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TRAVESTIDAS: A CONSTRUÇÃO DOS CONCEITOS, NOÇÕES E

CORPORALIDADES DAS TRAVESTIS. ¹

Sidney Felipe da Silva Junior. ²

***
Introdução

Gostaria de falar sobre um tema importante nos estudos de gênero, assim como um
tema desafiador para mim. Debati-me em torno de definições precisas, que respondessem
minhas perguntas a respeito das travestis, principalmente sobre o que define uma travesti.
Percebi então que observava o fato pelo viés contrário, pois não devia tentar responder
perguntas especificas, mas questionar ainda mais o tema, que é muito rico. Busco então com o
ensaio discutir então como se dá a construção da travesti, pensando principalmente sobre três
eixos principais: (i) a construção do conceito, (ii) a construção da noção de pessoa e (iii) a
construção da corporalidade. Não pretendo esgotar o tema, mas sim pensar a respeito da
bibliografia já existente, assim como os relatos das entrevistas que colhi no meu trabalho de
campo, pensando como essas definições se repetem, se criam e são levantadas pelos diversos
interlocutores, os meus e os das bibliografias que consulto, buscando formular ainda mais
perguntas a respeito do tema.

O ensaio tem como objetivo a obtenção da nota da disciplina de Gênero e sexualidade


do Mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso, mas esse não
é o único intuito. Busco com o ensaio também me aprofundar na literatura a respeito das
travestis, que será muito útil para o meu trabalho de campo, bem como para a minha
dissertação. Considerações feitas, iniciemos o tema.

A construção do conceito de travesti

A primeira pergunta a ser feita é, assim como o faz Pelúcio (2006) “o que é ser
travesti?” (PELÚCIO, 2006. p. 192). Inúmeras são as formas de responder a esse
questionamento, assim como são variados aqueles que respondem à questão. Para Pelúcio
(2006) por exemplo, as travestis são pessoas que se entendem como homens e que gostam de

1. Ensaio redigido para a obtenção da nota da disciplina de Gênero e Sexualidade, do Mestrado


em Antropologia social, do Programa de Pós-graduação em Antropologia social da
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá – MT.
2. Mestrando em Antropologia social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia social
da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá – MT.
se relacionar sexual e afetivamente com outros homens e para isso buscam inserir nos seus
corpos símbolos do que é feminino na sociedade. Ela ressalta ainda que para as travestis a
vivência com o órgão masculino ocorre sem muitos problemas, não desejando então removê-
lo. Essas noções têm eco em relatos como os de Stéfany, uma cabelereira de 23 anos, que ao
ser questionada por mim a respeito de como ela se considera em relação a esses conceitos,
responde “eu me considero travesti, pois não desejo mais fazer a cirurgia, mas prefiro ser
chamada de trans, porque acho mais fofo”, além de “desisti da cirurgia porque é muita
burocracia e também porque convivo com ele (o pênis) sem problemas”.

Apenas essas definições não esgotam o conceito de travesti. Kulick (2008) argumenta
que além de usarem roupas de mulher, as travestis brasileiras adotam nomes femininos,
roupas femininas, penteados e maquiagem femininos, pronomes de tratamento femininos, uso
em larga escala de hormônios femininos e o significativo uso de silicone, industrial ou
medico, para que possam adquirir aparência física feminina, como ele ressalta “com seios,
quadris largos, coxas grossas, o mais importante, bundas grandes” (KULICK, 2008. p 21).
Apesar de todos esses esforços, segundo o autor, as travestis não pensam em ser mulheres,
elas não são transexuais segundo ele, elas afirmam que são homossexuais, que são homens
que desejam ardentemente outros homens, se modelando e se completando como objeto de
desejo desses homens. Em relação a esse aspecto Bento (2008) afirma que a transexualidade e
a travestilidade são expressões identitárias que divergem das normas de gênero estabelecidas
no dimorfismo, na heterossexualidade e nas idealizações. Segundo ela o que difere a
transexualidade está na explicação dos limites das normas de gênero, uma vez que essas
pessoas reivindicam a passagem do gênero imposto ao nascer para o gênero identificado,
ficando marcado o contraste entre as travestis e as mulheres transexuais.

Essa combinação singular de atributos físicos femininos e a subjetividade


homossexual masculina é o que faz as travestis serem quase únicas no mundo segundo Kulick
(2008). Ele argumenta que embora existam diversas culturas em que os indivíduos de alguma
maneira cruzam as fronteiras de gênero, as travestis parecem ser um dos poucos casos em que
o corpo é alterado de forma irrevogável para que se assemelhe ao do sexo oposto, sem que
essas pessoas busquem a subjetividade própria desse sexo oposto. Miskolci e Pelúcio (2007)
citando o próprio Kulick, afirmam que travesti é uma identidade brasileira, de indivíduos que
partilham de valores morais, éticos e estéticos sobre gênero e sexualidade, característicos de
uma sociedade pós-escravista, onde o binarismo e a dominação masculina são muito
persistentes e arraigados. Kulick (2008) ainda complementa:
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A existência de travestis é registrada em toda a América Latina, mas em nenhum
país elas são tão numerosas e conhecidas como no Brasil, onde alcançam
visibilidade notável, tanto no espaço social quanto no imaginário cultural. Em
qualquer cidade brasileira, pequena ou grande! existem travestis. (KULICK, 2008. p
22)

Kulick (2008) também chama a atenção para como as travestis aparecem nas analises
da sociedade brasileira, mencionadas na maioria das vezes no contexto da inversão. Isso quer
dizer que segundo ele, as travestis inverteriam os papeis feminino e masculino, através de
praticas que inserem atributos femininos na aparência física masculina. O autor argumenta
então que ao invés de inverter um conjunto de ideias, representações e práticas, o que as
travestis fazem é elaborar determinadas configurações de sexo, gênero e sexualidade que
sustentam e dão significado para o que é concebido como homem e mulher no país, ou seja,
em alguma medida as travestis “complementam e aperfeiçoam as mensagens ou os discursos
de gênero presentes na sociedade brasileira” (KULICK, 2008. p 26).
Nesse sentido, Miskolci e Pelúcio (2007) chamam a atenção para o fato de que nesse
sistema de gênero que é construído pelas travestis, é possível notar uma visão essencialista
que elas parecem ter sobre os atributos de gênero. Para os autores as travestis subvertem a
ideia de que comungam, de ser o sexo biológico o definidor do gênero, mas por outro lado,
elas reforçam o próprio binarismo através de um conjunto de preceitos morais que
determinam e demarcam o que é homem e mulher, ou seja, ser ativo/passivo, ter
força/suavidade, seguir a cabeça/coração. Complementam ainda que:
A partir dessa visão, esperam que os “homens de verdade” sejam másculos, ativos,
empreendedores, penetradores. Elas não são “homens de verdade”, são “bichas”,
“viados”, “monas”. Tampouco são mulheres, nem o desejam ser. São “outra coisa”,
uma “coisa” difícil de explicar, porque, tendo nascido “homens”, desejam se parecer
com mulheres, sem de fato ser uma, isto é, ter um útero e reproduzir. (MISKOLCI e
PELÚCIO, 2007. p 263)
As definições levantadas até aqui dão a noção de uma performatividade eminente no “ser uma
travesti”, que está presente nas modificações corporais, assim como no hall de
comportamentos e atitudes sancionados pelos pares sociais, que fazem parte desse “ser uma
travesti”, que serão explorados melhor no próximo tópico.

A construção de pessoa travesti


Em detrimento do que já foi levantado até aqui é possível perceber, assim como afirma
Pelúcio (2006), que ser travesti é muito mais que uma aventura, que alguma efemeridade ou
uma fantasia que se tira ao chegar em casa, para ela, se trata de uma construção longa e
profunda, a construção da pessoa. Em uma nota de rodapé a autora define que o conceito
usado para definir essa noção de pessoa está no sentido maussiano/dumontiano, que “significa

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considerar que a pessoa se constitui a partir de um sistema moral e de valores próprios de cada
sociedade e/ou grupo a que pertence” (PELÚCIO, 2006. p 190). Considero que seja uma
forma bastante interessante para olhar o fenômeno que tratarei aqui. Desta forma, Pelúcio
(2006) chama a atenção para o fato de essa noção de pessoa já citada, ser uma ferramenta boa
para se pensar relações do tipo individuo-sociedade, natureza-cultura, estrutura-agência,
podendo escapar das “armadilhas conceituais” (PELÚCIO, 2006. p 190) que dão maior peso
para um dos termos das díades.
Pelúcio (2006) então passa a considerar o processo de transformação que envolve a
construção da pessoa travesti como uma atualização concreta de algumas concepções
simbólicas do ser humano e do seu lugar no universo, levando em consideração as críticas de
Goldman (1985) em “A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé”,
principalmente quando o autor propõe que é preciso ver a noção de pessoa como um sistema
mais dinâmico, que além de classificar, busca produzir tipos específicos de pessoas no sentido
citado acima. Nesse sentido, Pelúcio (2009) considera que nesse processo de construção da
pessoa travesti existem patamares hierárquicos que devem ser alcançados, conquistando-se
assim outro espaço dentro da rede, salientando ainda que:
A estagnação em um dos patamares intermediários implica desprestígio, manifesto
em locuções desqualificadoras: “viado de peito”; “bichinha sem-vergonha”;
“homem de saia”, entre outros, nos quais a incongruência de gênero se manifesta,
implicando falhas morais. (PELÚCIO, 2009. p 231)

Levando em consideração as noções já citadas, Pelúcio (2006) deixa claro que para as
travestis, a transformação em si só começa com as práticas corporais feminilizantes, como
depilar-se, deixar os cabelos crescerem, vestir-se com roupas de mulher, além de um
investimento em um gestual que é tido como delicado. Além disso há a ingestão de hormônios
femininos, que segundo a autora é uma parte bastante importante do processo. Para Pelúcio
(2009) as mudanças não são só corporais, são em todos os planos, tanto
“interno/psíquico/moral, quanto externo/corporal/físico” (PELÚCIO, 2009. p 323). Há
também, para além das mudanças no corpo e da apreensão das diversas técnicas corporais que
as distanciem dos padrões masculinos, segundo Pelúcio (2006), a busca por comportamentos
socialmente sancionados como femininos. Desta forma a autora afirma que “não se pode
tornar travesti, sem que se entre em uma rede de relações já estabelecida” (PELÚCIO,
2006.p192), pois segundo ela, só assim é que é possível iniciar a construção da pessoa
travesti.
O primeiro passo então para a construção da pessoa travesti, segundo Pelúcio (2006) é
a saída de casa, que acontece geralmente na adolescência, antes dos dezoito anos. Segundo a
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autora é na rua que elas conhecem as primeiras referencias do que desejam ser. Elas podem
sair fugindo ou serem expulsas ainda na infância, segundo Pelúcio (2009), principalmente por
conta da incongruência que exibem com os comportamentos esperados para um menino. A
autora ainda argumenta que essa suspeita familiar se volta para a sexualidade, que erotiza esse
desejo de “ser/parecer feminino do garoto” (PELÚCIO, 2009. P 233). Entretanto, ela
demonstra que a saída de casa possibilita intervenções corporais mais duradouras, onde a
travesti poderá começar com as práticas corporais feminilizantes epidérmicas e poderá seguir
até que ela tenha um corpo que possa ser considerado de mulher, independentemente da
existência do pênis. Ela argumenta ainda que a materialização desse feminino tem na rua e na
prostituição o seu primeiro lugar de referências e possibilidades. Ela ainda aponta que:
No corpo “de homem” vão sendo inscritas “coisas de mulher”, a partir de uma
cuidadosa observação do feminino: bocas, olhares, movimento das mãos, jogo de
cabelos, caminhadas sobre saltos. Qual seio, qual quadril, que coxas, qual rosto? As
referências são buscadas naquelas mulheres que são reverenciadas pela mídia, que
simbolizam o hiperfeminino, porque são divas do cinema. (PELÚCIO, 2009. P
233)
A rua também se torna um ponto intenso de trocas de informações entre travestis e observação
mutua, segundo Pelúcio (2009). A autora afirma que a travesti novata aprenderá na rua os
valores corporais, porém, alguns segredos e truques só lhe serão revelados se ela arrumar uma
“mãe”. A permanência dessa travesti na rua, mesmo que não esteja se prostituindo, fará com
que ela aprenda o negócio do sexo, além de lhe prover um aprendizado muito importante
sobre os valores estéticos que orientam a construção do feminino.
Essa construção da pessoa travesti, permeada pelas modificações corporais,
comportamentais e sociais trazem novamente a ideia de uma performatividade da pessoa
travesti, que fora citada no tópico anterior. Esse conceito, que como destacam Miskolci e
Pelúcio (2007), não tem relação com os atos teatrais, nem com representações de papeis, mas
sim com discursos que constroem sujeitos dentro de relações de poder, é um conceito
desenvolvido na teoria da filósofa Judith Butler para dar conta exatamente desses discursos e
relações de poder que permeiam o gênero. Para Butler (2000), a performatividade deve ser
compreendida como a pratica reiterativa e situacional na qual o discurso produz os efeitos que
ele nomeia. Ela ainda complementa dizendo que as normas regulatórias do sexo trabalham de
forma performativa para constituir a materialidade dos corpos, materializando assim o sexo do
corpo, assim como a diferença sexual, que está a serviço da consolidação de um imperativo
heterossexual. Isso significa dizer que a performatividade travesti, segundo Miskolci e Pelúcio
(2007) deve ser pensada como a reiteração e a materialização de discursos patologizantes e

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criminalizantes que fazem com que o senso comum as veja como uma forma extremada da
homossexualidade, de um gênero “desordenado” e uma sexualidade perigosamente marginal.
Historicamente a constituição da pessoa travesti só foi possível “depois que um
discurso minucioso sobre a sexualidade passou a ser articulado, e que tecnologias protéticas e
químicas passaram a ser cada vez mais popularizadas” (PELÚCIO, 2009. p 237). Isso não
quer dizer que antes disso não houvesse pessoas do sexo masculino que desejassem viver
vidas femininas, como afirma a autora, porém, eles eram tidos como “os pederastas”, “as
bichas” e “as bonecas”. A autora ainda afirma que o próprio termo travesti não era usado da
forma como é usado hoje ate recentemente, mesmo que ele seja datado do inicio do século
passado. A materialidade de todos esses conceitos e noções será melhor visualizada no
próximo tópico, que dissertará sobre a construção do corpo da pessoa travesti.

A construção da corporalidade travesti


Em relação a construção corporal das travestis, há muito a ser falado. Para Benedetti
(2005), é no corpo que elas localizam os principais símbolos do masculino e do feminino e
investem muito conhecimento, tempo e dinheiro para que possam “ostentar, sentir e exibir um
corpo diferente, um corpo novo” (BENEDETTI, 2005. p 51). O autor ressalta que as
alterações corporais são muitas e muito diversas, por isso seguiremos a sequencia que ele
propõe, das mudanças externas para as internas, das temporárias para as permanentes. Nesse
sentido, segundo ele as primeiras modificações então no rosto e nas mãos, provavelmente por
serem processos mais fáceis e menos invasivos. As unhas são sempre compridas e
pontiagudas, com esmaltes coloridos, com vários tons e vermelho ou as cores da moda.
Em relação ao rosto, Benedetti (2005) traz a maquiagem como o principal
investimento. Segundo ele, ela começa a ser utilizada já desde “a bichinha ou a bicha-boy”
(BENEDETTI, 2005. p 56), que aos poucos vai ganhando intimidade e conhecimento com o
processo de transformação. Nesse sentindo ele argumenta que a maquiagem tem um papel
muito importante na construção corporal da travesti, a medida que ela é uma pratica
historicamente ligada ao feminino, além do fato de ter o poder de ressaltar ou esconder
determinados traços do rosto, principalmente os pelos da barba. Nesse sentido ele destaca o
uso da base e o pó, pois eles garantem uma pele com aparência macia e suave, que é um traço
importante para a fabricação do feminino, assim como escondem os vestígios da barba. O
batom também é muito importante e ligado ao feminino, principalmente se for vermelho, pois
a boca vermelha é ligada a sensualidade/sexualidade, segundo o autor. Por fim os olhos
possuem uma importância significativa, não só pelo uso de cosméticos, mas também porque
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“há um investimento em transformar a expressão do olhar, tornando-o menos objetivo, mais
confuso e perdido, mais delicado, quase inocente e indefeso” (BENEDETTI, 2005. p 58),
traços ligados ao feminino também. Ele ressalta ainda que a maquiagem possui essa função
importante na construção da corporalidade e do gênero da travesti, porém, se constitui
também como um dispêndio mensal significativo para elas.
Em relação aos pelos e o cabelo, Benedetti (2005) afirma que as características
corporais são muito importantes para as travestis, em relação ao esquema de diferenciação de
gênero. Os pelos, principalmente a barba, é um dos signos ligados ao masculino. Ele destaca
então que as travestis lutam cotidianamente contra os pelos do corpo, principalmente a barba,
pois o rosto é a apresentação da pessoa, é o lugar, segundo as entrevistadas dele, onde deve
estar o maior número de atributos femininos. Nesse sentido, Pelúcio (2009) afirma que o
gênero parece incidir sobre a cabeça, que se associa também a ideia de alma, assim como a
percepção anatômica e moral. Desta forma, Benedetti (2005) destaca a pinça como um
instrumento básico de qualquer travesti. Segundo ele, ela desempenha duas funções, acabar
com a barba e modelar a sobrancelha. A barba ou o “chuchu” (BENEDETTI, 2005. p 59) é
arrancada fio a fio, processo que é realizado diariamente, muitas vezes nos horários de folga.
Há também a depilação com barbeador comum, com cera e através de eletrólise. Outro aliado
na luta contra os pelos, segundo o autor são os hormônios, pois o uso deles diminui a
quantidade e a espessura dos pelos.
Existem também padrões para os cabelos, pois, segundo Benedetti (2005), eles devem
ser longos, bem cuidados e com cortes femininos. Para o autor, poucas travestis usam perucas,
chamadas de “picumã”, a maior parte usando como recurso de produção de um visual
diferente. Se ela é usada como recurso para alongar o cabelo, denotando assim quem tem
cabelo curto, se torna motivo de ridicularização, sendo a travesti comparada a bicha-boy.
Segundo Benedetti (2005), os cabelos podem variar enquanto a cor, textura, volume e forma,
porém, devem ser sempre compridos, fato que faz com que algumas travestis apliquem
mechas longas de cabelo por meio de técnicas como o “interlace” (BENEDETTI, 2005. p 63).
Assim como os cabelos, outra característica de acusação da condição biológica da travesti é a
voz. Segundo o autor, a voz é que denuncia a travesti e prejudica sua performance. Segundo
ele, para que a fala mude, força-se diariamente a voz, para que as palavras e os fonemas sejam
pronunciados num tom mais agudo, como um falsete. Com o habito, essa conformação da voz
se impõe e acaba sendo utilizada no dia a dia.

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Benedetti (2005) aborda também a questão das marcas corporais, como as marcas de
violência, automutilação e tatuagens. Ele argumenta que as marcas de mutilação e de
automutilação geralmente então presentes nas travestis mais velhas, que viveram em outras
épocas. Em relação as cicatrizes, o autor afirma que em geral elas estão nos braços, orelhas e
rosto. As cicatrizes no rosto em geral, segundo ele, são fruto de brigas com outras travestis,
com clientes ou outras situações. Essas cicatrizes são consideradas como fardos, pois “esse
tipo de mutilação destrói o rosto, que é a própria apresentação da travesti” (BENEDETTI,
2005. p 64). As praticas de automutilação segundo o autor, em geral são realizadas nas
prisões, como um recurso para que sejam removidas do presidio para o hospital, ou para que
sejam liberadas, sob o risco da pratica acabar em óbito. Outra marca importante são as
tatuagens, que são exibidas de varias formas, cores e tamanhos. Para o autor, a tatuagem tem
um valor simbólico alto no mercado de bens sexuais, pois ela está investida de um poder de
sedução não ordinário, de outra ordem ou diferente. Para ele, as tatuagens são marcas
explicitamente sexy ou um artigo de sedução, pois, algumas ficam em lugares sugestivos, que
são investidos de grande valor sexual.
Há também a questão das roupas, pois, segundo Benedetti (2005), essa é uma das
primeiras atitudes das travestis em relação a construção do feminino. Para o autor as roupas se
constituem como uma eficiente forma de comunicação, pois a combinação das peças, cores,
tecidos e cortes transmitem símbolos que informam especificidades daquela pessoa, situação,
sexo, gênero, posição social, etc., ou seja, são como uma linguagem. Desta forma, a
“montagem”, que é o termo utilizado para o ato de vestir-se de mulher, é segundo o autor, um
processo de manipulação e construção de uma apresentação que seja convincente de sua
qualidade feminina., sendo um dos mais importantes processo de construção da travesti.
Tendo isso mente, o autor afirma que o guarda roupas de uma travesti tem pelo menos três
tipos de roupas, as roupas de “boy”, que segundo ele são roupas de ficar em casa, ou situações
corriqueiras, onde o corpo da travesti deve ficar disfarçado; as roupas de batalha, que são as
roupas usadas para o trabalho na prostituição, geralmente roupas com cortes rentes e justos,
bem decotados e com sapatos altos, além das calcinhas, que devem ser pequenas e serem
exibidas sob a roupa; e as roupas de festa, em geral vestidos longos, investidos de status, para
que elas participem dos concursos de beleza.
Outro fator importante na construção da corporalidade travesti, se não o mais
importante é a utilização de hormônios femininos. Os hormônios possuem essa posição de
destaque, pois segundo Benedetti (2005), eles possibilitam as mudanças mais visíveis e

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definitivas, como o desenvolvimento dos seios, o arredondamento da silhueta e a diminuição
dos pelos corporais. Iniciar o tratamento hormonal, segundo o autor, é identificar-se com a
decisão de incorporar a identidade travesti. Não existe um modelo único do uso dos
hormônios, pois para o autor, o tratamento pode seguir diversas prescrições, dependendo dos
conselhos das amigas mais experientes, além da observação dos efeitos desejados e
indesejados no corpo. Assim é possível perceber como o grupo social das travestis é
importante para a travesti novata, como citado no tópico anterior.
Existem vários efeitos do uso do tratamento hormonal pelas travestis, como assinala
Benedeti (2005). Para o autor, além dos já citados anteriormente, os hormônios ainda podem
arredondar a forma dos joelhos, pernas, quadril e braços, podem fazer uma redistribuição
uniforme da gordura corporal, além da possibilidade de que haja diminuição no tamanho do
pênis e dos testículos. Porém, Benedetti (2005), afirma que os efeitos não são apenas
fisiológicos, segundo suas informantes. Elas acreditam que os hormônios operam
modificações no jeito de ser, de andar, de falar, de pensar e de sentir das travestis, sendo
concebido como “um veiculo do feminino, como se o medicamento suprisse o corpo de algo
que lhe estava faltando, como se tivesse corrigido um erro da natureza” (BENEDETTI, 2005
p 77). Desta forma, para o autor, é através do tratamento hormonal que se integra e se
exteriorizam as dimensões física e moral no universo das travestis, pois é com eles que se
adquire as novas formas do corpo, assim como as novas particularidades morais, presentes no
comportamento feminino na sociedade.
Por fim, existem também as intervenções em nível cirúrgico, como o uso de silicone e
as cirurgias plásticas. Para Benedetti (2005) o uso do silicone é um caminho imperativo, não
tem volta. Segundo o autor ele é mais utilizado por quem já faz uso do tratamento hormonal,
para aprimorar as formas. O autor relata também que o silicone pode ser injetado em
praticamente todas as partes do corpo e é muito valorizado, pois tem efeito imediato. Esse
silicone geralmente é aplicado de forma caseira, geralmente por uma travesti mais velha que
recebe o nome de “bombadeira”, pois ela bombeia o silicone líquido para dentro dos corpos.
Ainda segundo o autor, os produtos e praticas usados não possuem qualquer tipo de controle
técnico e sanitário. As sessões de aplicação levam diversas horas, a dor é um elemento
constante, pois tudo é feito sem anestesia, e após o procedimento feito, a travesti deve ficar de
repouso por cerca de uma semana, para que o silicone fique firme no corpo, além de ser
indicado a ela o uso de antibióticos para evitar infecções. Há também as próteses de silicone

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para os seios, segundo o autor, porém elas são muito caras, o que faz do uso do silicone
liquido uma alternativa mais barata e imediata.
As cirurgias plásticas por sua vez, segundo Benedetti (2005), são outro recurso para a
construção dessa corporalidade, assim como as cirurgias corretivas. Em relação ás cirurgias
plásticas, a mais comum é a mudança no perfil do nariz, ou “fazer o nariz” assim como as
informantes de Benedetti (2005) classificavam. Outro modelo, segundo o autor são as
cirurgias corretivas, usadas para corrigir cicatrizes, aumentar o lábio ou modificar a forma dos
olhos. Porém, todas essas intervenções estão muito mais no plano das possibilidades do que
da efetividade, segundo o autor, pois elas envolvem altos custos financeiros, dos quais
segundo ele, as travestis não dispõem. Assim, é possível perceber como a construção de uma
corporalidade travesti passa por diversos níveis, momentos e decisões.

Considerações finais
Todas essas construções abrangidas até aqui são importantes fontes de informação a
respeito da pessoa travesti. Pude perceber o quão importante são os grupos sociais com os
quais ela se relaciona, que lhe ensinarão de fato como é ser uma travesti, como investir
recursos e tempo moldando uma feminilidade, conquistada no dia a dia. O grupo é também
quem lhe conferirá o status de travesti, mas só após ela passar pelos crivos da dor, das
modificações e da performatividade. Como havia proposto ao início, todo o desenvolvimento
até aqui foi feito para que houvessem novas perguntas a respeito do tema. As que me
interpelam no momento que escrevo são: A travestilidade se resumiria então numa busca por
uma feminilidade que não pode atingir um nível grande demais, sob o risco de se tornarem
transexuais? A travestis seriam então uma categoria de gênero que subverte o binarismo
homem/mulher, podendo ser um terceiro gênero? Seriam as mulheres que vivem em busca de
uma vivencia masculina, porém sem o desejo de se tornarem homens, travestis também? A
rua e prostituição são espaço importantes para a construção da pessoa travesti, mas é possível
que elas sejam construídas da mesma forma fora da rua, da prostituição, no mercado formal
de trabalho por exemplo? Esses e outros questionamentos que forem surgindo serão
respondidos em outro momento, mas creio que o desenvolvido até aqui tenha dado conta da
proposta inicial.

Referências bibliográficas

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BENEDETTI, Marcos Renato, “Entre curvas e sinuosidades: a fabricação do feminino no
corpo das travestis. In: BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das
travestis. Editora Garamond, 2005.

BENTO, Berenice. “Transexualidades e as armadilhas dos gêneros” In: BENTO, Berenice.


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BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In.: LOURO,
Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, 2000.

GOLDMAN, Marcio. A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé. Religião e


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KULICK, Don. “Introdução”. In: KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e
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MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. Fora do sujeito e fora do lugar: reflexões sobre
performatividade a partir de uma etnografia entre travestis. Revista Gênero, v. 7, n. 2, 2007.

PELÚCIO, Larissa. “O Gênero na Carne: a Construção da Pessoa Travesti” In: Abjeção e


desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. FAPESP, 2009.

_________. O gênero na carne: sexualidade, corporalidade e pessoa: uma etnografia entre


travestis paulistas. Política e Cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e
sexualidade. Blumenau: Editora Nova Letra, p. 189-216, 2006.

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