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Catequese 8
A unidade original do homem e da mulher na humanidade
1. As palavras do livro do Gênesis: “não é conveniente que o homem esteja só” são quase
um prelúdio da narrativa da criação da mulher. Com esta narrativa, o sentimento da
solidão original entra a fazer parte do significado da unidade original, cujo ponto-chave Commented [FA1]: Tudo aquilo que lemos em relação à
parecem ser precisamente as palavras de Gênesis 2, 24, a que se refere Cristo na sua solidão original faz referência imediata à unidade querida
por Deus desde o princípio e, por isso, é tão significativa que
conversa com os fariseus: “O homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á à sua mulher, e primeiro Deus permite ao homem perceber-se só, para daí
serão os dois uma só carne”. Se Cristo, referindo-se ao “princípio”, cita estas palavras, tirar a conclusão que não é bom que ele esteja só. Por isso,
convém-nos precisar o significado dessa unidade original, que mergulha as raízes no fato o sentido da unidade original se encontra vinculado tanto à
solidão original, quanto ao significado esponsal do corpo – o
da criação do homem como macho e fêmea. homem consigo próprio não realiza o valor mais profundo
da sua existência: seu corpo aponta para a comunhão.
A narrativa do capítulo primeiro1 do Gênesis não conhece o problema da solidão original
do homem: o homem, de fato, desde o princípio, é “macho e fêmea”. O texto javista do
capítulo segundo, pelo contrário, autoriza-nos em certo modo a pensar primeiramente
apenas no homem, na medida em que, mediante o corpo, ele pertence ao mundo visível,
mas ultrapassando-o; depois, faz-nos pensar no mesmo homem, mas através da
duplicidade do sexo. Corporeidade e sexualidade não são simplesmente idênticos. Commented [FA2]: O corporeidade, assim, é uma
Embora o corpo humano, na sua constituição normal, traga em si os sinais do sexo e seja, expressão da sexualidade, pois a sexualidade é uma
característica ontológica (espiritual), faz parte do “ser” da
por sua natureza, masculino ou feminino, todavia o fato de o homem ser “corpo” pertence pessoa. “Não simplesmente tenho os genitais masculinos ou
à estrutura do sujeito pessoal mais profundamente que o fato de ele ser na sua constituição femininos; sou homem ou sou mulher”, ou seja, é algo que
somática também macho ou fêmea. Por isso, o significado da solidão original, que pode faz parte da identidade, do ser, é uma característica
fundamental da existência enquanto pessoa. E exatamente
referir-se simplesmente ao “homem”, é substancialmente anterior ao significado da por isso, se expressa no corpo através dos genitais.
unidade original; esta última, de fato, baseia-se na masculinidade e na feminilidade, quase
como sobre duas diferentes “encarnações”, isto é, sobre dois modos de “ser corpo” do
mesmo ser humano, criado à imagem de Deus. Commented [FA3]: Ainda que constituídos em igual
dignidade perante Deus, afinal, ambos foram criados por
2. Seguindo o texto javista [segundo capítulo], no qual a criação da mulher foi descrita Deus, como faz questão de mostrar no primeiro capítulo –
separadamente, devemos ter diante dos olhos, ao mesmo tempo, aquela “imagem de relato Eloísta. Mas essa igualdade em relação à dignidade
não se contrapõe ao dualismo enquanto expressão de
Deus” da primeira narrativa da criação. A segunda narrativa conserva, na linguagem e no sexualidade. Ou seja, ficam assim negados qualquer tipo de
estilo, todas as características do texto javista. O modo de narrar concorda com o modo condicionamento exclusivamente sexual em relação à
de pensar e de falar da época a que o texto pertence. Pode-se dizer, segundo a filosofia sexualidade, pois que a sexualidade, na antropologia bíblica
é encarada como um Dom de Deus, muito mais do que uma
contemporânea da religião e da linguagem, que se trata duma linguagem mítica. Neste escolha humana. Obviamente, um Dom que precisa ser
caso, na verdade, o termo “mito” não designa conteúdo fabuloso, mas simplesmente um acolhido e amadurecido, mas nunca completamente
submetido à vontade humana.
modo arcaico de exprimir um conteúdo mais profundo. Sem qualquer dificuldade, sob o
estrato da antiga narração, descobrimos aquele conteúdo, verdadeiramente admirável no
que diz respeito às qualidades e à condensação das verdades que nele estão encerradas. Commented [FA4]: Ainda que o texto bíblico esteja
relatando verdades usando-se de uma linguagem mítica, e
Acrescentemos que a segunda narrativa da criação do homem conserva, até certo ponto, não científica, podemos colher frutos de verdades
uma forma de diálogo entre o homem e Deus-Criador, o que se manifesta fundamentais sobre o homem, sem contudo,
necessariamente, assumir os relatos da criação como
sobretudo naquele período em que o homem (‘adam) é definitivamente criado como
verdades científicas.
*Para um aprofundamento sobre a questão científica da
evolução e os relatos da criação, é fundamental conhecer a
1
Relato Eloísta. teoria do jesuíta Teilhard Chardin.”
macho e fêmea (‘is-‘issah). A criação efetua-se simultaneamente, por assim dizer, em
duas dimensões: a ação de Deus-Javé, ao criar, desenvolve-se em correlação com o
processo da consciência humana.
3. Assim, pois, Deus-Javé diz: “Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe
uma auxiliar semelhante a ele”. E ao mesmo tempo o homem confirma a própria solidão.
A seguir lemos: “Então o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem; e, enquanto
ele dormia, tirou-lhe uma das costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que
retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem”. Tomando
em consideração o caráter próprio da linguagem, é preciso antes de tudo reconhecer que
muito nos faz pensar aquele torpor do Gênesis, no qual, por obra de Deus-Javé, o homem
cai em preparação para o novo ato criador. Sob o contexto da mentalidade contemporânea,
habituada —graças à análise do subconsciente— a ligar ao mundo do sono conteúdos
sexuais, aquele torpor pode suscitar uma associação particular. Todavia a narrativa bíblica
parece ir além do subconsciente humano. E se admitirmos uma significativa
diversidade de vocabulário, podemos concluir que o homem (‘adam) cai naquele
“torpor” para acordar “macho” e “fêmea”. De fato, pela primeira vez encontramos
em Gn 2, 23 a distinção ‘is-‘issah. Talvez portanto a analogia do sono indique aqui
não tanto um passar da consciência à subconsciência, quanto um específico regresso
ao não-ser (o sono tem em si um elemento de aniquilamento da existência consciente
do homem), ou seja, ao momento que antecede a criação, para que dele, por
iniciativa criadora de Deus, o “homem” solitário possa ressurgir na sua dupla
unidade de macho e fêmea.
Seja como for, à luz do contexto de Gn 2, 18-20 nenhuma dúvida há de o homem cair
naquele “torpor” com o desejo de encontrar um ser semelhante a si. Se podemos, por
analogia com o sono, falar aqui também de sonho, devemos dizer que este arquétipo
bíblico nos permite admitir como conteúdo daquele sonho um “segundo eu”, também ele
pessoal e igualmente relacionado com o estado de solidão original, isto é, com todo aquele
Commented [FA5]: Esse trecho é fundamental! Pois nos
processo de estabelecimento da identidade humana relativamente ao conjunto dos seres dá uma base de entendimento que, segundo o relato
vivos (animalia), na medida em que é um processo de “diferenciação” entre o homem e bíblico, não há uma submissão ontológica da mulher sobre o
tal ambiente. Deste modo, o círculo da solidão do homem-pessoa quebra-se, porque o homem, ou seja, a mulher não é submissa ao homem
porque foi tirada de sua costela. Pelo contrário, a
primeiro “homem” desperta do sono como “macho e fêmea”. hermenêutica bíblica deixa claro que a mulher surge como
um “segundo eu”, ou seja, um ser também dotado de
4. A mulher é feita “com a costela” que Deus-Javé tirara ao homem. Considerando o subjetividade, interioridade, espiritualidade. Afinal, ela
modo arcaico, metafórico e imaginoso, de exprimir o pensamento, podemos estabelecer também é criada diretamente por Deus, usando-se, contudo
tratar-se aqui de homogeneidade de todo o ser de ambos; tal homogeneidade diz respeito da costela de Adão – como sinal de igualdade e
complementariedade, “é tirada do lado de Adão”. A
sobretudo ao corpo, à estrutura somática, e é confirmada também pelas primeiras palavras analogia da criação é bem clara: Adão é criado diretamente
do homem à mulher recém-criada: “Esta é realmente o osso dos meus ossos e a carne de por Deus usando-se do “pó da terra”. Eva é criado
diretamente por Deus, usando-se da costela de Adão.
minha carne”. Apesar disso, as palavras citadas referem-se também à humanidade do
Assim, fica superada a primeira manifestação da solidão
homem-macho. Devem ler-se no contexto das afirmações feitas antes da criação da original, pois o homem encontra uma companheira
mulher, nas quais, embora não existindo ainda a “encarnação” do homem, ela é definida semelhante a ele; porém, esta também nasce na sua
particularidade e singularidade, na sua solidão e
como “auxiliar semelhante a ele”. Assim pois, a mulher foi criada, em certo sentido, sobre irrepetibilidade, pois ela não é simplesmente confundida
a base da mesma humanidade. A homogeneidade somática, não obstante a diversidade da com todo o criado (animalia), ainda que ela também
constituição ligada à diferença sexual, é tão evidente que o homem (macho), despertando participe do mundo visível, assim como Adão participa.
Em suma, o projeto da unidade original, querida por Deus
do sono genético, a exprime imediatamente, ao dizer: “Esta é realmente osso dos meus desde de o princípio não é uma mistura de dois seres
ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem”. Deste incompletos, que se completarão nessa mistura, mas um
modo o homem (macho) manifesta pela primeira vez alegria e até exaltação, de que projeto de amor que unem dois seres desiguais, mas
igualmente dignos, uma complementação.
anteriormente não tinha motivo, por causa da falta dum ser semelhante a si. A alegria para Commented [FA6]: Como não imaginar essa alegria?
com o outro ser humano, para o segundo “eu”, domina nas palavras que o homem (macho) Como não se surpreender com a beleza desse relato?
Imagine o apelo de Adão, quase inconsciente, a Deus por
pronuncia ao ver a mulher (fêmea). Tudo isto ajuda a estabelecer o significado pleno da alguém que lhe faça companhia – algo que certamente nem
unidade original. Poucas são aqui as palavras, mas cada uma tem um grande peso. o homem conseguiria imaginar, ou descrever ainda; mas
Devemos portanto ter em conta —e fá-lo-emos em seguida— o fato de aquela primeira que Deus, que perscruta o coração humano se adianta em
conceder.
mulher, “criada com a costela tirada… ao homem” (macho), ser imediatamente aceita É muito semelhante àqueles que estão a espera de um
como auxiliar semelhante a ele. parceiro ou de uma parceira, e se vê na situação de
encontrar exatamente aquela pessoa que “lhe preenche”,
A este mesmo tema, quer dizer, ao significado da unidade original do homem e da mulher que “lhe completa”.
Dizer aqui que essa alegria é simplesmente admiração e
na humanidade, voltaremos ainda na próxima meditação. prazer seria reduzir o fenômeno a um único aspecto,
enquanto, na verdade, seria como a alegria de estar
__________ realizado, de estar completo – aquilo que São Tomás de
Aquino chama de Beatitudo.
1 O termo hebraico ‘adam exprime o conceito coletivo de espécie humana, isto é, o homem que representa
a humanidade; (a Bíblia define o indivíduo usando a expressão “filho do homem”, ben-‘adam). A
contraposição ‘is-‘issah sublinha a diversidade sexual (como em grego anér-gyné).
Depois da criação da mulher, o texto bíblico continua a chamar ao primeiro homem ‘adam (com o artigo
definido, exprimindo assim a sua “corporate personality”), pois se tornou “pai da humanidade”, seu
progenitor e representante, como depois Abraão foi reconhecido como “pai dos crentes” e Jacó foi
identificado com Israel-Povo Eleito.
2 O torpor de Adão (em hebraico tardemah) é um sono profundo (latim sopor; inglês sleep), em que o
homem cai sem conhecimento ou sonhos (a Bíblia tem outro termo para definir o sonho: halóm; cfr. Gn 15,
12; 1Sm 26, 12).
Freud examina o conteúdo dos sonhos (latim somnium, inglês dream), que formando-se com elementos
psíquicos “recalcados no subconsciente” permitem, segundo a sua teoria, fazer surgir deles os conteúdos
incônscios, que seriam, em última análise, sempre sexuais.
Esta idéia é naturalmente de todo alheia ao autor bíblico.
Na teologia do autor javista, o torpor, em que Deus fez cair o primeiro homem, sublinha a exclusividade da
ação de Deus na obra da criação da mulher; o homem não teve nela nenhuma participação consciente. Deus
serve-se da sua “costela” só para acentuar a natureza comum do homem e da mulher.
3 “Torpor” (tardemah) é o termo que aparece na Sagrada Escritura, quando durante o sono ou diretamente
depois dele hão-de dar-se acontecimentos extraordinários (cfr. Gn 15, 12; 1Sm 26, 12; Is 29, 10; Jó 4, 13;
33, 15). Os Setenta traduzem tardemahpor ektasis (êxtase).
No Pentateuco tardemah aparece ainda uma vez num contexto misterioso: Abraão, por ordem de Deus,
preparou um sacrifício de animais, excluindo as aves de rapina.”Ao pôr do sol, apoderou-se dele
um profundo sono (torpor); ao mesmo tempo sentiu-se apavorado e foi envolvido por densa treva…”
(Gn 15, 12). Precisamente então começa Deus a falar e conclui com ele uma aliança, que é o ponto mais
alto da revelação comunicada a Abraão.
Esta cena assemelha-se um tanto à do jardim do Getsêmani: Jesus “começou a sentir pavor e a angustiar-
se…” (Mc 14, 33) e encontrou os Apóstolos “a dormir, devido à tristeza” (Lc 22, 45).
O autor bíblico admite no primeiro homem certo sentimento de carência e solidão (“não é conveniente que
o homem esteja só”; “não encontrou para si uma auxiliar adequada”), de carência e solidão mas não de
medo. Talvez esse estado provoque “um sono causado pela tristeza”, ou talvez, como em Abraão “por um
pavor de não ser”; como no limiar da obra da criação “a terra era informe e vazia. As trevas cobriam o
abismo” (Gn 1, 2).
Seja como for, segundo ambos os textos, em que o Pentateuco, ou melhor, o Livro do Gênesis, fala do sono
profundo (tardemah), realiza-se uma especial ação divina, isto é, uma “aliança” cheia de conseqüências
para toda a história da salvação: Adão dá início ao gênero humano, Abraão ao Povo Eleito.
4 É interessante notar que para os antigos Sumérios o sinal cuneiforme para indicar o substantivo “costela”
era o mesmo que indicava a palavra “vida”. Quanto, portanto, à narrativa javista, segundo certa
interpretação de Gn 2, 21, Deus cobre a costela de carne (em vez de cicatrizar a carne no seu lugar) e deste
modo “forma” a mulher, que tem origem da “carne e dos ossos” do primeiro homem (macho).
Na linguagem bíblica esta é uma definição de consangüineidade ou incorporação na mesma descendência
(por exemplo, cfr. Gn29, 14): a mulher pertence à mesma espécie do homem, distinguindo-se dos outros
seres vivos anteriormente criados.
Na antropologia bíblica os “ossos” exprimem um elemento importantíssimo do corpo; dado que para os
Hebreus não havia distinção clara entre “corpo” e “alma” (o corpo era considerado como manifestação
exterior da personalidade), os “ossos” significavam simplesmente, por sinédoque, o “ser” humano (cfr., por
exemplo, Sl 139, 15: “não te estavam escondidos os meus ossos”).
Pode-se portanto entender “osso dos ossos”, em sentido relacional, como o “ser vindo do ser”; “carne vinda
da carne” signfica que, havendo embora características físicas diversas, a mulher apresenta a mesma
personalidade que o homem possui.
No “canto nupcial” do primeiro homem, a expressão “osso dos ossos, carne da carne” é forma de
superlativo, reforçado pela tríplice repetição: “esta”, “ela”, “a”.
5 É difícil traduzir exatamente a expressão hebraica cezer kenedô, que é traduzida de maneiras diversas nas
línguas européias, por exemplo:
latim: “adiutorium ei conveniens sicut oportebat iuxta eum”
alemão: “eine Hilfe…, die ihm entspricht”
francês: “égal vis-à-vis de lui”
italiano: “un aiuto che gli sia simile”
espanhol: “como él que le ayude”
inglês: “a helper fit for him”
polaco: “odopowicdnia alla niego pomoc”
Como o termo “auxiliar” parece sugerir o conceito de “complementaridade” ou melhor de “correspondência
exata”, o termo “semelhante” relaciona-se sobretudo com o de “semelhança”, mas em sentido diverso da
semelhança do homem com Deus.
Catequese 9
Mediante a comunhão das pessoas o homem torna-se imagem de Deus
exatamente aquele “auxiliar” que deriva, em certo sentido, do fato mesmo de existir como
pessoa “ao lado” duma pessoa. Na narrativa bíblica este fato torna-se eo ipso —de per
si— existência da pessoa “para” a pessoa, uma vez que o homem na sua solidão original
estava, em certo modo, já nesta relação. Isto é confirmado, em sentido negativo,
precisamente pela sua solidão. Além disso, a comunhão das pessoas podia formar-se
somente com base em uma “dupla solidão” do homem e da mulher, ou seja, como
encontro entre a “distinção” deles e o mundo dos seres vivos (animalia), que dava a ambos
a possibilidade de serem e existirem numa reciprocidade especial. O conceito de Commented [FA10]: O relacionamento interpessoal,
“auxiliar” exprime também esta reciprocidade na existência, que nenhum outro ser vivo assim, não é reduzível a ser simplesmente a uma relação
entre sujeito e objeto. Como assim? Uma relação entre duas
poderia assegurar. Indispensável para esta reciprocidade era tudo o que era constitutivo pessoas nunca pode negar a verdade de quem se diz amar,
na formação das bases para a solidão de cada um deles, e portanto também o nem seu valor, nem sua dignidade. Ou seja, toda relação
autoconhecimento e a autodeterminação, ou seja, a subjetividade e a consciência do deve ser baseado na verdade da pessoa e ela nunca pode
ser tratada como um objeto, como se fosse somente parte
significado do próprio corpo. do mundo visível, se transcendência em relação a esse.
3
Relato Eloista.
4
Relato Javista.
constitui mesmo talvez o aspecto teológico mais profundo de tudo o que se pode dizer
acerca do homem. No mistério da criação —com base na original e constitutiva “solidão” Commented [FA11]: Se o homem é a imagem e
do seu ser— o homem foi dotado de profunda unidade entre aquilo que nele, semelhança de Deus por sua inteligência e vontade, algo
que nada mais no mundo visível tem, ele manifesta essa
humanamente e mediante o corpo, é masculino, e o que nele não menos humanamente e imagem e semelhança de Deus muito mais por sua
mediante o corpo, é feminino. Sobre tudo isto, desde o princípio, desceu a bênção da capacidade de amar e de formar comunhão. Assim, ele não
fecundidade, unida à procriação humana. somente manifesta, desde a criação, a imagem
transcendental de Deus, como onipotente, onisciente e
4. Deste modo, encontramo-nos quase na medula mesma da realidade antropológica que onipresente em relação ao mundo; mas especialmente a
imagem de um Deus-comunhão. Já vemos aqui os traços da
tem por nome “corpo”. As palavras de Gênesis 2, 23 falam disso, diretamente e pela Trindade.
primeira vez, nos seguintes termos: “osso dos meus ossos e carne da minha carne“. O Commented [FA12]: Veja que a fecundidade e a
homem-macho pronuncia estas palavras como se apenas à vista da mulher pudesse procriação, desde o princípio não é visto exclusivamente
identificar e chamar pelo nome aquilo que de modo visível os torna semelhantes um ao como uma consequência biológica do ato conjugal. Mais do
que isso, ela é vista como consequência do amor de Deus
outro, e ao mesmo tempo aquilo em que se manifesta a humanidade. À luz da precedente pelo homem, que lhe dá a capacidade de cooperar com sua
análise de todos os “corpos”, com que o homem entrou em contato e definiu obra de criação, sendo coparticipante, também nisso, de
conceitualmente dando-lhes o nome (“animalia”), a expressão “carne da minha carne” toda a criação.
É por isso, também, que o povo da Antiga Aliança vê na
adquire exatamente este significado: o corpo revela o homem. Esta fórmula concisa numerosa descendência um sinal de benção, pois, ao ter
contém já tudo o que poderá algum dia dizer a ciência humana sobre a estrutura do corpo muitos filhos, concretizariam a Aliança de Deus com Abraão,
como organismo, sobre a sua vitalidade, sobre a sua particular fisiologia sexual, etc. Nesta de uma descendência mais numerosa que as estrelas do
céu; mas principalmente pelo entendimento que, através da
primeira expressão do homem-macho, “carne da minha carne”, está também incluída uma fecundidade, o homem coopera com Deus na obra de
referência àquilo em virtude de que esse corpo é autenticamente humano, e portanto criação e santificação do mundo.
àquilo que determina o homem como pessoa, isto é, como ser que mesmo em toda a sua
corporeidade é “semelhante” a Deus5.
5. Encontramo-nos, portanto, quase na medula mesma da realidade antropológica, cujo
nome é “corpo”, corpo humano. Todavia, como é fácil observar, essa medula não é só
antropológica, mas também essencialmente teológica. A teologia do corpo, que desde o
princípio está ligada à criação do homem à imagem de Deus, torna-se, em certo modo,
também teologia do sexo, ou antes teologia da masculinidade e da feminilidade, que aqui,
no Livro do Gênesis, encontra o seu ponto de partida. O significado original da unidade, Commented [FA13]: Se o corpo fala sobre o homem, e o
testemunhada pelas palavras de Gênesis 2, 24, terá uma perspectiva ampla e de longo homem é imagem e semelhança de Deus; primeiramente
precisamos assumir, então, que o corpo exprime quem é o
alcance na revelação de Deus. Esta unidade através do corpo (“e os dois serão uma só homem para Deus. Isso assume uma consequência
carne”) possui uma dimensão múltipla: dimensão ética, como é confirmado pela resposta imediatamente ética, ou seja, como os homens devem ser
de Cristo aos fariseus em Mt 19 (Mc 10), e também uma dimensão sacramental, tratados, em relação à sua dignidade mais profunda; mas
também revela o modo como Deus se relaciona com o
estritamente teológica, como é comprovado pelas palavras de São Paulo aos Efésios6, que homem, sua dimensão sacramental, afinal os sacramentos
se referem também à tradição dos profetas (Oséias, Isaías e Ezequiel). E é assim, porque só existem na medida em que existe corpo – não existiria
aquela unidade que se realiza através do corpo indica, desde o princípio, não só o “corpo”, sinal visível de uma graça invisível, se não existisse corpo.
Além disso, o corpo revela verdade fundamentais sobre o
mas também a comunhão “encarnada” das pessoas —communio personarum— conforme próprio Deus, constituindo-se assim um ponto de partida
essa comunhão desde o princípio requer. A masculinidade e a feminilidade exprimem o real para uma teologia, no sentido estrito, pois se Deus é
amor, e o corpo foi criado com essa capacidade de exprimir
duplo aspecto da constituição somática do homem (“esta é o osso dos meus ossos e a
amor, então o corpo também fala sobre Deus.
carne da minha carne”), e indicam, além disso, por meio das mesmas palavras de Gênesis
5
Na concepção dos mais antigos livros bíblicos não aparece a contraposição dualista “alma-corpo”. Como
já foi sublinhado, pode-se falar antes duma combinação complementar “corpo-vida”. O corpo é expressão
da personalidade do homem, e se não esgota plenamente este conceito, é preciso entendê-lo na linguagem
bíblica como “parte pelo todo”; cfr. por exemplo: “não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas
o Meu Pai…” (Mt 15, 17), isto é: não foi o homem quem to revelou.
6
“Ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; pelo contrário, nutre-se e cuida dela, como também Cristo
o faz à Sua Igreja, pois somos membros do Seu corpo. Por isso, o homem deixará pai e mão, ligar-se-á à
mulher e passarão os dois a ser uma só carne. É grande este mistério: digo-o porém em relação a Cristo e à
Igreja” (Ef 5, 29-32).
2, 23, a nova consciência do sentido do próprio corpo: sentido que se pode dizer consistir
num enriquecimento recíproco. Precisamente esta consciência, através da qual a
humanidade se forma de novo como comunhão de pessoas, parece constituir a camada
que na narrativa da criação do homem (e na revelação do corpo nela incluída) é mais
profunda que a sua própria estrutura somática como macho e fêmea. Em ambos os casos,
esta estrutura é apresentada desde o princípio com uma profunda consciência da
corporeidade e sexualidade humana, e isto estabelece uma norma inalienável para a
compreensão do homem no plano teológico.