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R A Z Ó N C R Í T I C A N O . 1 A B R . - S E P T.

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PA RA A LÉM DE UMA DEMOCRACIA


DE ESPECTA DORES*
Marcelo Pereira**

M Á S A LL Á DE U NA DEMO C R AC I A DE E SPEC TA D OR E S

BEYON D A DEMOC R AC Y OF SPEC TATOR S

Data de recepção: 25 de abril de 2016.


Data de aprovação: 20 de junho de 2016.

Sugerencia de citación:
Pereira, M. (2016). Para além de uma democracia de espectadores. Razón Crítica, 1, 148-169,
doi: http://dx.doi.org/10.21789/25007807.1140

* O presente ensaio se estruturou a partir de um trabalho desenvolvido no Programa de Doutorado em Sociologia,


na disciplina Teorias Sociológicas Avançadas, do programa de Doutoramento em Sociologia, da Faculdade de
Economia, na Universidade de Coimbra –Portugal–, sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Fortuna, do Prof. Dr. João
Arriscado Nunes e do Prof. Dr. José Manoel Mendes.

** Advogado. Mestre em Direito de Estado pela Universidade da Amazônia – Unama. Doutorando em Sociologia
pela Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra. Professor de Ciência Política e Direito Constitucional pela
Estácio/FCAT – Faculdades Integradas de Castanhal. Ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção
Castanhal/PA (Brasil). Correio eletrônico: marcelopereira1205@gmail.com.

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RE SUMO

O presente ensaio é uma reflexão sobre a noção do espirito do novo


capitalismo, a partir de descrição feita por Richard Sennett, em sua
obra A cultura do novo capitalismo, e identificar de que modo esse conceito
impacta na compreensão dos desafios à democracia no século XXI,
notadamente na construção de uma percepção emancipatória lastreada em
um discurso argumentativo que agregue em si o estimulo à participação
consciente dos indivíduos a outras formas de manifestações democráticas
para além da representativa.

PALAVRAS-CHAVE:
democracia, capitalismo, cidadania, participação, emancipação.

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RE SUMEN

Este ensayo es una reflexión sobre la noción de espíritu del nuevo


capitalismo, a partir de la descripción hecha por Richard Sennett en
su libro La cultura del nuevo capitalismo, e identifica cómo este concepto
tiene impacto en la comprensión de los desafíos de la democracia en el
siglo XXI, sobre todo en la construcción de una percepción emancipatoria
respaldada por un discurso argumentativo que incluya en sí el estímulo
a la participación consciente de los individuos en otras formas de
manifestaciones democráticas más allá de la representativa..

PALABRAS CLAVE:
democracia, capitalismo, ciudadanía, participación, emancipación.

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A B STR ACT

This essay is a reflection on the concept of spirit of the new capitalism,


starting from the description by Richard Sennett in his book The culture
of the new capitalism, and identifies how this concept have impact on the
understanding of the challenges of democracy in the twenty-first century,
notably in the construction of an emancipatory perception backed by an
argumentative discourse that lends on itself the impulse to the conscious
participation of individuals into other forms of democratic manifestations
beyond the representative.

KEYWORDS:
democracy, capitalism, citizenship, participation, emancipation.

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I N T RODUÇÃO

A democracia está doente de seu descomedimento: a


liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa
manipulável, o desejo de promover o progresso se converte
em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito
deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e
participam apenas de um processo de desumanização. […]

Viver numa democracia continua sendo preferível à


submissão a um Estado totalitário, a uma ditadura militar
ou a um regime feudal obscurantista. Mas, corroída assim
por seus inimigos íntimos, engendrados por ela mesma,
a democracia já não está à altura de suas promessas.
Todorov, 2012, p. 197.

A imagem de democracia não se reduz a um conceito unívoco, e


1. John Dunn registra
que “ninguém, muito menos a um juízo definitivo. Antes se define como uma
por conseguinte,
sabe realmente o
ideia de tessitura flexível, percebida sob o espectro de cada época
que a população e como experiência histórica embevecida por idiossincrasias
mundial entende por
democracia” (2014, culturais, políticas, sociais e ideológicas, já que “o regime
p. 189). Entretanto, democrático não se reduz a uma característica única, mas sim
mesmo diante desse
insuperável desafio, a articulação e o equilíbrio entre vários princípios separados”
“[…] ao longo do tempo,
cientistas políticos (Todorov, 2012, p. 193), e que, portanto, os “diferentes graus de
têm feito tentativas democracia dependem de várias razões vinculadas à história
de descobrir isso, com
graus variados de rigor e a sociedade de qualquer país” (Bobbio, 2003, p. 243).
e perspicácia, tanto
em países específicos Independentemente de sua relativização conceitual, por
quanto em perspectivas traduzir uma ideia a que falta unanimidade de conceito1,não
mais amplas” (Dunn,
2014, p. 189). impediu que o século XX fosse marcado por uma emergência

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da democracia, na visão de Amartya Sen (apud Avritzer &
Santos, 2003, p. 01), ao vivencia-la como um desejo coletivo
irrefreável que se espalha “verbalmente através do globo […]
colecionando amigos e inimigos e alistando forças de modo
a lhe garantir uma preponderância provisória nos cenários
em que ela conquista ascendência” (Dunn, 2014, p. 189).
Em leitura ao percurso da democracia no século XX,
Avritzer e Santos (2003, p. 01) afirmam que esse período
histórico “foi efetivamente um século de intensa disputa
em torno da questão democrática”, ora com debates sobre a 2. Em palestra proferida
XVIII Congresso
desejabilidade da democracia, ora com discussões em torno de Mundial de Sociologia da
suas condições estruturais. International Sociological
Association (ISA),
Quando Burawoy (2015) incita seus pares à construção de ocorrido em Yokohama,
Japão, entre 13 e 19
uma sociologia global que possa atender a questão da temática de julho de 2014.
da desigualdade na atualidade2, menciona como pano de fundo 3. “Os movimentos
sociais respondem
a sua reflexão uma onda de movimentos sociais entre os anos de criando novas formas
2010-2014, com destaque a revolução de 25 de janeiro no Egito, de democracia direta ou
participativa, que têm
que levou a queda de Hosni Mubarak, as revoluções na Líbia, um foco geográfico bem
concreto, geralmente
Iêmen, no Bahrein, na Síria, o desastre ambiental no Japão, o o controle de algum
do Indignados em Portugal, e o 15 de março na Espanha, o espaço simbólico –a
Praça Tahrir, no Cairo;
Golden Dawn, na Grécia, dentre outros, que guardam entre a Praça Taskim, em
si uma mútua influência, já que está globalmente conectada. Istambul; o Zucotti
Park, em Nova York; a
Embora se apresentem com dinâmicas distintas, em vista Praça da Catalunha, em
Barcelona, etc. A mídia
de seus panoramas nacionais, carregam consigo um simbolismo: social pode ter criado
as concentrações ocorriam em espaços públicos centrais de suas um apoio delineável,
mas o coração desses
cidades –notadamente as praças3 –, o que indicava um espírito movimentos reside
nas assembleias que
democrático em suas exortações, numa horizontalização de suas controlavam tais
energias, com a dissolução de qualquer estrutura hierarquizada espaços urbanos”
(Burawoy, 2014,
de poder, e que apontam em direção a “uma consciência diferente, pp. 157-158).
uma noção de possibilidade diversa, uma crítica do existente
como sendo não natural e tampouco inevitável e, com ela,
uma nova política informal” (Burawoy, 2015, p. 158).
Por sua vez, Todorov (2012) registra que a ideia de
democracia no início do século XXI passa a reluzir com mais
intensidade em redutos outrora improváveis, como a China,
Cuba, os países do leste europeu e, mais recentemente, os

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4. “Durante o inverno países muçulmanos do Oriente Médio, que passaram a bradar


2010-2011, o mundo
assistiu a um evento palavras de vigor aos seus princípios, e os seus compromissos
imprevisto: em vários
países árabes do Oriente
com a promoção das liberdades humanas e com o fomento de
Médio Próximo e um ambiente de bem-estar social4.
do Oriente Médio, a
população expressou Sobre o triunfo desse sentimento democrático, em
espontaneamente sua comparação das demais formas de organização do espaço
condenação aos ditadores
que a governam e seu social, como um sinal claro de sua força natural, ao menos como
desejo de se instaurar-
se em suas próprias
um modelo que inclusive passa a exercer grande atração para
pátrias um regime além de seu berço ocidental, afirma Todorov (2012, p. 14) que
democrático […] seja
qual for o destino político “nenhum modelo de sociedade diferente do regime democrático
de todos esses países, já se apresenta hoje como seu rival; muito pelo contrário, vê-se
podemos considerar como
estabelecido que o modelo uma aspiração à democracia se manifestar quase por toda a
democrático exerce hoje
uma grande atração fora
parte onde ela antes estava ausente”.
do mundo ocidental que No entanto, conforme observa Santos (2013), se a
o viu nascer. O fato é
tanto mais impressionante democracia como ideia “é hoje menos questionada do que nunca,
quando vemos esse mesmo
modelo, já em ação na
todos os seus conceitos satélites têm vindo a ser questionados
América Latina ou Sudeste e declarados em crise: a patologia da participação, sob a forma
Asiático, desempenhar
um papel –mais limitado, de conformismo, do abstencionismo e da apatia política […]”
é verdade, pois o (Santos, 2013, p. 29).
adversário é potente– na
China; os dissidentes Desse modo, a novidade dos novos tempos é que a
chineses também
pregam a democracia democracia só sucumbirá por seus próprios inimigos íntimos,
[…] Esses movimentos, na medida em que engendra em si às forças que a ameaçam5
que foram chamados,
talvez impropriamente, e, portanto, um olhar sobre a natureza dos fenômenos que
de ‘revoluções árabes’, já
trouxeram um primeiro
descrevem esse novo tempo e a sua influência sobre as
resultado: mostraram relações humanas na atualidade é indispensável para a
que a população de vários
países não europeus compreensão de alguns dos perigos que a democracia
compartilha as aspirações promove contra si.
dos povos europeus:
nem a civilização
árabe nem a religião
muçulmana impedem
de sentir atração pela
democracia” (Todorov,
2012, pp. 189-190).
5. “Combatê-las e
neutralizá-las é tanto
mais difícil quanto mais
elas invocam o espirito
democrático e possuem,
assim, as aparências de
legitimidade” (Todorov,
2012, p. 14).

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I. As sociedades pós-guerras e o espírito do
novo capitalismo, por Richard Sennett
Richard Sennett (2006), em estudo sobre as sociedades
pós-guerras mundial, procura revelar o espírito que a
emoldura, e identifica que a alma dessas comunidades
contemporâneas é embevecida pela cultura do que se
convencionou chamar de um novo capitalismo, e diz-nos
que a separar o novo do velho talvez o sinal que melhor
traduzisse o contraste seja o papel da globalização, que forja
um cenário de redes interligadas em uma economia global,
com inovações na área da tecnologia de comunicações
e transportes, com a presença das grandes corporações
multinacionais, que passam a assumir compromissos que
não se resumem a identidade nacional, e que acabam por
mudar a forma dos relacionamentos humanos.
O velho capitalismo, segundo Sennett (2006), seria o
capitalismo social pensado por Max Weber6, de inspiração
militarista e de estrutura piramidal, e cujos elementos de 6. Uma estrutura que
substituiria a fluidez do
identificação centravam-se na paz e na segurança social capitalismo primitivo, pela
(prevenção à revolução), evitando-se o tumulto e a revolta, estabilidade do capitalismo
social, assegurando a
mas que assegurava a estabilidade, e igualmente o lucro. longevidade dos negócios
e aumentando o número
A racionalização da vida é a marca indelével do de empregados, estrutura
capitalismo social, em um processo de formação pessoal na qual, “assim como nos
exércitos, todos tinham
que prepara o jovem para o encaminhamento de toda uma seu lugar e cada lugar
a sua função definida”
vida, com a possibilidade de planejamento (como carreiras (Sennett, 2006, p. 27),
e posses, p. ex.) como seu elemento vital, e que revelava e mediante a evocação
de princípios típicos
a sua preocupação com a questão da administração do dos militares, como
tempo, de longo prazo, cumulativo e previsível. campanha de investimento,
pensamento estratégico e
Ao dispor a estrutura na forma de uma pirâmide, análise de resultados, em
que cada um compreendia
planeja-se simbolizar que a cadeia de funções teria uma a sua função e importância
ordem impressa, uma rede de comando que fluía de cima no empreendimento.

para baixo, em que cada posto, cada parte teria uma função
pré-definida, e que cabia a cada um a função que lhe fosse
própria e, portanto, realizadora de justiça social, uma vez
que abrigaria em seu seio o maior número de pessoas,

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distribuídas as funções conforme suas aptidões e capacidades.


É justamente a definição prévia, fixas e estáticas
de funções, e a possibilidade de participação plural de
todos, conforme seu talento, o espirito de conforto que
simbolizava o capitalismo social e, desse modo, havia um
paradigma confortável sobre a vida e o futuro, representado
na ideia de segurança e estabilidade, e é justamente nesse
conforto paradigmático, que o tempo levaria a desmanchar no
ar, pondo o homem na perspectiva de ficar isolado e à deriva,
que se posiciona o cerne diferencial entre a cultura do novo e
do velho capitalismo.
O modelo piramidal e militarizado do capitalismo social
impactou e influenciou a cultura capitalista do século XX7,e
deixa como maior legado, segundo Richard Sennett (2006)
7. Tal perspectiva,
segundo Richard a forma de organização do tempo, por conferir estabilidade
Sennett (2006)
simbolizou uma
(fortalecendo a ordem de poder) e confiança (para entender
época na formação do que se fazia parte de um processo contínuo e com resultados
pensamento humano,
espalhando-se por efetivos) para as relações havidas dentro da estrutura
diversos setores da militarizada do capitalismo social.
vida social, inclusive
no ambiente das Mas como todo fenómeno social, o capitalismo social
instituições públicas,
e impregna-se na vida não se consolida como uma cultura permanente, sendo
social de tal forma que substituído em outro momento da história por novas formas de
talvez “os civis não se
dessem conta de que comportamento humano, pois motivados por novos valores e
estavam pensando como
soldados” (2006, p. 29). perspectivas. Expõe Sennett (2006) como motivos ao eclipse do
8. “A estabilidade capitalismo social, na segunda metade do século XX, a mudança
parecia sinal de
fraqueza, indicando
na forma de gerenciamento empresarial, que passa a contar
no mercado que a com a presença do investidor, que promove nas empresas a
empresa não era capaz
de inovar, encontrar mudança do poder gerencial para o poder acionário.
novas oportunidades
ou gerir de alguma
A motivação não é mais a estabilidade e a segurança do
outra forma a mudança” processo8, mas simplesmente o lucro, que há de ser auferido
(Sennett, 2006, p. 44).
em curto prazo, para justificar o investimento e, para isso,
abandonam a rigidez militar para absorver a capacidade de
mudança e flexibilidades internas, de modo a revelar certo
dinamismo, na expectativa de atrair sempre mais investimentos.
É a ideia do capital impaciente, em expressão cunhada
por Bennett Harrison, (Sennett, 2006), em que a confiança

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não era mais traduzida na estabilidade das relações, mas
na capacidade dinamismo, de mudança e, nesse cenário,
as pessoas deveriam reinventar-se continuamente, ou
pereceriam nos mercados9.
Desse modo, a mudança no processo capitalista é
embalada pelo desenvolvimento de novas tecnologias de
comunicação e transportes, o que simplifica a comunicação
entre os diversos setores da sociedade e da própria empresa,
e institui ainda à automação no processo de produção, com
a dispensa de homens para a realização de tarefas rotineiras, 9. “A medida que se
dissemina a automação,
com a inversão, portanto, da ideia da inclusão estimulada recua o campo das
pelo capitalismo social, como mecanismo de justiça social. capacidades humanas
pré-determinadas […]
Nesse novo cenário, o desenvolvimento linear é Também aqui temos a
nova individualidade
substituído por uma predisposição mental capaz de idealizada. Um indivíduo
permitir a flexibilização10, inclusive com a possibilidade constantemente
adquirindo novas
de realização de tarefas por pessoas estranhas a fisiologia capacitações, alterando
sua base de conhecimento.
da empresa (terceirização), na chamada dessedimentação Na realidade, este ideal
institucional. Por outro lado, esse sequenciamento não é impulsionado pela
necessidade de manter-se
linear, influencia na própria densidade da estrutura, à frente das máquinas”
(Sennett, 2006, pp. 46-47).
que passa a ser de natureza volátil, ora a incluir, ora a se
10. Diferentemente da
contrair, a medida que a empresa transita de uma função simbologia piramidal
a outra (causalização). presente na estrutura
do capitalismo social,
Por esse conjunto de fatores –sequenciamento não para o Richard Sennett
(2006) a melhor imagem
linear, dessedimentação institucional e causalização, que que representaria
constitui a espinha dorsal da nova arquitetura institucional–, a nova página do
capitalismo seria um
impõe-se ao homem o desenvolvimento de outras tocador de MP3, por
indicar a ideia de uma
capacidades, já que não mais se espera dele uma atitude organização flexível,
passiva de conformismo, mas de própria pró-atividade, em e não mais formatada
por um conjunto pré-
situações tão ambíguas como a que oferece esse cenário de ordenado de atos.
intensa flexibilidade organizacional.
Outro fator decorrente da nova página do
capitalismo é a questão do sentido de autoridade que se
torna essencialmente impessoal e, por isso, apresenta-
se com baixa identificação, com a falta de confiança
dos subordinados em relação aos postos de comando.
Sobrevive o controle, mas com menos autoridade.

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E, nesse sentido, colocam-se os homens em posição


de insegurança e ansiedade, brotando desse sentimento
o que o Sennett (2006) denomina de déficit sociais,
oriundos desse desapego à burocracia social, proveniente
da eliminação das jaulas de ferro, que são a) o baixo nível
de lealdade institucional, b) a diminuição da confiança
informal, e c) o enfraquecimento do conhecimento
institucional, e um claro empobrecimento do capital
social, descrito no grau de envolvimento de uma pessoa
nas diversas redes que formatam uma organização social.

II. A crise da liberdade como um


inimigo íntimo à democracia
Dentro da perspectiva desse novo capitalismo referido por
Sennett (2006), inaugura-se uma nova página na história das
relações humanas, uma nova página que libertaria as pessoas
da jaula de ferro da burocracia social. Mas a que liberdade
esse novo espirito capitalista seria capaz de forjar?
Han (2012) define essa sociedade pós-moderna
capitalista como sociedade da transparência, e descreve-a
como planeadas em uma estrutura de informação em
velocidade e de exposição em grau superlativo, o que
colocaria o homem num ambiente de liberdade aparente, na
medida em que a sensação de liberdade fomentada é uma
astúcia do próprio sistema, já que na livre concorrência,
o que de fato é livre é o capital, o qual para se reproduzir
explora a liberdade do indivíduo.
O tempo do império do capital, para relembrar
Sennett (2006), vivido em um dinamismo incessante e de
flexibilidades, em um tempo que produz uma paisagem de
intensa competitividade, de fluidez incessante de informações,
e de exposição contínua; que fomenta a ideia de liberdade
como uma inteligente forma de coação, pois estimula que o
próprio indivíduo se explore a si mesmo, para poder alcançar
os objetivos propostos, de sucesso e de bem-aventurança.
Com isso, nesse tempo, o capitalismo envolve as pessoas

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no seu próprio funcionamento, “visto serem necessárias
à produção e ao desenvolvimento dos mercados, onde
a liberdade de ação e de empreender imbrica a própria
estrutura do capitalismo” (Ferreira, 2014, p. 236).
Desse modo, a inteligência e sutileza desse sistema
é que, em vez de subjugar o homem ao seu império,
seduz, motiva e otimiza as suas ações, consentindo-as e
satisfazendo-as, em uma ilusão que, em vez de torná-los
submissos, torna-os dependentes. E assim procede sem
que se apresente qualquer resistência, já que pelo fato
do homem explorar a si próprio o fracasso não pode
ser atribuído ao outro, o que inibe o oferecimento de
resistência ao sistema, senão cobrar de si os resultados do
insucesso de seu empreendimento, e “esta auto-agressão
(sic) transforma o explorado, não em revolucionário, mas
em depressivo” (Han, 2014, p. 16).
Em sua leitura sobre esse novo tempo, Bauman
(2001) define-o como o tempo da modernidade liquida,
e vale-se da metáfora da liquidez para descrevê-la como
uma época de volatilidade e incertezas; de um tempo de
referenciais morais fragmentadas; um espaço que se rende
ao consumo e a artificialidade das relações entre pessoas
e com as instituições; de se apreciar o que é descartável
e belo; o que é pueril e fluído. Um cenário que leva o
homem ao estado de conformidade total, um espectador
cômodo de sua própria vida. Que vê e participa do mundo
no anonimato da vida digital. Um vigilante passivo e
integrado na rotina incessante das informações.
Para Debord (2003, p. 14) é o tempo das sociedades
do espetáculo, “em que o espetáculo não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediatizadas por imagens”. O tempo espetacular como o
tempo de consumo das imagens, “em que tudo o que era
diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”
(Debord, 2003, p. 121).
O tempo do novo capitalismo descobre a psique

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11. “A forma de poder do como força produtiva, e ocorre pela razão de que não se
regime neoliberal constitui
a realidade não vista pela ocupa mais com a produção dos objetos físicos, mas com a
análise foucauldiana de
poder. Foucault não vê nem
criação de produtos não físicos, imateriais. Desse modo, ao
que o regime neoliberal contrário do panoptismo de Foucault em que o dispositivo
de dominação acapara
totalmente a tecnologia do de controle domestica o corpo enquanto parte de uma
eu, nem que a otimização biopolítica, que engendra a obediência a um sistema de
de si permanente, enquanto
técnica do eu neoliberal, normas, nas sociedades da informação, o panoptismo não
não é outra coisa senão uma
forma de dominação e de é mais do corpo, mas sim da mente11, não é mais físico, mas
exploração eficaz. […] A sim digital, como uma espécie de psicopanoptismo12.
técnica de poder do regime
neoliberal adota uma forma O espirito do novo capitalismo não se interessa mais
subtil. Não se apodera
diretamente do indivíduo. somente do corpo, do biológico, do somático, do corporal.
Pelo contrário, procura Ela apropria-se da alma13. O poder no neoliberalismo retira
assegurar que o indivíduo
aja de tal modo que do homem a capacidade de plena compreensão do mundo
reproduza por si próprio
a estrutura de dominação
que o cerca, pois que tudo passa a ser subterfugio do próprio
que interpreta como sistema de dominação, que estimula o homem servir-se de
liberdade. A otimização
de si e a submissão, a si próprio, em nome e em razão dos objetivos do capital.
liberdade e a exploração
coincidem aqui plenamente”
Inserto nessa “miragem essencial do neocapitalismo”,
(Han, 2014, pp. 37-38). segundo Santos (2013), retira-se do homem a condição de
12. “A técnica ortopédica
do poder disciplinar é
percepção das próprias injustiças e irracionalidades dessa
demasiado grosseira para sociedade capitalista, e com isso propor “uma sociedade
penetrar nas camadas
profundas da psique e totalmente distinta e melhor que esta” (Santos, 2013, p. 151).
nos seus anseios ocultos,
as suas necessidades e
Essa falta de protagonismo do homem, tolhido em
os seus desejos, e acabar sua autonomia, e na sua capacidade de percepção dos fatos
por apoderar-se delas”
(Han, 2014, p. 30). e do mundo, enaltece o que Santos (1998) batiza de crise
13. “O regime disciplinar, do contrato social da modernidade, cuja legitimação se
segundo Deleuze,
organiza-se como um
estabelece pela tensão existente entre inclusão e exclusão
‘corpo’. É um regime e, como consequência, verifica-se a perda de sentido e de
biopolítico. O regime
neoliberal, pelo contrário, atitudes proativas na luta pelo bem comum e por alternativas
comporta-se como alma.
Daí que a psicopolitica seja
de bem comum, como sendo igualmente uma crise do
a sua forma de governo. pensamento estratégico de emancipação, ao mencionar que
Esta ‘institui entre os
indivíduos uma rivalidade “à medida que a trajetória da modernidade se intensificou
interminável sob a forma com a trajetória do capitalismo, o pilar da regulação veio a
de competição saudável,
como uma motivação fortalecer-se à custa do pilar da emancipação num processo
excelente’. A motivação,
o projeto, a competição,
histórico não linear e contraditório” (Santos, 2013, p. 188).
a otimização e a iniciativa A confusão da sociedade civil e do mercado em
são inerentes às técnicas de
dominação psicopolítica um único espaço ilude-nos em nome da liberdade, e a

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ideia de um ambiente livre é sempre tentadora, pois do regime neoliberal”
(Han, 2014, p. 28).
encaminha-nos na percepção de que somos nós os 14. “O neoliberalismo
protagonistas de nossas próprias escolhas, e a possibilidade transforma o cidadão em
consumidor. A liberdade
de fazê-las, direta e pessoalmente, nos torna mais vivo, do cidadão cede ante
já que em nós pulsaria a própria essência da vida. a passividade do
consumidor. O votante,
E a transparência, uma ordem artificial, que enquanto consumidor,
não tem interesse
rejeita a ambivalência, e em que tudo há de ser claro e real pela política, pela
límpido (Bauman, 1991), e por isso tão aclamada pela configuração ativa da
comunidade. Não está
contemporaneidade, antes de reafirmar a autonomia disposto nem capacitado
para a ação política
do homem em relação aos fatos da vida, retirar-lhe a comum. Limita-se a
capacidade cognitiva, com a uniformização de práticas, reagir de forma passiva à
política, protestando e
atitudes e pensamentos, instituindo um “inferno dos queixando-se, do mesmo
modo que o consumidor
iguais” (Han, 2012, p. 12), devido à diminuição da perante as mercadorias
capacidade humana para interagir ativamente com o e os serviços que
lhe desagradam”
universo que a cerca. (Han, 2014, p. 19).

Imerso em tal cenário, não seria errôneo pensar 15. “A aspiração


de autonomia,
que, sempre que nas sociedades de consumo o homem criatividade e
reflexividade
tem preferência pela participação no mercado em vez é transmutada
de participar na vida política, o consumidor ocupará o em privatismo,
dessocialização e
espaço do cidadão14, em que “a natureza do consumo narcisismo, os quais,
metamorfoseia-se” em um “idealismo objectistico”, na acoplados à vertigem
produtivista, servem
definição de Santos, (2013, p. 209), e com isso constrói um para integrar, como
nunca, os indivíduos na
subjetivismo narcisista, autista e cultual dos objetos15, na compulsão consumista.
medida em que a naturalização do mercado estimula um Tal integração, longe
de significar uma
olhar passivo, e por vezes, conivente do homem com a cedência materialista, é
vivida como expressão
estrutura posta. de um novo idealismo,
Para Debord (2003) nas sociedades do espetáculo, um idealismo
objectistico” (Santos,
o espectador é um simple alienado diante do objeto 2013, pp. 298-299).
contemplado, e que estimula em si uma aceitação passiva
diante da mensagem emitida pela imagem e, desse modo,
“quando mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita
reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade,
menos ele compreende a sua própria existência e o seu
próprio desejo” (Debord, 2003, p. 26), e que, por isso, “o
espetáculo na sociedade representa concretamente uma
fabricação de alienação” (Debord, 2003, p. 26).

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III. Democracia sem participação


não é democracia
Diante desse contexto, como não se identificar com a
advertência feita por Todorov (2012) ao revelar a sua
preocupação sobre o estágio da democracia nos tempos
de hoje, diagnosticando-a como doente de seu próprio
descomedimento. Nesse campo de reflexão, na sua visão
de democracia, não sofreria ela mais da ameaça de nenhum
inimigo que lhe seja exterior, mas que a sua fraqueza
repousaria em suas próprias estruturas, sempre que um
dos pilares que lhe dá sustentáculo enfraqueça, a tal
ponto que ameaça ruir em uma implosão catastrófica.
E das estruturas que edificariam um cenário
16. “Os gregos, de cuja
língua surgiu a palavra, democrático, Todorov (2012) anuncia como seus pilares a
a distinguiam de outras
formas de governo: aquela
ideia de liberdade individual e de progresso, na medida em
na qual o poder pertence que “toda a democracia implica a ideia de um melhoramento
a um só, ‘monarquia’ em
sentido positivo, ‘tirania’ possível da ordem social, de um aperfeiçoamento graças aos
em sentido negativo; e esforços da vontade coletiva” (Todorov, 2012, p. 17) e que essa
aquela em que o poder
pertence a pouco, vontade não seja submetida “aos efeitos de uma emoção
‘aristocracia’ em sentido
positivo, ‘oligarquia’ passageira ou de uma manipulação hábil da opinião pública”,
em sentido negativo” mas sim “deve manter-se conforme aos princípios definidos
(Bobbio, 2003, p. 235).
17. “A partir dessa
após uma reflexão madura” (Todorov, 2012, p. 18).
diferença entre dois Mesmo enevoada conceitualmente, a democracia sempre
princípios opostos de
legitimidade, a tradicional teve a sua compreensão associada à capacidade de participação
distinção das formas de
governo, proveniente de
do povo (demos) nas tomadas de decisão, isto porque, indica
um critério meramente ser ela “o resultado de um acordo livre entre indivíduos
quantitativo e, como tal,
extrínseco –um, poucos, inteligentes” (Bobbio, 2003, p. 254). Portanto, comunga
muitos–, é substituída
por outra, que se tornou
com a compreensão de que o poder existente em uma dada
predominante, entre sociedade política haveria de ser exercício pelo próprio povo
democracia e autocracia.
Neste caso, a forma de (ou sem seu nome), pois a ele pertenceria a sua titularidade,
governo democrática, e em seu interesse deveria ser efetivamente exercido16.
seja direta ou indireta,
se opõe a todas as A democracia pode ser descrita como um regime onde
demais na medida em
que é a única na qual o poder político é legitimado pelo povo17, e cujas decisões
o poder se transmite são guiadas em prestígio às liberdades humanas e, desse
de baixo para cima”
(Bobbio, 2003, p. 236). modo, por essa perspectiva deve-se pensar a democracia

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não apenas na ideia de quem exerce o poder, ou em nome 18. A equação democracia
= ilimitação = sociedade
de quem esse poder é exercido, mas, principalmente, que sustenta a denúncia
dos ‘crimes’ da democracia
nas formas de participação do homem nos assuntos pressupõe, portanto,
de interesse geral, com a criação de instrumentos que uma operação tripla: em
primeiro lugar, reduzir
permitem sua efetiva contribuição à formação da a democracia a uma
vontade coletiva que irá reger a vida em sociedade. forma de sociedade; em
segundo lugar, identificar
Quando se verifica esse aspecto do ideário essa forma de sociedade
com o reino do indivíduo
democrático da atualidade, deparamo-nos com o fato igualitário, subsumido
nesse conceito todo o tipo
de que o grau de participação efetiva do cidadão nos
de propriedades distintas,
processos decisórios nas democracias modernas é cada dia desde o grande consumo
até as reivindicações dos
mais diminuto, reduzido unicamente ao sufrágio, sendo direitos das minorias,
que, “o sufrágio, que hoje é considerado o fato mais relevante passando pelas lutas
sindicais; e, em terceiro
de uma democracia, é o voto dado não para decidir, mas sim lugar, atribuir à ‘sociedade
individualista de massa’,
para eleger quem deverá decidir” (Bobbio, 2003, p. 245). assim identificada com a
A naturalização da matriz representativa da democracia, a busca de um
crescimento indefinido,
democracia, de inspiração liberal, em que “a cidadania inerente à lógica da
economia capitalista”
abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o (Rancière, 2014, p. 31).
seu exercício reside exclusivamente no voto” (Santos, 19. No Brasil, o aumento
no preço das passagens
2013, p. 190) conduz à passividade política dos cidadãos. de ônibus deu início
Por sua vez, Rancière (2014, p. 43) diz-nos que “a as manifestações de
2013, e que tiveram seu
vida democrática torna-se a vida apolítica do consumidor estopim após uma forte
repressão policial contra
indiferente de mercadorias”, e que o poder de governar os manifestantes de São
limita-se a servir de “fiador dos ‘pequenos prazeres’ que Paulo, assim, o movimento
ganhou proporções
pagam nossa grande aflição de órfãos condenados a vagar maiores, com repercussão
pelo império do vazio, o que significa indiferentemente em todo o país, com gritos
em uníssono de “não” a
o reino da democracia, do indivíduo e do consumo” situações que ocorriam no
país eclodiram de várias
(Rancière, 2014, p. 46). capitais. Caminhadas em
Para Rancière (2014) é preciso transcender a busca de explicações sobre a
Copa do Mundo no Brasil,
identificação da democracia como um mero estado de sobre os gastos públicos,
sobre a corrupção, sobre
sociedade18, como um reino do indivíduo igualitário, os serviços públicos de
que se porta diante de diferentes fenômenos como um má qualidade foram
algumas das pautas da
“consumidor democrático embriagado de igualdade”19, reivindicação. Os cidadãos
queriam soluções, respostas
e que se identifica “conforme o humor e as necessidades às perguntas que se
da causa, com o assalariado reivindicativo, com o encontravam soterradas.
Inclusive, é interessante
desempregado que ocupa os escritórios da Agencia ressaltar que tais
reivindicações não eram
Nacional para o Emprego ou com o imigrante ilegal

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específicas, pelo contrário, confinado nas zonas de espera dos aeroportos” (Rancière,
eram múltiplas as
demandas que a população 2014, pp. 41-42)20.
exigia num único protesto,
o que talvez demonstre a Ver a democracia com esta fisionomia é compreendê-la
natureza e a forma dessas como um espetáculo, que fomenta no espectador uma atitude
manifestações como
daquelas inseridas em um apática em relação aos temas de interesse comum, pois que
corpo de reivindicações
difusas, e próprias de um
está mais interessado em realizar seus desejos privados e
consumidor insatisfeito egoístas, o que acaba por ensejar a “identificação solidamente
com os serviços que
lhe são oferecidos. estabelecida entre o homem democrático e o indivíduo
20. Na mesma perspectiva é consumidor” (Rancière, 2014, p. 36).
a observação de Byung-
Chul Han quando diz: “A É a instituição de uma democracia de sufrágios, ou uma
transparência que se exige democracia de espectadores, em que no espirito e no ambiente
dos políticos é tudo menos
uma reivindicação política. que anima os regimes democráticos hodiernamente, o poder
Não se exige transparência
perante os processos transforma o homem, não mais em submissos, mas em
políticos de decisão, pelos dependentes.
quais nenhum consumidor
se interessa. O imperativo Nessas democracias de sufrágios submergimo-nos
da transparência serve
sobretudo para expor à falsa compreensão de que a democracia se resume no
os políticos, para os comparecimento periódico às urnas, para escolha de
desmascarar, para os
transformar em objeto de nossos representantes21. Enquanto que nas democracias de
escândalo. A reivindicação
da transparência pressupõe
espectadores vivemos uma alienação estimulada, que nos
a posição de um espectador põe em cômoda posição de observadores, diante de um
que não se escandaliza.
Não é a reivindicação de enredo que nos passa a vista, a nos contar uma história em
um cidadão com iniciativa, que somos o protagonista.
mas a de um espectador
passivo. A participação Para Santos (2013), a construção de uma nova teoria da
tem lugar sob a forma de
reclamação e de queixa. A democracia parte da “formulação de critérios democráticos
sociedade da transparência, de participação política que não confinem esta ao acto de
habitada por espectadores
e consumidores, funda votar” (Santos, 2013, p. 225), o que necessariamente implica
uma democracia de
espectadores” (2014, p. 20). na ampliação do próprio campo político, que não mais poder
21.“[…] Hoje, os Estados ficar restrito ao espaço da cidadania, “como o espaço político
democráticos são
governados, embora em
segundo a teoria liberal” (Santos, 2013, p. 226)22.
diferente medida, por Uma nova gramática da democracia perpassa pela
meio de democracias
representativas, só em intensificação de um discurso argumentativo que agregue em
alguns casos combinados
com elementos de
si o estimulo à participação, com o incentivo a outras formas
democracia direta, como o de manifestações democráticas para além da representativa23,
referendo. O mecanismo da
representação é a tal ponto e até mesmo para além dos tradicionais movimentos sociais.
constitutivo da democracia Mas como uma atitude que principia na consciência de que
moderna que, quando se
diz que os Estados Unidos a responsabilidade participativa é um compromisso a ser

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vivido desde as mais singulares interações sociais (que ou a Itália são países
democráticos, subentende-
envolvam pessoas e pessoas e coisas, como a preservação se que a democracia neles
existente é representativa”
de bens públicos e à própria natureza, p. ex.) até as mais (Bobbio, 2003, p. 235).
complexas questões sociais24. 22. “A nova teoria da
democracia –que também
A manutenção desse status quo ofende a dignidade poderíamos designar por
democrática, centrada na consciência plena das liberdades teoria democrática pós-
moderna para significar a
humanas, e essa se manifesta não apenas no exercício sua ruptura com a teoria
democrática liberal– tem,
dos clássicos direitos de liberdade, mas principalmente no pois, por objetivo alargar
estímulo ao desenvolvimento da aptidão natural do ser e aprofundar o campo
político em todos os
humano em participar mais ativamente de seu próprio espaços estruturais de
destino25, do de toda a coletividade com a qual convive, interação social” (Santos,
2013, p. 231).
e do ambiente social e natural no qual habita, que nada 23. É a ideia de
mais seria senão uma extensão de sua compreensão como demodiversidade,
entendida como a
pessoa humana. “coexistência pacífica ou
conflitual de diferentes
Os exemplos mencionados no início desse texto modelos e práticas
sinalizam que aquela emergência da democracia ainda democráticas” (Avritzer
& Santos, 2003, p. 22).
persiste, e é, portanto, preciso saber ouvir os sinais, e elas já 24. “A força da
ecoam com força e vigor nas ágoras modernas (praças, ruas, globalização contra-
hegemônica no domínio
universidades, redes sociais, etc.), ciente de que a democracia da ampliação e do
aprofundamento da
é um projeto em permanente desenvolvimento26, que não democracia depende em
nascera com a pretensão da perfeição, e nem da construção boa medida da ampliação
e aprofundamento de
de uma nova sociedade, “cujos elementos seriam formados redes nacionais, regionais,
no próprio seio da sociedade atual” (Rancière, 2014, p. 121), continentais ou globais de
práticas locais” (Avritzer &
mas que precisa ser descoberta a partir dos fins que pretende Santos, 2003, p. 24).

alcançar, alimentados pela crença na capacidade futura do 25. Consolidação de um


processo democrático
projeto democrático a partir da participação ativa e plena implica, também, um
profundo investimento
dos indivíduos. na educação dos cidadãos,
uma educação que
proporcione a cada cidadão
Considerações finais condições de compreender
o contexto social em que
vive e, consequentemente,
Oriundo de poder (krátos) legitimado pelo povo (demos), a garanta sua liberdade
de escolha. Subjacente
democracia é o cenário descrito como a forma de governo a isso, pressupõe-se um
no qual as decisões políticas deverão ser guiadas pelo contexto de igualdade
de oportunidades, a
sentimento de prestígio às liberdades humanas e, quando fim de que cada um
possa desenvolver seus
se faz um paralelo entre as diferentes manifestações de potenciais e estar no espaço
democracia ao longo da história, Bobbio (2003, p. 235), público, onde ocorrem

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as decisões políticas, com simplificaria a distinção ao dizer que “a democracia dos


a mesma dignidade que os
demais participantes; caso antigos se distingue da dos modernos pela maneira como o
contrário, o processo de
escolha e de deliberação
povo exerce o poder: diretamente, na praça ou ágora entre
estará viciado, pois alguns os gregos, e indiretamente, por meio de representantes, nos
cidadãos terão mais poder
para convencer e para Estados modernos”.
impor seus interesses
do que outros, fator que
Todavia, para os objetivos da linha argumentativa exposta
desequilibra por completo neste ensaio, muito mais importante que a distinção clássica
a balança que deve reger
o processo democrático acima referida, ou qualquer outra porventura identificada na
(Auad et al., 2004, p. 5).
doutrina especializada, é a compreensão da ideia de que a
26. “A democracia não é
nem a forma de governo democracia inspira-se no postulado do poder legitimado,
que permite a oligarquia como um poder ascendente, legitimado pela vontade do
reinar em nome do povo
nem a forma de poder da homem (consentimento).
mercadoria. Ela é a ação
que arranca continuamente Dessa forma, a democracia, como princípio de
dos governos oligárquicos o convivência humana deve ser a promotora de um sistema de
monopólio da vida pública
e da riqueza a onipotência igualdade plena para todos os seus cidadãos, em que o mais
sobre a vida. Ela é a
potência que, hoje mais do
amplo gozo das liberdades humanas há de ser estimulada.
que nunca, Wdeve lutar Portanto, é preciso pensar que a democracia não se baseia
contra a confusão desses
poderes em uma única e apenas na ideia de quem exerce o poder, ou em nome de quem
mesma lei da dominação”
(Rancière, 2014, p. 121).
esse poder é exercido, mas, principalmente, nas formas
27. Em uma democracia, de participação do homem nos assuntos de interesse geral,
é importante “[…] que fomentando a criação de instrumentos que permitem sua
suas instituições não só
reconhecem formalmente efetiva contribuição à formação da vontade coletiva que irá
todos os seus cidadãos
como iguais, mas também
reger a vida em sociedade27.
que realmente distribuem De modo que não feneça a aspiração universal pela
o poder imparcialmente
até mesmo através de democracia, é preciso que os fins democráticos sejam
suas classes, conferindo
a cada um uma parcela
consentâneos com os meios (instrumentos) democráticos,
substancialmente igual e não o contrário, em uma atitude sacrificial aos valores
na prática para todos os
propósitos publicamente democráticos, com a suposta justificativa de se “salvar a
pertinentes” (Dunn,
2014, p. 191).
democracia”, como o são os ataques permanentes à liberdade
28. Em A grande pela lógica do espetáculo e do consumo, em que a própria
transformação, de 1944, liberdade é vista como uma mercadoria (fictícia, na descrição
o Karl Polanyi cunha o
conceito de mercadorias de Karl Polanyi)28, e, portanto, sujeitas ao império do mercado
fictícias para identificar um
conjunto de bens imateriais
e do capital neoliberal.
a qual se atribuiria valor Para esse fim, comungamos com Santos (2013) na
mercantil para que
pudessem serem eles necessidade de redefinir o conceito de cidadania, como
passíveis de troca, como o
uma ideia emancipatória, a partir da construção de um

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novo senso comum, em que essa nova cidadania se trabalho, a terra,
o dinheiro e o
constitua e se desenvolva tanto na “obrigação política conhecimento, e no
nosso caso, a liberdade.
vertical entre os cidadãos e o Estado como na obrigação
29. “À medida em
política horizontal entre os cidadãos. Com isto, que a modernidade
revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a ocidental, enquanto
paradigma sócio-cultural,
ideia de igualdade sem mesmidade, a ideia de autonomia reduziu as possibilidade
de emancipação à
e a ideia de solidariedade” (Santos, 2013, p. 233). compatíveis com
o capitalismo, o
Uma cidadania emancipatória é uma cidadania que
conhecimento-regulação
atende a um olhar de mundo até então excluído, e que, adquiriu uma total
preponderância sobre
conforme Santos (2003) seria construído pelo estímulo o conhecimento-
a uma epistemologia adequada, alicerçada na ideia de emancipação e
neutralizou-o, convertendo
justiça social a partir de uma justiça cognitiva, que a solidariedade numa
forma de caos, e, portanto,
reconhece o valor do conhecimento emancipação (em de ignorância e o
que a ignorância é concebida como colonialismo e o saber colonialismo numa forma
de saber e, portanto, de
como solidariedade) em detrimento do conhecimento ordem […] Convertida
em conhecimento uno
regulação (em que a ignorância é concebida com um e universal, a ciência
caos e o saber como ordem)29, a que caracterizou de moderna ocidental, ao
mesmo tempo em que se
pensamento pós-abissal inserido em uma Epistemologia constituiu em vibrante
e inesgotável fonte de
do Sul, na medida em que reconheceria a diversidade do progresso tecnológico
mundo como algo inesgotável, e não limitada unicamente e desenvolvimento
capitalista, arrasou,
à compreensão ocidental do mundo, e, no nosso caso, de marginalizou ou
democracia liberal representativa, pois que “a negação de descredibilitou todos
os conhecimento não
uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que científicos que lhe eram
alternativos, tanto no
constitui a condição para a outra parte da humanidade Norte como no Sul.
se afirmar enquanto universal” (Santos, 2007, p. 10). Tenho designado
este processo como
Por óbvio que não se está a promover uma epistemicídio (1998c:
208)” (2010, p. 143).
inquisição do regime representativo de democracia, que
ainda tem seu valor e sua importância, mas um convite
a repensar a sua estrutura atual, agonizante em suas
próprias limitações, abrindo-se espaço para a criação
de um ambiente dialógico, que estimulem a consciência
para uma maior participação do povo nas tomadas de
decisões, compartilhando com os representantes eleitos
a responsabilidade com os destinos de sua nação, uma
virtude que há de ser permanentemente estimulada,
como uma ínsita condição de sua soberana liberdade.

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