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Marie-José Mondzain
Figura 1 — Mãos negativas. Gruta Chauvet (Ardèche, França), 30.000 a.C. (CHAUVET;
DESCHAMPS; HILLAIRE, 1996)
no lugar mesmo disso que esses traços indicam como sendo o cenário
fundador de toda operação imaginai e icônica.
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O ponto de partida funda a história na medida em que é pre-
ciso deixá-lo para inscrever nossos gestos em uma trajetória, um percurso
de humanidade e, em segundo lugar, para reconhecer que essa partida é
infinitamente posta em questão há milênios. Tudo isso é ainda mais
capital agora que as operações imaginais estão mais do que nunca
ameaçadas de serem tomadas pelo lucrativo mercado da não separação, da
regressão, do retorno ao infantilismo. As mãos de Chauvet nos lembram
que não estamos no campo pré-histórico, em uma cena originária. Ao
contrário, é a ruptura com o originário que de repente se inscreve na
origem da arte. A origem da arte é a ruptura com todas as artes de origens.
Não há imagem originária, mas um gesto, um lugar de proveniência do
homem que só obtém seu sentido indicando sua destinação.
Historicamente, a separação induzida pela imagem se intensificará,
todavia, em uma verdadeira disjunção, vindo repudiar tudo aquilo que
indica ainda uma grande proximidade. Intervém, então, um monoteísmo
da distância que se legitima doravante por uma remissão simbólica à
origem.
A preocupação monoteísta com o sujeito das imagens
O monoteísmo nasce a princípio de um iconoclasmo. As religiões
da imagem são cultos da imanência, da potência maternal e matricial, da
imanência do poder dos signos em si. A imagem é egípcia, é a terra que se
precisa deixar. Se é preciso cassar os ídolos, é para mostrar que não há
nada mais estranho ao velado que a magia imanente das coisas próprias do
animismo. Tornar a imagem inanimada é privá-la de toda relação,
portanto, de todo sentido. Todos os procedimentos de separação não são
nada além da sistematização de todos os gestos e de todos os signos que
formam a construção simbólica dos sujeitos falantes submetidos à lei do
pai. E, portanto, em nome dessa exigência de separação que se atravessa
toda a arquitetura do templo como um lugar de encontro com o proibido
na fabricação da imagem.
A iconoclastia hebraica apresenta analogias estruturais com a
iconofobia da metafísica clássica: a pureza do eídos só se mantém à custa
de uma cegueira que encontrará seu consolo na retórica do
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ofuscamento. É para defender a força e a pureza da imagem que
se declara sua invisibilidade, reservando todas as outras palavras
que designam as pioduções sensíveis a fim de dizer que elas
traem a verdadeira imagem.
Está tudo aí: a imagem, sendo fiel ao verdadeiro, não pode
mostrar sua face nem se oferecer ao olhar. Escapa-se, portanto, da
imagem tanto por razões positivas quanto negativas, porque ela é excesso
de trevas e excesso de luz. O medo das imagens é indissociável do medo
das forças libidinais. A iconofobia como a negação do iconismo
especulativo são, de fato, confrontados com a definição do desejo da
imagem como sendo um desejo do objeto. Ora, é com o cristianismo que
acontece um deslocamento fundamental: o que qualifica uma imagem é
doravante não mais a natureza da sua matéria, mas a essência do olhar que
se coloca sobre ela. Toda a doutrina da encarnação volta a estabelecer
doutrinalmente que a encarnação não é nada além do “devir-imagem” da
divindade. A distinção entre a carne e o corpo vem agora sobrepor e
mesmo recobrir a distinção da imagem como carne e do objeto como
corpo. A redenção da carne é a transfiguração do olhar sobre o mundo
pela via da imagem, a redenção do corpo é a identificação do corpo de
Cristo com o corpo da Igreja. E, portanto, a instituição que dá sua
visibilidade redimida e salvadora às instituições históricas do poder
temporal. Se o ícone não reina mais ele mesmo, como no caso do ídolo,
ele virá doravante a fundar um reino. Ora, as crises sucessivas que
abalaram a patrística na questão da imagem - todas as crises bizantinas
que estudei em Image, icône, économie (1996) - indicam, no entanto, que
a disjunção definitiva que o cristianismo propõe entre ídolo como simples
imanência e o ícone como pura distância nunca pode ser tão clara.
Ao longo da história humana, o desejo de ver e o de mostrar serão
habitados pela ambivalência do desejo de estar em busca da satisfação, e
de constatar que a satisfação estimula o fim do desejo, seu relançamento
não pode fazer viver o sujeito constituído senão renunciando a designar
aquilo que ele deseja como se designa um objeto; é assim que a imagem,
se situando sobre a trajetória do desejo, oscila entre os dois estatutos que
lhe conferem o regime do sujeito e do objeto. Dito de outro modo, as
imagens têm um poder, e esse
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poder tem, por definição, uma estrutura crítica, quero dizer, uma
estrutura de crise: elas são provenientes de uma energia desejante que
coloca em jogo, a cada vez, a pulsão regressiva de um retorno às trevas
fusionais ou a pulsão vivente de correr o risco das visibilidades que se
quer compartilhar com o restante dos homens (Fig. 2). Entre a disjunção
sem apelo e a regressão fusional, ele nos incumbe de tomar a
responsabilidade pelo destino da imagem no seu movimento de
desligamento. Entendo por desligamento o movimento pelo qual a
imagem resiste a toda determinação e determinismo irreversível. A
indeterminação da proveniência, por sua vez, orienta as operações
imaginantes em direção a uma destinação indeterminada. Este é o preço da
liberdade, inscrito nas produções visuais quando elas constituem o sujeito
em um lugar inaugural. O sujeito que começa, com quem tudo pode
começar, o homem do começo, como designa Hannah Arendt. Este é o
ponto em que está em jogo a dimensão política. Entendo aqui por político
as apostas do compartilhamento da vida em comum, quer dizer, no sentido
em que a pólis grega instituiu com a politeía, no qual a cidade implica um
regime comum na circulação dos signos e na partilha não do espaço, mas
do tempo. Ora, a liberdade necessária a essa partilha supõe que seja
mantida a energia de desligamento própria a toda criação. Para que haja o
político, é preciso que as leis da psique, quer dizer, a lei do objeto tal qual
ele se impõe como mercadoria, não reinem sobre os sujeitos desejantes. E
preciso ficcionalizar a liberdade; é preciso imaginar e somente imaginar,
ao compor a imagem para tornar a crença viva, só energia política. E por
isso que a liberdade não é nem um objeto nem um sujeito, não é nem um
estado originário que se teria perdido nem um reino por vir. A liberdade é
uma ficção no sentido pleno da palavra, quer dizer, uma imagem,
necessária, que se tem entre os sujeitos e permite a troca de lugares. Visto
que se fizeram essas ressalvas, a resposta à questão da destinação vem se
inscrever naturalmente na inflexão desse destino pulsional. Indicação de
que a via política da partilha é a possibilidade problemática de constituir,
pelo desejo, um objeto político situado no percurso de uma demanda
insaciável. Porque designei anteriormente a saciedade como um campo de
consumação imediata que não pode, em nenhum caso, ser identificado no
percurso constituinte no qual, ao contrário, a vitalidade é determinada pela
ausência e pela
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separado. Que nos dê de comer quando temos fome é uma coisa, e esse
desejo é uma necessidade que precisa da presença de objetos que nutram,
e não apenas suas imagens ou signos que ali tenham lugar. Ao contrário, o
desejo que anima a circulação de signos só se sustenta com a separação
entre os sujeitos que trocam esses signos na ausência das coisas em si.
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Entre o autor e o espectador
Aqui se abre de fato a problemática que é consequência desta primeira
meditação, a saber, aquela que faz da dupla aposta da i m ag e m um a
questão de poder e de autoridade. Isso volta a pôr em q u e s t ã o a
proveniência de uma forma renovada ao perguntar: o que é um autor?
Quem ê o autor da imagem? Sente-se bem a que ponto a questão é
perigosa atualmente, já que não pode haver aí um autor, e
consequentemente, autoridade, se o gesto produtivo é reconhecido como
gesto criativo e, portanto, inaugural. A produção é condicionada, e o
conjunto de protocolos de produção e de difusão pode ser v isto apenas do
ponto de vista das condições. O inventário dos meios necessários para a
realização e a difusão de uma obra tanto quanto de um objeto não dão
nenhuma indicação nem nenhum critério, per- mitindo dizer que se trata
propriamente de falar de uma obra. Sobre essa versão da realização, tudo
pode ser analisado em termos de poder e de finalidade. Nesse domínio, a
indeterminação é desqualificada, assim como foi desqualificado o estatuto
de indeterminação desde a crise dos intermitentes.2 O que qualifica uma
obra, quer dizer, o que permite reconhecê-la como tal e,
consequentemente, reconhecer naquele ou naquela que a produziu a
qualidade de autor, responde a outros critérios que reunirei sob o nome de
autoridade. Qual é, então, a proveniência da autoridade? Contrariamente
ao poder e aos meios que tornam uma realização possível, quer dizer, aos
constrangimentos e às determinações que condicionam a produção,
contrariamente à potestas que repousa sobre a possessão (o monopólio) da
força, a autoridade — auctoritas — repousa sobre o reconhecimento.
Como compreender a natureza do reconhecimento que funda a
autoridade? Do lado daquele que produz a obra, é um duplo movimento:
aquele que consiste em reconhecer o que ele fez, seguramente, mas
também aquele que consiste em reconhecer, naquele a quem ele
2
Existe na França a categoria do artista intermitente, que vive sob um regime
assalariado instituído em 1936 e vem sendo sistematicamente reduzido nas
últimas duas décadas. Trata-se de uma forma de complementação de renda
mensal destinada aos que desempenham um tempo mínimo de horas mensais
de trabalho e descontam imposto sobre essas horas, contribuindo para um
regime específico de securidade. (N.T.)
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se endereça, uma instância de dignidade na liberdade. O reconhecimento
indica, desde então, ao mesmo tempo a proveniência e o endereçamento,
quer dizer, a destinação tanto daquele que responde quanto do que ele faz
em resposta diante de um outro. E, portanto, uma relação de alteridade que
o reconhecimento permite construir, isso que se chama a autoridade e até
mesmo a autoridade do autor. Disso resulta que a indeterminação da obra
que se tem entre o criador e o espectador não é nada além que sua abertura
aleatória, a atenção na qual ela se mantém de receber seu reconhecimento
da parte daquele a quem ela se endereça. Reconhecer a obra como obra é
reconhecer a potência que ela tem de colocar em obra uma relação
constituinte entre dois lugares da depreciação. Essa relação não é nunca
garantida antes, nunca é dada defmitivamente, é frágil porque não tem sua
validade na consistência do objeto, mas na existência de sujeitos que a
fazem circular e operar entre eles. Mas essa relação circulante não
constitui mais os lugares da depreciação como das entidades substanciais.
Nesse sentido, o termo intersubjetividade pode tornar-se uma verdadeira
armadilha, uma ilusão. A economia da partilha dos olhares é aquela do
tempo, quer dizer, de uma irredutibilidade do sujeito a toda captura? A
relação de um autor com um espectador não é nem a de quem possui nem
a de quem é possuído. Eles só se constituem na partilha paradoxal de sua
despossessão em comum. Tal me parece ser a potência da arte. E assim
que é preciso entender o pensamento de Duchamp, quando ele instaura ou
convoca a autoridade do espectador. E, portanto, no coração de uma
operação paradoxal que se constrói a questão da proveniência e da
destinação.
A imagem como gesto separador é constitutiva do sujeito de-
sejante e falante, ao mesmo tempo que é constitutiva da estrutura
“intersubjetiva” na qual se joga o reconhecimento de si no reconhecimento
do outro, sob condição de que nele não se jogue nem conhecimento nem
identificação. Suspendo ainda “intersubjetiva” entre aspas porque é uma
forma insatisfatória, quer dizer, falaciosa, de designar a dinâmica que
opera entre os lugares que não têm eles mesmos nenhuma determinação
substancial nem existência natural e consistente. Nessa perspectiva, a
indeterminação da imagem conduz a qualificá-la como não objeto, como
um lugar frágil onde o i i u/amento de olhares que partilham a visibilidade
do mundo m i a l a o campo
I»< ilítico desta partilha temporal. Mas a imagem é também um objeto
determinado por aquilo que o condiciona e propõe ao desejo de um sujeito
Ml f i l I I I II A
que se torna, por sua vez, o objeto da imagem.
E a qualificação determinada ou indeterminada da imagem que .1
situa nessa zona indecidível na qual ela atende à decisão política t |iie lhe
conferirá seu sentido. Concluiria lembrando a brincadeira de ( iroucho
Marx. A uma mulher que lhe perguntou “How do you do?”, < iroucho
responde: “How do I do what?” Em francês — traduzindo i brincadeira
segundo meus propósitos — “Você vai bem?” se trans- lorma em “Vou
aonde?”. Acredito que se diz aqui, com humor, que ,K|iiele que se inquieta
com o nosso estado, quer dizer, com o nosso sn, só podemos responder
interrogando, ao nosso modo, sobre nosso destino comum ou, mais
precisamente ainda, sobre nossa destinação como única questão do
comum.
Referência
CHAUVET, Lean-Marie; DESCHAMPS; Eliette Brunei; HILLAIRE, (
hristian. La grotte Chauvet a Vallon~Pont-d’Arc Relié. Paris: Seuil: 1996.