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QUE COISA SÃO AS NUVENS

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

ANDAR JUNTO AO CHÃO

Este verão, quem entrar na capela do rato escutará antes


de tudo a marcha dos seus passos através da escuridão

F oi o escritor Gonçalo M. Tavares que um dia, na Capela do Rato, me disse:

“Vocês poderiam retirar todas estas cadeiras e encher de areia o pavimento, para

lembrar aos crentes que a fé é experiência de nomadismo e estrada, mais do que

confortável sedentarismo.” Ele talvez nem se recorde já, mas, desde aí, isso ficou-me na

cabeça e tenho contado muitas vezes esta história, embora, confesso, mais como repto a

uma desinstalação interior do que propriamente como desafio a uma reconfiguração do

espaço sagrado em tais moldes.

Depois aconteceu isto: há muito tempo que na Capela do Rato, onde fui estes anos
capelão, se vinha pensando aproveitar o habitual fecho estivo da capela para lançar um

convite a artistas que nos ajudassem, com outras linguagens e até outros pontos de vista,

a aprofundar a procura que ali, em comunidade, fazemos. A Luísa Soares de Oliveira

aceitou ficar como curadora deste projeto e propôs uma dupla para iniciá-lo: Carlos

Nogueira, que criaria uma instalação, e o poeta Manuel de Freitas, que teria à sua

responsabilidade a elaboração dos textos. Ora, logo nas primeiras conversas, e sem

saber do comentário de Gonçalo M. Tavares, Carlos Nogueira propôs-se retirar as

cadeiras do espaço e cobri-lo com escória de ferro, ocultando completamente o soalho

atual e forçando a que, no caminhar, tomemos maior consciência da forma e do som dos
nossos próprios passos (coisa tão necessária, mas afinal tão pouco frequente). Este
verão, quem entrar na capela escutará antes de tudo a marcha dos seus passos através da

escuridão. E não é fácil caminhar sobre a gravilha irregular ali colocada: é como se o

corpo precisasse de se interrogar de novo acerca disso que é mover-se de um ponto a

outro, de uma exterioridade a um interior, de um aqui a um além. Sim, que trânsito é

esse? E ainda: como se faz? É como se o nosso corpo fosse implicado num processo de

interrogação, pensamento e reaprendizagem.

A EXPOSIÇÃO CHAMA-SE “JUNTO AO


CHÃO” E, COMO EXPLICA O POETA
MANUEL DE FREITAS, “NUM SILÊNCIO
CADA VEZ MAIOR... OFERECE-NOS UM
CHÃO PERDOÁVEL”
Na clareira central, Carlos Nogueira colocou uma escultura de ferro, longa e branca

como uma mesa aberta ou um sepulcro vazio. O impacto do branco é obtido por uma

coesa camada de sal sobre a qual recai uma luz que acentua o cromatismo. Um branco

assim pode ser lido como um signo cristológico, pois recorda a passagem do Evangelho

de Marcos, no episódio da transfiguração de Jesus: “As suas vestes tornaram-se tão

brancas como nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia branquear” (Mc. 9,3). E se

tivermos presente que o branco da escultura é uma exalação do sal, encontramos um

novo envio a Jesus, que disse aos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra” (Mt. 5,13).

No antigo ritual do batismo, colocava-se na boca do neófito um grão de sal, enquanto o

celebrante repetia: “Deus dos nossos pais, Deus, autor de toda a verdade,

encarecidamente vos pedimos, olhai com bondade para o vosso servo que acaba de

provar este primeiro alimento, o sal. Saciai-o quanto antes com o pão celeste.” Talvez

não seja despropositada esta referência ao batismo, pois Carlos Nogueira pontua

também o silêncio da capela com o som da água que corre — na gramática cristã, uma

alusão à fonte batismal — e de um vento delicado que esparsa o invisível — símbolo da


efusão do Espírito Santo e dos seus dons.
A exposição chama-se “Junto ao Chão” e, como explica o poeta Manuel de Freitas,

“num silêncio cada vez maior... oferece-nos um chão perdoável”. Acho que é

exatamente isso, qualquer que seja a chave com o que o interpretemos.

[“Junto ao Chão” — Capela do Rato, Lisboa, de 26 de julho a 9 de setembro, quinta-

feira a domingo, das 14h30 às 19h]


https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2390/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/andar-junto-ao-chao

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