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BELÉM-PA | ANO 3 | N.

5 | JAN-JUN 2017

MEMÓRIA DE UMA CIDADE


AMAZÔNICA:
BELÉM POÉTICA NO SÉCULO XX
MEMORIES OF BELÉM IN ARTISTS’
TESTIMONIALS.
THE POETICS OF AN AMAZONIAN CITY IN THE
MID-20TH CENTURY

Josebel Akel Fares


Venize Nazaré Ramos Rodrigues

Resumo
A pesquisa “Memória de Belém em Testemunho de
Artistas”, executada pelo Grupo de Pesquisa
Culturas e Memórias Amazônicas, da Universidade
do Estado do Pará, possibilitou desenhar uma
cartografia poética de Belém em meados do século
XX, por meio de vozes de atores, músicos,
escritores, artistas visuais que viveram nesse
pretérito na capital do Pará. As narrativas evocadas
na memória dos 11 artistas sobre literatura, teatro,
música, cinema, casas de espetáculos, livrarias e
demais signos artísticos, situaram o movimento
artístico-cultural em torno do marco histórico do
projeto − a chegada da televisão na cidade. Além
das marcas estéticas, reconstruíram-se outras
dimensões da vida da cidade que possibilitaram a
composição da trama de uma história coletiva. A
História Oral permitiu que aspectos pouco
considerados na historiografia fossem explorados
por meio de narrativas que marcaram o panorama
cultural da cidade no período considerado na
pesquisa. Esta investigação faz parte do projeto
“Memória de Belém de Antigamente”, que registra
a cidade, a partir de vozes de pessoas com mais de
65 anos, oriundas do mundo das artes, da educação
e de gentes comuns, e reflete sobre a memória
patrimonial, os processos históricos e os fazeres
artísticos.

0
Palavras-chave: Amazônia, Poética; Cidade; artistas (plásticos, atores, músicos, escritores,
Oralidade; Patrimônio. cineasta) e educadores que viveram esse
período na capital da Amazônia paraense.
Abstract
Escolhemos analisar no presente texto, os
The research “Memories of Belém in Artists’
Testimonials”, carried out by the Group of Research relatos de artistas sobre literatura, teatro,
Cultures and Memories of the State University of
Pará, made it possible to draw a panorama of the música, cinema, casas de espetáculos, livrarias
poetics in the city of Belém in the mid-20th century e demais signos artísticos, bem como o
through the testimony of actors, musicians, writers
and visual artists who lived that time. The narratives movimento sócio-artístico-cultural que
evoked in the memories of 11 artists about
possibilitam visualizar aspectos da memória
literature, theater, music, cinema, performing arts
center, bookstores and other artistic venues situated patrimonial, material e imaterial e a
the cultural-artistic movement surrounding the
project’s target historical landmark – the arrival of compreensão dos processos históricos e fazeres
television in the city. Besides the esthetic features artísticos nos meados do XX, no cruzamento
brought about by TV, other dimensions of the city’s
life were reconstructed, which enabled the entre experiências vividas, práticas sociais e
interweaving of a collective history plot. The Oral
History granted access to aspects of the city’s representações. A Belém representa a
history which had not been thoroughly studied until metonímia de uma cidade urbana da Amazônia.
now. This investigation is part of the project
“Memories of Belém of Yore”, which aims at O termo Poética, em grego antigo Περὶ
documenting the city through the voices of people
over 65 involved in the arts and education and ποιητικῆς e em latim: poiétikés, é estudado da
reflecting upon heritage, the historical processes antiguidade clássica à contemporaneidade. As
and the artistic making.
Keywords: Amazon, Poetics, City, Orality, artes poéticas, espécies de “manuais” de regras,
Heritage. conduzem a mudança na concepção do
vocábulo, inicialmente deslocam seu sentido do
campo da literatura para o campo da arte e,
Notas preliminares posteriormente, ampliam para outras áreas da
Este artigo tem origem na pesquisa cultura, para além do campo artístico. Ou seja,
“Memória de Belém de Antigamente”, do verso, o conceito de poética amplia-se para
realizada por professores-pesquisadores e os diferentes gêneros literários e posteriormente
alunos de iniciação científica, do Grupo de se compreende como formas de expressão
Pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas estética, ligadas ao que na antiguidade chama-
(CUMA), da Universidade do Estado do Pará, se de belas artes. Hoje, refere-se ao campo
que processa a urdidura de uma cartografia de artístico das culturas contemporâneas, aos
imagens de Belém, cidade situada na Amazônia novos entrelaçamentos e diversificados textos
paraense, em meados do século XX de todas as expressões narrativas. Neste artigo,
(1940−1960), pelas vozes da memória de Poética refere-se ao estético, ao artístico,
velhos do “Asilo Pão de Santo Antônio”, expressos nas vozes dos intérpretes da

1
pesquisa, além de outras vozes, que ajudam a
cartografar uma Amazônia de outrora. A Belém de outrora: vozes poéticas
A História Oral, empregada como configuram a cidade
metodologia, faz a ponte entre a história
individual e a coletiva, as histórias narradas Tempo do glamour, dos anos dourados,
tornam-se fontes históricas, segundo os cânones tempo do acordeom, tempo do respeito e da
e procedimentos da história oral, apreendidos delicadeza. Assim os intérpretes-artistas
em Thompson (1992), Freitas (2002) e Meihy traduzem vivências de uma época de apogeu de
(2005) para apreender um contexto sócio- experiências estéticas, o tempo da juventude,
histórico-cultural peculiar aos meados do XX. ainda que muitos ainda hoje exercitem seus
As novas versões da história elaboradas pelas ofícios e deles retirem sua sobrevivência. Fares
vozes de narradores, mediante suas referências, (2007) relaciona a idade dos narradores a certa
ampliam o campo da produção, tornando a tendência à defesa do tradicional, entendido
ciência mais democrática, pois “a história oral como o movimento de resguardo de marcas
devolve a história às pessoas em suas próprias extemporâneas:
palavras. E, ao lhes dar um passado, ajuda-as
também a caminhar para um futuro construído Mesmo com a ponderação aos benefícios
do hodierno, sempre se enreda estabelecer
por elas mesmas” (THOMPSON, 1992, p. 337). comparações da cidade de antigamente,
situada em meados do século XX: “o
A Belém poética escapa do calendário antigo era melhor”. Assim, as imagens [...]
linear, identifica-se mais pela intensidade das elaboram-se, quase sempre, através da
inter-relação antigo e moderno, o que
experiências vividas pelos sujeitos posto que, a implica no saudosismo do tipo “no meu
tempo”, mesmo que alguns reconheçam a
memória não é datada, na maior parte das melhora dos serviços com o
desenvolvimento das cidades.
vezes. Thompson (1992, p. 180) ratifica que “a
maioria das pessoas está menos interessada nos
Os artistas relembram, no presente,
anos do calendário do que em si mesmas, e não
experiências significativas do passado,
organizam suas memórias demarcadas por
reatualizando os “agoras” vividos, pois o
datas”, o que verificamos no processo de
passado não está encapsulado a espera de
escuta. Situa-se assim o ambiente cultural de
alguém que o acione. Pelo contrário, as
Belém em meados do século XX, visto que os
recordações são capturadas por sujeitos
relatos se referem às décadas anteriores e
individuais e coletivos, que vivem em um
posteriores ao marco temporal indicado
mundo em mutação, o que concorre para novas
anteriormente na pesquisa - o advento da
leituras de realidades e de acontecimentos
televisão e seu impacto na vida sociocultural da
pretéritos. Freitas (2002, p. 67) destaca que “o
cidade.
passado não sobrevive ‘tal como foi’ porque o
2
tempo transforma as pessoas em suas registra a inauguração de “uma nova
percepções, ideias, juízos de realidade e de possibilidade de concepção do real”, e tece
valor”. As memórias, como nutrientes da considerações sobre o aparelho de televisão e
história, são construídas de acordo com os programação exibida.
interesses que as pessoas e grupos sociais
fazem das suas recordações. A televisão chegou aqui em 60, 61, mais ou
menos. [...] A Loja Mundial, na Presidente
A Amazônia dos intérpretes de Belém Vargas, fez um desfile: um carro com
televisão em cima, em cima de uma
ensejou uma construção poética de distintas lambreta. Então, a televisão era um
sociabilidades e maneiras de se apossar e ver a acontecimento, ela chegou tarde no Brasil,
na década de 50. Eu vi pela primeira vez
cidade, de narrá-la, recordá-la e representá-la. em 59, quando assisti televisão, ela tinha
aquele formato oval, preto e branco, eu me
Neste sentido, os clubes, os museus, as praças, lembro que vi o time do Santos, vi o Pelé
na televisão, né? 2
as ruas, os teatros, as salas de auditório e os
cinemas são espaços definidores de identidades
As imagens chegam em preto e branco,
culturais singulares da capital amazônica dos
mas a criatividade forja recursos para colori-
meados do século XX. A urbe dos artistas é
las, explica o músico e cantor Pinduca3, o “Rei
capturada pelo olhar sensível que guarda
do Carimbó”4: “Colocavam papel celofane na
imagens, lugares, fatos e desenha a cidade
televisão, um que brilha, vermelho, azul, nos
evocada pelas recordações das cores, das
faróis pra poder dar colorido. Aqui em Belém,
formas, da gestualidade, da musicalidade, da
nem se fala, como eles faziam isso, mas quando
palavra. Os espaços culturais, as opções de
eu fui em São Paulo, lá eles faziam também”.
divertimentos, as escolhas artísticas, as
O compositor também narra o fenômeno
experiências inovadoras no campo do teatro, a
“televizinho”: como poucos tinham acesso ao
pujança das radionovelas, os programas de
auditório, a linguagem moderna da televisão, o dirigiu vários documentários e curtas-metragens. É
jornalista, Mestre em Teoria da Comunicação e Cultura
eco do canto orfeônico nas escolas, são marcas pela UFRJ. Entrevista: 2006.
2
do passado lembrado, que contém o vigor da As citações das vozes orais dos intérpretes da pesquisa
serão grafadas sempre em itálico. Neste texto todos os
juventude, a nostalgia e a saudade dos artistas são identificados pelo nome real/artístico, uma vez
que quiseram ser visibilizados e, para tal, assinaram a
narradores que atribuíam, àquele presente autorização de uso da voz e de imagens.
3 Aurino Pinduca Quirino Gonçalves (1937 − Igarapé-
vivido, sentidos e simbologias. Miri/PA/BR), conhecido artisticamente como Pinduca,
músico, compositor e cantor paraense de prestígio regional,
A televisão marca a chegada da nacional e internacional. Em 2005, recebeu a comenda
“Cavaleiro da Ordem do Mérito Cultural do Brasil”, da
modernidade tecnológica à cidade e merece Presidência da República do Brasil. Entrevista: 2005.
4 Carimbó, gênero, ritmo e dança tipicamente paraense,
todo um aparato de acolhida. Januário Guedes1
cuja formação instrumental original era composta por dois
curimbós, tambores feitos com troncos de árvores, uma
flauta de madeira, maracás e uma viola cabocla de quatro
1 Januário Guedes (1945 − Cametá/PA/BR), cineasta, cordas, posteriormente substituída pelo banjo artesanal,
referência na área cinematográfica paraense, produziu e feito com madeira, cordas de náilon e couro de veado.
3
bem, inaugurou-se essa uma nova prática de as limitações técnicas da nova forma de
sociabilidade, em que os vizinhos comunicação:
concentravam-se nas salas, portas e janelas dos Quando chega aqui em Belém, se você
visse como era a novela... A primeira que
que tinham televisão para desfrutar dos foi feita, era triste, era triste, era
programas televisivos. Pinduca explica que rudimentar, porque não era a Globo, era a
Marajoara. [...] depois é que vem o
avanço da tecnologia, mas o início é mais
carente desses avanços da modernidade,
A televisão mudou muito a vida de todo
mundo. Tinha muito o que a gente que agora acontece muito mais rápido.
chamava de televizinho, porque dava seis
horas, você via na maior naturalidade na
janela das casas que tinham TV, como se O impacto da televisão em Belém é
fosse uma arquibancada, ficava aquele
monte de gente assistindo do vizinho e o percebido de forma diferenciada entre os
vizinho cortês deixava [a TV] aí em uma
posição boa pra poder o pessoal daqui ver,
consumidores, produtores e criadores.
que aquilo pra ele era um trunfo, um Cleodon Gondim6, que pertencia ao casting
status, né? Ele ter televisão e o pessoal
daqui, a vizinhança tudo oh, televizinho. dos artistas locais, percebe positivamente o
início do processo, pois se valorizava tanto o
A televisão penetra na intimidade das
elenco de atores das radionovelas, como
casas e abala a rotina. João Bosco5 percebe a
novos artistas que despontaram frente às
mudança nos hábitos familiares, na hora das
demandas do momento. Este fato se modifica,
conversas, das sessões de piano, das orações, e
posteriormente, com o advento das
a fartura do aconchego do lar.
programações importadas: os enlatados
diminuem o mercado de trabalho dos artistas
Antigamente nós tínhamos horários de
refeição muito definidos, meio-dia almoço,
locais:
jantar dezoito, em algumas casas nós
tínhamos a reza de terço e eu ia tocar
piano na sala, mas eu tinha muitos tios que Os programas de televisão realmente eram
ficavam conversando, sempre a conversa muito bem feitos, eram excelentes e era
ficava girando em torno de conversa do tudo feito aqui mesmo e ao vivo até
passado, então a família ficava muito mais começar a invasão dos programas que
próxima. Porque a televisão chegou vinham de fora. E quando começou essa
ninguém fala mais nada, fica só olhando, invasão nós perdemos a vez, a produção
as novelas, então abalou essa proximidade local praticamente deixou de existir
familiar. porque as emissoras de televisão têm
contrato com as geradoras dos grandes
centros, então o pessoal local não tem
A programação de TV é objeto de “muito a vez” na televisão.

polêmica. Bosco narra a precariedade dos


primeiros programas produzidos localmente e 6 Cleodon Romano de Medeiros Gondim (1940 −
Jurupari/Taraucá/AC/BR), jornalista, ator e cerimonialista.
Graduado em Filosofia e em Geografia. Como ator,
trabalhou em teatro, em cinema, em radionovela e em
5 João Bosco da Silva Castro (1940 − Belém/PA/BR), televisão. Premiado por suas atuações no teatro, participou
músico de formação, regente de coro, foi diretor do do filme Bye Bye Brasil e do premiado Araguaia: Conspiração
“Conservatório de Música Carlos Gomes” e da “Escola de do Silêncio. Fez inúmeras radionovelas na Rádio Clube e na
Música da Universidade Federal do Pará”. Entrevista: 2006. Rádio Marajoara. Entrevista: 2006.
4
antigos. Todos eles eu assisti de perto, porque
Hamburger (1998, p. 441-2), ao discutir
eu vivia também naquele meio, eu adorava, eu
a inserção da televisão no cotidiano das
gostava daquilo”.
pessoas, destaca que este bem de consumo é
A Rádio Clube e a Rádio Marajoara
uma forma de atualização das representações de
lideravam as intensas programações. A
uma comunidade imaginária, por meio da
Marajoara, aos domingos, realizava atividades
captura das imagens e das formas de expressão
que reunia canto, dança, saraus, piadas,
veiculadas, ainda que:
imitações, poemas, concursos, jogos de todos
Longe de prover interpretações os tipos, com a participação intensa do público
consensuais ela fornece um repertório
comum por meio do qual pessoas de e dos artistas locais que ali iniciavam suas
classes sociais, gerações, sexo e regiões
diferentes se posicionam e se situam umas carreiras como atores, animadores de
em relação às outras [...]. Ela como que auditórios, radialistas. Era uma festa para a
alimenta cotidianamente uma disputa
simbólica, uma corrida pelo domínio das criança e para o jovem. Cleodon Gondim relata
informações necessárias, um jogo de
inclusão e exclusão social. sobre o amadorismo do veículo e dos atores e
narra sobre a realização casual de seu sonho em
Anterior ao movimento televisivo, a era ser ator, simplesmente por falta de elenco:
do rádio marcou a vida das cidades brasileiras,
por ser um veículo de grande penetração local e Naquela época as mulheres não andavam
internacional, com as ondas curtas, médias e sozinhas, de maneira nenhuma para lugar
nenhum. Então, ela [uma amiga] tinha que
tropicais. Em todo o Brasil, artistas famosos se ir trabalhar na rádio e precisava de
alguém que a acompanhasse. E eu fui com
exibiam nos concorridos programas de ela e estava faltando gente no elenco do
capítulo que ia ser gravado, não tinha
auditório. Na Amazônia, apesar da distancia gente suficiente e eu fui fazer a
substituição. A partir desse momento,
dos grandes centros de desenvolvimento, o começou a realização do meu grande
mesmo fato acontecia. Em Belém, o da Rádio sonho. Alguns meses depois eu já estava
efetivamente no elenco da Rádio Clube.
Marajoara, situado no Largo de Nazaré, era um Trabalhamos muito tempo em
radionovelas. Depois veio a rádio
ponto privilegiado, com lotação para 600 Marajoara, tudo isso, não é? E eu fui
nesse rolo o tempo todo, fiz escola de
pessoas, segundo Nilza Maria7: “A Rádio teatro.
Marajoara ficava lotada quando traziam Dóris
Monteiro, todos esses atores antigos, artistas A narrativa de Cleodon Gondim conta
ainda sobre a qualidade do veículo, a
7
Nilza Alves Feitosa (1922 − Belém/PA/BR), consagrada linguagem utilizada e compara o tipo de rádio
atriz paraense, uma das damas do teatro paraense, atuou
ainda no rádio, no cinema e na televisão. Encenou peças feito no passado com o no presente. Antes, era
infantis, clássicos da dramaturgia nacional e internacional,
entre eles: Gil Vicente, Shakespeare, Coelho Neto. produzido pela elite e hoje pelo “populacho”, o
Trabalha no “Grupo de Teatro Experiência” a mais de que implica em uma discussão do tipo de
duas décadas. Além de atriz, é assistente de direção e forma
atores. Entrevista: 2006.
5
programação oferecida ao público, bem como o rádio, a gente fazia, mas novela,
processo de transposição, de alcance do rádio. propriamente dita, não havia autoria local”.
O mundo das radionovelas e
Antigamente o rádio era mais granfino,
tinha um nível cultural mais elevado, a telenovelas, as mudanças de paradigmas,
programação era muito mais erudita. Não
era como hoje, esse negócio muito fomentam a atividade teatral. Os artistas
popularesco. É o populacho, hoje em dia,
que faz o rádio. Desculpa-me não estou
migram dos estúdios das rádios e das tevês para
querendo criticar e nem derrubar o os palcos de teatros. Inaugura-se, em 1962, o
trabalho de quem faz hoje em dia, mas a
diferença realmente é muito grande. Serviço de Teatro da Universidade Federal do
Então, o rádio dominava, era dominante
porque era realmente o único meio de Pará (STUFPA), embrião da “Escola de
comunicação que existia até o começo da
década de 60. Teatro”8, com o curso de Iniciação Teatral,
dirigida pelo filósofo Benedito Nunes. Tudo
Nilza Maria entra na discussão, estava propício para a criação do curso, pois
compara os avanços e retrocessos em relação além do movimento oriundo da dramaturgia do
à era do rádio e a da televisão. Ela aponta o rádio e da televisão, o clima de estudos e
impacto da televisão como negativo para a debates, as premiações recebidas pelos grupos
cultura e os artistas locais e ratifica a questão paraenses, nos Festivais Nacionais de Teatro
do mercado de trabalho: “em pouco tempo Amador9, como os de Campina Grande, de
vieram os enlatados do Rio, as novelas Caruaru, de Arcozelo, no Rio de Janeiro,
gravadas, então dispensaram todo o elenco, fomentaram o movimento teatral.
da rádio e da televisão, e nós ficamos Nilza Maria relata sobre o convite feito
desempregados”. Coteja o fato com a era do pela direção do STUFPA para ela participar do
rádio, que valorizava o elenco local, embora curso de Iniciação Teatral, juntamente com
os dramaturgos fossem “de fora”. outros atores com experiência de radionovela,
As novelas vinham da Rádio Nacional, como Mendara Mariani, nome artístico de
da Rádio Tupi (CASTRO E LAMEIRA, Maria de Lourdes Martins, citada pela
2010, p.169-80), mas os atores que as intérprete. A atriz assegura que a partir daí
representavam eram de Belém. Cleodon deslanchou sua carreira e cresceu sua
Gondim explica sobre a ausência de uma visibilidade artística. Representou de
dramaturgia local para os novos veículos e Shakespeare a Geraldo Salles, autor do “Ver de
sobre as adaptações de clássicos para o rádio:
“Às vezes, fazíamos alguns programas 8 Hoje, a “Escola de Teatro e Dança”, mantém cursos de
especiais, com adaptações assim de grandes graduação nas duas áreas indicadas no título, recentemente
instituídos. O curso de formação de atores era de nível
obras de teatro que alguém adaptava pra médio.
9 Cabe ressaltar a importância do grupo “Norte Teatro

Escola”, coordenado por Benedito e Maria Sylvia Nunes,


pelos diferentes prêmios recebidos nesses festivais.
6
Ver-O-Peso”10, uma peça de linguagem popular impressionou, como a arte pode atingir até
a pessoa mais humilde.
e que, com mudanças pontuais, está em cena há
quase três décadas, fato inédito em Belém e Outras narrativas dão conta da agitação
raro no Brasil. que o teatro viveu nos anos 1960, considerados
Para corroborar com a voz que aponta pelos intérpretes, como os tempos áureos do
esse fervilhante ambiente cultural, Nilza Maria Teatro em Belém. E ainda sobre os festivais de
registra um fato sobre a apresentação do teatro, Cleodon Gondim relembra a peça A
espetáculo Senhora dos Afogados, em sessão Pena e a Lei, de Ariano Suassuna, escolhida
especial para o público composto por feirantes para representar o Brasil no “Festival de Teatro
do Ver-O-Peso. Ela conta que os ensaios Universitário” na Colômbia, que tinha como
aconteciam no Casarão da Feira, palco da presidente do júri Pablo Neruda:
trama, e que os feirantes não compreendiam
toda aquela movimentação, “daí xingavam com Nós tivemos uma convivência assim no dia
palavrões, a gente chegava nas janelas e eles a dia com Pablo Neruda, nos assistindo,
nos defendendo, votando em nós. E o
gritavam: ei seus vagabundos, vão trabalhar”. prêmio veio para o Estado do Pará, eu não
sei se está na “Escola de Teatro”, porque
Então, surgiu a proposta de convidá-los para quem deveria realmente guardar é Cláudio
Barradas, que, em minha opinião, é um
assistir à peça: dos maiores nomes do teatro. Eu considero
o Cláudio Barradas um gênio. Hoje em
Lotou, dava, não sei se cem pessoas ou dia, ele é padre, ele reside no município de
oitenta pessoas sentadas, não ficava Santa Izabel, mas ele foi durante muitos
ninguém em pé na hora que se fechava a anos, assim como você diz, um expoente no
porta, não entrava mais ninguém, lotou! teatro paraense.
Nós fizemos a apresentação da peça, era
uma hora, tu não ouviste um pio, um pio
assim ah! Não se ouviu de nenhum deles, Cláudio Barradas continua ator e diretor
daquelas oitenta pessoas que estavam lá,
eles ficaram entusiasmados,
de teatro, o sacerdócio não o afastou da
impressionados, eles nunca tinham visto, atividade teatral, dirige grupos de teatros
eles não sabiam o que a gente fazia lá em
cima, então na hora que eles viram eles criados por ele nas paróquias sob sua
ficaram mudos, mudos! No final é que eles
se levantaram e disseram: Bravo! Bravo! responsabilidade e ainda sobe aos palcos como
Aplaudiram, aplaudiram, aplaudiram, e
ficaram impressionados [...] A partir desse ator. Naqueles tempos de glória teatral, teve
dia não teve mais grito com a gente, não
chamaram mais vagabundos, mais nada... importância fundamental, encenando nos
foi uma das coisas que mais me palcos do cinema, rádio e televisão. As
memórias de Gondim sobre os festivais trazem
10 O mercado do Ver-O-Peso, tema da peça teatral, foi
construído em 1625 no porto do Pirí, assim chamado na destaque ao ator-padre:
época, como entreposto fiscal, para conferir o peso exato
das mercadorias e cobrar os respectivos impostos para a
coroa portuguesa. Conhecido como Ver-O-Peso, o
mercado abastece a cidade com variados tipos de produtos, “Veredas da Salvação”, que eu jamais me
que vão de gêneros alimentícios, ervas medicinais, esqueço do Jorge de Andrade. Direção do
artesanato, e outros, originários do interior paraense. Foi Cláudio Barradas. Foi este espetáculo que
candidato a uma das 7 Maravilhas do Brasil. participou pelo Pará do “Festival de
7
Arcozelo”, e que nós simplesmente que participavam, todas as roupas eram de
trouxemos todos os prêmios do festival, veludo negro ou veludo branco, todas as
sem faltar nenhum. Inclusive, eu fui um roupas era só veludo, um dia houve um
dos melhores atores do festival, nós incêndio, queimou tudo.
tivemos dois atores premiados: o próprio
Cláudio Barradas, que entrava como ator
e eu. Era um elenco numeroso, era muita Esse clima de encantamento do teatro de
gente, mas tudo recebeu o seu prêmio, a
cenografia, a música, o figurino, enfim, época contagia o público mais exigente e mais
tudo aquilo que constitui um espetáculo,
foi premiado. Então, é um dos que eu me experiente, que presencia o movimento com
lembro, não é?
empolgação. O poeta Alonso Rocha11,
frequentador assíduo dos espaços culturais da
Embora os atores apontem esse tempo
cidade, testemunha a qualidade do teatro
como áureo do teatro paraense, os espetáculos
paraense:
não se auto sustentavam, as bilheterias eram
fracas, pois as artes cênicas em Belém nunca
Foi quando assisti grandes teatrólogos
foram de apelo das massas, segundo os nacionais e internacionais, espetáculos de
qualidade. Por exemplo: o “Auto da Barca
intérpretes-atores. Para garantir os custos e a do Inferno” do Gil Vicente, o Martins
qualidade dos espetáculos eram necessários os Pena, “Tartufo” de Mollière. Assisti
peças do Shakespeare pelos atores da
mecenas. Uma das pessoas lembradas como Universidade do Estado do Pará. Até
então o teatro que vinha para Belém era
incentivadora e amante das artes é José da caça níquel, aquelas companhias que
precisavam ganhar dinheiro e as peças
Silveira Neto, reitor da Universidade Federal eram levadas para o gosto popular, que
eram geralmente comédias de fundo
do Pará, criador do Serviço de Teatro, já malicioso, para chamar público.
referido. Silveira Neto, abominado pelo
movimento estudantil universitário nos anos Contudo, apesar do elogio, Alonso
1960, tempo da ditadura militar, era admirado e Rocha critica os espaços das apresentações, que
reconhecido pelos artistas, pois a Universidade eram para a elite, assistia-se de terno e gravata.
arcava com os custos das produções teatrais, Ele narra sobre a sua transgressão de chegar ao
trazia diretores do sul do país para interagir teatro com melhor terno, mas sem a gravata
com diretores e atores locais. Gondin lembra obrigatória, denunciava: o povo não tem paletó,
saudosamente: é absurdo uma Universidade fazer teatro
apenas para aqueles que os têm.
Se você visse o cenário que foi da Hécuba
aqui em Belém, o Teatro da Paz, com
colunas gregas de palácio grego [...]. A
única época que foi áurea foi à época do 11
Alonso Rocha (1926 − Belém/PA/BR; 2010 −
Dr. José da Silveira, porque ele era
Belém/PA/BR), poeta, fez parte da Academia dos
apaixonado por teatro, ele liberava verba Novos que marcou época na vida literária de Belém.
da Universidade pra montar todas as Quarto Príncipe dos Poetas do Pará. Recebeu vários
peças que quisesse, foram peças troféus, medalhas e diplomas, resultantes de certames
belíssimas, teve uma peça que era poético. Como sonetista, é apontado como um dos
“Lágrimas aos montes no sepulcro da melhores dos últimos tempos e um dos maiores dos
amada” e eram uns vinte e oito ou trinta últimos cinquenta anos do Pará. Entrevista: 2006.
8
E cheguei no teatro sem gravata, quando Outro Benedito, o Nunes (1929-2011)13, coloca
entreguei o bilhete para o porteiro, ele
olhou para cima e o Benedito Nunes o Largo entre os monumentos identitários da
estava lá em cima. Ele como quem
consulta: o que eu faço? Por causa da Belém antiga, já perecido, recuperável apenas
gravata, porque eu queria provocar
escândalo: o meu propósito era ir para o
na memória individual e na fotografia. O
teatro e não me deixarem entrar: monumento perdeu a feição de feira e ganhou a
provocaria um pequeno escândalo para a
imprensa me procurar e eu dizer o porquê de mafuá, pois foi tragado por uma austera e
da Universidade estar fazendo teatro para
a elite. Mas me deixaram entrar, não ascética concepção da Festa de Nazaré, que
aconteceu nada. Terminou a peça, e fui lá
no camarim cumprimentar os atores, o vingou a partir dos anos 1970. A citação traz o
Benedito e a Sylvia. E eu disse: Benedito
aconteceu isso e isso... − Mas a culpa não lamento, o retrato de Belém antiga registrado
é nossa, é do regulamento do Teatro. − na memória do filósofo:
Mas você não acha que isso aí? Não sei se
isso influiu ou não.

Quando conheci o quadrilátero da praça,


Depois deste episódio, a próxima estreia com barraquinhas de comida, sorte e
divertimentos vários, além dos brinquedos
foi Tartufo de Molière e liberou-se a entrada mecânicos, como um carrossel e uma orla
giratória, já tinha sido remodelado: em
para todos: “aí que o Teatro da Paz terminou a cada canto um coreto para retreta, no meio
o pavilhão de Flora, de colunatas
exigência do paletó e gravata como item circulares, para recitativos e música, e, na
obrigatório para os frequentadores do teatro”, calçada fronteira ao templo, um relógio de
mostrador redondo encimado por uma
festeja o poeta. ornamentação floral a ferro, traço do Art
Noveau. Em torno da quadra, prosperavam
A história do teatro (dito) popular segue casa de espetáculo, cinemas e teatrinhos
(NUNES, 2006, p. 30).
outro roteiro. Benedicto Monteiro12afirma que
tinha duas formas de expressão completamente
Era nos cinemas, teatrinhos ou cines-
diferentes: “o teatro brasileiro, o teatro que nos
teatros, citados por Nunes, que os autos
todos conhecemos e aquele que se apresentava
populares se apresentavam, em um contraponto
no Largo de Nazaré”. O Largo, hoje Conjunto
com o espaço, ainda hoje, elitizado, do Teatro
Arquitetônico de Nazaré (CAN), espaço onde
da Paz, o espaço do cânone, como bem dizia o
se localiza a Basílica de Nazaré, relacionado à
escritor Benedito Monteiro. Aqueles locais
festa religiosa-profana do Círio de Nossa
abrigavam a grande força da criação paraense
Senhora de Nazaré, abrigava arraial e teatros.
que são os pássaros, os bois, a pastorinha, que
além do Largo de Nazaré, se apresentavam em
12 Benedicto Monteiro (1924 – Alenquer/ PA/BR; 2008 –
Belém/ PA/BR). Homem das letras e da política. Como outros locais da cidade:
político, foi duas vezes deputado federal e três, deputado
estadual. Cassado durante o Golpe Militar do Brasil, em
1964, dedicou-se ao mundo do Direito e à atividade que lhe
dava muito prazer: a literatura. Como escritor, escreveu 20 13 Benedito Nunes, ao escrever o ensaio Pará capital Belém
livros, entre romances e contos, especialmente. confessa tentar pagar uma velha dívida com Belém e com a
Consagrado, teve romances premiados, selecionado como geração daqueles que viveram entre 1940 e 1960. Então, ele
leitura do vestibular e roteirizadas para o cinema e teatro. diz fazer “um desenho a mão livre, o meu retrato de
Entrevista: 2005. Belém”.
9
Era incrível, eu assisti isso, os pássaros
entravam nas casas e era uma coisa Na minha época tinha alguns pássaros,
fantástica. Eles se apresentavam no Largo cordão não, cordão era mais no interior.
de Nazaré, na Praça Batista Campos, no Porque tu sabes que existem dois tipos de
Largo da Pólvora, eles se apresentavam espetáculo, não é? Existe o cordão e existe
durante o período todo, a festa junina era o melodrama fantasia. O que é o
geral, contaminava toda a sociedade, melodrama fantasia? É o teatro popular
Dançavam nas casas, no teatro, nas casas musicado. Os personagens entram cena,
eram convidados para dançar. Então, saem de cena, quantas vezes forem
traziam a vizinhança toda, é outro tipo de necessários. Já o cordão não, ele entra em
manifestação que infelizmente está fora do cena aí desenrola todinha a história, aí só
cânone. sai no final, por isso é um cordão.

Alonso Rocha refere-se aos pássaros Os cordões de bicho ou pássaros


como uma grande presença no imaginário constituem uma manifestação cultural bastante
amazônico. Explica sobre as personagens e o comum no Pará, há numerosos grupos na
enredo do melodrama: “Num determinado capital e no interior. Os cordões de bicho
momento o pássaro é morto pelo caçador e fica recebem a denominação do animal que
aquela consternação geral. Tem o índio, o pajé, representam, seja da água, da terra ou do ar:
a macumbeira, para ressuscitar o pássaro. Tucunaré, Jacaré, Periquito, Rouxinol, Tem-
Quando se consegue ressuscitá-lo, a alegria é tem. Em Belém, onde as representações de aves
geral. Tem a figura engraçada de um casal de predominam, é comum chamar-se de cordões
negros, que faz aquelas coisas cômicas”, de pássaros. Esta ópera cabocla, segundo
quadro conhecido como matutagem. Loureiro (2001, p. 316-339), funda-se em uma
Esta tradicional forma de expressão alegoria do hibridismo cultural, composta com
artística ainda se mantém nas periferias, onde, elementos da cultura indígena, presença
por iniciativa e dedicação de guardiões da essencial, europeia e negra, e em hibridismo
memória, mobiliza e organiza jovens em torno cênico, resultante das marcas deixadas pelo
desse espetáculo nitidamente amazônico. teatro de cada tempo.
Iracema Oliveira14 é “guardiã de pássaro”, Nesse aspecto, Benedito Nunes (2006,
responsabilidade e dom que recebeu de seu pai, p. 30), em concordância com os intérpretes da
repassada por seus antepassados, mas que se cidade, aponta a existência de um teatro de
renova a cada ano. Didática, ela faz a diferença tradição europeia e outro de tradição popular, e
entre pássaro e cordão: indica a bifurcação da plateia pela posição
social, e não cultural. Portanto, a possível
14 Iracema Oliveira (1937 − Belém/PA/BR), uma das oposição entre o erudito e o popular, diz
damas do teatro paraense, além de atriz é radialista. Sempre
ligada ao movimento cultural da cidade, especialmente os respeito à divisão da população urbana em
ligados aos saberes tradicionais. Como atriz, atuou em
radionovelas, telenovelas e no cinema. É Mestre da classes. As comédias de costume, de autoria de
Cultura, título concedido pelo Ministério da Cultura, e
responsável pela encenação de espetáculos juninos, escritores reconhecidos e as danças dramáticas
natalinos, entre outros. Entrevista: 2006.
10
folclóricas15, trazidas dos terreiros para os para o “Guarani”, pro “Íris”, se bem que
o som era horrível.
palcos, tiveram um renascimento erudito: nada
do que se apresentava nos teatros populares, O mundo da arte para Nilza Maria
como os do Largo de Nazaré, eram puramente sempre foi o teatro, entretanto era uma
populares. espectadora de filmes nos famosos cinemas da
A sétima arte sempre teve um público cidade. O pai a sensibilizou tanto para o teatro,
cativo, se consideramos o número expressivo quanto para o cinema, “era viciado na sétima
de cinemas que se espalhavam pela cidade, nas arte”, relembra. A atriz situa os cinemas do
áreas nobres e nas periferias. Os cinemas, para Largo de Nazaré, como Poeira, Nazaré,
além da função exibidora de filmes, eram Iracema e Moderno. A testemunha assiste os
palcos de músicos e cantores, peças teatrais, artistas que se apresentavam nestes palcos,
pastorinhas, pássaros, expressões culturais, especialmente durante as festividades do Círio
16
consideradas de “gosto popular”. Paulo Ricci de Nazaré, como os consagrados Emilinha
visualiza na lembrança estas salas de cinema, Borba, Marlene, Jararaca e Ratinho, o “Teatro
que hoje, destruídas ou modificadas, abrigam de Variedades”, a “Companhias de Teatro
supermercados, bancos, igrejas evangélicas, Rebolado”. Alonso Rocha cita também Vicente
edifícios: Celestino, Gilda de Abreu, Orlando Silva,

O “Olímpia”17, que era Teixeira Martins e Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira,


depois Severiano Ribeiro, o segundo em Francisco Alves, cantores das multidões.
luxo era o “Iracema”, “Poeira”,
“Guarani”, “Popular”, do Cardoso A música erudita e o canto lírico tinham
Lopez, tinha o “Moderno” e o
“Independência”, o “Íris”. Viviam certa visibilidade, embora não mobilizassem
lotados, os filmes estreavam no
“Olímpia”, a entrada era cara, depois iam grande público. Maria Lenora Menezes de
Brito18 ressalta que, à exceção do Teatro da
Paz, os salões lítero-musicais eram pequenos e
15 Nunes refere-se aos bois-bumbá e aos pássaros, que,
segundo ele, são oriundos das danças indígenas de bichos. mesmo assim não conseguiam lotação
16 Paolo Ricci (1925 – Luca/Toscana/IT; 2011 –

Belém/PA/BR), homem ligado às artes, foi artista plástico, completa. Cita como espaços da música erudita,
poeta, professor de pintura, advogado. Participou de cerca
de 50 exposições, entre coletivas e individuais, no Pará e os salões dos conservatórios e da Sociedade
em vários estados brasileiros e americanos. A poesia foi
uma manifestação temporã, foi membro da Academia
Artística Internacional (SAI). O piano tinha a
Paraense de Letras. Entrevista: 2006. preferência dos músicos eruditos da época, era
17 O Olympia é considerado o cinema mais antigo em

funcionamento no País. Fundado no dia 24 de abril de instrumento de consumo e também de


1912 pelos empresários Carlos Teixeira e Antônio Martins,
donos do Grande Hotel (onde hoje está o Hilton Hotel) e
do Palace Theatre (na mesma quadra). Eles queriam fazer 18 Maria Lenora Menezes de Brito (1935 −
do cinema um ponto “chique” para atrair os Belém/PA/BR), pianista, professora, dedica-se à música
frequentadores do Theatro da Paz e, obviamente, os erudita. Foi professora do “Conservatório Carlos Gomes”
hóspedes de seu hotel. Disponível em: e sua primeira vice-diretora nomeada. Atualmente é
<http://cinemaolympia.com.br/historia.html>. Acesso em membro da Academia Paraense de Música. Entrevista:
abril/2013. 2006.
11
decoração das salas das classes privilegiadas da fecho, pra não dar tempo de ninguém
respirar” [risos]. E, pra minha surpresa,
cidade, todavia para Lenora representava ninguém fez questão deste piano, parece
que as pessoas só queriam as joias, os
crescimento artístico. Ela estudou com a mestra móveis, os cristais e tanto que a minha
irmã disse o preço que nós tínhamos, ele
Eni Mendes Barroso Rebelo, no “Conservatório páh, bateu o martelo e fechou. Então esse
Carlos Gomes” e conta sobre as formas de piano de marca inglesa, eu toquei, aí todo
mundo já sentiu a diferença do toque,
tocar, os tipos de piano e seus sons: “A estudei muito neste piano.

professora Eni dizia: a Lenora tem muita


Como se percebe, nem sempre o piano
rapidez, muita clareza, mas não tem força no
era acessível aos estudiosos da música, pois são
piano, pra atacar um fortíssimo, precisa de um
até hoje instrumentos caros. Os estudantes de
piano mais sólido”. E continua a explicar que o
piano menos abastados têm sempre histórias
violão e o violoncelo quanto mais velhos,
que denotam o esforço para a formação.
melhor o som, mas o piano como instrumento
Guilhermina Tereza Nasser19, para fazer o seu
de percussão, desgasta pela batida do martelo,
curso, valeu-se dos pianos das casas dos
porque o movimento dele não é de fricção. Era,
amigos, que gostavam de ouvi-la. Relata: “fiz o
então, necessário um instrumento para estudar e
curso todo e tirei distinção, louvor, sem ter
tocar, assim a estudante ganha o primeiro piano
piano, naquela altura toda casa tinha um
da irmã Maria Rute:
piano, mas meu pai não tinha condição de
comprar um”.
Devo a Maria Rute, irmã mais velha, o
meu piano de cauda, que o meu primeiro Ainda na área da educação musical, o
piano foi muito modesto, de armário, lá
nessa primeira casa da Rodrigues dos canto orfeão marcava presença significativa nas
Santos, são casas geminadas, pequenas,
que a vizinha até brincou que quando o escolas do ginásio e do ensino secundário –
piano entrou a parede dela arriou um
bocadinho. A minha irmã, quando
pedagógico, científico, clássico –, as
passamos pra esta casa que era mais apresentações envolviam grande número de
ampla, viu um dia “Vende-se harmonioso
piano de cauda”, era um leilão na alunos. Os tradicionais “Colégio Estadual Paes
[av.]Governador José Malcher.
de Carvalho” e o “Instituto de Educação do

Com emoção e ironia, Lenora detalha Pará”, antiga “Escola Normal”, rivalizavam nas

sobre a aquisição de um novo piano na casa do apresentações públicas. No ofício de ensinar

leilão: nos cantos-corais escolares, os professores


Fomos à noite, o piano estava assim no Maria Luiza Vela Alves, Adelermo Matos e
estrado, com cortinas brancas assim, num
canto de sala, aquilo pra mim foi à glória,
aí, quando a gente tá saindo assim um
pouco desesperançada, vem um senhor do
19 Guilhermina Tereza Cerveira Nasser (1924 − Coimbra/
leilão e ela [a irmã] o conhecia. –“Viemos PT; 2010 − Belém/PA). Pianista, sempre se dedicou à
aqui ver aquele” - aí eu toquei no piano. música erudita. Trabalhou no Teatro da Paz (1974 − 1980)
com o maestro Waldemar Henrique. Ocupou cargos de
Ele gostou e disse: “quando eu falar
direção no Teatro da Paz e no Museu de Arte de Belém
piano, você dá o preço que você tem e eu
(MABE).
12
Maria Figueiredo tornaram-se referências República, que tinha sala de concertos com
fundamentais na memória dos orfeões. João frisas. Contudo, enfatiza que a plateia
Bosco acrescenta “ainda tinha a professora tradicional era a família de todo o alunado e,
Iolanda Zuline, porque tinha outras naturalmente, o público em geral, a entrada
professoras que trabalhavam na área do curso franca possibilitava boa assistência. A pianista
primário” e narra sobre as monumentais indica duas opções para o músico erudito −
apresentações da semana da pátria, que professor ou concertista: “Pra ser concertista
aconteciam em campos de futebol ou, até tem que ter um horário de oito horas por dia
mesmo, no consagrado Teatro da Paz. pra estudar, pra preparar o programa, fazer
João Bosco lembra a criação do “Coral cursos de aperfeiçoamento e se lançar”.
Ettore Bosi”, no fim da década de 1960 e Sobre os espaços de formação do
explica sobre o trabalho do coral, as músico erudito, além do “Conservatório Carlos
apresentações dentro e fora do Brasil. A Gomes” é citada a “Academia Alencar Terra”,
primeira viagem mais longa foi para o especializada no ensino de música, na década
Suriname, depois, já como regente, participou de 1950. Esta é a época do acordeom, relembra
de festivais internacionais em Porto Alegre, João Bosco, era moda as moças tocarem o
Florianópolis, fez concertos na sala Cecília instrumento. A música era também necessária
Meireles, no Rio de Janeiro. nas aulas de dança clássica. O professor e
Os espaços para a música erudita, como bailarino Augusto Rodrigues (1928)20 fez
já afirmou Lenora, eram o auditório da “Sala do escola na dança: “Dava aulas ali, na Presidente
Conservatório Carlos Gomes”, criado na gestão Vargas, logo no início, onde tem hoje o prédio
da professora Vera Alves, a “Sala Ettore Bosi”, da Receita Federal, lembra? Eu cheguei a
criado por João Bosco e o auditório da tocar pras aulas de balé do Augusto, onde a
Sociedade Artística Internacional, que Clara Pinto foi aluna”.
concorreram para formar plateias. No SAI, se Se por um lado, a música erudita lutava
apresentaram concertistas de renome, como por espaço, a música popular encontrava uma
Bidu Saião, Arnaldo Estrela Brasileiro, entre recepção maior do público. Pinduca, o Rei do
outros. Carimbó, ritmo cuja ancestralidade remete à
Guilhermina Nasser, além das salas de musicalidade negra e indígena na região
música já citadas, menciona as iniciativas de amazônica, explica sobre as orquestras do
entidades que convidavam músicos do século passado:
Conservatório para tocar em eventos. Cita
ainda como espaços de plateia, a “Assembleia 20 Considerado o iniciador do movimento da dança no
Pará, foi mestre de uma geração de bailarinos clássicos no
Paraense” e o Grande Hotel, na Praça da Estado. No momento da pesquisa, cuidava-se de
problemas de saúde, por este motivo não pode participar.
13
Tinham uma beleza marcante, pureza principalmente na Pedreira, Sacramenta.
musical, porque era tudo acústico, eram
orquestras, onde você podia ver um palco “Pegava aqueles terrenos bonitos, cheios de
com muitos músicos, todos bem vestidos,
aquela coisa bem organizada, tocando árvores, seringueiras e tal, era bonito, limpava,
acústico, enormes salões com pessoas
dançando, a orquestra tocava e um cantor
punha a orquestra pra tocar lá e olha, olha
cantava, um tempo muito bonito. aqui de gente dia de domingo”. Afirma que se
o músico tivesse disposição, trabalhava quarta,
Observam-se as mudanças tecnológicas
quinta, sexta, sábado, domingo, de manhã, à
nas gravações de música e nos suportes ao
tarde e à noite: “Músico neste tempo podia ter
longo desses anos. Pinduca revela possuir uma
família, bastava não ser beberrão”.
gravação da orquestra de Alberto Mota,
Se para o cinema, a música e o teatro
transportado do vinil para CD, gravado em dois
havia espaço, no campo das artes plásticas a
canais, enquanto “atualmente utilizam-se
carência era muito grande. Paolo Ricci relata
quarenta, oitenta canais, mesmo assim se
que em Belém não havia salões de exposição de
percebe a pureza da música”, diz o intérprete.
arte e que expôs seus primeiros trabalhos na
Nesta cartografia cultural da cidade
“Galeria Loureiro”, “mas era um amontoado de
mapeiam-se os espaços da arte, plenos de
telas sem nenhum critério de leitura, eram
sentido para os artistas. Registram-se o Teatro
quatro, cinco telas uma em cima da outra, era
da Paz e São Cristóvão, os cinemas, os cines-
horroroso, não tinha uma fileira pra fazer uma
teatros do Largo de Nazaré, o animado
leitura, era uma bagunça”. Ainda assim, Ricci
auditório da Rádio Marajoara, os salões
afirma a sempre boa receptividade de suas
musicais da Sociedade Artística Internacional
exposições de pintura e enumera espaços
(SAI), o “Ettore Bosio”, os clubes de subúrbio,
utilizados para tal finalidade, como os salões
como o Pedreirense, União e Firmeza, Imperial,
dos clubes, bibliotecas, e conta sobre a criação
lugares considerado da cultura de raiz. Além
das galerias Ângelus e Teodoro Braga:
dos espaços frequentados pela elite, como o
“Pará Clube”, o “Iate Clube”, a “Assembleia
As exposições antes eram feitas em
Paraense”, onde as orquestras de Orlando bibliotecas, na Biblioteca Pública e em
outros locais particulares. Na “Assembleia
Pereira, Lélio e seu conjunto e Alberto Mota Paraense”, aqui na Presidente Vargas, na
antiga sede social, lá se realizava as
animavam as noites. exposições de pintura das pessoas que
Pinduca esboça o roteiro musical do vinham de fora e mesmo as daqui. A
primeira abriu em 1966, foi à galeria
passado, onde percorre desde as pensões “nos “Ângelus”, pelo maestro Waldemar
Henrique, depois a “Teodoro Braga”. Eu
dias de domingo sempre tinha feijoada nas tomei minha primeira aula de pintura lá
nos salões da “Assembleia Paraense”,
pensões das madames”, até as quermesses, que depois eu resolvi seguir até hoje.
ocorriam em terrenos de bairros suburbanos,

14
As imagens dos encontros intelectuais, Encontrei aqui pessoas muito interessantes.
Paulo Mendes é professor de literatura,
especialmente do mundo literário, no “Café mas didático. Tem grande biblioteca,
conhece um bocado de coisas [...] sobre
Central”, que funcionava no Hotel Central, na cultura, é muito inteligente. É ótimo falar
com ele sobre livros dos quais a gente
década de 40 do século passado, foram gosta. Ele me emprestou os Cahiers de
lembradas por Paolo Ricci. Ele confessa a Malte, de Rilke, e pedaços escolhidos de
Proust [...]. Junto dele está mais ou menos
convivência com importantes pessoas desse sempre um rapaz cego que faz poesias.
Plínio, não sei direito o nome todo. Sabe
mundo na juventude. “Eles estavam sempre ali como Paulo Mendes descobriu ele? O
Plínio era aluno de Paulo Mendes e, como
pelos cafés da 15 de Agosto, atual Presidente ainda hoje se mostra, era calado e tímido,
impossível de se conhecer [...]. Pois um dia
Vargas, eu ensaiava uns poemas, mas mesmo o professor pediu aos alunos que
assim eu só comecei a fazer poesia de uns oito escrevessem sobre um tema de literatura e
lessem na aula. Todos escreveram sobre os
anos pra cá”. O grupo, que se reunia para clássicos temas de aula de literatura. O
Plínio surgiu com um estudo sobre as
discutir Literatura, Filosofia e Artes em geral, poesias de Lúcio Cardoso [...]. O professor
descobriu logo que o aluno fazia poesias.
era liderado por Francisco Paulo Mendes, Li umas duas. Entre as muitas palavras que
agora os poetas usam, há mesmo poesia.
professor de Literatura, responsável pela Ele fala de luar. “Durma ouvindo os teus
formação de escritores da chamada “Geração passos de anjo pela noite”. Serve
horrivelmente para um epitáfio e a ideia é
de 45”. Entre os participantes das reuniões de Paulo Mendes. Vou ver se o Plínio
conserva seu trabalho sobre suas poesias. –
estavam Benedito Nunes, Ruy Meira, Haroldo Seria bom você ler, não é? É sempre
curioso.
Maranhão, Max Martins, Mário Faustino, Paulo
Plínio Abreu e Ruy Barata, jovens estudantes
O mundo literário aparece nas
que escreveriam a história da arte moderna do
memórias de Cleodon Gondim, que narra com
Pará.
um brilho especial a vida do poeta Antônio
No Hotel Central, hospedou-se durante
Tavernard. O escritor era hanseniano e a
cerca de seis meses Clarice Lispector (2002, p.
família não permitiu seu internamento em
42-3), quando morou em Belém,
leprosários, daí viver isolado em uma espécie
acompanhando o marido, o diplomata Maury
de chalé construído de fundo do quintal, na
Gurgel Valente, em 1944. Ela comenta, em
Avenida Conselheiro Furtado, espaço apelidado
uma das suas cartas para Lúcio Cardoso, sobre
de “Rancho Fundo”. Lá, ele recebia os amigos,
o mestre Francisco Paulo Mendes, as leituras,
conforme narra Vicente Salles (1998, p. 24):
os livros que ele lhe emprestara, da forma de
ensinar. Ela fala também do poeta Paulo Plínio
Houve a roda notívaga do Rancho Fundo,
Abreu, em um texto que importa reproduzir roda de boêmios inteligentes e divertidos
[...]. Quanto aos companheiros mais
uma parte, como depoimento sobre a afetuosos, estes ali se reuniam para escutar
os violões, as modinhas, os madrigais, as
intelectualidade local: estrofes dos trovadores sentimentais da
cidade enluarada, em serenatas românticas,
ao claro luar tropical, que deliciavam o
15
poeta [...]. Era ali que com seus amigos paraense. Porém, o futuro do pretérito do “ter-
discutia literatura, problemas de arte, da
vida e da sociedade paraense, assunto em ser” indica a incerteza, nada foi comprovado e
que o poeta se informava com interesse. As
serenatas eram frequentes. O violão, nessas para se afirmar tal fato seria necessária uma
tertúlias, tinha grande destaque, tocado por
dedos hábeis. Era o instrumento predileto
pesquisa documental em fontes históricas,
de Tony e exercia sobre ele imenso como jornal de época.
fascínio.

Daí, até a mística da música do “Rancho


Um fato curioso relacionado ao escritor Fundo” lhe pertencer sem que saibamos,
realmente, se a autoria desta música lhe
Tavernard refere-se à ligação da composição pertencera (O professor Vicente Salles
teria levantado a hipótese de a letra de
“Rancho Fundo”, de Lamartine Babo e Ary “Rancho Fundo” ter sido escrita por
Antônio Tavernard, ou ter sido inspirado
Barroso. O Dicionário [Digital] Cravo Albin da nele, uma vez que a letra retrataria o drama
Música Popular Brasileira explica que o de um jovem exilado no Rancho Fundo.
Engraçado é que Rancho Fundo é nome de
referido samba-canção, lançada em 1931, por um chalé de madeira construído pela
família do poeta por uma questão de
Elisinha Coelho, “inicialmente se chamava Na segurança e higiene, uma vez que, à época
achava-se que a hanseníase seria altamente
grota funda e os versos eram de J. Carlos. contagiosa).
Lamartine gostou da melodia, mas achou que
esta merecia versos seus. E assim, com a O romancista Benedicto Monteiro
aprovação do parceiro melodista, nasceu o também evoca as poéticas. O autor de extensa
samba-canção No rancho fundo”. Todavia outra obra literária, que remete ao homem e à
versão desta história é contada na cidade de natureza amazônica, discute um tema
Tavernard. Cleodon Gondim, explica que o recorrente na literatura produzida na Amazônia
poeta teve o privilégio de receber Lamartine em diferentes tempos: a presença da cultura
Babo no seu Rancho Fundo, e lhe dedicou a indígena e mestiça e a discriminação contra o
música homônima. caboclo.
Eu me lembro bem que um dos que o
visitou foi o Lamartine Babo. E depois, tudo que nos temos em matéria de arte de
compôs uma música muito famosa e que criação vem de lá, tudo, tudo que nos
muito pouca gente sabe que foi feita em somos vem do indígena, nos somos uma
homenagem ao Tavernard: “No rancho civilização indígena e fluvial, nós temos
fundo/ Bem pra lá do fim do mundo / Um um povo mestiço que não existe igual no
moreno chora as mágoas / Com olhos mundo [...]. O pessoal olha o caboclo e
rasos d'águas”. Esse moreno é o pensa que ele não tem inteligência, que ele
Tavernard. não tem criatividade, o meu não, o meu
caboclo é inteligente como todos são.

Benilton Cruz comenta essa versão do


Como os demais militantes do campo
fato e observa a coincidência dos versos de
artístico, Benedicto Monteiro queixa-se da falta
Babo com a vida do escritor e, por causa da
de incentivo às publicações literárias. Lembra
verossimilhança, insinua a possibilidade da
que a cidade já teve uma grande editora
relação estabelecida entre o letrista e o poeta
16
especializada na publicação da poesia popular, remetem à musicalidade das expressões
do cordel, leitura de vasto público, com artísticas e reforçam a imagem de uma Belém
folhetos vendidos na feira do Ver-O-Peso, “que polifônica, onde se cantava nas praças, nos
é outra coisa que nós abandonamos. Nós clubes, nos auditórios, nos quintais, nas ruas -
tivemos grandes cordelistas aqui no Pará, marcadas pelos cantos de trabalho, os pregões,
como o Zé Vicente”. por meio dos quais os trabalhadores
anunciavam a venda dos mais diversos
Com a cortina entreaberta, anuncia- produtos, prática que a modernidade não
se um final... aboliu. Lia-se, discutia-se sobre arte,
frequentavam-se cinemas, cineteatros, teatros,
Assim pulsava a arte no cotidiano da atestam os artistas-intérpretes da pesquisa, e,
cidade amazônica, às margens da Baia do dependendo da classe social de pertencimento
Guajará, os testemunhos permitem também dos citadinos, se tinha acesso a este ou aquele
conhecer múltiplos sentidos que os intérpretes espaço, conforme Benedito Nunes (2006, p.
conferem aos espaços da cultura paraense, 30):
revelam comportamentos sociais de um tempo.
A bifurcação da plateia, mais social do que
A cidade de Belém, por certo, possuía nos cultural, e que também não se limita a opor
o erudito e o popular, exterioriza a divisão
meados do século XX, singularidades que a entre camada “alta” e a camada “baixa” da
população urbana, correspondente à sua
distinguia no cenário cultural nacional, cabendo estratificação, condicionada à desigualdade
explicá-la na lógica interna de uma cidade dos meios de vida.

amazônica, região de rios e florestas, cuja


A Belém poética dos meados do XX se
cultura nem sempre é contemplada em um
torna visível pelas práticas culturais cotidianas
projeto de explicar a nação.
e pelas sociabilidades que se formaram por
As memórias desvelam aspectos do
meio de expressões artísticas como o teatro, a
cotidiano da cidade, lugares singulares e
música, as artes visuais, a literatura. Os que
simbólicos, que possibilitam a compreensão da
cantam a cidade trazem a sensibilidade do olhar
semelhança e da diferença, de uma identidade
vivido, carregado de saudades, de afetos, de
amazônica instaurada por vozes e vivências de
desafetos, de sentimentos e ressentimentos.
sujeitos concretos, que atuaram e construíram
Para Pesavento (2008, p. 3), estes “são nossos
signos poéticos “por meio de seus fazeres e
pontos de ancoragem, que integram esta
saberes que os constroem e constroem
comunidade simbólica de sentidos, a que se dá
igualmente os espaços, tornando-os lugares de
o nome de imaginário”.
sociabilidades e vivências”, conforme explica
Venize Rodrigues (2011, p. 5). As narrativas

17
Referências
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Sobre as autoras:
Josebel Akel Fares
Doutora em Comunicação e Semiótica:
Intersemiose na Literatura e nas Artes (PUC-
SP, 2003), com estágio Pós-Doutoral em
Educação (PUCRS, 2012). Professora titular
em Literatura da Universidade do Estado do
Pará/ Departamento de Língua e Literatura e
Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGED). Coordena o Núcleo de pesquisa
Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA-
UEPA).

Venize Nazaré Ramos Rodrigues


Historiadora, com mestrado em Ciências da
Educação: Docência na Educação Superior
(Instituto Pedagógico Latino Americano e
Caribeno, 2000). Professora assistente IV e
coordenadora do curso de graduação em
História da Universidade do Estado do Pará.
Filiada à Associação Brasileira de História
Oral, e à Associação Nacional de Professores
Universitários de História.

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