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Universidade Federal do Ceará

Programa de Pós-graduação em Sociologia


Tópicos Especiais IV – Professor: Kaciano Gadelha

Introdução

Para mim, a escrita de uma tese se parece muito com a confecção das complexas malhas que
minha tia ia criando a partir dos diferentes trançados da linha de crochê, sem propósito algum que
não seu próprio divertimento, enquanto se balançava em sua cadeira nas tardes da minha infância.
Ela já não está mais entre nós, porém, entre outras lições muito importantes que deixou sem o saber,
esta ficou marcada em mim.
De modo geral, com o título provisório de “Corpos femininos em mutação”, meu trabalho
intenta refletir sobre as modificações produzidas em corpos femininos pelo ganho de músculos,
tendo em vista que as mulheres que se reconstroem por meio desse processo são constantemente
interpeladas em virtude de estarem, supostamente, infringindo uma série de códigos sociais que
determinam o que é da ordem do masculino e o que é da ordem do feminino.
Nesse sentido, minha pesquisa possui desdobramentos que passam pela antropologia do
corpo, pelos estudos da performance e de gênero, e mesmo pela teoria da imagem. Esse texto, no
entanto, pretende ser apenas mais uma pequena experimentação dos possíveis nós que servirão
como esboço para a confecção dos padrões de minha própria peça, a partir das conexões conceituais
que busco estabelecer com Foucault (2004), especialmente no que toca ao debate entre “identidade”
e “arte de viver”, e Judith Butler (2015), norteado pelos possíveis encaminhamentos da discussão
que promove sobre os conceitos de “enquadramento” e “ontologia corporal”.
A forma de apresentação de meu campo empírico busca se aproximar, tanto quanto possível,
de meu diário de campo, pois tenho o palpite de que há algo de verdadeiro nesses documentos que
se perde na tentativa de transformá-lo em um texto acadêmico (quando fazemos isso há uma
tendência a nos desimplicarmos enquanto sujeitos, eliminando nossas afecções e subjetividades
particulares em prol da busca de uma objetividade científica).
Assim, divido a apresentação do campo empírico em três partes, contemplando as entradas
em meus diários correspondentes a cada uma de minhas interlocutoras, as quais receberão como
título os “codinomes” utilizados por elas, porque, de alguma maneira, eles as identificam em seu
campo de atuação.
Tais “codinomes” foram vislumbrados a partir da pesquisa de campo que tenho
empreendido em suas redes virtuais, especialmente no Instagram 1. É comum, a cada postagem de
foto, elas insiram hashtags2 , que acabam destacando, intencionalmente ou não, aspectos de sua
personalidade. Larissa, por exemplo, costuma usar as hashtags #embuscadeumsonho, #poramor,
#bodybuilding, #gladiadora e #mutante.
A opção por usar algum desses identificadores em detrimento de outros busca evidenciar, do
meu ponto de vista, a característica que mais se destaca em cada uma delas, dentro do cenário da
pesquisa.

“Mutante”
Um corpo capaz de se transformar. Um corpo cuja materialidade se constitui pelo encontro
com o que lhe é estrangeiro, alheio, alienígena. Com o que não faz parte de si. Com o que explode
limites. Na ficção, isso tem como resultado eventos usualmente imprevisíveis e, por isso mesmo,
perigosos. No filme The Fly (1986), do diretor canadense David Cronenberg, por exemplo, um
cientista tem seu corpo fundido ao de uma mosca, em virtude de um experimento que deu errado.
Daí surge uma criatura monstruosa, meio homem, meio inseto. Nesse mesmo sentido, outra obra
famosa é o Frankenstein de Mary Shelley (1831), que conta a história de um homem trazido à vida
ao ser reconstruído com partes de corpos de pessoas mortas. A excentricidade daquela existência,
no limite entre vida e morte, não consegue encontrar um lugar para si e, por isso, Frankenstein é
condenado a vagar sem destino em um mundo que não o aceita.
A cultura pop ainda traz uma infinidade de personagens fantásticas, que se colocam para
além do humano. É possível que a história mais conhecida sobre mutantes seja a dos quadrinhos X-
Men, criada pela Marvel em 1963, e que trata de um conjunto de pessoas possuidoras de habilidades
extraordinárias devido a modificações em seus códigos genéticos as confere poderes sobre-humanos.
Por causa disso vivem em constante conflito com o restante da humanidade, que tenta eliminá-los a
todo custo, por serem considerados uma ameaça.
Nos exemplos que mencionei, as mutações corporais seguem o fio narrativo de toda tragédia,
uma vez que nelas se vê o cumprimento de uma série de passos dos quais o sujeito não pode escapar.

1 Rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, que permite aplicar filtros
digitais e compartilhá-los em uma variedade de serviços de redes sociais, como o Facebook, Twitter, Tumblr e Flickr
(Fonte: Wikipedia).
2 Segundo a Wikipedia, hashtags são palavras-chave (relevantes) ou termos associados a uma informação,
tópico ou discussão que se deseja indexar de forma explícita em alguns sites ou aplicativos, como o Facebook, o Twitter
e o Instagram, as quais vem acompanhadas do símbolo cerquilha “#”. Funcionam como hiperlinks dentro da rede,
indexáveis pelos mecanismos de busca.
Mas e se pudesse ser diferente? Se fosse possível ter controle sobre as mutações que se
busca atingir? Certamente os perigos do desconhecido ou a precipitação em direção ao um destino
trágico seriam evitáveis. Trata-se sobretudo de uma experiência de controle. De produzir sobre o
próprio corpo modificações graduais e constantes pela manipulação de tecnologias cujo resultado é
a fabricação de uma corporalidade para além do ordinário.
Essa perspectiva, as maneiras possíveis de modificação do próprio corpo, sua manipulação
consciente, agora passado quase um ano de meu primeiro contato com Larissa, é uma das coisas que
mais se destacam para mim de nossas conversas.
A primeira vez em que conversamos foi em uma das academias onde faz a preparação física
para as competições das quais participa. Larissa é fisiculturista, prática que exerce há pelo menos
vinte anos. Antes disso, Larissa jogou basquete no clube Náutico durante seis anos. Por volta dos
quinze, teve seu primeiro contato com o ambiente de uma academia de musculação, ao começar a
fazer fortalecimento muscular para melhorar seu desempenho na modalidade. Pelas dificuldades de
deslocamento, já que o clube onde treinava ficava longe de casa, Larissa acabou abandonando o
basquete e, junto com ele, a outra atividade física que, até então, era apenas acessória. A partir daí,
começou a desenvolver, segundo ela, um quadro de Síndrome do Pânico, diagnosticado pelo
psiquiatra ao qual recorreu, quando percebeu as primeiras manifestações da doença. Felizmente, ela
conta, o tratamento receitado por ele foi atividade física.
Larissa então começou a ser frequentadora assídua de academias, mas seu compromisso
com a prática se tornou de fato mais sério no momento em que, pela primeira vez, viu uma mulher
musculosa de perto. “Eu quero ser que nem ela”, pensou, ao imaginar a transformação que seu
corpo poderia assumir. Ela já se identificava com outras mulheres fortes que via em revistas
especializadas – quem frequenta academias sabe que são ambientes povoados por uma certa
imagem do corpo, seja ele masculino ou feminino, a qual acaba balizando os resultados que se
busca alcançar – mas aquele encontro lhe fez perceber que o corpo que desejava podia estar mais
próximo do que supunha.
Nosso primeiro contato se dá quando Larissa estava no meio da preparação para voltar às
competições. Seu próximo torneio seria o Sobral Open de fisiculturismo que aconteceria em Sobral,
no mês de novembro de 2017, evento que acompanhei de perto. A morte do pai e um acidente de
motocicleta que destroçou seu joelho acabaram a afastando do fisiculturismo por um tempo,
exigindo dela paciência e persistência para aguentar as dores da recuperação e retomar o
desempenho que havia lhe conferido um lugar privilegiado como uma das competidoras mais fortes
do Ceará.
Na época de nosso primeiro diálogo, Larissa estava pesando algo em torno de oitenta quilos,
o que é bastante se você se considerar que ela tem um pouco menos de 1,60 m de altura. Sua pele
tem uma pigmentação que a leva a ser lida como uma pessoa morena. No entanto, eu mesmo não sei
se ela se identifica com alguma racialidade específica porque esse tema, até o momento, não surgiu
em nossas conversas, apensar de o companheiro de Larissa ser negro, e de eles se tratarem por
“preto” e “preta” nas redes sociais.
Ela estava em um período que no fisiculturismo é denominado pela expressão off, o qual
significa “fora de competição”, quando os/as atletas ingerem mais alimentos para aguentar a
intensidade do treinamento que visa à construção de seus músculos. Semanas antes da competição
há uma restrição calórica severa a fim de garantir a perda de gordura, fazendo com que a
musculatura construída fique mais evidente. O que permanecia constante, além dos treinamentos,
era a ingestão de suplementos alimentares e de anabolizantes, sem os quais seria impossível
conseguir uma forma física que a tornasse competitiva.
Nossas conversas, então, giraram principalmente em torno da preparação para o campeonato.
Mas à medida que fomos ganhando um pouco mais de intimidade, Larissa começou a falar sobre
temas que, então, passaram a me servir de guia.
Como afirmei acima, meu trabalho se inscreve dentro de quatro linhas temáticas principais,
estando três delas presentes no próprio recorte do meu campo empírico. A necessidade de uma
reflexão sobre a imagem, no entanto, se impôs somente a posteriori, a partir de meu contato com o
campo, pois foi ficando cada vez mais evidente, para mim, como as imagens de seus corpos –
produzidas, na maioria das vezes, por minhas próprias interlocutoras para veiculação no Instagram
– serviam como uma espécie de duplo de seus corpos “reais”, atuando como uma extensão deles.

Imagem 1: fotografia tirada pelo autor no dia 23/09/2017, na academia CB Fitness.

Essa imagem, registrada por mim em nosso segundo encontro, traduz o que estou querendo
dizer quando falo da relação entre mutação corporal e imagem.
Alguns minutos antes da fotografia, Larissa estava realizando exercícios para aquecer a
musculatura dos ombros, segundo ela um dos pontos fortes de seu shape3. Nos intervalos entre uma
série e outra, ela me explicava exatamente que músculos buscava trabalhar, que deficiências
procurava corrigir e, finalmente, qual a forma ideal que seus ombros deveriam apresentar. Naquele
dia, fazia um treino leve, porque há cerca de um mês estava na fase de corte de peso e de redução da
gordura corporal.
Para uma pessoa leiga como eu, seu ombro parecia forte e volumoso, mas ela disse que algo
ainda faltava. O deltóide e os músculos redondo menor e infraespinhal deveriam estar com um
volume parecido, de modo a não haver nenhum sulco entre eles, já que quanto mais redondo seu
ombro fosse, como um todo, mais bem avaliada seria. Depois que deixasse tudo como uma “bola
só”, como ela mesma disse, o próximo passo seria “rasgar” a musculatura, tornando as fibras
aparentes e fazendo surgir um sulco na junção dos músculos do ombro com os músculos posteriores
e anteriores do braço. A construção dessa poética do corpo se dava a partir de um referencial
estético do que seria, para ela e para os demais praticantes da modalidade, um corpo perfeito. Isso
era, de fato, o que buscava, um corpo que fosse visualmente perfeito. Nesse processo, a fotografia,
como ela mesma me contou, a ajudava a ver suas falhas e onde poderia melhorar.

“Helena de Tróia”
O motor de uma moto ruge atrás de mim. Olho para o relógio e constato que passa de uma
da tarde. O homem com quem até então eu conversava, um dos instrutores do box4 de Crossfit5
Excalibur, imediatamente olha para o lado e sentencia: “acho que a Helena chegou”.
Pouco depois ela entra no box em roupas de treino e abre um sorriso largo. Eu havia
conseguido seu contato por meio de uma amiga que, coincidentemente, treinava com Helena. Esse
fato pode ter animado sua disposição de atender a meu convite inusitado: o de falar sobre a
experiência de ser uma mulher forte. Ao circular mais por esse universo muito particular que
compõe minha pesquisa, descobri que Helena não é apenas uma mulher forte, mas uma das
mulheres mais fortes do estado, atrás apenas talvez de outra praticante/competidora de Crossfit,
Renata Pimentel. Há um exercício conhecido como Clean and Jerk6, em que Helena é capaz de
levantar 100 kg.

3 Termo usado por fisiculturistas para se referir ao físico de alguém. Dessa maneira, em relação aos parâmetros
de competitividade requerido pelos torneios de modo geral, os/as praticantes podem podem apresentar um shape bom
ou ruim. Traduzindo para o português, essa palavra quer dizer literalmente “forma”.
4 Nomenclatura do local onde se pratica o Crossfit. Em português significa, literalmente, “caixa”.
5 O termo Crossfit não denota uma modalidade esportiva, mas sim um tipo de treinamento funcional
desenvolvido nos Estados Unidos, o qual foi patenteado como uma marca, cuja utilização por terceiros só pode se dar
por meio de uma relação comercial de franquia.
6 Uma das duas modalidades do Levantamento de Peso Olímpico (LPO), cujo objetivo é elevar, em dois
movimentos (clean e jerk), uma barra, com carga, acima da cabeça da competidora.
Fico surpreso quando descubro que ela sequer tinha vindo treinar, mas apenas conversar
comigo. Sentamos em um lugar um pouco mais reservado e começamos a trocar uma ideia. Durante
esse primeiro contato uma coisa me chamou a atenção: Helena demonstrava em sua fala um certo
desconforto com seu corpo. Ao me ouvir falar que pretendia pesquisar mulheres que buscavam ter o
corpo forte, ela se adiantou imediatamente em dizer que isso não era, de fato, um objetivo seu, mas
apenas o resultado de ser uma atleta.
Havia começado a treinar porque costumava ser uma pessoa acima do peso e isso a
incomodava bastante. Para emagrecer, começou a frequentar uma academia de ginástica quando já
era adulta. Com os treinos seu físico começou a evoluir a ponto de haver sido convidada para
participar de competições de fisiculturismo. Isso tudo ainda na época em que morava no Rio Grande
do Norte, sua terra natal.
Ela se engajou nessa nova atividade e, em pouco tempo, já estava participando e ganhando
algumas competições. Como parte de sua preparação, prática comum a todo/a fisiculturista, Helena
fazia uso de anabolizantes, algo que garante não acontecer mais.
Com o tempo, o fisiculturismo passou a não lhe dar mais prazer, tanto porque tinha receio de
que os hormônios a deixassem masculinizada demais, quanto porque achava essa modalidade muito
repetitiva. No entanto, foi só quando se mudou para Fortaleza, com o marido e a filha que hoje tem
15 anos, que Helena conheceu o Crossfit, esporte pelo qual tem uma verdadeira paixão. Nesse dia,
ela me contou que, quando começa a falar do Crossfit, “chega vem uma coisa dentro do peito”,
tamanha a emoção que sente.
Seu corpo avantajado acabava, segundo ela, por lhe colocar em situações que lhe traziam
desconforto. Ela me disse que ainda não era tão tranquilo ser uma mulher forte, porque muitas vezes
era olhada de forma diferente, já que sua forma física costumava ser associada com a utilização de
hormônios masculinos e isso a incomodava. Helena também não gostava da reação das pessoas
quando a viam com roupas “normais”. Se colocava um vestido ou uma roupa considerada mais
“feminina”, as pessoas demonstravam um estranhamento e até seus elogios soavam como uma
crítica. Apesar de Helena passar a maior parte do dia em trajes de ginástica, suando e levantando
pesos, gosta de ser reconhecida como uma mulher como outra qualquer.
Andar de moto, algo que ainda não é tão comum entre mulheres, pelos riscos inerentes a
esse meio de transporte, sempre a faz ser confundida com um homem, tanto porque seu rosto está
coberto com o capacete, quanto porque seus braços grossos e ombros largos são associados a uma
forma física masculina. Seu marido teve uma certa resistência quando o físico de Helena começou a
se avolumar, a ponto de torná-la mais forte do que ele, que também é praticante, ainda que eventual,
de Crossfit – suas marcas, mensuradas pelas cargas levantadas, rapidez e quantidade de execução de
movimentos, sequer se aproximavam das de Helena. Aliás, em seu box, há exercícios que somente
ela e mais alguns poucos homens conseguem executar, e seus índices, em geral, superiores a
qualquer outro praticante no espaço onde treina, sejam eles homens ou mulheres.
O apelido “Helena de Tróia” veio de um treinador que ficara impressionado com suas
proezas físicas. Por ter gostado da nova identidade, passou a adotá-la em sua conta no Instagram,
sendo também conhecida na comunidade do Crossfit por esse designativo. Curioso é que a
personagem mitológica não era famosa por sua força, mas sim por sua beleza, a qual, segundo a
lenda, fora responsável pela guerra entre troianos e gregos. Na verdade, é possível que o inventor da
alcunha estivesse fazendo referência à origem espartana de Helena de Tróia, o que implicava que
ela, assim como as outras mulheres que nasciam naquela cidade-estado, tinha um corpo forte e bem
desenvolvido.
Após esse primeiro encontro, marcamos ainda outro antes que eu tivesse a chance de tirar
algumas fotos de Helena em seu espaço de treinamento. Aqui vale uma explicação metodológica.
Por ser um campo inteiramente novo para mim e também por ser um homem heterossexual
tentando estabelecer contato com mulheres desconhecidas através de redes sociais, estipulei
algumas regras para que minha aproximação não causasse constrangimento a elas ou pudesse ser
confundida com algum tipo de assédio. Dessa forma, antes de tomar a iniciativa de um primeiro
contato, procurei, antes, pessoas de meu convívio que pudesse conheçê-las.
Meu contato com Larissa, por exemplo, se deu por meio de um primo que havia cursado
com ela algumas disciplinas do curso de Educação Física. Como expliquei acima, o processo com
Helena se deu de forma parecida. Ajudou bastante eu haver mapeado previamente, com a
contribuição de uma outra amiga, que é cineasta e atleta de Taekwondo, mulheres que estivessem
dispostas a participar da pesquisa. Foi ela quem me ajudou a entrar em contato com minha terceira
interlocutora.
Após estabelecer essa relação, outra questão se colocou para mim. Como também me
interessava recorrer a dimensão performativa desses corpos, parecia bastante insuficiente
estabelecer com elas um contato estritamente discursivo, por meio de entrevistas. Desejava
presenciar seus corpos em ação; ver o que eles eram capazes de fazer dentro dos lugares onde eram
fabricados. Para tanto, a dimensão do olhar se anunciava como fundamental.
Se eu fosse uma mulher muito provavelmente essa questão (do olhar) não aparecesse desta
forma: como observar corpos femininos em ação sem submetê-los ao peso, em geral, intrusivo de
um olhar masculino? Para elas, o espaço de treino é um local onde se sentem à vontade para se
expressarem, o que implica, em geral, o uso de roupas que facilitem o desenvolvimento de suas
atividades, ou seja, roupas pequenas e/ou curtas. Meu objetivo, então, era interferir o mínimo
possível na dinâmica de seus treinamentos com minha presença.
O uso da câmera fotográfica em minhas observações e como mediadora de nossas interações
foi a resposta mais satisfatória que encontrei para a resolução desse impasse. Na verdade, ela
“entrou” na pesquisa de um modo um tanto acidental, porque, de fato, eu não sabia se aquele
dispositivo acabaria me ajudando ou atrapalhando. Resolvi confiar em minhas entranhas e acabei a
adotando como uma ferramenta na pesquisa. Com o passar do tempo ela tem se mostrado tão
importante quanto o caderno ou o diário de campo. E as fotografias que produzo, juntamente com as
imagens de si feitas por minhas interlocutoras, passaram a se constituir importantes objetos de
reflexão teórica.

Imagem 2: fotografia tirada pelo autor no dia 10/05/2018, no box de Crossfit Excalibur.

“Headcoach”
Há cerca de um ano, por intermédio de Lívia, tomei conhecimento de Beatriz Mesquita. Em
seu perfil no Instagram, ela aparecia quase sempre levantando pesos, fazendo acrobacias e
participando de competições, já que era uma praticante assídua de Crossfit, além de ser técnica de
um box de Crossfit em Fortaleza.
O fato de termos uma pessoa em comum facilitou minha aproximação. Rapidamente
conseguimos marcar uma conversa em seu local de treinos. Inicialmente, minha intenção era fugir
de qualquer coisa que parecesse com uma entrevista, por considerá-la uma forma muito pouco
espontânea de interação, a qual acabava produzindo falas um tanto artificializadas. Por isso, a ideia
era acompanhar seus treinos com minha câmera, como se estivéssemos realizando uma sessão de
fotos, e, enquanto isso, eu ia puxando assunto.
Essa estratégia não deu muito certo, porque Beatriz, ou Bia, como todos/as a chamam, é
uma pessoa reservada, objetiva e pragmática, que se atém a responder exatamente o que lhe foi
perguntada, nem mais nem menos. Ainda investi outras duas vezes nesse modelo de interação,
principalmente por haver dado tão certo com Larissa, até perceber que com ele eu não estava
chegando a lugar algum. A partir daí, mudei de estratégia e elaborei um conjunto de perguntas
abertas, abordando todas as coisas que eu tinha vontade de lhe perguntar. Outra fonte de
informações importante foi explorar seu perfil no Instagram, onde pude obter algumas informações
que não haviam aparecido em nossas conversas.
Por exemplo, por essa rede social descobri que Bia é lésbica, algo que não anda a gritar
pelos quatro cantos, mas que também não faz questão nenhuma de esconder. É casada com sua
companheira há alguns anos, e o interessante é que elas são de universos completamente distintos.
Enquanto Bia é completamente ligada a esportes, tendo uma mentalidade quase marcial, a outra não
se interessa por exercícios físicos, preferindo consumir livros e filmes.
A questão da sexualidade de Bia é interessante na medida em que parece influenciar
sobremaneira a imagem que tem de seu próprio corpo, bem como a maneira de performá-la.
Enquanto para Larissa e Helena, as duas heterossexuais e casadas com homens, o olhar masculino é
uma questão, na medida em que dita, como expressão de uma estrutura social machista e patriarcal,
quais corpos são passíveis ou não de desejo, o que acaba por deixá-las em uma zona de
marginalidade, para Bia isso parece não funcionar da mesma forma. Por sua sexualidade não se
adequar à heteronorma, seu corpo musculoso e atlético parece ser apenas uma expressão secundária
desse primeiro “desvio”, não aquilo que vai provocar uma suposta desconformidade entre corpo e
gênero.

Imagem 3: fotografia retirada do perfil pessoal de Beatriz na rede social Instagram.


“Headcoach” é uma das hashtags mais usadas por Bia para identificar a si mesma nas
postagens que faz no Instagram. Traduzindo para o português, essa expressão em inglês significa
“treinadora principal”, posição que Bia ocupa no box onde trabalha, que, por sinal, é um dos mais
procurados da cidade, localizado em um bairro de classe média alta de Fortaleza e frequentado por
um público com alto poder aquisitivo. Lá, ela passa a maior parte de seu dia, seja treinando ou
ensinando pessoas de todas as idades a levantar barras de ferro, alçar o peso do próprio corpo
utilizando argolas olímpicas ou executar paradas de mão, movimento no qual a pessoa se mantém
na vertical, ao mesmo tempo em que se equilibra sobre os braços. Esses são só alguns dos
complexos exercícios existentes no Crossfit, a maioria dos quais Bia performa com destreza,
fazendo dela uma das principais atletas do estado na modalidade.
Antes do Crossfit, Bia praticou futsal, musculação e judô, período em que acabou se
lesionando ao executar uma derrubada, movimento característico dessa arte marcial. Nessa ocasião
acabou rompendo os ligamentos do joelho, ficando “de molho” por algum tempo. Sua constituição
física, o cabelo curto, as tatuagens, as roupas que fogem ao padrão de feminilidade a fazem muitas
vezes ser confundida com uma lutadora. Uma das perguntas que fiz a Bia, era a de se já teve de usar
tinha curiosidade de fazer à Bia é se já precisou usar sua força para se livrar de alguma situação de
assédio. E se ter um corpo forte, de alguma maneira, lhe deixava mais segura em situações que,
antes, poderiam lhe parecer potencialmente perigosas.
Sua resposta me surpreendeu. Disse que nunca precisou usar a força e que duvidava da
possibilidade de que alguma situação a levasse a isso, porque, segundo ela, era uma pessoa
extremamente pacífica e tranquila. Também falou que seus músculos não a deixavam mais segura,
de modo geral, para lidar com situações que, previamente a modificação de seu corpo, a deixavam
temerosa. O medo de cruzar com um homem em uma rua escura e deserta, por exemplo, diante das
elevadas taxas de feminicídio e de violência sexual no Brasil, é algo que não deixava de existir
mesmo em mulheres fortes e atléticas como Bia.
Os motivos que a fizeram buscar construir para si um corpo potente parecem ter mais a ver
com a superação de limites físicos e também com uma certa disposição a se manter sempre em
movimento, o que é levado a cabo através de um regime do tempo quase militar. Há hora certa para
comer – Bia se alimenta de três em três horas, seguindo à risca a dieta prescrita por sua nutricionista;
para ingerir os suplementos alimentares que ajudam na recuperação de seu corpo depois dos
treinamentos; para dormir – Bia raramente vai para cama depois das dez, o que faz com que
praticamente não saia durante a semana; para acordar – ela sempre levanta às cinco e meia; e,
finalmente, para se exercitar, atividade que Bia pratica religiosamente, durante seis dias por semana,
às vezes, duas vezes por dia, quando está perto de uma competição.

De uma nova ontologia do corpo a uma política dos prazeres


O que são esses corpos em suas aparições? Seus volumes, relevos, ligamentos, peles, ossos,
músculos – o que estão a dizer? Seja em imagens que captam o momento preciso em que uma
potência se faz ação ou é apenas sugerida, na elaboração de uma gramática corporal cuja
expressividade implica a criação de uma profusão de dobras que desorganizam alguns lugares-
comuns; seja em ato, em movimentos sujeitos a desafiar discursos normativos sobre o que um corpo
feminino é ou não capaz de fazer, minhas interlocutoras acabam por produzir diferenças capazes de
por algo em movimento, assim como uma diferença (de potencial) é necessária para o surgimento
de corrente elétrica. Iguais a qualquer outra mulher, posto que diferentes.
Para entender o lugar que esses corpos reivindicam, preciso pensá-los para além de sua
dimensão puramente imanente, em que pese toda a força de uma poética da experiência visível
neles por meio de suas marcas. Dessa forma, me parece importante recorrer também a uma analítica
do poder, a fim de ter mais claras as condições em que os corpos dessas mulheres (e suas mutações)
são produzidos. À quais agenciamentos eles estão submetidos e à quais outros, por sua própria
existência, se colocam como uma afronta?
É isso que Judith Butler (2015) dá a ver, quando faz soar alto a necessidade de evidenciar as
condições e mecanismos específicos do poder que estão por trás do que se entende por vida. Trata-
se, na verdade, de um exercício de esgarçar a rica estamparia urdida pelo discurso da essência, para
fazer com apareça o que lhe dá sustentação, movimento que não é incomum à filósofa, como fica
claro pela noção de que o gênero se constitui como performatividade, apresentando uma
plasticidade que vai além de qualquer substrato biológico. Na esteira da tentativa de tornar visíveis
a montagem das engrenagens de poder que buscam dizer o que é a vida, Butler afirma que, para
superar esse jogo de cena e ampliar as possibilidades de acesso a direitos, entre eles o direito à
sobrevivência – questão urgente entre pessoas transgênero7 e negras no Brasil, as quais têm morrido
aos milhares pelas mãos do estado, direta ou indiretamente – é preciso pensar uma nova ontologia
corporal, que “implique repensar a precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a interdependência, a
exposição, a subsistência corporal, o desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o
pertencimento social” (p. 15, 2015).
Para ela, não se trata, portanto, de abrir mão de uma ontologia, mas, antes, de compreender o
ser para além de uma investigação de suas estruturas fundamentais. O que está em jogo é pensar o
ser em uma relação coalescente com o Outro, instância formada por normas, organizações sociais e
políticas, as quais, ainda segundo a pensadora, “se desenvolveram historicamente a fim de
maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros” (p. 15, 2015). Não
há um “eu” que se constitua independentemente de um “tu”, já que é justamente essa alteridade
misteriosa, presente muito antes da chegada do sujeito ao mundo, que, ao interpelá-lo a dar um
relato de si mesmo, obriga-o, ao mesmo tempo, a encarar o que de si não pode dizer. Não porque

7 “Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus
diferentes, com comportamento e/ou papéis esperado do gênero que lhe foi determinado quando de seu nascimento”
(JESUS, 2012).
não queira, mas porque se trata de um dizer impossível, a denunciar a existência de uma opacidade
constitutiva do sujeito. Butler dialoga explicitamente com Lacan aqui.
Na formulação de sua teoria do sujeito, o psicanalista considera que este possui a estrutura
de um cross-cap, figura topológica bidimensional, para a qual, apesar de fechada, a ideia de “dentro”
e “fora” não se aplica, uma vez que apresenta um ponto, uma linha de penetração, em que o interior
se faz exterior e o exterior se faz interior. Com isso, ele tenta mostrar que, no sujeito, o inconsciente
opera desde dentro. O que significa que a alteridade, representada por esse grande Outro, é, desde o
momento mítico de fundação do sujeito, parte indissociável dele.
Seguindo esse raciocínio, não há ontologia que não seja social, já que é a subjetivação das
instâncias que compõe a vida em sociedade que vão, em última instância, situar esse ser como ser
para si, ou seja, condicionado pelo conjunto de forças sociais previamente existentes. Esse é o ser
ao qual a nova ontologia do corpo proposta por Butler se refere, uma vez que “ser um corpo é estar
exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do corpo uma
ontologia social”.
Essa discussão me é importante por colocar em perspectiva a prática corporal de minhas
interlocutoras, bem como estabelecer sua posicionalidade na complexa trama de poder e
normatividade que condicionam as relações de gênero. Não é estranha, a quem lida com pessoas
com algum grau de inadequação social, a tendência de romantizar suas práticas como sendo,
necessariamente, de resistência, deixando passar ao largo circunstâncias em que é possível observar
não só movimentos de ruptura, mas também de conformação a certas normas sociais que pareciam
entrar em contradição com elas.
Comigo se deu algo parecido. Ver minhas interlocutoras em seus espaços de treinamento,
construindo, com boa dose de sacrifício pessoal, um corpo musculoso e atlético que, por sua própria
potência, parecia as afastar, cada vez mais, do que seria considerado socialmente desejável para
uma mulher, me fez, em um primeiro momento, percebê-las como monumentos de resistência
contra a normatização do corpo feminino e toda a eulogia machista que o quer delicado, macio,
suave, pequeno, perfumado, maquiado, receptivo, passivo, limpo, cheiroso, depilado, magro, jovem
e arrumado. A fim de me contrapor a essa essencialização, passei a espelhar uma outra, tão pura
quanto a primeira, que ia montando seus corpos como máquinas de guerra contra o patriarcado. O
tempo foi me apontando que não era bem assim. Que as duas visões eram igualmente equivocadas.
Há alguns anos, por exemplo, Larissa pôs próteses de silicone, coisa que, aliás, é bastante
comum entre as fisiculturistas, uma vez que o desenvolvimento da musculatura peitoral e o baixo
nível de gordura que possuem acabam por fazer com que a maioria apresente seios considerados
pequenos pelos padrões dos árbitros dos torneios. Por incrível que pareça, apesar de não ser um
músculo, no caso das mulheres, seios grandes as tornam mais competitivas, porque, quando sobem
no palco, também são avaliadas por sua feminilidade, a qual é expressa não só pelo busto
avantajado, mas também pelas unhas bem feitas – para as competidoras isso seria impossível por
causa dos treinos, por isso recorrem às postiças – pelo cabelo arrumado, pela maquiagem e pela
maneira como executam suas poses, as quais devem ser compostas por gestos delicados e suaves.
Ainda no caso de Larissa, por competir na categoria mais extrema atualmente, conhecida como
Women’s Physique, há a exigência de que apresente uma pequena rotina de dança, como uma
maneira de tentar contrabalançar a potencial “masculinidade” de seu corpo.
Helena, por seu turno, mesmo dizendo amar o que faz, enfrenta questões subjetivas
importantes, fruto de uma inadequação entre sua arquitetura corporal e o modelo heteronormativo8
de corpo feminino. Ela sabe que precisa ter músculos desenvolvidos para poder desempenhar bem
todas as exigências do Crossfit. Apesar disso, em uma de nossas conversas sobre padrões de beleza,
disse que, se pudesse escolher, seria como a Mulher Maravilha, que é, a um só tempo, forte e magra.
Até usar biquíni na praia acaba sendo uma questão para ela, porque Helena sabe que seu corpo atrai
olhares que misturam curiosidade, preconceito e fetichização.
O que pude observar nelas foi a presença de elementos contraditórios: uns apontam para
uma problematização, ainda que não discursiva, da feminilidade normativa, enquanto outros
revelam concessões a ela. É uma economia complexa, em que observo a presença de um conjunto
de negociações que as permitem, muitas vezes, alargar os limites do que é ser uma mulher,
tomando, ao mesmo tempo, o cuidado de não rompê-los. Isso, no entanto, às vezes é inevitável.
Quando Larissa começou a ganhar seus músculos, ela estava casada com seu treinador à época, o
qual havia, segundo ela, topado embarcar no sonho de transformá-la em uma fisiculturista de
sucesso. Mas as modificações corporais, que não demoraram a aparecer, foram representando um
peso para o casamento, chegando ao ponto de ouvir de seu companheiro que ele “não havia casado
com um homem”. Em dado momento Larissa teve que escolher entre continuar casada ou perseguir
seu sonho. Ela ficou com a segunda opção e não se arrepende. Helena, da mesma forma. Apesar de
não gostar da imagem de seu corpo, de se ressentir das mãos calejadas - “tá vendo, parece mão de
trabalhador” - e de achar que está longe do ideal de corpo feminino, escolhe continuar seu caminho
no Crossfit, privilegiando a potência de seu físico em detrimento dos padrões que tentam limitá-lo.
Nesse sentido, o caso de Bia é interessante. Por ser uma mulher lésbica, ou seja, por já
ocupar um lugar socialmente marginal, essas questões sobre padrões corporais, que são, obviamente,
mais uma expressão de uma estrutura social machista, parecem não a incomodar tanto. Ao ter com
ela a mesma conversa que tive com Helena, descobri não só que Bia desejava mulheres fortes e

8 “A ideia de “heteronormatividade” refere-se a uma tendência compulsória da cultura de reproduzir a ideologia


dominante via um agenciamento estrutural da intimidade humana em instituições tradicionalmente heterossexuais,
como o casamento religioso e a família. Esse agenciamento da intimidade refletiria uma temporalidade análoga à do
sistema capitalista, baseada na (e dependente de) necessidade de “reprodução” (ASSUMPÇÃO, p. 46, 2011).
atléticas, mas que também se identificava muito com elas. Ao perguntar-lhe se havia um ideal de
corpo feminino que particularmente a interessasse, disse que ele se aproximava muito do de outras
atletas de Crossfit, cujas fotos acompanhava pelo Instagram.
Essa ontologia corporal, uma vez que é social, se dá a ver por meio de enquadramentos
específicos dos quais minhas interlocutoras estão ora próximas, ora afastadas. “Quadro” ou
“enquadramento” é um esquema interpretativo utilizado para entender determinado fenômeno ou
aspecto da realidade. Segundo Goffman (p. 22, 1974), os enquadramentos sociais “fornecem o
entendimento de fundo para eventos que incorporam a vontade, o propósito e o esforço controlador
de uma inteligência, uma agência viva, a principal delas sendo o ser humano”.
No livro “Quadros de Guerra”, Butler (2015) vai se apropriar dessa noção para pensar os
enquadramentos que atuam para diferenciar as vidas possíveis de serem apreendidas daquelas que
não o são, organizando não só uma experiência visual, mas também gerando ontologias específicas
do sujeito. Então, como parte da desmontagem dos mecanismos de poder que, em última instância,
dizem quem é digno ou não de luto, isto é, quem deve viver ou morrer, ela propõe uma
sobreposição reflexiva dos enquadramentos, a fim de demonstrar que sua moldura “nunca conteve
de fato a cena que se propunha ilustrar, que já havia algo de fora que tornava o próprio sentido de
dentro reconhecível” (p. 24). Ainda segundo Butler,
o “enquadramento” não é capaz de conter completamente o que transmite, e se rompe toda
vez que tenta dar uma organização definitiva a seu conteúdo. Em outras palavras, o
enquadramento não mantém nada integralmente em um lugar, mas ele mesmo se torna uma
espécie de rompimento perpétuo, sujeito a uma lógica temporal de acordo com a qual se
desloca de um lugar para o outro (p. 26, 2015).

Essa noção de que um enquadramento está em contínuo processo de rompimento radicaliza


e aprofunda as condições por meio das quais se dá, segundo Goffman, sua ruptura.
Pensando em minhas interlocutoras e na maneira como a sobreposição de seus
enquadramentos específicos pode dar a ver as condições em que ocorrem a mutação de seus corpos,
é possível afirmar que as três partilham do enquadramento comum “mulher”. As especificidades de
cada uma delas, entretanto, faz com que diferentes elementos vazem desse “quadro”, ocasionando,
por consequência, formas diversas de sua reorganização.
Dessa forma, se elas tem em comum o fato de serem mulheres, uma das diferenças que as
separa, a sexualidade, pode ser uma chave importante para compreender como se dá, em seus
corpos, a negociação entre “masculino” e “feminino”.
Pensando com Judith Butler, minha hipótese é a de que a inserção precária de Larissa, Bia e
Helena no referido “quadro”9 (afirmo que se trata de uma inserção precária porque a imagem de

9 Seguindo a reflexão de Butler (2015) sobre a sobreposição de enquadramentos, vê-se que tal quadro pode ser,
por sua vez, enquadrado como expressão de uma concepção normativa do gênero.
seus corpos musculosos é, muitas vezes, capaz de desorganizar todo um campo de relações de
gênero); e as tentativas de negociar aproximações e afastamentos dele, são capazes de apontar
algumas das linhas que norteiam tanto a maneira como se dá a modificação de seus corpos, como a
produção de suas identidades.
Pelo que pude observar até agora, posso dizer que, não fosse sua arquitetura corporal
avantajada, interpretada, muitas vezes, como masculina, Larissa e Helena seriam “lidas” como duas
mulheres absolutamente femininas. As mutações radicais que produzem em seus corpos pelos
treinamentos intensos, aliados à suplementação alimentar, no caso de Helena, e à aplicação de
anabolizantes, no caso de Larissa, acabam por tornar ambígua sua posição no campo de relações de
gênero, fazendo com que a imagem de seus corpos, dentro de uma perspectiva binária, oscile entre
um polo e outro.
A partir de um “meta-enquadramento” que interpreta o gênero sob um viés heteronormativo,
condicionando o enquadramento “mulher”, é como se seus corpos “traíssem” a possibilidade de elas
tomarem, sem maiores problemas, seus lugares como mulheres cisgênero 10 e heterossexuais. Com
isso não desejo afirmar que suas corporalidades sejam os únicos obstáculos a que reproduzam o
papel de submissão historicamente imputado às mulheres. Pelo contrário. Muito embora Larissa e
Helena gostem de se maquiar, de se sentirem bonitas, e de adotarem, de modo geral, um repertório
performativo “feminino”, o que pode ser percebido tanto pelas roupas que usam fora do espaço de
treinamento, quanto por seu esquema corporal como um todo – o modo como andam, falam e
gesticulam – elas reivindicam, para si, um protagonismo, que, se não está presente tanto em seus
discursos, certamente está em suas ações. Quando da separação de seu primeiro marido, por
exemplo, Larissa deixou-lhe a casa onde moravam e todos os móveis que ela mesma havia
comprado. Logo depois de me contar isso, disse que nunca precisara de homem para lhe sustentar e
que sempre fizera questão de ganhar o próprio dinheiro, postura que, ainda hoje, desagrada sua mãe,
cujo maior sonho é ver a filha casada com um homem rico. Helena, por sua vez, estuda, trabalha,
treina, cuida da casa e da filha, realizando a maior parte de seus deslocamentos de moto, veículo
normalmente associado à virilidade e à coragem.
O que tento afirmar, na verdade, é que, apesar dos consideráveis avanços conquistados pelo
feminismo, abrindo, à força, caminhos antes impensáveis para as mulheres, há uma certa “verdade
do corpo” que, mesmo hoje, continua não encontrando lugar. Talvez, a expressão mais radical disso
seja a experiência transexual, e a percepção dos corpos trans dentro do campo de relações
organizado pelo significante da abjeção. Talvez seja esse o ponto que faz com que o
reconhecimento de minhas interlocutoras como mulheres, por vezes, falhe ou seja concedido com

10 “Conceito “guarda-chuva”que abrange o grupo diversificado de pessoas que se identificam com o gênero que
lhes foi determinado quando de seu nascimento” (JESUS, 2012).
restrições. Isso também vale no caso de Bia. Como afirmei acima, o que vai mudar é a maneira
como cada uma responde a isso, levando em conta suas identidades distintas.
Por ser uma mulher lésbica, Bia possui marcas corporais que a afastam de uma expressão de
gênero heteronormativa, as quais já estavam presentes mesmo antes das transformações provocadas
pelo ganho de massa muscular. Nesse sentido, antes de se tornar forte, a carne de Bia já estava
gravada por sua dissidência de gênero. É como se, por causa disso, seus músculos fossem mais um
elemento a compor um cenário previamente estabelecido. Não à toa, as modificações corporais,
tidas como “masculinizantes”, que foram se presentificando em função da alimentação e da rotina
pesada de treinos e competições pareceram não pôr em questão sua identidade como mulher,
mesmo quando era colocada em suspeição por outras pessoas.
Minha hipótese, portanto, é que sua sexualidade lhe proporciona uma maior liberdade para
realizar, sem tantos constrangimentos, trânsitos entre masculinidade e feminilidade, uma vez que a
identidade lésbica, antes mesmo de seu ingresso no Crossfit, parecia já lhe apontar outras formas
possíveis de expressões de feminilidade.
Imagino que isso tenha a ver com o que Foucault (2004) aponta quando diz que o sexo não é
uma fatalidade, mas a possibilidade de uma vida criativa, da invenção de uma arte de viver. Isso não
quer dizer, segundo ele, que a sexualidade passe a ser considerada como o segredo da vida cultural
criadora. Na verdade, ela se inscreve na necessidade ou na possibilidade de criação de uma nova
vida cultural, que tenha como núcleo o exercício da liberdade sexual.
Em outras palavras, afirmo existir uma relação possível entre a sexualidade dissidente de
Bia e a utilização de um repertório maior de expressões de gênero, uma vez sua identidade lésbica e
a maneira aberta como a vivencia põem em questão não só enquadramento “mulher”, mas o
enquadramento anterior que o sustenta, o qual define o gênero a partir de uma visão
heteronormativa. O exercício de sua liberdade sexual, portanto, é que lhe vai permitir praticar com
mais criatividade a “arte de viver” a que se refere Foucault (2004), tendo em que vista que as
modificações levadas a efeito em seu corpo acontecem sem a presença tão marcante das injunções
patriarcais que, historicamente, buscam controlar o corpo das mulheres. Essa arte de viver, como o
filósofo destaca, tem a ver com maneiras de acessar o prazer que não passam necessariamente pelo
sexo, isto é, que implicam o corpo em outros regimes de sensações abertos à experimentação, seja
pelo uso de substâncias químicas – recreativas ou melhoradoras da performance, legais ou ilegais,
artificiais ou naturais – seja pela prática de atividades que o leve a extremos.
Não estou querendo dizer com isso que, somente pelo fato de serem heterossexuais, Larissa
e Helena não sejam capazes de gozar, tanto quanto Bia, de sua liberdade sexual. Na verdade, meu
ponto é que, de uma maneira geral, a identidade heterossexual parece ser mais suscetível a ser
capturada pelo discurso da heteronormatividade, que tenta fazer dessa escolha de objeto de desejo a
única possível, dotando àqueles e àquelas que recaem sob sua escritura de uma série de privilégios
não compartilhados por pessoas LGBTQIA11.
No entanto, tais privilégios são mantidos por nós heterossexuais à custa da perda de uma
grande dose de liberdade de inventar novas formas de expressão de si, tanto a partir do sexo, quanto
da formulação de outras políticas do prazer.
Para encerrar, gostaria de afirmar que, com essa discussão, não pretendo estabelecer
critérios a partir dos quais julgar quais das minhas interlocutoras são mais ou menos transgressoras
das normas de gênero. Minha intenção é abordar as especificidades de cada uma delas no processo
de modificação de seus corpos, passo que só pode ser dado por uma analítica do poder que desvele
as condições que guiam esse processo, as quais passam necessariamente pela sexualidade e pelo
gênero.
De diferentes maneiras e em diferentes intensidades, Helena, Larissa e Beatriz desafiam os
enquadramentos sociais que tentam limitar as possibilidades de invenção de si, o que, em seus casos,
passa, necessariamente, pela mutação de seus corpos. Tal processo lhes cobra uma boa medida de
dor – seja pela incompreensão dos cônjuges, pelas críticas dos familiares e pela desconfiança e
preconceito das pessoas em geral – e sacrifícios. Mas também lhes confere um enorme prazer em
fazer o que fazem, como pude observar nos olhos vivos de Larissa, no peito transbordante de
Helena e na entrega estóica de Bia.

11 Sigla para definir Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Trangêneros, pessoas Queer (conceito
que abrange pessoas de ambos os gêneros que possuem uma variedade de orientações, preferências e hábitos
sexuais), Intersexo (pessoas cuja característica física não é expressa por características sexuais exclusivamente
masculinas ou femininas) e assexual (pessoas que não possuem atração sexual nem por homens nem por mulheres)
(Fonte: http://prceu.usp.br/uspdiversidade/lgbtqia/o-que-e-lgbtqia/. Acesso em: 01/07/2018).
Referências bibliográficas

ASSUMPÇÃO, Pablo. Queimando o filme: performance, gênero, afetividade e coletividade, in: O


corpo implicado: leitura sobre corpo e performance na atualidade/Antonio Welllington
Oliveira Júnior [organizador]. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2011. 180p. ISBN: 978-85-
7563-946-7.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade.
Verve, 5: 260 – 277, 2004.
GOFFMAN, Erving. Frame Analysis. New York: Harper, 1974.
________________. Os quadros da experiência de análise: uma perspectiva de análise.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos /
Jaqueline Gomes de Jesus. Brasília: Autor, 2012.

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