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Profissionais do Serviço
Funerário e a
Questão da Morte
http://dx.doi.org/10.1590/1982 - 370001272013
Artigo
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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Maria Júlia Kovács, Nancy Vaiciunas & Elaine Gomes Reis Alves
2014, 34(4), 940-954
Abstract: This paper deals with the death issue in funerary workers’ everyday work. Funerary
professionals have work conditions of physical and psychic risks with the possibility of burnout
development. There is work overload, contact with the mourning families without training for
those tasks. They did not choose their profession; they do not receive capacity building or class
representation. They are regarded with mistrust when there are charges on the work or if there
is time lag to carry out needed courses. Factors that may turn their work difficult are analyzed:
violent deaths, suicides, deteriorated corpses, and children. We consider those workers as
caretakers of the dead and of mourning families. Ways of caring for those professionals are
discussed: mourning, families, expression of feelings and rituals, and responding to personal
questioning as well. Information and clarifications were provided on modalities of personal care
and psychological attention.
Keywords: Death. Education related to death. Attitudes in face of death. Death rites.
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balsamento e pelas construções das pirâmides ção do corpo, na terra, na cremação e tam-
tão conhecidas. bém para o destino das cinzas. Para os
familiares, a expectativa e realizações do que
Os rituais funerários são muito importantes entendem por boa morte ajudam na elabo-
porque a convivência entre vivos e mortos ração do luto, incluindo também as tarefas
nem sempre é pacífica, como exemplifica pós-morte, os rituais de velório, cerimônias
Ariès (1977). As almas penadas, os espíritos de corpo presente e o cuidado no enterro
que assombram as pessoas e mais concreta- ou cremação.
mente há a possibilidade de contaminação
do solo, o que promoveu a regulamentação Trabalhadores da morte,
dos cemitérios, vigente nos dias atuais. Então, profissionais funerários,
os rituais têm como propósito, para os reli- estresse e burnout
giosos, o descanso da alma e, para os enlu-
tados, a certeza de que os mortos repousam Os agentes funerários, conhecidos como tra-
em paz. Em nossa opinião, um dos motivos balhadores da morte, também estão na ca-
pelos quais os profissionais funerários são tegoria de profissionais que vivem situações
estigmatizados é seu contato cotidiano com de estresse prolongado e podem apresentar
corpos mortos. a síndrome laboral do “burnout”. Não têm
seu trabalho valorizado, nem pessoalmente
Outro ritual importante em várias épocas é nem financeiramente. Mais do que isso,
o enterro. Neste trabalho, são protagonistas vivem a rejeição social, estendida a seus fa-
os sepultadores, anteriormente conhecidos miliares, fato observado também por Souza
como coveiros. Muitos enterros são acom- e Boemer (1998), Farina et al. (2009) e
panhados de grande emoção, sinalizando a Câmara (2011). Esses profissionais têm risco
concretização da morte e o local em que o de adoecimento e esgotamento físico e
corpo e a memória da pessoa se fazem pre- mental por não terem capacitação e preparo,
sentes. A participação em rituais significativos falta de materiais adequados, baixa remu-
ajuda na elaboração do luto e na construção neração e pouco reconhecimento e valori-
de significados na vida sem a pessoa amada. zação do trabalho. É queixa frequente a so-
brecarga de trabalho, sem descanso, pois há
Na morte interdita, os rituais perdem seu ausências, faltas, aposentadoria e não repo-
lugar de significado. Diminui-se o tempo do sição de profissionais. Os serviços funerários
velório e os enterros são cada vez mais públicos têm de funcionar 24 horas, todos
rápidos. É importante considerar que os os dias do ano. Há também um número
rituais estão ligados a uma dada cultura e é crescente de enterros a serem realizados em
muito importante que sejam respeitados certas épocas, o que impede aos sepultadores
também os costumes e valores, o que, muitas e outros profissionais funerários o contato
vezes, não acontece, principalmente com com a família. Os profissionais funerários
migrantes e imigrantes. constituem-se assim como um grupo de pro-
fissionais em situação frequente de vulnera-
A busca da boa morte implica em cuidados bilidade física e psíquica.
para alívio e controle de sintomas e a proxi-
midade de pessoas significativas, e os rituais Os trabalhadores da morte, como apontado
de final de vida, despedidas, asseguram, por Ruiz e Cavalcante (2007), citados por
dentro do possível, os desejos da pessoa à Câmara (2011), trazem às pessoas a mate-
morte, inclusive no que se refere à disposi- rialização da dor e o fato da morte. Uma
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das situações mais penosas é quando a terra tretanto, essa função deixa marcas psicosso-
da pá cai sobre o caixão, iniciando o processo ciais fortes que necessitam de ser cuidadas.
de sepultamento. É como se aí se encerrasse
o processo de velamento. Não há mais corpo, Os trabalhadores funerários lidam com a
só os sentimentos diante da ausência. Algumas morte cotidianamente e têm as representações
famílias enlutadas manifestam seus senti- sobre morte relacionadas com sua história
mentos de dor, tristeza e raiva diretamente de vida, características pessoais, experiências
aos profissionais funerários, que por sua vez vividas, crenças religiosas e fase do desen-
não compreendem esta torrente de senti- volvimento. São também influenciados pela
mentos e podem revidar, criando assim con- sua relação e valorização do trabalho. É
dições constrangedoras. Esses profissionais preciso lembrar que as características da
representam a concretude da morte, a de morte e dos familiares enlutados influenciam
que não há nada mais que possa ser feito. no trabalho. A questão que se apresenta é:
Lidar com pessoas enlutadas é aspecto es- esses profissionais lidam com corpos ou com
sencial a ser considerado na formação dos pessoas mortas? A maneira de ver a situação
profissionais funerários. pode se refletir na forma como eles lidam
com seu trabalho.
Farina et al. (2009) realizaram estudo com
agentes funerários (sepultadores, veloristas, O trabalho de agentes funerários não é re-
agenciadores, maquiadores, motoristas) da conhecido. Quando os enterros não podem
Grande São Paulo com o objetivo de explorar ser realizados, a sua falta é percebida nas
o cotidiano de trabalhos desses profissionais raras situações em que é impedido como
verificando implicações psicossociais, as di- em greves ou paralisações. São, às vezes,
ficuldades apresentadas no trabalho e suas chamados de papa-defuntos, como se esti-
experiências marcantes. Os autores organi- vessem lá apenas para receber por seu tra-
zaram os depoimentos em três eixos: início balho, aliciando os mortos e não como se
da profissão, cotidiano de trabalho e estratégias fosse esta exatamente sua função. Esses tra-
de enfrentamento. balhadores têm direito à remuneração digna,
mas não a recebem. Os servidores públicos
Os profissionais não escolheram de início de funerária bem como os particulares não
essa profissão. Buscavam estabilidade finan- devem cobrar por seu trabalho? É uma con-
ceira e prestaram o concurso para serem tradição, o serviço é exigido, com qualidade
funcionários públicos. O cotidiano deles en- e doação de seus funcionários, mas na hora
volve trabalho que lida com a morte, com de cobrar a percepção é que está havendo
seus percalços, sendo o principal cuidar dos abuso. O cuidado ao corpo morto e os insu-
mortos, com os preconceitos que essa função mos necessários precisam ser negociados e,
provoca. Buscam estratégias de enfrentamento como em tantos outros negócios, há hones-
em uma profissão com tantas dificuldades, tidade e abusos.
principalmente quando o morto é uma crian-
ça. Os autores verificaram que o tempo de O filme Abutres (Diretor Pablo Trapero, Ar-
profissão ajuda na adaptação, com maiores gentina/Chile, 2010) aponta a situação em
possibilidades de aperfeiçoamento, busca que o lado sombrio dos trabalhadores da
de novas técnicas e um novo sentido à morte é ressaltado. Sosa (Ricardo Darin) é
própria experiência. Profissionais relataram um “urubu”, advogado especializado em
que seu trabalho leva à humildade e cons- acidentes rodoviários. Todos os dias, vai até
ciência e que o medo da morte diminui. En- o local de acidentes rodoviários, setores de
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tanciamento, sem envolvimento com os sen- Com tantas questões e problemas com a
timentos dos enlutados. A rotina de profis- profissão, perguntamo-nos o que faria pessoas
sionais funerários é cuidar dos rituais após a escolher serem agentes funerários? Seria es-
morte, mas, precisam cuidar de pessoas en- colha, circunstância de vida ou não ter outro
lutadas e ao mesmo tempo manter certa emprego? Seriam as vantagens de ser fun-
distância. A sociedade não espera que ma- cionário público? Eles têm conhecimento de
nifestem sentimentos e emoções no seu tra- todos os aspectos que estão relacionados
balho, mesmo quando se sentem tocados com esse trabalho? Câmara (2011), em seu
porque o morto lembra pessoas de sua trabalho com agentes funerários em Natal
família, ou situações vividas. Há delicada no Rio Grande do Norte, traz no título a
fronteira entre envolvimento, cuidado e dis- possível resposta: agente funerário, profissão
tanciamento para que os agentes funerários que não se escolhe.
possam dar conta de suas tarefas sem tanto
sofrimento pessoal. Em uma parceria estabelecida entre o Labo-
ratório de Estudos sobre a Morte do Instituto
Entretanto, alguns casos mexem profunda- de Psicologia da USP e o Serviço Funerário
mente com os profissionais funerários, pelas do Município de São Paulo (SFMSP), minis-
circunstâncias da morte, por identificação tramos o curso “Morte e os Profissionais do
com o falecido, com familiares, por ser SFMSP”. Os profissionais desse serviço afir-
criança ou jovem. Referem que quando o maram que a escolha da profissão estava em
morto é criança precisam fazer o cerimonial ser funcionário público e não as especifici-
com mais cuidado em consideração à família dades do trabalho. Perguntamos aos
enlutada. Da mesma forma como ocorre profissionais, alguns com muitos anos de tra-
com seus colegas da saúde, não há na insti- balho, próximos à aposentadoria, se
tuição funerária lugar para cuidar daquelas novamente escolheriam essa profissão.
perdas, que envolvem os sentimentos de Alguns deles afirmaram que aprenderam
seus profissionais. Acabam vivendo em si a com a experiência e vêm sentindo impor-
solidão de uma dor e emoção não cuidadas. tante significação na sua vida. Percebem que
Na época de morte interdita, os rituais são seu trabalho é essencial na vida das pessoas.
minimizados, como já dissemos. No caso de Outros esperam se aposentar em breve. Essa
profissionais funerários, há uma dupla inter- reflexão nos permite pensar que, mesmo em
dição, a da morte e a deles, que têm seus uma profissão com tão poucos atrativos, pes-
sentimentos interditados para que se mante- soas podem encontrar um sentido maior,
nha o chamado “profissionalismo”. Eles não como o que se observa nos seus depoimen-
têm preparo para a realização das tarefas físi- tos e em filmes.
cas, como cuidar dos corpos, cavar e
construir os túmulos, só para citar algumas O filme A Partida (Takita, Japão, 2008) apre-
das atividades, e também para lidar com as senta a história de Daigo Kobayashi, violon-
questões emocionais envolvidas nos velórios, celista que se vê desempregado e retorna à
enterros e na aquisição dos serviços. cidade natal assumindo um trabalho que fa-
Ouvindo as demandas dos profissionais cilita e embeleza partidas de pessoas, por
durante os cursos, consideramos que eles meio do ritual de vestir, maquiar e acondi-
precisam ter estratégias para realizar o aco- cionar os corpos, a pedido de seus familiares,
lhimento do luto de pessoas em estado de para que possam ter uma despedida digna.
choque com fortes sentimentos. Cabe discu- Torna-se assistente de um agente funerário,
tir como seria esse preparo. sem saber que terá de manipular corpos
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Vemos no filme como ele vai se acostumando Seria muito interessante trazer esse filme
com o trabalho que, a princípio, causa nojo para debate com profissionais de funerárias.
e dificuldades. Gradativamente, vai se aper- Como um trabalho tão rejeitado pela socie-
feiçoando e encontrando a arte e o sublime dade, familiares e também pelo próprio pro-
no seu trabalho. Ao mesmo tempo em que fissional pode trazer um sentido tão profundo
dava alento e propiciava o último encontro para a vida?
da família com o falecido, provocava rejeição
das pessoas de sua família, como a esposa, Esse filme traz a questão como a escolha da
que ameaçou se separar dele, mas que gra- profissão nem sempre envolve o conheci-
dativamente foi aceitando a nova profissão. mento de suas características, o que também
O filme mostra também o quanto o trabalho está presente no depoimento dos profissionais.
de Daigo o aproximou do pai, com quem ti- A primeira ou outras experiências podem
vera uma relação muito difícil na infância. ser marcantes por várias circunstâncias, pelo
Observa-se o quanto se desenvolve como horror do corpo em decomposição, por sen-
pessoa, à medida que vai se aperfeiçoando timentos ambivalentes e intensos dos fami-
na arte do seu trabalho. O grande mérito liares, pelas circunstâncias da morte, por
desse filme, embora realizado na cultura questões pessoais e experiências vividas pelos
oriental, é trazer ao grande público a impor- agentes funerários. O odor forte é uma si-
tância do trabalho funerário e seu alcance tuação muito associada a essa profissão, nas
para que os que dele usufruem. suas várias atividades. É uma mistura de
cheiros: flores, velas, elementos químicos
Saporetti (2012)1, ao debater o filme, apre- para preservação do corpo, mas, sem dúvida,
sentou quatro pontos de discussão: a) busca o pior é o cheiro do corpo morto.
de sentido da vida ao realizar o trabalho,
que é difícil a princípio e faz com que entre Como cuidar de pessoas que vivem uma
em contato com seus sentimentos: a arte de profissão tão insalubre? Farina et al. (2009)
ver sentido de uma vida em um corpo apontam que os profissionais têm uma pro-
morto, tornando sagrado esse momento da fissão com tantas cargas: física (trabalho pe-
existência; b) importância dos ritos mortuá- sado, com odor fétido e risco de contamina-
rios, destacando seu valor simbólico para ção; psíquica (dor, sofrimento, sentimentos
além do ato em si, resgatando imagens do intensos, os próprios e dos enlutados); social
inconsciente, da transcendência e valor tera- (baixa remuneração, profissão não reconhe-
pêutico, a preservação da identidade para cida, com baixo prestígio). Há risco para o
além da morte. Infelizmente, atualmente próprio profissional e para a família.
esse elemento está sendo perdido; c) digni-
ficação e transcendência da morte ao tornar Uma aproximação da
1
o ritual de preparação do corpo um experiência (ou do cotidiano)
Participação na
série Debates sobre momento especial, como se observa quando dos trabalhadores da morte
Filmes – Dilemas Daigo realiza o ritual de preparação com o
Éticos promovida
pelo Laboratório de
corpo do pai; d) resgate da imagem do pai. Em 2010-2011, o Laboratório de Estudos
Estudos sobre a É um filme que trata o tempo todo de morte sobre a Morte promoveu cursos com o tema
Morte do Instituto
e tão pleno de vida como é o resgate da “Morte e os profissionais do Serviço Funerário
de Psicologia da
USP. relação com o pai, que foi tão difícil durante do Município de São Paulo (SFMSP). O
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curso, com oito horas de duração, incluiu os sendo caçadas todas as licenças para empresas
seguintes temas: 1) Morte e fases do desen- “terceirizadas”.
volvimento: crianças, adolescentes, adultos
e idosos; 2) Morte inesperada: violência, Desde então, o SFMSP detém a competência
trauma, suicídio. Morte “esperada”: doenças; exclusiva para a realização dos serviços de
3) Processos de luto. Rituais. Abordagem fa- traslados, velórios e sepultamentos de óbitos
miliar; 4) Cuidando do profissional do Serviço ocorridos na cidade de São Paulo, velados e
Funerário. O curso foi oferecido em dois sepultados nos cemitérios municipais e/ou
dias e cada tema foi acompanhado de tempo particulares, além da remoção de corpos
para questões e discussão. para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO)
do Hospital das Clínicas de São Paulo. O
A proposta do curso foi o aprofundamento SFMSP atua nos seguintes segmentos:
de questões psicológicas para profissionais • Rabecão (RECORPS), remoção de corpos
que trabalham com a morte no seu cotidiano. para verificação de óbitos por morte na-
A demanda do curso teve origem na neces- tural (S.V.O);
sidade desses profissionais para cuidados • Agências de Contratação de Funeral –
psicológicos e foi um impulso inicial para 14 Agências para atendimento, instaladas
esse cuidado. Procuramos trazer conteúdo em pontos estratégicos da cidade para
informativo, um tempo para perguntas e in- facilitar o acesso dos munícipes;
centivamos as de ordem pessoal. Ressaltamos • Remoção – 50 viaturas e 191 motoristas
que não há perguntas erradas e também para executar o transporte dos corpos
que respostas simplistas poderiam induzir a para velórios, cemitérios e remoção para
erro. Buscamos facilitar a emergência de fora do município;
questões emocionais envolvidas no contato • Enterro – 22 Cemitérios distribuídos na
com familiares que perderam recentemente capital e 01 crematório municipal;
seu ente querido. • Velórios – 18 dependências/unidades
com 116 salas, junto aos cemitérios mu-
Participaram do curso funcionários do Serviço nicipais;
Funerário do Município de São Paulo, entre
os quais sepultadores, veloristas, motoristas, O Serviço Funerário do Município de São
funcionários do serviço administrativo, pres- Paulo conta com 1.390 servidores, entre
tadores de serviços a esta instituição. efetivos, comissionados e admitidos para
comportar a demanda dos serviços prestados
Serviço Funerário Município à população de São Paulo. Esses são os nú-
de São Paulo – seus meros e os fatos desse serviço.
profissionais e a questão da
morte No entanto, a mídia, por vezes, apresenta visão
muito negativa do SFMSP, por entender que seus
As informações que apresentamos a seguir profissionais sejam mercenários, só realizando o
foram fornecidas por Vanuzia Ribas e Fran- trabalho mediante uma “caixinha”. É importante
cisvaldo Gomes, funcionários do Serviço Fu- ressaltar, como apontam Ribas e Gomes (2012),
nerário do Município de São Paulo (2012). que essa não é a representação da maioria dos
funcionários do serviço.
A partir de 1958, por meio da Lei nº 5.562,
o Serviço Funerário do Município de São Problemas familiares enlutados se manifestam aos
Paulo (SFMSP) foi transformado em autarquia, profissionais funerários como brigas do casal,
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ças especiais de seus entes queridos. Então, Houve profissionais que relataram a neces-
os profissionais funerários não trabalham so- sidade de cuidados psicológicos e queriam
mente com perdas e sim com questões fun- compreender como funciona a psicoterapia.
damentais da existência humana, ligadas à Queriam entender melhor o que seriam os
elaboração do luto após a morte de pessoas cuidados psicológicos, nas suas várias opções.
significativas. Gostariam que o Serviço Funerário de São
Paulo providenciasse esse cuidado. Houve
Desenvolvemos, no curso, a reflexão de que profissionais que entenderam o curso como
os profissionais das funerárias são vistos como lugar de cuidado para si próprio, como um
cuidadores, que assim se sentiram identifi- deles mencionou um “oásis psicológico”.
cados e valorizados com esse significado do
trabalho. Percebem-se responsáveis como A partir das respostas dadas pelos
funcionários públicos tendo de cuidar do profissionais do Serviço Funerário de São
bem-estar do munícipe. Paulo, estamos planejando propostas de
cuidados a esses funcionários a partir das
Alguns profissionais gostariam de aperfeiçoar necessidades expressas durante os cursos
sua relação com as pessoas que atendem. ministrados. Entre elas: novos cursos,
Querem ser empáticos, colocar-se no lugar workshops, supervisão, plantão psicológico e
daquele que sofre a perda de seus entes psicoterapia. Os cuidados podem ser de
queridos. Buscaram o curso e o contato com ordem pessoal ou institucional, individual ou
psicólogos como estímulo para se tornarem em grupo. Em um primeiro momento,
cuidadores. Entendem que precisam se co- partirão da parceira com o Laboratório de
nhecer melhor e o que viram no curso pode Estudos sobre a Morte e, posteriormente,
ser transferido para as relações familiares e oferecendo subsídios para que o próprio
vida pessoal. SFMSP possa criar seu serviço de cuidados
psicológicos alojado na instituição.
Muitos profissionais relataram que eles e
seus colegas convivem com estresse prolon- Considerações finais
gado, entram em colapso e consomem
álcool como válvula de escape. Quando fala- Podemos olhar para esses funcionários como
mos sobre a síndrome laboral de burnout, cuidadores de pessoas, de corpos mortos e
verificamos que não tinham conhecimento de familiares enlutados, que assim podem
do termo, mas, ao apresentarmos os sinto- ter a possibilidade de velar e guardar boas
mas, imediatamente os reconheceram. memórias, como aponta Câmara (2011).
Admitiram limites para o que podem supor- São cuidadores do final da vida. O trabalho
tar e os índices de tolerância podem ser de agentes funerários está ligado também à
diferentes de pessoa para pessoa. Puderam boa morte, uma vez que são os que oferecem
também compreender o que são situações os insumos e também promovem a disposi-
que podem se modificar por estratégias pes- ção do corpo, abrem as covas, realizam a
soais e as que dependem de uma equipe de construção de túmulos. Estes são os locais
trabalho, da chefia ou da instituição. Podem onde os mortos serão reverenciados e que
se posicionar como vítimas ou agentes. podem deixar boas lembranças. Assim,
Como aponta Farina et al. (2009), a relação como há a reumanização do processo de
que estabelecem com o trabalho é funda- morrer para pacientes gravemente enfermos
mental para a sua adaptação e (Kovács, 2003), poderemos pensar de ma-
enfrentamento da realidade. neira similar na reumanização nos rituais
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expressos na forma de lidar com o corpo morte na sua concretude. Mas, não sabem o
morto, resgatando-se a subjetividade da- que fazer com a morte em vida, com familiares
queles que se despedem das pessoas que- enlutados, com as fortes emoções daqueles
ridas. Assim, transforma-se o defunto na que sofrem com a perda. Muitas vezes, aten-
pessoa amada, diminui-se o lugar de interdito dem pessoas em choque, transtornadas. Os
dos rituais em relação à partida do falecido profissionais funerários que mais sofrem esse
e às memórias do enlutado. O filme A tipo de situação são aqueles que atendem
Partida aborda essa questão com muita de- na contratação dos rituais e insumos. Por
licadeza. Resgatar o valor, significado e fim, o seu trabalho é apreciado e reconhecido
emoção do trabalho funerário é uma forma por vivos, por aqueles que recentemente
de humanização e cuidado e também pode perderam pessoas queridas. É considerado
ser estratégia de prevenção do burnout. cuidado possível na vida ausente.
Agentes funerários relataram o agradecimento
de familiares que tiveram seus rituais acom- Como cuidar desses profissionais, quais são
panhados de respeito, emoção e cuidado. seus mecanismos de enfrentamento? Como
Isso pode se refletir em uma conversa cui- relaxam? Como cuidam de seu sofrimento?
dadosa no momento de contratação dos Que atividades buscam para si, o quanto a
serviços funerários, transporte do corpo, instituição deve colaborar nesse processo,
sepultamento ou cremação. que espaços de cuidados devem ser ofereci-
dos? Como seu trabalho deve ser reconhecido
Como toda profissão, a criatividade é possível, por eles, pelos colegas, pelas instituições,
inovando-se na forma de realizar a ação nos pelos usuários e pela sociedade? Como se
vários rituais oferecidos. Muitos profissionais adaptam a uma profissão que para ganhar a
se queixam de não estarem preparados para vida trabalha-se com a morte?
o seu trabalho. Mas, será que querem de
fato se preparar e buscar novos conhecimentos Observamos que quando se dá voz a esses
e realizar o trabalho com sentido pessoal? profissionais, falam com emoção de sua ex-
Afirmam ter maior dificuldade para lidar periência. Como falar sobre a morte para
com a morte em relação a pessoas vivas. profissionais que lidam cotidianamente com
Cuidam de corpos mortos, aprendem técnicas ela? O tempo de serviço ajuda nas formas
de cavar covas, abaixar caixões, preparar de enfrentamento pelas experiências vividas,
para cremação. É uma profissão que toca a mas não os protege de todas as situações.
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Nancy Vaiciunas
Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil.
E-mail: sandias@usp.br
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