Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
1
separação entre sexo e reprodução, graças aos métodos contraceptivos favoreceu a iniciação
sexual precoce e a vivência do sexo independente do casamento. Atualmente, a gravidez na
adolescente, via de regra, afasta-se dos marcos do casamento e da constituição de uma família
estruturada e autônoma com relação à família de origem do casal. Para Cabral (2002: 182), a
diferença entre adolescentes de hoje e os de três décadas atrás reside no fato de que hoje as
chances de nascimentos fora dos marcos do casamento são muito maiores e, portanto, não é só a
idade da mãe, por si só, o grande fator de alarde.
2
Este documento pretende apresentar uma discussão sobre a gravidez na adolescência
especialmente no que toca às políticas e aos serviços de saúde. Ainda que, como defenderemos
mais adiante, a gravidez na adolescência não deva ser tratada como um problema social, ela não
deixa de ser uma questão para os serviços de saúde, na medida em que exige novas
compreensões, novas posturas profissionais e, possivelmente, ordenamento assistencial
diferenciado. Adolescentes em situação de gravidez – meninas e meninos -- não devem ser
tratados do mesmo modo que adultos por várias razões, que apresentamos abaixo e que serão
mais detalhadas no corpo do texto:
Uma análise que se proponha a dar conta da questão, não pode negligenciar o fato de que a
saúde reprodutiva não é uma questão meramente médica e não pode se limitar a prescrições e
proscrições, sem que antes se faça uma análise que envolva uma perspectiva histórica, social,
política e econômica (Catharino, 2003).
Este texto é uma tentativa de apresentar de modo sintético o estado do debate sobre a gravidez na
adolescência no Brasil e, para isso, se baseia em uma revisão parcial da literatura recente sobre o
tema, particularmente aquela do campo das ciências sociais. Está organizado em três sessões:
Adolescência e Juventude: Problematizando Conceitos; A Realidade da Juventude no Brasil:
Um Breve Panorama e A Gravidez na Adolescência no Brasil.
***
3
I. Adolescência e Juventude: Problematizando Conceitos
De acordo com o Ministério de Saúde (2005), a adolescência tem sido considerada como
uma etapa de transição, cuja identidade se define pelo vir-a-ser adulto. A idéia de adolescência
como fase de transição é uma das expressões do modo adultocêntrico de considerar adolescentes
e jovens, que, longe de se definirem a partir de uma identidade própria, definem-se pela negativa,
por aquilo que não-são, neste caso, porque não-são adultos. Na tentativa de resguardar as
necessidades específicas de apoio e limitações pessoais desta faixa etária, este tipo de
compreensão protecionista, assistencialista e freqüentemente controlista, termina por
desconsiderar a autonomia e as possibilidades de escolha e construção de projetos de vida destes
sujeitos sociais. A própria idéia de um sujeito adolescente está ausente nesta formulação e, deste
modo, desconsidera-se as vivências e as necessidades presentes, objetivas e subjetivas, desta fase
da vida e ratifica-se a idéia de adolescentes e jovens como não-aptos e não-preparados.
Na área de saúde, tem-se utilizado uma definição de adolescência de base etária (10 aos
19 anos), período que é tido como caracterizado por grandes transformações físicas, psicológicas
e sociais (WHO, 1986 apud Aquino et al: 2003). Freqüentemente, o processo de transição da
infância à vida adulta é tomado de forma naturalizada, reiterando-se o caráter "imaturo" e
"irresponsável" dos jovens (Stern & Garcia, 1999 apud Aquino et al: 2003) e elegendo-se como
temas prioritários o uso abusivo de drogas, os acidentes de trânsito e as violências, as doenças
sexualmente transmissíveis e as gestações não planejadas (MS, 1999 apud Aquino et al: 2003).
Esta visão está presente no enfoque da adolescência como campo de riscos, uma vez que
não se reconhecem adolescentes e jovens como capazes de promover sua saúde e de realizar
escolhas relacionadas à sua sexualidade e vida reprodutiva, sendo particularmente evidente no
que se refere à gravidez e à maternidade/paternidade, como veremos adiante. Medrado e Lyra
(s.d., p. 1) chamam a atenção para o modo como muitas das idéias sobre adolescência e
juventude se associam à noção de crise, desordem e irresponsabilidade, configurando esta etapa
da vida como sendo, em si, um problema social a ser resolvido e que, portanto, merece atenção
pública. A idéia de risco seria, assim, uma decorrência inevitável das concepções de
adolescência e juventude como crise e desordem, sendo a gravidez, as DSTs e o HIV, o uso de
drogas ilícitas e a violência os principais exemplos de situações arriscadas e perigosas às quais
meninos e meninas estariam expostos/as. Para Pantoja (2003), a noção de gravidez na
adolescência como risco ganhou relevância no contexto do aumento significativo do número de
partos hospitalares contribuindo para que a questão do risco médico fosse evidenciada.
Difundido amplamente, o discurso médico passou inclusive a ser utilizado entre jornalistas,
4
políticos e demógrafos, o que permitiu a disseminação generalizada da idéia de gravidez na
adolescência como um problema social.
Todos/as as autores/as, porém, concordam que essas definições só fazem sentido quando
consideradas nos contextos sócio-culturais específicos, o que leva Cabral (2002: 180), a lembrar
que em alguns cenários a própria expressão adolescência nem mesmo faz sentido. Para esta
autora, adolescência e juventude, mais do que categorias etárias são processos que envolvem
idades socialmente construídas e modos de transição para a vida adulta, heterogêneos e
diversificados, dadas as suas especificidades em termos de gênero, classe e raça/etnia. A
concepção de juventude como processo biográfico no qual se adquire, progressivamente, os
predicados característicos da vida adulta (autonomia material e residencial) permite entender a
adolescência como modo de transição para a vida adulta, o que leva a autora a indagar em que
medida um episódio de gravidez na adolescência acirra essa transição, especialmente no contexto
das camadas populares (Cabral, 2002: p. 181). A própria identidade adolescente, portanto,
relaciona-se diretamente com as condições sociais e econômicas e ao lugar que cada um/a ocupa
na estrutura social (Campos e Moraes, 1986; Madeira e Wong, 1988 apud Almeida), o que é
vivenciado de maneira diferente pelo adolescente ou pela adolescente (Almeida, 2002: p. 2).
5
analítica, é um imperativo e uma condição para a compreensão da adolescência e da juventude
brasileiras.
6
Castro e Abramovay (2002:5) lembram que definir juventude implica muito mais do que
cortes cronológicos; implica vivências e oportunidades em uma série de relações sociais, como
trabalho, educação, comunicações, participação, consumo, gênero, raça etc. Assinalam que
juventude é uma categoria socialmente construída, formulada no contexto de circunstâncias
econômicas, sociais e políticas particulares e, portanto, sujeita a modificar-se ao longo do tempo
(Machado Pais, 1997 apud Castro e Abramovay, 2002: 25), devendo ser tomada como um
conjunto social diversificado, perfilando-se diferentes tipos de juventudes, em função de seu
pertencimento de classe social, sua atuação econômica, seus interesses e oportunidades
ocupacionais e educacionais (Castro e Abramovay, 2002: 25). Além disso, o fato de serem
pessoas do sexo feminino ou masculino e de serem brancas ou negras será decisivo na
configuração das trajetórias de vida de adolescentes e jovens. Assim, a utilização do critério
etário na definição de adolescência tende a obscurecer a assimetria nas relações de gênero e as
possibilidades concretas e distintas de “escolha” para as garotas de diferentes camadas sociais
(Pantoja, 2003), o que reverbera diretamente sobre a experiência da gravidez na adolescência.
Na última década, ganha força a idéia de que a população jovem deve ser,
simultaneamente, considerada em políticas universais e deve ser sujeito de políticas específicas.
De acordo com Castro e Abramovay, (2002:20), os jovens têm o direito de dispor de bens e
serviços não adquiridos por relações de mercado, já que o seu tempo deveria estar dedicado aos
estudos e à formação ética e intelectual, sendo as políticas públicas para juventudes um construto
da democracia e uma responsabilidade social para com a sustentabilidade da civilização, ou com
as gerações futuras.
No caso da saúde, as políticas específicas para este grupo populacional são extremamente
necessárias, por se constituem em ações direcionadas para questões que afetam adolescentes e
jovens de modo particular. Não obstante, é preciso considerar que o conjunto das ações dos
serviços de saúde devem estar também orientadas para lidar com esta população em contextos
gerais da assistência, ou seja, quando o problema não é propriamente juvenil, entendendo as
complexas relações e os processos nos quais os/as adolescentes estão envolvidos.
7
elemento importante deste contexto, com grande poder de influência sobre a condução e o
desfecho dos processos de gravidez na adolescência.
Da população estudada, 56% eram economicamente ativos e, segundo raça/cor, 65% dos
negros e 48% dos brancos desenvolvem alguma atividade econômica, tendo se observado uma
maior proporção de negros no trabalho informal (41%). Há, ainda, uma maior proporção de
8
mulheres brancas desempregadas, sendo que entre os homens, foram os negros os que mais se
encontraram nesta situação (29%). Dos inativos, (44%), 78% estavam estudando e 21%, todas
mulheres, declaram ser exclusivamente donas de casa, com maior proporção de mulheres negras
(41%) entre elas (Pinho et al, 2002).
Predomina entre os jovens a renda mensal per capita de até três salários mínimos (91%).
Dos jovens vivendo em famílias com até um salário mínimo, 55% eram negros e 33% brancos.
Os piores rendimentos foram encontrados entre as jovens negras, sendo que 66% das negras
ganham até um salário mínimo, representando o dobro encontrado entre jovens brancas (Pinho et
al, 2002). (Pinho et al, 2002).
Como se sabe, o trabalho infantil ainda é uma realidade preocupante em nosso país,
especialmente para as meninas, que concentram-se no trabalho doméstico, freqüentemente não
remunerado, ou são envolvidas nas redes de exploração sexual, onde a proteção contra gravidez
e dsts obviamente inexiste, dado o contexto de violência no qual operam. Leite e Silva (2002),
analisaram o trabalho infanto-juvenil no Brasil, a partir dos dados da PNAD de 1999. Naquele
ano, 3,2 milhões de pessoas de 5-14 anos participavam da força de trabalho no Brasil, o que
corresponde a 2% da população total estimada e 2,6 milhões de crianças e adolescentes – 1,6%
da população total -- estavam fora da escola e da força de trabalho.
9
Para as meninas, são maiores as chances de não estudar e não estar na força de trabalho
formal (Leite e Silva, 2002: p. 61), porque são elas as responsáveis pelo trabalho doméstico em
suas famílias de origem ou em suas próprias famílias, precocemente formadas. Quanto maior a
taxa de dependência das crianças de 0-4 anos residentes no domicílio maior a probabilidade de as
meninas não trabalharem fora de casa e não estudarem, porque se responsabilizam pelos
cuidados com as crianças pequenas. Já para os meninos, a relação é inversa, pois tendem a
trabalhar fora de casa quanto maior for a taxa de dependência (Leite e Silva, 2002: p. 61), como
uma forma de colaborar para as despesas domésticas. Vê-se, portanto, que, desde muito cedo, as
meninas são orientadas para ocupar o lugar de mãe e esposa. Nessas circunstâncias, a ocorrência
de uma gravidez pode ser vista como uma decorrência esperada – embora freqüentemente
indesejada – de uma trajetória que vem sendo construída desde a mais tenra infância das
meninas. Para os meninos, seguindo-se os tradicionais ditames de gênero, destina-se o trabalho
fora de casa e a responsabilidade pelo sustento de toda a família.
Faixa Etária Estudam e Trabalham Trabalham Estudam Nem Estudam Nem Trabalham
15-16 anos 2,2 20,9 2,3 32,2
17-18 anos 7,3 31,7 8,1 50,5
20-24 anos 18,2 16,9 20,8 67,2
Fonte: Pessoa da Silva e Rocha de Arruda, 2002 apud Castro e Abramovay, 2002: p. 30
As autoras observam que, em 1999, 48% dos rapazes buscavam emprego, mas apenas
23% das moças faziam o mesmo, possivelmente pelo seu envolvimento no trabalho doméstico e
na maternidade (Pessoa da Silva e Rocha de Arruda, 2002 apud Castro e Abramovay, 2002: p.
31).
10
Os dados sobre morbi-mortalidade de adolescentes e jovens apresentam importantes
diferenciais por sexo e raça. No caso das mulheres, os fatores de morbidade principais
relacionam-se com a gravidez, parto e puerpério e a doenças do aparelho geniturinário. Entre os
rapazes, as causas externas são a primeira causa de morbidade (74,4%), seguida das doenças do
aparelho respiratório (DATASUS, 2001). No caso dos homicídios, os jovens negros constituem
quase a totalidade deste universo, situação que pode ser tratada como uma espécie de genocídio.
Entre mulheres jovens, 37,13% dos óbitos devem-se às causas externas. Deve-se atentar, no
entanto, para a subnotificação dos números de violência contra a mulher, principalmente nos
casos de violência doméstica. Além disso, a morbi-mortalidade feminina decorrente da violência
doméstica é pouco tratada pelas políticas de saúde. O percentual de 37% de óbitos de jovens
mulheres devidos à causas externas, portanto, pode não representar fielmente a realidade. De
qualquer forma, o número de mortes de adolescentes e jovens brasileiros/as por causas externas é
de tal magnitude que configura uma lacuna etária só verificável em países em guerra civil
(Ferreira e Portella, 2005). A relação entre violência e ocorrência de gravidez será explorada mais
adiante.
Em estudo realizado com 4.634 jovens (47,2% homens e 52,8% mulheres) em Salvador,
Porto Alegre e Rio de Janeiro, encontrou-se que 93,0% dos rapazes e 81,6% das garotas já
11
tinham se iniciado sexualmente, sendo a idade mediana da iniciação sexual de 16,2 anos para
eles e 17,9 anos para elas (Aquino et al: 2003).
Em pesquisa realizada com jovens em Belém do Pará, Pantoja (2003) encontrou que,
entre as meninas, a primeira relação sexual é referida como um acontecimento marcado por
muita insistência dos parceiros, o que favoreceu a desproteção. Para as jovens entrevistadas, o
preparo para a primeira relação implicaria a postura ativa por parte da mulher, atitude que
poderia passar a idéia de elas seriam “experientes”, o que por sua vez colocaria dúvidas sobre a
sua moralidade. Parece, portanto, existir uma correlação entre a fragilidade da aceitação social da
sexualidade juvenil feminina e a fraqueza cada vez maior da aceitação social da contracepção.
A epidemia de AIDS tem crescido entre adolescentes e jovens e, dentre estes, entre
mulheres. A prevalência de AIDS entre adolescentes de 15 a 19 anos passou de 0,6% até 1990
para 2,0% de 1991 a 2000, e de 2,4% para 10,5% entre jovens de 10 a 24 anos, no mesmo
período. O perfil epidemiológico da epidemia tem apontado desde o final dos anos 90 para o
crescimento da infecção entre mulheres e em particular entre os estratos de menor renda, como
também seu crescimento em outras regiões do país, como o Nordeste (UNIFEM, 2003) (Ferreira
e Portella, 2005), o que atesta a situação de vulnerabilidade das mulheres e, entre estas, das mais
pobres.
Boa parte dos estudos que referem-se ao não uso da contracepção por parte das jovens,
negligenciam o fato de que evitar a gravidez, seja porque meio for, é uma situação extremamente
complexa para mulheres de qualquer idade porque implica em diálogo com o parceiro, acesso a
informações confiáveis e seguras, acesso a recursos materiais para a obtenção dos métodos – o
que inclui a liberdade de ir e vir e a existência de serviços ou farmácias. Além disso, há a
interferência do uso dos métodos na vida cotidiana (horários e forma de uso, no caso dos
hormonais, lugar para guardar, manipulação do corpo e exercício do auto-controle no caso dos
de barreira) e no funcionamento corporal. Para as mulheres, é preciso incorporar um novo hábito,
a vida muda e nem sempre para melhor – as mudanças corporais e os efeitos colaterais de alguns
métodos implicam na consciência constante de que se está evitando a gravidez. Freqüentemente,
profissionais de saúde e os meios de comunicação tendem a simplificar a contracepção de tal
modo que as mulheres chegam a sentirem-se culpadas (ou imbecis) porque sua experiência
contraceptiva está muito longe de ser tão simples. Para as meninas, evidentemente, esta situação
é mais grave e mais complexa.
A despeito disso, em 1996 pouco mais de 54% das mulheres de 15 a 19 anos usavam
métodos contraceptivos, sendo a pílula o mais freqüente. Mas, a maior freqüência de uso está
associada às mulheres com maior nível de escolaridade (Benfam, 1996). Uma pesquisa com
jovens universitários da USP mostrou que a contracepção estava cercada por erros, descuidos e
esquecimentos, além de ser marcada pela substituição da camisinha pela pílula conforme o casal
se identificava como “namorados”, realizando uma negociação sexual às avessas. O condom era
o método preferido para “ficar” (Pirotta, 2004).
No estudo de Pinho (2002), já citado, pode-se observar que, do total dos segmentos
sexualmente ativos, apenas 24% usaram preservativos nas suas relações sexuais. Para os jovens
de 16 a 24 anos, de ambos os sexos, este percentual sobe para 46%. Os jovens negros usam
13
menos preservativo que os brancos, sendo que é entre as jovens negras que se observa a menor
proporção de uso. A maior adesão ao uso de preservativo está associada ao estado conjugal,
sendo observada a maior proporção de uso entre os (as) não unidos (as), com ensino fundamental
completo, de classe “D”, com renda individual de até um salário mínimo. Entre os (as) jovens
unidos (as), o maior uso de preservativos foi encontrado entre os (as) jovens com ensino
fundamental completo (Pinho et al, 2002). Um outro estudo, realizado com rapazes de
comunidades de baixa renda em Recife, indicou que 61,5%¨dos rapazes iniciaram-se
sexualmente antes dos 14 anos de idade e apenas 32% usaram camisinha na primeira relação
sexual (Moreira & Juarez, 2004).
Para a OMS, a adolescência está compreendida dos 10 aos 19 anos de idade e a gravidez na
adolescência, portanto, seria aquela ocorrida até os 20 anos incompletos (Cabral, 2002: p. 180).
A primeira abordagem da gravidez na adolescência como um problema data de 1975, a partir de
uma análise divulgada pelo The Allan Guttmacher Institute. Mas é apenas em 1985, Ano
Internacional da ONU para a Juventude, que se amplia significativamente o número de fóruns de
debate sobre o tema em todo o planeta. Ao longo deste período, foi construído um conjunto
importante de argumentos no sentido de justificar a compreensão da gravidez na adolescência
como um problema social (Silva: 2002):
c) Haveria uma relação bidirecional entre o baixo nível de escolaridade das jovens e a
maternidade e o casamento prematuros.
d) A longo prazo, com o crescimento populacional mais rápido dado pela fecundidade
elevada e com a maternidade precoce nos grupos socialmente desfavorecidos projeta-se
uma maior demanda por escolas, serviços de saúde e empregos
e) Estas jovens mães, sendo pobres, não teriam possibilidade de prover as necessidades
básicas dos filhos, o que aumentaria a demanda por serviços governamentais.
14
Com muita propriedade, a autora adverte que estes argumentos não problematizam a
gravidez propriamente dita, mas refletem problemas de estruturação social, prestando-se tão
somente a estigmatizar este tipo de gravidez (Silva, 2002: p. 250). No caso da mortalidade
materna, por exemplo, não se pode dizer que haja consenso quanto às taxas mais altas entre
jovens. Estudos realizados em vários países indicam que a morte materna neste grupo de
mulheres está associada à baixa qualidade de assistência e não à faixa etária da gestante.
Cabral (2002) nos lembra que a gravidez na adolescência se inscreve sobretudo na esfera
de um “problema” de classe e não de geração. No campo da saúde pública, porém, a idéia de
uma epidemia de adolescentes grávidas ainda é bastante disseminada, o que converte o
fenômeno humano da gravidez na adolescência num estado de enfermidade e doença (Catharino,
2003).
Reis (1998), por sua vez, afirma que, não podendo ser considerada uma doença ou
epidemia, o que se assiste neste tipo de discurso é uma verdadeira migração do controle social
para o raciocínio sanitário, alicerçada em tabus, mitos e preconceitos, que travestem uma questão
moral em um problema de saúde pública. O fator ilegitimidade – os nascimentos na ausência de
casamento, tal como tratada pelos textos de saúde pública – seria o responsável pela rejeição da
chamada maternidade celibatária, tomada como ícone da liberdade sexual (Reis, 1998 apud
Catharino, 2003). Para Catharino e Giffin (2002:6), o discurso médico-psicológico obscurece a
compreensão da gravidez na adolescência pelo fato de, em consonância com idéias higienistas,
se limitar à identificação de causas para evitar conseqüências – sociais – indesejáveis.
Catharino (2003) elaborou uma classificação dos estudos sobre gravidez na adolescência,
alocando-os em quatro eixos, que correspondem a quatro modos distintos de compreender a
questão: no primeiro deles estão contidos estudos que vêem a gravidez na adolescência como
nada mais que um fator de desvantagens sociais, o que sempre vem acompanhado de uma
culpabilização da adolescente e de sua família.No segundo eixo – extensão do primeiro – estão
aqueles estudos que apontam para as condições adversas nas quais se desenvolve a gravidez,
voltando-se agora – não mais para a culpabilização – mas para a vitimização da adolescente.
Dentro desta lógica, a gravidez é também é muitas vezes vista como mero acaso, como um
fenômeno acidental e não raro vê no acolhimento humanista a solução do “problema”, tomando-
o de forma dissociada das condições materiais e históricas onde a vida destas meninas se
desenvolve, assim como dos significados que tem para cada um a produção desta realidade.
Aliás, tal dissociação também está presente no primeiro eixo. Num terceiro modo de abordar a
questão estão alguns estudos meramente descritivos, que se limitam a evidenciar fatores que
caracterizariam a ocorrência da gravidez na adolescência, assim como dados reveladores de um
15
perfil da adolescente que engravida. Por fim, encontramos alguns estudos que revelam uma
autêntica preocupação como os aspectos econômicos, políticos e históricos que envolvem esta
realidade e que, ao invés de apontar fórmulas mágicas, nos convidam a irmos além na sua
investigação, incluindo aí o significado deste fenômeno para aquelas que o vivenciam
(Catharino, 2003).
Se entre mulheres como um todo se assistiu nas quatro últimas décadas um decréscimo na
taxa de fecundidade (em 1940, a média nacional era de 6,2 filhos(as), em 2000, passa a 2,3
filhos(as), entre adolescentes e jovens o sentido é inverso. Desde os anos 90, a taxa de
fecundidade entre adolescentes aumentou 26% e mantém esta tendência. O índice de gravidez
entre adolescentes de 10 a 14 anos, conforme explora Cavasin (2004), tende a ser maior nas
regiões em que há exploração sexual de adolescentes e jovem, como é o caso das regiões Norte e
Nordeste (Ferreira e Portella, 2005). Nas últimas três décadas observa-se a diminuição da idade da
menarca, o aumento e a precocidade da atividade sexual e o aumento da idade de casamento,
fatores que têm sido indicados por alguns autores como associados ao crescimento da
fecundidade entre adolescentes (Diaz e Diaz, s.d.: p. 1). Velasco (1998), porém, adverte para o
fato de que, tomando-se como base os dados encontrados no país, não se pode afirmar com
exatidão a ocorrência de decréscimo na idade da menarca a partir de 1982, por ser um intervalo
de tempo muito curto.
16
porém, pode-se observar uma desaceleração das taxas de fecundidade das adolescentes, embora a
proporção de mães solteiras venha sofrendo um considerável incremento (Silva, 2002: p. 249).
O maior percentual de nascidos mortos é registrado nesta faixa etária (1999), segundo o
DATASUS, com um percentual de 13%. Os dados também atestam, porém, que os nascidos
mortos, filhos de mulheres de 10 a 14 anos, são inversamente proporcionais aos anos de
escolaridade dessas mães, ou seja, tendem a ser maiores quanto menor foi o nível de escolaridade
que, por sua vez, está diretamente relacionado à pobreza e ao acesso aos direitos sociais. Este
dado revela que a mortalidade, seja de mães como de bebês, está relacionada às condições sócio-
econômicas em que se inserem e não se explicam somente pela faixa etária em si mesma. A
qualidade da assistência obstétrica também responde por este dado. Em 2000, 6,3% das
adolescentes mães nesta faixa etária não haviam realizado pré-natal (Ferreira e Portella, 2005)..
Apenas 15,7% das meninas e 5,7% dos rapazes estavam tentando engravidar quando a
gravidez aconteceu; 14,4% delas e 8,7% deles queriam engravidar mais tarde. Mas a grande
maioria, não queria engravidar (37,7% das meninas e 42,1% dos meninos) ou não pensava no
assunto (32,6% das mulheres e 43,5% dos homens). A despeito disso, 68,6% das mulheres e
63,7% dos homens não estavam, obviamente, usando contracepção. O grande diferencial entre
homens e mulheres, porém, está no desfecho deste processo: para 72,2% das mulheres, a
17
gravidez foi a termo, e, para eles, isso só aconteceu em 34,5%. Contrariamente, para 41,3% dos
homens a gravidez resultou em aborto provocado, quando isso só foi relatado por 15,3% das
mulheres (Aquino et al: 2003).
Nesta mesma pesquisa, a ocorrência de uma gravidez antes dos vinte anos variou
inversamente com a renda e a escolaridade. Entre as mulheres, os contrastes são mais
expressivos e a prevalência entre as que tinham até primeiro grau incompleto (59,6%)
corresponde a 13 vezes o valor observado entre aquelas com nível superior de instrução (4,6%).
As diferenças entre grupos raciais e étnicos foram menos marcantes, embora se mantendo
estatisticamente significantes. Constatou-se uma maior prevalência de gravidez na adolescência
entre homens e mulheres negros, mas também entre pardos e indígenas, quando comparados
àqueles que se declararam brancos (Aquino et al: 2003). Na tabela abaixo, pode-se observar
claramente as diferenças entre grupos sociais:
Prevalência de gravidez antes do 20 anos entre homens e mulheres (inclui virgens), segundo
determinantes sociais selecionados. Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador, Brasil, 2000.
a) Não ter pais e/ou escola como primeiras fontes de informação sobre
menstruação, gravidez e contracepção;
18
b) Ter pais muito rigorosos e controladores das amizades e namoros das meninas;
d) Não ter experimentado namoros breves ou “ficadas” mas, sim, ter tido namoros
sérios e de longa duração;
b) O pai e/ou a mãe foram as primeiras fontes de informação sobre gravidez e meios de
evitar filhos
Outras autoras (Cavasin e Arruda, 1996: p. 3), chamam a atenção para o fato de que a
adolescente que engravida nos anos iniciais da adolescência tem uma postura substancialmente
diferente daquela que engravida ao final da adolescência, sendo também diverso o desfecho
deste episódio em suas vidas.
De acordo com o IBGE (2005), no Brasil, em 1991, 32,5% dos primeiros nascimentos
estavam concentrados nas mães com idade entre 10 e 19 anos. Já em 2000, esta concentração
superou os 38%. Entre 1991 e 2000, apesar da discreta elevação de 110 mil nascimentos no
número de mulheres que foram mães, a distribuição interna destes nascimentos pelas faixas
etárias alterou-se substancialmente. Foram constatados aumentos expressivos nos grupos de
mães em idades precoces e jovens. Na faixa de 10 a 14 anos, o incremento relativo no período
foi de 80,68% e para as mulheres de 15 a 19 anos, este percentual foi de 38,56% (IBGE, 2005).
19
Em 2000, no estado de Alagoas, 18,5% das mães de 10 a 14 anos já possuíam uma prole
de pelo menos dois filhos nascidos vivos. Em outros estados do Nordeste e do Norte este quadro
se repete como, por exemplo, em Sergipe (12,1%), Bahia (14,2%), Pernambuco (15,8%), Amapá
(16,6%), Rondônia (14%) e Acre (6,2%). Entre as meninas de 10 a 14 anos, a maternidade se
apresenta de forma mais concentrada entre as que tinham baixa escolaridade, com destaque para
as que estão cursando ou haviam concluído o ensino fundamental, independentemente do nível
de renda familiar (IBGE, 2005).
Até o final do século XIX, o padrão de formação da família predominante no Brasil mostra
que as noivas tinham entre 12 e 16 anos. A maternidade precoce, portanto, nada mais era do que
um corolário dessa situação (Abreu et al, 2000: p. 1). Esta situação muda a partir da segunda
metade do século XX, quando as taxas de fecundidade caem de 6,2 filhos por mulher em 1960
para 2,4 em 1998. Na direção inversa, para as mulheres, o casamento passa a acontecer mais
tarde - a idade média ao casar sobe de 21,7 anos para 24,1 no mesmo período – e a participação
das mulheres de 15-19 na Taxa de Fecundidade Total passa de 7,1 para 14% (Abreu et al, 2000:
p. 2).
O Brasil tem sido apontado como um dos países que apresentam taxas acima da média
mundial de gravidez na adolescência, que é de 50 nascimentos por mil mulheres (Relatório
Mundial sobre População da ONU apud Cavasin et al, 2004: 12). Segundo Berquó e Cavenaghi
20
(2003), o maior aumento da fecundidade (42%) aconteceu entre jovens com renda familiarper
capita abaixo de ¼ de salário mínimo por mês; entre as jovens com renda acima de cinco salários
mínimos, o crescimento foi de 15% (Cavasin et al, 2004:12).
Muitos estudos vêm sublinhando que a maior vulnerabilidade à gravidez indesejada tem
guardado uma relação complexa com a limitação das opções de lazer e cultura, do acesso aos
equipamentos sociais incluindo serviços de saúde e educação, das oportunidades ocupacionais e
de rendimento (Ayres e col, 1998; BENFAM, 1999; Szwarcwald e col., 2000 apud Pinho et el,
2002).
Catharino (2003) remarca que, de um modo geral, as pesquisas indicam que a gravidez na
adolescência parece funcionar como um corte abrupto na vida da adolescente, que é obrigada a
assumir, inesperadamente, o papel de mãe, e às vezes, de mãe e esposa, o que, muitas vezes, é
incompatível com o papel de estudante. Essas análises, porém, limitam-se a identificar a
maternidade precoce como o fator determinante do afastamento das meninas da escola, em um
raciocínio que, segundo a autora, culpabiliza as classes sociais desfavorecidas pela incapacidade
do sistema educacional lhe atender. Ou seja, se o sistema educacional não “funciona” para estes
grupos, a culpa será deles, por não possuírem os atributos necessários que lhes permitam usufruir
das oportunidades que – hipoteticamente – lhes são oferecidas. (Captarem, 2003)
Alguns estudos, porém, vêem no fracasso – não das alunas adolescentes,mas do sistema
educacional – um indício para o abandono escolar e admitem que a gravidez possa ser uma fonte
de gratificação para a adolescente, uma vez que na percepção das garotas, o mundo estaria
desprovido de possibilidades de êxito em outros campos, como o acesso a uma carreira, por
exemplo.Outros autores sugerem que a gravidez pode ser também uma forma de adquirir estima
e afeto por parte daqueles que as cercam, o filho pode ser visto como a possibilidade e a
esperança de um futuro melhor (Paiva, 1996) e, além disso, pode funcionar como uma espécie de
teste de sua capacidade reprodutiva (Heilborn,1998).
Para estas autoras, o advento da gravidez pode ser entendido como uma tentativa de
encontrar – mesmo com grande ônus – um lugar social, se constituindo em um elemento de
invenção de uma história de vida. Lembram, porém, que esta é uma invenção que diz respeito a
um projeto coletivo construído a partir dos significados sociais da maternidade e das
oportunidades materiais disponíveis em nossa sociedade. De algum modo, estas meninas se
apropriam das adversidades para transformar – mesmo que ilusoriamente – o seu cotidiano em
algo que valha a pena ser vivido. Ser mãe para estas meninas talvez seja uma das poucas formas
que lhes restam, para se colocarem no mundo como sujeitos sociais. Atualmente, assiste-se a
uma atualização dos discursos de enaltecimento da maternidade sob a vigilância da medicina e
do Estado, que são muito bem assimilados pelas meninas. Há que se dizer, porém, que esta é
uma situação ambígua: ser mãe parece um caminho inevitável para conferir status e algumas
prerrogativas para as meninas, constituindo-se numa verdadeira estratégia de sobrevivência, mas,
ao mesmo tempo, as jovens são tomadas como desviantes em relação à idade que se espera que a
maternidade ocorra (Catharino e Giffin, 2002: p. 7)
As autoras afirmam que é possível pensar que a própria gravidez produza ganhos
secundários, na medida em que pode se constituir, em muitos casos, numa denúncia, num grito
de socorro, que aponta para uma situação de abandono social. Muitas vezes esta lacuna é
preenchida, em parte, pelo que Robert Castel (1998) denomina redes de sociabilidade primária,
que são sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo a partir de seu
pertencimento familiar, da vizinhança e do trabalho e que tecem redes de interdependência sem a
mediação de instituições específicas. A gravidez é vivida por todos como um momento especial
22
e merecedora de cuidados especiais, de modo que a futura mãe mobiliza a família no sentido de
possibilitar o nascimento de uma criança saudável (Catharino e Giffin, 2002: p. 10)
Ao analisar as reais condições de vida destas jovens, vê-se que, na maior parte dos casos,
a escola e a construção de um projeto profissional aparecem na vida dessas meninas como
possibilidades precárias e remotas. Adolescentes das classes populares se questionam sobre a
utilidade do saber escolar, a partir da constatação de sua inocuidade como critério de
empregabilidade, o que acaba por gerar a recusa à escola. O trabalho aparece como o substituto
da escola, sendo que essa transição se dá, principalmente, entre 12 e 14 anos (Sposito apud
Gomes,1997) (Catharino e Giffin, 2002: p. 14)
Para as meninas, como vimos anteriormente, o trabalho doméstico se impõe como uma
espécie de “destino” feminino – principalmente nas classes populares, dada a precariedade de
oportunidades ocupacionais, que exclui do mundo do trabalho contingentes cada vez mais
expressivos de mulheres. A gravidez na vida da menina adolescente pode ser entendida como um
substituto do trabalho que, por sua vez, segundo Gomes (1977) substituiria, nesta faixa etária e
classe social, a escolarização. As autoras sugerem que a ocorrência da gravidez na adolescência
se impõe – face à ausência de sentido que tem para suas vidas a educação escolar – como uma
forma de encontrar um lugar social, funcionando como uma referência – num cenário onde
vigora uma quase total ausência de referências – na qual se ancora a construção da identidade
das meninas (Catharino e Giffin, 2002: p. 15).
As meninas aprendem que a casa é “coisa de mulher”, sendo socializadas para lidarem
com as tarefas domésticas e, sobretudo, repreendidas se não responderem positivamente a tais
demandas (Heilborn, s. d.). Embora tenham melhor desempenho escolar, a profissionalização e
as alternativas do mercado de trabalho são comparativamente menores para as mulheres do que
para os homens, quando não se leva em consideração o trabalho doméstico feminino. Para Zaluar
e Leal (apud Heilborn, s.d.), não é tanto a aquisição do saber escolar como capital simbólico que
está limitado ou restringido para as meninas, mas muito mais a formulação de projetos e as
perspectivas reais de profissionalização. A isso soma-se o fato de que o contexto de violência
física preponderante nos centros urbanos do Brasil vem atualizando (reintroduzindo e
reforçando) valores viris de supremacia, que reforçam a posição subordinada das mulheres
(Heilborn, s.d.) e renovam o discurso que valoriza a maternidade.
23
feminino na faixa dos 10 aos 14 anos é um desafio complexo principalmente quando o nosso
olhar se volta para um contexto socioeconômico e cultural hostil ao empoderamento dessas
mulheres: são adolescentes, vivendo em condição peculiar de subalternidade, sem ações
institucionais que dêem conta das especificidades do seu recorte etário ou do fato de serem
mulheres com pouca idade (10 a 14anos), inúmeras já com um histórico de vida sexual ativa,
outras submetidas a um cotidiano de violência e usurpação de seus corpos, fruto de ações
naturalizadas pelo machismo dominante, ou naturais da situação humilhante a que estão
submetidas. São, portanto, sujeitos vulneráveis, sem acesso a instrumentos de proteção ou de
apoio institucional a elas dirigidos.
Esta situação de vulnerabilidade, continua Cavasin (et al, 2004: 13), embora perpasse
todo o grupo de adolescentes, é maior entre aquelas que têm menos de 15 anos, porque estão
mais expostas à violência sexual pela própria falta de autonomia para negociar suas relações
sexuais. Uma relação sexual, lembram as autoras, não é moralmente legítima quando uma ou
ambas as partes carecem da capacidade de consentir, livre e espontaneamente, no ato sexual,
amplamente entendido. Este é, via de regra, o caso de menores de idade, isto é, quando existem
boas razões para dizer que existe coação explícita (uso de força, ameaças ou extorsão, bastante
comuns nesse tipo de abuso) ou suspeita de compulsão (por chantagem ou engano) (Morales &
Schramm, 2002). O Código Penal Brasileiro estabelece como marco para caracterização da
violência presumida a idade de 14 anos, cujo fundamento legal está na idéia de completa falta de
ciência da menor em relação aos fatos sexuais. Mesmo que a menina concorde com o contato
sexual, o “consentimento” seria destituído de valor, segundo a norma jurídica (Oliveira, 1987;
Drezzet, 2000 apud Cavasin et al, 2004: 13-14).
Mais da metade dos casos de violência sexual ocorre durante o período reprodutivo da
vida da mulher (Drezzet et. all, 1996 apud Cavasin et al, 2004). Entre as possíveis conseqüências
da violência sexual, a gravidez se destaca pela complexidade das reações psicológicas, sociais e
médicas que provoca e, geralmente, é encarada como segunda violência, intolerável para a
maioria das mulheres (Faúndes et. alli., 1998 apud Cavasin et al, 2004). A violência por abuso
sexual é a mais difícil de ser identificada, pois na maioria dos casos não deixa marcas. É comum
a revelação ocorrer quando alguém da família “percebe” algo diferente ou quando a menina
aparece grávida. Um estudo realizado pelo Dr. Jefferson Drezett (2000 apud Cavasin et al,
2004), no Hospital Pérola Byington, de São Paulo, mostra que dos 1200 casos notificados no
serviço, em 84,5% dos casos de violência sexual contra a criança o agressor era conhecido (em
21,6% dos casos o pai era o agressor; em 16,7%, o padrasto; em 11,6%, o tio; em 16,7%, o
vizinho; e em 21,7%, outro conhecido da família).
24
Em um estudo exploratório realizado em cinco capitais do Brasil, Cavasin (et al, 2004: 7)
verificou que a gravidez na faixa etária de 10 a 14 anos está muito mais relacionada a situações
de violência do que em outras faixas etárias. Muitas adolescentes menores de 15 anos
engravidam em circunstâncias de abuso e violência sexual sofridos desde muito tempo antes do
episódio da gravidez. Essa gravidez torna-se, ironicamente, muitas vezes, a primeira
oportunidade da denúncia.
A própria OMS, no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, reconhece que cerca de
um terço das adolescentes relatam terem tido iniciação sexual forçada (Cavasin, 2004), oq eu
deve mudar radicalmente a perspectiva com que a gravidez é entendida nesta faixa de idade. .
Há, em muitas das famílias onde ocorre abuso sexual, um pacto do silêncio, que encobre
o incesto, visando proteger a estrutura familiar. O abuso sexual dentro da família leva a um forte
sentimento de ruptura, que inicialmente parece a seus membros mais destrutivo que o próprio
incesto (Seixas, s.d: p, 12). Nessas circunstâncias, cresce a importância da sensibilidade e de
capacidades específicas de profissionais de saúde para detectar os casos de abuso sexual e a
gravidez deles decorrentes.
Alguns autores chamam a atenção para o fato de que boa parte das mulheres que têm um
parto antes dos 20 anos declaram que a gravidez não era desejada (Diaz e Diaz, s.d.: p. 1). É
importante considerar, porém, que essa é uma realidade para a maior parte das mulheres
independente da faixa etária ou da situação conjugal. Embora o desejo de ser mãe possa estar
presente em muitas mulheres, a ocorrência de uma gravidez desejada e planejada no momento
em que se quer ter filhos é mais rara do que se supõe. De acordo com a pesquisa DHS, de 1994,
cerca de 75% das primeiras gestações são indesejadas (Silva, 2002: p. 258). No quadro de
precariedade da oferta de métodos contraceptivos e de ilegalidade do aborto, a esterilização e o
aborto provocado emergem como opções contraceptivas (Silva, 2002: p. 259).
Pirotta, citando Costa (1999), lembra que, até recentemente, era comum o uso de métodos
invasivos, como sondas ou outros objetos, para a prática do aborto, o que levava a uma alta taxa
de infecções e de perfurações uterinas. Atualmente, as drogas com propriedades abortivas têm
sido mais utilizadas para induzir o aborto, mas um dos reflexos do uso de medicamentos, no
cenário da clandestinidade do aborto, é que só se conhecem os dados de mulheres que tomaram o
medicamento e depois procuraram o auxílio de um hospital. Pouco se sabe sobre as mulheres que
usaram a droga e não procuraram o hospital, sobre os casos em que o aborto foi realizado sem
complicações aparentes e sobre os casos em que o aborto não se realizou e a gravidez foi levada
adiante. (COSTA, 1999 apud Pirotta, 2004).
1
Esta estatística inclui aborto espontâneo, aborto induzido por indivíduo, admitidas legalmente, aborto induzido sem
identificação, aborto retido, aborto não especificado e outros abortos). Fonte: SIH-SUS/Datasus/MS.
26
das curetagens pós-aborto foram realizadas em jovens de 10 a 14 anos e 8,4% naquelas de 15 a 19
anos (MS/SAS/SIH/SUS apud Cavasin et al, 2004: 42).
Em estudo que analisa as ocorrências de aborto entre 1990 e 2000, Silva (2002: p. 249)
indica a maior propensão de as adolescentes provocarem aborto na América Latina. Neste
período, no Brasil, contra o discreto aumento na proporção de abortos por gestações para o
conjunto das mulheres brasileiras, entre as jovens de 20-24 anos esse aumento é da ordem de
38% e, entre as adolescentes, chega quase aos 50%. Uma ocorrência de nada menos que 42
abortos a cada 100 gestações. A autora parte da premissa de que 4% das mulheres em idade
fértil recorrem ao aborto e a partir daí estima os abortos realizados por mulheres jovens e adultas
no Brasil. Em 1990, havia 38 milhões de mulheres em idade fértil no Brasil, foram 3,4 milhões
os nascidos vivos, tendo sido provocados 1,52 milhões de abortos em nosso país, o que
representa o percentual 31% de abortos por gestação, 220 mil dos quais cabendo às adolescentes,
300 mil às jovens e o restante às demais mulheres (Silva, 2002: p. 255).
No ano 2000, havia 44 milhões de mulheres em idade fértil, mas os nascidos vivos
mantiveram-se no mesmo patamar de 3,4 milhões encontrado em 1990, o que leva a uma queda
de 13% na média de nascidos vivos por mulher (Silva, 2002: p. 258)
27
De acordo com Henshaw (1987 apud Silva, 2002: p. 257), a taxa de abortos por gestação
adolescente em países desenvolvidos varia entre 20 e 50%. O que observamos no Brasil entre
1990 e 2000 é a passagem para uma posição média baixa para média alta. O Instituto Allan
Guttmacher Institute, porém, lembra que as taxas de aborto provocado no Brasil (32 abortos por
1000 mulheres) situam-se na faixa mais alta da América Latina, cujas taxas variam de 13/1000
no México a 36/1000 na República Dominicana (Silva, 2002: 256). Os abortos concentram-se na
faixa de 15-19 anos, entre solteiras e/ou não unidas, sem filhos e são provocados para se evitar
um nascimento indesejado (Silva, 2002: p. 258)
Nos últimos anos, de acordo com Cavasin (2004:4), inúmeras iniciativas e propostas
governamentais envolveram também a adolescência como, por exemplo, a regulamentação e
implementação de serviços para o aborto previsto em lei, a contracepção de emergência e a
assistência integral. Na prevenção de DST/Aids vários projetos foram dirigidos para essa faixa
etária. Apesar de o IBGE investigar a fecundidade das mulheres a partir de 10 anos desde 1991
(IBGE, 2005), informações sobre paternidade adolescente não existem em nenhuma fonte
oficial.
28
Parte desta realidade se explica pelo fato das instituições de saúde responderem por
grande carga de controle sobre a sexualidade e a reprodução de adolescentes e jovens. Estas
esferas têm sido consideradas como campo de risco, em detrimento de uma visão de promoção
da saúde e do bem-estar. O afastamento entre serviços e juventude se expressa na própria
nomenclatura dos serviços, que carregam em si concepções de políticas. A oferta de métodos
contraceptivos em geral se situa na rede pública no campo do planejamento familiar e não se
pode considerar que jovens de 14 ou 15 anos associem contracepção à família, mas, sim, à
sexualidade e ao prazer (Ferreira e Portella, 2005).....
Os dados da PNAD de 1998 mostram que mulheres buscam mais os serviços a partir dos
14 anos de idade, o que demonstra relação direta com a idade reprodutiva. No início da
adolescência, são os homens que buscam mais os serviços. As razões de busca ao serviço são
diferentes entre homens e mulheres jovens: os primeiros, dos 10 a 19 anos, costumam utilizar-se
mais dos serviços odontológicos, enquanto as mulheres adolescentes e jovens buscam o serviço
de atenção à gravidez, parto e puerpério (Ferreira e Portella, 2005)..
No plano da saúde, isto implica em romper com o enfoque de risco sobre a gravidez na
adolescência para inseri-la no contexto da promoção da saúde de um modo mais amplo. O
enfoque de risco se materializa, por exemplo, no fato de grande parte dos(as) profissionais
considerarem a cesárea como procedimento de rotina para adolescentes na faixa dos 15 aos 19
anos. É importante salientar, entretanto, que deve-se considerar as especificidades de
adolescentes e jovens, em suas necessidades biológicas, pessoais e sociais específicas, como
crivo para a elegibilidade de métodos e para a assistência ao pré-natal e ao parto (Ferreira e
Portella, 2005).
Cavasin e Arruda (1996:4-5), apontam algumas questões que devem ser levadas em conta
na assistência a jovens e adolescentes de ambos os sexos. Em primeiro lugar, é necessário
considerar que, freqüentemente, as meninas estão envolvidas em relações de subordinação com
seus pares do sexo masculino e com figuras de autoridade de ambos os sexos: a submissão
dificulta falar sobre sexo e contracepção tanto com seus parceiros quanto com familiares ou
profissionais de saúde. O medo de rejeição e a pressão social por aceitação, bastante comum
29
nesta faixa de idade, também desencoraja a proteção. Além disso, a negação da vida sexual por
medo de sanções morais por parte dos adultos, assim como o desconhecimento dos processos
corporais leva à negação da necessidade de contracepção. Agregue-se a isso, ainda, a dificuldade
de acesso a serviços de saúde e aos contraceptivos, que geralmente são caros e difíceis e a baixa
qualidade da assistência, que desconsidera as especificidades da vivência sexual e reprodutiva
entre jovens e adolescentes. Não podemos esquecer, porém, de que boa parte das meninas
iniciam e vivenciam a sua sexualidade em contextos de violência, o que, obviamente, exclui
qualquer possibilidade de diálogo sobre proteção e contracepção, colocando novos problemas
para os serviços de saúde.
Bibliografia
Abrapia. Abuso Sexual: Mitos e Realidade. Guia de Orientação para a População. Petrópolis:
Autores e Agentes & Associados, 1997.
Abreu, Daisy Maria Xavier de; Miranda-Ribeiro, Paula; César, Cibele Comini. “A gente na
adolescência acha que sabe tudo mas não sabe nada”: gravidez na adolescência, redes
familiares e condições de vida de jovens mães e de seus filhos em Belo Horizonte. Anais
do XII Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP. Caxambu: 2000, v.1
Almeida, Margareth Aparecida Santini de. Treze Meninas e suas Histórias (Um estudo sobre
gravidez adolescente). Anais do XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais da
ABEP. Ouro Preto: 2002, v. 1.
Ayres, José Ricardo; França Jr., Ivan; Calazans, Gabriela; Salletti Filho, Heraldo.
Vulnerabilidade: prevenção em tempo de aids. In: Barbosa, Regina e Parker, Richard
(orgs.). Sexualidades pelo Avesso: direitos, identidade e poder. SP: IMS/UERJ/Ed. 34,
1999, pp. 49-72.
BEMFAM. Pesquisa Nacional sobre Desenvolvimento e Saúde (PNDS). Rio de Janeiro, 1977.
30
Berquó, Elaz. Quando, como e com quem se casam os jovens brasileiros. In: CNPD. Jovens
acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília: CNPD/Ipea, 1998
Casal, Joaquim. Modos emergentes de transición a la vida adulta en el umbral del siglo XXI:
aproximación sucesiva, precariedad y desestructuración. In: Pais, J. M. & Chisholm, L. (coord.).
Castel, Robert.(1998). As metamorfoses da questão social - uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes
Cohen, C. e Fígaro, C. J. Crimes relativos ao abuso sexual. In Cohen, C.; Ferraz, F. C.; Sagre, M.
Saúde mental, crime e justiça. SP: Edusp, 1996, pp. 149-170.
Diaz, Juan & Diaz, Margarita. Contracepção na adolescência. In Cadernos Juventude. Brasília:
Ministério da Saúde, s.d.
Franch, Mônica. Nada para fazer? Um estudo sobre atividades no tempo livre entre jovens de
periferia no Recife. In: Revista Brasileira de Estudos de População, v. 19, n. 2, jul-dez,
2002.
Gomes, Jerusa Vieira , ( 1997 : 53 – 62) Jovens Urbanos Pobres: anotações sobre escolaridade e emprego.
In: Revista de Educação Brasileira, nº 5 e 6
31
Guzmán, J. M. et alli La adolescencia y la salud reproductiva in Diagnostico sobre Salud Sexual
e Reproductiva de Adolescentes en America Latina y el Caribe. FNUAP, México, D. F.,
jan 2001.
Heilborn, M. L. O traçado da vida: gênero e idade em populares do Rio de Janeiro. In: Madeira,
Felícia R. (org.) Quem mandou nascer mulher? Estudo sobre crianças e adolescentes
pobres no Brasil. RJ: Rosa dos Tempos, 1997.
___. Teenage Pregnancy: the problem that hasn´t gone away. NY, 1981
Leite, Phillippe George Pereira Guimarães e Silva, Denise Britz do Nascimento. Análise da
situação ocupacional de crianças e adolescentes nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil
utilizando informações da PNAD 1999. In: Revista Brasileira de Estudos de População,
v. 19, n. 2, jul-dez, 2002.
Luker, Kristin. Dubious conceptions. The politics of teenage pregnancy. Cambridge: Havard University
Press, 1996.
Machado Pais, José. Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional CASA, 1997.
32
Medrado, Benedito & Lyra, Jorge. A adolescência “desprevenida” e a paternidade na
adolescência: uma abordagem geracional e de gênero. In Cadernos Juventude. Brasília:
Ministério da Saúde, s.d.
Mensch, B. S.; Bruce, J.; Greene, M. E. The uncharted passage: girl´s adolescence in the
developed world. New York Population Council, 1998.
Motta, Alda Britto da. Introdução: gênero, família e fases do ciclo da vida.Cadernos CRH. Salvador,
Centro de Recursos Humanos/UFBA, 1998.
OMS/ FNUAP/ UNICEF, (1989). Saúde reprodutiva de adolescentes: uma estratégia para a ação.
Genebra. SIH / SUS / RJ– Sistema de internação hospitalar. Rio de Janeiro: SES SPOSITO,
Marília Pontes, ( 1997 : 37 - 52). Estudos sobre juventude em educação. In: Revista de Educação
Brasileira, ANPED, Campinas: Editora Editores Associados Ltda, nº 5 e 6
Pessoa da Silva, Marcelo e Rocha de Arruda, Marcela. Um estudo sobre as características dos jovens
“desmotivados” no Brasil. Anais do XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Ouro
Preto, 2002.
Portella, Ana Paula. Gênero e sexualidade entre jovens de Recife. Recife: SOS Corpo Instituto Feminista
para a Democracia, 2002.
Rohden, Fabíola. Gravidez na Adolescência: um debate contemporâneo. In. ISER. Juventude, cultura e
cidadania. Comunicações do ISER. Rio de Janeiro: ISER, s.d.
Santos Júnior, José Domingues dos. Fatores etiológicos relacionados à gravidez na adolescência:
Vulnerabilidade à maternidade. In: Schor, N. et al. (orgs.). Cadernos Juventude, Saúde e
Desenvolvimento. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, vol. 1, 1999.
Seixas, Ana Helena. Abuso Sexual na Adolescência. In Cadernos Juventude. Brasília: Ministério da
Saúde. s. d.
Silva, Rebeca de Souza e. Gravidez na adolescência: aonde mora o problema? Anais do X Encontro
Nacional de Estudos Populacionais. Belo Horizonte: ABEP, 4º volume, 1545-1565, 1996.
Scott, Russel Parry; Quadros, Marion & Longhi, Márcia. (2002). Jovens populares urbanos e
gênero na identificação de demandas de saúde reprodutiva. Revista Brasileira de Estudos
de População, v. 19, n. 2, jul-dez.
Souza, Marcelo Medeiros Coelho de. A maternidade nas mulheres de 15 a 19 anos como desvantagem
social. In: Vieira, E. M. et al. (orgs.). Seminário gravidez na adolescência. Rio de Janeiro, 1998.
33
Vilar, Duarte & Gaspar, Ana Micaela. Traços redondos. A gravidez em mães adolescentes. In: Pais, J. M.
(org.). Traços e riscos de vida: uma abordagem qualitativa dos modos de vida juvenis. Porto:
Ambar, 1999.
34