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Potencialidades de uma etnografia das ruas do passado

Article · March 2006


DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p299-317

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Fraya Frehse
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passado

FRAYA FREHSE

resumo Trata-se aqui de re�etir sobre o ren- esta edição comemorativa da revista Cader-
dimento da etnogra�a para o estudo antropológico nos de Campo1, de re�etir sobre o rendimen-
de temáticas históricas recorrendo às balizas teóri- to da etnogra�a para o estudo antropológico
co-metodológicas que nortearam a pesquisa de que de temáticas históricas. Considerando-se que
resultou minha tese de doutorado (Frehse 2004). esse tipo de investigação depende fortemente
Buscarei, à luz delas, explorar especi�camente as po- da análise de documentos históricos, quais as
tencialidades de uma etnogra�a das ruas centrais de potencialidades da etnogra�a para esse tipo de
São Paulo entre o início do século XIX e o início do pesquisa no âmbito da antropologia?
XX. No intuito de trazer à tona essas potencialida- O objetivo de enfrentar essa questão inspirou
des, a re�exão se estrutura em duas etapas. Primei- a elaboração deste artigo. Para fazê-lo nos limi-
ramente, cabe construir teoricamente o argumento tes do presente texto, discutirei a problemática
de que a etnogra�a pode perpassar também estudos a partir das balizas teórico-metodológicas que
antropológicos referentes a temáticas históricas por nortearam a pesquisa de que resultou a minha
ser perpassada por uma perspectiva epistemológi- tese de doutorado (Frehse 2004). Buscarei, à luz
ca muito especí�ca: a perspectiva etnográ�ca. Com delas, explorar especi�camente as potencialida-
o objetivo de provar a pertinência do argumento, des de uma etnogra�a das ruas centrais de São
submeterei meu próprio estudo de doutorado a um Paulo entre o início do século XIX e o início do
estranhamento a posteriori, a �m de avaliar nele a XX. Foi este o cenário espaço-temporal de refe-
presença do recurso à etnogra�a. Será então possível rência para a apreensão de transformações nas
destacar que a perspectiva etnográ�ca carrega consi- regras de comportamento corporal e de socia-
go, para o estudo antropológico das ruas paulistanas bilidade na cidade então; transformações essas
do passado oitocentista, potencialidades que são de que me interessaram por aquilo que poderiam
cunho teórico-metodológico e literário, a despeito revelar a respeito da maneira como a sociedade
das inevitáveis limitações da etnogra�a para o trato paulistana da época se ajustou, em termos cul-
de temáticas históricas. turais, à possibilidade histórica da modernidade
palavras-chave Antropologia histórica. no momento mesmo em que esta foi começan-
Etnogra�a. Epistemologia. Perspectiva etnográ�ca. do a fazer-se presente em São Paulo, em meio à
Etnogra�a e vida cotidiana. crescente prosperidade das exportações cafeeiras

Tendo me dedicado durante a minha pós-


1. Versão reformulada da comunicação apresentada no
graduação em Antropologia Social à re�exão
Simpósio “Sociedade, población y economia” do VI
antropológica a respeito de temáticas históricas Congreso Internacional de Etnohistoria realizado
(Frehse 1999, 2004 e 2005a), gostaria, neste em Buenos Aires (Argentina) entre 22 e 25 de no-
texto, reformulado especialmente para integrar vembro de 2005.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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do interior da província e à decadência da escra- rais vigentes em um contexto espaço-temporal


vidão no país. que não é de forma alguma aquele em que vive
No intuito de trazer à tona essas potencia- o pesquisador que sobre elas se debruça?
lidades, é necessário antes demonstrar por que No meu modo de ver, a característica distin-
a etnogra�a pode perpassar também estudos tiva é que, mesmo quando o arquivo é o “cam-
antropológicos referentes a temáticas históri- po” no qual transcorre a pesquisa empírica, esta
cas. Essa é uma etapa relevante para a re�exão, permanece orientada, em termos epistemológi-
dada a associação quase imediata que, desde cos, pela ênfase num modo de conhecer que é
a famosa introdução de Argonautas do Pací�- propriamente etnográ�co, quando o pesquisa-
co Ocidental, costuma ser feita, na disciplina, dor recorre a sua formação antropológica para
entre etnogra�a e uma metodologia baseada analisar o contexto espaço-temporal em ques-
no uso da chamada “observação participante” tão. A etnogra�a envolve uma determinada
durante o chamado “trabalho de campo”. O perspectiva de conhecimento da vida social que
estudo de temáticas históricas evidentemente leva o antropólogo a, no contato com material
vai na contramão de tais preceitos: é impossível histórico, atentar para aspectos que os colegas
fazer “observação participante”, e o “campo” é historiadores, em contato com a mesma docu-
o arquivo. Há como, nesse contexto, falar em mentação, deixam em segundo plano em favor
etnogra�a? de outros dos quais o antropólogo, por sua vez,
A meu ver, sim, já que esta é perpassada por passa ao largo. De que perspectiva se trata?
uma perspectiva epistemológica muito especí�- A �m de encontrar uma resposta há que se
ca: aquilo que chamarei de perspectiva etnográ�- contemplar, mesmo que brevemente, o deba-
ca. Com o objetivo de provar a pertinência do te a respeito das características da etnogra�a
argumento, submeterei o meu próprio estudo como recurso célebre da antropologia no míni-
de doutorado a um estranhamento a posteriori, mo desde os estudos pioneiros de Malinowski.
a �m de avaliar nele a presença do recurso à Para este autor, “etnogra�a” é o rótulo de uma
etnogra�a. Será então possível destacar que a ciência ([1922]1978: 18). Outros antropólo-
perspectiva etnográ�ca carrega consigo poten- gos evocam a noção para aludir à experiência
cialidades de cunho teórico-metodológico e cognitiva de cunho existencial forjada no estra-
literário para o estudo antropológico das ruas nhamento das distâncias e proximidades entre
paulistanas do passado oitocentista, a despeito as referências (culturais e teóricas) do pesqui-
das inevitáveis limitações que a etnogra�a apre- sador e aquelas dos “outros” que ele estuda
senta para o trato de temáticas históricas. (cf., por exemplo, as notórias considerações
de Lévi-Strauss [1958]1970: 16 e de Geertz
A etnogra�a como perspectiva episte- [1973]2000: 6, mas também de Lévi-Strauss
mológica [1960]1973: 16 e de Geertz 1988, desenvol-
vidas, no cenário acadêmico nacional, por Pei-
Se a antropologia se particulariza por, como rano 1995 e Goldman 2001). Em diálogo com
assinala Eduardo Viveiros de Castro ([1998] essas concepções todas, há quem argumente
2002), “dialogar para valer”, num mesmo “pla- especi�camente que “etnogra�a” rotularia um
no epistemológico”, com aqueles que são objeto “método” especí�co da antropologia para estu-
do discurso antropológico, o que caracteriza tal dar grupos humanos (Magnani 2002: 17).
empreendimento como “antropológico” quan- Paralelamente a essas re�exões metodoló-
do o que se pretende é analisar práticas cultu- gicas, consolidaram-se, sobretudo a partir da

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década de 1980, outras, mais fortemente re- em particular, reconhece na etnogra�a a “pos-
feridas ao papel político-social da etnogra�a. tura epistemológica que de�ne a antropologia”
O historiador da antropologia James Cli�ord (McCallum 2001: 6). E isso porque os dados na
foi pioneiro em conceber a etnogra�a essen- pesquisa antropológica constituiriam um “fato
cialmente como uma negociação política que social total”: a etnogra�a fundamenta-se num
marca o contato entre antropólogo e nativos duplo “processo de objetivação” do etnógrafo,
durante a pesquisa de campo e a formalização que aprecia os processos de “objetivação” vivi-
textual da interpretação dos resultados da in- dos pelos outros que estuda para, num segundo
vestigação ([1983]2002: 43). Dialogando com momento, “auto-objetivar-se” por meio da aná-
essa visão, ganharam espaço outras que visa- lise e da descrição que faz do contexto apreen-
vam enfatizar, por meio do termo, uma forma dido (Idem: 8-9). Argumentando nesses termos,
especí�ca de representação textual da análise a autora acaba por trazer para o primeiro plano
antropológica (cf., por exemplo, Marcus e que à etnogra�a, tão decisiva para um conheci-
Cushman 1982; Cli�ord e Marcus 1986; Ge- mento de cunho antropológico, está implícito
ertz 1988). um modo de conhecer a realidade sociocultural.
Em meio a essa plêiade de pontos de vista, É uma “postura” perante o conhecimento, uma
interessam-me particularmente as referências à maneira de justamente posicionar-se perante o
experiência cognitiva implícita à etnogra�a. Esse contexto de estudo durante e após o trabalho de
tipo de ênfase se faz presente num debate amplo campo, nas etapas de análise e de interpretação
que, vigente não apenas no cenário acadêmico dos dados.
internacional, mas nacional atualmente, for- Essa é a associação mais explícita que pude
nece esclarecedoras argumentações em relação encontrar entre etnogra�a e epistemologia.
ao fato de que a etnogra�a de forma alguma se Importa, para os �ns deste texto, que ela abre
restringe ao contato tête-à-tête com os nativos: espaço para uma concepção alternativa de et-
o “campo” do trabalho de campo antropológico nogra�a, mais “liberta”, por assim dizer, da as-
pode ser também o arquivo2. Cecília McCallum, sociação automática com o trabalho de campo
baseado no contato físico, tête-à-tête, com os
2. No contexto internacional a discussão já é mais antiga sujeitos a serem estudados. E isso por mais que
(Bloch 1977; Geertz [1980]1991; Sahlins 1981; Gaunt McCallum tenha, ela mesma, realizado traba-
1982; Rowland 1987). No que se refere ao cenário lho de campo para a abordagem de antropo-
brasileiro, discussões sistemáticas sobre a temática são logia da saúde que apresenta em seu estudo
mais recentes e vêm tendo lugar em eventos cientí�-
(2001).
cos especí�cos. Sobressai nesse sentido, entre outros, o
Seminário Temático “A Antropologia e seus métodos: Ancorada nessa argumentação, gostaria de,
o arquivo, o campo, os problemas”, coordenado por parodiando o provérbio, “aumentar um ponto”
Marcio Goldman e Emerson Giumbelli e realizado desse “conto”. Ou diminuir, considerando-se
no âmbito do 25º Encontro Anual da ANPOCS, de que parto de uma dimensão epistemológica
outubro de 2001 e cujas contribuições estão regis- especí�ca embutida na noção de “objetivação
tradas em disquete (Seminário 2001), e o Seminário
dupla”. No meu modo de ver, esta ocorre tam-
“Quando o campo é o arquivo: etnogra�as, histórias
e outras memórias guardadas”, coordenado por Celso bém quando o contato com os processos de ob-
Castro e Olívia Maria Gomes da Cunha realizado pelo jetivação dos “outros” e do próprio antropólogo
CPDOC da Fundação Getulio Vargas e pelo Labora- é mediado particularmente por documentos
tório de Antropologia e História do IFCS/UFRJ em históricos. McCallum preconiza a existência da
novembro de 2004, e cujas contribuições foram publi- dupla objetivação inspirada nas considerações
cadas na revista Estudos Históricos, 36, 2005.

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de Lévi-Strauss ([1950]1997) sobre a noção etapas metodológicas envolvidas na realização


maussiana de “fato social total”. Menos do que de uma pesquisa antropológica. Perpassa a for-
recuperá-las aqui, importa enfatizar que há em- mulação da questão teórica, a de�nição do ob-
butida nelas a proposição de um modo especí�- jeto, do cenário espaço-temporal empírico de
co de conhecer a vida social. E é justamente esse referência; envolve a construção da referência
modo de conhecer que é ensinado ao estudan- metodológica, o levantamento, a sistematiza-
te de antropologia quando este toma contato ção e análise dos dados e a redação do texto
com a noção de etnogra�a. Aprender a “fazer monográ�co.
etnogra�a” é aprender, antes de tudo, a impreg- Com o propósito de demonstrar a pertinên-
nar corpo e alma, inteligência e sensibilidade cia do argumento, trata-se agora de rastrear a
da imprescindibilidade da busca pelo “diálogo presença a perspectiva etnográ�ca numa inves-
para valer”. E isso, mesmo sabendo que o co- tigação antropológica na qual o tempo históri-
nhecimento antropológico é sempre menos do co de referência é o passado. Cabe debruçar-se
que aquilo que o outro diz e sempre mais do que sobre as minhas opções teóricas, metodológi-
aquilo que se poderia dizer sem o outro. Ora, cas e literárias na investigação que originou a
precisamente esse fundamento epistemológico tese de doutorado (Frehse 2004). E isso para
da etnogra�a abre espaço para que se a reconhe- demonstrar como os procedimentos metodo-
ça ativa em relação aos mais diversos “campos” lógicos da investigação estão impregnados da
de estudo, quando o pesquisador se propõe perspectiva etnográ�ca.
uma pesquisa antropológica. A consciência da
necessidade do “diálogo para valer” é o ponto Em busca da perspectiva etnográ�ca
para o qual convergem as impressões coletadas
mais ou menos aleatoriamente em campo, seja O exercício de estranhamento que viso aqui
quando o campo é o campo tradicional do tra- realizar pressupõe que a perspectiva etnográ�ca
balho antropológico, seja quando é o arquivo. É medeia os procedimentos metodológicos, não
por serem submetidos a essa consciência que os os determina mecanicamente. Nunca é demais
dados coletados pelo antropólogo via contato relembrar Malinowski: “Não é su�ciente [...]
direto ou indireto com os sujeitos estudados se que o etnógrafo coloque suas redes no local cer-
transformam em dados propriamente etnográ- to e �que à espera de que a caça caia nelas. [...]
�cos. O pesquisador de campo depende inteiramen-
No intuito de ressaltar essa dimensão do te da inspiração que lhe oferecem os estudos
vínculo entre etnogra�a e epistemologia, privile- teóricos” ([1922] 1978: 22-23). Desde então,
gio relacionar etnogra�a a uma perspectiva epis- quando o assunto é etnogra�a, é freqüentemen-
temológica. Aquilo que chamo de perspectiva te reiterada, mesmo que a partir de abordagens
etnográ�ca é forjada na metáfora da perspectiva teóricas distintas, a premissa de que o conheci-
para destacar, na concepção de etnogra�a, a sua mento etnográ�co depende de uma boa forma-
dimensão de ponto de fuga para o qual converge ção teórica prévia (cf., por exemplo, DaMatta
a maneira de o pesquisador apreender, analisar, [1974]1978: 24; Geertz [1983]2000: 55-70;
interpretar, representar e, assim, conhecer a vida Peirano 1995: 44-45; 2006: passim). Tais con-
social, independentemente de sua forma de con- siderações sugerem que a etnogra�a não indica
tato com o seu “campo” empírico de estudo. mecanicamente o que conhecer. Ela intermedeia
Trata-se, por isso mesmo, de um modo de a relação do pesquisador com aquilo que quer
conhecer a realidade que impregna todas as conhecer com base em determinada formação

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teórica. E a questão se torna saber como essa me- pólogo recupera, especi�camente para o debate
diação se faz presente na de�nição da questão sobre a noção de cultura, toda a potencialidade
teórica do estudo, na de�nição do objeto, na da noção de práxis que, já presente em Marx,
construção de referências metodológicas, no le- foi tão bem desenvolvida pelo sociólogo Henri
vantamento, sistematização e análise dos dados, Lefebvre (1966: 43) na distinção que este fez
na redação da monogra�a. entre os três níveis da práxis, ou seja, do “ato;
A questão teórica que enfrentei em minha relação dialética entre a natureza e o homem,
pesquisa de doutorado foi a seguinte: como a as coisas e a consciência”. Este autor diferen-
sociedade paulistana oitocentista, rural e de ciou entre práxis repetitiva (que “recomeça
fortes raízes estamentais e escravistas, se ajus- os mesmos gestos, os mesmos atos em ciclos
tou, em termos culturais, ao advento da mo- determinados”), práxis mimética (que “segue
dernidade em seu dia-a-dia na cidade (Frehse modelos”, criando sem saber como nem por
2004: 7)? De fato, o momento é de difusão ali, quê) e práxis inventiva e criadora (que “intro-
em intensidade até então inédita, da realida- duz descontinuidades no processo global só-
de social e cultural ligada à concepção de que cio-histórico”). O ajuste que me interessou na
tudo e todos são transitórios, moda, modernos investigação aqui perscrutada se dá justamente
– com todas as contradições que essa realida- nesse meio de caminho entre a irreversibilida-
de envolve e acarreta. É um processo histórico de da mudança e a originalidade cultural em
que começa a fazer-se presente no dia-a-dia dos relação a esta mesma mudança. É um meio de
indivíduos em São Paulo; em particular, com caminho cheio de reinvenções, marcado que é
a prosperidade crescente das exportações cafe- pela ressigni�cação sempre inconclusa do velho
eiras e a decadência da escravidão no país, a como novo e vice-versa.
partir da segunda metade do século XIX. Abordei a temática teórica do ajuste cultu-
Ajuste cultural certamente não signi�ca ab- ral à modernidade a partir de interlocução com
dicar das próprias referências em favor de outras autores que se preocupam, cada um à sua ma-
quaisquer. É verdade que, como bem discerniu neira, em abrir espaço para um aprofundamen-
Marshall Sahlins ([1985]1994: 181-87) a par- to teórico-metodológico da práxis marxiana.
tir de um diálogo com categorias de Marx, os Por sua vez, esta noção remete instantanea-
indivíduos colocam, na ação – “práxis” –, as mente à análise dos fatos sociais no plano da
suas categorias “em relações ostensivas com o vida de todo dia dos indivíduos. Ora, não é
mundo”. Os signi�cados dos objetos são, na para essa seara da vida social que a etnogra�a
práxis, submetidos a riscos objetivos (acasos) enquanto perspectiva epistemológica instiga o
e a riscos subjetivos (as intenções desses mes- antropólogo? Ao sinalizar para a busca episte-
mos indivíduos e a relação dos signos com ou- mológica incessante do “diálogo para valer”, a
tros, no interior do sistema de relações entre perspectiva etnográ�ca estimula o pesquisador
signos que de�ne a cultura). É por isso que o justamente a atentar para os pequenos fatos do
autor a�rma que a cultura é ordenada histo- dia-a-dia, para o aparentemente insigni�cante
ricamente. Todavia, ao mesmo tempo Sahlins que está além – ou aquém – das previsões o�-
argumenta, parafraseando Franz Boas, que “o ciais e dominantes. É essa a natureza dos dados
olho que vê é o olho da tradição”, por causa da que marca aquilo que Malinowski chamou de
capacidade humana de atribuir signi�cados aos “carne e sangue da vida nativa”. Em passagem
fenômenos. Justamente por conceber a “ação célebre, escreveu o antropólogo polonês sobre
simbólica” em termos dialéticos é que o antro- os chamados “imponderáveis da vida real”:

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Pertencem a essa classe de fenômenos: a rotina desses mesmos indivíduos em sua rotina na ci-
do trabalho diário do nativo; os detalhes de seus dade de então. Essa orientação epistemológica
cuidados corporais; o modo como prepara a co- me impulsionou a um aprofundamento nas
mida e se alimenta; o tom das conversas e da abordagens sociológicas da vida cotidiana no
vida social ao redor das fogueiras; a existência mundo contemporâneo, seja em sua vertente
de hostilidade ou de fortes laços de amizade, microssociológica (cf., por exemplo, Schütz
as simpatias ou aversões momentâneas entre [1970]1979; Go�man [1959]1995; 1967;
as pessoas; a maneira sutil, porém inconfundí- Gar�nkel [1967]1984), seja em sua visada his-
vel, como a vaidade e a ambição pessoal se re- tórico-dialética (cf. em especial Lefebvre 1958,
�etem no comportamento de um indivíduo e 1961, [1968]1972, 1981)3. Tive então como
nas reações emocionais daqueles que o cercam incorporar como orientação metodológica, por
([1922]1978: 29). um lado, que o plano da vida social cuja aná-
lise é favorecida pela perspectiva etnográ�ca é
Como, no meu caso, o assunto era o ad- atravessado por especi�cidades sócio-históri-
vento da modernidade em São Paulo no século cas. No contexto paulistano em foco, a vida de
XIX, era claro para mim que esses “imponde- todo dia se encontrava mais e mais in�uenciada
ráveis” não poderiam ser apreendidos sem levar pelo modo de vida “cotidiano”, que se de�ne
em conta o processo histórico mais abrangente pelo fato de que os ritmos temporais e espaciais
de difusão de um modo de vida muito espe- tributários da racionalidade capitalista interfe-
cí�co, cotidiano, na vida de todo dia dos in- rem de forma crescente na vida de todo dia dos
divíduos na cidade. Adveio daí a interlocução sujeitos a serem estudados; e isso, seja porque
intensa com a sociologia de Lefebvre – nova- esses ritmos representam ameaças inexoráveis,
mente (tendo-se em mente que já a iniciara seja por terem se transformado em regras de
no mestrado – cf. nesse sentido Frehse 1999 e conduta dominantes, seja por serem forças às
2005a). Com o objetivo de aprofundar a com- quais resistir com unhas e dentes. Por outro
preensão dos dilemas sócio-históricos do ajuste lado, analisar as práticas culturais no plano da
cultural que perpassam a práxis dos indivídu- vida de todo dia implica considerar também as
os, uma referência relevante para a re�exão é a variáveis situacionais que as envolvem.
abordagem sahlinsiana sobre as ressigni�cações Aliar a perspectiva epistemológica da etno-
culturalmente especí�cas de fatos históricos. E gra�a à orientação metodológica de foco sobre
dá-lhe Sahlins – também novamente (conside- as práticas culturais da vida de todo dia em suas
rando que também no mestrado suas re�exões peculiaridades microssociológicas e sócio-histó-
foram relevantes para a abordagem antropoló- ricas conduziu-me a privilegiar como objeto de
gica de outra temática histórica). análise as transformações nas regras de conduta
A atenção etnográ�ca à vida cotidiana aca- referentes aos comportamentos corporais e às
bou sendo relevante também para a operacio- interações sociais no espaço urbano paulistano
nalização da questão teórica e conseqüente oitocentista. O objetivo especí�co passou a ser
de�nição do objeto de estudo. Para uma com- atentar para como se modi�caram as regras de
preensão antropológica desses ajustes culturais conduta no intuito de averiguar o que elas po-
no plano da vida de todo dia dos indivíduos deriam revelar sobre a maneira como a socieda-
na São Paulo oitocentista, foi fundamental
que o objeto de estudo favorecesse a apreensão 3. Uma revisão bibliográ�ca crítica dessas e de outras
analítica da dinâmica cultural relativa à práxis referências encontra-se em José de Souza Martins
([1998]2000: 55-64).

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de pode ter se ajustado na cidade à difusão da À luz dessas ponderações, compreender


modernidade. como se alteram as regras de conduta em São
Mas por que as regras de conduta revela- Paulo em meio ao advento da modernidade
riam algo sobre o ajuste? Elas medeiam, como ali signi�ca apreender como a sociedade, tão
sugere Erving Go�man, comportamentos e marcada pela cultura caipira das plagas rurais e
interações ([1956]1967). O que envolve tanto interioranas do sudeste da antiga colônia portu-
a seara da cultura – se temos em mente que re- guesa na América, foi se ajustando aos padrões
gras são sempre de cunho simbólico – quanto a de civilidade implícitos a essa realidade social e
da moral, já que as regras envolvem um grupo cultural marcada pela concepção de que tudo e
de adeptos, sendo que é a adesão às regras que todos são transitórios.
leva à constância e padronização dos compor- Evidentemente, o objeto precisou ser recor-
tamentos. Essa dupla perspectiva permite ir ao tado. Civilidade onde exatamente? Quando? De
encontro de uma terceira: a da história da ci- quem? Também esse procedimento metodoló-
vilidade nos termos em que a noção foi como gico foi encaminhado pela mediação da pers-
trabalhada pelo historiador Jacques Revel. Nos pectiva etnográ�ca. As ruas paulistanas à luz do
termos deste estudioso, a civilidade é linguagem dia emergiram como cenário espaço-temporal
corporal destinada às “exigências do comércio privilegiado para o contato analítico com aqui-
social”, quer se trate de membros do próprio lo que Geertz chama de dimensão “pública” da
grupo ou de outros ainda ([1986]1991:169). cultura ([1973]2000: 12). Como proclama a
Civilidade é uma categoria êmica da so- literatura especializada na temática da moder-
ciedade ocidental européia (Pons 1992:21), nidade nas grandes cidades oitocentistas (Frehse
sendo que o seu sentido histórico primeiro se 2004: 14-17), a rua constitui ali o espaço que
liga às regras corporais socialmente desejáveis sintetiza as concepções de fugacidade e transito-
para a convivência na cidade enquanto forma riedade que caracterizam essa realidade social e
especí�ca de povoamento humano (etimolo- cultural. Então, concentrar-se nas transforma-
gicamente “civilidade” remete à conduta so- ções nas regras de conduta nesse cenário à luz do
cialmente desejável, “civil”, dos “cidadãos”, dia, que é quando ocorre com toda a intensidade
moradores da “cidade”). Não obstante, com a difusão de objetos, relações sociais e concep-
a modernidade a noção começa a difundir-se ções historicamente próprias da modernidade
pelo mundo afora a partir da França com um em meio à movimentação humana intensa que
novo sentido. Corresponde a uma linguagem ali se dá, favorece a análise etnográ�ca do ajuste
corporal que, propagada pela burguesia fran- cultural à civilidade historicamente própria desse
cesa em ascensão econômica e política, a partir tipo de realidade. Com efeito, a regra de movi-
do século XVIII, se propunha como adequa- mentação corporal nas ruas das grandes cidades
da à “civilização” constituída a partir da he- modernas à luz do dia envolve um conjunto de
gemonia política e sociocultural dessa mesma técnicas corporais, usos físicos do corpo (Mauss
burguesia (Elias [1939]1993). O termo passa [1936]1997: 365), que, exercitadas num ritmo
a dizer respeito aos tempos “modernos” instau- especí�co, numa seqüência de repetições induto-
rados pela mediação do poder dessa classe. Não ras de “maneiras” (Lefebvre 1992: 55), resultam
é, nesse sentido, casual que tenha sido na Paris num comportamento corporal de�nido: a cir-
das revoluções liberais do século XIX que foi culação, passagem regular pelas ruas. Quanto às
inventado por Baudelaire o neologismo “mo- interações, a regra que as perpassa é a impessoali-
dernidade”. dade, cedo problematizada, em termos teóricos,

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por Georg Simmel ([1903]1967: 14-18). E isso, renciação original em relação a este? Como a
quer os indivíduos se movimentem pela cidade sociedade paulistana foi, nas ruas, se ajustando
isolados ou ajuntados em multidões. A circulação aos padrões da civilidade moderna ali?
impessoal como regra básica daquilo que chamei A �m de responder a questão, permanecia
de civilidade moderna (Frehse 2004: 25) exprime necessária uma referência metodológica que
assim, no plano dos movimentos corporais e dos me guiasse analiticamente pelas ruas paulista-
contatos sociais diários, o princípio de transito- nas a serem perscrutadas através da documen-
riedade que sintetiza a modernidade. Circulação: tação histórica. Que personagem me forneceria
trânsito. Impessoalidade: atributo do transeunte. os seus “ombros” para que eu, por detrás de-
É a essas referências que os indivíduos tiveram de les, pudesse passear analiticamente pelas ruas
ajustar os seus corpos em seu dia-a-dia nas ruas do centro paulistano entre o início do século
de São Paulo, modi�cando de forma original as XIX e o início do XX em busca de um estra-
regras de civilidade historicamente antigas que nhamento etnográ�co das regras de civilidade
até então tinham mediado os seus comporta- e suas mudanças ao longo do tempo?
mentos corporais e interações sociais nas ruas. O Foi essa preocupação simultaneamente epis-
que pode revelar os termos do ajuste em questão temológica e teórico-metodológica que trouxe
no plano “carne e sangue da vida nativa” - no para o primeiro plano a importância metodo-
caso, substanciado nos comportamentos corpo- lógica do transeunte para a minha investigação.
rais e nas interações4. Esse plano é fundamental É ele o protagonista mais acabado das regras
para o “diálogo para valer” com as práticas cultu- de conduta que de�nem a civilidade moder-
rais paulistanas em processo de ajuste à difusão na. Trata-se da personagem na qual qualquer
da modernidade, nos Oitocentos. indivíduo - homem, mulher ou criança - se
De�nido esse recorte, a questão teórica pôde transforma nos momentos mais ou menos fu-
ser reposta, só que de maneira mais precisa. É gidios em que pelas ruas passa entre um lugar
que o contato com a historiogra�a paulistana e outro com regularidade. Na rua o transeunte
referida à vida social nas ruas do início dos Oi- corpori�ca a circulação como regra de conduta
tocentos deixava entrever que ali a circulação que envolve os comportamentos corporais dos
e a impessoalidade não eram de forma alguma indivíduos nesse espaço; e a impessoalidade
regras de conduta relevantes ali durante o dia. como regra relativa à sociabilidade desses in-
E muito menos à noite. As ruas, até mesmo as divíduos ali.
centrais, eram lugares em que os pobres, escra- Estabelecida a referência metodológica,
vos, forros ou livres, se deixavam �car dia a dia abria-se espaço analítico para novas pergun-
e pelas quais os senhores e suas famílias passa- tas. Quem seriam os transeuntes nas ruas de
vam apenas em ocasiões especiais, festivas, nem São Paulo nos Oitocentos, cenário físico em
um pouco cotidianas. Ora, o que seria desse que a diferença entre aqueles que serviam e
mundo em face da difusão da modernidade aqueles que eram servidos se expressava tam-
e suas regras de civilidade nas ruas, isto é, em bém no tipo de movimentação física por ali?
face do irreversível ajuste ao moderno e a dife- Quem transitaria por essas ruas dia a dia, se
elas eram eminentemente lugares dos pobres, e
4. Aliás, Geertz preconiza que deveria ser o “compor- se os indivíduos social e economicamente mais
tamento” o foco primordial do antropólogo, “pois é prestigiados as freqüentavam apenas em dia de
através do �uxo do comportamento – ou, mais pre- missa ou de festa? E uma vez nas ruas, como
cisamente, da ação social – que as formas culturais interagiriam entre si os indivíduos?
encontram articulação” ([1973]2000: 17).

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Em relação à São Paulo oitocentista, não cumentos históricos. Os ombros nativos ainda
faltam abordagens sobre o dia-a-dia de grupos parecem tão distantes...
sociais especí�cos. Mas pouco se sabia sobre Também na etapa do levantamento de da-
uma outra dimensão da experiência que os dos a perspectiva etnográ�ca se mostrou de
membros de cada segmento vivenciaram se- valia. Se o que importava eram movimentos
paradamente, em suas movimentações e inte- corporais e interações dos indivíduos em seu
rações diárias nesse espaço: a relação de cada dia-a-dia nas ruas da cidade ao longo do século
indivíduo (de qualquer que seja o grupo) com XIX, seria necessário concentrar-se em fontes
e em meio a terceiros variados nas ruas, indiví- históricas que revelassem a dinâmica envolvida
duos mais ou menos “estranhos”, enquanto a nesse plano “carnal” dos corpos em movimento
modernidade ia se difundindo na cidade. pelas vias durante o dia, momento de maior
Retomar aqui essas ponderações visa ex- burburinho humano ali, ao longo de todo o
plicitar que também o papel metodológico do século. Fui assim conduzida a ruas especí�cas,
transeunte em minha investigação muito deve à a períodos históricos também de�nidos e, con-
perspectiva etnográ�ca. O que o transeunte re- seqüentemente, a documentos peculiares.
vela sobre a maneira como a sociedade se ajus- Levando-se em conta a importância da di-
tou ao advento da modernidade em São Paulo? mensão de “teatro espontâneo” que envolve a
Tendo-se em mente que o transeunte corpori�- rua em qualquer cidade (Lefebvre 1970: 29),
ca as duas regras de conduta acima explicitadas, mas também as próprias características da his-
é em especial a primeira que permite entrever tória da urbanização paulistana, nota-se que
toda a potencialidade metodológica da perso- um perímetro relativamente restrito de vias
nagem. Está em jogo na circulação um conjun- centrais no núcleo povoado da cidade congre-
to de técnicas corporais num ritmo especí�co: a gava, nesse momento, as principais funções
passagem física pelas ruas regularmente. Já que político-administrativas, comerciais, lúdico-re-
os ritmos são constituídos por repetições cícli- ligiosas e, a partir de �nais dos Oitocentos, até
cas (de origem cósmica) e lineares (de origem funções industriais. É inevitável, portanto, que
social) de movimentos no tempo que, precisa- para ali fossem atraídos dia a dia, enquanto era
mente por ocorrerem no espaço, engendram dia, grupos sociais dos mais diversos, e que fos-
diferenças (Lefebvre 1992), eles constituem se grande a pressão social (e político-repressiva)
uma via privilegiada para a compreensão das em prol da civilidade moderna. Estou falando
mudanças sociais no “nível” do “vivido”, do das ruas, becos, travessas e largos da chamada
“carnal”, do “corpo” (Idem: 91). Uma vez que colina histórica que, para �ns operacionais, re-
esse nível é caro ao “diálogo para valer” que o cortei de maneira de�nida, que reproduzo para
antropólogo busca, então o transeunte é, no aproximar o leitor o máximo possível do cená-
contexto em foco, uma referência metodológi- rio em relação ao qual realizei a etnogra�a das
ca extremamente útil. Se tornar-se transeunte é ruas do passado (Figura 1).
inevitável na São Paulo oitocentista, a questão Convém ressaltar que se remeter a esse ce-
é apreender como a passagem regular, a circula- nário físico sob a orientação da perspectiva
ção, vira regra de comportamento nas ruas; e o etnográ�ca implicou incorporar à noção de
que tal fato implica para as regras de conduta “rua” todas as variações topográ�co-urbanísti-
que envolvem as interações. cas (largos, becos, praças, ladeiras) decorrentes
Permanece em aberto como procedi nessa do princípio básico que de�ne a rua: o fato de
direção, se só o que tinha à disposição eram do- ser lugar público, de acesso social irrestrito. Por

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Figura 1:“Nova Planta da Cidade de São Paulo com indicação dos principaes edi�cios publicos – 1891 – por U. Bonvicini & V. Dubugras”
[e detalhe, circundado por um traçado em preto, com o perímetro enfocado em especial] [U. Bonvicini & V. Dubugras/Benedito Lima de
Toledo, Prestes Maia e as Origens do Urbanismo Moderno em São Paulo, São Paulo, Empresa das Artes, 1996]

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isso mesmo, trata-se de um espaço que pode um dos primeiros autorizados a embrenhar-se
exercer, como nenhum outro local da cidade, o pelos sertões da então colônia, como resulta-
papel de “teatro espontâneo” no qual represen- do do favorecimento com o qual a Inglaterra
tantes dos mais diversos grupos sociais se mo- pôde contar por ter viabilizado política e lo-
vimentaram e interagiram segundo regras de gisticamente a fuga da família real portuguesa
conduta peculiares, em momentos especí�cos da Corte, durante as guerras napoleônicas. O
dos Oitocentos e do início dos Novecentos. autor produziu uma documentação de singu-
Quanto ao período histórico no âmbito do lar riqueza (Mawe 1812) no que diz respeito
qual me movimentei, também ele foi de�nido a indícios sobre sua maneira de movimentar-
tendo como base a civilidade de que o tran- se e de interagir com terceiros nas ruas de São
seunte é protagonista. Um evento que incidiu Paulo entre �nais de 1807 e o início de 1808.
diretamente sobre a maneira de os indivíduos Por suas características, o relato forneceu um
se movimentarem em São Paulo foi a chegada ponto de partida metodológico apropriado
da ferrovia (1865-1867). Os primeiros trilhos para a apreensão analítica de transeuntes na
instalados foram a materialização física mais documentação. Relevante passou a ser buscar
acabada do princípio da circulação de tudo nas fontes referências aos comportamentos
e de todos, indo e vindo da capital. Por isso corporais e interações dos próprios autores ou
os meados da década de 1860 constituem um dos tipos humanos a eles correspondentes – no
marco instigante de periodização, que permite caso de Mawe, viajantes – nas ruas centrais da
avaliar como regras de civilidade vigentes nas cidade.
ruas antes da implantação da ferrovia se altera- Se o primeiro intervalo temporal contem-
ram na seqüência. plado perpassou grosso modo os primeiros ses-
Mas o quanto antes dos anos de 1860 ini- senta anos do século, o segundo foi do início da
ciei a análise e em relação a que momento década de 1880 a 1917. É de 1882 o relato de
histórico a encerrei? Como a idéia era acom- viagem do carioca Firmo de Albuquerque Di-
panhar o impacto da modernidade no plano niz (?-?) sobre a São Paulo na qual vivera, como
dos comportamentos corporais e das interações estudante de Direito, trinta anos antes (Diniz
nas ruas de São Paulo no século XIX, o con- [1882] 1978). O texto foi relevante para mim
texto social e cultural que envolve a chamada por ser o mais antigo que conheço que, produ-
“abertura dos portos”, em 1808, ofereceu uma zido por um viajante brasileiro, aborda as an-
referência inicial interessante. E isso não so- danças desse indivíduo pelas ruas da cidade. A
mente porque o evento representa, em termos novidade histórica que as memórias de Mawe
simbólicos e históricos, um certo prenúncio representam para o primeiro intervalo tempo-
involuntário de processos históricos ligados à ral aqui contemplado, as notas de viagem de
modernidade que agitaram, sobretudo a partir Diniz representam para o segundo.
da segunda metade do século XIX, recônditos O limite da investigação foi julho de 1917,
interioranos como São Paulo numa colônia quando uma revista paulistana, A Cigarra, pu-
cujo povoamento, ao longo de três séculos, fora blicou uma reportagem fotográ�ca pioneira so-
principalmente litorâneo. Mas também porque bre um cortejo fúnebre que alterou os destinos
foi no bojo das negociações que desembocaram da primeira grande greve geral que estava em
na decisão política de abrir os portos às “na- curso na cidade em julho daquele ano. Foi uma
ções amigas” que chegou em São Paulo o via- manifestação social que envolveu a presença
jante inglês John Mawe (1764-1829). Foi ele maciça e politicamente determinante de mais

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de dez mil indivíduos, em boa parte, operários que produziram, �guram como porta-vozes
pouco remediados, nas ruas centrais no dia 12 de tipos humanos que integraram a sociedade
de julho. Por ali conduziram em procissão o paulistana nos dois períodos aqui em questão:
caixão com o corpo do sapateiro espanhol José o “viajante” (estrangeiro ou brasileiro), o “estu-
Ineguez Martinez (1896-1917), morto em dante da Academia de Direito”, a “mulher de
confrontos com a polícia, durante a greve ge- elite”, o “jornalista”, o “fotógrafo de rua”.
ral desencadeada na cidade de quase 500 mil Foram essas personagens que me cederam
habitantes alguns dias antes. A publicação da involuntariamente seus “ombros” para que, por
série de fotogra�as sobre o evento expressa, em detrás deles, eu pudesse apreender as mudanças
imagens, a consolidação, nas ruas de São Paulo, nos padrões de conduta nas ruas paulistanas do
de duas personagens que, ao mesmo tempo em século XIX. Concebi a documentação como
que produtos do passado, apontam para a pos- um conjunto de testemunhas oculares nos ter-
sibilidade histórica de regras de civilidade bem mos – aliás, contundentemente antropológicos
diferentes ali a partir de então, na cidade. Por – do historiador Peter Burke (2001: 183), ao
um lado, consagra-se o transeunte que, além re�etir sobre as imagens como fonte histórica:
de fotógrafo, é repórter: o repórter jornalístico. “elas testemunham as maneiras estereotipadas
Por outro lado, o fotógrafo foi responsável por e, no entanto, gradualmente cambiantes pe-
eternizar, em imagens, uma multidão constitu- las quais os indivíduos ou grupos enxergam o
ída em instrumento político moderno passível mundo social, incluindo o mundo de sua ima-
de ser difundido pelo veículo de representação ginação”. Sob essa perspectiva, é crucial variar
também moderno que é a fotogra�a publicada os olhares, os testemunhos. Rastreei as fontes à
em revistas. procura de indícios dos comportamentos cor-
Explicitados esses aspectos, há como reite- porais e das interações desses tipos humanos
rar sob um novo ângulo a relevância da me- com terceiros nas ruas do primeiro intervalo
diação da perspectiva etnográ�ca na seleção da de estudo, apreendendo regras de conduta sin-
documentação. Em busca do “diálogo para va- gulares cujas transformações acompanhei em
ler” com os indivíduos que, em movimentação relação ao segundo período em jogo.
pelas ruas centrais paulistanas, se encontravam, Tanto textos quanto fotogra�as foram im-
sem saber, imersos no processo histórico de prescindíveis, já que são suportes diversos de
virem a ser transeuntes, foi fundamental con- “olhares” (“gazes”) também diferentes a respeito
centrar-se em fontes históricas cujos autores do mundo social (Idem: 126,183). Mas foram
discorressem direta ou indiretamente sobre a textos e fotogra�as precisos: documentos que
sua própria maneira de deslocar-se �sicamente tematizam essencialmente a presença dos res-
e de interagir socialmente nas ruas centrais da pectivos autores nas ruas centrais da São Paulo
cidade ao longo dos dois intervalos em foco. nos dois intervalos. Constituíram o corpus do-
Evidentemente inexistem documentos re- cumental da investigação em questão primeira-
feridos às vivências de um único indivíduo mente relatos de viagem de alguns estrangeiros
nas ruas por mais de cem anos. Porém há, em europeus e norte-americanos sobre as vias do
relação às ruas centrais de São Paulo, textos centro paulistano do período. Tendo freqüen-
e fotogra�as que, originados no decorrer dos tado em geral, quando na cidade, as rodas mais
primeiros sessenta anos do século XIX e do prestigiadas da sociedade, esses forasteiros pro-
intervalo entre os anos de 1880 e 1917, têm duziram em seus textos, antes de tudo, “imagens
como autores indivíduos que, nos documentos do outro” imbuídas de inevitáveis preconceitos

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e estereótipos (Idem: 139). No entanto, há na cidade. No segundo intervalo temporal


mais, quando se explora o “encontro cultural” contemplado entraram em cena também os
que cada um desses textos testemunha (Idem, livros de viagem de alguns antigos estudantes
ibidem). Por evidenciar olhares de fora sobre a não-paulistanos da Academia: a passagem pela
movimentação física e as interações dos estran- cidade anos após o término do curso rendeu
geiros com nativos nas ruas, esse material for- evocações memoráveis sobre a movimentação
nece instigantes contrapontos à re�exão sobre dos próprios autores pelas ruas centrais tanto
as vivências dos próprios membros “nativos” da de seu passado juvenil quanto do seu presente
sociedade paulistana em relação a esse espaço. adulto.
No segundo intervalo temporal, as ruas da Mas também havia nesse período na cidade
cidade foram eternizadas em textos de estran- tipos humanos “nativos” que, pela pro�ssão,
geiros que não estavam mais somente de pas- podem ser associados às camadas médias de
sagem. Multiplicaram-se órgãos de imprensa São Paulo. Foram importantes, por um lado,
ligados às cada vez mais numerosas colônias determinadas crônicas e notícias jornalísti-
de imigrantes, além de fotógrafos também ad- cas que começam a ser trazidas a público pe-
ventícios (envolvidos com a produção de foto- los nascentes jornalistas na cidade a partir de
gra�as e de cartões postais) que na cidade se 1854, com o aparecimento do primeiro jornal
instalaram. Por isso mesmo, em relação a esse paulistano que assumiu o dia-a-dia das ruas
período importaram os dados que jornais, fo- como assunto cada vez mais constante de suas
togra�as e postais pudessem conter a respeito páginas. Por outro lado, consegui encontrar
da movimentação corporal e as interações co- fotogra�as da área central produzidas também
tidianas de alguns de seus autores nas vias cen- por brasileiros, nos dois intervalos em questão.
trais. Debrucei-me particularmente sobre as Os autores dessa documentação provavelmente
- cotidianas - crônicas e notícias de dois desses também tenham tido laços com as elites. Como
jornais (um italiano e um alemão), mas tam- era muito restrito o número de alfabetizados na
bém sobre imagens de um fotógrafo suíço e cidade – e, de resto, no país – , não é difícil
de um italiano que pelas ruas se locomoveram inferir que os leitores dos jornais e mesmo os
com regularidade entre �nais do século XIX e empregados ligados a esses órgãos de imprensa
o início do XX. As pro�ssões fazem desses tipos fossem aparentados daqueles em cujos círculos
humanos representantes das nascentes camadas a probabilidade de letrados poderia ser maior,
médias paulistanas. dependendo das condições econômicas.
Considerei, por outro lado, toda uma do- É certo que cada um dos documentos foi
cumentação “nativa”, por assim dizer, textos e produzido a partir de lugares sociais distintos
imagens produzidos por brasileiros no período. – e mesmo em tempos e espaços diversos, se
São documentos pessoais (cartas, no primeiro levamos em conta que as memórias e, em par-
intervalo, e um diário, no segundo) de endi- ticular, as memórias de viagem, não foram pro-
nheirados estudantes da Academia de Direito duzidas em São Paulo. Além disso, cada fonte
paulistana, aberta em 1828; memórias de anti- obedece aos ditames formais dos respectivos ti-
gos estudantes da instituição também oriundos pos documentais a que pertence, em meio à di-
das elites – ou, no mínimo, vinculados pesso- nâmica de sua produção. Isso para não falar de
almente a estas no momento em que escreve- aspectos de apreensão mais difícil. Memórias
ram os seus textos; memórias de mulheres de de viagem, de infância e de juventude, nas car-
elite sobre o seu passado de meninas abastadas tas e diários pessoais, resultam de seleções que

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obedecem a critérios de fundo eminentemente meio de interlocução com as considerações de


afetivo. Já no caso das crônicas e notícias dos outro historiador a�nado com a antropologia:
jornais, as seleções obedecem a critérios políti- Carlo Ginzburg ([1979]1991; [1989]1989). As
cos e literários. Nas fotogra�as e cartões postais referências sobre a movimentação corporal e as
fotográ�cos sobre as ruas, a seleção é de outro interações contidas nas fontes se insinuam atra-
tipo ainda, obedecendo à natureza da própria vés de detalhes cujo signi�cado interpretativo se
fotogra�a. Combina limitações técnicas, a de�ne a partir do cruzamento a que o pesqui-
perspectiva do fotógrafo, referida à própria in- sador submete os dados contidos fontes. Desse
serção deste no mundo social, e a “imaginação cruzamento emerge um desencontro entre aqui-
fotográ�ca” que, ensejada por motivações esté- lo que Ginzburg chamou de “opacidades” e de
ticas ou documentais, leva o fotógrafo a bus- “zonas privilegiadas – sinais, indícios” de uma
car desconstruir o visível (Martins 2002: 223). “realidade” mais ampla ([1979]1991: 177).
Esses critérios variados se transformam, em Em função da experiência que tiveram das
última instância, em pretextos que norteiam a ruas paulistanas, os autores da documentação
escolha que os respectivos autores fazem desse transformaram-se, após todo esse tratamento
ou daquele aspecto implícito à sua movimen- teórico-metodológico epistemologicamente
tação pelas ruas, a �m de eternizá-lo, explícita informado pela etnogra�a, em informantes
ou implicitamente, nos diversos gêneros docu- por trás de cujos “ombros” documentais pude
mentais considerados. Se, nas fontes textuais, empreender a etnogra�a das ruas do passado.
o que resulta da escolha são fragmentos mais Informantes revelados pela documentação a
ou menos �ccionais relativos aos “imponde- partir do diálogo que, pela mediação da pers-
ráveis” implícitos às andanças dos respectivos pectiva etnográ�ca, pude travar com a teoria
autores pelas ruas paulistanas, nas fotogra�as a – antropológica, sociológica, histórica6.
realidade fotografada constituída na �xidez da Há que se ressaltar, por �m, que a perspec-
película retida pela moldura remete de forma tiva etnográ�ca imbui também a representação
imediata a fragmentos efetivos da movimenta- literária dos resultados da investigação. De
ção física do fotógrafo na hora da tomada5. fato, concebo narrativamente o texto mono-
Mediada por esses aspectos todos, a seleção grá�co em questão como etnogra�a da civili-
de cada autor acabará por conter referências di- dade que, nas ruas, foi historicamente possível
retas ou indiretas à maneira como estes teriam para tipos humanos especí�cos que estavam
se movimentado �sicamente e interagido dia- vinculados às elites e às camadas médias paulis-
a-dia nas ruas do período. Foi essa a matéria- tanas entre o início do século XIX e o início do
prima de minha análise. E dá-lhe perspectiva XIX (Frehse 2004: 51-54). Assumindo como
etnográ�ca, nesta etapa da investigação traba- ponto de partida literário os discursos de cada
lhada em termos teórico-metodológicos por uma das personagens sobre a sua maneira de
se movimentar pelas vias centrais (capítulos 1
e 2) e de interagir ali (capítulo 3) nas primei-
5. É preciso considerar a condição indicial da fotogra-
ras seis décadas do século, a primeira parte da
�a - ou seja, o fato de meramente a�rmar, pelo ato
que a funda, a existência de uma realidade (objeto, monogra�a avança, a partir dos indícios sobre
paisagem) à qual se referencia (Dubois [1990]1994: os comportamentos corporais, para as regras
55,88,51-2). Após o ato de exposição da chapa à luz, envolvidas na movimentação corporal de via-
essa realidade é “imediatamente (re-)tomada, (re-
)inscrita nos códigos” relativos às “formas culturais da 6. Sobre a pertinência de falar em informantes “quando
representação” (Idem: 85-6). o campo é o arquivo”, cf. Frehse (2005b: 131-156).

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jantes, de estudantes de Direito, de mulheres Etnogra�a, mas também perspectiva etno-


de elite, de jornalistas e fotógrafos ali naquele grá�ca, já que o enfoque sobre as movimenta-
período (capítulos 1 e 2). Ancorado nesses da- ções corporais e nas interações dos diferentes
dos, o texto parte em direção a pistas sobre os transeuntes pelas ruas em cada momento é
padrões de conduta das interações nas ruas nes- uma estratégia literária que visa aproximar cog-
se período (capítulo 3). Após um Intermédio nitivamente o leitor tanto daquelas vias que se
que evoca as transformações socioeconômicas, torna quase inevitável que ele seja levado a es-
demográ�cas, urbanísticas, tecnológicas e polí- tranhar as suas próprias, deste início de século
tico-administrativas pelas quais as ruas centrais XXI. Se estas são ruas paulistanas, quantas dife-
de São Paulo passaram no intervalo entre os renças... Mas também, tantas semelhanças...
anos de 1860 e 1880, entra em cena a segunda
parte do estudo. É então a vez respectivamen- Em meio a limitações, rendimentos
te dos discursos, indícios e das regras referidas de cunho teórico-metodológico e li-
às ruas do centro paulistano no intervalo entre terário
1880 e 1917 (capítulos 5, 6 e 7).
A referência teórica que orientou a estrutura Escaparia aos intuitos deste artigo apresen-
argumentativa, na qual cada parte se constitui tar os resultados interpretativos detalhados na
a partir dos indícios sobre os comportamentos e através da etnogra�a das ruas do passado que
corporais, a �m de aprofundar verticalmente, constitui a monogra�a em questão (cf. nesse
na seqüência (respectivamente capítulos 3 e 7), sentido Frehse 2004). Mais vale apontar o que
as regras envolvidas nas interações em meio a o exercício de estranhamento aqui realizado
esses comportamentos, foi a premissa geertzia- revela sobre as potencialidades da etnogra�a
na de que ao antropólogo cabe concentrar-se para a abordagem antropológica justamente
na “hierarquia estrati�cada de estruturas signi- das ruas paulistanas oitocentistas. São poten-
�cativas” ([1973]2000: 7). No caso, trata-se de cialidades que se apresentam em meio às inevi-
uma hierarquia de signi�cados que, apreensí- táveis limitações do recurso quando o assunto
veis através do cruzamento de dados das dife- são problemáticas referidas a um tempo histó-
rentes fontes, dizem respeito a regras que, por rico que não é aquele em que vive e pesquisa o
sua vez, perpassam os comportamentos corpo- antropólogo.
rais e, pela mediação destes, as interações em As limitações são óbvias quando se assume
questão. Mas lanço mão da noção de etnogra�a como parâmetro a concepção clássica de etno-
para caracterizar a monogra�a tendo em conta gra�a vigente na antropologia. Não há como
que a estrutura de cada uma de suas partes tem ter contato físico com os nativos que se estu-
um caráter densamente descritivo: iniciando-se da; não há como “conversar com eles” (Geertz,
na descrição dos indícios sobre a movimentação [1973]2000: 13), portanto. Ademais, se, como
física nas ruas, a argumentação passa para as diz Geertz, os dados do antropólogo são sempre
regras signi�cativas que esses indícios sugerem construções das construções dos outros (Idem:
para comportamentos corporais e interações. Já 9), as construções, no caso de estudos antropoló-
o Intermédio é a mediação que dá sentido a gicos de temáticas históricas, se fazem com base
essa densidade, de conteúdos socioculturais e apenas em indícios das construções dos outros.
históricos diferentes em cada período, por mais Entretanto, penso que o exercício de estra-
que a lógica cultural implícita às regras, a eti- nhamento aqui realizado contribui para atestar
queta, permaneça inalterada. que as limitações não são su�cientes para de-

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mover o antropólogo do empreendimento, se na etnogra�a.


o que ele visa é a�rmar, a partir dos referenciais Expostos esses rendimentos, seria possível
da disciplina, algo sobre a sociedade em ques- inverter a questão inicial deste texto para re�etir
tão. Existe uma perspectiva etnográ�ca que sobre a potencialidade que uma análise das ruas
o acompanha mesmo quando ele se defronta do passado pode ter para a antropologia. Se não
com modos de viver, de pensar e de se relacio- é o caso aqui de delongar-se nesse sentido, cien-
nar socialmente que não lhe são contempo- te de que essa tentativa é, ela mesma, pretexto
râneos. Essa perspectiva medeia a construção para um outro artigo, reconheço que, por meio
teórico-metodológica da investigação, perpassa do empreendimento aqui tematizado, fui leva-
a coleta, análise e interpretação dos dados, a re- da a ponderar sobre mediações teórico-metodo-
dação dos resultados. lógicas que, por mais que perpassem também
Se contemplada sob esse prisma, a etnogra- as etnogra�as realizadas no chamado “presente
�a é, por um lado, prenhe de rendimentos de etnográ�co”, nestas freqüentemente passam de-
cunho teórico-metodológico para a abordagem sapercebidas, ou não são explicitamente proble-
das ruas do passado. Ela abre espaço para que matizadas em função de uma con�ança talvez
se problematize antropologicamente, lançando excessiva do antropólogo nas virtudes dos in-
mão do norte epistemológico que é o “diálo- sights “em campo”. Re�ro-me especialmente à
go para valer”, essa seara muito especí�ca da de�nição da questão teórica a ser analisada, mas
vida social que é a vida de todo dia. Trata-se também à construção teórica de uma referência
de um ponto de reparo passível de descortinar metodológica para abordar essa questão, o que
os dilemas culturais e históricos envolvidos acarreta a elaboração de etnogra�as bem espe-
nos fatos aparentemente menores do dia-a-dia. cí�cas, através de informantes singulares, que
Sobretudo quando o assunto são a cidade e a são construções também teóricas, mais do que
modernidade, temáticas tão caras às chamadas resultados exclusivos do contato empírico com
“sociedades complexas”, a perspectiva etnográ- o campo. Isso para não falar da relevância da
�ca incentiva o pesquisador a estranhar essa se- chamada “crítica da fonte”, tão conhecida dos
ara, in�uenciada de forma tão contundente por historiadores, para o processo de coleta, análise
esse modo de vida historicamente peculiar que e interpretação de dados etnográ�cos.
é o cotidiano. Tal ponto de vista permite trazer Já do ponto de vista teórico, foi possível
à tona, em meio ao vigor do processo histórico reconhecer a perturbadora da historicidade de
de difusão da modernidade pelos quatro cantos longa duração que impregna práticas culturais
do mundo, as ressigni�cações peculiares deste, como a civilidade. Explorando a hierarquia de
dependendo do contexto sócio-histórico e cul- estruturas simbólicas, deparei-me com regras de
tural em questão. conduta com conteúdos diversi�cados em mo-
Paralelamente há potencialidades literárias mentos históricos distintos; mas a lógica sim-
na etnogra�a. Balizando a elaboração de textos bólica que os envolve tem uma historicidade
fortemente marcados por fórmulas narrativas que faz reaparecerem em plena rua republicana
que visam conduzir o leitor pela “hierarquia de e pós-escravista regras de conduta cerimoniais
estruturas signi�cativas” que envolvem as práti- do período escravista. Em face dessa constata-
cas culturais, a perspectiva etnográ�ca implícita ção, �ca para a antropologia a seguinte ques-
à etnogra�a acaba por incentivar a re�exivida- tão: Há como compreender os signi�cados dos
de do leitor, ao mesmo tempo tão próximo e comportamentos sem recorrer à história?
tão distante do contexto descrito densamente Em meio a suas limitações e possibilidades,

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autor Fraya Frehse


Professora do Departamento de Sociologia / USP
Doutora em Antropologia Social / USP
Pesquisadora NAU / USP
Editou a Cadernos de Campo nos 5/6 a 9

Recebido em 10/01/2007
Aceito para publicação em 31/01/2007

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