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Alfa, São Paulo

211:1-9, 1984

CONFERÊNCIA / C O N F E R E N C E
FÓRMULAS E EPÍTETOS NA L I N G U A G E M HOMÉRICA*

Maria Helena da Rocha PEREIRA**

RESUMO: O artigo delineia uma breve perspectiva do que vem sendo uma das principais e mais
enriquecedoras orientações da pesquisa sobre os Poemas Homéricos — seu assentamento numa técnica
de improvisação oral em ligação com a métrica —, procurando, a seguir, analisar de perto os conceitos
básicos em que essa orientação se assenta. Tenta, a seguir, uma exemplificação, que, para possibilidade
de acompanhamento pelo leitor comum, se faz em textos traduzidos, com consciência das limitações dal
decorrentes.
UNITERMOS: Fórmulas; epítetos; linguagem homérica; técnica de improvisação oral; métrica;
protótipos formulares e variações.

Em 1928 publicava-se em Paris uma me das figuras homéricas, humanas ou di-


tese intitulada L'épithète traditionnelle vinas, as repetições, totais ou parciais, de
dans Homère. O seu jovem autor, que ti- versos, quando ocorriam determinadas
vera dificuldade em que algum grande he- cenas ou situações, provavam que os Poe-
lenista, dos que então professavam na mas Homéricos assentavam numa técnica
Sorbonne, aceitasse orientar o seu traba- de improvisação oral em ligação com a
lho, era americano e chamava-se Milman métrica, que necessariamente pressupu-
Parry. Poucos foram os que atentaram na nha, da parte do poeta, o domínio de um
novidade daquele estudo, ou mesmo de formulário básico já preparado, que faci-
outros ainda mais importantes que se lhe litava a composição. A prova positiva
seguiram na década de 30, "The Epic obteve-a escutando os bardos servo-
Technique of Oral Verse-Making", em croatas do seu tempo, que conservavam
duas partes, editadas nos Harvard Studies bem viva a tradição oral de cantos épicos
in Classical Philology. Só verdadeiramen- antigos. A prova negativa tirou-a de-
te pelos meados deste século é que eles ga- monstrando que numa epopéia da época
nharam audiência junto dos especialistas helenística, como os Argonautas de Apo-
de Homero, particularmente nos países de lônio de Rodes (séc. I I I a.C), já não exis-
língua inglesa, e deram origem a um vasto te tal sistema de epítetos métricamente
caudal de investigações que prolongaram controlados. O assistente e continuador
a tese inicial, explorando as suas conse- de Milman Parry, A. B. Lord, terminou
qüências em múltiplas direções. as gravações dos cantos orais da Jugoslá-
Que demonstrava afinal Milman via, conseguindo assim recolher para a
Parry? Em seu entender, a continuada posteridade um processo que no final da
presença de epítetos a acompanhar o no- década de 60 se encontrava praticamente

* Conferência pronunciada no Instituto de Letras, Ciências Sociais e E d u c a ç ã o — U N E S P — Araraquara, em 1984, como par-
te das atividades do Programa de P ó s - G r a d u a ç ã o em Lingüística e L í n g u a Portuguesa.
** Universidade de C o i m b r a — Portugal.

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P E R E I R A , M . H . da R. — F ó r m u l a s e epítetos na linguagem h o m é r i c a . Alfa, São Paulo, 28:1-9, 1984.

desaparecido. Lord foi ainda mais longe, o aedo quer descrever uma cena ou fenó-
ao propor a chamada "tese do ditado", meno daqueles que ocorrem com frequên-
segundo a qual o poeta da Ilíada, forma- cia na natureza e na vida humana. Assim,
do numa rica tradição oral e ele mesmo por exemplo, o amanhecer. Ele tem um
compositor oral, teria ditado o poema a verso inteiro já pronto:
alguém que já dominava o nosso processo
da escrita. Deste modo se conciliaria a Eis que surge a filha da manhã, a Au-
coexistência de um plano grandioso e coe- [rora dos dedos róseos.
rente com as marcas características da im- (Ilíada 1.477).
provisação.
Outros estudiosos têm alargado o Mas, se apenas dispusesse desta fór-
campo de aplicação do método, procu- mula, em breve a narrativa se tornaria
rando semelhanças na poesia dos bardos monótona. Ele sabe mais, que pode apli-
medievais irlandeses, como K.O'Nolan e car quando quiser, como esta:
G. L. Huxley (ambos em 1969). Outros
ainda têm observado que as fórmulas épi- Derramava-se pela terra toda a Aurora
cas não são apenas um sistema rígido, [vestida da cor do açafrão,
mas também um processo flexível e cria- (Ilíada V I I I . 1.)
dor. É essa a tendência revelada pelos es-
tudos de A. Hoekstra (1965) e de J. B. (Note-se que, em ambos os versos, a
Hainsworth (1968), estes últimos com o deusa da Aurora é qualificada com epíte-
significativo título "The Flexibility of the tos diferentes, mas um e outro sugestivo
Homeric Formula". das cores que acompanham esse fenóme-
Delineada esta breve perspectiva do no natural. Ao mesmo tempo que a divin-
que continua a ser uma das principais e dade ê caracterizada como marcadamente
mais enriquecedoras orientações da pes- antropomórfica, pois tem "dedos róseos"
quisa sobre os Poemas Homéricos, procu- e veste uma túnica de açafrão).
raremos agora analisar de perto os concei- O fenómeno inverso deste, ou seja, o
tos básicos em que assenta, para depois anoitecer, também pode descrever-se por
tentarmos a exemplificação, tanto quanto meio de mais do que uma fórmula que
é possível fazê-la através de textos tradu- ocupa um verso inteiro. Bem próximo do
zidos. primeiro exemplo que demos há pouco
O mais importante é o de "fórmu- encontra-se este, a marcar a passagem a
la", que Milman Parry definiu como " u - outro dia:
ma expressão que é regularmente empre- Então o Sol mergulhou e desapareceu
gada, nas mesmas condições métricas, pa- [nas trevas
ra exprimir uma certa idéia essencial". (Ilíada 1.475).
Muitos anos mais tarde, J. B. Hainsworth
viria a encontrar uma forma mais sintéti- Uma variante que, por sinal, é exclu-
ca e clara: "Fórmula é um grupo de pala- siva da Odisseia e se repete com frequên-
vras que se repete". cia é:
A fórmula mais simples é a consti- O Sol mergulhou e todas as ruas fica-
tuída por um nome com o seu epíteto. A [ram na sombra.
essa voltaremos adiante. O esquema mais Festins religiosos e banquetes
complexo pode compreender vários ver- realizam-se muitas vezes. Uma fórmula
sos, ou apenas meio verso: exatamente extensa para descrever estas ocasiões era
desde o começo até à cesura ou desta até naturalmente uma grande ajuda que a me-
ao final, o que acentua a sua estreita liga- mória lhe dava, enquanto mentalmente
ção com a métrica. arquitetava em seu espírito a sequência da
Suponhamos em primeiro lugar que narrativa. Feitos os preparativs para se as-
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sarem ao fogo as carnes dos animais, estes viciados da escrita que todos ainda
podia-se dizer, por exemplo: somos, era que o poeta do Canto IV co-
piara o do Canto V I I e, consequentemen-
Assim que terminavam o trabalho e te, dava-se como interpolação tardia o
[aprontavam o festim, banqueteavam- exemplo que citamos primeiro. Mas os
[se, e ao seu ânimo nada faltou no fes- trechos destinavam-se não à leitura, mas à
[tim equitativo. recitação, — e primitivamente, até, ao
Depois que se saciavam de bedida e de canto acompanhado à lira. Os ouvintes
[comida, deste segundo trecho da Odisseia já t i -
(Ilíada 1.467-469). nham bem longe, na sua retentiva, o do
Canto IV, quando o escutavam, — e isto,
Nos palácios senhoriais, o desconhe- supondo que os poemas eram ditos na
cido que vinha de longe e suplicava aco- íntegra, por aedos que se revezavam, co-
lhimento era recebido com honras e mo aconteceu durante séculos em Atenas,
tornava-se hóspede do dono da casa, no festival das Panatenéias, segundo o
criando assim um vínculo de ordem moral testemunho de um discípulo ou imitador
que teve desde sempre um papel prepon- de Platão, que, à falta de melhor, chama-
derante na ética grega. Os pormenores mos o Pseudo-Platão, no diálogo Hiparco
dessa recepção temos na Odisseia, quan- (228 b-c);
do, por exemplo, Telémaco chega, acom- "o mais sensato dos filhos de Pisístra-
panhado do filho de Nestor, ao palácio de to, que executou muitas e belas acções
Menelau, em Esparta: ditadas pela sabedoria, entre elas a de
Uma aia trouxe a água, em belo go- ter sido o primeiro que trouxe para esta
[mil de ouro, terra as epopéias de Homero, e obrigou
sobre bacia de prata, para lavarem as os rapsodos a recitá-los todos na Pa-
[mãos. natenéias, um após outro, tal como
Junto dele colocou uma mesa polida. ainda hoje se faz"...
A venerável dispenseira trouxe pão pa-
[ra os servir, Passemos agora a um tipo de exem-
pôs na mesa manjares inúmeros, plo muito corrente, a fórmula destinada a
[ regalando-os com o que havia. anunciar o discurso directo. Antes de o
(Odisseia IV.52-56) fazermos, lembremos que o discurso di-
Se continuarmos a folhear o poema, recto é tão importante nos Poemas Homé-
e atingirmos o momento em que o desco- ricos, onde ocupa aproximadamente dois
nhecido Ullises é, por sua vez, acolhido terços do total, que Schadewaldt pôde di-
por Alcínoo, rei dos Feaces, lemos exata- zer que é ele que conduz a acção e já se
mente a mesma coisa: pensou que o seu emprego seria uma das
grandes novidades destas epopéias, em re-
Uma aia trouxe a água, em belo gomil
lação às que as antecederam.
[de ouro,
sobre bacia de prata, para lavarem as Os exemplos são inúmeros, mas va-
[mãos. mos tirá-los quase todos do Canto I da
Junto dele colocou uma mesa polida. Ilíada, onde eles se multiplicam no longo
A venerável dispenseira trouxe pão pa- trecho da assembleia dos chefes aqueus.
ira o servir, Ao apresentá-los, assinalaremos a cesura,
pôs na mesa manjares inúmeros, como se se tratasse do original (embora,
[regalando-o com o que havia. evidentemente, não seja verso a simples,
(Odisseia V I I . 172-176) tradução literal que vamos dar). Feitas es-
Apenas o destinatário das iguarias tas reservas, vejamos dois exemplos cujo
passou para o singular... A explicação primeiro hemistiquio é rigorosamente
corrente dada até há poucos decênios, por igual:
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Em resposta declarou-lhe// o podero- Em resposta ^


so Agamémnon
(Ilíadal. 130 = 1.285)
olhando-o de
sobralho franzido l
l
{ Zeus que amontoa as nuvens
/ Heitor de casco fa'
deçlarou-lne ^ o .louro
_ Menelau
,_
faiscante

Muito irritado '


Em resposta declarou-lhe// Aquiles de
[pés velozes Não quer isto dizer que os Poemas
(Ilíadal. 84 = 1.215) Homéricos sejam meras — ainda que
Mas esse primeiro hemistiquio também hábeis — combinações de fórmulas. Neste
pode variar. E assim temos: ponto, como em todos os demais, as es-
Em seguida respondeu-lhe// o divino tatísticas estão feitas e demonstram que
[Aquiles ágil de pés cerca de um décimo dos versos não tem
{Ilíada 1.121) elemento formulaico seguro nenhum.
Em seguida respondeu-lhe// Agamém- Falámos já várias vezes de epítetos,,
[non, príncipe dos homens como a fórmula na sua expressão mais
(Ilíada 1.172) simples. É agora a ocasião de explicitar-
Nas amostras referidas, o segundo mos melhor esse aspecto.
hemistiquio é constituído pelo sujeito da
acção — um nome acompanhado de um Utilizando de novo a nomenclatura
ou mais epítetos. O primeiro nada indica de Milman Parry, dividiremos esses epíte-
quanto ao seu estado de espírito. Diremos tos em genéricos e distintivos ou especiais.
que é emocionalmente neutro. Mas o poe- Quer de uma, quer de outra espécie, a va-
ta tem à sua disposição muitas outras fór- riedade é grande. Será suficiente dizer que
mulas que lhe permitem exprimir conota- os primeiros somam sessenta e um, e que
ções afetivas. Vejamos algumas: os segundos aparecem a qualidade nada
Olhando-o de sobrolho franzido, menos de 40 figuras, que são sempre pes-
declarou-lhe// soas divinas ou heróis principais. Podem,
além disso, acumular-se dizendo, por
Aquiles de pés velozes
exemplo, "o divino Aquiles, ágil de pés",
(Ilíada 1.148)
ou "divino Ulisses que muito sofreu". O
Suspirando fundo, declarou-lhe//
adjetivo "divino" é um simples epíteto de
Aquiles de pés velozes
excelência, sem implicações religiosas,
(Ilíada 1.364)
que tem a vantagem de preencher uma
Muito irritado, declarou-lhe//
sílaba longa e outra breve (que pode
Zeus que amontoa as nuvens
tornar-se longa por posição, se a seguir
(Ilíada 1.517)
vier uma palavra começada por consoan-
Em seguida respondeu-lhe//
te), o que explica a frequência do seu em-
Tétis, vertendo lágrimas prego. Nada menos de trinta e duas figu-
(Ilíada 1.412) ras podem ostentá-lo.
Assim falou, e sorriu-se//
Hera, a deusa de alvos braços Tocámos assim num ponto essencial:
(Ilíada 1.593) a estreita ligação entre os epítetos e a mé-
Assim falou, e sorriu-se// trica. Milman Parry foi ao ponto de afir-
o divino Aquiles, ágil de pês mar que só ela determinava a sua escolha.
(Ilíada XXII 1.555) Permitimo-nos discordar, pelos motivos
que apontaremos em seguida. Ulisses tem,
Em muitos destes exemplos ouvimos já na Ilíada, três epítetos distintivos, "o
hemistiquios que se repetem. O processo" dos mil artifícios" (polymetis), "o dos mil
permite obter, de facto, um número mui- expedientes" (polymechanos) e "o que
to elevado de combinações. Um tipo de muito suportou" (polytlas). Mas é sobre-
fórmula que pode dar nada menos de 462 tudo na Odisseia que eles avultam, pois
versos diferentes é esta (exemplo de Mil- demonstram alternadamente, conforme
man Parry): as circunstâncias, a sua extraordinária ca-

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pacidade para resolver situações dificíli- nhas aventuras, o verso introdutório des-
mas e a sua resistência moral às mais du- sa longa narrativa, exatamente no mo-
ras provas. Ora, os epítetos em causa apar- mento em que ela passa de extradiagética
cem no lugar e momento apropriados. As- — heterodiegética a intradiegètica — ho-
sim, quando o herói adormece, na terra modiegética, é este:
dos Feaces, onde arribara a custo após Em resposta declarou-lhe Ulisses dos
uma tempestade que o fizera naufragar, o [mil artifícios
poeta diz: (Odisseia IX. 1)
Assim adormeceu nesse lugar o divino No decorrer da história, é assim que
[Ulisses, o tratará Circe:
[que muito sofreu, vencido pelo
[sono e pela fadiga. Divino filho de Laertes, Ulisses dos mil
(Odisseia VI. 1-2) [artifícios
E, ao longo da narrativa em Esqué- (Odisseia X. 401)
ria, o epíteto vai sendo repetido inúmeras Circe, a feiticeira cuja magia perigo-
vezes, quando o herói é acolhido por sa o herói da astúcia conseguira dominar.
Nausícaa, a jovem princesa, e finalmente' Mas, para além da sua adequação ao
satisfaz a sede e a fome, quando é recebi- contexto, e consequente contributo para a
do pelo rei na qualidade de hóspede, e co- melhor caracterização da figura, e do mo-
mo tal tratado. Chega, porém, o momen- mento, os epítetos também preservam tra-
to em que, terminadas as libações, a sós dições ou factos históricos, que a arqueo-
com o régio par, a soberana dos Feaces logia e a linguística combinadas têm con-
quer saber como é que Ulisses obteve a seguido desvendar. Outros conservam
roupa que enverga, e que ela bem sabe ter ainda oculto o seu mistério, como em bre-
sido tecida por si mesma e pelas aias, em ve veremos.
sua própria casa. É a famosa pergunta de Quando se lê, por exemplo, o sintag-
Arete, momento crucial da cena, que só ma "Heitor de casco faiscante", ou " A -
raros comentadores têm sabido interpre- queus de belas grevas" ou "os Aqueus de
tar. Ulisses dá-lhe uma longa e bem elabo- brônzeas túnicas", é fácil aceitar que to-
rada explicação, que coloca bem dos estes epítetos distintivos não são des-
Nausícaa, ao abrigo de qualquer censura. providos de significado. Mais ainda, co-
A frase que introduz o discurso directo, mo notou Page, eles vêm dos tempos mi-
escolheu o outro epíteto para caracterizar cènicos juntamente com as figuras que ca-
o falante: racterizam. Os três casos apontados di-
zem respeito a peças da armadura. Pelo
Em resposta declarou-lhe Ulisses dos que se refere aos Aqueus, o uso de tais pe-
[mil artifícios. ças tem sido revelado aos poucos pelas es-
(Odisseia VI 1.240) cavações. Grevas para protegerem as per-
A mesma fórmula será ainda repetida nas dos guerreiros têm sido encontradas
quando o herói justifica Nausícaa, aos em várias partes da Grécia. Quanto às
olhos do pai, por a princesa se ter limita- "brônzeas túnicas", elas foram durante
do a dar-lhe vestuário e mantimentos, sem muito tempo um enigma para os comenta-
o encaminhar até ao palácio (Odisseia dores, não obstante a elevada frequência
7.302). Em ambos os casos, Ulisses foi su- do seu emprego — nada menos de sessen-
ficientemente hábil na resposta para satis- ta e seis vezes. Uma primeira tentativa de
fazer o interlocutor, sem revelar a sua solução foi proposta em 1950, quando
identidade. distinta arqueóloga inglesa, H . L . Lori-
Quando, porém, a partir do Canto mer, publicou um livro que fez época,
IX, o herói vê chegada a altura de decla- Homer and the Monuments. Supunha ela
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rar o seu nome e de contar as suas estra- que o chamado "Vaso dos guerreiros",

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obra micénica do séc. X a.C, proporcio- ruja". Ora a coruja é, como todos sabem,
nava a explicação, uma vez que aí estão a ave simbólica da deusa. Estaria por trás
desenhados guerreiros com túnicas curtas, deste epíteto uma reminiscência de uma
às quais estão aplicadas placas de bronze. fase teriomórfica da religião grega — fase
Porém, em anos muito recentes, apareceu essa não documentada, pois os deuses he-
numa localidade da Grécia, Dendra, uma lénicos são logo de início antropomórfi-
armadura* toda de bronze, formada por cos? Ou será o primeiro elemento uma
uma espécie de largos aros metálicos que simples notação de cor ("Atena dos olhos
se ligam uns aos outros, e datável de 1425 brilhantes"), como sugere a descrição da
a 1400 a.C. É a um modelo desses certa- primeira visão da deusa no Canto I do
mente que aludia o famoso composto dos poema ("Os seus olhos tinham um brilho
aedos homéricos. terrível" (1.200)? Os estudos sobre o as-
Também os Troianos têm o seu epíte- sunto têm-se multiplicado nestes últimos
to distintivo. Eles são os "Troianos do- anos, sem que a questão possa dar-se por
madores de cavalos". Se, como pensa a solucionada. Mas ela não é caso único.
maioria dos especialistas, a Tróia homéri- Outros deuses podem ocultar ou não
ca se situa na colina de Hissarlik, na ac- vestígios de teriomorfismo nos seus epíte-
tual Turquia, no local onde Schliemann tos, embora, note-se desde já, eles não se-
principiou a escavar, no último quartel do jam distintivos como o da patrona da sa-
século passado, e se, de entre as nove ci- bedoria. Se Poséidon, por exemplo, é
dades sobrepostas no local, são, como Kyanochaita, o composto pode aludir aos
pensou Blegen, quando levou termo os "cabelos de anil" que ficariam bem no
trabalhos, a VI e a Vila. que melhor con- deus do mar; pode relacionar-se com o
dizem com a Tróia da Ilíada, uma vez que termo de Ku - wa - no, revelado pelas ta-
têm restos de cerâmica contemporâneos buinhas micénicas; e como os termos de
dos de Micenas, capital de Agamémnon, cor na língua grega são vagos como em
possuem fortes muralhas e viviam na opu- nenhuma outra, pode querer dizer apenas
lência, então compreendemos porque ê "de cabelos escuros". "De crinas escu-
que os Troianos eram "domadores de ca- ras" é aplicado a um cavalo em Ilíada,
valos". É que os habitantes da Tróia V I , XX. 224. E o cavalo era um animal sim-
quando vieram instalar-se naquele cobiça- bólico deste deus, por isso também apeli-
do e estratégico sítio, trouxeram consigo dado de hippios. Pelo que também aqui
essa novidade, que então revolucionou o alguns estudiosos põem a hipótese de
sistema de transportes: a domesticação do possíveis vestígios de teriomorfismo.
cavalo. O próprio Heitor também recebe Outro dos poucos casos congéneres
esse epíteto, e é com ele que fecha o poe- existentes é o da deusa Hera. Ela é chama-
ma. da de boopis, que etimologicamente que-
Muitos dos epítetos divinos são anti- rerá dizer " de olhos de vaca". A tentação
quíssimos, e, se alguns têm um sentido de ligar tal atributo à representação ani-
que aponta claramente para os atributos malesca da deusa Hathor do Egipto é,
primitivos do deus cujo nome exornam grande. Mas, se alguma vez ele teve esse
(por exemplo, "Zeus que amontoa as nu- sentido, tal já não se verificava, certamen-
vens" revela bem que o deus supremo co- te, com os aedos homéricos. Outras figu-
meçava por ser o deus do tempo atmosfé- ras femininas, seja uma aia de Helena em
rico, esse tempo atmosférico de que o ho- Ilíada I I I . 144, seja a ninfa marinha Halia
mem primevo dependia inteiramente), ou- em X V I I I . 40 do mesmo poema, podem,
tros permanecem obscuros e encerram ter esse qualificativo. O que mostra que,
ainda um mistério. Assim, Atena é chama- para eles, já só significava "de olhos
da glaukopis, composto que parece signi- grandes" ou "de olhos doces".
ficar, etimologicamente,, "de olhos de co- Mas não são apenas os epítetos de al-
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gumas divindades que suscitam contro- e descobrir, que na Europa havia, para
vérsia. Também há, por exemplo, um dos além dos conhecidos jacintos amarelados
qualificativos do mar — oinopa ponton ou arroxeados, ou ainda brancos, espécies
— geralmente traduzido por "pélago cor amarelas dessa flor, o que possibilitaria a
de vinho". Já dissemos que a terminolo- equivalência a "cabelos louros". Mas
gia das cores é muito oscilante em grego. precisamente de Ulisses se afirma (com
Que o mar seja glauco, conforme vimos uma excepção) — ao contrário do que su-
há pouco, ou "pardacento", como tantas cede com os outros heróis aqueus — que
vezes se diz na Odisseia, parece natural. possuem cabelos escuros... Por isso pare-
Mas "cor de vinho" tem desafiado a.ima- ce mais provável a opinião dos que pen-
ginação dos comentadores. Explicam al- sam que a notação diz respeito à forma —
guns que poderá entender-se da tonalida- a característica forma encaracolada da-
de das águas observada ao nascer ou ao quela flor.
pôr do sol (conforme o observador estiver Mas voltemos à fórmula oinopa
na costa oriental ou ocidental grega). Mas ponton, que não está ainda esgotada. É
é preciso lembrar que só o alto mar é de- que o adjetivo também se aplica aos bois,
signado por pontos, o mar junto à costa é como sucede em Ilíada XIII.703, e até já
hals, e que num verso como Ilíada 1.350 se apareceu para designar um desses animais
opõe "a praia do mar cinzento" (halos numa tabuinha micénica de Pilos, do séc.
polies) ao "pélago cor de vinho". Melhor X I I I a.C. Aqui, naturalmente, voltou a
seria o paralelo, pensamos nós, com o exercitar-se a inventiva dos críticos. Será
"mar cor de violeta" (ioeidea ponton) de o composto referente ao amarelo-
///crrfaXI.298 e Odisseia V.56. Este último avermelhado de certos bovinos? Ou antes*
qualificativo aplica-se a águas profundas, sugestivo da espuma que aparece sobre o
escuras. Seria, portanto, uma notação va- pelo, quando eles acabam de executar tra-
ga da cor, a juntar a tantas outras. Existe, balho extenuante nos campos? Novamen-
porém outra tentativa de explicação que te a hesitação entre a cor e a forma, agora
merece ser mencionada. No sintagma transposta para uma área semântica di-
oinopa ponton estaria implícita uma me- versa.
táfora alusiva a espuma do vinho. O mar Outras dificuldades existem ainda, de
seria "espumoso", como espumoso é o que vamos dar alguns exemplos. São de
vinho deitado de alto nas taças. Teríamos, natureza muito diferente. Trata-se da
por conseguinte, uma notação, não de aplicação de epítetos, pelo menos, apa-
cor, mas de forma. Uma situação paralela rentemente, em contexto errado. O adjeti-
àquela que leva o aedo do Canto V I da vo amymon — usa-se para distinguir uma
Odisseia a descrever assim Ulisses, depois pessoa sem mácula, como Calcas, o "irre-
do banho e da metamorfose embelezado- preensível adivinho" (mantis amymon)
ra operada por Atena: do exército dos Aqueus (Ilíada, I . 92), ou
melhor ainda "o irrepreensível médico"
Então Ateneia, filha de Zeus, fê-lo pa- (amymon ieter) (Ilíada IV. 194, X I . 835).
[recer Mas, nesse caso, como explicar que no
mais alto e mais forte e fez pender da Canto I da Odisseia, precisamente quan-
[sua fronte do, reunidos os deuses em concílio, Zeus
cabelos encaracolados, como as flores vai censurar o procedimento de Egisto,
[do jacinto. que acabava de morrer às mãos de Ores-
tes, em castigo de ter cortejado a mulher
(Odisseia VI. 229-231) de Agaménnon e assassinado o rei de Mi-
cenas no seu regresso de Tróia, não obs-
Neste passo, os comentadores leva- tante as advertências dos deuses para que
ram o seu escrúpulo ao ponto de indagar, o não fizesse. É assim que começa o discu-
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tido trecho, que Jaeger havia de chamar so, para com a sua madeira construir a
"a mais antiga teodiceia grega"; jangada em que se fez ao mar, era neces-
Os restantes deuses sariamente possuidor de uma " m ã o ro-
estavam reunidos no palácio de Zeus busta".
[Olímpico. Mas o mesmo não se poderá afirmar
Para eles começou a falar o pai dos ho- do passo do princípio do Canto X X I , em
[mens e dos deuses. que idêntica fórmula aparece aplicada a
É que lhe vinha ao espírito a lembrança Penélope, quando ela abre a sala das ar-
[do irrepreensível Egisto, mas, para retirar de lá o famoso arco de
a quem matara o glorioso Orestes, f i - Ulisses, com o qual vai experimentar a.
[lho de Agamémnon. perícia dos pretendentes:

(Odisseia 1.26-30) Subiu a alta escadaria do seu palácio,


e com a mão robusta pegou na chave
O "irrepreensível Egisto" deste pas- [recurva,
so tem sido tomado como um exemplo de bem executada em bronze, com o pu-
rigidez e desadaptação de epítetos. Em ar- [nho em marfim.
tigo publicado em 1973, A. A. Parry pro-
curou demonstrar que o sentido de perfei- (Odisséia, X X I . 6-7)
ção implícito em amymon se aplicava pri-
mariamente ao aspecto físico. Seria pois, De novo uma fórmula rígida em con-
apenas a beleza de Egisto que estava em texto errado, uma vez que para uma mão
causa. Mas, sendo assim, porque seriam feminina não é elogio chamar-lhe robus-
também qualificados desse modo Calcas e ta? Também aqui trabalhou a imaginação
Macáon, em contextos em que toda a ên- dos críticos. É que, disse-se em tempos,
fase ia para a sua superioridade no pacheie pode igualmente significar "com-
exercício imparcial e glorioso da arte que pacta", e assim ser adequada a descrever
lhes era própria? uma mão jovem, cuja pele não está enru-
O outro qualificativo de que vamos gada, é lisa. Há alguns anos apenas, em
tratar não é de justificação mais fácil. 1980, outro especialista apresentou nova
Referimo-nos à fórmula cheiri pacheiei hipótese: o epíteto seria destinado a refor-
("com a sua mão robusta"), que muito çar a firmeza com que Penépole abre as
apropriadamente aparece referida a Ulis- portas, dando assim lugar a uma volta de-
ses, quando o herói naufrago desperta na cisiva na acção. É certo que com a prova
terra dos Feaces, e se cobre com um ramo do arco, que vai começar, mudará o rumo
de árvore para ir ao encontro das vozes fe- da sequência narrativa. Se esta espécie de
mininas que ouviu, na esperança de que hipálage deve admitir-se, parece-nos, po-
alguém o socorra: rém, mais controverso.
Em ambos os casos, e em mais um ou
Depois de assim falar, saiu do mato o outro que omitimos, julgamos mais
[divino Ulisses, plausível a aceitação pura e simples da
e com a mão robusta cortou na espessa evidência de que uma fórmula foi aplica-
[floresta da com mais automatismo do que refle-
um ramo com folhagem, para encobrir xão. Isto, se não quisermos recorrer ao
[a sua virilidade. expediente fácil de considerarmos os pas-
sos em questão obra de autor mais tardio
(Odisseia V I . 127-129) (o que não poucos entendem quanto aos
quatro primeiros cantos da Odisseia) ou à
Aqui está perfeitamente certo. O ho- tradicional bonomia horaciana do
mem que abatera árvores na ilha de Calip- quando que bónus dormitai Homerus...
P E R E I R A , M . H . da R. — F ó r m u l a s e epítetos na linguagem homérica. Alfa, São Paulo, 28:1-9, 1984.

De qualquer modo, não são estes os modificações dos protótipos formulares


exemplos que nos interessa considerar, é, como já vimos, uma das tendências
mas os outros, aqueles que constituem a mais promissoras dos atuais continuado-
grande maioria, em que os epítetos de- res da escola de Milman Parry), os aedos
sempenham, para além da sua função mé- homéricos recolhiam uma tradição de
trica, sempre presente, a de caracterizar muitos séculos, que partira da época mi-
uma figura ou um objeto, revelando não cénica e atravessara séculos obscuros, pre-
raro, para além do seu valor pictórico (re- servando na memória dos homens a lem-
lembremos a "Aurora de dedos róseos", brança de feitos heróicos do passado,
"a Aurora vestida de cor de açafrão"), transfigurados pela imaginação criadora.
um fundo histórico de valor inapreciável Poder reconhecer, a cada momento, o es-
("os Troianos domadores de cavalos", paço que sobra à inventiva do poeta para
"os Aqueus de brônzeas túnicas"), ou modelar novas situações com este mate-
uma percepção nebulosa dos primórdios rial cheio de segredos e de convenções é
do mundo fascinante dos deuses gregos. um dos prazeres mais gratificantes da lei-
Usando uma linguagem artística tura das velhas epopéias gregas. E sobre-
compósita de elemento de várias proce- tudo se, juntando as duas correntes exegé-
dências — nada menos de quatro dialec- ticas principais da actualidade, procura-
tos nela se distinguem — servindo-se de mos surpreender as fronteiras entre pre-
um rico acervo de fórmulas, nas quais po- meditação e memorização, em cujo âmbi-
diam introduzir variações (e o estudo das to floresceu a arte homérica.

P E R E I R A , M . H . da R. — Formulas and epithets in Homer. A l f a , São Paulo, 28:1-9, 1984.


ABSTRACT: This article outlines a brief perspective of one of the main and most interesting re-
search approaches to Homer Poems — their basis on an oral improvisation technique as related to me-
trics. It tries then to analyse in detail the main concepts on which this approach is based, and presents an
exemplification by means of translated texts, which, in spite of imposing some limitations to the work,
makes it possible for the common reader to follow the analysis.

KEY- WORDS: Formulas; epithets; Homeric language; oral improvisation technique; formula pro-
totypes and variations.

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