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CRISE DA CIDADE E FETICHE DO TRABALHO.

A urbanização brasileira e
a reprodução crítica de uma sociedade do trabalho pós-catastrófica

Cláudio R. Duarte e Caio B. Mello *

1- Das promessas e explosão do urbano mundial às ideologias do seu desenvolvimento


no Brasil

"A Idade Média... tem como ponto de partida o campo, para desenvolver-se em seguida através
da oposição entre a cidade e o campo. A história moderna é a história da urbanização do
campo, e não, como entre os antigos, a da ruralização da cidade", escreve Marx nos
Grundrisse (1953:p.382). E hoje a urbanização mundial alcança aparentemente os limites da
superação da secular divisão territorial do trabalho entre campo e cidade. Vários países do
Norte, mas também do Sul, atingem cerca de 75% (como é o caso do Brasil) até 95%
(Inglaterra) de população urbana. O urbano e seu modo de vida – desde sempre ligado ao
dinheiro e à troca de mercadorias, base originária da burguesia comercial e industrial, do
exército e do Estado moderno – se estendem por todo território. Assim, neste início de século o
urbano parece concentrar e conter o devir da história do capital.

Mas, desde o início do processo de industrialização capitalista clássico ou retardatário (como é


o caso típico dos países da América Latina e do Leste europeu), aquilo que foi uma vez a
cidade tradicional – um centro de vida urbana coeso, bem delimitado e com certa autonomia
política e social em torno das igrejas, do palácio real, das sedes administrativas, corporações
de ofício e os mercados (de "preço justo" etc.), salões de literatura, cafés etc. – começa a se
estilhaçar. A cidade européia aparecia, desde a Renascença européia até o nascimento da
sociedade civil-burguesa no séc.XVIII, como matriz de certas relações sociais "racionais" e
"pacíficas" superiores, daquilo que, historicamente foi tido sob os mais altos conceitos:
"civilização", "cultura" e "formação" (Bildung), vale dizer, "autonomia" e "emancipação" social
(vide p. ex. Adorno, Th. W. [1959]). Ideologia da modernização (mercado, sujeito-monetário
burguês) ou não, ilusão da política (cidadania e igualdade formais etc.) ou não, o fato é que o
urbano criou não só a melhoria relativa nas condições de vida e as bases de uma cultura
cosmopolita universal, mas a possibilidade da experiência de crítica social radical e os
potenciais de superação daquilo que poderíamos chamar, com Marx, de "pré-história do
homem". Pois a cidade sempre foi, enquanto forma mental e social, a reunião de riqueza social:
pessoas, objetos, técnicas, conhecimentos, atividades sociais etc. – tudo se liga
horizontalmente enquanto potencial criativo de vida social; atrair e aglomerar riqueza é um
atributo formal de seu centro e das centralidades que ela dissemina um pouco por todo lugar
(cf. Lefebvre, Henri, 1970). É essa capacidade de junção de diferenças sociais, comunicação,
interligação e comunhão de forças produtivas que entra fundamentalmente em colapso quando
a própria modernização capitalista mundial começa a chocar com suas barreiras
instransponíveis (Kurz, Robert, 1996 e 1995).

Segundo sugere Walter Benjamin (1991), é a cidade como um todo que se torna algo como a
"imagem dialética" das contradições da sociedade capitalista, ou seja, a forma de apresentação
efetiva da forma-mercadoria (em seu duplo aspecto de valor de uso e valor). E como indica
Henri Lefebvre, com o reino da mercadoria a cidade "implode e explode" mundialmente em
fragmentos de urbanidade pelas periferias e subúrbios. Um pouco por todo o mundo surgem,
para além da antiga cidade, uma morfologia sócio-espacial que expõe tais relações sociais
contraditórias: bairros operários e de classe média, novos loteamentos segregados na forma de
habitações minúsculas e precárias para o (sub-) proletariado (casas de aluguel, cortiços, auto-
construções, favelas, barriadas, bidonvilles etc.), conjuntos habitacionais e pavilhões
gigantescos e miseráveis nos confins do perímetro urbano, cidades satélites etc., bairros
nobres privilegiados politicamente e restritos à classe média alta e burguesia etc. (vide p.ex.
George, P., 1972). Os próprios centros antigos tornam-se deteriorados de vida social. A cidade
é transtornada pela imensa especulação imobiliária segregadora e pelas transformações
espaciais impostas pela moderna produção industrial, associada às políticas tecnocráticas do
Estado, em termos de infraestrutura social (estradas e avenidas para o automóvel, ferrovias,
aeroportos, redes elétricas, telefônicas, de saneamento etc., hospitais, escolas, prisões - como
condições gerais para fábricas, moradias populares, supermercados, shoppings etc.). A própria
"urbanização planejada" pelo Estado tem um caráter alienado e espetacular frente aos
cidadãos. Certamente este trajeto é mundial, embora bastante desigual geograficamente.

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Assim, na Europa, a longa gênese do capital desemboca nas cidades como reunião coercitiva
do que foi separado na história de acumulação primitiva: a "força de trabalho" e "os meios de
produção". Ou seja, a cidade torna-se a junção produtiva da "abstração trabalho" e da
"abstração capital" (vide p.ex. Trenkle, N. 1998 a e b). Homens adultos, mas também crianças,
mulheres e idosos – a massa de gente expropriada, subitamente "transformada em
vagabundos" por "leis grotescas e terroristas" (Marx) do Estado absolutista, é vigiada e
empurrada ao "trabalho forçado" nas work-houses (prisões do trabalho) e manufaturas (elas
mesmas modelos disciplinares reflexivos dos conventos, manicômios e escolas); mais tarde, a
democracia de mercado põe as condições para que surja uma classe operária "adequada",
que, por "educação, tradição e costume", defronta-se com as condições estruturais da venda
do trabalho nas grandes indústrias como "leis naturais evidentes" da vida urbana (Marx, 1988,
I, 1: p.267). O trabalho, ou melhor, o tempo de trabalho abstratamente social, torna-se a grande
forma de mediação social fetichista entre as pessoas, a mercadoria especial que cria e dá
acesso à riqueza material sob a forma quantitativa do dinheiro.

Na América Latina e no caso mais específico do Brasil, tal processo de separação e


acumulação originária acontece, em verdade, ao menos de forma virtual, desde os primórdios
da colonização no século XVI, com a escravidão e o grande latifúndio exportador de produtos
tropicais (açúcar, cacau, tabaco, café etc.) e extrativos (ouro, diamantes, esmeraldas). Tal foi o
"sentido da colonização" (Prado Jr., Caio, 1999). Assim, na captura e mercantilização do
próprio trabalhor – os índios na própria América, os negros já na África –, além da sujeição de
homens pobres livres (camponeses, serviçais etc.), todos unidos como "material humano" da
empresa colonial produtora de mercadorias, já está pressuposta a separação entre homens e
suas condições de vida (terra/instrumentos de produção), ou seja, já está implícita para eles a
situação de homens "livres como os pássaros"(Marx), embora somente no fim do século XIX
(1888: abolição da escravatura), por pressão inglesa, isso iria se concretizar e consolidar. Ao
mesmo tempo é a própria terra que, a partir do momento da crise do tráfico negreiro em
1830/50, se torna cativa: uma mercadoria somente acessível para quem detivesse grande
quantia em dinheiro para a comprar (Cf. Martins, José de Souza, 1979). Assim, é do final do
século XIX que data a grande expansão da urbanização capitalista no Brasil, sob a pressão da
industrialização, ela mesma emaranhada com os novos negócios da especulação fundiária
urbana e rural e as políticas públicas clientelistas e patrimonialistas de transportes (bondes e
ferrovias), de energia, saneamento básico, habitacionais etc. (intrinsecamente sempre ligadas a
privilégios privados, favores pessoais e corrupção política) (cf. Martins, 1994).

Assim, desde a abolição, o modo de vida urbano-industrial aparecia como uma grande
promessa: a promessa do desenvolvimento modernizador e integração com a civilização
ocidental capitalista. Da elite às massas pauperizadas, a cidade moderna aparecia como essa
grande oportunidade. Para uns sobretudo a chance, a fortuna de novos negócios, para outros a
loteria da sobrevivência e acesso a bens até ali inéditos em suas vidas. De modo que a
libertação da massa de escravos levou-os de fato às cidades em crescimento, mas também
aos confins do interior do Brasil até ali quase inteiramente despovoado (é nesse interior que
surge movimentos milenaristas camponeses, de cunho anti-moderno por exemplo). A
sociedade urbano-industrial se polariza com o campo, compreendido agora como o "atraso".
No século XX, a modernização capitalista do campo vai expulsando violentamente pequenos
proprietários (o caipira, o caboclo, o gaúcho etc.), destruindo gradualmente os antigos modos
de vida rurais (cf. Candido, Antonio, 1964). Assim, é essa enorme população rural,
paulatinamente despossuída (negra, índia, miscigenada entre si e com o português, o holandês
etc.), que irá constituir a gigantesca migração interna para as grandes cidades como São Paulo
e Rio de Janeiro no século XX (principalmente após os anos 50) para servir como mera mão-
de-obra. Além deles, caberia lembrar da vinda dos imigrantes europeus livres no séc. XIX para
a cultura do café sob o regime do colonato em São Paulo (cf. Martins, 1979) e a pecuária e
agricultura subtropical no sul, vindos como camponeses povoadores (pequenas e médias
propriedades) – porém, em franca decadência a partir dos anos 1940 (concentração da
propriedade), o que os foi forçando também lentamente a migrar para as cidades, para o
trabalho fabril, aos serviços públicos, à economia informal etc.

Assim, principalmente após os anos 30, se daria o grande esforço de modernização industrial
retardatária: através de um processo de substituição de importações (da indústria leve a de
bens de capital), com forte regulação e participação do Estado (daí as ditaduras de Vargas e do
golpe militar entre 64-85), com o sucessivo e exponencial endividamento interno e externo,
público e privado, surgem as grandes metrópoles industriais, principalmente após 1950-60
(vide p.ex. Mello, J. Cardoso de, 1986). É assim que as capitais recebem indústrias
multinacionais fordistas de bens duráveis e de capital, na esperança de se criar uma
acumulação capitalista endógena nacional. Era a promessa de desenvolvimento de uma
"grande nação" civilizada nos trópicos. Processo que foi, porém, idêntico ao estilhaçamento das
cidades, nos termos gerais expostos acima.

Da esperança à catástrofe do urbano: particularidades da urbanização brasileira

Assim, o país que tinha passado por seu milagre econômico (!) entre 1967-72, que crescia a
taxas de 10% ao ano, após 1973 começa a confrontar-se com a crise mundial de acumulação,
passando por recessões e fracas recuperações econômicas sucessivas. Em marcha forçada de
industrialização endividada, com enorme arrocho social dos salários sob a ditadura militar, que
piora ainda mais sob os governos democráticos, abrir-se-ia doravante um fosso gigantesco no
social: em 2000, no Brasil, os 10% mais ricos detêm 50% da renda nacional e os 50% mais
pobres apenas 12%; ou, 1% das famílias ricas consomem mais do que 80 milhões de cidadãos
de "quinta categoria"; metade das terras agrícolas pertencem a apenas 2% dos proprietários
rurais e 62,4% das terras são improdutivas; enfim, uma das piores distribuições do mundo(1). O
salário mínimo de 2001 – 80 dólares – corresponde a cerca de 1/5 do de 1940 e é um dos mais
baixos do mundo(2). O que parecia milagre torna-se-ia com o tempo desastre social e
econômico.

Com a crise mundial pós-73 e a mudança da política mundial de juros em 79, vai estourando a
dívida interna e externa e, então, a hiperinflação no Brasil. Nos anos 80, a economia volta-se à
exportação, com "efeitos saudáveis" na balança comercial e novas ruínas para a agricultura
alimentícia camponesa do sul e sudeste (feijão e arroz substituído por cana, soja e laranja) e
estagnação de certos setores da indústria. Será a lenta ascensão do capital fictício
(especulação monetária e com rendas fundiárias). Mas as importações crescem bastante nos
anos 90, sob as pressões do FMI e da abertura neoliberal. No fim dos anos 90, em pleno
governo "social-democrata" (PSDB, F.H.Cardoso), a dívida interna/externa quintuplica,
chegando a atingir hoje em torno de 400 bilhões – mais da metade do PIB do país. A lenta
desvalorização da moeda e a subida dos juros tentam conter a inevitável volta da inflação e a
queda no fundo do poço. Os orçamentos públicos federais de 2001 para educação e saúde não
atingem 20% do que será pago em juros ao serviço das dívidas neste ano (154 bilhões de
dólares!); de fato já em 2000, 64% das verbas foram gastas em pagamentos de juros. Por fim,
a crise energética e de abastecimento de água (por falta de chuvas, de investimentos estatais e
privatizações mal feitas) ameaça cavar ainda mais fundo a cova para o cadáver do trabalho:
diminuição do crescimento, aumento do desemprego.

Assim, após 80, as políticas econômicas que se sucederam tentavam conter a hiperinflação
galopante ao preço de mais concentração de renda e empobrecimento geral. A "década
perdida" de 80, e ainda mais as da ditadura militar, são reconhecidas no fim dos 90 como "não
tão ruins assim", ou até como "saudosas", pois o desastre social só aumentou dali para cá. Nos
anos 90, a estabilização da moeda (plano Real) se dá ao preço do hiper-endividamento do
Estado (agora engessado com o capital especulativo nacional e internacional e em perpétuo
"ajuste fiscal"), de desindustrialização e/ou desconcentração espacial das empresas (em
relação intrínseca com as altas taxas de juros oferecidas pelo governo ou os incentivos/guerras
fiscais inter-localidades), fusões/concentrações de capital empresarial, altas taxas de
desemprego estrutural,(3) e, portanto, mais concentração privada do produto social (30% do
PIB mudou de mãos nos últimos quatro anos !). Os infelizes da cidade e do campo levam sua
sova de costume, agora, porém, com chicote de aço. As estatísticas duvidosas do desemprego
urbano paulistano (oficialmente fala-se em 8%, mas realmente pode-se pensar em até 17% da
população ativa) e de sua irmã gêmea dissimuladora, a precarização/informalização do
trabalho (a "economia informal" chega a atingir cerca de 30% em São Paulo), juntos, fariam
como suas vítimas talvez cerca da metade da população economicamente ativa.

O crescimento da economia no fim dos anos 90 atinge cifras nanicas do ponto de vista do
desenvolvimento capitalista (de 2 a 3% ao ano em média). As taxas de capacidade ociosa na
indústria atingem até 25%. Mas, o sonhado crescimento geral de 5% anual seria, no entanto,
ainda um pesadelo, pois ficaria também devendo a integração da massa de desempregados e
precarizados do trabalho de uma "população economicamente ativa" sempre em crescimento
(9,67 milhões a mais entre 1990 e 96). O "recurso" populacional dos 156 milhões de
consumidores e trabalhadores, considerado até aqui como "mercado potencial" pela economia
política e pelos partidos de direita e esquerda, vai se tornando um peso morto face a um
desenvolvimento reificado "poupador de mão-de-obra", além do mais desqualificada: a taxa de
analfabetismo acima dos 14 anos no Brasil, em 1990, alcançava a média de 19% (17,7 milhões
de pessoas), sendo que 68% é a cifra global dos 75 milhões de eleitores que não completaram
o ensino fundamental, são semi-analfabetos ou inteiramente analfabetos. A escolaridade média
do trabalhador é de 3,5 anos. Apenas 4% da população entra e completa o curso universitário.

Assim, adentramos numa fase em que "não há mais grandes planos para as grandes maiorias"
(Kurz), nem mesmo ideologicamente: FHC, presidente eleito por duas vezes seguidas, pôde
dizer, num momento de "cinismo sincero" (na língua do capital), que 30 milhões de brasileiros
seriam agora parte do lixo social, massa permanentemente "excluída", um fardo para o Estado.
Como já adiantara Adorno nos anos 50, o fetiche do mercado expõe-se agora para quem quiser
ver, sem ética ou ideologia humanista de legitimação. De resto, advêm as reformas sociais
dilapidadoras do fundo "do poço" público social, sob o nome de "custo Brasil" (redução de
impostos, quebra de monopólios etc.), "privatizações" (até de empresas públicas lucrativas) e
"ajustes/cortes fiscais" (educação, saúde, energia, transportes, enxugamento da máquina
burocrática etc.). Na década de 90, de fato, o patrimônio público-estatal vai sendo sugado pelos
credores nacionais e internacionais e pelas privatizações. Ao mesmo tempo, bancos privados
recebem ajuda de R$ 30 bilhões para não falirem e levarem o sistema financeiro à bancarrota.
A crise estrutural do Estado se agrava ainda mais por trapalhadas administrativas e corrupção
política: como no caso dos recentes escândalos de desvios bilionários na Sudam e Sudene
(agências de desenvolvimento regionais).

Assim, as rodas totalitárias da concorrência mundial irão com o tempo esmagando as ilusões
do desenvolvimento não só do Terceiro ou "Quarto" Mundos, mas também nos países
considerados de "semi-periferia", "em desenvolvimento", os "emergentes". A cada rodada do
aumento da produtividade social global, contudo, as forças produtivas gritam por novas
relações sociais não fetichistas, como que de dentro da cripta social. Agora, a crise mundial e
mais particularmente de seu vizinho e parceiro espoliado de Mercosul, a Argentina, aparece
como uma peste negra que a qualquer momento pode contaminar o país e destruir qualquer
perspectiva de pódium para os retardatários exemplares do desenvolvimento capitalista. E é na
cidade, lá no interior do vivido, na realidade implícita do cotidiano, que a crise tende a já
aparecer como processo de "colapso da modernização"(R.Kurz, 1996).

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Hoje no Brasil, diríamos que o gigante urbano – por quatrocentos anos uma mancha irrisória
(mas eficiente politicamente) frente aos grandes campos de plantations e extração mineral –
até mesmo chega a se indiferenciar do "rural", que pode até resistir em seu seio como
elemento dum terceiro termo totalmente desfigurado e quase indecifrável (aqui falaremos
sobretudo das grandes metrópoles, mas também das cidades médias que já vão entrando
neste processo). O urbano é profundamente marcado pelo seu negativo.
Quando a grande cidade industrial em crise engole o rural, isso sucede sem diluí-lo e superá-lo
por completo: não só porque práticas rurais persistem entre os pobres no corpo da cidade
periférica como recurso de sobrevivência emergencial (cultivo de hortaliças, pequena criação
de animais, relações sociais mais diretas), mas principalmente se entendermos como
características elementares do "rural" as imposições cegas e objetivas do "natural-social", a
relativa dispersão espacial, a pobreza e a raridade de determinados objetos, tal como Guy
Debord (1997: §177), com base em A Ideologia Alemã ("O campo mostra justamente o oposto,
o isolamento e a separação"), o entendia: assim, "o urbanismo que destrói as cidades
reconstitui um pseudocampo, no qual estão perdidas as relações naturais do antigo campo
quanto as relações sociais diretas, e diretamente questionadas, da cidade histórica". Agora
porém tais imposições aparecem enquanto poderes estranhos plenamente "sociais-naturais",
ligados à forma social não-social da produção capitalista de mercadorias, forjadora de um novo
isolamento social dos sujeitos mônadas-dinheiro e de uma nova aspereza da vida sob a
loucura das normas burocráticas cegas do dinheiro e de uma concorrência mundial brutal.
Assim, para Debord, "a ignorância natural cedeu lugar ao espetáculo organizado do erro" e "já
que a história que é preciso liberar nas cidades ainda não foi liberada, as forças da ausência
histórica começam a compor sua própria paisagem exclusiva".

No colapso avançado da modernização latino-americana e mais especificamente brasileira,


esta "paisagem de ausências" tem uma peculiaridade. Este terceiro termo devorador da cidade
tem talvez a mesma cara feia da velha produção capitalista dos primórdios da revolução
industrial (tal como analisada por Engels p.ex.), porém, agora tendencialmente muito mais feia
pois envelhecida pela crise avançada da sociedade do trabalho sistemicamente perdedora. De
modo que a película de terror vai se revelando nitidamente quando a maquiagem urbana que
algumas políticas do Estado ainda proporcionavam (entre os anos 40-60) vai se desmanchando
enquanto "conquistas sociais cidadãs" do modo de vida urbano (escolas, saúde e saneamento
básicos, previdência e segurança social, oportunidades de trabalho permanente, direitos
trabalhistas, sindicalização e sufrágio etc.; no entanto, cabe salientar que nunca houve por aqui
algo próximo à política de "bem-estar social" dos países "desenvolvidos").

Esse processo é mundial mas também se apresenta de forma desigual, de acordo com o
continente, o país, a região, a cidade e suas zonas... Em todo caso, a ubiqüidade da miséria
social, em todos os sentidos (material, social, cultural etc.), começa a eclodir em todos os
lugares do mundo, tão pronto os diferentes países e suas regiões caem sob a espada afiada da
produtividade global, sendo desconectadas dos grandes fluxos de investimentos monetários e
produtivos privados e das políticas do Estado (agora medularmente endividado), sendo
rebaixadas à reprodução precarizada do trabalho e da renda. Neste sentido, vão agora se "de-
formando" como "regiões pós-catastróficas", tal qual se referiu Kurz em seu Colapso da
Modernização (1996: 165 ss.).

Ao mesmo tempo, as grandes metrópoles que ainda recebem e fazem circular grandes fluxos
de capital se "resumem" a pequenas ilhas para os vencedores do mercado: uma classe média
ligada ao setor mais avançado dos serviços e do comércio, à especulação financeira e à
criação de tecnologia, à indústria da cultura e do lazer (cf.Arantes, 1999), vivendo em bairros
elitizados (pelos preços imobiliários) e protegidos (por milícias privadas e por políticas de
zoneamento urbano), tudo em meio ao alto-mar de pobreza, desventura, violência e desespero
sociais. As políticas públicas tornam-se seletivas, aplicadas a eixos territoriais especiais (em
São Paulo, p.ex., ligados aos setores mais avançados da produção terciária), largando a
imensa periferia a si mesma, ou melhor, às empresas privadas de lotementos da terra urbana
(muitas vezes clandestinas), à política emergencial, penal e segregacionista do Estado e à
iniciativa infinita de pequenos produtores e vendedores de mercadorias (sobre esses assuntos
vide, p.ex., a coletânea elaborada em torno do Labur: Damiani, Amélia, 1999).

Em verdade, a especulação com a terra urbana em São Paulo e outras capitais, desde o fim do
século XIX, ganhou a dimensão de um circuito secundário da valorização do dinheiro:
açambarcar terras públicas e vendê-las, invadir e lotear terrenos devolutos, ou os comprar
barato e vendê-los caro, às vezes construindo, alugando ou vendendo casas prontas, após
chegar certa infraestrutura urbana – ou seja, extrair renda fundiária de quem se dispuser a
pagar o preço da especulação – foi a forma primordial de expansão da periferia (e da
densificação vertical nos centros) das grandes cidades brasileiras, envolvendo várias empresas
do mercado imobiliário e da construção civil, Um mercado gigantesco sempre em expansão,
principalmente após os anos 60. Mercado que é paralelo, como já sugerido, ao circuito da
valorização fictícia do dinheiro em aplicações bancárias, bolsas de valores, títulos públicos etc.

Mas se no mundo do dinheiro sem lastro tudo parece de vento em popa, a catástrofe do
desenvolvimento e a fratura exposta da urbanização brasileira se expõem plenamente nos
elevadíssimos números de favelamento em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro após
1970:

Crescimento da população favelada nas duas maiores cidades brasileiras

Grande São Paulo / anos


População favelada

1971
39.000

1974/5
108.000

1983
414.572

1993
1.901.892

Rio de Janeiro / anos


População favelada

1960
335.696

1970
1.000.000

1982
1.800.000

1993
2.000.000

Fontes: Retrato do Brasil, encarte nº37, Folha de São Paulo 4/98 e 5/96 e PMSP, 1993.

A favela é a última alternativa que sobra para cerca de 30% da população carioca e 6,2% da
população paulistana. Obviamente isto tem relação com a queda histórica dos salários e
rendimentos e com políticas estatais que sempre privilegiaram o crédito bancário para a
construção de moradias para a classe média. Se somarmos habitações precárias em cortiços
(3,5 milhões de habitantes em São Paulo) e os loteamentos clandestinos (em construção),
teremos cerca de metade (ou mais da metade) da população dessas cidades morando em
condições gerais insalubres e insuficientes. Além disso, cerca de 70% das moradias estão em
condições ilegais. Capitais como Recife tem índices piores ainda de favelamento (43% do total
de domicílios). No limite extremo, até morar nas favelas começa a se tornar inviável, motivo do
aumento da população de rua: mendigos morando em baixo de pontes, portas de lojas etc. A
carência habitacional brasileira chega em torno dos 6 milhões de moradias (Maricato, E., 1998),
mais da metade da população de Portugal, Bélgica ou Uruguai.

Conseguir morar em uma casa modesta e adequada na periferia de São Paulo torna-se quase
um luxo, e é fruto do sacrifício de uma vida inteira: migrantes demoram até 20 a 30 anos para
poder se instalar na cidade "em definitivo". Assim, são constantes as migrações inter-urbanas
por São Paulo, na fuga dos altos aluguéis imobiliários, mas também à procura de trabalho ou
na forma das migrações pendulares (casa-trabalho). Em São Paulo, uma vez lançadas à
periferia distante (20/30 km dos centros), as pessoas mais pobres precisam se aglutinar para
lutar por melhorias. Geralmente, a mobilização popular precisa lutar muitos anos para arrancar
dos órgãos públicos condições mínimas de habitação, geralmente em lugares desérticos,
perigosos ou sem qualquer infraestrutura (beira de rios, córregos e várzeas alagadiças,
encostas de morro, áreas de mananciais etc.), demandando novas lutas (por escola, postos de
saúde, linhas de ônibus etc.) (Maricato, 1996). Por um bom tempo precisam roubar energia e
água encanada, através de ligações clandestinas, para poder sobreviver com os rendimentos
de fome. Na maioria das vezes são os próprios moradores que constróem suas casas no
sistema de "mutirões" coletivos ou de "auto-construção", duplicando então as horas de trabalho
familiar nos finais de semana, rebaixando mais uma vez o custo da reprodução da força de
trabalho (Kowarick, 1993). Eis o aspecto avermelhado (de parto e nascimento) e cinzento (de
ruína) das periferias urbanas latino-americanas: são milhões de casas e ruas (e a vida social
que as acompanha) sem terminar, em projeção ou perecimento, quase-virtuais. Daí a ironia dos
nomes dos loteamentos, ou melhor, "Jardins e Vilas" da metrópole: Paraisópolis, Vila Nova
Conquista, Jardim Papai Noel, Vila Esperança...

Dificilmente a pobreza urbana, no entanto, é concebida popularmente como privação e


dominação social, mas é individualizada e vivida como fracasso familiar e humilhação pessoal,
no máximo percebida como culpa subjetiva de certos governantes, "dos de cima", daí a
passividade e falta de organização gerais das massas pobres urbanas. Uma luz popular mais
cortante surge no rap (rhythmum and poetry), na consciência ressentida, revoltada,
"envenenada" dos jovens negros e pobres da periferia (Mello, 2000). A situação melhora
também nos movimentos organizados pró-moradia e associações de bairro, embora eles
tenham enfraquecido muito a partir dos anos 90 por causa do desemprego, da nova orientação
conservadora do Vaticano, da penetração da Igreja Universal do Reino de Deus e de várias
Igrejas evangélicas e pentecostais nas comunidades e de governos de direita – uma água fria
na questão social brasileira(4). Além disso, são muitos os movimentos que, nascendo como
insurgência coletiva contra a propriedade privada do solo urbano, se desmancham em seguida
no cotidiano mercantil mais individual e banal, embora possa surgir na população periferizada
uma vida de bairro solidária mais intensa que noutras partes da cidade, por exemplo, os bairros
de classe média. Nestes últimos, a infraestrutura normalizada vem acompanhada do vazio de
história das praças e ruas, povoadas pelo trânsito infernal de automóveis – por si só já índice
visível do colapso da modernização no urbano (Schor, 1999) – ou o movimento espetacular das
mercadorias e dos consumidores nos supermercados e shopping centers (Duarte, 2000).

Assim, uma metrópole como São Paulo tem um rosto de Jano multiplicado por mil. De um lado,
por exemplo, pode haver avenidas com infovias para prédios de luxo superequipados e do
outro terrenos vazios à espera da valorização, barracos miseráveis em áreas inundáveis ou de
risco (áreas de erosão e deslizamentos, área de mananciais de água etc.), sem qualquer
condição de moradia(5). Na verdade, aliás, a questão ambiental parece menos visível na
cidade: mas o problema das enchentes urbanas continua a atingir milhares de pessoas em São
Paulo todos os anos, e os problemas do racionamento ou falta de água (por poluição), já
atingem ou atingirão em breve milhões.

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Desta maneira, a crise da sociedade do trabalho é idêntica à crise superavançada da cidade e


do urbano, enquanto totalidade. A crise se normaliza: trata-se de um "estado crítico" (Lefebvre).
No limite, a tradicional e cotidiana paz urbana da mercadoria é destruída pela guerra pura. O
urbano é solapado pelos conflitos civis e militares abertos, os assaltos, o tráfico de drogas e os
tiroteios entre quadrilhas e polícia, as correntes invasões e despejos de ocupantes e invasores,
moradores de bairros em terras ilegais ou inadimplentes,(6) depredações de espaços públicos
(trens, escolas, estádios etc.), rebeliões nos presídios superlotados (nos últimos 15 anos
crescem bastante), o medo constante e a mania de segurança. O Estado pode ser
caracterizado, de fato, como emergencial, segregacionista e penal. A própria sociedade,
cativada pela mídia, exige que os investimentos em policiamento e assistência social
aumentem. Do outro lado, no fio da navalha, está a multidão de assistidos-sem-assistência
perambulando pelos cruzamentos e semáforos, o deserto populoso dos pequenos vendedores
de mercadoria e caçadores de dinheiro...

Fetiche do trabalho: a reprodução crítica de uma sociedade da mercadoria em colapso


avançado

A economia pós-colapso exige de cada um mais trabalho do que nunca. A multiplicação das
horas de trabalho acompanhou a redução histórica de salários.

Médias de horas de trabalho para obtenção da ração essencial (Dieese, set./96):

São Paulo:

1969: 110 h 25 min

1979: 152 h 04 min

1987: 208 h 05 min

1996: 191 h 03 min

Principais Capitais (set./96: tempo que o trab. de salár.mín. precisa p/ ração ess.:)

Rio de Janeiro: 169 h 51 min

Belo Horizonte: 171 h 57 min

Curitiba: 179 h 51 min

Florianópolis: 179 h 09 min

Porto Alegre: 173 h 30 min

Salvador: 148 h 26 min

Recife: 158 h 26 min

Brasília: 171 h 18 min

Goiânia: 151 h 46 min


Belém: 163 h 58 min

Por outro lado, todos na família estão obrigados a ganhar as suas migalhas para complementar
o salário de um chefe de família: meninos, meninas, mães e até mesmo avôs e avós são
sistematicamente empurrados ao mercado de trabalho. Só assim, em São Paulo, a maioria
consegue alcançar a renda mensal familiar entre 3 e 10 salários mínimos, abaixo ainda do
salário mínimo de 1959. Em algumas outras capitais brasileiras, esta média familiar é muito pior
(Fortaleza, Salvador, Recife etc.). São milhares de pessoas tendo que não apenas sobreviver
do ferro-velho e do lixo monstruoso que a cidade produz, tendo de morar debaixo de viadutos,
praças ou becos, entre ruínas, refugos e ratos, mas também comer restos dos lixões ou das
sobras dos fins de feira popular. Quanto à família em si, ela se estilhaça, pois todos precisam
se colocar enquanto "sujeitos monetarizados", que, se já era motivo da cisão entre o papel
hierárquico de homem e mulher no lar, agora rebaixa e põe os filhos sem os cuidados de
socialização dos pais, ausentes em casa, todos presentes no trabalho ou em seus cômodos
isolados em horários diferentes.

Desta maneira, a sub-remuneração da força de trabalho, típica dos primórdios do capitalismo


europeu, é a forma quase permanente e geral no caso do capitalismo periférico brasileiro.
Como é difícil atingir imediatamente os padrões organizativos de empresas globais, sua
produtividade e seus preços competitivos, pode-se aventar a hipótese de que a forma de
extração de mais-valia absoluta torna-se um modelo de concorrência possível no mercado. O
capital social total, assim, pode pagar o equivalente de um salário e receber a massa de
trabalho de 2 ou mais pessoas de uma família, desde menores obrigadas a trabalhar. Exemplos
clássicos dessa sub-remuneração do trabalho desprotegido e desqualificado em São Paulo
encontra-se nos empregos da construção civil e dos shopping centers, responsáveis por
grande parte dos serviços temporários, importantíssimos para a reprodução e movimento do
mercado urbano. Juntamente com o setor público (em São Paulo há um dos maiores
contingentes de funcionários públicos do mundo), as pequenas empresas comerciais ou de
serviços (padarias, lojas de calçado, escritórios etc.etc.) e os serviços para empregadas
domésticas – tais setores são responsáveis por grande parte dos postos de trabalho da classe
média baixa e pobre de São Paulo. Porém cada vez mais postos na corda bamba.

Por um lado, a indústria e os serviços vêm passando pelos processos de enxugamento de


quadros através da chamada organização pós-fordista do trabalho, principalmente sob a forma
da descentralização da produção via terceirização ou cooperativização forçada. As
privatizações forçadas aumentam o número do desemprego(7). Isto envolve os serviços de
limpeza, segurança, contabilidade, manutenção técnica, montagem, ajustamento de peças e
outros. Assim, no plano vertical então temos uma colonização feita por grandes empresas de
uma massa de trabalho delegado a empresas menores subsidiárias, sub-remuneradas e auto-
exploradoras: forma de se livrar de impostos, contribuições previdenciárias, férias, 13º salário,
sindicalização (que se reduz globalmente na década de 90), greves etc. Essa tendência é
mundial. (ver Antunes 1995 e 1999). Um número expressivo de micro e pequenas empresas,
assim, incorpora ainda certa quantidade de empregados que foram "racionalizados" pelas
grandes empresas. De outro lado, as falências e concordatas chegam ao ponto de criar para os
trabalhadores a saída ilusória da "auto-gestão capitalista", isto é, a administração empresarial
"proletária" com uma super-racionalidade mercantil: tentando concorrer no mercado, se
sujeitam a ela de modo mais selvagem, muitas vezes tendo de superexplorar a si mesmos (via
redução de salários e aumento de horas e ritmos de trabalho), assumindo e renegociando as
dívidas da empresa falida, até arrematando em leilões as próprias máquinas da empresa
penhoradas pelo banco, através de novos e maiores empréstimos. O fetiche do trabalho
produtor de mercadorias, autonomizado nas consciências, "possui" também as formas de
práxis contrapostas ao mercado possíveis.

**

Cidades como São Paulo até os anos 90, mesmo diminuindo seu crescimento relativo, ainda
recebiam cerca de 250/300 mil novos migrantes e/ou moradores anualmente. E como o ritmo
expansivo do capital não tem conseguido mais integrar mão-de-obra (são 2,7 milhões de
desempregados em média na metrópole para uma população de 17 milhões), tais pessoas
estarão todas obrigadas a ir à caça ao dinheiro por conta própria, em plena "selva de pedra".
De fato, é preciso "tirar leite de pedra", como diz o ditado popular, para conseguir alimentar os
filhos. Ruim em São Paulo, pior fora dela. Por isso, se mantém os fluxos para as grandes
cidades nestes últimos 20 anos. Quantidade não desprezível de pessoas já tenta, também, por
isso, a imigração para outros países (Japão, EUA, Europa).

Dentre as formas principais dessa verdadeira caça ao dinheiro acha-se principalmente o


trabalho informal, sem direitos e com remuneração mais ou menos baixa e instável:(8) os
pequenos negócios caseiros (costura e artesanato "para fora", comida congelada,
cabeleireiros, pequenos bares, docerias, papelarias, pizzarias etc.), a venda de serviços
(engraxates, pedreiros etc.) e mercadorias nas ruas, semáforos ou nos transportes (trens,
metrôs), o serviço de moto-boy (os "cachorros-loucos" que com suas motos particulares ficam
sujeitos a acidentes e roubos constantes no trânsito paulistano), serviços de segurança privada
diária, o serviço de transporte coletivo como as "lotações" (uso de uma perua Kombi ou Van
como uma espécie de ônibus clandestino, ou legal, com a ajuda de um adolescente na
cobrança, embarque e desembarque: são 15 mil veículos assim em São Paulo, contra 10 mil
ônibus oficiais), o serviço tradicional de empregada doméstica de famílias de classe média (que
emprega boa porcentagem das mulheres de baixa renda da periferia), o serviço de coleta de
papelão e detritos sólidos recicláveis do lixo (em São Paulo, há um exército de 20 mil
"celebrados" mendigos "ecológicos", ganhando até 130 dólares/mês, trabalhando muito e
vivendo entre o próprio lixo). A rigor, o comércio e os serviços informais sempre existiram nas
cidades desde o fim do século XIX. Porém, hoje é visível que a mobilização do trabalho (no
amplo sentido) neste setor é cada vez maior: alguns dizem que em torno de 30% da população
sobrevivem destes expedientes.

Este processo atinge todas as idades. É que as pessoas correm o risco de nunca mais se
aposentarem, quando se fica velho com 36 anos de idade e não se consegue mais um
emprego... Por outro lado, a reforma da previdência social, p.ex., um fundo arrombado durante
estes últimos 30 anos, aumenta o valor e o tempo mínimo das contribuições (65 anos) e
estabelece tetos máximos de salários a receber (uma massa que ganhará até 7 salários
mínimos/mês). Como fica cada vez mais difícil a contribuição previdenciária num emprego
formal e, levando em conta a perspectiva de vida média do brasileiro (65 anos), muitas pessoas
irão morrer trabalhando... aqui, entretanto, não se trata ainda do extremo da escravidão. Pois
esta ressurge como tal no Brasil de modo literal: entre 1970 e 1990, cerca de 64 mil "escravos
por dívida" (a chamada "peonagem") trabalharam na abertura de fazendas na Amazônia e em
outras partes do Brasil (inclusive o estado de São Paulo).

No outro extremo da caça ao dinheiro temos a contravenção e a criminalidade organizada ou


esporádica. O "jogo do bicho" (espécie de loteria grupal), o tráfico de drogas, os seqüestros, os
assaltos a banco e roubos de automóveis e cargas de caminhões – todos envolvem muitas
pessoas em organizações mafiosas tais como o PCC (Primeiro Comando da Capital, São
Paulo) ou o CV (Comando Vermelho, Rio de Janeiro)(9). Entre os não-organizados estão os
desesperados de ocasião (em São Paulo, chegamos ao ponto de vizinho roubando o vizinho ao
lado), os viciados, os "arrastões", os "trombadinhas" etc. Em São Paulo o índice de mortalidade
por crimes violentos é maior entre os jovens de 15 a 25 anos; a guerra urbana de quadrilhas
quase ultrapassa o número de mortos da guerra na Iugoslávia no mesmo período.

**

O conceito de exército industrial de reserva (Marx) parece se modificar e ganhar aplicação mais
universal do que nunca. Não se trata mais de um exército industrial e nem de reserva
propriamente dito. Claro, sua função de rebaixar salários continua a mesma. Porém, a
expectativa de reencontrar emprego formal na indústria é cada vez menor. Por outro lado, não
se trata de mera exclusão, pois não há ninguém mais na reserva, pois todos já estão mais ou
menos no meio do campo – sim, um verdadeiro campo de batalha – com suas táticas
guerrilheiras de sobrevivência, tentando "se incluir" no mundo das mercadorias. Além disso,
uma parte da classe média, tendendo a "simular competência" através de cursos de formação
universitária duvidosos, é também massa desqualificada, semi-inútil do ponto de vista do
trabalho produtivo social global, vivendo no fio da navalha de suas auto-imagens de academia
de ginástica, dietas perpétuas e operações plásticas. E finalmente, talvez não se trate também
de um "exército", a não ser no sentido negativo e opositivo da palavra: tal como o crime
organizado já mencionado, que arregimenta tal massa de desempregados perpétuos, mas
também movimentos de oposição à propriedade da terra e ao mercado urbano e rural de terras,
tal como o "Movimento Sem-Terra"(MST) e dos "Sem-Teto Urbano". No MST há 4,8 milhões de
pessoas envolvidas nos acampamentos e assentamentos, lutando contra a superconcentração
de terras no Brasil (vide a revista Caros Amigos, nº 6, out./2000). De modo que, pode-se
perceber aqui o exato oposto da tendência secular à urbanização brasileira: no Brasil o
campesinato não só não desapareceu, como foi recriado pelo grande capital (agro-industrial e
frigorífico como força de trabalho não-estritamente capitalista) ou resiste como campesinato
insurgente contra o latifúndio e as péssimas condições de vida do urbano degradado. Os
resultados são ainda, no entanto, contraditórios, pois caminham na linha tênue entre um certo
reformismo, a pequena produção de mercadorias (e sua ética repressiva do trabalho) e a
insurgência do não-idêntico (a produção coletiva, a atenção às necessidades sociais, o cuidado
ecológico, ao qualitativo etc.).

**

Existe vida após o colapso do urbano ? As possibilidades devem existir no exato momento em
que a lógica da reprodução capitalista começa a se esgotar. Mas a cidade reúne as pessoas e
as forças produtivas ainda enquanto separados: neste sentido vivemos de fato aquele
"comunismo das coisas" de que fala Kurz (1996). Contudo, terrenos, galpões, instalações
fabris, técnicas, saberes, etc. que ficam paralisados ou rebaixados a ferro-velho econômico
porque estão abaixo do nível global de produtividade e rentabilidade poderiam ser destinados
ao uso coletivo contra a lógica da concorrência mercantil. Se a teoria crítica pôde surgir
historicamente nas cidades, também poderá surgir daí um movimento de superação que lute
contra o trabalho produtor de mercadorias. Não como locus exclusivo, mas como um sítio de
experiências – e sabe-se que a cidade sempre foi experimentação social por excelência –
ligado a outros lugares no campo e nas cidades, que permitam interconectar horizontalmente
produção e consumo de forma direta e discutida entre todo os habitantes, contra a
racionalidade empresarial de mercado, visando ao atendimento de necessidades sociais. Este
movimento que germina na pólis, entretanto, não deveria querer "fazer política" no sentido
tradicional do termo, e ocupar, no limite, cargos no Estado para administrar a miséria social:
poderia sim dirigir reinvidicações ao Estado, mas visando a uma outra racionalidade da
produção, consumo e organização social. Tal movimento social, por um lado, está longe de ser
fácil, por outro, é o mais urgente: abolir o imenso sofrimento desnecessário provocado pela
reprodução forçada de uma sociedade do trabalho que se tornou totalmente obsoleta (vide
Grupo Krisis, 1999).

(*)
Geógrafo e historiador, paticipantes do grupo de Estudos Krisis do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) do
Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. Este texto foi feito tendo em vista a apresentação geral de alguns
estudos de pós-graduação e discussões informais no Labur, para a reunião "Krisis em Lisboa" de 2 a 9 de junho de 2001.
Agradecemos aqui os comentários do pessoal do grupo de Estudos Krisis.

Notas:

(1)
Até mesmo países da África (Argélia etc.) e América Latina (Chile etc.) têm melhor distribuição de renda.

(2) Médias anuais do salário mínimo no Brasil (em R$ de 1995): 1940 (551), 1980 (348), 1984 (293), 1988 (215), 1990 (164),
1992 (147), 1994 (128), 1995 (113). O salário mínimo brasileiro (1995: US$ 98) comparado a outros países ficava abaixo do
México (127), Paraguai (145), Uruguai (160), Argentina (200), Espanha (590), Estados Unidos (680), Itália (800), França (1000)
ou Dinamarca (1325). No Brasil como um todo, 53% da população ganha menos de 2 salários mínimos). O custo de vida do
cidadão metropolitano é alto. O orçamento familiar é torrado basicamente em custos de habitação (água, luz, aluguel etc.)
(31%), alimentação (25%), transporte (14%) e saúde e cuidados pessoais (12%).

(3) As taxas do desemprego aberto, são dúbias, "encobertas": 8% a 15% da população ativa. À título de exemplo: em 12
meses entre 95/6 a indústria fechou 252.697 postos de trabalho (Folha de SP, 10/set./96).

(4) Contudo, um governo de esquerda não seria ou é necessariamente melhor. As várias famílias mobilizadas pela prefeitura
do Partido dos Trabalhadores em um município da Grande São Paulo em 2001 dão um exemplo: de início forçadas a dar suas
"palavras de ordem" estereotipadas, o povo assistido está lá para contemplar o espetáculo. Ninguém ouve o que eles têm a
dizer... após horas de discursos políticos enjoados, eles vão embora com promessas e as frases clichês do prefeito, que se
resume a dizer que "vai dar um jeito na moradia". Quanto à religião: em 1986, o sólido catolicismo (99%) já vinha sendo
abalado por outraas seitas, que já eram 11% da população.

(5) A média geral do Brasil em rede de esgotos urbanos (IBGE, 1996) alcança apenas 40%. As médias regionais mais baixas
são Norte (9%), Sul (14%) e Nordeste (15%; Salvador 45%) e Centro-Oeste (28%); o Sudeste tem 69%. Quanto à água
encanada e coleta de lixo urbanos, as médias regionais são respectivamente: Norte (69 e 65%), Nordeste (63 e 50%), Centro-
Oeste (70 e 75%), Sul (79 e 79%) e Sudeste (88 e 85%).

(6) Para se ter uma idéia: em Guaianases, bairro de São Paulo, 4.200 famílias estão ameaçadas de despejo (maio/2001) por
uma reintegração de posse e propriedade em trâmite no Judiciário. Tais terras se valorizaram demais por causa das linhas de
trem e metrô que por ali vão chegando. Do mesmo modo, no Itaim Paulista, 420 famílias ocupando a várzea do Rio Tietê em
favelas e cortiços começam a receber a notificação de sua possível retirada.

(7) Um simples exemplo: no setor siderúrgico os cortes chegaram a 30 mil empregos; na Acesita, cerca de 70 % do pessoal!

(8) Entre 1990 e 1996 sumiram cerca de 2,06 milhões de vagas de trabalho formal no Brasil. Pode-se afirmar que o mercado
informal recebeu um total de 11,7 milhões de pessoas ao longo dos anos 90 (Folha de SP, 15/set/96).

(9) Tais organizações têm, no entanto, ligações interinas com a polícia, o exército, pessoas com altos cargos nas burocracias
públicas e até mesmo no Congresso Nacional.

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