bens e proteger a propriedade da classe dominante.
Em “Vigiar e punir: história do nascimento da prisão”, publicado na França em
1975, Foucault começa sua narração com a reprodução de uma tortura acontecida em 1757,
em Paris, menção que associa castigo à tortura pública, característica que mais tarde, segundo
ele, se modificou. É então a partir do término da tortura do corpo como castigo que surge
outra forma de punição, segundo o mesmo Foucault:

“o corpo se encontra aqui em situação de instrumento ou de intermediário; se se intervém


sobre ele enclausurando-o ou fazendo-o trabalhar, é para privar o indivíduo de uma
liberdade considerada às vezes como um direito e um bem. O corpo, segundo esta
penalidade, fica vinculado a um sistema de coação e de privação, de obrigações e de
proibições. O sofrimento físico, a dor do corpo são os elementos constitutivos da pena.”

Mas há quem, ao contrário, sustente que as prisões dos criminosos surgiram como
reação à natureza bárbara e aos excessos das penas anteriores: a prisão teria sido uma das
formas mais adiantadas de abolição das sanções penais tradicionais5.
Outros, como Melossi e Pavarini6, apoiam a tese de surgimento da prisão relacionada
ao sistema capitalista de produção e trabalho:

“de fato, antes de impor a pena de privação de liberdade, os ordenamentos penais


continham um emaranhado sistema de sanções que sacrificavam alguns bens dos culpados;
a riqueza com as sanções pecuniárias; a integridade física e a vida com as penas corporais
e a pena de morte; o horror com penas infamantes, etc.. Mas não consideravam a perda da
liberdade por um certo período um castigo apropriado para o crime, e isso porque
simplesmente a liberdade não foi tomada como um valor cuja perda poderia considerar-se
um sofrimento ou um mal. Certamente, já existia a prisão como um simples lugar de
custódia onde o imputado esperava o processo. Antes da chegada do sistema capitalista de
produção ainda não existia a prisão como lugar de execução da pena propriamente dita
que consistia, como se demonstrou, em algo distinto da privação de liberdade. Somente
com a aparição do sistema de produção, a liberdade adquiriu um valor econômico”.

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Na obra desses autores “Cárcel y Fábrica” (1977), traduzida para o castelhano em


19807, critica-se a chamada pena correcional, concebida, na verdade, em sua essência, muito
mais para disciplinar ou, antes, “domesticar” as pessoas excluídas do pacto social (escravidão
da racionalidade capitalista). Mais adiante Massimo Pavarini atualiza o texto assinalando que
a reforma penal no mundo ocidental, desde a metade do século XX, dirigiu-se “mais para o
horizonte da detenção (Scull 1977), como destino necessário e favorável”, chamando, então,
“prisão sem fábrica” ao movimento de

“alternativas ao processo penal, penas substitutivas, benefícios penitenciários, que


marcam o percurso reformista e progressivo de liberação da necessidade da prisão. O
objetivo de reintegração do condenado já não necessita de práticas correcionais na prisão,
mas sim requer que a „comunidade‟, o social, se encarregue do desviado”8

É interessante esta visão do autor italiano, por meio da qual conjectura ser a prisão
um meio de controle e dominação manipulado pelo mercado de trabalho, de modo a gerar
mão de obra barata, obrigando homens livres e trabalhadores a aceitar qualquer trabalho e
salário. Estes são mais ou menos os princípios que regem a chamada Criminologia crítica ou
radical, de inspiração marxista, segundo os quais o delito depende do modo de produção
capitalista. A lei seria parte essencial da estrutura do sistema de produção e legitimaria a
violência econômica por parte de quem detém o poder. O Direito, por sua vez, seria ideologia
e não ciência e os que trabalham com ele instrumentos desta ideologia. O conceito de crime
estaria associado à violação de um sentimento de solidariedade, e o delito mais grave seria a
exploração de uma das maiores riquezas da pessoa humana, a mão de obra do trabalhador9.
Rusche e Kinchheimer, na obra de sua autoria antes citada, sustentam esse
entendimento. Meio de produção e mercado de trabalho em uma sociedade capitalista
dependem de um sistema punitivo ou a ele estão estreitamente vinculados.
Desde esta perspectiva, portanto, qualquer proposta para melhorar a vida no interior
da prisão só seria possível com a transformação total da estrutura econômica e política de toda
a sociedade.
Diversas tendências teóricas, de corte crítico, seguiram-se a esse pensamento na
mesma linha da Criminologia crítica, como as teorias da desviação ou de sistemas, Direito
Penal do risco, Criminologia da vida cotidiana, garantismo jurídico, todas tentando explicar
o funcionamento do sistema penal por diferentes visões da hierarquia de valores sociais, pelos

410
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

quais tentam justificar a intervenção penal também por distintas concepções que, aqui,
obviamente pelos limites do texto, não serão desenvolvidas.
Não se pode negar, entretanto, o valor de referidas colocações à compreensão
histórica da prisão, segundo sua linha evolutiva.

4 Abordagem teórica de Erving Goffman


É a partir do processo histórico já antes indicado que se pode melhor compreender o
conceito de “instituições totais”, que se mostra cada vez mais importante e influente no
encaminhamento das políticas públicas penitenciárias:

“Uma instituição total pode definir-se como um lugar de residência e trabalho, onde um
grande número de indivíduos em igual situação, isolados da sociedade por um período
apreciável de tempo, compartilham na clausura uma rotina diária, administrada
formalmente”.10

Bem interesante a exposição de Goffman sobre as instituições totais de nossa


sociedade:
“podem classificar-se, genericamente, em cinco grupos. No primeiro há instituições
fundadas para cuidar de pessoas incapazes, mas ao mesmo tempo inofensivas: como asilos
para cegos, idosos, órfãos e indigentes. Num segundo grupo estão as destinadas ao
tratamento daquelas pessoas incapazes de cuidarem de si mesmas além de constituírem
ameaça involuntária para a comunidade, tais como: hospitais para doentes infecciosos,
hospitais psiquiátricos. Um terceiro tipo de instituição total - e é a que nos convoca ao
desenvolvimento deste trabalho - é a organizada para proteger a comunidade contra
aqueles que constituem intencionalmente um perigo para ela, não se propondo como
finalidade imediata o bem estar dos reclusos: pertencem a este tipo as prisões, os
presídios, os campos de trabalho e de concentração. No quarto grupo encontram-se
aquelas instituições deliberadamente destinadas ao melhor cumprimento de uma tarefa de
caráter laboral, como os quartéis,..., as escolas de internos. Finalmente, estão os
estabelecimentos de caráter religioso.11

Nas instituições totais,

“todas as etapas das atividades diárias estão estritamente programadas, de modo que uma
atividade conduz a um momento prefixado ao seguinte, e toda a sequência delas se impõe
desde cima, mediante um sistema de normas formais explícitas e um corpo de
funcionários... Os internos moram dentro da instituição e têm limitados contatos com o
mundo além das quatro paredes ”12

411
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Com respeito às atividades desenvolvidas pelos reclusos no interior dos recintos


penitenciários, Goffman, demonstra que

“às vezes se lhes exige tão pouco trabalho que os internos, com frequência não habituados
aos pequenos afazeres, sofrem crises de aborrecimento/tédio... Haja muito trabalho, ou
muito pouco, o indivíduo que internalizou um ritmo de trabalho fora dali tende a
desmoralizar-se pelo sistema de trabalho da instituição total”.13

E ainda:
“As instituições totais caracterizam-se pelo uso de sistemas de mortificação e de
privilégios. A mortificação, fundamentalmente, mediante a separação do exterior e por
meio de processos de desfiguração e contaminação, produz mudanças progressivas nas
crenças que o sujeito internado tem sobre si mesmo e sobre os outros, atuando como uma
mutilação do eu”.14

A partir de suas observações e estudos em hospitais psiquiátricos e que nortearam


seus escritos, Goffman aponta outros fatores que compõem o fenômeno de transformação
psicológica na vida dos internos, assim como a Desculturação, que se constitui num processo
que “incapacita o sujeito de adaptar-se posteriormente à sociedade livre pela perda do sentido
da realidade devido à eliminação do contato com o mundo exterior e à absoluta violação da
autonomia”15.
Um segundo fator seria a Mutilação do “Eu”, que corresponde à

“separação do desempenho das funções sociais; ao despojo de pertences; à desfiguração


de sua imagem social habitual; à realização de indignidades físicas; à exposição
humilhante diante de familiares; à privação de relações heterossexuais.”16

Terceiro fator, presença de uma Alta Tensão Psíquica, produto do descrito


anteriormente.
Quarto fator corresponde ao desenvolvimento de um “Estado de Dependência” (de
tipo infantil), com perda de decisão, autodeterminação e autonomia, devido à exaustiva
programação da existência naquele recinto fechado, a qual tem uma incidência negativa na
identidade do sujeito.17
Quinto fator corresponde ao Sentimento de tempo perdido, fracassado, roubado.
“Para superá-lo, ao faltar ao interno as válvulas de escape próprias da vida civil, pode-se

412
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

desenvolver atividades de distração, homosexualidade, fantasia, etc.”18


Sexto fator, Produção de uma atitude egoísta, de abstração, pois focaliza a atenção
em sua especial existência.”
Sétimo fator, Estigmatização “como categorização social do atributo de ex - recluso
com o consequente repúdio por parte da sociedade.”19
Na mesma linha de suas idéias, Foucault assenta a compreensão do cárcere como
uma das instituições disciplinares por excelência, vale dizer, o cárcere da modernidade, a
nova pena privativa de liberdade, nasce como uma aspiração de efetivamente transformar os
indivíduos que lá residirão.
O efeito das instituiçoes totais, já antes definida pelo mesmor Goffman,
especificamente o fenômeno da desculturação, provoca um efeito que incapacita o sujeito de
adaptar-se à vida em liberdade, a relacionar-se com os outros em uma sociedade sem muros e
sem guardas. O sujeito perde o sentido da realidade „normal‟, devido à perda de contato com
o mundo exterior na prisão e à violação da autonomia, sintetizando as consequências
apontadas por Kaufmann desde a mesma perspectiva.
Esse complexo processo pelo qual atravessa a pessoa presa a que ainda Goffman
chamou de mortificação, se inicia desde sua entrada na instituição total. Com efeito, já as
cerimônias de ingresso nele ocupam um papel importante, como tirar fotografias e impressões
digitais, controlar seu preso, colocar-lhe números, despi-lo completamente, cortar seu cabelo,
dar banho e desinfetá-lo, entregar-lhe uniforme pertencente à instituição, dentre outras. “Vai
aparecendo, assim, algo que há de se entender como fundamental e característico de todas as
intervenções terapêuticas ali aplicadas: a ficção da avaliação, a representação simulada
dentro de um preciso cenário das funções desempenhadas tanto pelos internos (sujeitos à
avaliação) quanto por seus custódios (avaliadores)”, de modo a gerar o que Rivera Beiras
denomina “extremos de obediências fingidas”20, citando Adelantado (1992) quando mostra
como opera “funcionalmente” aquela ficção:

“o objetivo manifesto da instituição é cumprir o mandato legal ressocializador,


ainda que o objetivo latente seja a manutenção da ordem interior. Em ambos os
casos, a estratégia da organização a curto prazo consiste em modificar as pautas
de comportamento dos internos, forçando uma adapatação mediante uma
combinação de castigo e persuasão. Nesse processo se acaba produzindo uma
seleção entre os internos, através da qual os mais inclinados a exibir uma
mudança de atitude são recompensados. A conformidade aparece como uma forma

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de negociação entre o interno e a instiruição sobre a forma de definir a realidade,


mas frente à distribuição assimétrica do poder e da definição sobre a necessidade
e condições de reeducação, os internos se defendem com a desídia frente às
atividades propostas que não respondem a seus interesses, ou seja, mantendo seus
hábitos de conduta e sua moral de forma clandestina. Essa resistência à influência
é o que se chama conformidade simulada, que consiste em aceitar de forma
pública um comportamento ou um sistema de falores sem aderir a eles de forma
privada (conversão ou internalização)”.

Assim, as graves consequências da prisão e que afetam a personalidade do recluso


passam a compor o quadro da realidade carcerária, frequentemente destacada pelos
estudiosos, dentre os quais aqui se destacou Goffman, pode-se afirmar, reputado clássico na
abordagem das alterações psicológicas e do impacto psicossocial do internamento em termos
de desadaptação, ao que, nesta pesquisa, interessa para a conclusão inafastável da inexistência
de condições mínimas de vida digna na maioria das prisões.
Portanto, o cárcere se integra, inegavelmente, ao contexto disciplinário social. Este,
vale dizer, está moldado por um extenso conjunto de instituições sociais, ou no dizer de
Rivera Beiras, “símbolos, categorias e práticas que ensinam, impõem e cultivam
determinadas formas de ser no mundo. A penalidade tem seu papel neste processo de
conformar as pessoas. Ajudar a formar a subjetividade, o „eu‟, e a identidade e a estrutura
racional que empregamos para entendê-las”21 E citando Garland, destaca que a utilidade em
entender a penalidade no sentido proposto, a destaca ele quando indica que a mesma não pode
ser mais estudada hegemonicamente desde um ponto de vista jurídico, pois a pena “jamais”
cumprirá os efeitos declarados pela norma penal:

„o destino do castigo é nunca „ter êxito‟ pleno devido a que as condições mais
ativas para induzir a conformidade – ou para fomentar a delinquência e o desvio –
ficam fora da jurisdição das instituições penais (...). Se as sociedades modernas se
repensassem e reorganizassem conforme estes postulados, esperariam menos
„resultados‟ da política penal. Com efeito, começariam a considera-la como uma
forma de política social que deveria reduzir-se, na medida do possível.

E conclui como o próprio Garland apontou, “não parece que essa tendência vá se
produzir, a não ser que, pelo contrário, isso apontará, cada vez mais, para uma autêntica
sociedade ou para uma verdadeira „cultura do controle‟”.

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5. Crise atual da Prisão


A esta altura, já se pode perceber mais claramente como as origens da prisão estão
umbilicalmente ligadas às consequências que em seu interior se verificam. Cristalina, pois, a
associação entre os efeitos práticos do cárcere sobre a pessoa do encarcerado e, assim, sua
vocação estigmatizadora, que está em sua propria gênese. Como instituição total, destinada a
segregar e castigar em termos disciplinares, nada mais natural que impor tratamento
estratégico, de inspiração condutista, nesta direção. Com efeito, a estratégia punitiva/premial
supõe transformar o próprio sistema de valores dos internos22.
Por tal razão, proliferaram-se as necessárias medidas alternativas, reservando o
instrumento penal, enquanto prisão fechada, só para os casos de necessidade social absoluta.
Mesmo assim, o que se observa ao longo do tempo é que esse constatável fracasso
acabou não trazendo, como deveria, menos prisão, senão precisamente o contrário, como
estão a demonstrar os censos penitenciários. Foucault cita para compreender essa aparente
contradição duas ordens de razão: a) o cárcere, apesar de seu fracassso, se encontra
profundamente ligado na cultura dos últimos dois séculos; b) esse mesmo fracasso carcerário
é o que alimenta a perpetuação da presença carcerária. E isso complementado por Garland, no
sentido de que a prisão se conserva devido a seus fracassos e não, apesar deles, como muito
bem apontado por Rivera Beiras para explicar as reflexões foucaultnianas em torno do futuro
da prisão, futuro ligado a uma decisiva aporia23.
Desta forma, a história da prisão não foi a de sua progressiva abolição, mas sim a de
sua permanente reforma. A pena deve ser concebida como um mal necessário em tempos
modernos, sem esquecer que mantem, em sua essência, contradições indissolúveis. Ora, dado
que a prisão em lugar de deter o crime, parece estimular o delito, convertendo-se em
instrumento que alimenta a reincidência, persiste eloquente a pertinência da advertencia de
Carnelutti24:

"A gente pensa que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; a
gente pensa que o ergástulo é a única prisão perpétua, e não é verdade. A pena,
senão propriamente sempre, em nove de cada dez casos, não termina nunca. Quem
pecou está perdido. Cristo perdoa, mas os homens não...".

Como escreveu Fiodor Dostoieviski, em suas “Recordações da Casa dos Mortos”,


de sua dramática e injusta experiência na prisão como preso político:“O grau de civilização

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de uma sociedade pode aferir-se entrando em seus cárceres”.


Talvez a introspecção desta advertência nos leve a cobrar um sistema de justiça
penal mais justo e comprometido com a condição humana do recluso.

6. Advertências conclusivas
Na mesma linha do até aqui tratado, o jurista alemão Claus Roxin busca demonstrar
que ninguém aprende a viver em liberdade, sem liberdade, para reforçar a ideia de que a
prisão não serve para ressocializar, mas sim, e fundamentalmente, para castigar.
Mas, enfim, para que serviria, então, esse castigo?
Seu fracasso pode-se medir pelas alarmantes taxas de reincidência. A chamada cifra
mágica, realçada por Bertrand e produzida sempre e em qualquer lugar. Tal cifra nos leva a
especular que, quem não reincide depois da prisão é porque não reincidiria sem ela, por outro
lado, muitos dos que reincidem só o fazem por terem passado pela prisão. Bem ao contrário,
no entanto, investigações sérias e criteriosas, como as levadas a cabo por Lola Aniyar25, dão
conta que, nos regimes abertos de execução de pena, as taxas de reincidência são
insignificantes.
Como exposto anteriormente, os efeitos devastadores resultantes da função
disciplinadora da prisão, como os produzidos pelo fenômeno da prisionalização e de outras
culturas carcerárias como visto, longe estão de cumprir fins ressocializadores. Viu-se, assim,
que a prisão acaba servindo mais para mostrar a quem se distribui, pela irracional seletividade
da pena, o bem negativo da criminalidade. Junto com esta função latente, está a função
explícita de castigar somente a uns poucos – processo de rotulação -, já que o sistema seletivo
tem limites de capacidade operativa que já existem no próprio tecido social, filtros poderosos
da chamada delinquência real, seletiva e simbólica.
Qual seria, então, o caminho a seguir? A resposta não pode ser dada de um ponto de
vista técnico-jurídico, desvinculado do trágico filme da realidade carcerária e que deve ser
permanentemente revisto.
De fato, restaram muito claras, da retrospectiva histórica que se fez, as enormes
dificuldades e o quase nulo alcance que teve a função ressocializadora da pena aplicada a
criminosos submetidos à prisão fechada.
As instituições penitenciárias, hoje, estão cada vez mais sobrecarregadas de tarefas e
objetivos que, na verdade, não podem cumprir. Enquanto persistirem as deficiências do
cárcere - tais como falta de espaço adequado de modo a não provocar excessivo amontoado de

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pessoas, carência de condições higiênicas e de habitabilidade, privação de vida sexual com


parceiro externo, falta de ocupação do tempo, falta de capacitação laboral, distância familiar,
carência de preparação e permanente capacitação do pessoal penitenciário, assim como de
acesso a programas de autocuidado, como eficaz tratamento à dependência química -,
dificilmente se poderá cogitar de efetiva melhoria na situação dos internos de modo a se
respeitar sua dignidade moral.
Daí porque o descrédito da pena privativa de liberdade tem conduzido à sua
progressiva substituição, quando possível, por outras medidas alternativas adotadas como
preferenciais. Isso se apresenta ainda muito mais necessário na fase processual, na qual se tem
assentada a irreversível tendência de se substituir a prisão preventiva por outras medidas
restritivas de liberdade ou de direitos.
De todo, os dados expostos são irrespondíveis e, por isso mesmo, conduzem
inevitavelmente ao compromisso das legislações modernas de busca incessante de
mecanismos para coibir essas distorções e, assim, melhorar o sistema penal, de modo a
enfrentar a crise de sua inefetividade, mitigando os nefastos efeitos do uso incorreto do
aparelho repressivo para dele obter o cumprimento da meta que o justifica e que hoje se dirige
à reorientação de uma renovada política penitenciária, tudo pela convicção de que, se não
existem soluções melhores, tem que se alcançar as que menos sofrimento e injustiça causem.
Com efeito, não obstante todos os esforços possíveis para evitar a prisão e sua
nocividade, a verdade é que, ainda em alguns casos, segue sendo indispensável, mas deve
efetivamente reorientar-se. Se não é possível por agora a solução radical de sua abolição total,
deve ser absolutamente reformado o conteúdo penitenciário. Neste sentido, observa-se o
retorno gradual – senão ao objetivo socializador, considerado como artificial e fictício, para
não dizer romântico -, ao desenvolvimento de mecanismos máximos contentores do arbítrio
no emprego ilimitado dos aparatos repressivos, inclusive no cenário de países onde a cortina
de frustração quanto ao real propósito carcerário traçou manipulações delicadas naquela meta,
refletindo objetivos mais pragmáticos, mas um tanto perigosos pelo pouco cuidado com os
direitos fundamentais e as liberdades públicas. Podem ser citados, aqui, os exemplos
americanos e britânicos, assinalados por Anabela Rodrigues 26, em que os programas de
integração hoje postos em prática em muitas penitenciárias norte-americanas e na chamada
corrente construtivista inglesa, orientam-se por ganhar a batalha contra o sem trabalho, com a
estratégia da mode wort no campo de uma intervenção mais humanitaria.
Contudo, somente ganha maior sentido uma investigação mais profunda sobre a
natureza e os fins da reação penal e da aguda crise que se abate sobre modelos implementados

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na maioria das prisões do mundo, se a correlacionarmos à noção de direitos humanos e da


permanente construção de principios universais em matéria de execução penal, válidos para
todos os homens em todos os tempos e em qualquer lugar.
Poderia se colocar, inclusive, que os postulados apresentados aqui sobre os quais se
funda a presente reflexão, servem como indicadores ou medidas de referência, chamados por
Canotilho de standarts, no âmbito dos direitos do homem, que permitam avaliar a
sensibilidade das pessoas, povos e estados na adoção de práticas, procedimentos e processos
que garantem sua efetividade27. Porque é a universalidade dos direitos humanos que os
fortalece, dota-os de poder para cruzar todas as fronteiras, escalar todos os muros e resistir
a qualquer adversidade28. Reforçar a importância da dimensão internacional desses direitos,
deixando de considerar a questão interna dos diferentes países, - recurso com o qual, como
alerta Roig29, em certas ocasiões, tenta-se ocultar, se não justificar situações de vergonha sob
o pretexto apelativo da existência da soberania nacional -, deve ser a meta deste novo século.
Não se quer aqui vestir uma mera fantasia romântica, crendo na bondade inerente à
natureza humana, que se acorda pelo tratamento penitenciário, no caminho dos valores morais
buscados na vida em sociedade livre.
O esforço que se espera no atual quadro de crise do sistema carcerário é o de
consistência ideológica, apto a, basicamente, reconhecer como possível a convivência plural,
a professar as diferenças, a crer nos próprios valores, desde que compatíveis com uma vida
social minimamente suportável e democrática, a negar legitimidade na manipulação da pessoa
humana, a corrigir distorções sociais e estruturais que levam alguém a se contrapor à ordem
jurídica que muitas vezes enxerga esse alguém como pessoa. Em uma frase sintética, mas de
significado analítico, ver a imagem do preso, no interior da prisão, jamais como objeto, mas
sempre como sujeito de direito.
Como bem afirma Bergalli:

“A prisão não reeduca ninguém, não é possivel aceitar mais, de uma vez por todas, a
pretensão de fazer compreender a um encarcerado que deverá levar uma vida futura em
liberdade, sem delitos, para o qual, paradóxicamente… lhe priva da liberdade!”30

Ninguém é tão ingênuo a ponto de não compreender que a execução penal implica,
necessariamente, numa relação de poder que tem, na maioria dos casos, o propósito de impor
valores dominantes em um dado meio social. E a existência do Estado continua sendo, ainda,
absolutamente imprescindível para a convivência humana na etapa atual da civilização. Ora,

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mesmo que se pudesse pensar em um suposto estado de natureza - inconcebível nas condições
da vida moderna -, sem dúvida, o homem cuidaria de conceber qualquer outra forma de
estrutura de poder capaz de dominação. Esse ligeiro escorço histórico da prisão, assim, põe
um pouco em relevo o mais rigoroso instrumento repressivo que a justiça estatal vem
utilizando desde o século XVIII, para castigar um setor ao qual não são oferecidas, como
regra, as melhores oportunidades de ascensão social.
Como afirmado em outro texto, “a luta, sem embargo, deve ser constante e
apaixonada, senão para deter, ao menos controlar esta voraz via coativa de valores,
construindo uma sociedade cada vez melhor e mais justa, a partir do respeito à cidadania dos
presos, cimentada na derrubata das verticais barreiras ideológicas que têm dificultado,
impedido ou impossibilitado um substancial mundo de iguais”31
Enfim, não se pode cobrar o que não se dá. Os valores do bem não se destinam a
todos, de modo que a opção pelo mal nem sempre é livre, senão, muitas vezes, condicionada.
Não se pode esperar, no contexto de agudas desigualdades sociais, comportamentos lineares,
na perspectiva da afirmação e respeito aos valores consagrados como socialmente positivos
Que fazer, então? Tomar cada vez mais consciência da necessidade de melhorar nossas
instituições, a começar pelo cárcere, local onde fica ainda mais evidente que o depósito de
excluídos, transparentes e esquecidos no pacto social está claramente identificado ao seu
afastamento dos benefícios e oportunidades produzidos pela sociedade.

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1
“La cárcel, que como pena privativa de libertad aparece a finales del siglo XVIII, en el Código Penal francés
de 1791 ha sido sustentada por distintas justificaciones en función de las concepciones vigentes en cada
momento histórico sobre la “cuestión punitiva”, concepciones que necesariamente remiten a las
interpretaciones que se han ido imponiendo sobre la “cuestión criminal”, sobre la criminalidad”. Bergalli,
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Master Oficial de Criminología y Sociología Jurídico Penal 2010-2012 pp.93, tradução nossa.
2
Costa, Fausto: "El delito y la pena en la historia de la filosofía"; México; 1953; pp.43; Ed. Uteha.
3
Rusche, George y Kirchheimer, Otto: "Pena y estructura social"; Bogotá; Ed. Temis; 1984; p. 25. Cita
E.F.Heckscher: "Mercantilismo"; p.145; Londres; 1935.
4
“Hemos ya señalado que la reforma del sistema punitivo encontró un terreno fértil, sólo a causa de que sus
principios humanitarios coincidieron con las necesidades económicas de la época”. Rusche, George y
Kirchheimer, Otto. op.cit. p. 99.
5
“la prisión fue una de las formas más tempranas de la separación de las sanciones penales tradicionales”,
Morris, Norval: "El futuro de las prisiones"; Ed. Siglo XXI, México, 1987; p. 20.
6
de hecho, antes de imponer la pena de privación de libertad, los ordenamientos penales contenían un
intrincado sistema de sanciones que sacrificaban algunos bienes de los culpados; la riqueza con las sanciones
pecuniarias; la integridad física y la vida con las penas corporales y la pena de muerte; el horror con penas
infamantes, etc.. Pero no consideraban la pérdida de la libertad por un cierto período un castigo apropiado
para el crimen, y eso porque simplemente la libertad no se ha tomado como un valor cuya pierda podría
considerarse un sufrimiento o un mal. Ciertamente, ya existía la cárcel como simple lugar de custodia donde el
imputado esperaba el proceso. Antes de la llegada del sistema capitalista de producción no existía la cárcel,
todavía, como lugar de ejecución de la pena propiamente dicha que consistía, como se ha señalado, en algo
distinto de la privación de la libertad. Sólo con la aparición del sistema de producción, la libertad ha adquirido
un valor económico.Melossi, Dario; e Pavarini, Massimo: "Control y dominación - teorías criminológicas
burguesas e projeto hegemónico”; Ed. Siglo XXI; México; 1983; p. 36.
7
“más bien hacia el horizonte del desencarcelamiento (Scull 1977) como destino necesario y auspiciable”,
Melossi, Dario y Pavarini, Massimo. “Cárcel y Fábrica. Los Orígenes del sistema penitenciário (siglos XVI-
XIX)”. Siglo XXI Editores.
8
“Cárcel sin fábrica” al movimiento de “alternativas al proceso penal, penas substitutivas, beneficios
penitenciarios, que marcan el recorrido reformista y progresivo de liberación de la necesidad de la cárcel. El
objetivo de reintegración del condenado ya no necesita de prácticas correccionales en la cárcel, sino que
requiere que la „community‟, lo social se haga cargo del desviado”, Pavarini, Massimo. “Cárcel sin fábrica”.
En “Castigar al enemigo. Criminalidad, exclusión e inseguridad”. Quito: Flacso. 2009. pp. 45-58 (cit. p. 47).

423
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9
Cirino dos Santos, Juarez: "A criminologia radical"; Ed. Forense; Rio de Janeiro; 1981.
10
“Una institución total puede definirse como un lugar de residencia y trabajo, donde un gran número de
individuos en igual situación, aislados de la sociedad por un periodo apreciable de tiempo, comparten en su
encierro una rutina diaria, administrada formalmente”, Goffman, Erving: "Internados"; Ed. Amorrortu;
B.Aires; 1961. pp.15
11
Ibidem. pp. 20-21
12
“todas las etapas de las actividades diarias están estrictamente programadas, de modo que una actividad
conduce en un momento prefijado a la siguiente, y toda la secuencia de ellas se impone desde arriba, mediante
un sistema de normas formales explícitas y un cuerpo de funcionarios... Los internos viven dentro de la
institución y tienen limitados contactos con el mundo, más allá de sus cuatro paredes”. Ibíd. pp. 22-23
13
“a veces se les exige tan poco trabajo que los internos, con frecuencia no habituados a los pequeños
quehaceres, sufren crisis de aburrimiento... Haya demasiado trabajo, o demasiado poco, el individuo que
internalizó un ritmo de trabajo afuera tiende a desmoralizarse por el sistema de trabajo de la institución total”,
Goffman, Erving: "Internados"; Ed. Amorrortu; B.Aires; 1961. pp.26
14
“Las instituciones totales se caracterizan por el uso de sistemas de mortificación y de privilegios. La
mortificación, fundamentalmente mediante la separación del exterior y por medio de procesos de desfiguración
y contaminación, produce cambios progresivos en las creencias que el sujeto internado tiene sobre sí mismo y
sobro los otros significativos, actuando como una mutilación del yo” García-Borés, Josep. “El Impacto
Carcelario” pp.7-8
15
Dr. García-Bores, Josep. “El Impacto Carcelario” pp.8
16
“la separación del desempeño de los roles sociales; el despojo de pertenencias; la desfiguración de su imagen
social habitual; la realización de indignidades físicas; la exposición humillante ante familiares; la privación de
relaciones heterosexuales.”Ibíd.
17
“Estado de Dependencia” (de tipo infantil), con pérdida de volición, autodeterminación y autonomía, debido
a la exhaustiva programación de la existencia en el recinto, el cual tiene una incidencia negativa en la identidad
del sujeto” Ibíd.
18
Para superarlo, al faltarle al interno las válvulas de escape propias de la vida civil, puede desarrollar
actividades de distracción, homosexualidad, fantasía, etc Ibíd.
19
“como categorización social del atributo de exrecluso con el consiguiente rechazo por parte de la
sociedad.”Ibíd.
20
Rivera Beiras, Iñaki: “Pena criminal, seus caminhos e suas possíveis formas”; Juruá, 2012, pp.80-81.
21
Rivera Beiras, Iñaki: “Pena criminal, seus caminhos e suas possíveis formas” – Tradução Denise
Hammerschmidt, Juruá, 2012, p. 90.
22
Garcia-Borés, J.: “El impacto carcelario”. Op.cit. p. 6 Plan Docent.
23
Rivera Beiras, Iñaki: “Pena criminal, seus caminhos........” – Tradução Denise Hammerschmidt, Juruá, 2012,
p. 68.
24
"La gente cree que la pena termina con la salida de la cárcel, y no es verdad; la gente cree que el ergástulo es
la única pena perpetua, y no es verdad. La pena, sino propiamente siempre, en nueve de cada diez casos, no
termina nunca. Quien ha pecado está perdido. Cristo perdona, pero los hombres no..."Carnelutti, Francesco:
"Las miserias del processo penal"; 1959; p. 126; citado por Cezar Roberto Bitencourt; RMPRS; 1994.
25
Aniyar de Castro, Lola: "Notas para um sistema penitenciário alternativo"; JBC; Ed. Juruá; n. 35.

424
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

26
Até mesmo quando da exposição de motivos do Projeto da Proposta de Lei de Execução de Penas e Medidas
Privativas de Liberdade portuguesa.
27
Canotilho, José Joaquim Gomes (coord.): “Direitos humanos, estrangeiros, comunidades migrantes e
minorias"” Celta Editora; Oeiras; 2000; p. 64.
28
Balado, Manuel e Regueire, J.Antonio García (dir.): “La declaración universal de los derechos humanos en su
50 aniversario”; Editorial Bosch S.ª; Barcelona; 1998; p. 14.
29
Roig, Francisco Javier Ansuátegui: “Derechos fundamentales, poder politico e poderes sociales”; em
“Direitos humanos: a promessa do século XXI”; Elsa (Universidade Portucalense); Porto; 1997; ps. 191-204.
30
“La cárcel no reeduca a nadie, no es posible aceptar más, de una vez por todas, la pretensión de hacer
comprender a un enca**rcelado que deberá llevar una vida futura en libertad, sin delitos, para lo cual,
paradójicamente…se le priva de la libertad!Bergalli, Roberto. “Prólogo dialogado II”. En Ribeira Beiras, I. La
cuestión carcelaria. Historia, Epistemología, Derecho y Política penitenciaria”.Buenos Aires: Editores del
Puerto. 2009, XXIX.
31
Giacoia, Gilberto; Hammerschmidt,Denise. La cárcel en España, Portugal y Brasil – La experiencia histórica
bajo perspectivas criminológicas. Curitiba:Juruá, 2012, p. 108.

425
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

NOVOS OLHARES DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA – UMA APROXIMAÇÃO


ENTRE O MECANISMO DA VÍTIMA EXPIATÓRIA E O CORDÃO SANITÁRIO DE
CONTROLE

NEW VIEWS OF SAFETY - AN APPROACH BETWEEN THE MECHANISM OF


EXPIATORY VICTIM AND THE CORDON SANITAIRE OF CONTROL.

Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa1


Thayara Castelo Branco2

Resumo: O cruel funcionamento das instituições judiciárias de tratamento psiquiátrico tem


chamado a atenção dos estudiosos da criminologia há décadas. Sem dúvida, o que causa
espanto a eles, e também a nós, é o fato de que os ditos “tratamentos” a que os doentes
mentais são submetidos, infringem uma porção maior de direitos humanos/fundamentais, do
que as próprias penas privativas de liberdade aplicadas a presos comuns. Na realidade não
existem instituições estatais que revelem tanta indiferença com os cidadãos, quanto as
manicomiais. O presente trabalho ambiciona, através da interpretação de René Girard sobre a
moderna preocupação com as vítimas, penetrar muito abaixo da fenomenologia, e desvelar a
ideia reitora por trás da fundação dos primeiros manicômios e analisar como esta parece ter se
perdido com os séculos e as muitas camadas de teorias e discursos.

Palavras-chave: medidas de segurança; controle social; teoria mimética;

Abstract: The ruthless functioning of the psychiatric’s judicial institutions of treatment has
drawn the attention of the criminologists for decades. Undoubtedly, causing astonishment to
them, and to us, is the fact that the so-called "treatments" that the mentally patients are
submitted, violated a larger portion of human rights / fundamental than the actual deprivation
of freedom applied to ordinary prisoners. In reality there are no state institutions that reveal so

1
Advogado. Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PI. Mestrando em Ciências Criminais
pela PUCRS. Email: gustavovasconcelosadv@hotmail.com
2
Advogada. Mestra e Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Email: thaybranco@yahoo.com.br

426
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

much indifference to citizens, as the asylums. This study aims to penetrate, through the René
Girard concept of modern victim’s caution, far below the phenomenology, and unveil the idea
behind the founding dean of the first asylums and analyze how this seems to have been lost
through the centuries and the many layers of theories and discourses.

Keywords: security measures; social control; mimetic theory;

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende tratar da medida de segurança e da doença mental na


perspectiva da teoria mimética de René Girard. Longe de acusar a violência e a inadequação
das instituições manicomiais o que se pretende aqui é penetrar muito abaixo da
fenomenologia e desvelar a raiz da ideia de cuidado com o doente mental. Para isso será
necessário introduzir brevemente a teoria mimética, em especial no que trata dos sinais
vitimários, do mecanismo do bode expiatório e da moderna preocupação com as vítimas.
Buscaremos demonstrar que a ideia motriz da criação dos manicômios foi a de evitar que os
doentes fossem vítimas de sua própria comunidade e que isto seguiu o movimento que Girard
denomina moderna preocupação pelas vítimas (GIRARD, 1999, p. 209). Buscaremos, de
modo geral, observar para além das duas lógicas básicas das instituições manicomiais
(judiciárias), que são: a) a de proteger o indivíduo (nesse caso como vítima) da sua própria
comunidade; b) a de proteger a sociedade da conduta desviante e ameaçadora do doente
mental (infrator).

1. BREVES APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA MIMÉTICA E O


MECANISMO DO “BODE EXPIATÓRIO”

René Girard criou a teoria mimética através do estudo de clássicos da cultura


ocidental como Shakespeare, Cervantes, Stendhal, Dostoievski, e Proust3. Esses autores,
segundo ele, teriam conseguido compreender a natureza imitativa do desejo e sua estrutura

3
Girard também empreende um estudo particular à obra de Dostoievski, ver Girard (2011d).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

triangular: o homem é um ser que não sabe o que desejar e indeciso em um mundo cheio de
variantes busca modelos, o modelo é aquele que designa ao imitador o que desejar. Na
relação entre imitador (sujeito desejante) e modelo (sujeito que designa o objeto), chegará o
momento em que o imitador aproximar-se-á cada vez mais do objeto desejado e, exatamente
por isso, tenderá a entrar em conflito com seu modelo, o qual, na tentativa de obstruir o acesso
do imitador, tornar-se-á modelo-obstáculo. Assim o desejo nasce triangular, e quanto mais o
imitador deseja o objeto, mais o modelo tenta protegê-lo e, quanto mais tenta protegê-lo, mais
reforça o desejo do imitador, que por sua vez ao desejar cada vez mais reforça o desejo do
modelo (GIRARD, 2008, p. 32). Deste modo ambos estão presos a uma espiral mórbida que
em muitos casos resultará na destruição do imitador e do modelo, e esse é um tema recorrente
na literatura universal. Para Girard, essa violenta escalada dos rivais em busca do objeto é a
causa predominante da violência humana, das pequenas rivalidades às guerras. Os rivais
agridem e se atacam mutuamente, e quanto mais procuram diferenciar-se um do outro, mais
se assemelham, visto que imitam-se na rivalidade. (GIRARD, 2009, p.60)
A polarização da violência dos rivais (ou de grupos rivais) pode se alastrar e
contaminar toda a comunidade (GIRARD, 1999, p. 15). Com a pulverização deste conflito
surgem rivalidades dentro dos pequenos grupos, sua consequente divisão e o surgimento de
pequenos conflitos dentro dos maiores. Em pouco tempo o contágio violento descamba para a
guerra de todos contra todos, uma aguda crise de indiferenciação 4. Por esta crise entenda-se a
quebra das barreiras culturais que impedem os homens usar da violência uns contra os outros 5
(GIRARD, 1990, p. 69). As diferenciações sociais foram arquitetadas para evitar a eclosão e o
contágio do conflito e, quando elas não funcionam mais, há o colapso violento da ordem
cultural e surgimento de uma nova (GIRARD, 2004, p. 59).
Todos os cultos, ritos e instituições das sociedades arcaicas evoluíram no sentido de
evitar a guerra de todos contra todos, transformando-a em guerra de todos contra um. Ou seja,
os rituais do mundo antigo canalizam a violência do grupo contra uma vítima comum, uma
vítima expiatória (GIRARD, 1990, p. 119). Essa “aliança” apazigua e une o grupo, evitando
sua completa destruição. A união de todos contra um se concretiza no sacrifício ritual, nele a
vítima substitutiva é morta, atraindo para si toda a agressividade do corpo social, trazendo um
conforto que, para os antigos, decorria da intervenção dos deuses.

5
Por exemplo, o respeito do filho pelo pai, do aluno com o mestre, do súdito para com o rei.

428
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A tese de Girard (2008, p. 53) é de que os mitos não são invenções ou fábulas, como
acreditavam os estudiosos do sec. XIX, mas sim eventos reais, que com o tempo foram
transformados em rituais, havendo a ocultação de sua origem violenta. Os rituais são
reencenações do mito, com um tempo próprio (tempo ritual ou eterno presente), e seguindo
um roteiro determinado e imutável: um rito (ELIADE, 2010, p. 12). Para os participantes o
ritual é revivido, ou seja, da perfeição de sua repetição depende que o mundo permaneça
como é. Por isso todas as fórmulas precisam ser rigorosamente observadas para que o mito
ganhe vida novamente. E o mito que os rituais antigos relembram é, segundo Girard (1990, p.
119), um assassinato ocorrido de fato. Os rituais tentam emular a paz trazida pela expulsão ou
morte de uma vítima verdadeira, que ocorreu em tempos imemoriais e foi a chave para que
essas comunidades primitivas sobrevivessem às primeiras crises de indiferenciação. Todas as
sociedades pré-cristãs tem seus rituais de sacrifício, o que nos leva a concluir que apenas as
sociedades sacrificiais sobreviveram (GIRARD, 2011.b, p. 100). Em outras palavras, apenas
as sociedades que aprenderam a canalizar sua violência para vítimas substitutivas puderam
prosperar, as demais pereceram vítimas de si mesmas.
Nesses mitos de origem, o deus sempre retorna à terra para ensinar aos mortais os
rituais que permitirão seu retorno. Para Frazer (1982. p.496) os primitivos eram incapazes de
conceber a imortalidade e por isso acreditavam que os deuses haviam vivido um tempo na
terra e depois de mortos teriam ingressado em outro plano de existência do qual só retonariam
com a execução dos rituais. A morte desses deuses era resultado da união violenta da
comunidade contra estes, portanto, para Frazer, como foi dito, os primitivos vitimizavam
simbolicamente seus deuses. Porém, concordamos com Girard (2011a, p. 63), que essas
comunidades ao invés de vitimar seus deuses, endeusavam suas vítimas. Tal ocorria porque a
vítima da violência coletiva unânime apaziguava o grupo, promovendo uma catarse coletiva
que os antigos só conseguiam atribuir à intervenção divina. Assim, a vítima antes hostilizada
por todos tornava-se, após o apaziguamento, divina, pois era ela quem verdadeiramente
ensinava à comunidade como resolver seus conflitos. Ensinava-os o sacrifício enquanto
método para canalizar a violência contra uma única vítima, promovendo a união dos
agressores e, também, uma extraordinária economia da violência no seio das primevas
comunidades (GIRARD, 2004, p. 149). O mecanismo do “bode expiatório” e a subsequente
exaltação da vítima como divina é descrito por Girard (2011a, p. 63) da seguinte maneira:

A confusão crescente, a indiferenciação, podem polarizar a comunidade inteira


contra um único indivíduo, um inimigo derradeiro que aparece de repente como

429
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

único responsável pela catástrofe e é imediatamente linchado. A comunidade então


se vê sem inimigo, e a tranquilidade se restabelece. Universalmente banida, de
início, a vítima, por causa do seu poder reconciliador logo será a figura do salvador.

O mito, e sua reencenação ritual, são, portanto, a crença absoluta na culpa do


“bode expiatório”: a crença de que o perseguido é culpado por toda a crise de indiferenciação
que precede a perseguição (GIRARD, 2008, pp. 43-46). O mito é uma narrativa contada do
ponto de vista dos perseguidores, por isso absolve a comunidade e responsabiliza a vítima. As
sociedades que aprenderam com os linchamentos coletivos a polarizar a violência, e os
transformaram em ritual, puderam sobreviver às diversas crises que antecedem o surgimento
de instituições voltadas à racionalização dos conflitos (GIRARD, 1990, p. 36). Por isso, as
sociedades primitivas sacrificiais viviam baseadas em uma mentira necessária: a mentira da
razão dos perseguidores em face do perseguido.
Nessa antiguidade imersa em ritos sacrificiais, em que a lógica comunitária é um
dogma inconteste, o cristianismo surge como o anúncio de uma revolução que eclodiria
séculos depois. Nas escrituras judaico-cristãs a vítima é sempre inocente e é a sociedade
perseguidora que é considerada injusta. Isso pode ser verificado desde os primeiros livros do
velho testamento com a saga de José do Egito no Genesis e de Jó no livro de Jó, até o novo
testamento na morte de João Batista, na perseguição da “mulher adúltera” e na mais
importante e significativa de todas as passagens, a “Paixão de Cristo”. Tomando o mito de
Édipo como exemplo de comparação, é possível perceber entre a “Paixão” e o mito há uma
estrutura idêntica. Cristo, como Édipo, é perseguido quando criança e escapa da morte com
grande dificuldade. Quando adulto, Édipo, como Cristo, é um forasteiro que entra em júbilo
na cidade que futuramente será palco de sua desgraça. Édipo torna-se rei em Tebas, Cristo
ingressa triunfante em Jerusalém durante o domingo de ramos. Ambos são submetidos a uma
espécie de julgamento; a todo o momento dividem a cena com um rival, Cristo com Barrabás,
e Édipo com Creonte. Por fim, ambos são condenados, o que pacifica a turba enfurecida e
encerra a enorme crise da qual são “causadores”. De Pharmakós, se converteram em
Pharmakon, foram o veneno, a doença e o antídoto (GIRARD, 1990, p. 122).
Mas há uma diferença, por dizer, crucial entre a Paixão e o mito de Édipo. A
diferença, que faz da Paixão de Cristo o “avesso do mito”, segundo Girard (2011.b, p. 99), é a
existência de um grupo (os apóstolos) que, após a morte da vítima expiatória, testemunha sua
inocência. Édipo, como Cristo, poderia mesmo ser inocente, porém é impossível sabê-lo, pois
o mito é narrado na perspectiva dos perseguidores, os tebanos. Se os discípulos de Jesus não

430
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

tivessem propagado a injustiça de sua condenação, a paixão não passaria de mais um mito da
antiguidade. O mito é o relato de uma violência unânime, mas a Paixão, todavia, é unânime e
não unânime, pois os seguidores de Jesus aderem à multidão, embora em um momento
posterior passem a proclamar sua inocência e, por isso, ao invés de absolverem a massa,
acusam-na de homicídio. (GIRARD, 1999, p. 164)
Os discípulos, após reconhecerem-se como perseguidores, correram o mundo para
narrar esse “mito antimitológico”. Ao encontro com Cristo dentro de suas consciências,
experimentado pelos apóstolos, Girard (1999, p. 183) denomina “Ressurreição”. O anúncio, a
boa nova, é, na realidade, a desmistificação dos rituais sacrificiais, a crucificação que
descortina o que estava oculto “desde a fundação do mundo”:

O paradoxo da Cruz é que ela reproduz a estrutura arcaica do sacrifício para invertê-
la, mas a inversão é um pôr do lado direito o que estava do avesso ‘desde o começo
do mundo’: a vítima não é culpada, ela não tem, pois, poder de absorver a violência.
A Cruz é a revelação de uma verdade desestabilizadora no plano social. (GIRARD,
2011b, p. 115)

Essa verdade é desestabilizadora no plano social porque após a sua revelação, “Satã
não é mais capaz de expulsar a si próprio”, ou seja, a violência mítica foi completamente
desmascarada e por isso tornou-se ineficaz. A revelação do mecanismo sacrificial que
desacreditou o sacrifício não trouxe paz, ao contrário, trouxe a disseminação dos conflitos,
justamente pela nossa incapacidade de nos unir para perseguir vítimas unânimes. Assim, o
mundo cristão teve que aprender a conviver com a violência de uma maneira diferente das
culturas sacrificiais, essa lenta adaptação levou quase dois mil anos. (GIRARD, 1999, p. 185)
De certa maneira o desvelamento do mecanismo vitimário se deu de forma paulatina.
A própria igreja se valeu de seus “bodes expiatórios” em momentos de crise, como foi o caso
dos cátaros franceses, massacrados pelos albigenses (CLASTRES, 2004, p.60). Até pouco
tempo não conseguíamos visualizar as vítimas inocentes, a injustiça de qualquer julgamento
levava a uma analogia direta à Paixão de Cristo (vide Tiradentes retratado por Pedro Américo
em túnica branca, barbas longas e crucifixo na mão). Somente com o Holocausto dos judeus
durante a 2ª Guerra Mundial, o mundo pode reconhecer o massacre de vítimas expiatórias e
inocentes, que eram cidadãs de países que as vitimaram, que foram para a degola como
“cordeiros mudos”. Para Eliade (2010, p.65), os ideólogos do mito nazista como Jakob
Wilhelm Hauer criaram um neopaganismo, buscaram no religioso arcaico elementos para unir
a nação e, por óbvio, fizeram suas vítimas expiatórias. O sacrifício de cerca de 6 milhões

431
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

judeus (e também de homossexuais, deficientes, doentes mentais etc.) criou no mundo todo
uma culpa semelhante à experimentada pelos apóstolos após a Paixão. O novo Gólgota
inaugurou um novo humanismo: a era da “moderna preocupação com as vítimas” o triunfo
(tardio) da cruz! (GIRARD, 1999, p. 209).
Atualmente o mecanismo do “bode expiatório” é combatido e apenas pode prosperar
de forma camuflada, subreptícia. A Declaração dos Direitos Humanos de 1948 foi uma marco
nesse sentido, com ela a vítima ganhou visibilidade e é hoje o centro da atenção do Estado. Se
antes a prioridade era ter grandes exércitos, e a isso se ligava o prestígio nacional, hoje esse
prestígio está ligado à capacidade dessas nações em respeitar os Direitos Humanos. Enviar
uma tropa de paz ou de ajuda humanitária é, nos dias de hoje, imensamente mais prestigioso
do que invadir um território. As instituições estatais estão em nossos dias, ao menos
formalmente, a serviço do cuidado com os indivíduos, em especial os que apresentam sinais
vitimários. Ou seja, as instituições, em tese, ao invés de constituírem-se como extensões da
violência da multidão, como era no passado, são as protetoras dos indivíduos em face desta.

2. A LOUCURA COMO SINAL VITIMÁRIO

Sinal vitimário é um estereótipo que faz com que certas pessoas, ou grupo de
pessoas, sejam mais facilmente considerados indesejáveis pela comunidade. Esses sinais estão
sempre ligados à impureza, deformação, deficiência, monstruosidade, etc. A loucura é um
sinal vitimário por excelência; não por outro motivo heróis míticos como Orestes,
Belerofonte e Herácles, eram ou se tornaram loucos (ELIADE, 1987, I, 301, apud. GIRARD,
2004, p.48). De certo, as histórias por trás destes mitos são a narrativa de um linchamento
coletivo em tempos imemoriais contra uma pessoa que sofria de distúrbios mentais e por isso
tornou-se “bode expiatório”.
Como dissemos anteriormente, as diferenças estabelecidas pela ordem cultural são
um dique de contenção contra o conflito e a sua respectiva disseminação. Por essa razão, as
crises de indiferenciação eram tão perigosas na antiguidade, e pela mesma razão os
“diferentes”, os que carregavam marcas vitimárias, eram alvo da turba durante as grandes
crises (GIRARD, 2004, p. 49). Mas a vulnerabilidade do doente mental é ainda maior. Por sua
incapacidade de compreender e respeitar as diferenças culturalmente construídas, o louco
pode ser vítima da comunidade não apenas durante as graves crises, mas a qualquer tempo!

432
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Ante isso, podemos talvez afirmar, que nenhum grupo de pessoas precisa mais de uma
instituição protetora que os doentes mentais. A marca vitimária que os impede de reconhecer
e participar da ordem cultural (por sua desrazão) os transforma em alvo permanente da
brutalidade coletiva.
As instituições de controle consolidadas surgiram inicialmente como uma tentativa
de domar a violência coletiva por meio do sacrifício (GIRARD, 1999, p. 118). Em um
primeiro estágio civilizatório tinham por única preocupação a manutenção da ordem cultural
e, portanto, a canalização da agressividade do grupo poderia se dar de maneira absolutamente
aleatória, pois não tinha compromisso algum com o indivíduo, apenas com a coletividade. O
importante para o ritual era servir de válvula de escape para a comunidade, que geralmente
destruía o “bode expiatório”.
Em um momento posterior, como decorrência da “Revelação Cristã”, as instituições
passaram a ter uma dupla função, ao mesmo tempo em que davam vazão à violência do
grupo, suspendiam o “bode expiatório” (para protegê-lo) do conflito social que o vitimara. Já
no século XVII surge a ideia de que é necessário opor as decisões judiciais ao desenfreio da
multidão (GIRARD, 2011.b, p. 130). No século XVIII utilitaristas como Beccaria e Bentham
pregaram o fim das punições corporais e a prisionização das penas (ARRUDA, 2009, p.119).
Com a laicização das instituições penais, surge também a necessidade de julgar, já
que com a revelação fica evidente que o perseguido pode ser inocente. Essa virada mostra a
nascente preocupação com o individuo6, já que a prisão pune (aplacando a fúria da massa), ao
mesmo tempo em que racionaliza a vingança (protegendo o cidadão), que é mais perigosa nas
mãos da multidão do que nas do Estado.
As duas funções das instituições punitivas são perfeitamente compreensíveis na
esfera penal, em que por muitas vezes o “bode expiatório” é o verdadeiro responsável pelo
escândalo que toma conta do grupo. Nesse caso é necessário puni-lo e, ao mesmo tempo,
suspendê-lo do convívio social para que ele possa gozar de sua liberdade de forma plena em
outro momento da vida (ARAGONESES ALONSO, 1997, p.37).
O mesmo não ocorre com o doente mental; não há em geral (e aparentemente)
necessidade de puni-lo, mas apenas de suspendê-lo da comunidade. A função e a ideia por trás
dos primeiros manicômios (século XVII na França) era a de proteção do indivíduo em face da

6
Embora no final do século XVIII tenha sido marcado pelo humanismo e a valorização do individuo, há um
enorme retrocesso durante a restauração em meados do século XIX, com a tendência à instrumentalização do
homem para fins políticos e militares, que só será abandonada no ocidente na segunda metade do século XX.

433
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comunidade; neste caso era um indivíduo extremamente fragilizado, que deveria ser suspenso
do convívio social para que fosse garantida sua segurança e sua sobrevivência. A ideia cristã
de resguardo do frágil frente à massa, aplicada ao doente mental, veio mesmo antes da
moderna ideia de cura. Todavia, com a implantação dos manicômios judiciários
posteriormente - instituídos para “tratar” (através da aplicação das medidas de segurança) os
doentes mentais que cometessem injustos penais e proteger a sociedade dos mesmos - esses
conceitos foram gradualmente relegados e as medidas de segurança que deveriam estar
alheias à punição, passaram a punir mais que as penas aplicadas a criminosos considerados
comuns. Em algum tempo, ou lugar, a essência das instituições manicomiais se perdeu e
atualmente é difícil acreditar que o convívio social é mais arriscado do que a internação
psiquiátrica. É o que trataremos a partir de agora.

3. O ARSENAL DE ARMAS E A ESTRUTURA DE GUERRA DOS MANICÔMIOS

No final do século XVII a França passou a regulamentar a questão dos


leprosários, mas mesmo após a regressão da doença as estruturas permaneceram e
reorganizaram-se, retomando os “jogos de exclusão” dois ou três séculos mais tarde,
semelhante aos primeiros propósitos. Pobres, vagabundos, presidiários, cabeças alienadas
assumiram, a partir de então, o papel abandonado pelo lazarento à espera da salvação. A lepra
fora substituída inicialmente pelas doenças venéreas e, sob a influência do modo de
internamento - tal como se constituiu no século XVII - as mesmas se isolaram e se integraram,
ao lado da loucura7, num espaço moral de exclusão. (FOUCAULT, 2005, pp. 06-08)
Esse mundo do começo do século XVII é estranhamente hospitaleiro para com a
loucura. Ela ali está presente, no coração das coisas e dos homens; torna-se uma forma
relativa à razão, ou melhor, entram numa relação reversível, que faz com que toda loucura
tenha sua razão que a julga e controla e toda razão sua loucura. Cada uma é a medida da outra

7
“Antes da loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor,
velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. Um
objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará
lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos
canais flamengos. A moda é a composição dessas naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos
ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhe traz, senão fortuna, pelo menos a figura
de seus destinos ou suas verdades. (...) A Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram,
esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para a outra. Os loucos tinham então uma existência
facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros. Esse costume era frequente particularmente
na Alemanha.” (FOUCAULT, 2005, p. 09)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

e nesse movimento recíproco elas se recusam e se fundamentam. Assim, vê-se aparecer o


tema literário do “Hospital dos Loucos”. (FOUCAULT, 2005, pp. 30-44)
Em 1656, assinou-se o decreto da fundação do Hospital Geral em Paris (um marco
da internação de doentes mentais). Diversos estabelecimentos já existentes foram agrupados
sob uma administração única e todos destinados, inicialmente, aos pobres da cidade. O
destaque deste Hospital é que não era só um estabelecimento médico, mas uma estrutura
semijurídica que, ao lado dos poderes já constituídos, decidia, julgava e executava. Segundo
Foucault (2005, p. 50), o Hospital era um estranho poder que o rei estabeleceu entre a polícia
e a justiça, nos limites da lei: era visto como a terceira ordem da repressão.
O Classicismo inventou o internamento, a segregação e cooptou novos alvos: os
internos. O gesto que aprisiona deixou de ser exclusivamente médico e passou a ter
significados políticos, sociais, religiosos, econômicos e morais. Surgiu, então, em toda a
Europa essa categoria da ordem clássica que em cinquenta anos tornou-se um instituto
abusivo de elementos heterogêneos. A prática do internamento designou uma nova reação à
miséria, novas formas de reação diante dos problemas econômicos, do desemprego e da
ociosidade, sob as formas autoritárias de coação. Estas práticas ficaram presentes na
construção das cidades de internamento e em suas organizações e foram perpetuadas ao longo
dos séculos!
O século XIX exigiu que se atribuíssem exclusivamente aos loucos esses lugares de
internação, que tinham destinatários diversos nos anos anteriores. Este século, como enfatiza
Pessotti (1996, p. 09), merece o título de “século dos manicômios”. Jamais o número de
hospitais destinados a alienados foi tão grande, a terapêutica da loucura foi tão vinculada à
internação, bem como os números de internações atingiu proporções tão grandes. Enfim, em
nenhum outro momento histórico a variedade de diagnósticos de loucura para justificar a
internação foi tão vasto, nem tampouco a medicina da loucura floresceu tanto. “O manicômio
foi nuclear na geração da psiquiatria como especialidade médica”.
A partir daí passou-se a ter um “arsenal” de armas e uma “estrutura” de guerra
configurada. Instrumentos terapêuticos violentos, a dura disciplina da conduta clínica, as
práticas repressivas da vida manicomial, tudo isso demonstrou (e ainda demonstra) o quanto a
medicina se aproximava do louco como inimigo que, além de perigoso, por isso sempre
vigiado de perto, carrega em si uma “natureza”, “instintos”, “impulsos”, ou seja, uma
“animalidade” que precisa(va) ser domada. Eis o inevitável dilema das instituições

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psiquiátricas, destinadas a proteger o paciente da fúria da comunidade, como também a


proteger a comunidade do indivíduo doente e perigoso. (PESSOTI, 1996, p. 13)
Percebe-se que estas instituições de controle sempre admitiram o doente mental sob
uma perspectiva de inimigo que precisa ser neutralizado, se não, eliminado. Isto porque, esta
dita “perigosidade”8 é tanto ameaçadora para a própria comunidade, no qual está inserido,
quanto para o próprio indivíduo. A mesma lógica foi implantada no que se refere às Medidas
de Segurança. Neste caso, o indivíduo acometido de uma doença mental, comete um injusto e
penal e aí sim, ocorre a chamada psiquiatrização do Direito Penal. Este se apropria do
problema (de forma narcísica como salvador da pátria9) - manifestando a dupla função de
proteção já mencionada - e exerce toda sua força de “guerra” ao racionalizar a vingança
comunitária. Aqui a rotulação da “periculosidade” cumpre um duplo papel: imantar a
necessidade de tratamento via imposição de diagnóstico de doença mental e também
contemplar a necessidade de neutralização penal, via exclusão. “A periculosidade torna-se o
principal atributo do louco e paradoxalmente vai produzir a necessidade de segregação por
meio da defesa social e o aparecimento das medidas de segurança no final do século XIX”.
(MATTOS, 2006, p. 57)

4. A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO CORDÃO SANITÁRIO DE CONTROLE

As Medidas de Segurança, na sua gênese, são consideradas um tipo de sanção penal,


diferentemente das penas privativas de liberdade, pois possui cunho eminentemente
preventivo orientado pela prevenção especial10, ou seja, impedir que o inimputável ou semi-
imputável volte a delinquir, salvaguardando, assim, o indivíduo doente e o meio social no
qual está inserido. O discurso oficial, alicerçado pelos princípios de humanidade, legalidade,
dignidade, devido processo, etc., enfatiza que o propósito socializador das Medidas de
Segurança deve prevalecer sobre a intenção de segurança, pois sua aplicação tem por
finalidade um tratamento-ressocializador, admitindo de forma subsidiária a segregação.
No Brasil, a partir de 1984, as Medidas de Segurança detentiva e restritiva11 foram
estabelecidas como instrumentos de proteção social e terapia individual, com natureza

8
Que na aplicação da medida de segurança é entendida como periculosidade.
9
Sobre o assunto ver, Carvalho (2010).
10
As idéias especiais prevencionistas - exacerbadas pelos positivistas - defendiam que o delinqüente não
precisava mais de retribuição pelo mal praticado, mas de tratamento.
11
O ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê somente duas espécies de medidas de segurança, quais sejam:

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preventiva assistencial, fundada na periculosidade de autores inimputáveis e semi-imputáveis


de fatos definidos como crimes com o objetivo de prevenir prática de fatos puníveis no futuro,
conforme artigos 96 e 97 do Código Penal.
O projeto científico então é claro e inegociável: realizar análise empírica individual
(microscópica) entre os indivíduos integrantes dos grupos que apresentam características
delituais, com o intuito de identificar (diagnóstico) a origem causal patológica (etiologia), de
forma a projetar tratamento (prognóstico) para anular ou reprimir o impulso criminal do
indivíduo (periculosidade). (CARVALHO, 2010, P. 157)
No entanto, apenas de forma deslocada, a atuação do Estado continua sendo de
controle social através do uso de uma violência institucionalizada12, desenvolvida dentro do
sistema penal13. As medidas de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico
(antigo manicômio judiciário) são vistas como forma de inocuização, segregação e
neutralização por parte de uma “instituição total”. Esta, por sua vez, é um híbrido social,
parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal. Como função oculta,
funciona como estufa para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se
pode fazer ao eu. (GOFFMAN, 2005, p. 22)
As instituições totais não têm interesse na preservação da relação do doente com o
meio externo. Pelo contrário, as relações familiares, culturais, interpessoais, educacionais -
geralmente já fragilizadas antes da internação14 -, em virtude da barreira e dos muros do

uma detentiva, consistente na internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e outra restritiva,
referente ao tratamento ambulatorial. (art. 96 do Código Penal). De forma geral, a internação em hospital de
custódia e tratamento psiquiátrico destina-se, obrigatoriamente, aos inimputáveis que tenham cometido um
injusto (crime), punível com reclusão; e facultativamente, aos que tenham praticado um injusto cuja natureza da
pena abstratamente cominada seja de detenção (art. 97 CP). Ademais, o semi-imputável também poderá ter a
pena privativa de liberdade substituída por medida de segurança (art. 98 CP), inclusive na modalidade de
internação, se comprovado necessidade de especial tratamento curativo. Quanto ao tratamento ambulatorial só é
imposto em casos crimes apenados com detenção.
12
Por violência institucionalizada entendemos a violência do Estado em sua forma mais concreta – a violência
da polícia e dos diversos sistemas de encarceramento e tutela de que se tornam alvo alguns segmentos da
população. É a violência exercida sobre o corpo e portanto sobre a mente, que é também corpo, conforme Rauter
(2001, p. 03).
13
Seguindo o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli (2002. p.70), chamamos “sistema penal” ao controle social
punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita
de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que
institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta
é a ideia geral de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da
polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.
14
Nas palavras de Goffman (2005, p. 24): “As instituições criam e mantêm um tipo específico de tensão entre o
mundo doméstico e o mundo institucional, e usam essa tensão persistente como uma força estratégica no
controle dos homens.”

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“hospital”, acabam por desaparecer pelo processo de perda gradual e mortificação da essência
daquele ser segregado - o que chega a ser menos desejável que a morte física.
Esse processo de mortificação inicia-se com o “ritual de passagem”do processo
penal, que marca um “estágio de vida a outro”, numa experiência simbólica da morte e do
renascimento porque implica mudança radical de regime ontológico e de estatuto social.
Trata-se sempre de um fato bruto, seja real ou simbólico: apesar de suscitar uma “iniciação”, a
mortificação pela qual o indivíduo passa é irreversível.
Nesse sentido, apesar da concepção da morte ser tida como geradora de “vida” ou de
uma nova fase, no rito do processo penal, com a decretação da Medida de Segurança,
sobretudo detentiva, o efeito é totalizante. A única direção que se tem é a
exclusão/eliminação/neutralização do indivíduo. “A `morte´ aqui foi transformada até tornar-
se vergonhosa e objeto de interdito absoluto” (ARIÈS, 1989).
A irreversibilidade dessa morte destacada traz consigo a destruição do ser enquanto
indivíduo; o sofrimento não vem da existência do problema, mas sim porque sua existência é
um problema para o Estado. Essa prática punitiva gera a perda da individualidade.
“Individualidade esta que se revolta perante a morte e que se afirma sobre a morte” - que é a
própria execução da Medida de Segurança detentiva (MORIN, 1976). “A desqualificação
como inferior, louco, criminoso ou pervertido consolida a exclusão e é a perigosidade pessoal
que a justifica”. (SANTOS, B., 2006, p. 281)
Numa sociedade meritocrática e capitalista - onde o foco cultural e social está sobre
os bem sucedidos em que os vencedores levam tudo - os doentes mentais não tem nenhuma
chance (de “sobrevivência”) e acabam sendo transformados em “bodes expiatórios”, ou seja,
desviantes que são segregados espacial e socialmente, além de serem mortificados. Por isso as
medidas de segurança caem como uma luva, pois atendem perfeitamente ao clamor da
sociedade e a vontade (oculta) do Estado ao consolidarem aquilo que Young (2002, p. 45)
denomina de cordão sanitário de controle.
Nesta perspectiva de sanitarismo, higienização e controle, podemos dizer que Strauss
(1996) tinha razão: vivemos sim numa sociedade moderna antropoêmica. Expelimos
indivíduos perigosos e os mantemos temporária ou permanentemente em isolamento, longe de
seus pares, em estabelecimentos totalizantes. Para Young (2002, p. 92), a sociedade tem
aspectos devoradores e ejetores. A família pode vomitar o doente e o hospital psiquiátrico
pode tentar devolver o paciente plenamente digerido e normalizado ao seio familiar. Por outro
lado, percebemos que em casos de doentes mentais que tenham cometido algum tipo de

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injusto penal ocorre a expulsão e a absorção simultânea pela mesma instituição. Isso porque,
no caso do Estado, o mesmo mecanismo que exclui (social, moral e instrumentalmente), é o
que absorve este indivíduo pela lógica do controle e neutralização totalizadora. Teríamos
então uma antropoemia e uma antropofagia inocuizante!
Nessa produção de imagens do doente mental na sociedade atual, este é visto pelo
viés da piedade, do medo, da intolerância, da representação do destrutivo, do negativo e do
mal social, um outsider15. Isto quer dizer que ao lado da medida de segurança transparece a
“demonização” dos doentes mentais por aquilo que eles podem significar: o mito da loucura.
Assim, a tônica da repressão16 pelo internamento (segregação/inocuização) reflete claramente
a negação ao aceitar o diferente, retirando esses indivíduos de um lugar onde eles não podem
circular porque incomodam, violador de princípios constitucionais os quais o Estado
legitimador se propôs a garantir17. (MARCHEWKA 2004, p. 183)
A lógica de intolerância parte da gestão de exclusão, orientada para a política de
homogeneização, introjetada pela modernidade capitalista. Na construção deste universalismo
antidiferencialista, obteve-se o direito à indiferença e não o direito à diferença como o
idealizado. Nesse sentido, Santos, B. (2006, p. 292-293) explica:

As mulheres, os homossexuais, os loucos, os toxicodependentes foram objeto de


várias políticas todas elas vinculadas ao universalismo antidiferencialista, neste caso
sob a forma de normatividades nacionais e abstratas quase sempre traduzidas em lei.
(...) A gestão controlada da exclusão tratou de diferenciar entre as diferenças, entre
as diferentes formas de exclusão, permitindo que algumas delas passassem por
formas de integração subordinada, e outras fossem confirmadas no seu interdito.
(grifo nosso)

Como os doentes mentais não consomem e não votam - ou seja, requisitos de


valorização impostos pela política de globalização neoliberal hegemônica -, não são

15
Sobre outsiders, ver: Becker (2008).
16
Os métodos punitivos (penas e medidas de segurança) devem ser analisados como técnicas que têm sua
especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder, ou seja, devem ser vistos como tática
política. Pela análise da suavidade penal como técnica de poder, pode-se compreender como o homem, a alma,
o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos de intervenção penal.
(FOUCAULT, 2006, p. 24)
17
Nessa perspectiva de violação dos preceitos constitucionais e de destaque da criminalização, Andrade (2003,
p. 28-29) aponta como saída para essa estrutural desigualdade dos espaços impostos pelo caminho único que:
“a construção social da cidadania deve funcionar como antítese democrático-emancipatória à construção social
autoritário-reguladora da criminalidade; a maximização dos potenciais vitais e democráticos da cidadania deve
operar, processualmente, no sentido da minimização dos potenciais genocidas da criminalização”. A autora
continua afirmando que “nesse momento deve-se lutar pela radical primazia do Direito Constitucional sobre o
Direito Penal, da Constituição e seus potenciais simbólicos para a efetivação da(s) cidadania(s) sobre o Código
Penal, da constitucionalização sobre a criminalização”.

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contemplados com a progressão da exclusão do pacto social para o ingresso no sistema de


desigualdade, proporcionado pelo trabalho (visão marxista). Dessa forma, clientes perfeitos
não do mercado consumidor, mas do sistema penal, permanecem confinados e confirmados
no sistema de neutralização das “instituições totais”, garantidoras da ordem e da manutenção
da regulação social. O grande problema é essa eterna confirmação do interdito sob a égide da
proteção da sociedade e da cura do indivíduo inimputável (discurso da função declarada da
prevenção especial). Essa situação de durabilidade indeterminada da medida torna-se um
tanto incongruente com o discurso legitimante do Estado Democrático de Direito, estando
mais próximo do Estado autoritário, no qual vem se pautando o sistema penal brasileiro18.
Percebe-se, então, a relação de contradição entre exposto no discurso dogmático
legitimador19 e a real aplicação dessa forma de sanção penal, onde seu último destino acaba
por apresentar uma privação de liberdade representante de uma expressão máxima de
violência, análoga ou até mais perigosa que as outras formas de manifestação do poder
punitivo do Estado20.
Garcia (1973, p. 594) reitera tal assertiva:

Não há meios seguros de distinguir penas e medidas de segurança, advertindo sobre


a diminuta valia dos critérios de diferenciação. Ou seja, umas e outras se endereçam
às mesmas espécies de bens jurídicos. Quando se impõe uma pena, atinge-se o
delinqüente na sua liberdade ou no seu patrimônio, o mesmo acontece com a medida
de segurança.

Rauter (2003, p. 12) também observa a aplicabilidade deste tipo de sanção penal
completamente diferente do que propõe o discurso dominante, afirmando que o que se quer
hoje, “sob uma pressão histérica de um inexorável e incontrolável aumento da criminalidade,
é diagnosticar para encarcerar pura e simplesmente, mas do que para tratar ou individualizar a

18
“No plano epistemológico a matriz criminológico-psiquiátrica foi reduzida ao local da auxiliaridade (saber
menor e servil à dogmática penal), sua instrumentalização política lhe possibilitou definir regras de ambas as
instituições totais (cárceres e manicômios), estruturando materialmente as penas e as medidas de segurança
como mecanismos de reforma moral dos outsiders”. (CARVALHO, 2010, P. 163)
19
Segundo Ribeiro (1998, p. 18-21): “O novo sistema de defesa social proposto era baseado, sobretudo na
prevenção especial, visando atuar sobre a pessoa do criminoso, para inocuizá-lo ou curá-lo. Ao menos em tese
nada conteria de retribuição e aflição, fundamentando-se na periculosidade do agente, contudo não era
suprimida a idéia de prevenção geral, decorrente da intimidação genérica da coletividade.
20
Expõe Marques (1966, p. 176): “Não se registra, porém, qualquer diferença substancial que faça de ambas
(pena e medida de segurança) categorias heterogêneas no campo dos institutos jurídicos, ou compartimentos
estanques entre as providências de que se arma o Estado para combater a criminalidade”.

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pena”.21 Vivemos, como foi dito, um paradoxo entre discursos e práticas associadas ao
humanismo: “por um lado a alteração do papel do Estado proporciona o reconhecimento de
novos valores, ultrapassando a limitada perspectiva individualista; por outro potencializa a
atuação das agências punitivas, engrenagem radical no mecanismo estatal de controle social
associada à violação dos Direitos Humanos” (CARVALHO, 2008, p. 489).
O indivíduo acometido por doença mental que cumpre medida de segurança, pela sua
qualidade de “diferente” e “inimigo” da sociedade, não é visto como sujeito de direitos, o que
se agrava pelo fato de que, além de não ser tratado clinicamente como deveria, lhe são
negados os direitos mínimos que assistem ao preso comum, tais como: detração, progressão
de regime, livramento condicional, suspensão condicional da pena, determinação do limite
máximo de duração da sanção. No mais, na construção do conceito de periculosidade do
agente, além de aspectos sociológicos e jurídicos (que se diga, no caso da imposição da
medida de segurança detêm uma importância secundária), inclui-se o caráter patológico ao
fenômeno do crime, ou seja, o estado pessoal do sujeito perigoso remete ao seu passado,
presente, e, sobretudo, ao seu futuro (como um ser perigoso capaz de cometer novos crimes e
que precisa ser neutralizado).
Assim, o trabalho exigido pelo Direito inverte a ordem das investigações
psiquiátricas: “não se trata da averiguação de crime cometido por indivíduo, já anteriormente
conhecido como doente mental, mas sim, na maioria dos casos, da investigação da existência
de doença mental em virtude do cometimento de crime” (SOUTO, 2007, p. 579). O perito, ao
realizar o exame psiquiátrico, pressupõe como culpado um sujeito pela prática de um fato
delituoso do qual a materialidade e a imputabilidade não foram ainda juridicamente
comprovadas. Os peritos - “operadores secundários” – acabam formulando sobre o crime e o
criminoso um discurso biopsicopatológico para justificarem a punição.
Quanto ao exame de verificação de periculosidade do agente, o sistema penalógico
adotado pela LEP “psiquiatriza” a decisão do magistrado. A constante delegação, por parte
dos magistrados, da motivação do ato decisório ao perito, que o realiza a partir de julgamentos
morais sobre as opções e condições de vida do sancionado, estabelece mecanismos de (auto)
reprodução da violência pelo reforço da identidade criminosa (CARVALHO, 2007).

21
Santos, B. (2006 p. 281) ainda reitera afirmando que “a desqualificação como inferior, louco, criminoso ou
pervertido consolida a exclusão e é a perigosidade pessoal que justifica a exclusão. A exclusão da normalidade
é traduzida em regras jurídicas que vincam, elas próprias, em exclusão.”

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O excesso de subjetivismo observado nos laudos, denominado por Lopes Júnior


(2002, p. 470) de “ditadura do modelo clínico” vulnera os princípios mais importantes do
sistema processual penal brasileiro, quais sejam: o da livre convicção, o da motivação das
decisões, o da presunção de inocência, dentre outros.
Isso porque, acrescenta Santos, J. (2005, p. 193):

O problema começa com a falta de credibilidade do prognóstico de periculosidade


criminal: se a medida de segurança pressupõe prognose de comportamento
criminoso futuro, então inconfiáveis prognósticos psiquiátricos produzem
conseqüências destruidoras, porque podem determinar internações perpétuas - em
condições ainda piores do que as de execução penal. Na verdade, parece
comprovada a tendência de supervalorização da periculosidade criminal no exame
psiquiátrico, com inevitável prognose negativa do inimputável - assim como, por
outro lado, parece óbvia a confiança ingênua dos operadores jurídicos na capacidade
do psiquiatra de prever comportamentos futuros de pessoas consideradas
inimputáveis, ou de determinar e quantificar a periculosidade de seres humanos.

Nessa linha, Zaffaroni (2007, p. 98 - 162) destaca que parece bastante claro que as
penas detentivas desproporcionais e indeterminadas (medidas) dos textos que acompanham o
código italiano de 1930 (códigos uruguaio e brasileiro) estão destinadas à eliminação de
inimigos (criminosos graves, por um lado, e indesejáveis, por outro). Para o autor, por mais
que se relativize a ideia, quando se faz a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não
pessoas), está-se referindo a seres humanos que são privados de certos direitos fundamentais
em razão de não serem mais considerados pessoas. Esta distinção não é uma invenção
gratuita de Jakobs nem de nenhum outro doutrinador moderno, mas sim uma consequência
necessária da admissão das medidas de segurança e outras medidas excludentes.
A abertura e a visibilidade das relações que se estabelecem nas instituições totais
realizadas pela criminologia crítica (cárcere) e pela antipsiquiatria (manicômios) possibilitam
perceber as formas físicas e simbólicas de violência exercidas nos espaços institucionais de
controle social. No primeiro aspecto (violências físicas), a forma asilar de tratamento revela-
se absolutamente ofensiva aos direitos humanos fundamentais mínimos (seja pela estrutura
física dos manicômios ou pelas práticas terapêuticas). No segundo aspecto (simbólico), o
efeito estigmatizador da internação manicomial revela a impossibilidade do tratamento, ou
seja, demonstra ser a prática isolacionista antagônica à própria ideia de recuperação e de
reinserção do paciente na comunidade. (CARVALHO, 2010, p. 168)
Tem-se, portanto, o que se denomina de “criminalização da doença” (SOUTO, 2002,
p. 585), em que a doença mental impulsiona a qualificação do sujeito como perigoso e ser

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perigoso passa a ser fator criminógeno. O que a princípio seria motivo de clemência (a
doença) acaba se tornando a razão de supressão de direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A noção de Estado Democrático de Direito que temos hoje, está embasada na


necessidade de proteção de valores, esses valores se concretizaram em direitos fundamentais,
direitos fundantes de nossa ordem jurídica-estatal. Conforme foi dito, a proteção aos direitos
humanos, positivados como direitos fundamentais é a ideia reitora por trás da fundação de
nossas instituições (mesmo as de controle). As instituições em um Estado Democrático são
contramajoritárias e se destinam a resguardar os indivíduos contra a potencial violência das
massas. Essa nova realidade, baseada na moderna preocupação pelas vítimas, faz com que não
vivamos mais a democracia como ditadura da maioria, mas sim a era do que Zagrebelsky
chama de democracia crítica (ZAGREBELSKY, 2011, p.34).
Apesar disto, o portador de doença mental, que antes fora vítima da perseguição
coletiva, segue hoje sofrendo violência física, psicológica e o abandono no seio das
instituições de controle. E a essa altura é difícil saber se essas instituições foram forjadas em
períodos antidemocráticos e não mudaram com a democracia; se a perversidade da sociedade
escandalizada contamina os agentes do Estado (que acabam por reproduzir institucionalmente
o mecanismo do “bode expiatório”); ou se a nossa natureza sacrificial está em eterno
descompasso com os valores democráticos.
Há ainda a assustadora perspectiva de que todas essas afirmações possam ser
verdadeiras e que a esperança de dias melhores para os doentes mentais seja apenas uma doce
utopia. Nesse sentido podemos dizer que a efetivação dos Direitos Humanos no que tange ao
doente mental tutelado pelo estado (mesmo que democrático) é um horizonte, uma aporia, um
não caminho. Algo que todos devemos nos empenhar para que se torne real, mas que
dificilmente será alcançado de forma plena.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Câmeras de Vigilância – Um sistema de controle social


Surveillance Cameras - A system of social control

Rafael Mendes Zainotte Pitzer

RESUMO
Vivemos em uma sociedade constantemente observada. As câmeras de segurança estão
dentro e fora das casas, prédios e estabelecimentos comerciais. Instaladas pela iniciativa
privada ou pela administração pública, não há mais como fugir de suas lentes. O que resta
então é questionar suas funcionalidades bem como seus efeitos sobre a vida em sociedade.

Será que as câmeras realmente são eficientes na redução da criminalidade? Qual é o limite
da sua utilização? Existe alguma política de segurança pública ideal? Quais são seus
efeitos sobre a formulação e aplicação da lei penal?

Esses questionamentos serão apurados neste trabalho por meio da análise de obras como
1984, de George Orwell, Vigiar e Punir, de Michel Foucault.

Palavras-chave: Câmeras de Vigilância; Controle Social; Política Pública

ABSTRACT

We live in a society where security is a key concern. Security cameras are inside and
outside homes, commercial buildings and facilities. Both public and private institutions
make use of security systems, and it is virtually impossible to get out of lenses’ range.
What contemporary society can do is to question the applicability and the impact constant
surveillance causes on society.

Are video surveillance systems effective in reducing criminality? What are the boundaries
for their application? Is it possible to have an ideal government security policy? What is
the impact of video surveillance on the conception and application of criminal law?

This work aims at investigating the questions presented above by analyzing Works such
as George Orwell’s “1984”, and Foucault’s “Vigiar e Punir”.

Keywords: Surveillance Cameras; Social Control; Public Policy

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Introdução

As câmeras de vigilância já eram uma realidade em alguns países do Ocidente, mas


somente após os ataques de 11 de setembro, nos Estados Unidos, é que a vigilância
eletrônica tomou proporções de crescimentos estrondosos em boa parte do mundo.
Embora não haja dados disponíveis, pode ser observado que nos últimos anos ocorreu
uma forte disseminação das tecnologias de vigilância eletrônica em muitos países, e não
só no Ocidente. O Brasil também não fugiu à regra, pois temos um sistema de vigilância
que confunde as esferas da segurança pública com a privada. Cada vez mais, na verdade,
os gastos privados (sejam eles de empresas ou particulares) vem se ampliando, fazendo
face ao também crescente gasto público na área de segurança.

Um dos objetivos do sistema de vigilância eletrônica é proporcionar à ideia de segurança


e ao mesmo tempo, servir como um modelo de controle social, trabalhando em conjunto
com o direito penal na busca de diminuir a criminalidade.

O marco teórico será a obra Vigiar e Punir do autor Michel Foucault.

O problema dessa investigação científica será a verificação da eficiência das câmeras na


redução da criminalidade.

A pesquisa se justifica pela importância e pelas proporções que a vigilância eletrônica


tomou no Brasil. As câmeras de segurança estão dentro e fora das casas, prédios e
estabelecimentos comerciais. Instaladas pela iniciativa privada ou pela administração
pública, não há mais como fugir de suas lentes.

Com a pesquisa espera-se comprovar que as câmeras de vigilância são formas de controle
social que podem atuar em conjunto com o Direito Penal, sendo esta a hipótese do
presente trabalho.

Desenvolvimento

1. CONTROLE SOCIAL POR MEIO DO DIREITO PENAL


1.1. LIMITAÇÃO DA CONDUTA HUMANA

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O fato de todos os seres humanos serem iguais no seu egoísmo faz com que a ação de um
só, seja limitada pela força do outro. Nesta feita, baseia-se Thomas Hobbes, com a célebre
frase: "O homem é o lobo do homem."

Hobbes, enquanto teórico contratualista do séc. XVII, defendia que o Estado surgiu de
um contrato firmado entre os indivíduos, que abririam mão de sua liberdade a fim de
estabelecerem uma sociedade em harmonia. Do contrário, viver-se-ia em um Estado
Natural, em que cada indivíduo teria direito a tudo. Uma vez que todas as coisas são
escassas, existiria uma constante guerra de todos contra todos.

Os homens têm interesse em acabar com o estado de guerra, pois, enquanto alguns podem
ser mais fortes ou mais inteligentes, nenhum se ergue tão acima dos demais por medo de
que outro lhe faça mal. Ainda que não haja batalha, esta restaria latente, podendo ocorrer
a qualquer momento, deixando entre todos um constante medo recíproco.

Assim, para garantia da segurança coletiva, faz-se necessário a implantação de um Estado.

Ao que diz a teoria, os homens escolheram abdicar de sua liberdade para desfrutarem dos
benefícios da ordem política. Desta forma, em um primeiro momento, para recepção plena
do estudo, relevante é, pois, despir-se do conceito prévio de que a limitação da liberdade
coloca-se como negativa, ao passo que se experimenta certa sensação de conforto, na
simples consciência de que há um ordenamento jurídico regulamentando ações humanas
e tutelando relações jurídicas.

Ainda que vaga, tem-se a noção de haver um Estado a que possa recorrer, cujo dever é
proteger direitos, punir infratores e, de forma geral, jurisdizer.

Caso todos fossem livres, ou seja, na ausência do Estado de Direito, haveria um impasse
ao constatar-se que direitos ilimitados acabariam sendo mutuamente massacrados. Como
dito por Sartre : "A liberdade é absoluta, ou não existe."

Não podemos pensar em liberdade como privação de determinadas ações. O ordenamento


jurídico não proíbe nenhuma conduta, porém, traz dispositivos cujo conteúdo é não só a
hipótese, como também a sanção. Esta vista como forma de conter ações, ou ainda, as
controlar.

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Assim, é ilusória a ideia de serem os homens livres, ao passo que muitas condutas
acarretam pena privativa de liberdade. O que deixa-se claro não ser ruim, vez que é a
forma pela qual obtêm-se a heterotutela.

O Estado que aqui faz-se referência faz valer sua vontade por meio do Direito, e o controle
que aqui dá-se enfoque é o realizado pelo Direito Penal.

1.2. DO CONTROLE SOCIAL EXERCIDO PELO DIREITO PENAL

Como dito por Hegel, "Aplicada a sanção restaura-se o vigor de uma norma violada."

Assim, um dos possíveis sentidos de Direito enquanto norma é que o Estado irá garantir
aos infratores do ordenamento positivado, uma devida sanção.

O ordenamento jurídico penal traz tipos, ou seja, previsões abstratas legalmente


estabelecidas, que visam enquadrar as condutas humanas que fogem do ordinário e ferem
o tido como aceitável.

Extrai-se daí que é feito juízo valorativo a fim de delimitar o que transgride ou não o
interesse popular, cabendo ao Direito regular os fatos, no âmbito da cultura de um povo,
exercendo um controle formal, por ser realizado pelas regras positivadas.

A cada transgressão cabe uma sanção, que servirá não só para restauração do sistema,
como para buscar o justo. Restaura-se o sistema, pois, entende-se que a regra violada foi
falha, deixando lacunas, e o Estado fora ineficiente. Deve, então, o Direito buscar punir
o infrator, demonstrando que o ordenamento se reafirmou, e dando-lhe tratamento para
que, não só responda por sua conduta, mas também, que esteja apto a reintegrar à
sociedade quando do fim de sua sanção. Com a restauração do sistema, obtêm-se a justiça.
Esta, segundo Ulpiano, é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Logo, estaria dando ao infrator a punição por ele merecida, e à sociedade, a eficácia que
o Estado deve ter enquanto garantidor da segurança e bem-estar, para que assim seja
atingida a pacificação social.

As sanções funcionam também, como ameaças à sociedade, que passará a ficar alerta
quanto das consequências que ao praticar-se alguma transgressão pode-se sofrer. Assim,

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estas precisam ser sempre atualizadas para manter sua eficácia e evitar a quebra do
sistema.

O Direito Penal é o meio de coerção mais gravoso, além disto, ante ao considerável lapso
temporal decorrido, junto do crescimento demográfico do século, faz-se necessário não
só o controle dado pelos tipos penais, como a reformulação do ordenamento que a isto se
dedica.

Basta fazer breve análise da transformação cultural ocorrida desde o início da História do
Direito até os dias atuais, para que se verifique a natural e esperada necessidade de
adequação dos meios de coerção social.

O ordenamento divide as regras de acordo com seu grau de imperatividade, havendo


aquelas que são apenas de organização, não pretendendo impor nenhuma coerção; as que
estabelecem uma obrigação, mas, não impõem sanção; as de caráter promocional, que
não obrigam, apenas estabelecem uma promoção; as constitucionais, que são
programáticas; e enfim, as internacionais, que demonstram a soberania dos Estados.

Houve considerável descrença no sistema penal em todas suas esferas seja: inquisitorial,
processual ou até, de fato, o carcerário. Conta-se com um Código de Direito Penal de
1940 e um Código de Processo Penal de 1941. Insuficientes se fazem os remendos pelos
quais já passara o ordenamento. Há clara necessidade de mudança.

Os princípios começam a perder o sentido ante a este atraso. A Unidade do Ordenamento


Jurídico resta enfraquecida ao tentar unir a esparsa legislação. O número de atos
normativos faz contradição ao que deve ser o Direito: meio de fácil acesso e
conhecimento a todos. E coloca grande impedimento ao conhecimento da lei, mas,
lembra-se que, segundo dispõe o art. 3º das Lei de Introdução às normas do Direito
Brasileiro, ninguém se escusa de cumpri-la alegando que não a conhece.

Há intenção do Estado em deixar tais regras como verdadeiras ameaças à sociedade, em


uma manifestação de superioridade, cuja imposição deverá ser respeitada. Por que fala-
se, então, em ineficácia do sistema?

Conclui-se que a ameaça, ainda que perfeita (o que, em fato, não ocorre, em decorrência
do deficiente ordenamento, conforme visto), não basta para exercício de efetivo controle.

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Há que ser dada a punição. E é neste sentido que resta, pois, insuficiente a presença do
Estado.

2. 1984 – ANÁLISE E APLICAÇÃO AO ESTUDO

O livro 1984 retrata uma sociedade dominada por um Estado, conhecido como Pista Nº
1, extremamente totalitário, que impunha, além de suas leis, um estilo de vida às pessoas.
O Estado relatado pelo livro é subordinado pelas ideologias do seu Partido, liderado pelo
Grande Irmão, no qual se considerava dono da verdade, o controlador do passado,
presente e futuro, e buscava controlar as ações e até os pensamentos da população por
meio de muitos métodos, que tinham a finalidade de vigiar e monitorar a todos.
Principalmente com a instalação das chamadas “Teletelas”, um televisor bidirecional, que
transmitia diariamente as programações do Partido, como também conseguia ver todos,
monitorando todas as suas atividades, tanto em casa, quanto no trabalho.

“No interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que de
alguma forma dizia respeito à produção de ferro-gusa. A voz saía de uma placa oblonga
de metal semelhante s um espelho fosco, integrada à superfície da parede da direita.
Winston girou um interruptor e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras
continuassem inteligíveis. O volume do instrumento (chama-se teletela) podia ser
regulado, mas não havia como desliga-lo completamente.” (Orwell, George 1984.
Companhia das Letras. Página 12).

1984 relata a história de Winston Smith, jovem que durante a trama nutre um repúdio
pelo Partido, porém, devido a condições alheias a sua vontade, era obrigado a viver
segundo o estilo de vida que lhe era imposto. No regime, apesar de não possuir leis que
reprimissem os cidadãos diretamente, havia um controle baseado em uma moral que era
estabelecido pelo próprio Estado, e que, se desrespeitadas, os faziam temer as sanções
severas advindas deste, pois, até pequenos atos, como andar na rua ou escrever, se
considerados uma fuga do padrão, poderiam ser enquadrados pelo partido como uma
rebelião, sendo a pessoa considerada inimiga do Partido.

“... Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico
(...). Você era obrigado a viver – e vivia, em decorrência do hábito transformado em
instinto – acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse

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completa, todo movimento examinado meticulosamente.” (Orwell, George 1984.


Companhia das Letras. Página 13).

No primeiro capítulo Winston, por um sentimento de necessidade de expor sua


indignação com o regime, algo que o sufocava e deixava desgostosa sua vida, começa a
escrever em um diário, atitude que seria condenada pelo Partido, mas mesmo assim ele
segue, secretamente, adiante, registrando nas páginas do diário sua aversão pelo Partido
e pelo Grande Irmão, além de registrar suas memórias.

“Seus olhos voltaram a fitar a página. Constatou que durando o tempo em que ficara ali
sentado sentia-se desamparado, continuara a escrever, como numa ação automática. (...)
ABAIXO O GRANDE IRMÃO...” (Orwell, George 1984. Companhia das Letras.
Pág.29).

Ao longo da história é retratado sua rotina, contendo suas funções diárias como
trabalhador do Ministério da Verdade, posteriormente Winston conhece Júlia, uma jovem
funcionária do Departamento de Ficção que também compartilhava o mesmo repudio
pelo Partido. No entanto, uma das grandes proibições do regime eram os relacionamentos
amorosos. Mas, mesmo com essa proibição, o casal se tornam cumplices e, devido a esse
sentimento mútuo, se apaixonam e logo se tornam amantes, se encontrando e um quarto
escondidos, no qual não possuía teletelas, no bairro dos proletariados, na cidade que era
a antiga Londres.

Certo dia, Winston é abordado por O´Brien, que era um membro interino do Partido, que
o convida para ir ao seu apartamento. Lá revela que há uma possibilidade de insurreição
contra o Partido, oferecendo uma obra política de Goldstein, considerada o maior inimigo
do Partido. E, é a partir desse momento que Winston, juntamente com Júlia, são
capturados e torturados por O´Brain.

Os processos de tortura são demonstrados como uma forma de purificação do inimigo,


que é realizado através de torturas físicas e psicológicas. O próprio fim de todos os
procedimentos é realizar uma lavagem cerebral no “criminoso” ou, em casos mais
extremos, realizar atos de punição que sejam exemplares para a sociedade: “os
enforcamentos”. E, muitos dos que eram capturados estavam à mercê da vontade do
Estado, correndo o risco ou não de serem “poupados”.

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George Orwell escreve 1984 como uma metáfora aos regimes totalitaristas existentes na
sua época, o autor escreveu o livro em 1948, período pós-Segunda Guerra, conhecido
pelo surgimento da União Soviética, alinhada as ideologias do seu partido comunista, e
também pela presença dos partidos fascistas. E o seu livro critica o poder de manipulação
e controle destes partidos totalitários, mostrando em sua obra um possível alerta contra
estes partidos, cuja sua dominação sobre seu povo pode chegar a ser tão grande que a vida
privada deste, desapareça, e que todos os seus atos sejam 24 horas por dia monitorados
pelo Estado.

No presente trabalho, utilizamos a obra 1984 para exemplificar o tema da vigilância do


Estado na utilização de câmeras de segurança em locais públicos. É observado no livro a
vigilância invasiva e frequente do Estado, que utiliza de “teletelas” para monitorar e
controlar a vida da população.

As “teletelas”, com são denominadas no livro, são câmeras de monitoramento, tal qual as
que são utilizadas hoje pelo Governo e particulares em ruas, casas e condomínios...
Apesar da tecnologia não ser a mesma, o intuito fim para ambas estão em vigiar e apontar
cidadãos que estejam infringindo o ordenamento assegurado pelo Estado.

O livro, em comparação com a nossa sociedade, retrata um posicionamento muito mais


rigoroso de monitoramento dos cidadãos, devido até mesmo o tipo governo que foi
implantado, o totalitário. Já na sociedade atual, por ser uma democracia, e não ser aceito
qualquer supressão de direitos já conquistados, ocorre uma camuflagem que causa
entrelaçamento entre o termo “segurança” e “supressão da liberdade”, que por isso, não
se fazem absolutos. Tendo em vista a uma necessidade de o Estado garantir maior
segurança aos cidadãos, há, também, uma ausência do que venha significar, de fato, para
as pessoas, os dois termos. A diferenciação é perceptível quando analisamos que o livro,
há uma perspectiva muito clara e estanque de que todos os ali abarcados então de fato
sendo vigiados, mesmo que essa vigia não fosse plenamente percebida e que, todos, estão
suprimindo sua liberdade ao Grande Irmão. Projetando a perspectiva de George Orwell
para o presente: Nós somos vigiados ou buscamos apenas a segurança de meio em que
vivemos? Esse Estado, como demonstra Winston, utiliza vários métodos de garantir e
suprir a liberdade dos cidadãos – criação de jornais, anúncios, programas de TV e
palestras que fossem totalmente monitoradas pelo Estado -, e o nosso Estado, o que ele
cria para nos monitorar? E se ele o faz, nós estamos conscientes desse ato?

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A questão indagada, apesar de polêmica e de vertentes contraditórias é de extrema


importância, devendo, de fato, ser refletida, no entanto, o foco do o trabalho será voltado
para a eficácia dos processos de monitoramento.

Como demonstrado no livro 1984, apesar de um monitoramento eficiente, exercidos pelos


Departamentos, há, mesmo sob essa constante vigia, cidadãos que conseguiram, como
Winston, infringir as regras do regime. Conclusão que explicita que, por mais complexo
que fossem os meios empregados, ainda assim eram insuficientes para abarcar a todos os
cidadãos. Sendo necessária a criação de métodos de controle para os infratores. Que
seriam as punições públicas, que eram exemplares para toda a população ou os
procedimentos de “lavagem cerebral”, que tentavam suprimir os pensamentos
“criminosos”.

No atual processo de monitoramento realizado pelas câmeras, principalmente as públicas,


há também, uma indagação sobre sua eficiência. Sabe-se que não há, em nenhum caso,
uma plena eficiência do monitoramento, no entanto, há uma diminuição de casos
infracionais e, além disso, há, com as imagens registradas, um apontamento de quem
seriam esses agentes, além de constar suas incidências em determinados crimes.

Esses pontos foram observados pelo filósofo Rogério da Costa: A ideia de vigilância
remetia ao confinamento e, portanto, à situação física que caracterizava as preocupações
dessa sociedade. O problema era o movimento físico dos indivíduos, seu deslocamento
espacial. Vigiar, era basicamente, regular os passos das pessoas, era olhar. Com a
explosão das comunicações, uma nova figura ganha força: a vigilância por mensagens de
trânsito de comunicações [...] Parece que o mais importante agora é a vigilância sobre a
dinâmica da comunicação não apenas entre as pessoas, mas sobretudo entre estas e as
empresas, os serviços on-line, o sistema financeiro, enfim, todo o campo possível de
circulação de mensagens. O que parece interessar, acima de tudo, é como cada um se
movimenta no espaço informacional. Isso parece dizer tanto ou mais sobre as pessoas do
que seus movimentos físicos ou o conteúdo de suas mensagens (COSTA. 2004, pág. 164)
Dessa mesma forma que é confundida com o Grande Irmão de Orwell, a vigilância nas
sociedades contemporâneas vem sendo considerada por muitos como Panóptico.

O livro tenta solucionar os problemas referentes a esses cidadãos – os “criminosos” -


proporcionando-lhes uma “cura” dos pensamentos que são considerados inadequados
àquela sociedade, sendo eficiente neste propósito, uma vez, como demonstra na ficção,

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que Winston abandona o processo de “purificação” do Estado, totalmente livre dos


pensamentos contra o partido. Já hoje, o que se faz é restringir a liberdade desse cidadão
– os infratores - propondo, teoricamente, uma nova inserção social. No entanto, a questão
referente à eficiência desse processo de diminuição de criminalidades ainda se faz
insatisfeito.

3. VIGIAR E PUNIR - UMA ANÁLISE EM FOCO

“A vigilância hierarquizada organiza-se como um poder múltiplo, automático e anônimo”


(FOUCAULT, Michel. 1987 pág. 148), assim como a disposição das câmeras de
vigilância em nossa sociedade. Vivemos em constante observação, observação de cima
pra baixo, seja por câmeras privadas instaladas em prédios, casas, lojas, ou por câmeras
instaladas nas ruas pela administração pública. Não há como saber quando, onde e nem
por que estamos sendo vigiados. Esse sistema de observação se articula, rastreando cada
passo, cada movimento, perpetuando todas as ações em dispositivos de armazenamento
de dados. Por isso, a simples presença de uma câmera de vigilância é capaz de intimidar,
seja o contraventor, seja o questionador, afinal, o olhar eletrônico não diferencia a
intenção interna dos vigiados.

Em 17985, Jeremy Bentham desenhou um projeto de centro penitenciário ideal. Este


centro permite que o carcereiro vigie todos os presos sem que estes saibam se estão sendo
vigiados naquele instante.

“O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; está
é vezada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel: a construção
periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção:
elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra que
dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado,
um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da
periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho,
perfeitamente individualizado e constantemente visível... A visibilidade é uma
armadilha...” (FOUCAULT, Michel. 1987, pág. 165 e 166)

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É possível, a partir dessa estrutura de vigilância, associar seus efeitos ao presente estudo.
Não há como saber quem está por trás das câmeras, não há como saber o momento em
que o vigilante está te observando. Isso leva o vigiado a acreditar que está sendo vigiado
o tempo todo, ou seja, “induz no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, Michel.
1987, pág. 166), afinal, não há a real necessidade de que exista alguém observando, mas
que apenas exista o instrumento de observação, no caso, a câmera. Portanto, assim como
apresentando por Bentham, o poder torna-se visível (câmera), porém inverificável
(observador).

Nesse mesmo sentido aponta Deleuze, para uma sociedade controlada: “Nas sociedades
de controle o indivíduo cede lugar aos fluxos, as maquinarias mecânicas cedem lugar às
máquinas de informática e à cibernética. Nesta sociedade o controle é de curto prazo e de
rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa
duração, infinita e descontínua” (DELEUZE. 1992, pág. 224).

O panóptismo que pode ser considerado como à observação total e integral da vida de um
indivíduo pelo poder Estatal de controle. Ele é vigiado durante todo o tempo, sem que
veja o seu observador, nem que saiba qual momento está sendo vigiado. Aí está a
finalidade do panóptico: "Induzir no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder.” (FOUCAULT, Michel.
1987, pág. 224)

Assim como o panóptico é o funcionamento do sistema de segurança pública através de


câmeras, onde o Estado passa a vigiar a população o tempo todo e em todos os lugares,
sem que a população veja o seu observador. Nesse sentido, passam a ser vigiados tanto
as pessoas consideradas como “boas” bem como aquelas que são consideradas como
“más”. Ou seja, o Estado passa a vigiar todos na esperança que uma vez a população se
sentindo coibida pela presença das câmeras, não venha cometer crime; o que no livro é
denominado como sendo o “funcionamento automático do poder”.

Com a implantação do panóptico é dado início a uma verdadeira revolução no sistema


penal, porém não uma revolução de caráter humanístico, que leva consigo uma meta de
bem estar do ser humano, mas uma revolução política, de economia de castigos e penas.
Essa “revolução” nasce dentro do próprio sistema judiciário, entre juízes e os chamados
pensadores do direito.

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"Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, que a perfeição do poder
tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício..." (FOUCAULT, Michel. 1987, pág.
224). As instituições panópticas são leves e fáceis de manipular, utilizam princípios
simples de correção e adestramento. É uma espécie de campo experimental do poder,
assegura sua economia, sua eficácia e seu funcionamento. Do mesmo modo, é o que se
tenta perquirir com o sistema de câmeras pelo Estado, no combate da criminalidade.

Foucault, em harmonia com sua evidência na eficiência do panoptismo como um


dispositivo de controle social, considera a vigilância como a função privilegiada do olhar
panóptico. Assim sente o Estado com o sistema de câmeras, podendo com as mesmas
obter um controle social pela função privilegiada do próprio Estado, passando por cima
dos direitos dos próprios cidadãos que são considerados como vigiados.

Para Foucault, a eficácia do olhar é a garantia da eficácia do poder. Ou seja, nos dias
atuais seria como: a eficácia das câmeras seria a garantia da eficácia do Estado. Para ele
o panopticum pode ser definido como sendo "a fórmula abstrata de uma tecnologia bem
real, a dos indivíduos". Foucault leva a associação do olhar e do poder às suas últimas
consequências: não trata apenas da onipotência de um olhar tecnicamente disponibilizado
para o controle social, mas se trata especialmente de um olhar legislador, um olhar
constituinte de seus sujeitos enquanto tais. Esse olhar é capaz de dispensar a necessidade
de mecanismos de repressão violenta dos indivíduos, já que a própria existência subjetiva
destes últimos, assim como o imaginário. Ou seja, se implantar câmeras por toda cidade,
o Estado passa a não mais precisar de mecanismos policiais de repressão violenta contra
os indivíduos, pois os mesmos através do imaginário chegariam a se sentirem “vigiados
e controlados” pelo Estado. O panoptísmo busca, portanto o controle total e imediato dos
corpos humanos e de sua circulação espacial, bem como nos dias de hoje a utilização de
câmeras tenta fazer.

Teresa Caldeira (2000) expõe como as câmeras de vigilância, a violência e os medos


combinados originam mudanças sociais e de conduta em locais públicos. Com estas
mudanças, acaba que o espaço público se transforma alterando as rotinas da população,
fazendo com que sejam bem diferentes das rotinas que anteriormente eram acostumados.
Segundo a autora, “ao transformar a paisagem urbana, as estratégias de segurança dos
cidadãos também afetam a circulação, trajetos diários, hábitos e gestos relacionados ao

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uso das ruas, do transporte público, dos parques e de todos os espaços públicos”
(CALDEIRA. 2000, pág. 301).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a pesquisa, verificou-se que a utilização de câmeras de segurança tornou-se um


hábito comum na sociedade. Com a evolução tecnológica, o monitoramento através das
lentes articuladas a computadores tende a aumentar e, cada vez mais, registrar no banco
de dados imagens de todos aqueles que passarem diante da vigilância eletrônica.

Além disso, assim como analogicamente extraído da obra de Foucault, a presença de


câmeras gera uma intimidação à conduta criminosa. No entanto, os efeitos da vigilância
não recaem apenas sobre potenciais criminosos. Essa redução na criminalidade de menor
potencial ofensivo, tem como preço a privacidade dos cidadãos que se submetem ao olhar
mecânico para se sentirem mais seguros, o que também intimida manifestações de
qualquer gênero por parte destes. Mesmo assim, sendo preferido pelos cidadãos a perda
de sua privacidade. É possível medir a efetividade da utilização de câmeras de segurança
no sistema de vigilância publica comparando os índices de criminalidades entre regiões,
mas não há como medir o desvio, afinal, o sujeito que pratica em uma determinada região,
diante da instalação de câmeras neste local, pode simplesmente sair e praticar o crime em
outro lugar. Ainda que exista certa redução no número de crimes, essa redução é muito
limitada, pois os crimes realmente afetados são furtos e roubos, no máximo. Os demais
crimes não são, em regra, praticados em locais públicos. É preciso avaliar a instalação de
câmeras com muita cautela, sob pena de se deixar iludir com a tecnologia.

Muitas críticas poderiam ser tecidas tanto a favor quanto contra a utilização de câmeras
no sistema de vigilância pública. A questão da privacidade é um gargalo constitucional a
ser tratado. Assim não é possível afirmar uma idealidade na política de segurança. Não
existe ainda uma evidente influência da utilização de câmeras de vigilância na formulação
da lei penal. O que é possível dizer permeia os meandros do processo de utilização de
filmagens, ou seja, na aplicação da lei penal. O acesso às filmagens obtidas por meio das
câmeras deve ser observado pela legislação a fim de assegurar os direitos envolvidos no
processo, como o direito de imagem e privacidade.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Deve haver um limite na utilização de câmeras de vigilância por parte do Estado na


efetivação de Segurança Pública, pois, algumas perguntas surgem tais como: o que deve
ser feito com as gravações? Pode guardar infinitamente? Qualquer pessoa teria acesso?
Qualquer policial? Hoje o Brasil vive um verdadeiro Estado Policial e, por isso, existe
um grande risco de agravar essa situação dando mais poderes para eles, o que torna
necessário um limite na utilização de câmeras de vigilância por parte do Estado.

Em suma, com o artigo, mostrou-se que a utilização de câmeras de segurança deve ser
observada com cautela, bem como para o direito penal, como para os demais ramos do
direito, pois nela estão envolvidas questões cruciais para o desenvolvimento de uma
sociedade com menos crimes e maior tranquilidade para a população.

Não há uma política de segurança pública ideal no que diz respeito à utilização de
câmeras, pois não há interesse político em se fazer isso, o interesse é de gravar todo
mundo. E aí, criam-se vários problemas como por exemplo em relação as manifestações
públicas e políticas que ocorrem na rua (marcha da maconha, marcha das vadias), onde
as câmeras estão gravando tudo. Será que as pessoas teriam a mesma vontade de participar
sabendo que estão sendo gravadas? Outro grande problema em relação as políticas de
segurança pública é em relação a competência, pois as mesmas são de competência
estadual e não municipal. O que se percebe hoje, é que em várias cidades do Brasil os
prefeitos dizem que irão instalar câmeras e acabam instalando. Mas, ninguém reclama,
pois, a maior parte da população é acrítica em relação a isso, acreditando que os grandes
crimes como homicídio, estupro e sequestros irão ter uma incidência menor, o que na
realidade nem sempre acaba ocorrendo, pois, na verdade o que se acaba evitando são os
pequenos furtos que tem um valor muito pequeno se comparado com todo o aparato
necessário para instalação das câmeras. Em Londres, um dos berços da vigilância por
câmeras, hoje considerada a cidade mais vigiada do mundo, existe uma grande
preocupação em relação ao terrorismo, enquanto no Brasil o combate gira em torno de
pequenos furtos.

Quando se fala sobre a influência que o monitoramento por câmeras de segurança gera
na formulação e aplicação penal, há que se pensar no dever do legislativo que seria de
regulamentar a utilização, mas politicamente isso não rende votos e acaba deixando de
regulamentar. Com isso, para grande parcela dá população acarreta em uma falsa
impressão de que, iria ser filmado apenas os bandidos e não a população de forma geral.

460
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Ainda predomina no Brasil a ideia de que: “quem não deve não teme”. Na verdade, quem
não deve teme! Pois, nem toda agressão é uma agressão justa. Sendo assim, os judeus não
deveriam temer o nazismo.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27.ª edição. Petrópolis:


Editora Vozes, 1987. 288 páginas.

ORWELL, George. 1984. 1.ª edição. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2009. 416
páginas.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

MUDANÇAS NO PODER E SABER CRIMINOLÓGICO:


DA DISCIPLINA À EXCLUSÃO

CAMBIOS EN EL PODER Y SABER CRIMINOLÓGICO:


DESDE LA DISCIPLINA HACIA LA EXCLUSIÓN
Marília De Nardin Budó1
Resumo:
O nascimento do saber criminológico em sua vertente positivista pode ser diretamente
relacionado à emergência e aprofundamento do poder disciplinar no contexto da indústria
nascente, tendo como característica o caráter positivo de formação do sujeito. A relação entre
poder e saber trabalhada em Foucault é a base deste trabalho, que busca identificar as
mudanças no saber criminológico na interação com as mudanças no poder. O trabalho é
bibliográfico, e trata de comparar os estudos de Foucault acerca da biopolítica e dos
dispositivos de segurança às mudanças no saber criminológico a eles contemporâneo.
Conclui-se que a criminologia hoje segue dois caminhos que, apesar de parecerem
teoricamente opostos, são complementares na expansão do controle penal. Trata-se, de um
lado, de uma criminologia atuarial, despreocupada com o homem criminoso e voltada a um
cálculo de probabilidades, riscos e custos econômicos do controle e, de outro lado, de uma
criminologia neorretributivista, que não calcula custos e tem como principal característica o
excesso de punição alardeado pelos meios de comunicação. Enquanto a primeira está
relacionada aos dispositivos de segurança de que trata Foucault, no contexto da ascensão do
neoliberalismo, a segunda tem sua raiz no racismo, única maneira através da qual o biopoder
pode justificar a exclusão e a morte.
Palavras-chave: Criminologia; poder; biopolítica; neoliberalismo; Michel Foucault.
Resumen:
El nacimiento del saber criminológico en su vertiente positivista puede ser directamente
relacionado con la aparición y profundización del poder disciplinar en el contexto de la
industria emergente, teniendo como característica el carácter positivo de la formación del
sujeto. La relación entre poder y saber trabajada en Foucault es la base de este trabajo, que
busca identificar los cambios en el saber criminológico en interacción con los cambios en el
poder. El trabajo es bibliográfico, y compara los estudios de Foucault acerca de la biopolítica
y de los dispositivos de seguridad a los cambios en el saber criminológico a eles
contemporáneos. Se concluye que la criminología hoy sigue dos caminos, aunque parezcan
teóricamente opuestos, de hecho, son complementarios en la expansión del control penal. Se
trata, por un lado, de una criminología actuarial, sin preocuparse con el hombre criminal y
dirigida a un cálculo de probabilidades, riesgos y costes económicos del control y, por otra
parte, una criminología neoretributivista, que no calcula costos y hay como característica
principal el exceso de punición propagado por los medios de comunicación. Mientras la
primera está relacionada con los dispositivos de seguridad mencionados por Foucault, en el
contexto del auge del neoliberalismo, la segunda tiene sus raíces en el racismo, la única
manera mediante la cual el biopoder puede justificar la exclusión y la muerte.
Palabras-clave: Criminología; poder; biopolítica; neoliberalismo; Michel Foucault.

1
Doutoranda em direito na Universidade Federal do Paraná. Mestre em direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina. Graduada em direito e jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora no
Centro Universitário Franciscano.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Introdução

O surgimento da criminologia como disciplina tem como principal antecedente a


antropologia criminal, disciplina criada pelo italiano Cesare Lombroso em meados do século
XIX. É esse período histórico marcado pelo desenvolvimento das ciências naturais, como a
biologia, as quais têm como característica o uso do método empírico-experimental, e a
investigação dos fenômenos biológicos através de uma perspectiva causalista.2 Tão evidente é
a influência da biologia no surgimento da antropologia criminal, que um dos feitos de seu
criador foi o de catalogar os tipos de criminosos em classes, conforme o tipo de crime pelo
qual havia sido condenado.3 A etiologia do crime, ou seja, a busca das causas da
criminalidade, começa aí a ser estudada, vindo a dominar boa parte das pesquisas na área,
centrando o objeto da criminologia no homem criminoso.
O contexto histórico do desenvolvimento da criminologia como disciplina foi
marcado pelo paradigma positivista, seja na escolha de seu objeto, seja na escolha de seu
método. A busca de isenção de noções religiosas, morais, abstratas foi, primeiramente, uma
forma de reação ao que a chamada Escola Clássica do direito penal propunha sobre a matéria.
Assim, a criminologia positivista via a disciplina como ciência causal-explicativa, tratada e
desenvolvida a partir do método empírico-experimental. Portava a possibilidade de “uma
explicação “cientificamente” fundamentada das causas do crime e, por extensão, de uma luta
científica contra a criminalidade, em cujo combate – argumentavam os positivistas – o
classicismo havia fracassado”.4
Se Lombroso, com a influência spenceriana, encontrava como causas da
criminalidade fatores biológicos, rapidamente tal pensamento sofreu a oposição daqueles que
passaram a identificar uma combinação sociobiológica para determiná-las. Segundo a Escola
de Lyon, por exemplo, “o sujeito é um micróbio inofensivo até que, em contato com um meio
ambiente propício (caldo de cultivo), encontra as condições que lhe permitem evoluir como
um criminoso”.5
A identificação, da criminalidade como uma anormalidade do indivíduo trazia, no
contexto de um maior intervencionismo estatal com o surgimento do welfrare state, a busca
pelo seu tratamento e reinserção social. Origina-se a criminologia clínica, a qual, conhecedora

2
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
3
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007.
4
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do
controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 75.
5
ELBERT, Carlos Alberto. Manual básico de criminologia. 4 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2007. p. 48.

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das causas do comportamento criminoso, e identificando a prognose do caso, permite ao


clínico perseguir “a modificação de aspectos afetivos, cognitivos, conativos, no caso dos
psicológicos; anatômicos ou fisiológicos se eles são orgânicos, assim como os de ordem
social [...] que possam vincular-se com a etiologia do comportamento delitivo”.6
Mas o nascimento da criminologia clínica não parece que teria sido possível não
fosse pelo surgimento do poder disciplinar nos séculos XVII e XVIII. A construção de
instituições totais, o isolamento dos indivíduos, foi o pressuposto para a criminologia clínica.
As próprias pesquisas que geraram o saber sobre o homem criminoso foram realizadas
originalmente no interior de prisões e de manicômios judiciários. É na inter-relação entre o
poder disciplinar e o desenvolvimento do capitalismo que é possível situar o surgimento e o
desenvolvimento do saber criminológico.
Pressuposto da possibilidade de tratamento do homem delinquente e sua
transformação após um período é o poder disciplinar, que trata de agir sobre o corpo
individual. À descoberta do corpo como objeto de poder corresponde “o corpo que se
manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se
multiplicam”.7 A busca da transformação dos corpos em corpos dóceis, coincidente com a
ascensão do capitalismo e a necessidade de fabricação8 de operários para a indústria nascente,
levou à criação de diferentes métodos, segundo a ótica de Foucault. “Esses métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de
suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as
‘disciplinas’”.9 Essas disciplinas, no decorrer dos séculos XVII e XVIII tornaram-se formas
gerais de dominação, uma anatomia política verificável em diferentes instituições, de
localizações esparsas: escolas, hospitais, organizações militares, desde muito cedo
desenvolveram técnicas minuciosas que significaram um investimento político e detalhado do
corpo, uma nova “microfísica do poder”.10
É no poder disciplinar que se possibilita a compreensão de um exercício de poder
que não é negativo, como o era o poder soberano: trata-se agora do poder como positividade,
como formação, fabricação do indivíduo. Disso se extrai que “as práticas disciplinares
(veiculadas por um certo discurso) ao mesmo tempo em que constituem o sujeito também o
sujeitam; o sujeito é sujeitado ao mesmo tempo em que é ‘fabricado’ pelos processos de

6
ELBERT, Carlos Alberto. Manual básico de criminologia. 4 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2007. p. 78.
7
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 125.
8
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (Séculos
XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006.
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 126.
10
ibid. p. 128.

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individuação”11, o que inverte a noção de poder soberano. Enquanto nesta concepção é o


indivíduo a origem e o fundamento da política e do poder, naquela é ele um produto das
tramas do poder.
Mas a constituição da sociedade disciplinar dependeu não apenas das disciplinas
fechadas como técnicas que fabricam indivíduos úteis: o “panoptismo” surge como o
instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo
visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível.12
A estratégia da disciplina é, entretanto, apresentada apenas como uma das formas de
exercício de poder por Foucault: aquela que age na direção do corpo dos sujeitos, no intuito
de moldá-los e conformá-los. Outras formas de normalização tomam lugar simultaneamente,
não atuando diretamente sobre corpos individuais, mas sobre as populações: trata-se do
biopoder, ou da biopolítica.13
É na passagem da preponderância do poder disciplinar ao biopoder e aos dispositivos
de segurança que se situa este artigo. O objetivo é realizar uma análise crítica das relações
entre o poder e determinados saberes criminológicos correspondentes que se instalaram.
Assim, o trabalho irá apresentar a concepção do biopoder em Foucault para, em seguida expor
os correspondentes tratamentos sobre a questão criminal que surgem, de um lado, da
biopolítica e, de outro lado, dos dispositivos de segurança de que o autor trata em Segurança,
território, população.

1 Fazer viver e deixar morrer: o biopoder em Foucault

O século XIX foi marcado pela tomada da vida pelo poder, uma estatização do
biológico, que transformou o poder soberano caracterizado pelo “direito de fazer morrer ou
deixar viver” em um novo direito, o de “fazer viver e de deixar morrer”.14 Nos séculos XVII e
XVIII, Foucault identifica o aparecimento de técnicas de poder centradas no corpo individual:
técnicas para aumentar a força útil; técnicas de racionalização e de economia de um poder
exercido da maneira menos onerosa possível, através da vigilância, de hierarquias, de
inspeções, de escriturações, de relatórios. Na segunda metade do século XVIII, surge uma
nova técnica, não mais de aplicação sobre o corpo, como na disciplina, mas sobre a vida:

11
FONSECA, Ricardo Marcelo. O poder entre o direito e a “norma”: Foucault e Deleuze na teoria do Estado. In:
______. (org.). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 259-281. p. 264.
12
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 188.
13
FONSECA, Ricardo Marcelo. op. cit. p. 266.
14
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 287.

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sobre o homem vivo, homem-espécie.15 Essa segunda tomada de poder, não é mais
individualizante, é massificante: não se trata mais de uma anatomo-política característica do
poder disciplinar, mas de uma biopolítica da espécie humana. Seus primeiros objetos de saber
e alvos de controle foram constituídos pela proporção de nascimentos e dos óbitos, a taxa de
reprodução, a fecundidade da população etc.
Um dos campos de intervenção biopolítica é a medicina, a qual vai ter uma função
maior de higiene pública e medicalização da população. Outro campo de intervenção é a
velhice, da retirada do indivíduo do mercado de trabalho, o que irá redundar em mecanismos
mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade etc.
Por fim, o campo da preocupação com as relações da espécie humana, seu meio de existência
e os problemas ligados aos meios não naturais, como a cidade. “[...] é da natalidade, da
morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a
biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu saber”.16
Essa nova tecnologia de poder, diferentemente da disciplina, não trabalha com o
indivíduo-corpo ou com a sociedade, trabalha com a noção de população como problema
biológico e de poder. Além disso, nessa nova tecnologia de poder, outros fenômenos são
levados em consideração, os coletivos, que só aparecem com seus efeitos econômicos e
políticos, pertinentes apenas no nível da massa: “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos
acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração”. 17 Ela
irá, ainda, implantar mecanismos de previsões, de estatísticas, de medições globais; não quer
transformar o indivíduo, mas intervir no nível daquilo que são as determinações desses
fenômenos gerais no que têm de global: “vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai
ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade”.18 Trata-se então de
levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles
não uma disciplina, mas uma regulamentação. É o que Foucault irá chamar de “fazer viver”
na inversão do poder soberano de “fazer morrer”.
A desqualificação da morte que se depreende daí fica evidente na perda de
ritualização pública, tornando-se privada e vergonhosa. Para o autor, essa mudança está na
transformação das tecnologias de poder. Enquanto diante do poder soberano o morto passava
de um poder para outro, agora a morte é o limite, a exterioridade do poder, dado que o poder é

15
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 289.
16
ibid. p. 292.
17
ibid. p. 293.
18
ibid.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

o de “fazer viver” e não mais o de “fazer morrer”.19


O final do século XVIII foi marcado por transformações sociais, com a explosão
demográfica e a industrialização, o que tornou a mecânica do poder soberano insuficiente,
tanto no nível do detalhe, quanto no nível da massa. Para recuperar o detalhe, surge o poder
disciplinar nos séculos XVII e XVIII. Para recuperar a massa, o poder sobre os fenômenos
globais, surge o biopoder. Trata-se, então, de duas séries: “a série corpo – organismo –
disciplina – instituições; e a série população – processos biológicos – mecanismos
regulamentadores – Estado”, as duas, porém, não absolutamente opostas, nem sequer no
mesmo nível. Os mecanismos disciplinar e regulamentador se articulam um com o outro. Esse
vínculo fica muito evidente na medicina: “A medicina é um saber-poder que incide ao mesmo
tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e
que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores”.20 O elemento, por sua
vez, que irá circular entre o disciplinar e o regulamentador é a norma: a sociedade de
normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a
norma da disciplina e a norma da regulamentação, de tal modo que o poder tenha coberto toda
a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população. "As disciplinas do
corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se
desenvolveu a organização do poder sobre a vida".21 Trata-se, então, de um biopoder.
Para o desenvolvimento do capitalismo, a biopolítica foi elemento indispensável,
integrando-se nessa categoria tanto o poder disciplinar quanto o biopoder, de modo que à
utilizabilidade e docilidade dos corpos se somassem os métodos de poder capazes de majorar
as forças, as aptidões, a vida em geral.

[...] se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de


poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e
de bio-política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em
todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família,o
Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das
coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das
forças que estão em ação em tais processos e os sustentam [...].22

Na perspectiva foucaultiana, o desenvolvimento do biopoder tem ainda a


característica de conferir importância mais à norma do que è lei. Se a lei é, sobretudo, dada
por um sistema de proibições e punições, um sistema que tenha a vida como objetivo deve
buscar mecanismos reguladores e corretivos. Com esse objetivo, a necessidade que surge é a

19
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
20
ibid. p. 302.
21
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1 A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 131.
22
ibid. p. 132-133.

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de otimizar a vida, o que é possível através de outras ações: “um poder dessa natureza tem de
qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero;
não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera
distinções em torno da norma”. A consequência é a constituição de uma sociedade
normalizadora, baseada no poder disciplinar e no biopoder e suas técnicas correspondentes. 23

2 Dispositivos de segurança e a criminologia da vida cotidiana

Se o desenvolvimento do poder disciplinar teve uma consequência tão evidente no


tratamento da criminalidade, conforme a análise foucaultiana, que correlação é possível fazer
entre a questão da criminalidade e a biopolítica, de um lado, e o surgimento dos dispositivos
de segurança nascidos mais atualmente, por outro lado?
O próprio Foucault traz uma importante análise a esse respeito nos cursos do Collège
de France intitulados Nascimento da biopolítica e Segurança, território, população. No
primeiro, trata sobre o ressurgimento do liberalismo, em especial na forma do neoliberalismo
norte-americano, partindo da ideia de que seus teóricos “tentam utilizar a economia de
mercado e as análises características da economia de mercado para decifrar as relações não-
mercantis, para decifrar fenômenos que não são fenômenos estrita e propriamente
econômicos, mas são o que se chama, se vocês quiserem, de fenômenos sociais”.24 Para
chegar a essa constatação, Foucault realiza, primeiramente, uma análise das diferenças entre o
neoliberalismo alemão e o neoliberalismo norte-americano, concluindo com a radicalidade
destes em relação àqueles. “No neoliberalismo americano, trata-se de fato e sempre de
generalizar a forma econômica do mercado. Trata-se de generalizá-la em todo o corpo social,
e generalizá-la até mesmo em todo o sistema social que, de ordinário, não passa ou não é
sancionado por trocas monetárias”. 25 Além desse traço, Foucault destaca a crítica e avaliação
da ação do poder público em termos de mercado como uma sua outra característica.
É na análise econômica a respeito da criminalidade e do funcionamento da justiça
penal por esses neoliberais, em especial Ehrlich, Stigler e Gary Becker, que Foucault encontra
elementos para a definição de uma nova concepção, que se distingue muito tanto daquela
chamada de soberana, quanto da disciplinar.
Apesar de os neoliberais partirem de uma base já solidamente fundada pelos

23
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1 A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 135-
136.
24
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 329.
25
ibid. p. 333.

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reformadores do século XVIII, como Beccaria e Bentham, os quais filtravam toda a prática
penal através de um cálculo de utilidade, buscando um sistema penal de baixo custo, as
semelhanças vão apenas até aí. A solução encontrada por esses reformadores foi a legalista,
pressupondo a necessidade de uma boa lei para o funcionamento do sistema penal, no sentido
de que o homem penalizável - homo penalis – é um homo oeconomicus.26 Porém, no século
XIX o homo penalis passa a se chamar homo criminalis, dado que não se tratava de a lei
sancionar apenas atos, mas sim de constituir um saber sobre o crime, para dotar a pena de um
caráter preventivo. Com isso, numerosos saberes ingressam no sistema penal, ultrapassando a
lógica da sentença penal como mero cálculo.
O que surge com os neoliberais é um retorno à ideia do penalizável como homo
oeconomicus, retirando-se qualquer tipo de julgamento sobre sua personalidade ou algum tipo
de patologia. Para inserir esse problema no interior de uma problemática econômica, partem
eles de uma definição de crime que coloca o ponto de vista de quem comete ou vai cometer o
crime: “crime é toda ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma
pena”.27 Com essa definição, muito próxima daquela clássica que vincula o conceito de crime
a sua definição legal, a consideração do sujeito como homo oeconomicus terá como
consequência que “o criminoso não é, de forma alguma, marcado ou interrogado a partir de
características morais ou antropológicas. O criminoso não é nada mais que absolutamente
qualquer um. O criminoso é todo mundo, quer dizer, ele é tratado como qualquer pessoa que
investe numa ação, que espera lucrar com ela e aceita o risco de uma perda”.28
Nesse sentido, passa o sistema penal a lidar com pessoas que produzem esse tipo de
ação, e não com criminosos. Cumpre a ele, através da punição, limitar as externalidades
negativas de certos atos. Através da lei, proíbe-se condutas julgadas negativas socialmente,
apesar de serem positivas para as pessoas que as cometem, mas é através do enforcement, o
“enforço” da lei, que será possível dar à interdição contida na lei realidade social. Esse
enforcement of law é, então, “o conjunto de instrumentos de ação sobre o mercado do crime
que opõe à oferta do crime uma demanda negativa”.29 Esse “enforço”, é, porém, dispendioso,
ele tem custos. Então, para elaborar determinada política de produção de demanda negativa
será necessário se certificar de que o seu custo não supera o custo dessa criminalidade cuja
oferta se quer limitar. Aí se encontra a estratégia dessa nova forma de lidar com o crime, a
qual não busca uma sociedade sem crimes, mas sim busca intervir no mercado do crime, em

26
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 341.
27
ibid. p. 344.
28
ibid. p. 346.
29
ibid. p. 348.

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relação à oferta de crime. A questão a se responder deixa de ser, então, o que é crime, ou
como punir os crimes, e passa a ser formulada assim: “o que se deve tolerar como crime?”
A ação do sistema penal nada mais tem a ver com o estudo da personalidade ou das
características patológicas do criminoso, mas deve ser “uma ação sobre o jogo dos ganhos e
perdas possíveis, isto é, uma ação ambiental. É sobre o ambiente do mercado em que o
indivíduo faz a oferta do seu crime e encontra uma demanda positiva ou negativa, é sobre isso
que se deve agir”.30 Nesse contexto se insere o dispositivo de segurança, tratado já em
Segurança, território e população, e que coloca a questão “de saber como, no fundo, manter
um tipo de criminalidade, ou seja, o roubo, dentro de limites que sejam social e
economicamente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser considerada, digamos, ótima
para um funcionamento social dado”.31
Foucault explica que existem três modalidades relacionadas à compreensão do crime
que devem ser estudadas. Primeiro, o mecanismo legal ou jurídico, típico do movimento dos
reformadores do século XVIII, que traz o sistema de código legal com divisão binária entre o
permitido e o proibido e acopla uma punição àquele que viola a proibição; segundo, o
mecanismo disciplinar, que traz para esse código binário o culpado, somado a uma série de
técnicas adjacentes, policiais, médicas, psicológicas, que são do domínio da vigilância, do
diagnóstico, da eventual transformação dos indivíduos; terceiro, e por fim, o chamado
dispositivo de segurança, que vai inserir o fenômeno em questão numa série de
acontecimentos prováveis, as relações de poder serão inseridas em um cálculo de custo e o
estabelecimento de limites não vai se situar entre o permitido e o proibido, mas sim na
quantidade aceitável de condutas proibidas.32
Apesar de os dispositivos de segurança, caracterizados por Foucault, estarem
situados historicamente especialmente na contemporaneidade, o autor adverte que isso não
significa a superação das estruturas jurídico-legais típicas do século XVII ou dos mecanismos
disciplinares típicos do século XVIII. A relação entre esses mecanismos, não é de sucessão:
“na verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro,
são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai
mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os
mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança”. 33
Destaca o autor que “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar,

30
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 354.
31
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 8.
32
ibid. p. 9.
33
ibid. p. 11.

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além dos mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da


disciplina”.34
Esses dispositivos de segurança emergem como tecnologias no interior tanto de
mecanismos como a penalidade, quanto dos mecanismos que têm por função modificar em
algo o destino biológico da espécie, e por isso se relaciona com a biopolítica.35

Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir


nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de
prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade de
maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responde – anule, ou limite,
ou freie, ou regule. Essa regulação no elemento da realidade é que é, creio eu,
fundamental nos dispositivos de segurança.36

Na análise criminológica, esse processo de administrativização do sistema, voltado


para objetivos de eficiência, e que tem por característica justamente os cálculos de
probabilidades e fatores de risco intitula-se criminologia atuarial. Assim como Foucault,
numerosos criminólogos, especialmente na Europa e nos Estados Unidos situam
historicamente essa perspectiva sobre o crime na queda das políticas de welfare
concomitantemente com a ascensão do neoliberalismo.
David Garland é um desses autores, e busca, em toda a sua obra The culture of
control comparar o sistema penal do welfare e o atual. Sua tese é a de que a despeito da
persistência de algumas das políticas de welfare, caracterizadas pelo poder disciplinar descrito
por Foucault, o que prevalece hoje é uma bifurcação em termos de teorias sobre o crime e
seus métodos de lidar com ele. De um lado, “uma escala punitiva expressiva que utiliza os
símbolos da condenação e o sofrimento para comunicar sua mensagem”, de outro lado, “um
registro instrumental em sintonia com a proteção pública e a gestão do risco”.37
Garland denomina essas duas orientações de “criminologia do outro” e “criminologia
de si”. Trata-se de uma mudança no funcionamento estratégico e da importância social do
aparato institucional da modernidade penal, o que não significa o seu desmantelamento. “Os
indivíduos seguem sendo avaliados e classificados; se seguem identificando os fatores de
risco e as perspectivas de tratamento; o poder de castigar segue estando recoberto por um
envoltório psicossocial de diagnose e cura”.38
A “criminologia de si”, ou “criminologia da vida cotidiana”, que corresponde a essa

34
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 14.
35
ibid. p. 15.
36
ibid. p. 61.
37
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 240. Tradução livre.
38
ibid. p. 277. Tradução livre.

471
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

gestão dos riscos e que implica em maior controle social tem como característica a extensão
do controle penal para fora das instituições clássicas de controle, como a prisão. Os próprios
limites formais entre público e privado no controle do crime se tornam tênues, em uma época
em que empresas de segurança privada e câmeras de vigilância são espalhadas pelos mais
diversos meios sociais.

Ao invés de perseguir, processar e castigar os indivíduos, seu objetivo é reduzir os


eventos delitivos mediante a minimização das oportunidades delitivas, a
intensificação dos controles situacionais e o afastamento das pessoas e das situações
criminogênicas. Em lugar de tratar as inclinações delitivas ou castigar os indivíduos
culpáveis, se concentra em prevenir a convergência de fatores que precipitem
eventos delitivos.39

Não se pretende mais vencer o delito, mas sim racionalizar a operatividade dos
sistemas que possibilitam “gerir” a criminalidade com base em avaliações de tipo atuarial.40 A
prisão, nesse contexto, é apresentada com o fim útil de “neutralização seletiva”. Nesse
sentido, não cabe mais o argumento da ressocialização e da pena como tratamento. Aquele
que uma vez foi selecionado pelo sistema de controle penal é tido como um sujeito que
implica em riscos. Como nota Pavarini, nesse contexto a própria linguagem da gestão
administrativa é completamente diferente daquela ligada ao sistema de justiça penal, pois tem-
se como objetivo:

[...] não mais o de punir os indivíduos, mas o de administrar grupos sociais em razão
de seu risco criminal; não mais aquele correcionalista senão o burocrático de
otimizar os recursos escassos, onde a eficácia da ação punitiva não se mede em
razão dos telos externos ao sistema (educar e intimidar), mas em razão das
exigências intrassistêmicas (neutralizar e reduzir os riscos).41

Através do uso das técnicas do seguro, o governo administrativo do controle


responde apenas a uma lógica interna. Daí que a reincidência, que antes era considerada um
fracasso do investimento educativo da prisão na concepção disciplinar, na perspectiva
administrativa da pena ela é considerada um êxito: 1) porque mostra que o sistema penal
selecionou corretamente sua clientela desde o início; 2) porque possibilita, através da análise
dos dados da reincidência, predizer as categorias em risco, e, em consequência, diversificar a
resposta punitiva. A discricionariedade, então, baseará a sua decisão em “um cálculo
estatístico de riscos por populações criminais e grupos sociais desviados, antes que fiar-se no

39
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 281. Tradução livre.
40
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 126.
41
ibid. p. 125. Tradução livre.

472
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

prognóstico do indivíduo”.42 Assim, a incapacitação deve ser utilizada para todos aqueles que
resultam, em uma lógica de incapacitação seletiva, parte de grupos sociais de elevado risco
criminal.
Para Garland essas mudanças não são apenas econômicas e sociais, elas são também
culturais. Trata-se de uma cultura do controle que permite a adoção de políticas atuariais
diante do crime e, de outro lado, o punitivismo exacerbado na forma da expressão de
sentimentos coletivos diante dos danos causados pelo crime. Os três elementos centrais que
formam essa nova cultura do controle são: (1) um welfarismo penal modificado; (2) uma
criminologia do controle; e (3) uma forma econômica de raciocínio.43
Os especialistas típicos do welfare, ou da sociedade disciplinar, aquele grupo
interdisciplinar formado por psiquiatras, médicos e assistentes sociais que tratavam de avaliar
o condenado e propiciar seu tratamento para reintegrá-lo à sociedade, vão sendo seguidos por
uma série de outros especialistas: assessores de prevenção do delito, coordenadores,
trabalhadores interagenciais, analistas de sistemas, auditores do delito, managers de risco,
especialistas em projetos urbanos e oficiais de polícia comunitária.

As ideias derivadas da prevenção situacional do delito, da teoria das atividades


rotineiras e da criminologia ambiental influem cada vez mais em sua forma de
pensar e informam suas ações. O setor preventivo, em lugar de concentrar-se nos
indivíduos delinqüentes, aponta a situações criminogênicas que possam ser alteradas
para que se voltem menos vulneráveis a certos eventos delitivos, menos tentadoras
para os potenciais delinquentes.44

A partir do cálculo de que 50% dos crimes contra o patrimônio são praticados por 15
a 22% dos que foram condenados por algum desses delitos, os autores da criminologia
atuarial concluíram que bastava neutralizar estes poucos para obter grandes resultados de
redução da criminalidade.45 Trata-se, então, de invocar critérios de predição da ação desviada,
a partir de um juízo de periculosidade social ou criminal. Assim, substituindo a culpabilidade
pela periculosidade, seria possível conferir a essas pessoas no fixed ou life sentences, isso sem
os exames criminológicos, personológicos.46
A conclusão a respeito da periculosidade de um sujeito poderia ser retirada de
respostas afirmativas a quatro das sete perguntas contidas no questionário criado por
Greenwood e Abrahamse, com a consequência de ser considerado de elevado risco,

42
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 82.
43
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 287.
44
ibid. p. 281. Tradução livre.
45
PAVARINI, Massimo. op. cit. p. 126.
46
ibid. p. 127.

473
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

independentemente do crime pelo qual é acusado e ser incapacitado. As sete perguntas são:

1) ter sofrido uma detenção pelo mesmo delito; 2) ter passado mais de um ano na
prisão nos últimos dois; 3) ter estado na prisão quando era menor de idade; 4) ter
estado a cargo dos serviços sociais da justiça de menores; 5) fazer uso de heroína já
durante a menoridade; 6) fazer uso de heroína nos últimos dois anos; 7) não ter
trabalhado ao menos um ano nos últimos dois.47

A simplificação desse sistema culmina, nos Estados Unidos, com a regra do Three
strikes and you’re out, o out, no caso, significando a pena de prisão perpétua ou mínima de 30
anos. Desse modo, a população detida aumenta, porém, os delitos não diminuem.48
Torna-se interessante observar que, apesar de a criminologia atuarial não se voltar
para o estudo das causas do crime, depende desses estudos para construir seletivamente o
risco. Afinal, a partir de que dados as sete perguntas mencionadas acima poderiam ter
surgido? Todas elas partem de uma determinada análise probabilística necessariamente
dependente da atuação efetiva do sistema de controle penal. Evidentemente, em se sabendo
que esse sistema é seletivo e busca o crime onde espera encontrá-lo – nos bairros mais pobres,
controlando as pessoas mais vulneráveis49 – as regras provenientes da administrativização da
gestão do crime reproduz essa mesma seletividade.
Em relação à eficácia da política acima descrita, Pavarini mostra que a presumida
queda na criminalidade não ocorreu, mostrando que o cálculo do risco criminal parece
funcionar relativamente em abstrato para o passado, mas nunca em concreto para o futuro.
Apresenta então vários argumentos e contradições para demonstrar o fracasso das políticas de
incapacitação seletiva. Uma das contradições está no cerne da teoria: se para a perspectiva
atuarial, mais importante do que o homem delinquente é a ocasião na qual um indivíduo se
encontra, de modo que “a quantidade de ilegalidades é determinada fundamentalmente pela
oferta de ocasiões para delinqüir que apresenta uma determinada organização social”, é óbvio
que a incapacitação seletiva não traz resultados, pois se as ocasiões permanecerem, outras
pessoas praticarão os crimes.50
Um argumento interessante é o de que as características que conferem risco a
determinadas pessoas se confundem com problemas sociais; assim, para obter efeitos
apreciáveis seria necessário neutralizar toda a marginalidade social. Além disso, a própria
estrutura racista e patriarcal vem fazendo com que os fatores de risco sejam identificados nas

47
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 127.
48
ibid. p.128.
49
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. Rio
de Janeiro: Revan, 1991.
50
PAVARINI, Massimo. op. cit. p. 127.

474
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

pessoas caracterizadas como excluídas, em especial a população negra. Na prática, é isso o


que vem ocorrendo nos Estados Unidos: há hoje mais homens negros na prisão do que
matriculados em escolas médias superiores.
Quanto aos índices de criminalização, os Estados Unidos nunca superaram a média
de alguns países europeus, a não ser nos casos de roubo com arma seguido de morte, crime
que está elevando suas taxas. Pavarini sustenta que isso pode vir a ser explicado por questões
culturais aliados ao uso desenfreado de armas. Por outro lado, que isso pode ser reflexo da
incapacitação seletiva: “se um roubo pode implicar o risco de uma life sentence, por que
deveriam abster-se de matar a vítima que resiste ao roubo?”.51
A pergunta que Pavarini faz diante dessa análise é: “a penalidade na pós-
modernidade – não obstante a ênfase posta nos valores da racionalidade burocrática, da
eficiência e do cálculo – não termina por ter que entregar-se a uma economia do excesso dos
castigos, em suma, a uma penalidade elegantemente expressiva?”52 Seguindo Garland de
perto é possível sim chegar a esse resultado da penalidade excessiva através da explicação
sobre a sociedade de controle. Se, de um lado, a criminologia da vida cotidiana trabalha em
termos de cálculos de risco e vê a prisão como forma de neutralização seletiva de pessoas
perigosas em função de cálculos estatísticos, de outro lado, a chamada criminologia do outro,
ou criminologia “de baixo”53, sustenta as longas prisões e pena de morte através de outra
justificação: a transformação do delinquente em um monstro irrecuperável.

3 Racismo e criminalidade: a criminologia do outro

Após explicar a biopolítica como política da vida e a sua relação de oposição com o
poder soberano na ideia do fazer viver e deixar morrer, Foucault questiona-se como pode ser
possível o exercício do direito de matar e a função do assassínio se o poder se dirige cada vez
mais ao biopoder disciplinar e regulamentador? Como esse poder, que tem essencialmente o
objetivo de fazer viver pode deixar morrer?54 Para o autor, é nesse ponto que entra o racismo:

51
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 131.
52
ibid.
53
ibid. p. 124. “Esta nova ideia de penalidade aparece frequentemente grosseira em suas simplificações extremas
e geralmente não lhe agrada adornar-se com dissertações acadêmicas. Ela se expressa nos discursos do povo. E
lhe fala diretamente ao povo nas palavras dos políticos e, fundamentalmente, através dos meios massivos de
comunicação; mas se difunde e termina por articular-se em tópicos que encontram – ou tratam de encontrar –
também uma legitimação científica. E obviamente não falta quem se aventure cientificamente nesta empresa.
Atualmente se está difundindo uma cultura populista da pena, que coloca, quiçá pela primeira vez, a questão de
uma penalidade socialmente compartilhada ‘de baixo’”. Tradução livre.
54
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 303-304.

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o que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência do biopoder.

Com efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse


domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve
viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o
aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação
de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai
ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico de que o poder se incumbiu;
uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros.
Em resumo, de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior de um
domínio considerado como sendo precisamente um domínio biológico.55

A segunda função do racismo será a de permitir uma relação positiva de tipo


biológico com a morte: desperta a relação de tipo guerreiro – “se você quer viver, é preciso
que o outro morra” – a morte da raça inferior é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e
mais pura.56 Os inimigos não são, assim, adversários políticos, mas perigos, externos ou
internos, à população. Isso significa que no biopoder o racismo é indispensável para poder
tirar a vida de alguém.
Nesse ponto, Foucault relaciona a teoria biológica do século XIX com o discurso do
poder, e o modo como o discurso político pôde se revestir de um caráter científico ao tratar
sob o viés biológico questões como as relações de colonização, a necessidade das guerras, o
fenômeno da loucura, a criminalidade, a história das sociedades com suas diferentes classes
etc. A evidência maior aí é o genocídio colonizador, primeiro momento de funcionamento do
racismo de Estado. Na guerra, por sua vez, trata-se de duas coisas: destruir não apenas o
adversário político, mas a raça adversa, o perigo biológico, e mais: regenerar a própria raça na
lógica de que os mais fortes e saudáveis são os que sobrevivem.57 “A guerra assume, então,
uma nova forma. Ela consistirá não somente em destruir o adversário político, mas
especialmente em destruir a raça inferior”.58 Na criminalidade é possível ver a mesma coisa: o
pensamento que a ligava ao racismo permitiu a condenação à morte do criminoso ou o seu
isolamento; a mesma coisa para a loucura e anomalias diversas.
O enraizamento do racismo ocorre, então, com o funcionamento de um Estado que é
obrigado a se utilizar da raça para exercer o poder soberano, já que seu poder agora é
biopolítico, é um poder de fazer viver. O maior exemplo da utilização da biopolítica como
deixar viver e do racismo como modo de fazer morrer foi o nazismo. Nota Foucault que esta
era uma sociedade universalmente previdenciária, seguradora, regulamentadora e disciplinar e
55
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 304.
56
ibid. p. 305.
57
ibid. p. 308.
58
FONSECA, Márcio Alves. Fazer viver e deixar morrer: as sociedades modernas e a tipologia de seus poderes.
Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?scr
ipt=sci_arttext&pid=S0102-69092000000300013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 26 jul. 2011.

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foi nela que se desenvolveu o maior poder assassino desencadeado através de todo o corpo
social pelo racismo: “o Estado nazista tornou absolutamente co-extensivos o campo de uma
vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente e, ao mesmo tempo, o direito
soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas os seus próprios”. 59 Era este
um Estado racista, assassino e suicida.
Não fosse pelo racismo, a própria pena de morte apareceria no mecanismo
biopolítico como uma contradição: “de que modo um poder viria a exercer suas mais altas
prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar,
reforçar, multiplicar a vida e pô-la em ordem? Para um poder desse tipo, a pena capital é, ao
mesmo tempo, o limite, o escândalo e a contradição”.60 É por isso que, para mantê-la, foi
necessário invocar “nem tanto a enormidade do crime quanto a monstruosidade do criminoso,
sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São mortos legitimamente aqueles que
constituem uma espécie de perigo biológico para os outros”.61
É nesse ponto que ingressa o outro lado da moeda do tratamento do crime: é para
justificar longas penas de prisão ou a pena de morte em lugar do disciplinamento e melhora
do indivíduo que surge todo um mecanismo que transforma criminosos em verdadeiros
monstros irracionais. Cada vez mais se retoma o fenômeno da inflação da penalidade,
relacionada, para Pavarini e Garland a uma verdadeira crise da democracia, que a transforma
em uma democracia de opinião. Mais importante do que focar o sistema penal no indivíduo
que pratica a conduta definida como crime, essa “penologia” busca focar o sistema nas
vítimas e no público, no intuito de satisfazer as suas emoções.

Na democracia de opinião o que se exalta é a percepção emocional do sujeito


reduzido a suas emoções mais elementares: temor e rancor. E o novo discurso
político tende cada vez mais a articular-se sobre estas emoções que o sistema de
justiça penal é capaz de expressar coerentemente, em sua função de produção
simbólica de sentido através do processo de imputação de responsabilidade.62

O que se deve responder diante disso é quais foram as pré-condições materiais que
tornaram possível esse processo de emergência de uma demanda de penalidade “tal como
quer a opinião pública”.
Para Garland, o populismo e a politização das decisões penais são uma das
características atuais que se relacionam com o endurecimento penal e com essa concepção que

59
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 311.
60
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1 A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 130.
61
ibid.
62
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 132

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

percebe o criminoso como “o mal”. O privilégio do lugar da vítima nesse contexto não
significa um espaço maior conferido a ela, mas sim a popularização de um modelo projetado
de vítima, que não dá voz efetiva a ela. “A figura santificada da vítima que sofre se converteu
em um produto apreciado nos circuitos de intercâmbio político e midiático, sendo colocados
indivíduos reais em frente às câmeras, muitas vezes convertendo-se, durante o processo, em
celebridades midiáticas ou ativistas de movimentos de vítimas”.63 No caso norte-americano,
Simon nota que um governo através da criminalidade e do medo que vem sendo implantado
nos últimos dez anos nos Estados Unidos faz com que seja no papel de vítimas que os norte-
americanos se compreendam como uma unidade. Mas a identidade de vítima é profundamente
conotada em termos raciais.64

A classificação da cidadania entre tipos de vítimas atuais ou potenciais permite um


amplo reconhecimento das diferenças dentro do paradigma unificante do “medo da
criminalidade”, enquanto o catálogo contemporâneo dos “monstros” – que
compreende autores de crimes sexuais, membros de gangues, boss da droga e
criminosos violentos reincidentes – delineia uma base sempre nova para a
intervenção legislativa.65

Se de um lado aparece a vítima projetada simbolizando o “nós”, o “bem”, o “certo”,


é do lado do “outro”, do “mal” e do “errado” que se encontrará o criminoso. É aí que surge a
sua figura também projetada, abstrata, no lugar de uma pessoa individualizada. Essa noção
incita o público “a tratar os delinquentes como criaturas opacamente monstruosas que se
encontram para além de nossa capacidade de compreender, o que ajuda a acalmar a
consciência daquelas pessoas que poderiam chegar a sentir remorsos pelo fato de que milhões
de pessoas sejam incapacitadas e até se mate algumas delas em nome da segurança pública”.66
Diferentemente do correcionalismo e da concepção disciplinar da punição, agora tanto faz se
o caráter do delinquente é consequência de genes malignos ou de haver sido criado em uma
cultura antissocial, pois o resultado é o mesmo: uma pessoa indesejável, irrecuperável, que
não é parte da comunidade civilizada.67 Contra ele, qualquer medida pode ser tomada: define-
se aí o inimigo da sociedade.
A consequência em termos jurídicos da criminologia do outro é o retorno ao
retributivismo e, mais uma vez, o incremento de penas, simultaneamente à redução das
garantias. Para Pavarini, o retorno da pena justa em detrimento da pena útil significa uma

63
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 241.
64
SIMON, Jonathan. Il governo della paura: guerra alla criminalità e democrazia in America. Milano: Rafaello
Cortina, 2008. p. 98. Tradução livre.
65
ibid. p. 100.
66
GARLAND, David. op.cit. 301.
67
ibid. p. 302.

478
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

volta à origem primitiva do direito de punir: uma penalidade livre em seus conteúdos e em
suas formas de todo vínculo racional. Trata-se de um regresso a uma “penologia
fundamentalista”.68
O mais interessante dessa relação entre as criminologias da vida cotidiana e a
criminologia do outro é o fato de que, enquanto uma se preocupa com a minimização dos
custos do sistema penal, a outra nada calcula: qualquer esforço é justificado quando se trata de
proteger as vítimas de monstros cruéis. Enquanto essas novas criminologias da vida cotidiana
se situam em uma orientação de modernidade tardia, buscando soluções racionais e
pragmáticas baseadas em pesquisas de ordem econômica e probabilística, a criminologia do
outro responde a uma orientação verdadeiramente antimoderna: ela “reage frente ao que
percebe como os fracassos do modernismo penal e frente às instâncias sociais da modernidade
tardia questionando os códigos normativos dessa sociedade e buscando transformar os valores
sobre os quais se assenta. Trata-se de una criminologia do outro perigoso, um eco
criminológico da cultura da guerra e da política neoconsevadora”.69
O fato de se tratar dessa bifurcação e de se afirmar que hoje as criminologias da vida
cotidiana e a criminologia do outro ocupam importantes espaços no tratamento da
criminalidade, não implica em se negar a importância ainda do exercício do poder disciplinar.
Assim como Foucault nota que a emergência dos dispositivos de segurança não suplanta a
biopolítica e a disciplina, tampouco as novas criminologias suplantam o positivismo
criminológico e toda a gama de explicações causais do comportamento criminoso centrado no
delinquente. Não são poucos os estudos, especialmente nos Estados Unidos, que buscam
encontrar, ainda, o “gene” do mal.
Mas o que se percebe é um direcionamento comum entre aquelas duas criminologias:
ambas trabalham no sentido do fortalecimento do controle penal, que é visivelmente seletivo.
Seja o endurecimento das leis penais dado pelo neorretributivismo, seja a ampliação do
sistema de controle situacional e ambiental por parte das criminologias da vida cotidiana,
ambas contribuem para a expansão do sistema penal. Tanto é que nos Estados Unidos o
crescimento do número de encarcerados cresce exponencialmente, chegando, na atualidade, a
dois milhões de presos. Por outro lado, também o sistema de controle aberto por meio de
institutos como a probation só crescem: se somados os indivíduos controlados dentro e fora

68
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 134.
69
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 300.

479
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

da prisão, somam-se mais de 8 milhões de pessoas.70


Dentre as críticas severas que devem ser feitas a essas duas criminologias, a mais
fundamental é percepção da sistemática ocultação da seletividade do sistema penal que as
caracteriza71: tanto os fatores de risco quanto as anomalias perigosas são buscadas nos setores
mais vulneráveis da população. Ambas as perspectivas atuam no sentido de perpetuar as
relações de poder e dominação característicos da atualidade, especialmente se considerados o
contexto da globalização e de seu correspondente ideológico, o neoliberalismo72. Em uma
sociedade de consumo, o foco do sistema penal se orientará para o controle dos excluídos, dos
consumidores falhos73.

Conclusão

As mudanças no poder implicam claramente em transformações nas posturas a


respeito do controle do crime. Se no surgimento da indústria era essencial a fabricação de
mão-de-obra, percebe-se que o poder disciplinar foi o diferencial no desenvolvimento do
capitalismo. Por sua vez, o controle do crime em conjunto com o surgimento dessa nova
forma de exercício de poder se transforma em um saber sobre o homem criminoso e as
estratégias a serem utilizadas para a sua normalização, que foi chamada de criminologia
positivista ou neoclássica. Em termos políticos, a concepção do cárcere reabilitador se
desenvolveu no contexto do intervencionismo estatal, que culminou com o chamado welfare
state.
Quando se diagnostica, porém, que, a despeito de a sociedade ainda manter
características disciplinares e de o controle penal ainda não ter se despido completamente das
técnicas e saberes envolvidos no welfarismo, percebe-se claramente uma nova mudança no
poder. Trata-se, de um lado, da descoberta do biopoder, o qual exerceu, em especial no século
XX, um importante papel no controle da população. A política da vida, na qual o poder
disciplinar está também envolvido, mas em outra escala, permitiu o desenvolvimento de uma
série de controles populacionais, culminando com os chamados dispositivos de segurança, os
quais buscam através de controles situacionais em um cálculo de custos, gerir a criminalidade.

70
SIMON, Jonathan. Il governo della paura: guerra alla criminalità e democrazia in America. Milano: Rafaello
Cortina, 2008.
71
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC,
2002.
72
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Movimentos contemporâneos de controle do crime. In: Violência e
controle social na contemporaneidade. Anais do III Ciclo de Estudos e Debates sobre Violência e Controle
Social. p. 143-148. Porto Alegre: PUC-RS, 2008. p. 145.
73
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

480
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A própria instância jurídica passa a cumprir o papel de veiculador dos dispositivos de


segurança.74
É na ascensão do chamado neoliberalismo que se contextualiza esse novo paradigma
da criminologia, que deixa de lado o estudo e a normalização do homem criminoso para,
através de um cálculo econômico, estabelecer controles situacionais e ambientais para evitar
não todos os crimes, mas um número que os torne toleráveis.
Mas o que surpreende e que não pode ser deixado de lado nessa análise é que, a
despeito do tratamento de Foucault sobre os dispositivos de segurança, ou sobre os
diagnósticos de Deleuze75 sobre a sociedade de controle, que se baseiam não mais em
instituições fechadas e de longa duração, é que, na verdade essa nova economia política do
poder caminha concomitantemente com o seu inverso. Se, de um lado, um mecanismo
econômico derivado de sua origem neoliberal entende a necessidade de se punir com o menor
custo possível, deslocando o controle do crime muito mais para a prevenção do que para a
repressão, há também o outro lado: uma forma de controle do crime estritamente antimoderna
e que quer sentir no corpo supliciado a vingança, a necessidade passional de punição. Uma
catarse pública simbolizada por algemas e grades e, atrás delas, a imagem do monstro
incontrolável.

Referências

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da


violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
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482
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

EXPANSIONISMO PENAL E CRISE DO MODELO LIBERAL: O RENASCIMENTO


DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO

EXPANSIONISMO PENAL Y CRISIS DEL MODELO LIBERAL: EL


RENACIMIENTO DEL POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO

Gerson Faustino Rosa1


Hamilton Belloto Henriques2

RESUMO: O presente trabalho tem como meta a análise crítica e a exploração de um grande
problema político-criminal da atualidade, qual seja, a expansão do Direito Penal, decorrente
da atividade desenfreada do poder legislativo, que produz leis penais para tutelar bens
jurídicos outros, passíveis de proteção por outras esferas do Direito, ampliando demais o
alcance da Ciência Penal, a ponto de impossibilitar ao seu aplicador realização da devida
prestação técnico-profissional, além de vulgarizar todo o sistema penal em razão de seu uso
indiscriminado, heterogeneizando-o. Para tanto, em primeiro plano, este estudo trata da
relação existente entre a política criminal e a dogmática penal dentro da composição das
Ciências Penais. Posteriormente, destacam-se os princípios político-criminais, que devem
dirigir e limitar o trabalho do legislador na esfera penal. Adiante, apresentou-se o tema central
deste trabalho, qual seja a modernização do Direito Penal, trazendo à luz a posição favorável
ao movimento expansionista “liderado” por Luis Gracia Martín, além de expor o
entendimento contrário à modernização, onde se aduz as opiniões e sugestões de Winfried
Hassemer, Cornelius Prittwitz e Jesús-María Silva Sanches. Conclui-se, nesta esteira, que essa
ampliação do Direito Criminal não pode valer-se da força comunicativa desta esfera para a
imposição de penas privativas de liberdade a fim de abarcar questões de outros ramos do
Direito. Assim, observa-se que o problema não é tanto a expansão do Direito Penal em geral,
senão especificamente a expansão do Direito Penal da pena privativa de liberdade e outras
respostas penais de índole preventiva (medidas de segurança), pois a expansão do Direito
Punitivo carece de razoabilidade político-jurídica.
Palavras-chave: Política Criminal; Dogmática Penal; Expansionismo Penal; Modernização do
Direito Penal; Pena Privativa de Liberdade.

RESUMEN: El presente trabajo tiene como objetivo hacer um análisis crítico y uma
exploración de un gran problema político-problema de actualidad, a saber, la expansión del
derecho penal, como resultado de la actividad del poder legislativo desenfrenado, que produce
las leyes penales para proteger otros bienes jurídicos, protegidos por otras ramas del derecho,
ampliando el alcance del derecho penal creando dificultades para la aplicación de la ley,
Aparte de vulgarizar todo el sistema de justicia penal, debido a su uso indiscriminado, lo
heterogeneizando. Por lo tanto, en primer plano, este estudio examina la relación entre la
dogmática penal y política criminal dentro de la composición de Ciencias Penales. A

1
Professor de Direito Penal e Processual Penal na UNIESP de Presidente Prudente - SP, Investigador de Polícia
no Estado do Paraná, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho – RJ e
pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá – PR, mestrando em Ciências Jurídicas
no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR).
2
Advogado Criminalista, Ciências Jurídicas no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor de
Direito Penal no Cesumar e Unifamma.

483
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

continuación, se destacan los principios de política criminal que deben orientar y limitar el
trabajo del legislador en materia penal. Por delante, presentó el tema central de este trabajo, a
saber, la modernización del derecho penal, exponiendo la posición favorable al movimiento
expansionista "dirigida" por Luis Gracia Martín, además de exponer el punto de vista opuesto
a la modernización, en la que aduce las opiniones Winfried Hassemer, Cornelius Prittwitz y
María Jesús Silva-Sánchez. Llegamos a la conclusión, esta cinta, que la extensión de la ley
penal no puede acogerse a la fuerza comunicativa de esta esfera para la imposición de penas
privativas de libertad con el fin de cubrir los temas de otras ramas del derecho. Así, se observa
que el problema no es tanto la expansión del derecho penal en general, pero específicamente la
expansión de la Ley penal de privación de libertad y otras respuestas preventivas de carácter
penal (medidas de seguridad), porque la expansión de la ley punitiva carece de razonabilidad
política y jurídica.
Palavras-chave: Política Criminal; Dogmática Penal; Expansionismo Penal; Modernização
del Derecho Penal; Pena Privativa de Liberdade.

1 INTRODUÇÃO

Diante da impossibilidade de “retorno” ou reconstrução de um modelo do assim


chamado Direito Penal Liberal, ou “moderno”, cujos traços fundamentais foram construídos
pelo movimento da ilustração em fins do século XVIII e princípio do XIX, rompendo com os
postulados do Ancièn Régime, e frente à constatação de uma progressiva expansão do Direito
Penal da pós modernidade, característico de uma sociedade de risco, há quem advogue pela
volta de um Direito centrado na proteção dos bens essencialmente personalistas e do
patrimônio, com estrita vinculação aos princípios de garantia, paralelamente a um direito de
consequências atenuadas e garantias flexibilizadas, face à necessidade de célere resposta
estatal a delitos contra bens jurídicos difusos (meio ambiente, saúde pública, consumidor...).
A intenção que rege tal proposta é, indubitavelmente, a de recuperar sua
configuração como um Direito estrito de garantias do cidadão, diante da intervenção
repressiva do Estado, onde a grandeza da resposta penal é compensada por um instrumental
de regras garantidoras da liberdade do homem face ao poder punitivo do Estado, legitimado e
limitado tanto pelo conteúdo do ius poenale, como do exercício do ius puniendi.
Garantir-se-ia com isso, uma dinâmica na atividade administrativa jurisdicional
do Estado ao responder de forma pronta a violações de bens jurídicos difusos, onde a
inexistência de sanções tradicionais, como a pena de prisão, cuja falência já se observa a
tempos, permitiria uma flexibilização, ou atrofia dos mecanismos garantistas de ordem
material e processual, em prol de uma celeridade reclamada.

484
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Esse Direito Penal, porém, cuja denominação de liberal relaciona-se às


características essenciais do movimento de superação do autoritarismo medieval e que
pretendem alguns, reconstruir agora, nunca existiu como tal. Impossível, portanto, sua volta.
Isso porque, mesmo que a hipótese da concretude daquele modelo seja aceita, tal
reconstrução ignora a presença de determinadas características históricas observadas no
ambiente europeu que desencadeou o iluminismo, estruturado ante uma rígida proteção do
Estado, assim como de certos princípios de organização social incompatíveis com a realidade
da sociedade “pós-moderna”, onde o incremento das relações de risco fomentam um
funcionalismo penal que ultrapassa as necessidades constantes naquele período da história.
Qualquer tentativa nesse sentido se nos apresentaria como anacrônica, inadequada portanto, à
missão atual do Direito Penal.
Por outro lado a rigidez das garantias formais que nele (Direito Penal Clássico) era
possível observar não representava senão o contrapeso do extraordinário rigor das sanções
imponíveis.
A ineficácia da pena de prisão constatada na atualidade, observada, aliás, como
ilegítima por funcionar, antes de ressocializadora, como verdadeiro fator criminógeno, por
tratar-se de meio artificial e antinatural, impõe uma mudança de paradigma.
Clama-se por respostas penais frente Essa sociedade de risco, característica da pós-
modernidade, permeada pelo medo e insegurança, a demandar um incremento punitivista,
como meio protetor da “paz social e ordem pública”.
Nesse sentido, a insegurança experimentada pela população mesmo que de forma
mais comunicacional do que real, porque percebido na integralidade do cotidiano do cidadão,
fomenta, para além do fenômeno da expansão do Direito Penal, na criminalização de novos
comportamentos outrora indiferentes, a criação e desenvolvimento de respostas de natureza
preventiva, que uma vez aplicadas de forma célere, parece tornar legitimo o modelo de Estado
protetor.
O fenômeno da violência difundida, da cultura do medo na sociedade da pós-
modernidade, temido no Brasil a partir de determinados acontecimentos de ordem política,
como que criadores de riscos à vida e liberdades da coletividade mantém um constante e
presente estado de alarme, ante a presença de potenciais “inimigos.”
Esse fenômeno pelo estado de angústia que gera no cidadão, faz surgir uma demanda
de políticas criminais duras.
De outra banda, autores como Hassemer da escola de Frankfurt, propugnam - sem
chegar a uma radical redução do Direito Penal à proteção da vida, saúde, liberdade e

485
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

patrimônio - que a maior parte do fenômeno expansivo do Direito Penal teria de ser
reconduzida a um Direito de Intervenção, ou Direito Administrativo sancionador, ou ainda,
Direito Judicial Sancionador -, defendendo a elaboração de um “novo ramo” do Direito,
intermediário aos Direitos Penal e Administrativo, apto a tutelar situações não consideradas
de ultima ratio, mas que dependam de uma tutela, ainda que menos rigorosa, porém eficiente.
Vemos nessa mudança de paradigma a presença de mecanismos de respostas penais
identificadas em alguns discursos penais e criminológicos, que durante a história da
humanidade mantiveram-se como mecanismo de reação frente aos perigos da criminalidade
grave, justificando-se, na atualidade, por alguns fatores como o incremento comunicacional,
construídos a partir de fenômenos sociais mais amplos da sociedade, em especial aqueles que
o campo jornalístico cria como esferas do sistema de justiça amplamente cristalizados no
modelo social contemporâneo.
Isso faz com que paralelamente ao modelo de garantias penais e processuais penais,
cristalize-se um outro, de duvidosas garantias face à não gravidade, ou aparente sutileza de
suas respostas, mas que uma vez estruturado pode irradiar-se pelo sistema, mormente ante
comportamentos perigosos, dinamizando a eficácia de medidas de cunho preventivo, sem
maiores perquirições de seus requisitos ou garantias construídos mediante o pagamento de
duras penas pela humanidade. Justifica-se o famigerado modelo prevencionista ante uma
necessária defesa da sociedade.
O grande problema que se nos apresenta então, como se pôde observar por essa breve
explanação, decorre do fato de que o Direito Penal vigente na maioria dos países propicia a
cominação de penas de prisão de gravidade média em hipóteses de fatos
“administrativizados”, com regras de imputação e de rigidez decrescentes e no campo de
princípios político-criminais flexibilizados, tendenciando-se, outrossim, o prosseguimento
nessa linha, em termos corrigidos e aumentados.
Por outro lado, essa verificada flexibilização pode tomar proporções incontroláveis,
onde os fins a serem alcançados justificariam determinadas medidas de cunho prevencionista,
aplicados a revelia de institutos garantidores do cidadão face ao poder punitivo do Estado,
descambando por um arbitrário “Direito Penal de Política Criminal”, administrativizado pela
oportunidade e conveniência que exsurge da demanda social.
Nessa seara, admitir-se-ia que propor a “devolução” ao Direito Administrativo de
todo o “novo” Direito Penal é, certamente, uma postura admirável sob perspectivas
academicistas, mas que evita afrontar as razões pelas quais produziu-se essa inflação penal,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

assim como buscar soluções que, uma vez atendidas, mostrem a máxima racionalidade
possível.
Nesse sentido, impõe-se averiguar sob a égide do modelo democrático em que nos
inserimos, se tais mecanismos são eficazes no controle dos índices de criminalidade de um
determinado povo em dado momento histórico, e para, além disso, se são compatíveis com
esse modelo eleito.
Constata-se que a cultura do medo tem gerado uma manifestação social que demanda
“um controle jurídico-penal cada vez mais arbitrário, e paradoxalmente, mais legítimo”.
Diante desse quadro de fatos, faremos breves digressões sobre a constatação narrada,
apresentando, na medida do possível, algumas possíveis soluções político-criminais aceitas
como razoáveis numa perspectiva ao menos acadêmica, explanando-se ainda, acerca das
vantagens e desvantagens que trazem em seu bojo.
Propor-se-á assim, uma reflexão objetiva sobre uma das principais discussões
doutrinárias da atualidade, quanto à expansão do Direito Penal e suas novas modalidades de
respostas.
Para tanto, desenvolveremos breve pesquisa, orientada pelo método dedutivo, através
de análises fundamentais e qualitativas, tendo como recursos bibliografias, literaturas e
documentos.

2 A RELAÇÃO DE COMPLETUDE ENTRE A POLÍITICA CRIMINAL E A


DOGMÁTICA PENAL

O legado da Escola Moderna Alemã, cujo gênio de Von Liszt, nos ampliou os
horizontes da Ciência do Direito Penal Dentro ante uma nova e complexa estrutura, resultante
da fusão de disciplinas jurídicas e criminológicas heterogêneas, compondo a gesamte
Strafrechtswissenschaft (ciência total do Direito Penal)3 onde essa visão totalizante e
interdisciplinar possibilita ao estudioso uma visão mais ampla e ao mesmo tempo profunda
dos fenômenos criminais, a partir de elementos centrais da ideia do Direito como fenômeno
observável: o homem e a sociedade.

3
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral: artigos. 1º a 120º. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002. v. 1, p. 93.

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Do estudo das Ciências Penais a partir daquela heterogeneidade reclamada por Liszt,
temos a política criminal, a dogmática penal e a criminologia 4, todas com autonomia
científica, porém interligadas entre si, por uma relação de interdependência prática, como
integrantes de monumental mecanismo científico apto a nos revelar, mesmo que por meios
tangenciais da verdade científica, as características e possíveis rumos do Direito Penal da
“pós-modernidade”.
Enquanto a dogmática penal ocupa-se da interpretação, sistematização e
desenvolvimento dos dispositivos legais e das opiniões científicas no âmbito do direito penal 5,
a política criminal corresponde à que deve ser implementada no combate à criminalidade,
sendo, portanto, o aspecto do controle penal relacionado com o poder que o Estado tem de
definir um conflito social como criminal6.
De uma perspectiva crítica, leciona Alessandro Baratta que “no microcosmo social, o
mecanismo de marginalização posto em ação pelos órgãos institucionais é integrado e
reforçado por processos de reação, que intervêm ao nível informal” 7, isto é, ao nível dos
mecanismos informais de combate à criminalidade (escola, família, igreja, etc.).
Nesse sentido, para o desenvolvimento de mecanismos efetivos de controle e
prevenção, não basta a formação jurídica tradicional, formal, que vê no crime a mera violação
da lei penal. Daí porque se deve buscar também o auxílio de outras ciências sociais, dentro de
um contexto interdisciplinar, para compreender de forma adequada a etiologia do fenômeno
criminal que, nesse sentido, adquire um importante sentido material: crime, portanto, não é a
violação da lei estatal, mas o fenômeno que ganha transcendência a partir do momento em
que incomoda a sociedade e abala bens fundamentais para sua existência.
Observa-se que a política criminal, por sua vez, concebida como o conjunto de
medidas adotadas pelo poder público – no âmbito de sua tríplice atividade, 8 impulsiona a
dogmática penal, tendenciando-a, pois aquela precisa ser sensível aos anseios e perspectivas
sociais, refletindo-se na realidade normativa, ou seja, no conteúdo da dogmática penal.

4
A criminologia constitui ciência empírica, que, com base em dados e demonstrações fáticas, busca uma
explicação causal do delito como obra de uma pessoa determinada ESTEFAM, André. Direito Penal: volume 1.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 40.
5
ROXIN. Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro-São
Paulo: Renovar, 2002, p. 186-187.
6
MALARÉE, Hernán Hormazábal; RAMÍREZ, Juan Bustos. Lecciones de derecho penal. Madrid: Trota, 2006,
p. 40.
7
BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 180.
8
Como bem dispõe Mirelle Delmas-Marty, a Política Criminal compreende “o conjunto de procedimentos pelos
quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal, aparecendo, portanto, como teoria e prática das
diferentes formas de controle social” (Os grandes sistemas de Política Criminal. Trad. Denise Radanovic Vieira.
Barueri: Manole, 2004, p.3-4).

488
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Neste sentido, Franz von Liszt 9 sistematizou e preocupou-se com os limites da


Política Criminal, afirmando ser o Direito Penal sua barreira intransponível, vez que a
estrutura essencial do Direito Penal como instrumento formal de controle social, diga-se o
mais formalizado de todos, protegendo o cidadão de surpresas e arbítrios do Estado.
Nota-se, com isso, que a política criminal é a ciência destinada à orientação do
Direito Penal (dogmática penal), a quem incumbe “filtrar” as tendências político-criminais,
criar, reformar e extinguir as normas penais, limitando tais tendências (Princípio da
Legalidade) a fim de se evitar arbitrariedades por parte do Estado.
Destaca-se, no entanto, o caráter autônomo e construtivo da política criminal, posto
que, além de ser uma ciência autônoma, constrói, reforma e orienta o direito penal, sugerindo
as devidas correções às suas imperfeições, bem como, interferindo na interpretação e
aplicação das normas penais, antecedendo a atividade do legislador10.
Na atualidade, Claus Roxin11 contrariando as lições de Liszt, nega a existência de
qualquer “barreira” entre a política criminal e a dogmática penal, e defende a construção de
um sistema onde a política criminal adentra livremente a dogmática penal. Não significa, com
isso, que elas não sejam autônomas, mas sim, que interagem sinergicamente, colaborando
para a construção de um sistema penal permeável às exigências e tendências político-
criminais.
Deixa-se, portanto, o sistema causalista de Franz Von Liszt, para adotar o sistema
funcionalista de Claus Roxin, que tem como prioridade a estabilidade do sistema jurídico-
penal, o qual deve, sobretudo, funcionar perfeitamente, sem embaraços.
A única “barreira” proposta por Roxin, paira na aplicação dos princípios
constitucionais, refletindo o Estado Democrático de Direitos, ou seja, o espelhamento do
plano ontológico (plano do ser). Assim, somente as diretrizes político-criminais harmonizadas
com os valores constitucionais poderão ingressar no Direito Penal. Dito de outra forma, a
política criminal somente poderá transpor a “barreira” da dogmática penal quando estiver em
consonância com o estabelecido valores constitucionais 12.

9
LISZT, Frans von. Tratado de directo penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. Atualização e notas de
Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003. t. I e II.
10
Neste sentido BACIGAPULO, Enrique. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Hammurabi, 1999, p.
66, destaca que os postulados da política criminal servem, então, como critérios de decisão a respeito dos
sistemas dogmáticos para aplicação do direito penal, de modo que a política e a dogmática penal integram-se de
modo indissolúvel na ciência penal.
11
Op. cit., p. 188. (2002, p.188),
12
Para um estudo minucioso, cf. ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Trad. Francisco
Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Como se pode observar, o assim chamado sistema aberto de orientação teleológica 13


passa a definir o Sistema Penal a partir de critérios teleológicos ou finalísticos decorrentes de
decisões político-criminais. Trata-se de um “sistema penal teleológicamente orientado. 14 O
sistema passa a ser construído ante uma sistematização jurídico-penal tendo como fundo as
bases político-criminais da moderna teoria dos fins da pena. 15
Esse novo paradigma, pode dar origem a diversas respostas de índole penal, que
satisfaçam as finalidades da pena, dentre tais as de natureza preventiva geral e especial.

3 PRINCÍPIOS DA POLÍTICA CRIMINAL

À luz da exposição feita por Beccaria 16, em 1764, em seu breviário de política
criminal Dos Delitos e Das Penas, trar-se-á um breve relato acerca do enunciado dos
princípios da política criminal, conforme segue, tendo em vista que, ignorando-os, produzir-
se-ia um não-Direito:

a) Princípio da Legalidade dos Delitos e das Penas: trata-se de uma das maiores
conquistas da humanidade, iniciada formalmente em 1628, quando a elaboração de uma
petição de direitos (Petition of Right), lançou a semente da revolução inglesa, contribuindo
para a proibição de prisões ilegais. Tal princípio, nos dias atuais, traduz-se na previsão legal
de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”
(art. 5.º, XXXIX, CF e art. 1.º, CP)17. O princípio da legalidade dá lugar a uma série de
garantias e consêquencias em que se manifesta o seu aspecto material – não simplesmente
formal -, o que importa em restrições ao legislador e ao intérprete da lei penal. Daí ser
traduzido no sintético aptegma nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, scrita et stricta,
que cumpre funções reciprocamente condicionadas, quais sejam: limitações das fontes
formais do direito penal e garantia da liberdade pessoal do cidadão 18.

13
SILVA SANCHES, p. nota 170, apud, PRADO, Luiz Regis, Op. cit., p. 108.
14
Idem.
15
Ibidem.
16
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 202-240.
17
Assim, enuncia Cesare Beccaria, Op. cit., p. 33, que apenas as leis podem fixar penas com relação aos delitos
praticados; e esta autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade
agrupada por um contrato social (Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege).
18
PRADO, Luiz Regis. Op. cit.,p. 112.

490
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Faz-se também, segundo Ferrajoli19 distinção entre a mera legalidade, que tem na lei
condição indispensável do delito e da pena (nulla poena, nullum crimen sine lege), e o
postulado da estrita legalidade, como modelo regulativo, que exige as demais garantias como
fundamento da legalidade penal (nulla lex poenalis sine necessitate, sine iniuria, sine actione,
sine culpa, sine iudicio, sine accusatione, sine probatione, sine defensione).

b) Princípio da Proporcionalidade: para Beccaria20, as penas previstas em lei


devem ser proporcionais aos delitos, e, de certo modo, ao dano causado à sociedade. O dano à
sociedade é a verdadeira medida dos crimes. Para Montesquieu, a proporcionalidade entre
uma pena e o delito é a forma de impedir o excesso, isto é, que a pena seja uma violência do
homem para com o homem21.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1795, estabelece em seu art.
12: “A lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito”.
Deve, entretanto, existir sempre uma medida de justo equilíbrio – abstrata
(legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade do fato ilícito praticado, do injusto penal
(desvalor da ação e desvalor do resultado), e a pena cominada ou imposta22.

c) Princípio da intervenção Mínima: A lei penal só deverá intervir quando for


absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio e,
preferencialmente, só deverá fazê-lo, na medida em que for capaz de ter eficácia. Posto que, o
uso excessivo da sanção penal (inflação penal) não garante uma maior proteção de bens, mas
ao contrário, condena o sistema penal a uma função meramente simbólica e negativa 23,
corroborando assim com o que defende-se no presente trabalho, uma vez que busca-se uma
solução, ou ao menos uma atenuação, para o desenfreamento do poder legiferante, em
especial, na esfera criminal.

d) Princípio da Culpabilidade: postulado basilar de que não há pena sem


culpabilidade (nulla poena sine culpa) e de que a pena não pode ultrapassar a medida de
culpabilidade – proporcionalidade na culpabilidade. Até a Idade Média notava-se a existência
do princípio canônico versare in re illicita, segundo o qual imputava-se o ato criminoso ao

19
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 95.
20
Op. cit., p. 229.
21
MONTESQUIEU, Charles Louis de. O espírito das leis. São Paulo: Martins, 1996, p. 198.
22
PRADO, Luiz Regis, Op. cit., p.122.
23
Idem, p. 120.

491
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agente pelo simples fato de ter ele agido voluntariamente, ainda que não houvesse dolo ou
culpa24. Hodiernamente, porém, o princípio da culpabilidade possui três dimensões 25: a)
proibição da responsabilidade penal sem dolo ou culpa; b) vedação de aplicação da pena sem
culpabilidade; c) a gravidade da pena deve ser proporcional à gravidade do fato cometido.

e) Princípio da Humanidade na Execução de Penas: A ideia de humanização das


penas criminais tem sido uma reivindicação constante no perpassar evolutivo do Direito
Penal. Das penas de morte e corporais, passa-se, de modo progressivo, às penas privativas de
liberdade e destas às penas alternativas (ex.: multas, prestação de serviços à comunidade,
interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana). Em um Estado de Direito
democrático vedam-se a criação, a aplicação ou a execução de pena, bem como de qualquer
outra medida que atentar contra a dignidade humana, conforme se abstrai da proibição
constitucional constante no art. 5.º, XLV a XLIX, da Carta Constitucional brasileira. 26

f) Princípio da Lesividade: não se pode admitir a incriminação de condutas


puramente subjetivas, isto é, aquelas que não lesionem bens alheios. Se a ação ou omissão for
meramente pecaminosa ou imoral, não apresentará a necessária lesividade que legitima a
intervenção do Direito Penal27. Por conta desse princípio não se pune a autolesão, salvo
quando se projeta a prejudicar terceiros, como nos casos dos art. 171, § 2.º, V, do CP
(autolesão para fraudar seguro), da tentativa de suicídio (o nosso CP pune somente a
participação em suicídio alheio – art. 122), o uso pretérito de droga etc.

24
CEREZO MIR, José. Direito penal e direitos humanos: experiência espanhola e européia. Trad. Luiz Regis
Prado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, 1994, v. 6, p. 60 e ss.
25
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. ver. e aum. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 2003, p. 33.
26
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação
do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do
valor do patrimônio transferido;
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou
interdição de direitos;
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de
trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o
sexo do apenado;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
27
ESTEFAM, André. Op. cit., p.120.

492
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Para Roxin28, a proteção de normas morais, religiosas ou ideológicas, cuja violação


não tenha repercussões sociais, não pertence, em absoluto, aos limites do Estado Democrático
de Direito, o qual também deve proteger concepções discrepantes entre as minorias. Desta
forma, condutas que alberguem comportamentos puramente antiéticos, imorais ou
pecaminosos, por serem incompatíveis com o modelo de Estado atual e violarem a dignidade
da pessoa humana, são absolutamente inconstitucionais.

4 EXPANSIONISMO PENAL

Já não se encontra o Estado autoritário que quer assegurar seu poder (como é, não
esqueçamos, uma das tradições em matéria penal); nas raízes programáticas encontramos, isto
sim, um grupo de fatores que são os seguintes 29: a) O desenvolvimento tecnológico e as
ciências naturais, que, como seus riscos específicos, parece exigir uma reação estatal; b)
Novos agentes criminais, que querem utilizar o Direito Penal para novos propósitos -muitas
vezes bastante sedutores – tais como: proteger o meio ambiente contra a sociedade, proteger
as mulheres e as crianças contra os homens; c) Mencione-se, ainda, o mito da dirigibilidade
através do Direito, e, particularmente, por meio do Direito Penal; denomino-a mito porque
essa ideia (plausível) mostrou-se surpreendentemente resistente a argumentos empíricos.
E todos esses fatores devem ser avaliados no contexto de uma percepção, a de que as
liberdades dos cidadãos são ameaçadas, cada dia menos, pelo Estado e cada vez mais, por
seus próprios co-cidadãos30.
Essa expansão do Direito Penal, aliada a demandas crescentes de segurança, vem
seguida de ajustes do Direito que, do ponto de vista preventivo, parecem plausíveis ou até
mesmo indispensáveis, mas que, sob a perspectiva do Direito Penal, podem ser resumidos
como deformações do perfil garantista do Direito Penal que não se limitam, porém, às novas
divisões do Direito Penal, mas que ameaçam infectar o Direito Penal como um todo.
E essa análise não se torna mais otimista quando nos damos conta do punitivismo
atual, um punitivismo avesso a explicações e, às vezes, à própria culpa individual. Essa
epidemia penalizadora acaba por contaminar todo o sistema penal, chegando a proporções
28
Derecho penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. da 2. ed.
(1994) por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid:
Thomson-Civitas. Reimpressão: 2008, p. 63.
29
PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal em uma encruzilhada: abolição, diversificação, retornar à razão ou
entrar em razão? (Título original: ¿El Derecho Penal en la encrucijada: abolición, diversificación, volver a la
razón o entrar en razón?). Trad. Érika Mendes de Carvalho. Maringá: Revista de Ciências Jurídicas - UEM, v.7
n.1, jan./jun. 2009, disponivel em: periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevCiencJurid/article/.../5944, p. 7-10.
30
Idem, p. 8-10.

493
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

inimagináveis na deformação do Estado outrora antropologicamente amigo, ao respeitar a


dignidade da pessoa humana e ao empenhar-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e
da solidariedade31.
Vê-se que esse novo Estado é caracterizado, perfeitamente, pela noção de Direito
Penal do inimigo, uma vez que, fora dos círculos de debates e das batalhas eleitorais, esse
programa não é, explícita ou ostensivamente apresentado ou defendido, mas já é a realidade
do Direito Penal.
Dessa forma, trava-se, Segundo Prittwitz32, intenso debate entre alguns penalistas
que polemicamente se inscrevem como os que querem modernizar o Direito Penal,
destruindo-o e os que persistem, até com certa com “ingenuidade” - e às vezes até com
fundamentalismo - na idéia de um Direito Penal garantista, perdendo, assim, qualquer influxo
ante a realidade política e social.

5 A MODERNIZAÇÃO DO DIREITO PENAL SEGUNDO LUIS GRACIA MARTÍN

Luis Gracia Martín em sua obra 33 sobre a expansão do Direito Penal defende a
modernização do Direito Criminal, dispondo que há, nos dias atuais, um incremento
quantitativo de tipos penais, em razão do que o Direito Penal vê crescer e aumentar,
formalmente, o número de delitos ou, ao menos, a imposição de penas com maior rigor e
restrição de direitos fundamentais em prol da coletividade. Assim sendo, o autor defende que
temos, atualmente, duas espécies de Direito Penal:

a) Direito Penal clássico: inerente a um Estado Liberal que prevê princípios penais
e processuais penais de forma garantista, tutelando bens jurídicos individuais, tais como a
vida, o patrimônio, a honra etc. É, portanto, o Direito Penal em sentido estrito, aplicador da
pena privativa de liberdade, com penas intimamente vinculadas ao ser da pessoa, e não ao ter
ou ao estar. Trata-se do Direito Penal nuclear.

b) Direito Penal moderno: próprio de um Estado Social Democrático, protetor de


bens jurídicos individuais, coletivos e transindividuais, tais como a economia, o meio

31
CANOTILHO, J. J. Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 82-83.
32
Idem, p. 4.
33
GRACIA MARTIN, Luis. Prolegomenos para la lucha por la modernizacion y expansion del derecho penal y
para la critica del discurso de resistência. 1ª. ed. Valencia. 2003.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

ambiente, o patrimônio genético entre outros34, bens jurídicos estes que situam-se ao redor do
núcleo do Direito Penal (Direito Penal clássico). Diante disso, temos então uma “pró-
expansão” do Direito Penal, uma modernização, ou seja, uma ampliação do alcance do Direito
Penal para fora do núcleo rígido, passando a salvaguardar outros bens jurídicos localizados ao
seu redor.
No Brasil, a modernização do Direito Penal deu-se por meio da legislação penal
especial, com a criação de estatutos como o ECA, o CDC, a Lei Antidrogas, a Lei de
Biossegurança, a Lei de Crimes Ambientais etc, o que mantém-nos, ainda, dentro da seara
penal.
Questiona-se, então, se este seria o melhor caminho, pois dificulta, e muito, para o
aplicador do Direito, em especial do Direito Penal, que deve estar a par de todos estes
microssistemas, bem como, dessa grande multiplicidade de crimes esparsos em toda a
legislação extravagante, em sua maioria, incompatíveis entre si. Um grande exemplo é a Lei
de Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/98) que traz em seu bojo nada menos do que 40 tipos
penais (arts. 29 a 69-A).
Diante desse grande número de delitos e da dificuldade na aplicação do direito pelo
aplicador, temos como consequência, a marginalização do Direito Penal, que em razão de sua
constante infringibilidade sem a devida repressão, estabelece no meio social uma sensação de
impunidade, de insegurança jurídica, tirando toda a credibilidade do Direito Penal, que passa
a ser apenas simbólico.

6 MOVIMENTO CONTRÁRIO À MODERNIZAÇÃO DO DIREITO PENAL –


DIREITO DE INTERVENÇÃO

Essa realidade da modernização do Direito Penal é muito criticada, e as principais


objeções foram formuladas de maneira proeminente na Escola de Frankfurt, na Alemanha,
onde Winfried Hassemer 35, Cornelius Prittwitz36, dentre outros autores, entendendo que a
utilização indiscriminada do poder comunicativo do Direito Penal e das penas privativas de
liberdade, além de desproporcionais e desnecessárias, estão vulgarizando, dia após dia, o
status adquirido pela esfera penal, cabível somente nos casos em que os demais ramos do

34
A pro-expansão do Direito Penal, no Brasil, se deu por meio da legislação penal especial, com a criação de
estatutos como o ECA, o CDC, a Lei Antidrogas, a Lei de Biossegurança, a Lei de Crimes Ambientais etc.
35
HASSEMER, Winfried. Crisis y características del moderno derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde.
Madrid. Actualidad Penal, n. 43-22, 1993, p. 635-646.
36
Op. cit.

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Direito forem insuficientes, sendo esta a última ratio, utilizável somente na proteção de bens
jurídicos essenciais.
Para Hassemer 37 são colocados em risco os fundamentos do Direito penal garantista
quando este é utilizado para resolver os problemas sociais. Assim, o Direito de Intervenção
surge como uma alternativa possível para o problema, isto é, um Direito que seria mais
flexível e adequado para resolver os problemas específicos das sociedades modernas; que
seria algo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, mas também algo entre o Direito
Penal e o Direito civil, e que, finalmente, seria caracterizado por um menor número de
garantias e de normativas processuais, acompanhado de uma menor gravidade das sanções.
Verifica-se então que Hassemer38 propõe a elaboração de um novo ramo da ciência
jurídica, situado entre os Direitos público e privado, com sanções próprias - como por
exemplo a reparação do dano -, com a possibilidade de responsabilização dos entes coletivos e
a relativização dos institutos e garantias do Direito Penal. Temos então, como consequência,
uma administrativização do Direito Penal, restando ao núcleo criminal somente a proteção
dos bens jurídicos individuais e alguns poucos coletivos, quando possível sua harmonização
com o sistema penal (clássico). Como exemplo aproximado do Direito de Intervenção no
Brasil, temos o Jecrim (Juizado Especial Criminal), onde temos a aplicação, para as infrações
penais de menor potencial ofensivo, de penas restritivas de direitos, a realização de transações
penais, suspensão do processo etc.

6.1 A proposta de um Direito Penal de duas velocidades de Jesús-María Silva Sánches.

Contrapondo-se à modernização do Direito Penal defendida por Luis Gracia Martín,


Jesús-María Silva Sánches apresenta-se como defensor de um movimento contrário à
expansão penal, criticando a imposição de penas privativas de liberdade para tutela de bens
jurídicos coletivos, dispondo que “a ausência de penas corporais permitiria flexibilizar o
modelo de imputação”, motivo pelo qual, Silva Sánches 39 propõe um Direito Penal de duas
velocidades:

a) Direito Penal de 1ª velocidade: tem-se o núcleo do Direito Criminal, ou seja, o


Direito Penal clássico, onde tutela-se bens jurídicos individuais e se atende a todas as

37
PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 35-36.
38
Op. cit., p. 640.
39
SILVA SÁNCHES, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 147.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

garantias penais e processuais inerentes a um Estado de Direito. Temos aqui,


verdadeiramente, o Direito Penal, aplicador das penas privativas de liberdade.

b) Direito Penal de 2ª velocidade: por sua vez, o autor advoga pela criação de um
Direito Penal de 2ª velocidade, moderno, para tutelar novos bens jurídicos, sobretudo os de
caráter coletivo, difusos e transindividuais, flexibilizando-se, com isso, as garantias penais e
processuais asseguradas pelo Direito Penal tradicional, posto que, nesta segunda velocidade
não serão admitidas penas privativas de liberdade. Trata-se de uma ideia que se aproxima do
Direito Penal moderno explanado por Luis Gracia Martín.
Em suma, defende-se aqui a aplicação do Direito Penal em duas vertentes
(velocidades), sendo uma punida com penas privativas de liberdade (Direito Penal nuclear,
mínimo e rígido), e outra com penas de caráter cível e administrativo, porém, nesta última,
ter-se-á a relativização das garantias penais e processuais penais - Direito Penal amplo e
flexível40.
Silva Sánches observa ainda que, para que o Direito Penal de 2ª velocidade seja
eficiente, apesar da aplicabilidade de penas de caráter não-corporal, necessário seria que suas
sanções fossem impostas por meio da instância judicial penal, preservando-se os elementos de
estigmatização social e a capacidade simbólico-comunicativa própria do Direito Penal41.

c) Direito Penal de 3ª velocidade: Saliente-se, por derradeiro, que Silva Sánches,


contrário à expansão do Direito Penal, defende a existência de um Direito Penal de 3ª
velocidade, advindo da ideia cunhada por Günther Jakobs 42, em 1985, qual seja o Direito
Penal do inimigo, quando tratou acerca da possibilidade de se punir atos preparatórios da
conduta delitiva. Nessa linha, Jakobs 43 constrói sua teoria justamente para os Estados
Democráticos de Direitos, considerando “inimigo” todo aquele que rejeita, não reconhece e
não participa do sistema normativo e a ordem social vigentes, colocando-se à margem. Por
tais motivos, as garantias, as sanções, os institutos clássicos conquistados pela humanidade
não o alcançam, pois o inimigo não cumpre “o contrato social44”. Tais sujeitos não oferecem

40
Idem, p. 145.
41
Idem, p. 139.
42
Para maior aprofundamento sobre o assunto vide JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano y derecho
penal del enemigo. Trad. Manuel Cancio Meliá. In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho
penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. p.47 e ss.
43
JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano y derecho penal del enemigo. Trad. Manuel Cancio Meliá.
In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 48.
44
ROUSSEAU, Jean-Jacques: O contrato Social (Título original: Le Contrat Social revisado por Antonio Carlos
Marquês). Trad. Pietro Nasseti. 20. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

nenhuma segurança cognitiva, pois não conseguem assimilar a norma e a ordem, por isso,
para eles não há Direito, mas sim uma legislação de luta, de combate, que no fundo traduz-se
em um “não Direito”, de pura coação, com escopo unicamente de neutralizar o indivíduo,
oferecendo-lhe respostas diferenciadas para recuperar e preservar o sistema normativo por ele
ferido e rejeitado.
Desta forma, teríamos dois Direitos Penais: um para o cidadão - cindido em Direito
Penal de 1ª e de 2ª velocidade – e outro para o inimigo – Direito Penal de 3ª velocidade.
Apresar de sólida, sedutora e muito bem fundamentada a tese de Günther Jakobs, alguns
questionamentos ainda estão sem a devida resposta, tais como: quem é o inimigo? A quem
compete rotular o inimigo? Quando nasce tal rótulo? No Inquérito Policial, no processo ou já
nasce com o indivíduo? Ademais, não é possível se rotular indivíduos em um Estado
Democrático de Direito como “não pessoa”, posto que a Dignidade da Pessoa Humana é
essência do homem, ao passo que, admitindo algo assim, estar-se-ia relativizando toda a
ordem constitucional.

7 CONCLUSÃO

Tendo em vista que, nos dias atuais a demanda social de proteção por meio do
Direito Penal não se vê satisfeita de um modo funcional com o Direito Penal reduzido a seu
núcleo principal, é inevitável a sua expansão.
Essa ampliação do Direito Criminal, contudo, não pode basear sua requerida força
comunicativa na imposição de penas privativas de liberdade. Assim, observa-se que o
problema não é tanto a expansão do Direito Penal em geral, senão especificamente a expansão
do Direito Penal da pena privativa de liberdade e de outras medidas de cunho preventivo
especial, pois a expansão do Direito Punitivo carece de razoabilidade político-jurídica.
Constata-se, dessa forma, a existência de dois problemas atuais.
Por proêmio, o fato de o Direito Penal vir sendo utilizado, e até com certa frequência
pelo legislador como “resposta imediata” a “todos” os problemas sociais relatados – com
requintes de sensacionalismo – pela mídia (Direito Penal de emergência), sem maiores
reflexões, gerando um populismo penal inadmissível, onde nossa ciência acaba por ser
concebida como verdadeira panaceia contra todos os males.

498
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Por outro lado, em decorrência de a pena privativa de liberdade estar sendo utilizada
sem razoabilidade político-jurídica - agora camuflada por outras modalidades punitivas de
caráter preventivo especial (controle telemático, castração química, cadastro de características
genéticas de criminosos sexuais), porque constatada a falência da prisão - como resposta aos
“anseios sociais” (fabricados pelos agentes de reprodução do poder social), a tendência é que
tenhamos, nas próximas décadas, um punitivismo sem limites, para além da gigantesca
população carcerária, cuja realidade não responde ao princípio da adequação, porque longe
de cumprir as finalidades preventivo socializadoras da pena, aplicada em detrimento de
grupos vulneráveis de uma sociedade de estruturas deformadas e inadequadas.
Diante desse estado de coisas, mesmo que valiosa a proposta trazida por Silva
Sánches, considerando-se que outros meios, que não a aplicação da pena privativa de
liberdade, eficazes para reparar danos causados por meros ilícitos de acumulação ou perigo
presumido, e distantes de um perigo real para bens individuais, nota-se que essa postura
flexibilizadora de garantias, poderá, como de fato já ocorre, contaminar todo esse sistema de
garantias, permitindo um punitivismo desenfreado de práticas de duvidosa eficácia, atrelados
e fundamentados por preceitos de utilitarismo prevencionista especial, característicos do
positivismo naturalista. Passa-se a adotar como respostas penais adequadas a sociedade de
risco, característica da pós-modernidade, cujo medo e insegurança se difundem
diuturnamente, reclamando resposta garantidoras da “paz social e ordem pública”, conceitos
esses de absoluta imprecisão jurídica.
Estatísticas confiáveis demonstram que a insegurança experimentada pela é mais
comunicacional do que real. Há uma forte percepção do fenômeno da violência integrante no
cotidiano, onipresente na sociedade, difundindo um estado de pânico no cidadão ante seus
potenciais “inimigos”.
Essa angústia percebida pelos cidadãos necessita de contraprestações, mesmo que
simbólicas, de modelos ou respostas de natureza penal, aptas a conter o alarme social
observado, eis que a essa sensação de incremento da criminalidade violenta, passa a gerar
uma forte demanda por políticas criminais duras.
O desenvolvimento científico propicia respostas penais alternativas, como o
assim chamado monitoramento eletrônico (Lei 12.258/10, que alterou a Lei de Execuções
Penais) a criação de cadastros de criminosos (Lei 12.654/2012, que ainda não entrou em
vigor), são a tônica do momento. O Direito Penal estrutura-se em torno de suas respostas,
calcadas em um utilitarismo duvidoso.

499
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Reclamam-se técnicas preventivas a delitos de natureza sexual, como a de castração


química, muito próximas dos castigos e experimentos de caráter eugênico, sempre presentes
na história da humanidade.
Reportemo-nos nesse sentido, as práticas de esterilização forçada dos “associais”,
pelo regime nacional-socialista, identificados como integrantes das camadas sociais baixas e
portadores de antecedentes criminais contra o patrimônio e de índole sexual, prostitutas,
mendigos e vagabundos.
A esterilização forçada dos indivíduos considerados “associais” foi prática constante
no regime nacional-socialista, onde foram esterilizadas entre quinhentos mil e um milhão de
pessoas, com ou sem enfermidades hereditárias. Há um passo, estávamos, da eliminação física
definitiva daqueles sujeitos.
A utilização da 2ª velocidade do Direito Penal, desenvolvida para suprir a insaciável
demanda social, posto que o problema maior reside justamente na exploração da instância
judicial-penal para a imposição de tais sanções, sob o argumento de que a preservação dos
elementos de estigmatização social e a capacidade simbólico-comunicativa do Direito Penal
empreenderiam maior eficácia na aplicação das penas. E que penas.
Essa verdade preocupante, demonstradora de vulgarização de todo o Direito Penal –
o qual deveria intervir minimamente, sendo utilizado somente de forma subsidiária, como
ultima ratio, ou seja, para a resolução de problemas em que os demais ramos do Direito
mostrem-se incapazes de solucionar – dá uma ideia de como o movimento flexibilizador de
garantias, poderia espraiar-se por todo o sistema, possibilitando-se a aplicação compulsória de
modalidades novas de respostas penais, sem maiores ponderações de índole garantista, tudo
em nome da celeridade e defesa do “organismo social”.
Consequentemente, perder-se-á todo o poder místico e coercitivo inerente ao Direito
Punitivo, causando seu embotamento, equiparando-o aos demais ramos do Direito.
Neste aspecto, talvez a solução apresentada por Hassemer – de se criar um novo
ramo do Direito, um Direito de Intervenção – seja mais interessante, pois parece mais
prudente valer-se de um Direito de Intervenção (intermediário) com menos capacidade
simbólico-comunicativa, do que sacrificar o Direito Penal.
Cabível ainda uma crítica no sentido de que Silva Sánches, ao propor um
abrandamento (mais eficiente) na punibilidade dos delitos socioeconômicos, na verdade está a
escancarar a utilização do Direito Penal como instrumento reprodutor do poder social, fruto
de um Estado que legaliza a violência de classes dos criminosos reais detentores do poder.

500
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Nesse sentido, o chamado idealismo de esquerda advoga que o controle social de


classes tem na prisão sua instituição central – e na polícia, seu agente principal -, ambos
caracterizados por uma eficiente ineficiência no controle do crime: o objetivo oculto seria
constituir uma ameaça permanente contra as classes sociais objeto de exploração econômica e
de dominação política.
Ademais, no que tange à breve explanação sobre a 3.ª velocidade do Direito Penal,
onde Silva Sanches defende a necessidade de um Direito Penal do Inimigo, pensamos que, ao
se admitir a violação de direitos e garantias individuais dos denominados “inimigos”, direitos
estes assegurados no núcleo intangível da Constituição Federal - conquistados ao longo da
história da humanidade através de árduas batalhas e revoluções -, a fim de salvaguardar o
mínimo de liberdade aos cidadãos, limitando a atuação do Estado. Certamente tal violação se
estenderá, em um futuro próximo, como consequência, aos direitos dos “cidadãos”, permitindo
que a esfera de atuação e reprodução do poder estatal cresça em detrimento da liberdade
individual do homem, restringido-a.

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503
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A DEFESA SOCIAL, AS ESCOLAS PENAIS E AS RELAÇÕES DE PODER

NO SISTEMA PUNITIVO

A SOCIAL DEFENSE, THE CRIMINAL SCHOOLS AND RELATIONS OF POWER

PUNITIVE IN SYSTEM

Bartira Macedo de Miranda Santos*

Resumo. Este artigo tem por objetivo explicar as relações de poder no interior do sistema penal, ou
seja, mostrar como se exerce os poder punitivo e como o saber penal dá azo a diferentes adaptações do
poder de punir. Por meio da configuração das ideias de defesa social nas escolas penais, parte-se das
diferentes bases epistemológicas do saber penal para tentar explicar como se dá a continuidade do
poder de punir em sistemas tão diferentes, quanto a escola clássica, a escola positiva e a escola
técnico-jurídica. A análise de Focault sobre as relações de poder no sistema punitivo é empregada com
forte fundamentação no livro “Em defesa da sociedade”.

Palavras-Chave: Direito Penal. Escolas. Defesa social. Poder Punitivo.

Summary. This article aims to explain the power relationships within the criminal justice system, ie,
to show how the power is exercised as punitive and criminal knowledge gives rise to different
adaptations of the power to punish. By setting the ideas of social defense in schools criminal breaks of
different epistemological foundations of knowledge for criminal attempt to explain how is the
continuity of power to punish in systems as diverse as the classical school, the school and positive
school technical and legal. Foucault's analysis of power relations in punitive system is employed with
a strong foundation in the book "In defense of society."

Key words: Criminal Law. Schools. Social defense. Punitive Power

INTRODUÇÃO

Como se dá as relações de poder nas diferentes escolas penais, onde os referencias


teóricos e ideológicos são tão díspares? Segundo Michel Foucault, o poder deve ser analisado por
meio do esquema binário da guerra, da luta, do enfrentamento de forças. No sistema penal, o poder é a
força que reprime os indivíduos ou classes a se comportarem de determinada forma e não de outra. O
poder não se dá, não se troca, nem se recebe, ele se exerce. Em que consiste o exercício do poder de
punir? Qual a sua mecânica? Como ele funciona e como se configura o saber e o discurso que lhe dá
sustentação?

*
Bartira Macedo de Miranda Santos é doutora em História da Ciência e professora de Direito Penal e Direito
Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.

504
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O poder é uma relação de força; é um mecanismo de repressão. É sob este ponto de


vista que Foucault analisa as relações de poder no interior do sistema punitivo.

Este artigo articula as relações de poder analisadas por Foucault com o saber penal que
se constroem nas escolas penais. Para tanto, parte-se da configuração da ideia de defesa social no
interior das escolas penais. Isto porque o poder se exerce em nome da sociedade. Assim, é preciso que
se pergunte: em que escola o direito penal se tornou um instrumento de defesa social? Deve-se ou não
entender que a sociedade em sua estrutura política é organizada de modo que alguns possam se
defender contra outros? Quem exerce essa defesa?

A escola clássica e a escola positiva são as duas escolas penais que se


destacam, sendo antagônicas quanto a uma distinta concepção filosófica do homem no
mundo, sobre o conceito de crime e natureza da pena, sobre o objeto e o método da ciência do
direito penal. Elas formam as duas matrizes sobre as quais se fundam o direito penal. As
outras escolas, em geral, conjugam ideias clássicas e positivistas, compartilhando, com maior
ou menor coerência, de suas ideias fundamentais. Daí que, neste trabalho escolhemos analisar
essas duas escolas, que são representativas das principais ideias e conceitos que regem o
direito penal e o poder punitivo.

1. A DEFESA SOCIAL NA ESCOLA CLÁSSICA

A ideia de um direito que pudesse impor limites ao poder punitivo é obra dos

clássicos, que assim foram denominados por Ferri, quando chamou de clássicos todos aqueles

que não aderiram ao positivismo penal da escola italiana.1 Segundo Ferri, há uma escola

“clássica” do direito penal, fundada por Beccaria, integrada por todos os penalistas não

positivistas e capitaneada por Carrara:

No campo científico, o movimento reformador afirmou-se, desenvolveu-se e


organizou-se mais pujantemente com a corrente que eu chamei por reverência
“a Escola Clássica Criminal”, e que na Itália marcou o seu ciclo glorioso com
uma plêiade de grandes criminalistas de César Becaria (f. 1764) a Francesco
Carrara (f. 1888) e Henrique Pessina (f. 1916). Essa formidável corrente

1
Sobre o assunto, vide Zafaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal, 299-301. A denominação de “Clássica”
era, inclusive, estranha ao tempo do seu advento e apogeu tendo sido cunhada apenas em 1880 por Ferri. Cf.
Andrade, A ilusão de segurança jurídica, 45.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

filosófico-jurídica chegou aos maiores exageros, instaurando quase a magna


carta dos delinqüentes em face da sociedade.(1998, p. 51)2

A primeira fase da chamada Escola Clássica foi inaugurada por Beccaria, com
o livro Dos delitos e das penas (1764), escrito com base no contratualismo, que representa a
ideia de que a ordem jurídica resulta de um grande e livre acordo entre os homens, que cedem
parte dos seus direitos no interesse da ordem e segurança comuns. Beccaria (2003:27)
afirmava que “as leis são as condições em que os homens isolados e independentes uniram-se
em sociedade, cansados de viver em um contínuo estado de guerra e de gozar de uma
liberdade que não tinham certeza da utilidade de conservá-la”.

A teoria do Contrato do Contrato Social3 pressupõe a igualdade absoluta entre


todos os homens. Sob a concepção de que o delinqüente rompeu o pacto social, cujos termos
supõe-se que tenha aceito, considera-se que se converteu em inimigo da sociedade. Assim, o
contratualismo fundamenta-se em três pressupostos básicos: 1) postula um consenso entre os
homens racionais acerca da moralidade e da imutabilidade da atual distribuição de bens; 2)
todo comportamento ilegal produzido em uma sociedade é patológico e irracional:
comportamento típico de pessoas que, por seus defeitos pessoais, não podem celebrar
contratos (daí, a ideia da pena como sanção para reabilitar o delinqüente); 3) os teóricos do
contrato social tinham um conhecimento especial dos critérios para determinar a racionalidade
ou irracionalidade de um ato. Esses critérios seriam definidos através de um conceito de
utilidade.

Nas palavras de Bittencourt,

A teoria do Contrato Social representou um marco ideológico adequado para a


proteção da burguesia nascente, insistindo, acima de tudo, em recompensar a
atividade proveitosa e a castigar a prejudicial. Em outras palavras, não fez mais
do que legitimar as formas modernas de tirania (2003, p. 33).

2
Enrico Ferri, Princípios de Direito Criminal, 51.
3
A ideia de contrato social foi formulada por Jean-Jacques Rousseau, que no livro “Contrato Social”, explicou
que a sociedade é formada pela associação de indivíduos e dessa associação forma-se o Estado. A ideia
formulada por Rousseau serve para explicar que a relação que se estabelece entre os indivíduos e o Estado é uma
relação de associação e não de submissão. Essa ideia foi criticada por muitos teóricos principalmente pelo fato
de não restar provado tal associação. De todo modo, essa ideia foi utilizada por Beccaria para argumentar que o
poder do Estado não é ilimitado.

506
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O contrato social, embebido da ideologia do liberalismo, era tido como


expressão da absoluta liberdade humana. Conforme explica, Rosa Del Olmo, dentro desse
esquema, “o indivíduo que recusa a ordem social é um indivíduo que recusa ser livre e
portanto é perverso. A perversão pode ter causas distintas, mas dá direito a obrigar o
indivíduo a ser livre e em caso de rebeldia a tratá-lo como um animal irracional” (2004, p.
42).

Com essa concepção, se justificava o castigo mais severo para aquele que não
quisesse ser livre. E, “ser livre”, naquele momento, significava ser obediente e passivo diante
da própria exploração pelo sistema capitalista. A ideologia liberal clássica deduz que a
liberdade individual se realiza pela espontânea submissão da pessoa ao sistema de produção,
que a propriedade privada é justa e se organiza automaticamente em termos de igualdade.

Da presunção da absoluta liberdade do homem, os penalistas extraiam a fictícia


igualdade de todos perante a lei, a necessidade de previsão em lei das condutas consideradas
criminosas, restando aos infratores a aplicação da pena àquele que usando de seu livre arbítrio
violasse as leis do Estado.

A segunda fase da Escola Clássica foi capitaneada por Francesco Carrara


(Princípios do curso de Direito Criminal, 1859). Para ele, a defesa social deve ser entendida
como a proteção dos direitos do indivíduo, pois dizia: “Eu encontro o princípio fundamental
do direito punitivo na necessidade de defender os direitos do homem; encontro na justiça o
limite do seu exercício; na opinião pública, o moderador de sua forma” (2002, p. 73).

Carrara entende que está no indivíduo o direito primitivo e a sociedade deve


exercitar-lhe a defesa. Assim, a defesa social deve exprimir “o que defende” (a sociedade
deve defender o indivíduo) e não “o defendido” (a sociedade é o objeto defendido). Diz
Carrara que esta última fórmula "é inaceitável justamente por que perigosa essa mudança”.
Entender a defesa social dessa forma é avançar “por caminhos tenebrosos, para as mais
absurdas conseqüências, cuja censura é sintetizada na palavra estatolatria”(2002, p. 74).

Para Carrara, a liberdade do homem é, definitivamente, o fundamento do


Direito Penal. O homem tem livre arbítrio para se autodeterminar, sendo responsável por seus
atos. Em respeito à liberdade do homem, é que o Estado deve estabelecer em lei as condutas
consideradas criminosas. A escola clássica construiu um sistema de direito penal baseado no
fato (crime), buscando delimitar o poder punitivo por meio de um sistema de legalidade dos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

delitos e das penas. O homem, sendo livre, pode optar entre conduzir-se dentro da legalidade
ou fora dela, ficando sujeito à pena se incorrer nas condutas proibidas por lei.

Pode-se afirmar que a Escola Clássica não se ocupou em desenvolver o


conceito ou ideias de defesa social, isto porque, ela pôs em relevância os direitos do
indivíduo, considerando que a função do direito penal era limitar o poder punitivo, protegendo
a liberdade individual contra as iniquidades da justiça penal de sua época.

2. DEFESA SOCIAL NA ESCOLA POSITIVA

Para Ferri, a defesa social contra a criminalidade é a função suprema e


imanente do Estado e a razão da justiça penal (1998, p. 70).

A defesa social, na escola positiva, pode ser entendida como a proteção da


sociedade contra os criminosos mediante uma repressão vigorosa dos indivíduos taxados de
perigosos. É interessante notar a diferença que parece sutil, mas que implica em profundas
mudanças no sistema do direito penal. Enquanto o direito penal da escola clássica visava a
punição do crime (direito penal do fato), a escola positiva queria a repressão e punição do
criminoso (direito penal do autor), visto como a causa do delito. Enquanto a primeira se
preocupava em limitar o poder punitivo, a segunda visava a consolidação do direito de punir,
mitigando o direito penal como conjunto de regras em nome de uma necessária defesa social,
que, para ser eficaz, não poderia ter limites fixados em lei. Assim, ao invés de servir de limite
ao poder de punir, as teorias da Escola Positiva, justificam a expansão do sistema punitivo, a
visando a defesa social.

As principais ideias e propostas defendidas por Ferri foram recebidas como


deploráveis heresias, mas logo entraram na linguagem comum. É que o discurso da escola
positiva é bastante sedutor, pois induz ao sentimento de que se está lutando do lado justo. O
Direito tinha seu próprio desenvolvimento, que determinava o que era o delito e como
sancioná-lo, entretanto, em nome da ciência, a forma de se estudar o delito foi reformulado. O
importante, já não era a punição dos culpados, mas neutralizar os indivíduos perigosos para a
ordem social, por meio das medidas legais pertinentes. É dessa época a criação das “medidas
de segurança”. Nessa nova ordem, o direito penal deveria ser um instrumento de defesa social,
que forneceria os meios repressivos e sobretudo, preventivos, pelo quais a sociedade se
defenderia dos delinqüentes, dos degenerados, dos anormais e dos indesejados em geral.

508
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

O Estado se encarregava cada vez mais de exercer o controle social dos


“resistentes” ao progresso, por meio do sistema penal.

A expansão do capitalismo, pois, exigirá novas estratégias punitivas. A


exploração da mão-de-obra e a substituição desta, em grande escala, pela máquina, criou
grandes massas de desempregados. A pobreza generalizada impossibilitava a absorção das
mercadorias produzidas dentro de um mesmo país, levando à necessidade de expansão dos
mercados. No campo social, aumentaram as epidemias, a delinqüência e toda uma série de
problemas que ameaçavam a existência do capitalismo. Era preciso proteger o capital. Surgia
a necessidade de novas formas de controle social para manter a “ordem”. Era preciso
reorganizar os instrumentos de controle ideológicos que impedissem o retorno a formas
passadas de governo ou as revoluções populares.

Conforme Rosa Del Olmo:

As crises que sacudiam o capitalismo, a atividade dos sindicatos, os temores de


guerra, o aumento da pobreza e outros problemas sociais que se agravavam em
toda a Europa – a causa das mudanças do modo de produção capitalista –
exigiam uma ciência que fosse efetiva para o controle da sociedade e para
manter a “ordem”. Por exemplo, em 1834 estima-se que havia, apenas na
França, 10 mil doentes mentais, 2 milhões de indigentes, 300 mil mendigos,
uns 130 mil menores abandonados etc. (2004, p. 35).

Este cenário favoreceu o aparecimento da ciência da Antropologia Criminal,


que buscava encontrar as causas da criminalidade - e de diversos problemas sociais – na
pessoa do criminoso. O termo Criminologia só seria utilizado para designar essa ciência em
1879, pelo antropólogo francês Paul Topinard. Em 1885, o termo apareceu como título de um
livro, Criminologia, de Garofalo.

Com a criminologia foi possível buscar explicações para os fenômenos sociais


que nem sequer aludissem à existência de classes sociais e exploração. Buscando as causas do
crime na pessoa do criminoso, a escola positiva italiana busca substituir o individualismo –
herdado do iluminismo, pelo determinismo, o que justificava a intervenção direta no destino
dos indivíduos. A criminalidade não era “culpa” do indivíduo, mas obedeciam a uma série de
causas sobre as quais o indivíduo não teria controle. Daí, a justificação para as ingerências do
Estado na pessoa dos indivíduos, para proteger a sociedade e defender o livre
desenvolvimento do progresso.

509
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A sociologia, utilizando-se do método experimental para o estudo da


sociedade, considerava os fatos sociais como fatos naturais. Com isso, oferecia uma
alternativa apolítica para abordar os problemas sociais de forma neutra. Foi, no dizer de
Herbert Marcure, o “salvador ideológico apropriado”. Com seu lema ordem e progresso, foi a
legitimadora da moral apropriada para a manutenção das relações entre capital e trabalho.

Defendendo que o direito penal abrisse espaço para médicos, sociólogos e


antropólogos, a escola positiva abriu caminho para o surgimento daquilo que depois foi
chamado de movimento de defesa social.

Colocando a “necessária” defesa da sociedade como pedra angular do sistema


penal, as ideias da escola positiva italiana permitiram o surgimento do movimento de defesa
social. A primeira onda desse movimento data de 1989, quando foi fundada a União
Internacional de Direito Penal, por Von Liszt, Van Hamel e Adolphe Prins.

Evandro Lins e Silva afirmou:

A União, em seus estatutos, já falava ‘a linguagem da defesa social’, ao afirmar


que a ‘missão do direito penal devia ter em conta os estudos antropológicos e
sociológicos, que a pena não era o único meio de luta contra o crime, que era
preciso distinguir diversas categorias de delinqüentes, lutar contra as curtas
penas de prisão e não mais fazer depender a duração da pena unicamente da
gravidade material da infração, preocupar-se com a emenda do condenado e
enfim colocar os delinqüentes habituais fora da situação de se tornarem
nocivos o maior tempo possível (1991, p. 28).

Essas seriam, em suma, as bandeiras do movimento, pelas quais buscariam a


reforma do sistema penal, numa clara tendência de expansão do sistema punitivo, por meio de
uma maior repressão por parte do Estado contra os indivíduos.

3. MICHEL FOUCAULT E A ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO SISTEMA


PUNITIVO

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Michel Foucault (1926-1984), pesquisador francês, foi professor de História


dos sistemas de pensamento, de janeiro de 1970 a junho de 1984, no Collège de France. Após
cada curso, Foucault costumava publicar um resumo no Annuaire Du Collège de France,
redigido por ele mesmo. Muitos de seus livros foram produzidos a partir de suas aulas,
mediante transcrição de seus pronunciamentos. Este é o caso de “Em defesa da sociedade”,
curso ministrado de 7 de janeiro a 17 de março de 1976. A edição brasileira desse livro traz o
resumo do curso. Mas, em razão da forma oral com que Foucault expunha suas pesquisas e
também pelo fato de que ele não gostava do debate de autor com autor, é praticamente
impossível saber todas as obras a que Foucault faz referência, implícita ou implicitamente.

Neste livro, Foucault apresenta a questão da utilização da ideia de guerra para


analisar as relações de poder e do discurso correspondente, que dá sustentação ao poder.

511
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Foucault foi um estudioso do poder e de seu funcionamento, seus efeitos e seu

“como”. A questão do poder começou a colocar-se para ele por volta de 1955, contra o pano

de fundo dessas “duas sombras gigantescas”, dessas “duas heranças negras” que foram, para

ele e para a sua geração, o fascismo e stalinismo. “A não-análise do fascismo é um dos fatos

políticos importantes destes últimos trinta anos”. “Se a questão do século XIX foi a pobreza, a

questão colocada pelo fascismo e pelo stalinismo foi o poder” – dizia ele em 19774.

Foucault parte da afirmação de que o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma,

mas que ele se exerce e só existe em ato. O poder é uma relação de força. Se o poder se

exerce, o que é esse exercício? Em que consiste? Qual é a sua mecânica? A essas perguntas,

Foucault começa sua análise afirmando que “o poder é essencialmente o que reprime. É o que

reprime a natureza, os institutos, uma classe, indivíduos”. Assim, em vez de analisar o poder

em termos de cessão, contrato, alienação, ou de relações de produção, para Foucault, deve-se

analisá-lo como mecanismo de repressão. Deve-se analisar o poder em termos de combate, de

enfrentamento ou de guerra. “O poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios. E,

nesse sentido, inverteríamos a proposição de Clausewitz e diríamos que a política é a guerra

continuada por outros meios” (1999, p. 21-22).

A análise do poder como contrato foi empreendida pelos filósofos do século

XVIII, e esta análise “se articularia em torno do poder como original que se cede, constitutivo

da soberania, e tendo o contrato como matriz do poder político.” O poder que ultrapassa a si

mesmo, ou seja, quando vai além dos próprios termos do contrato, torna-se opressão. O

4
Foucault, Dits et écrits, v. III, 218, apud Alessandro Fontana e Mauro Bertani, Situação do curso, In: Foucault,
Em defesa da sociedade, 331-2.

512
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

esquema contrato-opressão corresponde ao esquema jurídico, que opõe o poder legítimo

(conforme o contrato) e o poder ilegítimo (que ultrapassa os limites do contrato). 5

Segundo o próprio Foucault, o seu trabalho, diferente do esquema contrato-

opressão, se insere ao lado do esquema luta-repressão, ou guerra-repressão. Foucault diz que

gostaria de tentar ver, neste curso Em defesa da sociedade, em que medida o esquema binário

da guerra, da luta, do enfrentamento das forças, pode ser efetivamente identificado com o

fundamento da sociedade civil. É mesmo do funcionamento da guerra que se deve falar para

analisar o funcionamento do poder? Sob o tema agora tornado corrente, de que o poder tem a

incumbência de defender a sociedade, deve-se ou não entender que a sociedade em sua

estrutura política é organizada de maneira que alguns possam se defender contra os outros?

Neste curso, Foulcault abordará os discursos biológico-racistas sobre a degenerescência, mas

também todos as instituições que, no interior do corpo social, vão fazer o discurso da luta das

raças funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente, de normalização

da sociedade.

Foucault abandonará a formulação segundo a qual “temos que nos defender

contra nossos inimigos porque de fato os aparelhos do Estado, a lei, as estruturas do poder,

não só não nos defendem contra os nossos inimigos, mas são também instrumentos com os

quais os nossos inimigos nos perseguem e nos sujeitam.” Segundo Foucault, este discurso,

neste Curso, vai desaparecer. Diz Foucault que, a partir de agora, “não será: ‘Temos que nos

defender contra a sociedade’, mas “Temos que defender a sociedade contra todos os perigos

biológicos dessa outra raça, dessa sub-raça, dessa contra-raça que estamos, sem querer,

constituindo”.

5
É nesse esquema que se insere, por exemplo, Beccaria, ao afirmar que a pena de morte é ilegítima porque
ultrapassa o poder outorgada ao soberano.

513
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Alessandro Fontana e Mauro Bertani, editores da edição Em defesa da

sociedade, apontam como Foucault abordou o tema do racismo:

Quanto ao racismo, foi um tema que apareceu e que foi abordado nos
seminários e nos cursos sobre a psiquiatria, sobre as punições, sobre os
anormais, sobre todos esses saberes e práticas em que, em torno da teoria
médica da ‘degenerescência’, da teoria médico-legal do eugenismo, do
darwinismo social e da teoria penal da ‘defesa social’, elaboram-se, no século
XIX, as técnicas de discriminação, de isolamento e de normalização dos
indivíduos ‘perigosos’: a aurora precoce das purificações étnicas e dos campos
de concentração (1999, p. 344).

Os editores apontam, ainda, que nasceu um novo racismo quando o “saber da

hereditariedade” se acoplou com a teoria psiquiátrica da desgenerescência. E, segundo eles,

Foucault dizia na última aula do curso de 1974-1975, sobre Os anormais: “Vocês vêem como

a psiquiatria pôde efetivamente, a partir da noção de degenerescência, a partir das análises da

hereditariedade, ligar-se, ou melhor, dar azo a um racismo.” E o nazismo – acrescentava ele –

nada mais faria que “ligar”, por sua vez, esse novo racismo, como meio de defesa interna da

sociedade contra os anormais, ao racismo étnico que era endêmico no século XIX.

Foucault irá percorrer a história do discurso da luta e da guerra das raças, a

partir do século XVII, levando-a até o aparecimento do racismo de Estado no século XX.

Assim, Em defesa da sociedade pode ser entendido como “o ponto de encontro, a junção, a

articulação do problema político do poder e da questão histórica da raça: a genealogia do

racismo a partir dos discursos históricos sobre a luta das raças, no século XVII e no século

XVIII, e suas transformações no século XIX e no século XX”.

Para explicar o que se passou, Foucault refere-se à teoria clássica da soberania,

que serviu de pano de fundo para todas as suas análises sobre a guerra, as raças etc. Na teoria

clássica da soberania, o soberano tem o direito de vida e de morte, o que significa que ele tem

o direito de fazer morrer e deixar viver. É por causa do soberano que o súdito tem direito

de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana. Que quer dizer, de fato,

direito de vida e de morte? O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma

desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se

exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de

matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é

porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um

direito de espada. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver (1999, p. 286).

Para Foucault, uma das mais maciças transformações do direito político do

século XIX consistiu, não substituir, mas completar esse velho direito de soberania – fazer

morrer e deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai

penetrá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso:

poder de “fazer” viver e de “deixar morrer”. O direito de soberania é, portanto, segundo

Foucault, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o

direito de fazer viver e de deixar morrer (1999, p. 287)

Essa transformação, é claro, não se deu de repente. Pode-se segui-la na teoria

do direito. Quando os juristas do século XVII e XVIII dizem que os indivíduos se reúnem em

um contrato social para constituir um soberano, por que o fazem? Eles o fazem porque estão

premidos pelo perigo ou pela necessidade. Eles o fazem para proteger a vida. É para poder

viver que constituem um soberano. E, nesta medida, a vida pode efetivamente entrar nos

direitos do soberano? Não deve a vida ficar fora do contrato, na medida em que ela é que foi o

motivo primordial, inicial e fundamental do contrato? Tudo isso é uma discussão filosófica

política que mostra bem como o problema da vida começa a problematizar-se no campo do

pensamento político.

515
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram

essencialmente centradas no corpo. Eram procedimentos que asseguravam a distribuição

espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em

vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de

visibilidade. Eram as técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia

se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de

hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que Focault

chama de tecnologia disciplinar do trabalho. Ela se instala já no final do século XVII e no

decorrer do século XVIII.

Durante a segunda metade do século XVIII, se vê aparecer algo de novo, que é

uma outra tecnologia de poder. Essa nova técnica de poder não disciplinar se dirige não ao

homem individual, mas ao homem-espécie, ou seja, à massa, à população. Foucault diz o

seguinte:

A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa


multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova
tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida
em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao
contrário, uma massa global, afetada por processos que são próprios da vida,
que são os processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.
Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez
consoante o modo de individualização, temos uma segunda tomada de poder
que, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês
quiserem, que se faz em direção não ao homem-corpo, mas ao homem-espécie.
Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século
XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma
anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica”
da espécie humana (1999, p. 289).

A proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade

de uma população, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos

constituíram, segundo Foucault, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle

516
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dessa biopolítica. É nesse momento, na segunda metade do século XVIII, que se lança mão da

medição estatística desses fenômenos com as primeiras demografias e que trazem a

introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior de higiene pública, com

organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de

normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da

higiene e de medicalização da população. Outro campo de intervenção da biopolítica será pôr

indivíduos fora de circuito, de neutralização, etc. A biopolítica vai introduzir instituições de

assistência (que existiam faz muito tempo vinculadas à Igreja), de seguros, de poupança

individual e coletiva, de seguridade, etc.

No final do século XVIII e no início do século XIX, surge a preocupação com

as relações entre a espécie humana, os seres humanos enquanto espécie, enquanto seres vivos,

e seu meio de existência: as epidemias ligadas à existência dos pântanos e o problema das

massas populares nas cidades.

Segundo Foucault, a população é um elemento novo, que no fundo nem a

teoria do direito nem a prática disciplinar conheciam. A teoria do direito, no fundo, só

conhecia o indivíduo e a sociedade: o indivíduo contratante e o corpo social que fora

constituído pelo contrato voluntário ou implícito dos indivíduos. A biopolítica lida com a

população, como problema político e científico, como problema biológico e como problema

de poder. Ela vai implantar mecanismos de previsões, de estimativas estatísticas, de medições

globais, vai intervir nas causas dos fenômenos que atingem a população e sobre ela exercer

uma regulamentação.

O tratamento em conjunto dos indivíduos, enquanto população, favorece os

mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a população enquanto tal e que induzem

comportamentos de poupança, por exemplo, sistemas de seguro-saúde ou seguro-velhice;

517
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regras de higiene, pressões sobre a sexualidade, portanto sobre a procriação; a higiene das

famílias, os cuidados dispensados às crianças; à escolaridade etc. Logo tem-se mecanismos

disciplinares e mecanismo regulamentadores, como a medicina. A medicina é um saber-

poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e

sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos

regulamentadores.

Considerem algo como a sexualidade. A sexualidade enquanto comportamento

exatamente corporal, depende de um controle disciplinar, individualizante, em forma de

vigilância permanente. Depois, por outro lado, a sexualidade se insere e adquire efeito, por

seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não mais ao corpo

do indivíduo, mas à população6. A sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da

população. Portanto, ela depende da disciplina, mas depende também da regulamentação.

De uma forma geral, pode-se dizer que o elemento que vai circular entre o

disciplinar e o regulamentar é a “norma”. A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo

que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. Dizer que o poder,

no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se

estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das

tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra.

Foucault leva a sua argumentação às seguintes indagações: Como esse poder

que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder

da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?

6
A extrema valorização da sexualidade no século XIX teve seu princípio nessa posição privilegiada da
sexualidade entre o organismo e população, entre corpo e fenômenos globais. Daí a ideia médica de que a
sexualidade devassa, pervertida (que gera doenças individuais), tem efeitos no plano da população, uma vez que
se supõe que aquele que foi devasso sexualmente terá uma hereditariedade, uma descendência degenerada. A
teoria médica da degenerescência muito cedo adotada pela medicina legal, teve efeitos consideráveis sobre as
doutrinas e as práticas eugênicas e não deixou de influenciar toda uma literatura, toda uma criminologia e toda
uma antropologia.

518
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

É aí, crê Foucault, que intervém o racismo. Não é que o racismo tenha sido

inventado nessa época. Ele existia há muito tempo. Mas foi a emergência do biopoder que

inseriu o racismo nos mecanismos de poder do Estado. O racismo é o meio de introduzir um

corte entre o que deve viver e o que deve morrer. A distinção das raças, a hierarquia das raças,

a qualificação de certas raças como boas e outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai

ser uma maneira de subdividir a espécie. Essa, na visão de Foucault, é a primeira função do

racismo: fragmentar a população.

Foucaut expõe a segunda função do racismo do seguinte modo:

De outro lado, o racismo terá a segunda função: terá como papel permitir uma
relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: “quanto mais você matar, mais
você fará morrer”, ou “quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo,
você viverá”. Eu diria que essa relação (“se você quer viver, é preciso que você
faça morrer, é preciso que você possa matar”) afinal não foi o racismo, nem o
Estado moderno, que inventou. É a relação guerreira: “para viver, é preciso que
você massacre seus inimigos”. Mas o racismo faz justamente funcionar, faz
atuar essa relação de tipo guerreiro – “se você quer viver, é preciso que o outro
morra” – de maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível
com o exercício do biopoder. De uma parte, de fato, o racismo vai permitir
estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, uma relação do tipo
biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto
mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em
relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie –
viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar”. A morte
do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha
segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou
do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia;
mais sadia e pura (1999, p. 305).

Assim, Foucault explica que o racismo é indispensável como condição para

poder tirar a vida de alguém. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que

o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.

CONCLUSÃO

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

A Escola Clássica não aceitava a ideia de defesa social, a não ser que por essa

expressão se entendesse a defesa que a sociedade deve fazer em favor do indivíduo contra o

Estado arbitrário. Para esta Escola, o poder punitivo não é ilimitado. O Direito Penal é o

conjunto das normas jurídicas que regulam (e, portanto, limitam) o poder punitivo, que só

será considerado legítimo quando exercido dentro da legalidade. As relações de poder que se

estabelecia, segundo Focault, era do tipo contrato-opressão. O soberano tinha o direito de

punir quando o indivíduo violasse as leis do Estado.

As ideias de defesa social desenvolvidas pela Escola Positiva, em sentido

oposto, vão provocar a expansão do poder punitivo. Para esta Escola, a função do Direito

Penal é promover a defesa da sociedade contra o crime e os criminosos. A pena é

transformada em um instrumento de defesa social. A prevenção é uma preocupação constante.

As causas do crime vão ser procuradas na pessoa do criminoso. Para defender a sociedade, é

justificada a supressão de direitos humanos dos indivíduos. Nesta direção, as teorias de defesa

social desenvolvidas pela Escola Positiva vão preparar o caminho para a justificação da

punição sem crime. Substituindo-se a ideia de responsabilidade penal pessoal dos clássicos

pela responsabilidade social (quer dizer, proveniente do simples fato de se viver em

sociedade), os positivistas desenvolveram o direito penal do autor, segundo o qual se pune o

indivíduo pelo que ele é, e não pelo que ele fez.

No início do Século XX, quando essas ideias de defesa social se acoplam com

as teorias médicas da degenerescência, do eugenismo, do darwinismo social e com o racismo

estavam criadas as condições para o aparecimento do direito penal nazista, e para a

intervenção do direito penal como instrumento de eliminação de pessoas consideradas

indesejáveis.

520
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia

Para Focault, o racismo foi a condição para que o Estado exercesse o seu poder

de matar.

Interessante notar que ainda nos tempos atuais o Estado reproduz a relação

bélica no trato da violência e da criminalidade. Fala-se em “combate ao crime”, “luta contra a

criminalidade”, separando em polos opostos, as pessoas “de bem”, e os “criminosos”. Não é

difícil imaginar como se justifica a supressão de direitos humanos àqueles que ainda hoje são

etiquetados como inimigos da sociedade.

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