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CAMINHA E A PAISAGEM

Eduardo Barra

Disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.215/6964 .


A chegada ao Brasil, detalhe, pintura Oscar Pereira da Silva (1865-1959)
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

“A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes


do homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem é uma substância.”
(1)

Caminha, quem?
A ideia de escrever este artigo surgiu após um episódio ocorrido em aula para
turma de graduação em arquitetura. Ao citar a carta de Pero Vaz de Caminha,
espécie de certidão de nascimento do Brasil, não nutria expectativa de que alguém
a tivesse lido, pois estou convencido de que a grande maioria dos brasileiros
não o fez. Infelizmente. Mas, para minha surpresa, nenhum dos presentes havia
sequer ouvido falar não só da carta, mas também da personagem. Para aquele grupo
de pessoas, o nome de Pero Vaz de Caminha não possuía qualquer significado – não
sei que planeta habitaram durante o ensino fundamental. Diante da minha
estupefação, um deles tentou me reconfortar, mas arremessou um comentário que
me destroçou de vez: “Talvez o conheça, mas não estou ligando o nome à pessoa”.

Pois é... Mas o que fazia Caminha em uma aula de paisagismo para futuros
arquitetos? É exatamente isso que vou tentar explicar.

Pero Vaz de Caminha


Imagem divulgação
O escrivão
Nascido provavelmente no Porto em 1450, cavaleiro das casas de D. Afonso, D.
João II e D. Manuel I, além de vereador da câmara portuense, Caminha foi nomeado
em 1500 escrivão da feitoria de Calicute, na Índia – onde veio a morrer
brutalmente em dezembro do mesmo ano, em meio aos conflitos de uma invasão moura.
Para chegar à colônia distante, nossa personagem pegou carona na esquadra de
Pedro Álvares Cabral, pois constava que este para lá se dirigia. Entretanto, as
coisas não aconteceram exatamente como ele previa e a trupe cabralina acabou
vindo parar no lado de cá do Atlântico.

Ao deparar com o território desconhecido, um mês e meio após a partida, Caminha


logo pensou em valer-se da capacidade de escrever bem para comunicar o
descobrimento ao rei, na esperança de ser atendido em um pleito particular: o
indulto de seu genro Jorge Osório, então degredado em São Tomé por reincidência,
pela terceira vez, em crimes de furto e extorsão a mão armada. Esse fator
motivador da elaboração do documento inaugural do novo país talvez explique
muita coisa.
A carta (2)
A bem da verdade, Caminha não foi o único membro da esquadra a escrever ao rei.
Tem-se conhecimento de dois outros documentos: a Relação (3) do Piloto Anônimo
e a carta do judeu espanhol João Faras.

Página da carta de Caminha


Imagem divulgação [Website Sapo]
O primeiro tem origem um tanto obscura e suspeita-se que o autor o tenha escrito
posteriormente, após regressar a Portugal. Além disso, não acrescenta
informações relevantes às transmitidas de forma detalhada por Caminha. Portanto,
é documento que nem todos levam a sério.

Já a carta escrita por Mestre João, médico da coroa portuguesa, astrônomo,


astrólogo e físico, se detém quase exclusivamente nas questões da localização
exata da nova terra, com base nos astros. O signatário é considerado o primeiro
cientista a estudar o Brasil, sendo também responsável pela atribuição do nome
Cruzeiro do Sul à constelação que, naquelas noites escuras, chamava a atenção
no firmamento. O grande frisson causado por sua carta se deve ao trecho em que
recomenda ao monarca que verifique “um mapa-múndi que tem Pero Vaz Bisagudo (4)
e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapa-múndi não
certifica se esta terra é habitada ou não”, que parece confirmar a ideia, por
alguns defendida, de que os portugueses, àquela época, já tinham conhecimento
do Brasil. Mas isso é outra conversa.
Fragmento da carta de Caminha
Imagem divulgação [Website Sapo]
A carta de Caminha, portanto, vem a ser o documento mais completo, com vinte e
sete páginas de texto e mais uma de endereçamento a “El Rey noso Sñor”. Datada
“deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz” de 1° de maio de 1500, sexta-
feira, a carta perdeu-se nos arquivos reais ao chegar a Portugal e permaneceu
ignorada pelo público até 1817, curiosamente, o ano em que os naturalistas Spix
e Martius chegaram ao Brasil para descobri-lo mais uma vez. Trata-se do único
texto conhecido de Caminha, que nele demonstra notável habilidade descritiva e
de síntese da enorme quantidade de informações absorvidas naqueles dez dias em
que permaneceu por aqui. Em linguagem atual, eu diria que o escrivão narra os
acontecimentos de forma cinematográfica, recheando o relato objetivo com
curiosidades, humor, momentos de tensão, euforia e suspense.

A esquadra partiu de Belém no dia 9 de março e tudo seguiu normalmente, (5) até
que em 21 de abril perceberam sinais de terra, algo como sargaços e aves. Ao fim
da tarde do dia seguinte, uma quarta-feira, finalmente avistaram “um grande
monte, mui alto e redondo”, a que o capitão Cabral chamou de Monte Pascoal – a
Páscoa estava próxima –, nomeando a planície ao sul de Terra de Vera Cruz. O
Piloto Anônimo desconfiou: “A terra é grande e não sabemos se é ilha ou terra
firme”. Pernoitaram a distância segura da costa.
A esquadra de Cabral
Imagem divulgação
Na manhã da quinta-feira, avistaram gente na praia. Coube a Nicolau Coelho ir
até lá num barquinho, para reconhecimento inicial. Ao aproximar-se, cerca de
vinte homens pardos e nus, “sem nada que lhes cobrisse suas vergonhas”, surgiram
da mata com arcos ameaçadores, mas os abaixaram quando o português fez sinal
pedindo que os pousassem. Então, deu-lhes o barrete e o chapéu que usava,
recebendo em troca um cocar de penas e um colar de contas brancas. E encerrou-
se o encontro, com Nicolau voltando aliviado ao navio.
A chegada ao Brasil, na visão de Oscar Pereira da Silva (1865-1959) [Wikimedia
Commons]
(Sou de uma geração que assistiu boquiaberta, através da televisão, à chegada
do homem à Lua e, lendo o texto de Caminha, visualizo os navegantes portugueses
como astronautas. No caso mais recente, não existiam indígenas ou alienígenas
nus do lado de lá, mas a apreensão do primeiro contato com um mundo desconhecido
deve ter sido bem semelhante.)

Astronauta registra a paisagem lunar com sua câmera, do ponto de vista não mais de
um satélite em órbita, mas de um humano
Imagem divulgação [Nasa]
Até esse momento, o homem que passara mês e meio sacolejando no mar, numa
embarcação desconfortável e lotada, (6) e que aportara no deslumbrante cenário
tropical do sul baiano, inédito para um europeu, repleto de palmeiras então
desconhecidas e densos arvoredos pouco alterados, não havia mencionado nada além
das referências geográficas identificadas pelo capitão do navio, como um monte
redondo com uma planície ao lado. Ou seja, não se deslumbrou. Talvez estivesse
mais preocupado com as questões relativas à aproximação com os nativos.
O cordão de recifes e o “porto seguro”
Imagem divulgação [Google Earth]
Mas eis que na madrugada seguinte, o tempo muda e o mar fica muito agitado,
obrigando Cabral a deslocar sua frota em busca de local mais abrigado, (7) até
encontrarem um recife “com um porto dentro, muito bom e muito seguro”, grande o
suficiente para abrigar duzentos navios. Aos pouquinhos, através de informações
pingadas, ainda que de forma bastante esparsa, vamos construindo mentalmente a
organização geográfica do lugar.

Abrigados no tal porto seguro, o piloto Afonso Lopes se mete num barco para ir
ao encontro de dois indígenas que os espreitam em uma canoa, e os convida a
bordo da nau capitânia. Caminha observa encantado que os rapazes têm “bons rostos
e bons narizes, bem feitos”, e também “andam nus, sem cobertura alguma; e nisso
têm tanta inocência como em mostrar o rosto”. Mais adiante, o escrivão comenta
que “a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a
vergonha.” Esse é um aspecto que impressiona bastante o escrivão, levando-o a
voltar ao assunto em várias passagens de sua carta, para explicar que a genitália
não era circuncidada “e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas”, que
ficara impressionado com as moças de “vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão
limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma
vergonha”, sendo uma delas “tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela
não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais
feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”. Com essas coisas,
Caminha se deslumbrou – talvez tenha sido o efeito de tanto tempo ao mar.

A bem da verdade, preciso dizer que o escrivão também descreveu outros costumes
indígenas, como os adereços labiais, os cabelos “corredios” e respectivos cortes,
os adornos de cabeça com penas, assim como comentou que Cabral andava “muito bem
vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço”, e que sentava em sua
cadeira com almofada à frente para apoio dos pés. Caminha conta que nesse
encontro inicial, os índios, ao verem o colar do capitão e um castiçal de prata,
se puseram a gesticular, como dizendo que ali também havia ouro e prata. Penso
que isso seja pura fantasia do narrador (8) com o fim de agradar ao rei, pois
mais à frente constata que os nativos ainda não usavam qualquer tipo de metal e
suas raras e toscas ferramentas eram de pedra em forma de cunha. Como também não
cultivavam, vivendo da caça, da pesca e de frutos, (9) comportavam-se como
verdadeiros caçadores-coletores primitivos, o que faz parecer inverossímil que
tivessem qualquer interesse ou conhecimento de ouro ou prata.

Quando Cabral tomou coragem para pisar em terra firme, mandou que todos os
tripulantes desembarcassem juntos. Muitos nativos vieram à praia e misturaram-
se aos portugueses, numa aparente comunhão. Havia um pequeno rio para atravessar
e Cabral ordenou que dois homens o carregassem no colo, pois queria ser
reconhecido pelos indígenas como o senhor, mas eles devem ter achado aquilo
ridículo e nem tomaram conhecimento do fato.

Nesse primeiro contato físico com o novo mundo, Caminha registra que “andamos
por aí vendo a ribeira, a qual é de água muito boa. Ao longo dela há muitas
palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles
muitos”. Outra das histórias mal explicadas do escrivão: já conheciam palmitos
ou foram apresentados pelos indígenas? como se “colhem” palmitos? podem ser
degustados in natura ou exigem algum tipo de preparo? Deixando de lado esses
pequenos detalhes, o mais importante dessa visita coletiva à terra firme é que
agrega mais algumas peças à composição mental que formamos da paisagem local.
Por exemplo, ficamos sabendo que Cabral caminhou ao longo da praia até uma “lagoa
grande de água doce, [...] porque toda aquela ribeira do mar é apaulada (10) por
cima e sai água por muitos lugares”.
Em outro momento, Caminha desembarca com um grupo de marinheiros para cortar
lenha e carregar os barris de água, e avista muitos papagaios verdes e pardos,
grandes e pequenos. “Os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas
maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!”, fato confirmado
pelo relato do Piloto Anônimo: “muitas aves de muitas espécies, especialmente
papagaios de muitas cores, entre os quais alguns grandes como galinhas e outras
aves muito belas. E das penas das ditas aves fazem chapéus e barretes que usam”.

Já no final da carta, no trecho em que objetiva caracterizar tecnicamente o


território, o escrivão estima que a terra descoberta possua de vinte a vinte e
cinco léguas de costa. “Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras,
(11) delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã (12) é muito
cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e
muito formosa.” É a melhor e mais abrangente descrição que faz do conjunto
paisagístico. Logo a seguir, complementa: “a terra em si é de muito bons ares,
assim frios e temperados” e “águas são muitas; infindas”. O Piloto Anônimo
confirma: “A terra é muito abundante em muitas árvores e muitas águas boas e
inhames (13) e algodão”. A grande frustração fica por conta da inexistência da
suposta frase mais famosa da carta – “em se plantando, tudo dá” –, pelo menos
não exatamente dessa forma. O que há de mais parecido é “em tal maneira [a terra]
é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, pelo bem das águas
que tem”.

A missiva vai chegando ao fim, mas antes de clamar pela liberdade do genro
facínora, Caminha faz papel de bom cristão e declara que “o melhor fruto que
dela [da terra] se pode tirar me parece que será salvar esta gente.” No caso,
“salvar” significa transmitir o evangelho aos “bestiais” tupiniquins, porque,
“segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença”, estando aptos a absorver
qualquer conceito que se queira introduzir. (14)

A paisagem através dos olhos de Caminha


Evidentemente, Caminha não era paisagista e não se propôs a elaborar uma leitura
meticulosa da paisagem do novo mundo, como nós, paisagistas, apreciaríamos.
Teria sido a grande oportunidade de conhecermos a fisionomia litorânea brasileira
antes da sanha destruidora dos conterrâneos do escrivão, das corridas ao pau-
brasil, ao ouro, à borracha, à cana-de-açúcar, ao café, e da urbanização
desenfreada sem qualquer planejamento. Em lugar disso, o narrador preferiu
pincelar informações esparsas sobre o ambiente ao longo das vinte e sete páginas,
deixando que El-Rey e os futuros leitores montassem o quebra-cabeça, cada um a
seu modo. Naquele momento, ele estava visivelmente mais envolvido com o povo
recém-descoberto, suas atitudes e costumes, e alinhavou uma espécie de extensa
reportagem daqueles dias de aventura.

Caminha não era de fato astronauta, por isso não coletou amostras de solo,
conchas, pedras e gravetos para posterior apreciação pelos cientistas reais.

Caminha também não era naturalista, pois esse tipo de gente só marcou presença
por aqui três séculos mais tarde. A respeito do grande universo de plantas
completamente desconhecidas por ele, há um único comentário mais pormenorizado,
muito provavelmente sobre o urucum (Bixa orellana), quando repara que os
indígenas trazem consigo “ouriços verdes, de árvores, [...] cheios duns grãos
vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha,
de que eles andavam tintos”. Seu relato, ainda que repleto de detalhes sobre
vários assuntos, permite que visualizemos aquele fragmento da paisagem litorânea
apenas através de seus aspectos funcionais, ou seja, sabemos dos recifes porque
os navios precisavam de abrigo, das palmeiras e seus palmitos porque considerava
que eram saborosos, da fartura de água porque era questão de sobrevivência, da
lagoa e dos pântanos (manguezais) porque seu espírito jornalístico o levou a
acompanhar as andanças do comandante, e assim por diante.
Mencionar alguns elementos da paisagem não é o mesmo que analisá-la, que
mergulhar em sua “substância”, que regozijar-se diante da fartura das águas, dos
pássaros e do multicolorido espetáculo tropical, na certa distinto dos cenários
cotidianos do missivista e, sobretudo, da ondulante monotonia marítima que
vivenciara nos meses anteriores. Sabemos que a paisagem não se conforma através
de seus elementos observados isoladamente, mas a partir da relação deles entre
si e, por sua vez, das interações que o observador consegue estabelecer com o
conjunto. Podemos lamentar que o escrivão não tenha se dedicado a descrever com
mais minúcias a paisagem que acabara de descobrir, mas a verdade é que ele ainda
não sabia o que vem a ser paisagem – e esse foi o motivo que me levou a citá-lo
na aula de paisagismo para graduandos, suspeitando que também não sabiam.

Construção cultural
A paisagem ao fundo da costa baiana contava há muito tempo com as evidências
geográficas do monte alto e redondo e a planície ao sul, assim como a foz do
rio, o manguezal e a lagoa próxima à praia. Foram necessários muitos anos para
a formação dos recifes, mas o porto seguro já existia naquele local bem antes
de Caminha aparecer. Só que, sem os portugueses, não havia paisagem.

O planeta Marte na ficção, na série de ficção Flash Gordon, 1936


Imagem divulgação
Explicando melhor, paisagem é um conceito exclusivamente humano, portanto, sem
humanos, não existe paisagem. Bem, existe, mas não existe, se é que me faço
entender. Um exemplo: para os humanos, a paisagem marciana só passou a existir
de fato a partir do momento em que os avanços da exploração espacial permitiram
que substituíssemos as feições fantasiosas impressas em nossas mentes através
dos quadrinhos e do cinema. Hoje, podemos dizer que conhecemos razoavelmente a
paisagem real do planeta vermelho a partir de um rápido passeio pelo Google, e
temos plena consciência de que tipo de paisagem nos espera naquele mundo
distante.
O planeta Marte na ficção (DC Comics)
Imagem divulgação
Sabemos que os indígenas já ocupavam aquele trecho do litoral brasileiro há
algum tempo, mas aqui precisamos levar em conta dois aspectos: desconhecemos
completamente o entendimento que eles faziam da paisagem que usufruíam – e é
provável que estivessem tão preocupados com isso quanto uma arara ou uma
jaguatirica – e, detalhe horrível, até o início do século 19, por incrível que
pareça, ainda havia quem discutisse, nos meios científicos, se os “bestiais”
deveriam ser considerados Homo sapiens. Humanos, mas de uma espécie inferior,
menos evoluída e, consequentemente, desprovida da capacidade de emitir qualquer
opinião de interesse. “Blumenbach, por exemplo, considerado uma autoridade no
campo da anatomia craniana comparada, deduz, após o exame do crânio de um
botocudo, que se tratava de uma espécie de elo perdido entre o orangotango e o
homem.” (15) O próprio Lineu, (16) algumas décadas antes, havia admitido a
divisão da espécie H. sapiens em subgrupos, cabendo o epíteto específico ferus
ao “selvagem”. (17) E Spix e Martius, trezentos e tantos anos depois de Caminha,
consideravam que “a América somente começa a existir com a conquista dos
europeus”, (18) principais agentes da veloz e radical transformação da paisagem.
Portanto, tendo em vista que os conquistadores ignoravam os conquistados e,
consequentemente, não tiveram a menor preocupação em conhecer a visão que tinham
sobre seu hábitat, ficamos sem qualquer registro mais apurado de nossas paisagens
originais.
O planeta Marte na realidade
Imagem divulgação
A filósofa francesa Anne Cauquelin (19) explica que a paisagem, tanto a expressão
quanto a noção, “como conjunto estruturado, dotado de regras próprias de
composição, como esquema simbólico de nosso contato próximo com a natureza”, só
veio a ser inventada no início do século 15, relacionada às leis da novidade
chamada perspectiva e diretamente aplicada à pintura. Os primeiros paisagistas,
portanto, eram pintores. Mas a autora elege o quadro A tempestade, pintado por
Giorgione somente no início do século seguinte (1508), como uma das primeiras
representações pictóricas da paisagem, por considerar que não há um tema na
tela, ou seja, o relato subjacente à cena representada, fator gerador da pintura
desde seus primórdios. Até então, representava-se a ascensão do Senhor, a Santa
Ceia, o calvário de Cristo, personagens socialmente valorizadas no momento ou a
família real, mas jamais a mera visão dos campos ao redor. Em A tempestade, nada
há além de “árvores, céu, nuvens, uma ruína, um regato e, perdidos, isolados nos
dois cantos extremos da tela, dois personagens que parecem se ignorar
mutuamente”. O importante mesmo parece ser o temporal ameaçador que se aproxima,
o curso do rio e a cidade ao fundo – a paisagem! Apesar de corriqueira ao olhar
de hoje, a obra provocou muitos comentários a partir de 1530, época que Caminha
não chegou a conhecer, dada a desventura de falecer no último ano do século
anterior.
A tempestade, Giorgione, 1508
Imagem divulgação
Cauquelin acrescenta: “Tomada exclusivamente no contexto da pintura, a paisagem
se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar
do espectador, por meio da ilusão da perspectiva”. Com o passar do tempo, a
representação pictórica da paisagem foi-se solidificando como o equivalente da
natureza, sua expressão fiel, um recorte do panorama que envolve o ser humano e
conjuga todas as suas dimensões e todos os seus elementos, não mais como objetos
desconexos, isolados, mas como um conjunto único. Segundo a autora, “a
perspectiva, apesar de artificial, tornou-se um dado de natureza e as paisagens
em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo. [...]
Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além do
quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era
apenas uma parte, um ornamento da pintura”.

De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, a expressão


francesa paysage surge somente em 1549 na acepção empregada nas escolas de belas-
artes. A partir disso, chega ao idioma português em 1567 com a forma paugage e
passa por várias grafias até que assume em 1656 a forma paizagem, que ainda
encontrei em texto publicado em 1949 pela Revista Municipal de Engenharia, do
então Distrito Federal. (20) Na sua origem, a expressão paisagem se relacionava
diretamente ao conceito de país, mas não entendido como divisão política do
território, apenas como território, pedaço de terra que se pode descortinar em
uma visada a partir de um ponto privilegiado. Vale a pena perceber que essa
relação entre termos ocorre tanto em idiomas latinos, quanto em anglo-saxões:
paisagem/país (português), paysage/pays (francês), paisaje/país (espanhol),
paesaggio/paese (italiano), landschaft/land (alemão) e landscape/land (inglês).
Segundo o arquiteto Marco Cavalcanti, para os biólogos, a paisagem é constituída
por biomas, ecossistemas, flora e fauna; para os urbanistas, pode ser
caracterizada como rural, urbana, cultural ou natural; já os geógrafos
classificam por regiões, territórios, lugares e não lugares; “porém, acredito
que todas essas [abordagens] são insuficientes diante das sensações que a
paisagem pode oferecer”. (21)

Talvez por compartilhar do mesmo sentimento, o arquiteto argentino César Naselli,


lá pelos anos 1960/1970, se deu ao trabalho de compilar o significado atribuído
por diversos grupos à paisagem, de arquitetos e paisagistas a geógrafos,
engenheiros florestais, biólogos, fotógrafos e turistas, entre muitos outros.
Foram mais de cinquenta definições com enfoques diferentes e muitas nuances, ao
fim resumidos por Naselli em um conceito aparentemente universal: “paisagem é o
meio ambiente visível”. Com a certeza de que deficientes visuais também
compreendem as paisagens, eu, hoje, modesta e politicamente correto, ampliaria
o conceito para “paisagem é o meio ambiente perceptível”.

Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem


Foto do autor
Em um primeiro impulso, acredito que todos imaginam cenários naturais quando
escutam a expressão paisagem. Florestas, rios de águas plácidas e cristalinas,
cachoeiras espetaculares, oásis cinematográficos em regiões desérticas, praias
paradisíacas... Essa é a visão do cartão postal, a visão clássica do turista,
que viaja exatamente em busca desse tipo de impregnação visual, que admite
deslocamentos de muitos quilômetros para fotografar cataratas ou cânions, ou
mesmo grandes momentos da arte paisagística internacional. Em contrapartida,
recomendaria internação para quem de pronto fosse remetido a ambientes
enfumaçados e barulhentos, áreas de mineração ou centros urbanos áridos e
densamente construídos, embora tudo isso também seja paisagem (ambiente
perceptível).
Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem
Foto do autor
Hoje, temos jornais, revistas, filmes, canais de televisão, programas avulsos e
séries, sites, páginas do Facebook e perfis no Instagram dedicados à divulgação
de imagens paisagísticas, preferencialmente as excepcionais e oníricas, de
ambientes naturais a felizes intervenções humanas realizadas em todos os cantos
do planeta. A paisagem passou a ser um objeto de desejo, um bem de consumo cada
vez mais valorizado. Todos fazem selfies diante de paisagens deslumbrantes para
apresentar em seguida a seus pares reais ou virtuais. Profissional ou
amadoristicamente, de forma aprofundada ou superficial, todos são capazes de
fazer leituras das paisagens que vivenciam, de eleger suas favoritas, aquelas
que mentalizam nos momentos de estresse.
Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem
Foto do autor
Observar criteriosamente as paisagens, descrevê-las com detalhes, identificar
seus elementos componentes e registrá-las através de fotos ou desenhos tornou-
se prática comum. Considero que isso seja apenas o primeiro passo. O segundo é
analisar, estabelecer relações e tentar compreender as interações entre as partes
do todo, exercício de leitura da paisagem que todo aspirante a paisagista precisa
praticar cotidianamente.

Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem


Foto Eduardo Barra
Venho acompanhando com admiração um movimento mundial (uma comunidade global,
como eles preferem), com representação expressiva no Brasil, denominado Urban
Sketchers – USK, formado por grupos de pessoas que se reúnem simplesmente para
passar algumas horas desenhando à mão e ao ar livre, registrando edificações e
panoramas urbanos. Uma reedição das aulas de desenho artístico das faculdades
de arquitetura ou uma espécie de retorno à atividade regular dos grandes
arquitetos e paisagistas da história, (22) que os profissionais mais jovens
haviam abandonado, talvez inebriados pelos computadores. Faço questão de
ressaltar que há muita diferença qualitativa, quanto à apreensão da paisagem,
entre o registro fotográfico e o desenho. Ambos são ricos em quantidade de
informações e um não substitui o outro, mas a atividade de desenhar, mesmo que
um esboço rápido, exige bem mais da percepção em relação às proporções,
protagonismos, texturas, cores, nuances etc, sem contar que o tempo necessário
para sua produção permite o desenvolvimento de múltiplas interpretações, fato
impossível de ocorrer no átimo do clique de uma foto. No caminho acima mencionado
para a leitura de determinada paisagem, considero o desenho como uma
significativa transição entre o primeiro e o segundo passo.
Desenho da arquiteta Luana Kallas
Fonte Facebook

Esboço do arquiteto Juan Guillén diante da paisagem retratada


Fonte Facebook
Vale ainda registrar que essa nossa conversa, que hoje parece tão óbvia e
espontânea, é fruto de um lento e minucioso aprendizado desenvolvido ao longo
dos últimos seis séculos, que Caminha e seus contemporâneos não tiveram
oportunidade de acompanhar. Se o Brasil só viesse a ser descoberto agora, as
observações e consequentes registros sobre o novo mundo seriam bem diferentes.
Parte do grupo USK-Brasília exibindo sua produção ao fim de uma manhã de trabalho
Fonte Facebook
notas
1
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
2
Texto consultado: Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento
do Brasil, edição de bolso da Editora Martin Claret, São Paulo, 2006. A publicação
contém pequena biografia de Caminha, fac-símile do manuscrito e respectiva
transcrição em tipografia convencional, além de versão adaptada à linguagem atual.

3
No sentido de “relato”.

4
Xará de Caminha, mera coincidência.

5
Exceto pelo desaparecimento inexplicável de uma nau, da qual nunca mais se ouviu
falar, apesar do bom tempo em todo o trajeto.

6
Cerca de 190 homens a bordo, sendo 80 marinheiros, 70 soldados e 33 passageiros,
incluindo 8 frades franciscanos e 8 intérpretes.

7
Caminha diz que se encaminharam para o norte, mas acredito que estivesse equivocado,
pois o referido porto seguro fica ao sul da atual Santa Cruz Cabrália, reconhecida
como o local de chegada da esquadra.

8
A esse respeito, o próprio Caminha dispara uma frase que explica tudo: “Isto tomávamos
nós assim por assim o desejarmos”.

9
“Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem
galinha, nem qualquer outra alimária [...]. Nem comem senão desse inhame, que aqui
há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam.” Caminha
confunde mandioca com inhame, talvez por já conhecer essa última raiz por intermédio
da colonização africana.

10
Pantanosa.

11
Declives acentuados, falésias.

12
Plana.

13
O Piloto Anônimo também confunde mandioca com inhame.

14
“E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar.”

15
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius. São Paulo, Editora Hucitec,
1997.
16
Carl Lineu, criador da nomenclatura binária, em 1753, adotada até hoje na taxonomia
aplicada aos seres vivos.

17
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit.

18
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit.

19
CAUQUELIN, Anne. Op. cit.

20
Grupo Biológico das Lagoas Litorâneas do Distrito Federal, de Roberto Burle Marx,
Henrique Lahmeyer de Mello Barreto e José Candido de Mello Carvalho.

21
Fonte: Facebook, página Jardim Imaginário.

22
Como Gordon Cullen, Le Corbusier, Lucio Costa, Richard Neutra, Humphry Repton,
Geoffrey Jellicoe, Lawrence Halprin, Shlomo Aronson e Roberto Burle Marx, entre
tantos outros.

sobre o autor
Eduardo Barra é arquiteto (UFRJ, 1976) atuante nas áreas de arquitetura paisagística,
desenho urbano e meio ambiente. Autor do livro Paisagens Úteis: escritos sobre
paisagismo, publicado pelas editoras Senac São Paulo e Mandarim (2006) e vencedor do
Prêmio IAB-RJ (2009) é titular exclusivo do Studio Eduardo Barra.

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