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Ludwik Fleck

FABREFACTum , Gênese e
editora
desenvolvimento
EDITORES
CONSELHO EDITORIAL
de um fato
Prof. Rodrigo Ribeiro
Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Francisco de Paul a Antunes Lima
científico
Universidade Federal de Minas Gerais

MEMBROS Introdução à doutrina do estilo de


Prof. Antonio Arellano Hernández Dra. Maria Cristina Guimarães
Universidad Autónoma dei Estado de México Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ
pensamento e do coletivo de pensamento
Prof. David Hess Profa. Maria Elizabeth Antunes Lima
Rensselaer Potyteehnic Institute Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Dominique Vinck Profa. Maria Lúcia Álvares Maciel
UniversitéPierre Mendes France de Grenoble Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Harry Collins Prof. Mário Sérgio Salerno
Cardiff University Universidade de São Paulo
Prof. Henrique Luiz Cukierman Prof. Michel [ean Marie Thiollent
Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Ivan da Costa Marques Prof. Michelangelo Trigueiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade de Brasília
Prof. João Porto de Albuquerque Prof. Rob Evans
Universidade de São Paulo Cardiff University
Dr. José Marçal Iackson Filho Prof. Thales Haddad Novaes de Andrade
Fundacentro - RJ Universidade Federal de São Car/os
Profa. Léa Maria Leme Strini Velho Prof. Wiebe Bijker
Universidade Estadual de Campinas Maastricht University
Profa. Maíra Baumgarten
Universidade Federal do Rio Grande
Prof. YvesSchwartz
Université de Provence
FABREFACTU
editora
38 Gênese e desenvolvimento de um fato científico

outros atos. Ou talvez fosse melhor estabelecer uma analogia com o


comportamento de uma pessoa que participa de um fenômeno de
massa, como no caso de uma pessoa que visita casualmente a Bolsa
de Valores, que sente o pânico da queda apenas como uma força
externa, como existência real, não sabendo o quanto seu próprio
nervosismo, do qual não chega a ter consciência no meio da multi- Como surgiu o conceito
dão, contribuiu para esse pânico. Por esse motivo, fatos antigos do
cotidiano são pouco aptos para um estudo epistemológico. Os fatos
clássicos da física também passam a má impressão do hábito práti-
atual de sífilis
co e do desgaste teórico. Acredito, portanto, que um "fato mais a entidade nosológica místico-ética, empírico-terapêutica,
novo'; cuja descoberta não seja muito remota e que ainda não esteja
patogênica e etiológica - e sua sequência histórica
explorada em todos os aspectos para fins epistemológicos, corres-
ponda melhor aos fundamentos de uma investigação imparcial. Um
fato da medicina, cuja importância e aplicabilidade não pode ser
negada, é especialmente útil por apresentar uma configuração mui-
to rica tanto no plano histórico quanto no fenomenológico. Escolhi
um dos fatos mais aceitos da medicina, a saber, o fato de a chamada
reação de Wassermann ser relacionada com a sífilis.
Estamos em condições de rastrear as fontes históricas ~cfttsideias so-
Ora, como surgiu e em que consiste essefato empiricoi
bre a sífilis (Syphidologie) sem lacunas até o final do século xv. Elas
contêm descrições de uma doença específica mais ou menos dife-
Lwów, Polônia, no verão de 1934
renciada (de uma chamada entidade nosológica, como costumamos
dizer hoje), que corresponde historicamente ao nosso conceito de
sífilis, se bem que a delimitação e a designação da entidade nosoló-
gica tenham mudado consideravelmente. A sintomatologia da doen-
ça também passou por algumas mudanças. Por volta do final do
século Xv, a linha evolutiva do saber sobre a sífilis, para a nossa re-
trospectiva, desaparece num emaranhado não diferenciado de co-
nhecimentos da época sobre doenças mais ou menos epidêmicas e
crônicas com sintomas dermatológicos e frequente localização nos
órgãos genitais.
Além da sífilis, podemos suspeitar, nessa mistura primitiva
de entidades muito diversas, que se cristalizaram durante os séculos
seguintes, o que hoje distinguimos como lepra, escabiose, tubercu-
lose cutânea, óssea e glandular, varíola, micoses da pele, gonorreia,
cancro mole e, provavelmente, também o linfogranuloma venéreo e
muitas outras doenças de pele ainda hoje consideradas "não especí-
ficas'; além de doenças constitucionais, como, por exemplo, a gota.
40 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 41

A situação política confusa na Europa do final do século Xv, pela mesma razão seja fomentada, sobretudo sob o signo de escor-
as guerras, a fome, as catástrofes elementares, como o calor desco- pião, que "rege" as partes genitais .. :'3
munal e as inundações que assolavam inúmeras regiões, causavam Somente as relações explicadas dentro do mesmo estilo per-
um acúmulo terrível de epidemias e doenças. I Essa concentração de manecem na memória social e são passíveis de desenvolvimento.
flagelos e a horrível miséria dela decorrente atiçaram a atenção dos Dessa maneira, a astrologia contribuiu para definir o caráter vené-
pesquisadores e levaram ao desenvolvimento da ideia da sífilis. reo da sífilis como sendo sua primeira dífferentia specifica. A doutri-
Foi uma circunstância particular, sobretudo a constelação as- na religiosa da doença enquanto castigo pelo prazer pecaminoso e
trológica, que fez surgir essa ideia, ou pelo menos um de seus ele- da importância ética peculiar do coito fixou definitivamente esse
mentos: "A maioria dos escritores supõe que a conjunção de Satur- pilar central da sifilologia (Syphidologie), conferindo-lhe um caráter
no e Iúpiter em 25/11/1484, sob o signo do Escorpião e na casa de específico com uma ênfase no aspecto ético. ''Alguns remetem a
Marte, tenha sido a causa da epidemia venérea. O bom Iúpiter su- causa dessa doença a Deus, que teria enviado a doença, pois ele quer
cumbiu aos maus planetas Saturno e Marte, e o signo de Escorpião, que os seres humanos evitem o pecado da luxúria."
ao qual são submetidas as partes genitais, explica por que os órgãos A epidemia fornecia o material; a necessidade, o estímulo à
genitais eram o ponto de ataque das novas doenças." pesquisa. A astrologia, a ciência dominante, e a religião, criadora de
Quem sabe do papel dominante da astrologia naquele mo- um psiquismo místico, produziram aquele ambiente sociopsicoló-
mento vê com facilidade a importância propagandística dessa ex- gico que, durante séculos, havia favorecido a segregação e conse-
plicação astrológica da origem da sífilis para a pesquisa da época. quente fixação do caráter venéreo com ênfase psíquica da entidade
Verifica-se que quase todos os autores antigos fazem alusões à ori- nosológica recém-determinada. Assim, essa entidade. recebeu o es-
gem sideral da sífilis, como a primeira e mais importante causa da tigma da fatalidade e do pecaminoso, estigma este que carrega até
epidemia. "Além do mais, esse processo de doença, segundo a maio- hoje de acordo com o sentimento de amplas camadas sociais.
ria, tem início no aparelho genital e daí se expande para o corpo Essa ideia fundamental da sifilologia, a doutrina da natureza
inteiro: não se pode encontrar nenhuma outra doença que assim se venérea da sífilis" ou da sífilis enquanto doença venérea por excelên-
inicie. Mas eu próprio sou de opinião de que isso acontece por cau- cia, hoje nos parece ser demasiadamente ampla: não apenas abrange
sa de uma-certa analogia entre a genitália e essa doença, tendo em aquilo que hoje chamamos de sífilis, mas também as outras doenças
conta o influxo celeste, segundo afirmam os astrônomos, da con- venéreas, das quais foram isoladas até hoje, em ordem cronológica,
junção de Saturno e Iúpiter na terceira face/casa de Escorpião no 23
passo, ultrapassado o 1484 e, além disso, a configuração de outras
estrelas fixas, assim como do tempo e, simultaneamente, de demais 3 De morbo Gallico [Do Mal Francês], Benedicti Rinii Veneti, Tractatus. p. 18.
ocorrências. Disso decorre que, em longos intervalos de tempo, 4 Antonius Musa Brassavola, De morbo Gallico, Tractatus, apud Bloch, op. cit., vol. I.
p.17.
veem surgir muitas doenças e, ao mesmo tempo, muitos idosos 5 O nome "morbus venereus" deve-se supostamente a Bethencourt (1527), mas a na-
morrerem, como, de modo claro, mostraremos abaixo. E como da tureza venérea da doença já havia sido destacada antes. Ioh. Widmann, Tractatus de
ação conjunta dos astros essa doença tenha tirado sua origem e, pustulis et morbo qui vulgato namine mal Franzas appellatur [Tratado das Pústulas e da
Doença que, sob Denominação Popular, É Chamada Mal Francês], 1497: "Com máxi-
mo cuidado, contudo, deve-se evitar que se tenham relações sexuais com uma mulher
que apresente pústulas; o mesmo se aplica ao homem com pústulas: em relação a uma
I I. Bloch, Ursprung der Syphilis [Origem da Sífilis], 1901 e 1911, Vol. I. p. 138. Baas, mulher sadia, antes de um pequeno espaço de tempo, para que se evite o perigo do
Grundrifl der Geschichte der Medizin [Fundamentos da História da Medicina], 1876. contágio" (Geigel, p. 11). Almenár, de morbo Gal/ico libel/us [Livrinho sobre a Sífilis]
p. 259. Hergt, Geschichte, Erkenntnis und Heilung der Lustseuche [História, Descoberta e 1502: "Acautele-se o homem da excessiva intimidade com pessoas infectadas e, princi-
Cura da Epidemia Venérea], 1826. p. 47 e 56. palmente, evite o coito com uma mulher infectada; esta é, de verdade, uma doença
2 Bloch, op. cit., vol. r. p. 26. contagiosa:' (Geigel, p. 11).
42 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 43

a gonorreia, o cancro mole e, finalmente, o linfogranuloma venéreo. porque o mercúrio era o remédio preferido contra muitas outras
No entanto, sua fundamentação sociopsicológica e histórica era tão dermatoses, como, por exemplo, a escabiose e a lepra. Terceiro, por-
forte que foram necessários quatrocentos anos até que a influência que, se o efeito curativo do mercúrio fosse o único decisivo, não
de outras linhas de desenvolvimento pudessem levar a cabo sua se- haveria motivo de associar as outras doenças venéreas, como go-
paração definitiva. Essa tendência perseverante comprova que não norreia e cancro mole, à sífilis, uma vez que não reagem ao mercú-
foram as chamadas observações empíricas que realizaram a cons- rio. Por isso, o efeito curativo do mercúrio é, ao meu ver, apenas um
trução e a fixação da ideia, mas sim que fatores particulares oriun- fator secundário no reconhecimento da sífilis.
dos das profundezas da psique e da tradição desempenharam um Mesmo assim, não se deve ignorar sua importância, pois a apli-
papel decisivo. cação do mercúrio para a cura da sífilis era muito difundida. Assim,
Esse primeiro elemento dos conhecimentos sobre a sífilis, lê-se por exemplo: "Metálicas são, principalmente, a prata viva í= mer-
que surgiram no final do século XV e durante o século XVI, não cúrio]:' Ou "Funde-se a matéria com esses metais, especialmente a pra-
era, portanto, o único. Numa relação de efeito mútuo com esse ta viva (= mercúrio), eu, por minha vez, utilizo, de preferência, o ci-
elemento, surgiram três outras ideias, provenientes de outras ca- nábrio ao invés do sublimado." Curiosamente, até a salivação tóxica
madas sociais e outras épocas. Somente essa relação mútua, a co- durante a cura com mercúrio era considerada um efeito terapêutico,
laboração e o antagonismo entre essas ideias levaram à determi- como evacuatio da substância tóxica da sífilis. "Muitas vezes isso se faz,
nação da sífilis enquanto entidade nosológica ao estado atual. principalmente, pelo escarro (... pela evacuação), de nenhuma outra
A segunda ideia surge junto à empiria médica, isto é, do te- maneira melhor se pode fazê-lo do que pela prata viva l= mercúrio] :'8
souro farmacêutico. Sudhoff comenta: "Através da prática de dé- A aplicação do mercúrio à sífilis é tida como pma evidência
cadas, e certamente através de várias gerações, aprendeu-se a se- tradicional, embora associada ao risco da intoxicação. Mas, mesmo
parar do grande exército das moléstias cutâneas crônicas um assim, "Tão nobre e tão útil, sob muitos nomes, e necessário é o mer-
grupo que, mediante aplicações de pomadas de mercúrio, passou cúrio,"? Com o passar do tempo, os conhecimentos sobre os efeitos
a mostrar um efeito favorável ou até mesmo casos de cura [...] do mercúrio ganham vigor e tornam-se universais. Também é usa-
Esse conhecimento terapêutico também chega aos círculos do para o diagnóstico que se baseia no sucesso da cura (diagnóstico
dos clínicog gerais e, em meados do século XlV, encontramos, pela ex juvantibus).
primeira vez, uma denominação resumida dessas moléstias cutâ- Mas, mesmo até o século XIX, o mercúrio não era suficiente
neas crônicas que podem ser curadas mediante a aplicação geral de para se chegar satisfatoriamente à determinação do conceito de sí-
mercúrio, dentro do grande exército das escabioses, isto é, dos ecze- filis. Conforme à ideia de ser ela a epidemia venérea por excelência,
mas crônicos e das dermatoses afins, como Scabies grossai" agregavam-se à sífilis as outras doenças venéreas, isoladas posterior-
Sudhoff, portanto, vê no mercúrio, cuja aplicação está radica- mente com base no critério patogênico e etiológico, como a gonor-
da na vetusta terapia dos metais, o verdadeiro e único pai do con- reia, o cancro mole e suas complicações, assim como doenças locais
ceito de sífilis, o que me parece ser inadequado. Primeiro, porque dos órgãos genitais, como a balanite, tidas ainda atualmente como
há textos antigos sobre a sífilis nos quais o mercúrio não é men- "inespecíficas" Tais doenças não são influenciadas pelo mercúrio; ou
cionado, apesar de falarem dessa entidade nosológica. Segundo, seja, para unir as duas hipóteses, tanto a do mercúrio quanto a da

6 Um dos nomes antigos para a sífilis. As opiniões de Sudhoff sobre os diagnósticos 7 De morbo Gallico [Do Mal Francês], Fran. Frizimelicae, Tract. p. 33.
da sífilis já no século XIV não são geralmente reconhecidas. É somente no final do 8 Ibid., p. 33.
século XV que a doença ganha a atenção pública. Sudhoff. Der Ursprung der Syphilis 9 Methodus de morbo Gallico [Método Contra o Mal Francês], Prosperi Borgarutii,
[A Origem da Sífilis], 1913. p. 13-14. 1567. p. 178.
Como surgiu o conceito atual de sífilis 45
44 Gênese e desenvolvimento de um fato científico

doença venérea, declarava-se que "em alguns casos, o mercúrio não Mesmo no final do século XIX, havia pessoas que ainda duvi-
cura a doença venérea, mas chega a piorá-Ia."? Assim, evitou-se um davam. Dr. JosefHermann, "médico-chefe e diretor do departamen-
posicionamento definitivo. Na verdade, a hipótese do mercúrio so- to para sífilis no Hospital Imperial e Real Wieden em Vienà', duran-
mente ganha importância na investigação da chamada sífilis constitu- te um longo período (de 1858 a 1888), redigiu, por volta do ano de
cional, isto é, no estágio da infecção generalizada. O estágio primário, 1890, uma brochura que dizia: "Não existe sífilis constitucional:'I2
propriamente venéreo por se localizar nos genitais, não foi atingido Na opinião de Hermann, sífilis é "uma doença simples e localizada,
por essa hipótese: era o domínio da ideia da epidemia venérea. que nunca passa para o sangue da pessoa, que é perfeitament~ curá-
Dessa maneira surgiram e se desenvolveram, em paralelo, em vel, que nunca deixa sequelas permanentes e nunca se transmite por
conjunto e em oposição, duas posições: 1) a entidade nosológica éti- procriação e não é hereditária:' Ela se manifesta na forma do cancro
co mística chamada "epidemia venérea" e 2) a entidade nosológica ou da gonorreia, "assim como todas as sequelas imediatas dessas
ernpírico-terapêutíca. Nenhuma dessas duas posições foi mantida duas afecções primitivas", sendo que todos os sintomas genéricos,
rigorosamente; ambas, apesar de contraditórias, confundiram-se. esse "verdadeiro exército de formas patológicas, que intervêm tão
Elementos teóricos e práticos, apriorísticos e puramente empíricos profundamente na vida social das pessoas e até em gerações intei-
se interpenetraram - não segundo as regras da lógica, mas da psico- ras, não são sífilis em absoluto, mas exclusivamente produtos da
logia: a empiria cedeu o lugar aos apriorismos emotivos. cura com mercúrio e de outras discrasias" Para Herrnann, a sífilis
Havia também médicos que duvidaram até mesmo da exis- ainda é a antiga epidemia venérea, mas sem os sintomas genéricos,
tência da sífilis. Num texto do século XVI, lê-se: "Dizem alguns ver-
.~
dadeiramente não existir a doença gálica (a sífilis), mas ser isso uma
o período de incubação da sífilis é de 24 horas; no caso do cancro mole, isso é ~o~sível.
certa ilusão de nossos homens. De fato, o que qualificamos como Os bubões purulentos também fazem parte do cancro mole, mas nunca da sífilis. Os
síflis, eles dizem ser diversas outras doenças': II sintomas secundários descritos, porém, que aparecem depois de três meses, não fazem
parte do cancro mole; podem indicar sífilis, mas também qualqu~r ?utra doença "não
específica" O decoctum Guaiaci [infusão de Guáiaco) - um remedl? muito us~do na
medicina da época _ apenas comprova de que o médico estava suspeitando ?e ~lfil,ls. O
10 Hergt, Geschichte, Erkenntnis und Heilung der Lustseuche [História, Descoberta e
Cura da Epidemia Venérea). Hadamar, 1826. O livro apresenta uma dedicatória carac- suposto efeito curativo, por sua vez, não comprova nada, P,OlSdec. Guaiaci nao ~ ~m
terística: "Aos oxídulos de mercúrio, óxidos de mercúrio e sais de mercúrio o autor remédio específico contra aquilo que hoje chamamos de sffilis.Todo o relato medico
presta o maior respeito pelos seus méritos em favor da humanidade sofrida:' descreve um quadro vago e esquemático da epidemia venérea mítica (castidade, sedu-
ção, castigo nos órgãos genitais, doença generalizada, cura por meio de,dec ', Guaiaci).
" De Morbo Ga/lico, [Da Sífilis (dois volumes)); Bernhardinus Tomitanus. p. 66. To-
Seria impossível traduzi-lo na linguagem médica moderna, pois, para nos, nao se tra.ta
mitanus acredita ter fornecido a prova em contrário no seguinte quadro patológico:
de um "caso puro". Sintomas semelhantes e a sequência semelhante de sua manifestação
"Era um jovem de 22 anos, de equilibrada constituição sanguínea:' ... Estudava com
poderiam apontar para uma infecção mista de cancro mole e sífilis, ou de cancro mole
dedicação e castidade em Pádua. Os maus colegas fizeram com que fosse seduzido por
e uma doença não venérea, independente após três meses. (Sobre isso, cf. nota p. 114).
uma''meretriz belíssima" "No dia seguinte, o prepúcio começa a doer, mas ele não dá
nenhuma importância. No outro dia, doeu ainda mais, enfim, observando bem nota 12 Hermann, Iosef ''A sífilis constitucional não existi'. Hagen/Westphalen. Ele fez es-
uma certa erosão avermelhada em outra parte da glande do pênis, e, daí, nasce um cola suas ideias eram muito citadas. Era possível manifestar essa opinião mais ou me-
ponto de podridão. Passados 14 dias, um bubão aparece em seu fêrnur', onde o médico nos '12 anos após a descoberta do agente da gonorreia por Neisser (1879) e dois anos
aplicou uma incisão para depois limpá-Ia. "Quando se passaram três meses, começou após a descoberta do agente do cancro mole por Ducrey (1889). Hermann apoia sua
a sentir dores por todas as articulações e a perder os cabelos, e se tornou disforme, teoria no fato de ter encontrado mercúrio nos excrementos de pacientes, que outros
magro, lívido, incapaz de movimentos, triste, gemebundo e incapaz de todas as ações:' haviam identificado como sifilíticos constitucionais, da mesma maneira como tinha
"Por conselho do médico, tomou um infusão de Guáiaco, até aproximadamente a me- sido detectado em operários de fábricas de espelhos que sofriam de intoxicação por
tade da primavera, quando plenamente curado e tendo recebido alta, partiu." "Digam mercúrio, apresentando também sintomas genéricos diversos, em parte muito ~eme-
os defensores de paradoxos - exige Tomitanus daqueles que duvidam dele - se por lhantes. Hermann via nesse hidrargirose uma doença constitucional, hereditária e
acaso esta doença, que surge desse motivo, esteja entre as afecções antigas ou se seja multifacetada. Ele tratava seus pacientes sem mercúrio e afirmava nunca ter visto reci-
uma doença nova, até agora não relatada:' - Quando se lê esse relato com a esperança divas' mas apenas infecções novas, eventualmente outras. As ideias de Hermann~ por-
ingênua de que aqui esteja falando a "sagrada observação': a "visão simples e decisiva': o tanto, não representam um simples engano, mas um sistema fechado de opirnoes: a
leitor logo se decepciona: o caso, pelo menos, não é um caso puro. De maneira alguma, realização do postulado "De volta ao tempo pré-rnercúríol"
46 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 47

apenas como doença localizada. Uma doença sifilítica genérica teria dos experimentos. A história registrou inúmeras experiências e ob-
que partir da existência da sífilis no sangue como "premissa máxi- servações sobre inoculações, reinoculações e condições imunológi-
ma". Entretanto, a "existência do sangue sifilítico é um teorema dog- casoEstá equivocado, no entanto, quem acredita que as experiências,
mático, sem que houvesse a mínima prova para tal:' Hermann ex- por mais claras que fossem pensadas, sempre deram o resultado
plica ainda "que, mesmo no futuro, não se encontrará no sangue de "certo': Eram importantes enquanto germes de um novo método,
sifilíticos qualquer sinal patognomônico da sífilis:' mas não tinham valor de provas.
Por um motivo, essa posição extrema é particularmente impor- Havia a polêmica entre os adeptos da identidade da gonorreia
tante para a nossa exposição, mesmo que as opiniões de Hermann, com a sífilis e com o cancro mole (doutrina da identidade) e os mé-
comparadas ao nível da época, tenham um aspecto um tanto fossi- dicos que queriam decompor a "epidemia venérea" (Lustseuche) em
lizado: ela testemunha a força com que se associava a sífilis ao mer- várias entidades nosológicas. "Alguns médicos, nomeadamente An-
cúrio e como a necessidade causada pela plurimorfismo dos sinto- dré e Swediauer, tentavam comprovar a identidade da substância
mas da sífilis fez surgir o "grito pelo exame de sangue" enquanto infecciosa das duas doenças a partir da mucos idade da gonorreia e
meio para a elaboração precisa da entidade nosológíca." do pus do cancro. Depois de algumas experiências, dizia-se que a
Há, portanto, algo de indefinido, inacabado nesse conceito de substância tóxica da gonorreia era capaz de causar o cancro e vice-
sífilis. Os dois caminhos que levaram a ele se contradiziam, contra- -versa, que o último poderia causar a gonorreia. Muitos aderiram a
dição esta que se tornava tanto mais nítida, quanto mais fraco se essa opinião. Fritze considerava que ambos diferiam não generica-
tornava o encanto pelo fundamento ético-místico no decorrer da mente, porém como espécies"!' A diferença estaria no fato de que,
mudança no estilo do pensamento e quanto novos detalhes surgiam em alguns organismos, o material patológico estaria "de~asiadamen-
te fraco para produzir o cancro, mas suficientemente forte para cau-
sobre os fenômenos em questão.
sar a gonorreía" Hunter" inoculou pus de gonorreia na pele dos
Para a elaboração acabada do conceito, para sua existência
órgãos genitais de uma pessoa saudável e obteve um abscesso segui-
objetiva e inabalável, para tomar forma como "fato real" indubitá-
do pela sífilis típica. Ele afirmava a identidade da gonorreia com a
vel, esse conceito era demasiadamente oscilante, pouco entrelaçado
sífilis, mas distinguia entre o cancro mole e o duro ou endurecido,
com o saber da época.
sendo que somente este último faria parte da sífilis (doutrina da dua-
A não consideração de algumas áreas importantes corrompia
lidade). Disso surgiu a doutrina da pseudossífilis, isto é, de uma
principalmente a beleza intelectual da imagem: continuou intocada
doença semelhante à sífilis, porém fundamentalmente diferente, não
a delimitação das doenças venéreas com sintomas genéricos em re-
precedida pelo cancro duro.
lação àquelas sem sintomas genéricos ou com sintomas genéricos
Uma outra escola diferenciava a substância tóxica da gonor-
raros (gonorreia). Acrescenta-se, além disso, o problema da sífilis he-
rei a daquela da sífilis, mas considerava a gonorreia como estágio
reditária e das deficiências dos descendentes de pais luéticos; o enig-
primário de uma doença constitucional generalizada, da "epide-
ma da sífilis latente e do ressurgimento da doença; a relação com
mia gonorreica" (influência da doutrina sobre a sífilis). Os unitaristas
algumas outras doenças como tabes e paralisia progressiva, lúpus,
(Ricord)," uma outra escola dessa época, separavam totalmente a
escrofulose etc., que já foi levantada diversas vezes. Já havia chega-
gonorreia da sífilis. Defendiam, entretanto, a identidade entre can-
do a época do saber multifacetado e elaborado em seus detalhes e
cro mole e duro e falavam numa disposição específica para doenças

13 Para Simon (por volta de 1850), "a chamada epidemia venérea moderna não é outra
14 Hergt, op. cit., p. 78. Os médicos mencionados viveram no século XVIII.
coisa a não ser uma variante específica da antiquíssima lepra que, no final do século
XV, chegou a ganhar, sob circunstâncias peculiares, uma autonomia terrível:' (Simon, 15 Iohn Hunter, 1728-1793.
Ricords Lehre von der Syphilis [A Teoria de Ricord sobre a Sífilis]. Hamburg, 1851. p. 3.) 16 Philippe Ricord, 1800-1889.
Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 49
48

sifilíticas, que seria necessária para que o estágio generalizado suce- terapêutico muito prático para aquilo que hoje chamamos de está-
desse ao cancro. E, finalmente, a nova doutrina dualista" distinguia gio primário e secundário; o estágio terciário e as doenças metalué-
tanto a gonorreia quanto o cancro mole da sífilis. ticas, todavia, ficariam fora dessa relação. Os unitaristas etc. teriam
Tudo isso se refere apenas à distinção entre diversas doenças que adotar uma convenção muito intricada, mas aqui também ha-
venéreas, mas está longe da problemática do conceito de sífilis como veria como construir uma descrição adaptada aos seus postulados.
um todo, como, por exemplo, em sua relação com a tabe ou a para- Com base nessa posição formal, portanto, pode-se enxergar
lisia progressiva. Esses problemas ficaram reservados à segunda acoplamentos que dependem de uma escolha, ou seja, ligações livres,
metade do século XIX e ao século XX, à sua patogênese e ao desen- e aqueles que são resultado de uma relação obrigatória. Ora, quem
volvimento da etiologia. reconhece a economia de pensamento," como a intenção que esco-
Se considerarmos o ponto de vista puramente teórico do sé- lhe entre os acoplamentos livres e ativos, encontra-se no fundamen-
culo XVIII, bem como da primeira metade do século XIX, podem to da doutrina de Mach. >t-
ser feitas observações que se seguem. Em primeiro lugar, no entanto, todas essas posições formais
O conceito de sífilis, que aqui nos interessa apenas como um não levam em consideração, ou o fazem em reduzida medida, o
dos conceitos da proposição sobre a relação entre a sífilis e a reação condicionamento cultural e histórico da suposta escolha epísterno-
de Wassermann, define-se, por sua vez, por proposições que inter- lógica (erkenntnistheoretischen), da suposta convenção. O século
ligam um número x de outros conceitos. Analisando os diversos XVI não tinha a liberdade de trocar o conceito místico-ético de sí-
conceitos de sífilis que apresentamos - (1) o conceito da epidemia filis por um científico patogênico. Existe um vínculono estilo de
venérea (Lustseuche), (2) o conceito empírico-terapêutico (mercú- todos - ou muitos - conceitos de uma época, vínculo que consiste
rio) da sífilis, (3) os conceitos patológico-experimentais dos a) unita- em sua influência mútua. Por isso, pode-se falar nurrrestilo de pen-
ristas, b) dualistas, c) adeptos da doutrina da identidade etc. - ape- samento (Denkstil) que determina o estilo de todo conceito. A his-
nas em sua estrutura formal e independentemente dos seus vínculos tória ensina que pode haver lutas árduas pelas definições de concei-
histórico-culturais, parece que se trata apenas de uma discussão em tos. Isso mostra como as convenções igualmente possíveis não são
torno de uma definição adequada. Todas essas posições se apoiam enxergadas como equivalentes, independentemente de quaisquer
em observações e, eventualmente, em experimentos; nenhuma de- razões utilitaristas.
las pode simplesmente ser declarada como falsa: pode-se definir a Em segundo lugar, pode-se constatar lógicas históricas pró-
sífilis dessa ou da outra maneira, mas sempre predeterminando as prias no destino das ideias, isto é, fenômenos gerais peculiares da his-
consequências. É como se houvesse, portanto, uma certa liberdade tória do conhecimento que se impõem ao observador da evolução
nesse sentido, e como se somente em seguida, depois de se fazer
uma escolha, resultassem acoplamentos inevitáveis. Essa opinião,
como se sabe, é defendida pelo convencionalismo. Assim, teríamos 18 Opiniões vistas de uma perspectiva a posteriori muitas vezes parecem ser econô-
toda liberdade de definir a sífilis como epidemia venérea por exce- micas, principalmente quando as pessoas se acostumavam a elas. Uma estrutura exis-
tente sempre é mais econômica que uma estrutura projetada, se, dentro de um deter-
lência, de modo que a gonorreia e o cancro mole etc. estariam minado tempo, os investimentos não são amortizados mediante o lucro da estrutura
naturalmente incluídos nessa definição e que se deveria renunciar a nova, que, como tal, é mais econômica. Uma vez que as opiniões são de duração limi-
uma unidade terapêutica, talvez até mesmo a uma terapia racional tada, mudanças dispendiosas para reformulá-las quase sempre são antieconômicas.
Tenho as minhas dúvidas de que a economia de pensamento em algum momento te-
em geral. Também se poderia construir uma definição partindo
nha sido um critério decisivo, a não ser em pequenos problemas insignificativos.
da utilidade do mercúrio, de modo que se chegasse a um conceito • De inspiração evolucionária, Economia de pensamento é uma doutrina do físico e
filósofo austríaco Enrst Mach (1838-1916) segundo a qual na natureza tudo tem seu
lugar. Com efeito, para Mach, a ciência deveria procurar fornecer uma descrição da
17 Em duas modalidades: uma doutrina dualista francesa e outra alemã. natureza da forma mais econômica possível. (N.R.)
50 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 51

das ideias. Muitas teorias, por exemplo, passam por duas épocas: Entre o experimento e a experiência assim concebida há, po-
primeiro por uma clássica, na qual tudo mostra uma consistência rém, uma diferença muito importante: o experimento pode ser inter-
notável, e depois por uma segunda, na qual surgem exceções. Ou pretado como uma pergunta e uma resposta simples, ao passo que a
então fica visível como algumas ideias aparecem muito antes de se experiência deve ser entendida como um estado de educação que
conhecer suas razões e de uma maneira totalmente independente repousa na dialética entre o sujeito do conhecimento, o objeto já co-
delas; e evidencia-se, ainda, como o encontro de certas ideias gera nhecido e o objeto a ser conhecido. O alcance de habilidades físicas e
fenômenos particulares. E, finalmente, quanto mais um domínio psíquicas, a coleta de uma certa quantidade de observações e experi-
do saber é sistematicamente elaborado e rico em detalhes e relações mentos, a capacidade de adaptações plásticas de conceitos represen-
com outros domínios, tanto menores são as diferenças de opiniões. tam, entretanto, uma série de circunstâncias que escapam a um con-
Quando se leva em conta essas relações gerais da história cul- trole Iógico- formal, sendo que a mencionada dialética impossibilita,
tural e as particulares da história do conhecimento, limita-se signifi- de vez, uma análise lógico-formal do processo de conhecimento.
cativamente o convencionalismo. No lugar da escolha livre e racio- Por isso, não pode existir nenhuma teoria especulativa do co-
nalista, surgem condições específicas. Mesmo assim, encontram-se nhecimento, nem como dedução de alguns poucos exemplos: ain-
sempre no conteúdo do conhecimento outras relações que não se da há muita coisa a ser investigada e descoberta empiricamente no
explicam psicologicamente (seja no plano individual, seja no cole-
processo do conhecimento.
tivo), nem historicamente. Por isso, elas passam a impressão de se-
Voltando ao tema e ocupando-nos da evolução posterior do
rem relações "reais': "objetivas" ou "efetivas': Nós as denominamos
conceito de sífilis, temos que falar de duas outras ideias glle comple-
de relações passivas, em oposição àquelas outras, que denominamos
taram sua forma atual. Trata-se da ideia da sífilis enquanto entidade
ativas. Assim, na nossa história da sífilis, a união de todas as doenças
nosológica patogenética (no sentido mais amplo da -palavra) e da
venéreas sob o conceito da "epidemia venérea" representava um aco-
ideia da entidade especificamente etiológica.
plamento ativo dos fenômenos, que se explica pela história cultural.
Ao contrário disso, a descrição do efeito do mercúrio na frase citada Ideias pato genéticas sobre a sífilis, isto é, opiniões sobre o me-
acima, "em alguns casos, o mercúrio não cura a doença venérea, mas canismo das relações patológicas, já aparecem nos primeiros escri-
chega a piorá-Ia" representa, em relação ao ato do conhecimento, tos sobre a doença. Tais escritos quase sempre defendiam a dou-
um acoplamento passivo. É claro, ainda, que esse acoplamento passi- trina da discrasia, a da má mistura ou da mistura corrompida dos
vo sozinho, sem o conceito da epidemia venérea, nem poderia ter humores. Essa doutrina, que na verdade não passava de uma fórmu-
sido formulado, assim como o próprio conceito "epidemia venérea', la fantasiosa, pois dispunha apenas de dez opções de combinação
ao lado dos elementos ativos, também contém elementos passivos. para resolver a questão de todas as doenças, dominava toda a medi-
Além dessa doutrina dos acoplamentos ativos e passivos e suas cina. Descrever suas peripécias levaria longe demaisHá de se des-
inevitáveis interligações, torna-se evidente, a partir da história do tacar um aspecto: da doutrina geral da mistura dos humores surgiu
desenvolvimento do conceito de sífilis até hoje, a importância redu- a ideia do sangue corrompido dos sifilíticos.
zida de um único experimento em comparação com a experiência Essa altera tio sanguinis [alteração do sangue] era uma fórmu-
numa determinada área, constituída de experimentos, observações, Ia de explicação muito usada para todas as doenças genéricas," mas,
habilidades e adaptações conceituais. Até mesmo um experimentum na medida em que diminuía cada vez mais no caso das outras doen-
crucis [experimento crucial, experimento-chave] heroico, à manei- ças, tornava-se cada vez mais complexa no caso da sífilis.
ra como Hunter o realizou, não prova nada, pois hoje o seu resul-
tado pode e deve ser avaliado como coincidência ou erro. Hoje
19 Podemos ler, por exemplo, em Thomae Sydenham: Opera medica [Obras Médicas].
sabemos que uma experiência maior na área das inoculações con-
Venetiis, 1735. p. 3: "Especialmente no que concerne a febres [ ... ] denominações pelas
duziria Hunter a rever suas conclusões. quais são diagnosticadas procedem de uma notável alteração marcada no sangue':
52 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 53

Podemos ler fórmulas como, por exemplo: "Por vezes, como dessa doença tomou formas mais bem definidas e em que o enorme
os ossos, também as membranas e os nervos se nutrem de sangue polimorfismo do quadro clínico se tornou cada vez mais nítido'?"
melancólico (enegrecido pela bile), o qual, por ter-se infectado de
''A primeira teoria considerava o material infeccioso como um
uma qualidade ruim, não convenientemente se transmuta em subs-
líquido altamente corrosivo que, misturado ao sangue, gera a forma
tância de boa nutrição, daí acontece que superfluidades - muitas
autônoma."? "Mais tarde, quando se difundiu cada vez mais a opi-
delas se multiplicam - aí presentes são causa das dores acima referi-
nião de que a epidemia sifilítica decorre do sangue alterado e outros
das.?" Essa é uma explicação pelas dores nos ossos em caso de sífilis.
líquidos';" a erupção cutânea era vista como uma tentativa da natu-
Ou: "Tal como no tempo de febres epidêmicas, uma qualidade má
reza, "que procuraria uma saída para afastar a substância patológicà'32
(um elemento nocivo), que reside oculto/a no ar, ataca o próprio co-
através da pele. "Sífilis são pústulas geradas de variada degradação
ração, corrompendo a respiração (o aparelho respiratório) e o san-
de humores:' (Leonicenus)." A cura era vista como uma purificação
gue.?' Ou: "O sangue (nos caso de sífilis) de bom a mau se converte,
ou um adocicamento do sangue. "Os membros repelem o sangue
contrariamente à sua condição naturaI:'22 Ou: "Aqui, de fato, aberta-
infectado, destinado como alimento, quando esse lhes chega para
mente, úlcera e crostas se percebem manifestas. A causa, sem dúvi-
nutrir, e é naturalmente expelido tanto para a pele, quanto para o
da, é o sangue exageradamente quente e espesso, infectado por uma
emunctório do corpo todo. Daí, principalmente, decorre o mal, ou
substância venenosa'?' Ou: "Nem isso se constata muito ausente na-
seja, a deterioração da pele e é daí que surgem as pústulas de Saphato,
queles que sofrem de sífilis, quando, no início dessa doença, o san-
as asperezas da pele e as deformidades, que enfeiam" (Cataneus)."
gue se apresenta corrompido pela infecção adquirida, longe ainda do
menor sinal de podridão.?" Ou: "Sífilis é um mal que nasce de uma Por volta de 1867, Geigel escreve: "O fato de o sangue, enquan-
to reservatório geral da alimentação, ser suscetível a determinadas
infecção completa da massa sanguínea:' (Cataneus)." Ou: "O san-
alterações materiais no decorrer da sífilis, pode ser deduzido, com
gue, afastando-se de seu estado natural, modifica-se" (Fallopia)."
razão, das anomalias da nutrição, que somente assim se explicam,
Ora, a sífilis é uma doença bastante pluriforme. Com frequên-
da mesma maneira que essas alterações não são as mesmas durante
cia, lê-se em escritos antigos que seria um morbus proteiformis
todas as fases da sífilis'?"
[doença pluriformeJ, sua natureza lembraria, por causa da diversi-
dade de suas formas, Proteu ou um camaleão." Bloch escreve que Em 1894, Reich, depois de enumerar todos os sintomas pos-
havia poucas doenças e poucos sintomas que não fossem relaciona- síveis e impossíveis da sífilis, afirma:" "Tudo isso deve ser necessa-
dos à sífilis." Procurava-se, portanto, aquilo que havia de comum, riamente associado à química alterada do sangue:'; "O sangue dos
de específico no sangue corrompido.
"As tentativas de possibilitar um diagnóstico da sífilis a partir 29 Bruck, Die Serodiagnose der Syphilis [O Soro diagnóstico da Sífilis]. 1924. p. 1.
do sangue remontam à época em que o conhecimento da patologia 30 Wendt, Die Lustseuche. 1827. p. 9.
31 Bierkowski, Choroby syfilityczne. 1833. p. 36.
32 Hergt, Geschichte, Erkenninis und Heilung der Lustseuche [História, Descoberta e
20 BartoI. Montagnanae iunioris de morbo Gallico consilium. p. 3. Cura da Epidemia Venérea], 1826. p. 58.
21 Ibid. 33 Apud Geigel, op. cit., p. 7.
22 Bem. Tomitani: De morbo Gallico, libri duo. p. 74. 34 Apud Geigel, op. cit., p. 19.
23 Ibid. p. 88. 35 Geígel, p. 223. Aqui se encontra também uma tentativa mais extensa de analisar as
24 Ibid. p. 113. alterações do sangue.
25 Apud Geigel: Geschichte, Pathologie und Therapie der Syphilis. Würzburg, 1867. p. 12. 36 Reich, Über den Einfluj3 der Syphilis auf das Familienleben [Sobre a Influência da
26 Apud Geigel, p. 39. Sífilis na Vida Familiar]. Amsterdam, por volta de 1894. Segundo Reich, fazem parte
27 Ibid. da sífilis também a cárie de cada osso, abscessos do psoas e da região lombar, tísica de
qualquer espécie e idade, quaisquer problemas tuberculosos, raquitismo, nervos doen-
28 Bloch, op. cit., p. 98.
tes, almas doentes, constituição frágil etc.
, 54 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 55

sifilíticos difere inegavelmente daquele dos saudáveis, como ficou Rille, Oppenheim e Lôwenbach. A diminuição da resistência dos
comprovado indiretamente através dos diversos sintomas e como foi eritrócitos no caso de lues, afirmada por Monnod, Verrati, Serren-
exposto também por E.J. Gauthier, que constatou um teor menor de tino e especialmente por Iustus, que se manifestaria através de uma
água e de sal de cozinha. Nessa época, portanto, concretizou-se a queda do teor de hemoglobina após a primeira injeção de mercúrio,
ideia do sangue sifilítico. não pôde ser confirmada por Nagelschmidt. Da mesma maneira, as
Hermann, que já conhecemos pela sua posição antissocial e pesquisas sobre um aumento do teor de proteína do sangue de sifi-
cujas lutas homéricas contra o "dogma do sangue sifilítico" já comen- líticos (Ricord, Grossi e outros) e aquelas sobre alterações nas rea-
tamos, descreve algumas tentativas contemporâneas de comprovar ções, definições do ponto de congelamento etc. não cumpriram seu
objetivo. Mas também os trabalhos de Detre e Sellei sobre a aglutina-
a alteração sifilítica do sangue. Havia, portanto, experimentos em
bilidade de lues e sangue normal, trabalhos já inspirados pela mo-
que se transmitiu sífilis com o sangue." "Além disso, alega-se, como
derna doutrina imunológica, assim como aqueles de Nagelschmidt
argumento em favor do sangue sifilítico, o fato de a sífilis ser transmis-
sobre os efeitos de aglutinação, de hemólise e precipitação do soro
sível na vacina da varíola bovina?" Hermann ainda relata como,
luético não levaram a um sucesso prático:'
numa reunião da Sociedade Médica em Viena, no dia 12/1/1872,
Com uma insistência surpreendente, testavam-se, como em
"um jovem filho de Esculápio (Dr. Lostorfer) disse que todos os exa-
nenhum outro caso, todos os métodos possíveis para comprovar e
mes de sangue feitos até então não deram nenhum resultado palpá-
realizar a velha ideia do sangue sifilítico - até se chegar ao sucesso
vel devido a métodos equivocados e declarou-se descobridor, ou
da chamada reação de Wassermann. Essa descoberta deu então iní-
melhor; inventor dos glóbulos sifilíticos, que existiriam somente no
cio a algumas linhas de pesquisa muito importantes; p'odemos di-
sangue de sifilíticos e cuja ocorrência no sangue permitiria o diag-
zer, sem muito exagero, que ela se revelou como decisiv~.
nóstico exato da sífilis constitucional em todos os sentidos:' Já de-
Primeiro porque a sífilis passou a ser mais bem delimitada,
pois de alguns dias, ficou comprovado o equívoco desse método,
principalmente no âmbito do estágio secundário e terciário, mas es-
porque esses glóbulos sifilíticos "não seriam de maneira alguma uma
pecialmente no âmbito das chamadas doenças metaluéticas, isto é,
característica da sífilis".Soubemos ainda que já existia uma "pesqui-
tabes dorsalis e paralysis progressiva (paralisia progressiva). Além dis-
sa com o sangue de sifilíticos mediante todos os recursos químicos
so, ficou esclarecida a questão da lues hereditária e da lues latens.
e mícroscógícos?"
Acabaram ainda as relações fantasiosas com diversas outras doen-
Sobre isso, há relatos mais precisos em Bruck:" "Os inúme-
ças' como tísica, raquitismo, lúpus etc., sendo que pesquisas em ou-
ros exames biológico-químicos mais antigos do sangue de sifilíti- tras áreas contribuíram para tal.
cos também não haviam levado a resultados com valor diagnósti-
Surgiu, ademais, uma disciplina nova que se desenvolveu com
co. A variação no número dos glóbulos do teor de hemoglobina e
a reação de Wassermann: a sorologia enquanto ciência autônoma.
de ferro não servia para o diagnóstico, conforme as pesquisas de A ligação genética da sorologia com a reação de Wassermann con-
Neumann -Konried, Reiss, Stonkovenoff-Selineff, Liegeois, Malassez, tinua viva no jargão médico: a reação de Wassermann muitas vezes
é chamada a "prova sorológíca"
Ao mesmo tempo, a ideia etíológíca das pesquisas sobre sífilis
37 "Dizem que o experimento de Waller ... teve sucesso no ano 1850:' Hermann: "Há
etc. (...) p. 24. Dizem! Quer dizer o autor duvida por ser incompatível com as suas teo- surtiu efeito, sendo responsável, por sua vez, pela delimitação da
rias. Além de Waller, há ainda vários outros experimentos: Pfâlzer Anonymus, Lind- doença no estágio primário. Portanto, completou-se a delimitação
wurrn, Pellizari e outros. atual (!) da sífilis.
38 Op. cit., p. 26. Hermann vê aqui apenas uma transmissão com as secreções sifilíti-
cas da pele, não com o sangue.
É difícil, quando não impossível, descrever corretamente a
39 Hermann, op. cit., p. 32. história de um domínio do saber. Ele consiste em numerosas li-
40 Bruck, Die Serodiagnose der Syphilis [O Sorodiagnóstico da Sífilis]. nhas de desenvolvimento das ideias que se cruzam e se influenciam
J 56 Gênese e desenvolvimento de um fato científico Como surgiu o conceito atual de sífilis 57

mutuamente e que, primeiro, teriam que ser apresentadas como li- que interpretava como sendo os agentes ainda desconhecidos des-
nhas contínuas e, segundo, em suas respectivas conexões. Em ter- sas doenças e que acreditava ter que entender como protozoários.
ceiro lugar, teríamos que desenhar ao mesmo tempo e separada- Diante da importância que teria que ser atribuída aos resultados de
mente o vetor principal do desenvolvimento, que é uma linha média Siegel no caso de sua confirmação [...] o então diretor da secretaria
idealizada. É como se quiséssemos reproduzir por escrito uma con- de saúde, o presidente Dr. Koehler, considerou oportuno encontrar
versa agitada em sua sequência natural, onde várias pessoas falam um fundamento para sua avaliação com base em testes próprios a
desordenadamente ao mesmo tempo, sendo que, apesar disso, crista- serem realizadas na secretaria?" - "Após uma reunião, ocorrida no
liza-se uma ideia comum. Temos que interromper constantemente dia 15/2/1905 sob a direção do presidente Dr. Koehler, o membro
a continuidade temporal da linha descrita das ideias para introduzir da secretaria, o conselheiro Dr. Schaudinn, por ordem do primeiro
outras linhas; temos que deter o desenvolvimento, para isolar as in- e em companhia do então assistente comissariado Dr. Neufeld, pro-
terligações; e, ainda, temos que deixar muita coisa de lado para ob- curou o diretor da clínica universitária real para doenças dermato-
ter as linhas principais. Um esquema mais ou menos artificial entra lógicas e venéreas, Prof. Dr. Lesser, para, por incumbência do se-
então no lugar da apresentação da vivacidade de efeitos mútuos. nhor presidente, fazer a consulta se o Prof. Lesser estaria inclinado
Eu teria que fazer muitos rodeios se quisesse demonstrar a a apoiar a secretaria nas pesquisas sobre o agente da sífilis fornecendo
cristalização da ideia do agente patológico a partir da ideia do espí- o material necessário. O Prof. Lesser declarou sua disposição, suge-
rito místico-simbólico e do verme da doença, passando pela ideia rindo que seu primeiro assistente, o médico militar Dr. Hoffrnann,
do material tóxico da doença e pelo conceito do contagium vivum participasse dos trabalhos:' Já no dia 3/3/1905, Schaudinn, analisan-
até chegar ao conceito moderno da bactéria. Eu teria que mostrar do no líquido fresco do tecido de uma pápulá sífilítíca, conseguiu
como a noção de agente entrou em contato com a ideia da sífilis, "comprovar a ocorrência de espiroquetas muito tênues e de grande
como se afastou dela por um tempo, voltando de novo em uma nova mobilidade, bem visíveis apenas com os melhores recursos óticos",
forma (Gestalt) e ficando definitivamente atrelado a ela. os quais distinguiu das formas mais grosseiras, "como ocorrem, não
Uma descrição exata dessas condições, no entanto, torna-se raramente, na mucos a da boca e dos genitais", chamando-os de spir.
desnecessária apenas pelo fato de serem semelhantes às condições já pallida. Logo passaram a fazer experimentos de transmissão do ma-
descritas da ideia do sangue sifilítico, não oferecendo algo novo à terial espiroquetáceo com macacos, que mostraram um resultado
teoria do corrhecirnento. Uma diferença merece atenção: já antes de positivo. Mesmo assim e apesar de "mais que 100 autores, nos mais
se comprovar a existência de agentes específicos havia provas indi- variados produtos da sífilis;' terem encontrado spirochaeta pallida,
retas, uma vez que a natureza contagiosa da doença se revelava tanto a secretaria de saúde, que foi o verdadeiro descobridor, manteve-se
na observação da doença quanto nos experimentos. Encontravam-se muito reservada: "Num relatório da secretaria de saúde ao secretário
analogias com outras áreas da patologia, nas quais a noção de agen- do ministério público de 12/8/1905, esboçado por Provazek e revi-
te já havia surtido efeitos positivos naquela época tão entusiasmada sado e assinado por Schaudinn na qualidade de correlator, [...] ex-
com as bactérias. O agente da sífilis deve sua descoberta, em primei- põe-se de que a conclusão de enxergar na spiroch. pallida o agente
ro lugar, aos conhecimentos sobre bactérias de outras áreas. De ma- da sífilis não é sem justificativa:' É dessa maneira tão cautelosa, tão
neira inversa, a reação de Wassermann surgiu da doutrina da sífilis, sóbria, tão obediente que o colégio dos servidores públicos trabalhou
sendo elaborada, posteriormente, como uma ciência particular. e julgou, ao qual deve ser atribuído o título de descobridor do agente
A descoberta da spirochaeta pallida é o resultado de um paca- da sífilis. Dessa mesma maneira tão cautelosa, tão sóbria, tão obe-
to e lógico trabalho burocrático. Após várias tentativas malsuce- diente, os descendentes espirituais daqueles o apresentam até hoje.
didas de outros pesquisadores para encontrar o agente da sífilis,
'} Siegel, nos anos 1904 e 1905, havia descrito formações em diver-
sas doenças infecciosas - varíola, febra aftosa, escarlatina e sífilis -, 41 Schuberg e Schloísberger, Klinische Wochenschrift [Semanário Clínico], 1930. p. 582.
Como surgiu o conceito atual de sífilis 59
58 Gênese e desenvolvimento de um fato científico

Mediante culturas puras da spiroch. pallida e experimentos de neurotrópicos e dermotrópicos como variantes d~ spirocha~t~ palli-
vacinação em coelhos e macacos, colocou-se mais tarde a última da, que estariam em relação com o desenvolvImento. clínico d,a
pedra para o edifício da ideia do agente patológico. doença." Procura-se explicar os estágios da lues, ou seja, as :ecaI-
Assim, chegou-se ao novo conceito de sífilis. Os agentes da das, como manifestações de uma forma de mudança de geraçao do
gonorreia e do cancro mole, descobertos anteriormente, foram des- agente. Todavia, outros fenômenos importantes d~ âm~ito da pato-
cartados, por sua vez, do quadro da sífilis. Junto com a reação de gênese e da epidemiologia, assim como da bacten~logI~ e~quanto
Wassermann, a spiroch. pallida ajudou a associar a tabes dorsalis" e ciência autônoma, hoje já apresentam uma certa dIvergenCla entre
a paralysis progressiva [paralisia progressiva] definitivamente à sífi- o desenvolvimento do conceito de doença e o do micro-organismo.
lis. Como esses espiroquetas foram encontrados logo após a infec- Faz parte disso, em primeiro lugar, a "infecção inaparente" (Ni-
ção nos vasos linfáticos, passou-se a não considerar mais o primeiro colle), que acontece sem sinais clínicos da doença, e à qual, no caso
estágio da sífilis como doença local. de outras doenças, como por exemplo do tifo, atribui-se uma gran-
A cronologia posterior das quatro linhas de pensamento, que de importância. Além disso, o fenômeno ~rovave.lme~te s~ assoc~a
hoje se conectaram para formar o conceito atual de sífilis, forma-se à transmissão do bacilo, que, totalmente inofensivo, e muito mais
da seguinte maneira: a doença venérea, a Lustseuche como tal, aca- difundido no caso de algumas bactérias do que a própria doença
bou transformando-se em conceito universal. A ligação com o coito (como, por exemplo, para bacilos de difteria ou meningococos).
foi traduzi da do místico-ético para o mecânico. Recentemente, foi A ocorrência de um micro-organismo não significa, portan-
descartada uma nova entidade nosológica, isto é, passou por uma to, estar com uma doença, de modo que a noção de agente perde o
delimitação mais clara: o linfogranuloma inguinal/venéreo. Aqui, a monopólio que tinha durante o período clássico d~~bacteriologia.
chamada prova cutânea de Frei, cujos antecedentes devem ser loca- Por isso, teorias mais antigas, como as de Pettenkofér, passaram por
lizados na doutrina da tuberculose, desempenha o papel da reação um renas cimento. Hoje em dia, podemos afirmar tranquilamente
de Wassermann. Outras pesquisas sobre o agente estão sendo feitas. que o "agente" é apenas um sintoma entre vários out~os. que condi-
É muito provável que várias outras entidades nosológicas venéreas cionam uma doença, sendo que nem se trata do mais Importante;
serão descobertas, pois estamos falando ainda de uma chamada ul- podemos afirmar que sua presença não é suficiente e que o agente,
ceração não específica dos genitais e, em muitos casos individuais, devido à ubiquidade de muitos micróbios, aparece naturalmente,
enfrentamrse grandes dificuldades diagnósticas. Recorre-se ainda a enquanto há outros elementos condicionadores.
diagnósticos duvidosos como o pseudocancro mole ou o pseudos- Acrescentam -se a isso algumas preocupações da bacteriolo-
sifiloma. Algumas doenças tropicais reclamam para si a transrnissibi- gia teórica. A biologia da spiroch. pallida mostra um parentesco pró-
lidade venérea. Da doutrina do mercúrio surgiu uma teoria quimio- ximo ou semelhança com spiroch. cuniculi, spiroch. pallidula, spiroch.
terápica geral, que gera frutos maravilhosos como o Salvarsan e dentium e outras. A distinção só é possível com base em experimen-
outros remédios. Aplicada a muitas outras áreas, entretanto, ela ain- tos com animais." Na verdade, spirochaeta pallida somente estaria
da apresenta os melhores resultados no caso de sífilis e outras doen- definida, portanto, através da sífilis, e não vice-versa, a sífilis pela
ças baseadas em protozoários. spiroch. pallida. No caso dos espiroquetas, uma de~i~itação bot~-
Voltaremos mais tarde à ideia do sangue sifilítico. . nica da espécie é tão pouco possível quanto na maiona das bacté-
Quanto à noção de agente, há ainda alguns fatos muito impor- rias. Quando as espécies podem ser definidas, muitas vezes não há
tantes a acrescentar. Vários fenômenos da doença são associados à
biologia das spirochaeta pallida: suspeita-se, particularmente, de vírus
42 O vírus neurotrópico de Levaditi, evidentemente, é considerado por muitos como
spiroch. cuniculi. . _
* Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Tabes_dorsalis. (N.T.) 43 Nem em todos os casos, devido a frequentes falhas na cultura e na vacmaçao.
) 60 Gênese e desenvolvimento de um fato científico

convergência entre a patologia e a bacteriologia, como mostra o


exemplo dos vibriões."
Há ainda a variação extrema das bactérias, que, em algumas
famílias, é tão expressiva (os bacilos do grupo da difteria pseudodif-
teria, por exemplo), que não se pode falar, por enquanto, em delimi-
tações da espécie.
Consequências para a
Oscilações incalculáveis da virulência, ou seja, transformação
dos saprófitos em parasitas e vice-versa, destroem definitivamente a teoria do conhecimento
relação entre bactéria e doença, relação esta que antigamente pare-
cia ser tão simples. Parece que, recentemente, Uhlenhut e Zülzer
conseguiram, através de passagens por porquinhos da Índia, trans-
da história apresentada
formar os espiroquetas inofensivos em virulentos.
Não se trata, portanto, de afirmar que, em termos de uma teo- de um conceito
ria do conhecimento, a sífilis estaria definida apenas pela spiroch.
pallida. A noção de agente da sífilis leva à incerteza do conceito bac-
teriológico de espécie e participará do seu destino.
Em consequência disso, o desenvolvimento do conceito da sífilis
enquanto doença específica não é concluído, nem o pode ser, pois esse • 1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O SIGNifiCADO
conceito participa de todas as descobertas e inovações da patologia, da DA HISTÓRIA DO SABER • ~
microbiologia e da epiderniologia." Seu caráter passou por transforma-
ções a partir do místico, passando pelo empírico e o patogênico geral, . o conceito científico enquanto resultado do
para terminar no predominantemente etiológico, sendo que esse pro- desenvolvimento da história do pensamento •
cesso não se caracterizava apenas por um grande enriquecimento em
detalhes, mas•.também pela perda de muitos elementos da doutrina an- A história da gênese de um conceito científico poderia ser indiferen-
tiga. Assim, aprendemos e ensinamos muito pouco ou nada atualmen- te para aquele teórico do conhecimento que acredita, por exemplo,
te sobre a dependência da sífilis em relação ao clima, às estações e à que os erros de um Robert Mayer não teriam nenhum significado
constituição geral dos pacientes, enquanto, nos textos antigos, podemos para o valor do teorema da conservação da energia.
encontrar muitas observações a esse respeito. Com as transformações Hão de se fazer as seguintes objeções: em primeiro lugar, é
do conceito de sífilis,porém, surgiram também novos problemas e no- provável que não existam erros completos nem tampouco verdades
vos domínios do saber, de modo que, na verdade, nada está encerrado. completas. Mais cedo ou mais tarde será necessário reformular o
teorema da conservação da energia - e então talvez tenhamos que
retomar um "erro" abandonado.
44 Segundo Ermoljewa, vibriões inofensivos da água não podem ser distinguidos com
segurança dos vibriões da cólera. Cf. Lehmann e Neumann, Diagnóstico bacteriológico, Em segundo lugar, querendo ou não, não conseguimos dei-
p. 540: "Ao se descobrir o vibrião da cólera, suas propriedades pareciam ser tão signifi- xar para trás o passado - com todos os seus erros. Ele continua vivo
cativas que a distinção de outras bactérias era vista como fácil. Desde então foram de-
tectados, inicialmente, poucos, depois cada vez mais e finalmente séries de vibriões tão nos conceitos herdados, nas abordagens de problemas, nas doutri-
indetermináveis nas proximidades do ser humano de modo que, há muito tempo, já nas das escolas, na vida cotidiana, na linguagem e nas instituições.
não são mais designados por nomes específicos:'
Não existe geração espontânea (Generatio spontanea) dos concei-
45 Assim, por exemplo, a relação da sífilis com a framboesia/bouba [FrambOsia tropical
e com o chamado espiroqueta do coelho ainda é objeto de polêmicas. tos; eles são, por assim dizer, determinados pelos seus ancestrais. O

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