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M Á S A LL Á DE U NA DEMO C R AC I A DE E SPEC TA D OR E S
Sugerencia de citación:
Pereira, M. (2016). Para além de uma democracia de espectadores. Razón Crítica, 1, 148-169,
doi: http://dx.doi.org/10.21789/25007807.1140
** Advogado. Mestre em Direito de Estado pela Universidade da Amazônia – Unama. Doutorando em Sociologia
pela Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra. Professor de Ciência Política e Direito Constitucional pela
Estácio/FCAT – Faculdades Integradas de Castanhal. Ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção
Castanhal/PA (Brasil). Correio eletrônico: marcelopereira1205@gmail.com.
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RE SUMO
PALAVRAS-CHAVE:
democracia, capitalismo, cidadania, participação, emancipação.
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RE SUMEN
PALABRAS CLAVE:
democracia, capitalismo, ciudadanía, participación, emancipación.
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A B STR ACT
KEYWORDS:
democracy, capitalism, citizenship, participation, emancipation.
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I N T RODUÇÃO
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da democracia, na visão de Amartya Sen (apud Avritzer &
Santos, 2003, p. 01), ao vivencia-la como um desejo coletivo
irrefreável que se espalha “verbalmente através do globo […]
colecionando amigos e inimigos e alistando forças de modo
a lhe garantir uma preponderância provisória nos cenários
em que ela conquista ascendência” (Dunn, 2014, p. 189).
Em leitura ao percurso da democracia no século XX,
Avritzer e Santos (2003, p. 01) afirmam que esse período
histórico “foi efetivamente um século de intensa disputa
em torno da questão democrática”, ora com debates sobre a 2. Em palestra proferida
XVIII Congresso
desejabilidade da democracia, ora com discussões em torno de Mundial de Sociologia da
suas condições estruturais. International Sociological
Association (ISA),
Quando Burawoy (2015) incita seus pares à construção de ocorrido em Yokohama,
Japão, entre 13 e 19
uma sociologia global que possa atender a questão da temática de julho de 2014.
da desigualdade na atualidade2, menciona como pano de fundo 3. “Os movimentos
sociais respondem
a sua reflexão uma onda de movimentos sociais entre os anos de criando novas formas
2010-2014, com destaque a revolução de 25 de janeiro no Egito, de democracia direta ou
participativa, que têm
que levou a queda de Hosni Mubarak, as revoluções na Líbia, um foco geográfico bem
concreto, geralmente
Iêmen, no Bahrein, na Síria, o desastre ambiental no Japão, o o controle de algum
do Indignados em Portugal, e o 15 de março na Espanha, o espaço simbólico –a
Praça Tahrir, no Cairo;
Golden Dawn, na Grécia, dentre outros, que guardam entre a Praça Taskim, em
si uma mútua influência, já que está globalmente conectada. Istambul; o Zucotti
Park, em Nova York; a
Embora se apresentem com dinâmicas distintas, em vista Praça da Catalunha, em
Barcelona, etc. A mídia
de seus panoramas nacionais, carregam consigo um simbolismo: social pode ter criado
as concentrações ocorriam em espaços públicos centrais de suas um apoio delineável,
mas o coração desses
cidades –notadamente as praças3 –, o que indicava um espírito movimentos reside
nas assembleias que
democrático em suas exortações, numa horizontalização de suas controlavam tais
energias, com a dissolução de qualquer estrutura hierarquizada espaços urbanos”
(Burawoy, 2014,
de poder, e que apontam em direção a “uma consciência diferente, pp. 157-158).
uma noção de possibilidade diversa, uma crítica do existente
como sendo não natural e tampouco inevitável e, com ela,
uma nova política informal” (Burawoy, 2015, p. 158).
Por sua vez, Todorov (2012) registra que a ideia de
democracia no início do século XXI passa a reluzir com mais
intensidade em redutos outrora improváveis, como a China,
Cuba, os países do leste europeu e, mais recentemente, os
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I. As sociedades pós-guerras e o espírito do
novo capitalismo, por Richard Sennett
Richard Sennett (2006), em estudo sobre as sociedades
pós-guerras mundial, procura revelar o espírito que a
emoldura, e identifica que a alma dessas comunidades
contemporâneas é embevecida pela cultura do que se
convencionou chamar de um novo capitalismo, e diz-nos
que a separar o novo do velho talvez o sinal que melhor
traduzisse o contraste seja o papel da globalização, que forja
um cenário de redes interligadas em uma economia global,
com inovações na área da tecnologia de comunicações
e transportes, com a presença das grandes corporações
multinacionais, que passam a assumir compromissos que
não se resumem a identidade nacional, e que acabam por
mudar a forma dos relacionamentos humanos.
O velho capitalismo, segundo Sennett (2006), seria o
capitalismo social pensado por Max Weber6, de inspiração
militarista e de estrutura piramidal, e cujos elementos de 6. Uma estrutura que
substituiria a fluidez do
identificação centravam-se na paz e na segurança social capitalismo primitivo, pela
(prevenção à revolução), evitando-se o tumulto e a revolta, estabilidade do capitalismo
social, assegurando a
mas que assegurava a estabilidade, e igualmente o lucro. longevidade dos negócios
e aumentando o número
A racionalização da vida é a marca indelével do de empregados, estrutura
capitalismo social, em um processo de formação pessoal na qual, “assim como nos
exércitos, todos tinham
que prepara o jovem para o encaminhamento de toda uma seu lugar e cada lugar
a sua função definida”
vida, com a possibilidade de planejamento (como carreiras (Sennett, 2006, p. 27),
e posses, p. ex.) como seu elemento vital, e que revelava e mediante a evocação
de princípios típicos
a sua preocupação com a questão da administração do dos militares, como
tempo, de longo prazo, cumulativo e previsível. campanha de investimento,
pensamento estratégico e
Ao dispor a estrutura na forma de uma pirâmide, análise de resultados, em
que cada um compreendia
planeja-se simbolizar que a cadeia de funções teria uma a sua função e importância
ordem impressa, uma rede de comando que fluía de cima no empreendimento.
para baixo, em que cada posto, cada parte teria uma função
pré-definida, e que cabia a cada um a função que lhe fosse
própria e, portanto, realizadora de justiça social, uma vez
que abrigaria em seu seio o maior número de pessoas,
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não era mais traduzida na estabilidade das relações, mas
na capacidade dinamismo, de mudança e, nesse cenário,
as pessoas deveriam reinventar-se continuamente, ou
pereceriam nos mercados9.
Desse modo, a mudança no processo capitalista é
embalada pelo desenvolvimento de novas tecnologias de
comunicação e transportes, o que simplifica a comunicação
entre os diversos setores da sociedade e da própria empresa,
e institui ainda à automação no processo de produção, com
a dispensa de homens para a realização de tarefas rotineiras, 9. “A medida que se
dissemina a automação,
com a inversão, portanto, da ideia da inclusão estimulada recua o campo das
pelo capitalismo social, como mecanismo de justiça social. capacidades humanas
pré-determinadas […]
Nesse novo cenário, o desenvolvimento linear é Também aqui temos a
nova individualidade
substituído por uma predisposição mental capaz de idealizada. Um indivíduo
permitir a flexibilização10, inclusive com a possibilidade constantemente
adquirindo novas
de realização de tarefas por pessoas estranhas a fisiologia capacitações, alterando
sua base de conhecimento.
da empresa (terceirização), na chamada dessedimentação Na realidade, este ideal
institucional. Por outro lado, esse sequenciamento não é impulsionado pela
necessidade de manter-se
linear, influencia na própria densidade da estrutura, à frente das máquinas”
(Sennett, 2006, pp. 46-47).
que passa a ser de natureza volátil, ora a incluir, ora a se
10. Diferentemente da
contrair, a medida que a empresa transita de uma função simbologia piramidal
a outra (causalização). presente na estrutura
do capitalismo social,
Por esse conjunto de fatores –sequenciamento não para o Richard Sennett
(2006) a melhor imagem
linear, dessedimentação institucional e causalização, que que representaria
constitui a espinha dorsal da nova arquitetura institucional–, a nova página do
capitalismo seria um
impõe-se ao homem o desenvolvimento de outras tocador de MP3, por
indicar a ideia de uma
capacidades, já que não mais se espera dele uma atitude organização flexível,
passiva de conformismo, mas de própria pró-atividade, em e não mais formatada
por um conjunto pré-
situações tão ambíguas como a que oferece esse cenário de ordenado de atos.
intensa flexibilidade organizacional.
Outro fator decorrente da nova página do
capitalismo é a questão do sentido de autoridade que se
torna essencialmente impessoal e, por isso, apresenta-
se com baixa identificação, com a falta de confiança
dos subordinados em relação aos postos de comando.
Sobrevive o controle, mas com menos autoridade.
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no seu próprio funcionamento, “visto serem necessárias
à produção e ao desenvolvimento dos mercados, onde
a liberdade de ação e de empreender imbrica a própria
estrutura do capitalismo” (Ferreira, 2014, p. 236).
Desse modo, a inteligência e sutileza desse sistema
é que, em vez de subjugar o homem ao seu império,
seduz, motiva e otimiza as suas ações, consentindo-as e
satisfazendo-as, em uma ilusão que, em vez de torná-los
submissos, torna-os dependentes. E assim procede sem
que se apresente qualquer resistência, já que pelo fato
do homem explorar a si próprio o fracasso não pode
ser atribuído ao outro, o que inibe o oferecimento de
resistência ao sistema, senão cobrar de si os resultados do
insucesso de seu empreendimento, e “esta auto-agressão
(sic) transforma o explorado, não em revolucionário, mas
em depressivo” (Han, 2014, p. 16).
Em sua leitura sobre esse novo tempo, Bauman
(2001) define-o como o tempo da modernidade liquida,
e vale-se da metáfora da liquidez para descrevê-la como
uma época de volatilidade e incertezas; de um tempo de
referenciais morais fragmentadas; um espaço que se rende
ao consumo e a artificialidade das relações entre pessoas
e com as instituições; de se apreciar o que é descartável
e belo; o que é pueril e fluído. Um cenário que leva o
homem ao estado de conformidade total, um espectador
cômodo de sua própria vida. Que vê e participa do mundo
no anonimato da vida digital. Um vigilante passivo e
integrado na rotina incessante das informações.
Para Debord (2003, p. 14) é o tempo das sociedades
do espetáculo, “em que o espetáculo não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediatizadas por imagens”. O tempo espetacular como o
tempo de consumo das imagens, “em que tudo o que era
diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”
(Debord, 2003, p. 121).
O tempo do novo capitalismo descobre a psique
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11. “A forma de poder do como força produtiva, e ocorre pela razão de que não se
regime neoliberal constitui
a realidade não vista pela ocupa mais com a produção dos objetos físicos, mas com a
análise foucauldiana de
poder. Foucault não vê nem
criação de produtos não físicos, imateriais. Desse modo, ao
que o regime neoliberal contrário do panoptismo de Foucault em que o dispositivo
de dominação acapara
totalmente a tecnologia do de controle domestica o corpo enquanto parte de uma
eu, nem que a otimização biopolítica, que engendra a obediência a um sistema de
de si permanente, enquanto
técnica do eu neoliberal, normas, nas sociedades da informação, o panoptismo não
não é outra coisa senão uma
forma de dominação e de é mais do corpo, mas sim da mente11, não é mais físico, mas
exploração eficaz. […] A sim digital, como uma espécie de psicopanoptismo12.
técnica de poder do regime
neoliberal adota uma forma O espirito do novo capitalismo não se interessa mais
subtil. Não se apodera
diretamente do indivíduo. somente do corpo, do biológico, do somático, do corporal.
Pelo contrário, procura Ela apropria-se da alma13. O poder no neoliberalismo retira
assegurar que o indivíduo
aja de tal modo que do homem a capacidade de plena compreensão do mundo
reproduza por si próprio
a estrutura de dominação
que o cerca, pois que tudo passa a ser subterfugio do próprio
que interpreta como sistema de dominação, que estimula o homem servir-se de
liberdade. A otimização
de si e a submissão, a si próprio, em nome e em razão dos objetivos do capital.
liberdade e a exploração
coincidem aqui plenamente”
Inserto nessa “miragem essencial do neocapitalismo”,
(Han, 2014, pp. 37-38). segundo Santos (2013), retira-se do homem a condição de
12. “A técnica ortopédica
do poder disciplinar é
percepção das próprias injustiças e irracionalidades dessa
demasiado grosseira para sociedade capitalista, e com isso propor “uma sociedade
penetrar nas camadas
profundas da psique e totalmente distinta e melhor que esta” (Santos, 2013, p. 151).
nos seus anseios ocultos,
as suas necessidades e
Essa falta de protagonismo do homem, tolhido em
os seus desejos, e acabar sua autonomia, e na sua capacidade de percepção dos fatos
por apoderar-se delas”
(Han, 2014, p. 30). e do mundo, enaltece o que Santos (1998) batiza de crise
13. “O regime disciplinar, do contrato social da modernidade, cuja legitimação se
segundo Deleuze,
organiza-se como um
estabelece pela tensão existente entre inclusão e exclusão
‘corpo’. É um regime e, como consequência, verifica-se a perda de sentido e de
biopolítico. O regime
neoliberal, pelo contrário, atitudes proativas na luta pelo bem comum e por alternativas
comporta-se como alma.
Daí que a psicopolitica seja
de bem comum, como sendo igualmente uma crise do
a sua forma de governo. pensamento estratégico de emancipação, ao mencionar que
Esta ‘institui entre os
indivíduos uma rivalidade “à medida que a trajetória da modernidade se intensificou
interminável sob a forma com a trajetória do capitalismo, o pilar da regulação veio a
de competição saudável,
como uma motivação fortalecer-se à custa do pilar da emancipação num processo
excelente’. A motivação,
o projeto, a competição,
histórico não linear e contraditório” (Santos, 2013, p. 188).
a otimização e a iniciativa A confusão da sociedade civil e do mercado em
são inerentes às técnicas de
dominação psicopolítica um único espaço ilude-nos em nome da liberdade, e a
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ideia de um ambiente livre é sempre tentadora, pois do regime neoliberal”
(Han, 2014, p. 28).
encaminha-nos na percepção de que somos nós os 14. “O neoliberalismo
protagonistas de nossas próprias escolhas, e a possibilidade transforma o cidadão em
consumidor. A liberdade
de fazê-las, direta e pessoalmente, nos torna mais vivo, do cidadão cede ante
já que em nós pulsaria a própria essência da vida. a passividade do
consumidor. O votante,
E a transparência, uma ordem artificial, que enquanto consumidor,
não tem interesse
rejeita a ambivalência, e em que tudo há de ser claro e real pela política, pela
límpido (Bauman, 1991), e por isso tão aclamada pela configuração ativa da
comunidade. Não está
contemporaneidade, antes de reafirmar a autonomia disposto nem capacitado
para a ação política
do homem em relação aos fatos da vida, retirar-lhe a comum. Limita-se a
capacidade cognitiva, com a uniformização de práticas, reagir de forma passiva à
política, protestando e
atitudes e pensamentos, instituindo um “inferno dos queixando-se, do mesmo
modo que o consumidor
iguais” (Han, 2012, p. 12), devido à diminuição da perante as mercadorias
capacidade humana para interagir ativamente com o e os serviços que
lhe desagradam”
universo que a cerca. (Han, 2014, p. 19).
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não apenas na ideia de quem exerce o poder, ou em nome 18. A equação democracia
= ilimitação = sociedade
de quem esse poder é exercido, mas, principalmente, que sustenta a denúncia
dos ‘crimes’ da democracia
nas formas de participação do homem nos assuntos pressupõe, portanto,
de interesse geral, com a criação de instrumentos que uma operação tripla: em
primeiro lugar, reduzir
permitem sua efetiva contribuição à formação da a democracia a uma
vontade coletiva que irá reger a vida em sociedade. forma de sociedade; em
segundo lugar, identificar
Quando se verifica esse aspecto do ideário essa forma de sociedade
com o reino do indivíduo
democrático da atualidade, deparamo-nos com o fato igualitário, subsumido
nesse conceito todo o tipo
de que o grau de participação efetiva do cidadão nos
de propriedades distintas,
processos decisórios nas democracias modernas é cada dia desde o grande consumo
até as reivindicações dos
mais diminuto, reduzido unicamente ao sufrágio, sendo direitos das minorias,
que, “o sufrágio, que hoje é considerado o fato mais relevante passando pelas lutas
sindicais; e, em terceiro
de uma democracia, é o voto dado não para decidir, mas sim lugar, atribuir à ‘sociedade
individualista de massa’,
para eleger quem deverá decidir” (Bobbio, 2003, p. 245). assim identificada com a
A naturalização da matriz representativa da democracia, a busca de um
crescimento indefinido,
democracia, de inspiração liberal, em que “a cidadania inerente à lógica da
economia capitalista”
abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o (Rancière, 2014, p. 31).
seu exercício reside exclusivamente no voto” (Santos, 19. No Brasil, o aumento
no preço das passagens
2013, p. 190) conduz à passividade política dos cidadãos. de ônibus deu início
Por sua vez, Rancière (2014, p. 43) diz-nos que “a as manifestações de
2013, e que tiveram seu
vida democrática torna-se a vida apolítica do consumidor estopim após uma forte
repressão policial contra
indiferente de mercadorias”, e que o poder de governar os manifestantes de São
limita-se a servir de “fiador dos ‘pequenos prazeres’ que Paulo, assim, o movimento
ganhou proporções
pagam nossa grande aflição de órfãos condenados a vagar maiores, com repercussão
pelo império do vazio, o que significa indiferentemente em todo o país, com gritos
em uníssono de “não” a
o reino da democracia, do indivíduo e do consumo” situações que ocorriam no
país eclodiram de várias
(Rancière, 2014, p. 46). capitais. Caminhadas em
Para Rancière (2014) é preciso transcender a busca de explicações sobre a
Copa do Mundo no Brasil,
identificação da democracia como um mero estado de sobre os gastos públicos,
sobre a corrupção, sobre
sociedade18, como um reino do indivíduo igualitário, os serviços públicos de
que se porta diante de diferentes fenômenos como um má qualidade foram
algumas das pautas da
“consumidor democrático embriagado de igualdade”19, reivindicação. Os cidadãos
queriam soluções, respostas
e que se identifica “conforme o humor e as necessidades às perguntas que se
da causa, com o assalariado reivindicativo, com o encontravam soterradas.
Inclusive, é interessante
desempregado que ocupa os escritórios da Agencia ressaltar que tais
reivindicações não eram
Nacional para o Emprego ou com o imigrante ilegal
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específicas, pelo contrário, confinado nas zonas de espera dos aeroportos” (Rancière,
eram múltiplas as
demandas que a população 2014, pp. 41-42)20.
exigia num único protesto,
o que talvez demonstre a Ver a democracia com esta fisionomia é compreendê-la
natureza e a forma dessas como um espetáculo, que fomenta no espectador uma atitude
manifestações como
daquelas inseridas em um apática em relação aos temas de interesse comum, pois que
corpo de reivindicações
difusas, e próprias de um
está mais interessado em realizar seus desejos privados e
consumidor insatisfeito egoístas, o que acaba por ensejar a “identificação solidamente
com os serviços que
lhe são oferecidos. estabelecida entre o homem democrático e o indivíduo
20. Na mesma perspectiva é consumidor” (Rancière, 2014, p. 36).
a observação de Byung-
Chul Han quando diz: “A É a instituição de uma democracia de sufrágios, ou uma
transparência que se exige democracia de espectadores, em que no espirito e no ambiente
dos políticos é tudo menos
uma reivindicação política. que anima os regimes democráticos hodiernamente, o poder
Não se exige transparência
perante os processos transforma o homem, não mais em submissos, mas em
políticos de decisão, pelos dependentes.
quais nenhum consumidor
se interessa. O imperativo Nessas democracias de sufrágios submergimo-nos
da transparência serve
sobretudo para expor à falsa compreensão de que a democracia se resume no
os políticos, para os comparecimento periódico às urnas, para escolha de
desmascarar, para os
transformar em objeto de nossos representantes21. Enquanto que nas democracias de
escândalo. A reivindicação
da transparência pressupõe
espectadores vivemos uma alienação estimulada, que nos
a posição de um espectador põe em cômoda posição de observadores, diante de um
que não se escandaliza.
Não é a reivindicação de enredo que nos passa a vista, a nos contar uma história em
um cidadão com iniciativa, que somos o protagonista.
mas a de um espectador
passivo. A participação Para Santos (2013), a construção de uma nova teoria da
tem lugar sob a forma de
reclamação e de queixa. A democracia parte da “formulação de critérios democráticos
sociedade da transparência, de participação política que não confinem esta ao acto de
habitada por espectadores
e consumidores, funda votar” (Santos, 2013, p. 225), o que necessariamente implica
uma democracia de
espectadores” (2014, p. 20). na ampliação do próprio campo político, que não mais poder
21.“[…] Hoje, os Estados ficar restrito ao espaço da cidadania, “como o espaço político
democráticos são
governados, embora em
segundo a teoria liberal” (Santos, 2013, p. 226)22.
diferente medida, por Uma nova gramática da democracia perpassa pela
meio de democracias
representativas, só em intensificação de um discurso argumentativo que agregue em
alguns casos combinados
com elementos de
si o estimulo à participação, com o incentivo a outras formas
democracia direta, como o de manifestações democráticas para além da representativa23,
referendo. O mecanismo da
representação é a tal ponto e até mesmo para além dos tradicionais movimentos sociais.
constitutivo da democracia Mas como uma atitude que principia na consciência de que
moderna que, quando se
diz que os Estados Unidos a responsabilidade participativa é um compromisso a ser
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vivido desde as mais singulares interações sociais (que ou a Itália são países
democráticos, subentende-
envolvam pessoas e pessoas e coisas, como a preservação se que a democracia neles
existente é representativa”
de bens públicos e à própria natureza, p. ex.) até as mais (Bobbio, 2003, p. 235).
complexas questões sociais24. 22. “A nova teoria da
democracia –que também
A manutenção desse status quo ofende a dignidade poderíamos designar por
democrática, centrada na consciência plena das liberdades teoria democrática pós-
moderna para significar a
humanas, e essa se manifesta não apenas no exercício sua ruptura com a teoria
democrática liberal– tem,
dos clássicos direitos de liberdade, mas principalmente no pois, por objetivo alargar
estímulo ao desenvolvimento da aptidão natural do ser e aprofundar o campo
político em todos os
humano em participar mais ativamente de seu próprio espaços estruturais de
destino25, do de toda a coletividade com a qual convive, interação social” (Santos,
2013, p. 231).
e do ambiente social e natural no qual habita, que nada 23. É a ideia de
mais seria senão uma extensão de sua compreensão como demodiversidade,
entendida como a
pessoa humana. “coexistência pacífica ou
conflitual de diferentes
Os exemplos mencionados no início desse texto modelos e práticas
sinalizam que aquela emergência da democracia ainda democráticas” (Avritzer
& Santos, 2003, p. 22).
persiste, e é, portanto, preciso saber ouvir os sinais, e elas já 24. “A força da
ecoam com força e vigor nas ágoras modernas (praças, ruas, globalização contra-
hegemônica no domínio
universidades, redes sociais, etc.), ciente de que a democracia da ampliação e do
aprofundamento da
é um projeto em permanente desenvolvimento26, que não democracia depende em
nascera com a pretensão da perfeição, e nem da construção boa medida da ampliação
e aprofundamento de
de uma nova sociedade, “cujos elementos seriam formados redes nacionais, regionais,
no próprio seio da sociedade atual” (Rancière, 2014, p. 121), continentais ou globais de
práticas locais” (Avritzer &
mas que precisa ser descoberta a partir dos fins que pretende Santos, 2003, p. 24).
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novo senso comum, em que essa nova cidadania se trabalho, a terra,
o dinheiro e o
constitua e se desenvolva tanto na “obrigação política conhecimento, e no
nosso caso, a liberdade.
vertical entre os cidadãos e o Estado como na obrigação
29. “À medida em
política horizontal entre os cidadãos. Com isto, que a modernidade
revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a ocidental, enquanto
paradigma sócio-cultural,
ideia de igualdade sem mesmidade, a ideia de autonomia reduziu as possibilidade
de emancipação à
e a ideia de solidariedade” (Santos, 2013, p. 233). compatíveis com
o capitalismo, o
Uma cidadania emancipatória é uma cidadania que
conhecimento-regulação
atende a um olhar de mundo até então excluído, e que, adquiriu uma total
preponderância sobre
conforme Santos (2003) seria construído pelo estímulo o conhecimento-
a uma epistemologia adequada, alicerçada na ideia de emancipação e
neutralizou-o, convertendo
justiça social a partir de uma justiça cognitiva, que a solidariedade numa
forma de caos, e, portanto,
reconhece o valor do conhecimento emancipação (em de ignorância e o
que a ignorância é concebida como colonialismo e o saber colonialismo numa forma
de saber e, portanto, de
como solidariedade) em detrimento do conhecimento ordem […] Convertida
em conhecimento uno
regulação (em que a ignorância é concebida com um e universal, a ciência
caos e o saber como ordem)29, a que caracterizou de moderna ocidental, ao
mesmo tempo em que se
pensamento pós-abissal inserido em uma Epistemologia constituiu em vibrante
e inesgotável fonte de
do Sul, na medida em que reconheceria a diversidade do progresso tecnológico
mundo como algo inesgotável, e não limitada unicamente e desenvolvimento
capitalista, arrasou,
à compreensão ocidental do mundo, e, no nosso caso, de marginalizou ou
democracia liberal representativa, pois que “a negação de descredibilitou todos
os conhecimento não
uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que científicos que lhe eram
alternativos, tanto no
constitui a condição para a outra parte da humanidade Norte como no Sul.
se afirmar enquanto universal” (Santos, 2007, p. 10). Tenho designado
este processo como
Por óbvio que não se está a promover uma epistemicídio (1998c:
208)” (2010, p. 143).
inquisição do regime representativo de democracia, que
ainda tem seu valor e sua importância, mas um convite
a repensar a sua estrutura atual, agonizante em suas
próprias limitações, abrindo-se espaço para a criação
de um ambiente dialógico, que estimulem a consciência
para uma maior participação do povo nas tomadas de
decisões, compartilhando com os representantes eleitos
a responsabilidade com os destinos de sua nação, uma
virtude que há de ser permanentemente estimulada,
como uma ínsita condição de sua soberana liberdade.
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Referências bibliográficas
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globais a uma ecologia de saberes. In Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, pp.
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