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Eduardo Barra
Disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.215/6964 .
A chegada ao Brasil, detalhe, pintura Oscar Pereira da Silva (1865-1959)
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]
Caminha, quem?
A ideia de escrever este artigo surgiu após um episódio ocorrido em aula para
turma de graduação em arquitetura. Ao citar a carta de Pero Vaz de Caminha,
espécie de certidão de nascimento do Brasil, não nutria expectativa de que alguém
a tivesse lido, pois estou convencido de que a grande maioria dos brasileiros
não o fez. Infelizmente. Mas, para minha surpresa, nenhum dos presentes havia
sequer ouvido falar não só da carta, mas também da personagem. Para aquele grupo
de pessoas, o nome de Pero Vaz de Caminha não possuía qualquer significado – não
sei que planeta habitaram durante o ensino fundamental. Diante da minha
estupefação, um deles tentou me reconfortar, mas arremessou um comentário que
me destroçou de vez: “Talvez o conheça, mas não estou ligando o nome à pessoa”.
Pois é... Mas o que fazia Caminha em uma aula de paisagismo para futuros
arquitetos? É exatamente isso que vou tentar explicar.
A esquadra partiu de Belém no dia 9 de março e tudo seguiu normalmente, (5) até
que em 21 de abril perceberam sinais de terra, algo como sargaços e aves. Ao fim
da tarde do dia seguinte, uma quarta-feira, finalmente avistaram “um grande
monte, mui alto e redondo”, a que o capitão Cabral chamou de Monte Pascoal – a
Páscoa estava próxima –, nomeando a planície ao sul de Terra de Vera Cruz. O
Piloto Anônimo desconfiou: “A terra é grande e não sabemos se é ilha ou terra
firme”. Pernoitaram a distância segura da costa.
A esquadra de Cabral
Imagem divulgação
Na manhã da quinta-feira, avistaram gente na praia. Coube a Nicolau Coelho ir
até lá num barquinho, para reconhecimento inicial. Ao aproximar-se, cerca de
vinte homens pardos e nus, “sem nada que lhes cobrisse suas vergonhas”, surgiram
da mata com arcos ameaçadores, mas os abaixaram quando o português fez sinal
pedindo que os pousassem. Então, deu-lhes o barrete e o chapéu que usava,
recebendo em troca um cocar de penas e um colar de contas brancas. E encerrou-
se o encontro, com Nicolau voltando aliviado ao navio.
A chegada ao Brasil, na visão de Oscar Pereira da Silva (1865-1959) [Wikimedia
Commons]
(Sou de uma geração que assistiu boquiaberta, através da televisão, à chegada
do homem à Lua e, lendo o texto de Caminha, visualizo os navegantes portugueses
como astronautas. No caso mais recente, não existiam indígenas ou alienígenas
nus do lado de lá, mas a apreensão do primeiro contato com um mundo desconhecido
deve ter sido bem semelhante.)
Astronauta registra a paisagem lunar com sua câmera, do ponto de vista não mais de
um satélite em órbita, mas de um humano
Imagem divulgação [Nasa]
Até esse momento, o homem que passara mês e meio sacolejando no mar, numa
embarcação desconfortável e lotada, (6) e que aportara no deslumbrante cenário
tropical do sul baiano, inédito para um europeu, repleto de palmeiras então
desconhecidas e densos arvoredos pouco alterados, não havia mencionado nada além
das referências geográficas identificadas pelo capitão do navio, como um monte
redondo com uma planície ao lado. Ou seja, não se deslumbrou. Talvez estivesse
mais preocupado com as questões relativas à aproximação com os nativos.
O cordão de recifes e o “porto seguro”
Imagem divulgação [Google Earth]
Mas eis que na madrugada seguinte, o tempo muda e o mar fica muito agitado,
obrigando Cabral a deslocar sua frota em busca de local mais abrigado, (7) até
encontrarem um recife “com um porto dentro, muito bom e muito seguro”, grande o
suficiente para abrigar duzentos navios. Aos pouquinhos, através de informações
pingadas, ainda que de forma bastante esparsa, vamos construindo mentalmente a
organização geográfica do lugar.
Abrigados no tal porto seguro, o piloto Afonso Lopes se mete num barco para ir
ao encontro de dois indígenas que os espreitam em uma canoa, e os convida a
bordo da nau capitânia. Caminha observa encantado que os rapazes têm “bons rostos
e bons narizes, bem feitos”, e também “andam nus, sem cobertura alguma; e nisso
têm tanta inocência como em mostrar o rosto”. Mais adiante, o escrivão comenta
que “a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a
vergonha.” Esse é um aspecto que impressiona bastante o escrivão, levando-o a
voltar ao assunto em várias passagens de sua carta, para explicar que a genitália
não era circuncidada “e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas”, que
ficara impressionado com as moças de “vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão
limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma
vergonha”, sendo uma delas “tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela
não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais
feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”. Com essas coisas,
Caminha se deslumbrou – talvez tenha sido o efeito de tanto tempo ao mar.
A bem da verdade, preciso dizer que o escrivão também descreveu outros costumes
indígenas, como os adereços labiais, os cabelos “corredios” e respectivos cortes,
os adornos de cabeça com penas, assim como comentou que Cabral andava “muito bem
vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço”, e que sentava em sua
cadeira com almofada à frente para apoio dos pés. Caminha conta que nesse
encontro inicial, os índios, ao verem o colar do capitão e um castiçal de prata,
se puseram a gesticular, como dizendo que ali também havia ouro e prata. Penso
que isso seja pura fantasia do narrador (8) com o fim de agradar ao rei, pois
mais à frente constata que os nativos ainda não usavam qualquer tipo de metal e
suas raras e toscas ferramentas eram de pedra em forma de cunha. Como também não
cultivavam, vivendo da caça, da pesca e de frutos, (9) comportavam-se como
verdadeiros caçadores-coletores primitivos, o que faz parecer inverossímil que
tivessem qualquer interesse ou conhecimento de ouro ou prata.
Quando Cabral tomou coragem para pisar em terra firme, mandou que todos os
tripulantes desembarcassem juntos. Muitos nativos vieram à praia e misturaram-
se aos portugueses, numa aparente comunhão. Havia um pequeno rio para atravessar
e Cabral ordenou que dois homens o carregassem no colo, pois queria ser
reconhecido pelos indígenas como o senhor, mas eles devem ter achado aquilo
ridículo e nem tomaram conhecimento do fato.
Nesse primeiro contato físico com o novo mundo, Caminha registra que “andamos
por aí vendo a ribeira, a qual é de água muito boa. Ao longo dela há muitas
palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles
muitos”. Outra das histórias mal explicadas do escrivão: já conheciam palmitos
ou foram apresentados pelos indígenas? como se “colhem” palmitos? podem ser
degustados in natura ou exigem algum tipo de preparo? Deixando de lado esses
pequenos detalhes, o mais importante dessa visita coletiva à terra firme é que
agrega mais algumas peças à composição mental que formamos da paisagem local.
Por exemplo, ficamos sabendo que Cabral caminhou ao longo da praia até uma “lagoa
grande de água doce, [...] porque toda aquela ribeira do mar é apaulada (10) por
cima e sai água por muitos lugares”.
Em outro momento, Caminha desembarca com um grupo de marinheiros para cortar
lenha e carregar os barris de água, e avista muitos papagaios verdes e pardos,
grandes e pequenos. “Os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas
maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!”, fato confirmado
pelo relato do Piloto Anônimo: “muitas aves de muitas espécies, especialmente
papagaios de muitas cores, entre os quais alguns grandes como galinhas e outras
aves muito belas. E das penas das ditas aves fazem chapéus e barretes que usam”.
A missiva vai chegando ao fim, mas antes de clamar pela liberdade do genro
facínora, Caminha faz papel de bom cristão e declara que “o melhor fruto que
dela [da terra] se pode tirar me parece que será salvar esta gente.” No caso,
“salvar” significa transmitir o evangelho aos “bestiais” tupiniquins, porque,
“segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença”, estando aptos a absorver
qualquer conceito que se queira introduzir. (14)
Caminha não era de fato astronauta, por isso não coletou amostras de solo,
conchas, pedras e gravetos para posterior apreciação pelos cientistas reais.
Caminha também não era naturalista, pois esse tipo de gente só marcou presença
por aqui três séculos mais tarde. A respeito do grande universo de plantas
completamente desconhecidas por ele, há um único comentário mais pormenorizado,
muito provavelmente sobre o urucum (Bixa orellana), quando repara que os
indígenas trazem consigo “ouriços verdes, de árvores, [...] cheios duns grãos
vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha,
de que eles andavam tintos”. Seu relato, ainda que repleto de detalhes sobre
vários assuntos, permite que visualizemos aquele fragmento da paisagem litorânea
apenas através de seus aspectos funcionais, ou seja, sabemos dos recifes porque
os navios precisavam de abrigo, das palmeiras e seus palmitos porque considerava
que eram saborosos, da fartura de água porque era questão de sobrevivência, da
lagoa e dos pântanos (manguezais) porque seu espírito jornalístico o levou a
acompanhar as andanças do comandante, e assim por diante.
Mencionar alguns elementos da paisagem não é o mesmo que analisá-la, que
mergulhar em sua “substância”, que regozijar-se diante da fartura das águas, dos
pássaros e do multicolorido espetáculo tropical, na certa distinto dos cenários
cotidianos do missivista e, sobretudo, da ondulante monotonia marítima que
vivenciara nos meses anteriores. Sabemos que a paisagem não se conforma através
de seus elementos observados isoladamente, mas a partir da relação deles entre
si e, por sua vez, das interações que o observador consegue estabelecer com o
conjunto. Podemos lamentar que o escrivão não tenha se dedicado a descrever com
mais minúcias a paisagem que acabara de descobrir, mas a verdade é que ele ainda
não sabia o que vem a ser paisagem – e esse foi o motivo que me levou a citá-lo
na aula de paisagismo para graduandos, suspeitando que também não sabiam.
Construção cultural
A paisagem ao fundo da costa baiana contava há muito tempo com as evidências
geográficas do monte alto e redondo e a planície ao sul, assim como a foz do
rio, o manguezal e a lagoa próxima à praia. Foram necessários muitos anos para
a formação dos recifes, mas o porto seguro já existia naquele local bem antes
de Caminha aparecer. Só que, sem os portugueses, não havia paisagem.
3
No sentido de “relato”.
4
Xará de Caminha, mera coincidência.
5
Exceto pelo desaparecimento inexplicável de uma nau, da qual nunca mais se ouviu
falar, apesar do bom tempo em todo o trajeto.
6
Cerca de 190 homens a bordo, sendo 80 marinheiros, 70 soldados e 33 passageiros,
incluindo 8 frades franciscanos e 8 intérpretes.
7
Caminha diz que se encaminharam para o norte, mas acredito que estivesse equivocado,
pois o referido porto seguro fica ao sul da atual Santa Cruz Cabrália, reconhecida
como o local de chegada da esquadra.
8
A esse respeito, o próprio Caminha dispara uma frase que explica tudo: “Isto tomávamos
nós assim por assim o desejarmos”.
9
“Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem
galinha, nem qualquer outra alimária [...]. Nem comem senão desse inhame, que aqui
há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam.” Caminha
confunde mandioca com inhame, talvez por já conhecer essa última raiz por intermédio
da colonização africana.
10
Pantanosa.
11
Declives acentuados, falésias.
12
Plana.
13
O Piloto Anônimo também confunde mandioca com inhame.
14
“E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar.”
15
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius. São Paulo, Editora Hucitec,
1997.
16
Carl Lineu, criador da nomenclatura binária, em 1753, adotada até hoje na taxonomia
aplicada aos seres vivos.
17
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit.
18
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit.
19
CAUQUELIN, Anne. Op. cit.
20
Grupo Biológico das Lagoas Litorâneas do Distrito Federal, de Roberto Burle Marx,
Henrique Lahmeyer de Mello Barreto e José Candido de Mello Carvalho.
21
Fonte: Facebook, página Jardim Imaginário.
22
Como Gordon Cullen, Le Corbusier, Lucio Costa, Richard Neutra, Humphry Repton,
Geoffrey Jellicoe, Lawrence Halprin, Shlomo Aronson e Roberto Burle Marx, entre
tantos outros.
sobre o autor
Eduardo Barra é arquiteto (UFRJ, 1976) atuante nas áreas de arquitetura paisagística,
desenho urbano e meio ambiente. Autor do livro Paisagens Úteis: escritos sobre
paisagismo, publicado pelas editoras Senac São Paulo e Mandarim (2006) e vencedor do
Prêmio IAB-RJ (2009) é titular exclusivo do Studio Eduardo Barra.