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PALIMPSESTOS URBANOS

CONTEMPORÂNEOS:
REUTILIZAÇÃO DA FÁBRICA DE TECIDOS BANGU

Arq. Aldemar Norek


PROARQ/FAU/UFRJ, Brasil

1
INTRODUÇÃO

A análise de qualquer caso de reutilização de um monumento arquitetônico de caráter


histórico requer um posicionamento crítico que, a par de promover um olhar minucioso
sobre o quadro em que se situa o objeto de estudo, deve refletir sobre os discursos que
justificam e embasam –declaradamente ou não– a implantação do novo uso2. Para tal, é
necessário apreciar em perspectiva, e com o mesmo nível de interesse, os atos, juízos e
intenções que acabaram por determinar a decisão de dar-se novo destino a um patrimônio
cultural edificado com o fim de preservação daquele monumento ou sítio histórico. Isso quer
dizer que, em conjunto com as considerações no âmbito específico da preservação, restauro
e conservação, devem entrar na pauta outras formas de reflexão sobre a cena em que tal
objeto se insere, adicionando à palavra “cena” a maior amplitude semântica possível.
A reutilização das edificações que constituem a Fábrica Bangu (CPIB - Companhia
Progresso Industrial do Brasil), inaugurada em 1893, nos remete a considerações sobre
cidade e memória, na avaliação da autenticidade do que foi efetivamente legado para o
presente e para as futuras gerações, na elaboração contínua da identidade daquele bairro e
da cidade do Rio de Janeiro.

1
Este artigo foi elaborado a partir da reflexão sobre o conteúdo de disciplina ministrada pela Prof. Rosina Trevisan no
curso de mestrado do PROARQ-UFRJ, ‘Teoria do restauro e preservação de bens culturais’.
2
“Para eliminar a cisão entre o presente e o passado, necessária se torna a consideração histórica do resultado
arquitetônico ao qual chegamos hoje. Desenvolvimento histórico não significa conciliação, e sim exame crítico profundo”.
Bardi, 1957, p. 41.
Conceitos em torno da Reutilização da Fábrica Bangu
Dentro dos conceitos fixados pelos textos clássicos3 e pelas cartas patrimoniais, são dois os
aspectos mais relevantes a serem perquiridos no que concerne à preservação de
monumentos arquitetônicos: “valor” e “autenticidade”.
O estabelecimento dos limites da intervenção patrimonial, segundo Riegl (1999), deve
ser conseqüência da identificação dos valores que lhe são determinantes, e o que está em
jogo neste particular é a questão da identidade coletiva, vinculada a valores históricos e
estéticos constitutivos dos grupos sociais. O sociólogo Maurice Halbwachs4 ressaltou a
íntima relação entre memória e espaço: “A memória coletiva se apóia em imagens espaciais
e não existe memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial”. A interseção
deste olhar com o pensamento patrimonial nos leva a indagar de que forma são adicionados
sentidos ao espaço, e neste caminho só o rebatimento para o tema da memória e sua
pregnância na construção da identidade dos lugares pode nos servir de chave. No entanto, o
que se manifesta nos últimos anos é um progressivo esgarçamento da memória coletiva,
fenômeno de implicações políticas e sociais relevantes e que tem sua contraparte urbana
revelada, entre outros sintomas, pela anomia que caracteriza a recepção, pelos cidadãos,
das ações dos gestores públicos e empreendedores privados, tendo a cidade perdido seu
atributo de ‘res publica’, tornando-se um supermercado em cujas gôndolas descansam
parcelas de solo urbano (edificado ou não) a ser comercializado, depreciado ou valorizado
conforme os interesses dominantes em dado momento5. Neste cenário se incluem aqueles
monumentos que representam a história e o sentido dos lugares, os quais a população,
pouco conhece. Em tal roteiro, ainda que superficialmente pareça contraditório, surge a
teatralização exuberante, excessiva e duvidosa do patrimônio – o passado convertido em
espetáculo de si mesmo, desvinculando-se daquele “valor rememorativo intencionado” de
que nos fala Riegl6, numa anti-reflexividade que não representa, antes anula, as narrativas
fundadoras da estrutura simbólica da sociedade – talvez porque seus verdadeiros objetivos,
em geral escamoteados, estejam ligados a marketing político e interesses comerciais, que
perceberam no espírito patrimonial uma poderosa reserva de prestígio. Se, como observou
Rezende7, “a cidade torna-se [...] um potencial de consumo exatamente como qualquer
outro produto, consumo que se realiza segundo as possibilidades de renda de seus
habitantes”, convertendo-se em mercadoria, o patrimônio cultural edificado revela-se
‘mercadoria refinada’ num tempo em que a cultura é o principal mecanismo de difusão da
ideologia.
A questão da autenticidade é abordada na Carta de Nara (1994) sob um prisma técnico,
porém a abordagem que nos interessa destacar diz respeito à sua interpretação como um
valor de conservação da essência da cultura, como é mencionado na Carta de Veneza (1964),
e sedimentado pela Carta de Brasília (1995), que nos diz que “a autenticidade dos valores se
manifesta, se alicerça e se mantém na veracidade dos patrimônios que recebemos e que

3
“Por que as aparências enganadoras estéticas do valor de antiguidade? Por que esse extraordinário e crescente fervor
em torno dos monumentos antigos? [...] Riegl parece antecipar, na mesma escala societal, mas em seu campo memorial
específico, as análises de ‘O mal-estar na civilização’, o pequeno livro escrito por seu conterrâneo vienense Sigmund
Freud. Riegl com certeza não foi entendido assim na época, nem mais tarde, aliás. Mas, como se verá adiante, é a partir
das pistas sintomáticas abertas por ele no ‘Moderne Denkmalkultus’ que se pode pensar atualmente em patrimônio
histórico.” Choay, 2006, p. 170-1.
4
Maurice Halbwachs 2009, p. 163
5
“No modo de produção capitalista [...] a cidade surge como local de reprodução dos meios de produção, local de
reprodução da força de trabalho e fator de acumulação de capital”. Rezende, 1982, p. 20.
6
Riegl 1999, p. 23-8
7
Rezende 1982, p. 20
transmitimos à posteridade”8. E como atenta Ribeiro, a partir de 1979 a conceituação de
monumentos é ampliada, passando a serem consideradas as obras arquitetônicas que sejam
um único ou pelo menos excepcional testemunho de uma tradição cultural [...],
especialmente quando este se tornou vulnerável pelo impacto de seu entorno9.
Se, como enfatiza a Carta de Brasília, “a autenticidade dos valores se manifesta, se
alicerça e se mantém na veracidade dos patrimônios que recebemos e que transmitimos à
posteridade”10, a Fábrica Bangu parece ter sido legada ao futuro esvaziada de seu significado
na história da cidade. A indiferença no tratamento dado ao arcabouço da Fábrica, buscando
apenas os aspectos “decorativos” do estilo manchesteriano na preservação das fachadas,
além da desistoricização do conjunto, enquadrariam o shopping center como portador de
um “valor de contemporaneidade instrumental”, aquele que não considera o monumento
enquanto tal, mas como obra do presente destinada a satisfazer apenas necessidades de um
programa: a motivação por trás de tal procedimento não é mais aquela que Riegl postulou, a
demanda de vultosas somas de capital para demolir e reedificar algo mais adequado a novas
realidades – a realidade mudou substancialmente. Hoje, os procedimentos de restauro e as
limitações por eles impostas aos novos usos são maiores impeditivos do que aquele
dispêndio de grandes somas.
O que estava em jogo na decisão estratégica de implantar ali o shopping center não foi
o aspecto econômico. Provavelmente, tal consideração não levaria hoje à reutilização da
estrutura da Fábrica, mas à sua demolição11. A re-funcionalização por certo trouxe
problemas técnicos e custos adicionais aos empreendedores, que devem ter conseguido
driblar os revezes por meio de instâncias junto a órgãos patrimoniais, obtendo permissão
para a demolição de seus interiores e “montagem” de nova edificação sob a “pele
preservada”. Nesta operação, os valores de uso e trabalho ali presentes foram devastados
pela implantação asséptica do atual programa, que tem como uma de suas principais
características a não-relação do usuário com o lugar. O conceito de lugar, à luz da
antropologia, remete a um espaço específico, singular, que reflete (pela ‘construção’
incessante do sentido) e influencia a vida de seus habitantes. O não-lugar seria o seu oposto
diametral: entrar em um shopping center no Rio de Janeiro, Bombaim, Buenos Aires, Londres
ou Nova York significa defrontar-se com as mesmas marcas, organizadas segundo a mesma
lógica em vitrines similares, e segundo os mesmos preceitos de publicidade, arquitetura,
iluminação, etc. Ao ingressar nestes espaços, uma pessoa sai da urbe para uma cápsula a-
temporal, a-histórica, não localizada, que se articula com todas as outras de mesma natureza
através dos valores que a conformam: deixa-se assim de ser ‘cidadão local’ e passa-se a
‘consumidor global’ - situação seleta, reservada a quem freqüenta a esfera do consumo de
cada país, os que têm acesso ao mercado globalizado. É para esta inespecificidade do espaço
que aponta o atual uso da Fábrica Bangu: o que lhe restou ganha ares de palimpsesto.
Segundo Harvey12, o “pós-modernismo cultiva [...] um conceito do tecido urbano como algo
necessariamente fragmentado, um ‘palimpsesto’ de formas passadas superpostas umas às
outras e uma ‘colagem’ de usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros”.
A formação do palimpsesto se torna clara na medida em que a historicidade que habita
os restos da Fábrica (suas paredes perimetrais) vai se despregando da superfície, pois os

8
In: CURY, 2000, p.324
9
RIBEIRO, 2005, p. 4
10
In: CURY, 2000, p.324
11
O que estaria fora de questão, sendo o complexo da Fábrica Bangu um bem tombado pelo IPHAN, de acordo com a Lei
3.086, de 02 de Agosto de 2000.
12
Harvey 1992, p.69
valores que embasavam a imagem desta edificação industrial se dissolveram com a
devastação de seu interior. Talvez aqui se deva pôr em relevo a própria noção de história
que embasou o projeto de reutilização: foi esquecida a documentação do trabalho humano
sedimentado ali por décadas, das relações estabelecidas no território que era a principal
referência da população local, cuja vida era integralmente vinculada ao cotidiano da CPIB.
Tal intervenção anulou qualquer leitura individualizada da história pelos moradores de
Bangu, pelos antigos trabalhadores da indústria e seus descendentes – assim, uma
interpretação da história não é potencializada e os cidadãos não podem se ‘apropriar’ do
complexo fabril, exatamente por não se apropriarem de suas histórias pessoais e coletivas,
cujos eixos atravessam metaforicamente o monumento.
As informações históricas legítimas de que a Fábrica era portadora sofreram um
‘apagamento’ com a sobreposição do novo programa (uma ‘estrato’ que soterrou o
anterior): este aporte é, por si, uma interpretação da história, um olhar a partir de um ponto
específico - o passado fabril nada tem de importante a ser preservado para os protagonistas
deste drama, que não promoveram o aprofundamento da discussão sobre a complexa
operação. Consonante a isto, a imagem da Fábrica aponta uma história finda através de suas
fachadas, que nos traduzem a impressão de imobilidade quando envolvem, como uma pele
enrijecida, o indiferente shopping center. No lugar das antigas paredes avermelhadas, que se
erguem como simulacros13, poderia estar qualquer elemento: o passado surge congelado,
determinado, pronto para ser repetido no presente e no futuro de modo superficial -
imagem incapaz de suscitar nos usuários leituras pessoais sobre a história local e, no limite,
sobre si mesmos. Como nos diz Harvey:
A imagem, a aparência, o espetáculo podem ser experimentados com uma intensidade
(júbilo ou terror) possibilitada apenas pela sua apreciação como presentes puros e não
relacionados no tempo. Por isso, o que importa ‘se o mundo perde assim,
momentaneamente, sua profundidade e ameaça tornar-se uma pele lisa, uma ilusão
estereoscópica, uma sucessão de imagens fílmicas sem densidade?’. O caráter imediato dos
eventos, o sensacionalismo do espetáculo (político, científico, militar, bem como de
diversão) se tornam a matéria de que a consciência é forjada14.
Não há estímulos que emanem do edifício, participação na história da cidade ou
apreensão crítica, não nasce a possibilidade de modificar percursos presentes e futuros:
estes são ‘fornecidos’, em última instância, pela administração do conjunto comercial.
Conforme observa Jameson15, estamos “condenados a procurar a História através das nossas
próprias imagens e simulacros pop dessa história, história que permanece sempre fora do
alcance”, e no caso de Bangu a chave para o encontro da História foi dissolvida na operação
de implantação do novo uso.

O papel do Capital e o sentido que emerge da forma:


Monumento e Cidade
A agenda do capitalismo global e seus conseqüentes alinhamentos político-econômicos há
décadas vêm produzindo mudanças não só na lógica da produção –a exemplo da
pulverização das atividades de acordo com a lógica da mercadoria– como também no

13
“Por simulacro designa-se um estado de réplica tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é
quase impossível de ser percebida.” Harvey, 1992, p. 261.
14
HARVEY, 1992, p. 57
15
Jameson 1996, p. 118
processo de configuração e atribuição de sentido aos lugares. À época da implantação da
Fábrica Bangu (1889 a 1920), a Cidade do Rio de Janeiro passava por acentuadas
transformações de imagem, buscando se converter em cartão postal de uma modernidade
que pretendia domesticar as profundas contradições do processo de urbanização nada
pacífico no qual a nova representação de cidade soterraria, com uma nova “camada”, a
cidade colonial que agonizava.16
Sob a mesma lógica, mas cumprindo outra função17 no sistema urbano, Bangu surgiria
como distrito fabril, não sem permitir, dentro das características de miscigenação que nos
são próprias, a permanência de estruturas da Fazenda Bangu18 na organização do cotidiano
dos trabalhadores, mesclado às “novas” formas de estruturação do espaço, de vida urbana e
de cultura que os ingleses traziam junto com vigas e pilares, máquinas, projetos, tecnologia,
etc.
Com o crescimento do bairro e sua integração mais efetiva ao tecido da cidade, Bangu
chegou a um abandono quase completo pelo poder público, junto à decadência da fábrica -
os muros desgastados pelo tempo denotavam a crise da indústria têxtil em todos os países
do Ocidente, suplantados pelos emergentes asiáticos e seus custos de produção, matéria-
prima e mão-de-obra sensivelmente menores19. Em 1991, a prefeitura realizou obras de
revitalização urbana20, criando o “Calçadão21 de Bangu”. Mas esta iniciativa não era
suficiente – a fábrica e seu imenso quarteirão aparentavam um corpo estranho, como se
uma cidade medieval murada e inacessível, insistisse em durar na realidade que se movia
inexoravelmente noutra direção, quando a ação do capital sobre o território se sofisticava
ainda mais.
Disso resulta a dupla submissão territorial contemporânea. Parte significativa dos
investimentos produtivos úteis a essa lógica é atribuída aos governos locais, que acabam
estimulando a destinação dos fundos públicos à capacitação do território, com vistas à
oferta de vantagens ao capital22.
Como já se dera em escala global, a nível local ocorreu um uso instrumental do
território, que se materializou na revitalização das áreas de dispersão ao redor do núcleo
metropolitano: a migração dos investimentos aconteceu em paralelo ao esgotamento de
áreas mais valorizadas da cidade, onde minguava a oferta de terrenos. A partir da
inauguração do Shopping Bangu e da maior presença do Estado, acentuou-se a valorização
dos terrenos, sem ocorrerem, no entanto, investimentos em saúde, educação e transporte:
o aparente “renascimento” é produzido na esteira do novo conformismo ocidental, sem
discussão pela cidade sobre sua adequação. Tal processo abriu espaço à desaparição dos

16
“Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, podemos dizer que o Rio de Janeiro é uma cidade construída sobre
outra que se chamava Rio de Janeiro, edificada, também, sobre a mais antiga do mesmo nome de Rio de Janeiro. Uma
cidade americana está sendo erigida sobre os escombros da cidade francesa que Passos construíra, derrubando a
primitiva portuguesa.” Nava, 2000, p. 275.
17
“Descreverei a situação para depois procurar interpretá-la. No centro está um aparelho [...]. O aparelho funciona. Não
pretendo aprofundar-me no conceito de função [...] Direi apenas que funcionar é um processo no qual variam os valores
das entidades empenhadas no funcionamento. [...] O funcionário avança e progride. Esse seu progresso varia em função
do aparelho, e, na medida em que avança, aumenta o seu valor no conjunto do funcionamento.” Flusser, 2002, p. 84 e 86
(grifo nosso).
18
“O local escolhido para instalação [da fábrica] foi o mesmo onde se localizava a Fazenda Bangu, que utilizou largamente
mão de obra escrava, responsável pela lavoura de cana-de-açúcar, pela produção do engenho e pelo transporte de
produtos até o Porto de Guaratiba.” Garcia, 2006, p.28.
19
“[...] a maré de exportações do oriente asiático para a Europa ocidental quase arruinou a indústria de mineração e a
construção de navios, a indústria têxtil e a de calçados.” Kurz, 1993.
20
Não está no escopo desta introdução discutir as motivações e a metodologia do citado projeto, mas elas formam o
painel de fatores que levaram à transformação de uso da fábrica alguns anos depois.
21
Denominação popular para ruas destinadas a pedestres, em geral com grande atividade comercial.
22
OLIVEIRA, 2008
marcos complementares da história local, como a vila operária, demolida num único fim de
semana, quando seu processo de tombamento pelo INEPAC - Instituto Estadual do
Patrimônio Cultural encontrava-se em andamento.

Reutilização. Como?
Se, no advento da Revolução Industrial, a visão sobre o que constituía um monumento
histórico era perpassada pelo contraste entre o mundo em acelerado processo de mudança
e a valoração de determinado passado23, o atual momento operou uma rotação a partir do
eixo que articula o contemporâneo e o antigo: esta articulação perdeu sua definição na
medida em que o próprio sentido do que é antigo tornou-se rarefeita hoje. A memória em
processo de fragmentação afeta a leitura dos signos urbanos como âncoras de sentido: a
fragmentação sofrida hoje pelo tecido urbano parece espelhar outra, aquela que perpassa o
tecido social, quando apenas especialistas se ocupam da discussão em torno do papel destes
monumentos no contexto da cidade.
Sob este contexto, a questão dos valores torna-se fundamental na abordagem do
monumento a ser reutilizado. A complexificação do quadro de valores, comporta inclusive
um novo valor não previsto por Riegl (1999), o “valor econômico do patrimônio histórico"24.
Na verdade, a conversão em valor econômico faz-nos parecer que tudo é, do mesmo modo,
cambiável nestes termos – o patrimônio e seus vínculos imateriais com tradição, memória e
história podem ser apropriados e associados a mercadorias, banalizados como suportes
publicitários. Se em algum momento o monumento deveria estar o mais próximo dos
centros de consumo, ou como nas palavras de Choay (2006), dos “modernos caravançarás”,
eles agora são os próprios caravançarás, em reutilizações mutiladoras de sentido. No caso
específico da reutilização da Fábrica Bangu, que oportunidade de se transformar este espaço
num verdadeiro pólo social não terá sido perdida?

Conclusão: a memória de um bairro no caminho para os


banheiros...
Talvez seja importante analisar que especificidades, na ótica do patrimônio, o nosso objeto
apresenta. A expressão “patrimônio industrial” já lhe delimita o campo em um horizonte
cronológico que nos insta a considerações teóricas diferenciadas daquelas ligadas a outras
espécies de monumento: estão em jogo questões complexas relativas à memória do
trabalho, importantes para a consolidação da noção de cidadania daqueles habitantes e sua
relação com o lugar.25 Refletindo sobre transformações impostas a uma população, Lefebvre
aponta para a necessidade de discernir estrutura, função e forma do que se pretende
realizar, sob o olhar de uma base analítica igualitária na definição de usos:
Quais são, quais serão os lugares com êxito social; como detectá-los, com que critérios; que
tempos, que ritmos de vida cotidiana se inscrevem, se escrevem e se prescrevem estes
espaços ‘com êxito’, quer dizer, favoráveis à felicidade? Isso é o que interessa26.

23
“Se é verdade, como julgamos, que a arquitetura, de todas as artes, é a única que já não tem futuro, empreguem seus
milhões para conservar, manter e eternizar os monumentos nacionais e históricos que pertencem ao Estado, e para
adquirir os que estão nas mãos de particulares”. Hugo, 1834, p. 165.
24
CHOAY, 2006 p. 239
25
“Pode ser que o direito à palavra se situe ao lado do direito à Cidade” Lefebvre, 1991, p. 88.
26
LEFEBVRE, 1991, p. 32
Assim, a cotidianidade das pessoas, sua relação com o território, mediada pela
memória, adquire conotações políticas. Sob este aspecto, Lefebvre (1991) destaca o valor da
vida cotidiana como “núcleo de resistência ao terrorismo das sociedades contemporâneas
do consumo dirigido”. Nelas, os cotidianos encontram-se confiscados, pré-programados por
signos que definem comportamentos, neutralizando os desejos pela lógica do consumo, que
determina o modo de existência das formas.27
Nestas considerações acerca do papel da Fábrica Bangu, pensamos em que
representação de cidade se esperaria ajudar a construir com o processo de reutilização, de
modo que espelhasse os atributos dos que marcaram e foram marcados por este espaço e
nele depositaram sentidos. É a construção de sujeitos coletivos que se apóia no lugar e aí
imprime sua marca, num processo dialético que infunde e resgata significados atravessados
pela experiência coletiva em suas relações espaço-temporais. É a forma como o lugar
adquire a dimensão do acontecimento:
[...] por meio do lugar e do cotidiano, o tempo e o espaço, que contém a variedade das
coisas e das ações, também incluem a multiplicidade infinita de perspectivas. Basta não
considerar o espaço como simples materialidade, isto é, o domínio da necessidade, mas
como o terreno obrigatório da ação, isto é, o domínio da liberdade28.
Dos muitos signos de alienação que compõe esta enorme iniciativa público-privada (em
que o ‘público’ entra com enormes investimentos e decisões estratégicas e o ‘privado’
aufere os lucros com riscos diluídos), um deles ilumina o céu do sentido como um fogo de
artifício: de todos os lugares possíveis para se colocarem fotos da história do bairro,
apresentando ao público consumidor do shopping center um pequeno fragmento do
contexto em que se insere o território em que se está pisando, para acolher tais fotos foram
escolhidos exatamente os corredores de acesso aos sanitários. Esta é, talvez, a melhor
metáfora da importância dedicada à memória de mais de um século de todo um bairro, de
uma parte significativa da cidade do Rio de Janeiro. Como conclusão, uma observação de
Rossi toca essa questão em seu centro:
A destruição e a demolição [...] como resultado da especulação e da obsolescência são os
sinais mais reconhecíveis da dinâmica urbana. Muito além de tudo isso, as imagens sugerem
o destino ininterrupto do indivíduo, de sua participação freqüentemente triste e difícil no
destino do coletivo29.

BIBLIOGRAFIA
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concurso de Teoria da Arquitetura). FAU-USP, São Paulo, 1957.
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CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. 2 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.
FLUSSER, Vilém. Da Religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
FRAMPTON, K. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GARCIA, Antônia dos Santos. Desigualdades Raciais e Segregação Urbana em Antigas Capitais. Tese de
Doutorado apresentada ao PROURB - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Rio de Janeiro: PROURB/UFRJ,
2006.

27
“... antigamente a cotidianidade existia. Ela vivia. [...] A cotidianidade aparecia somente através de metamorfoses: a
arte, a cultura, os monumentos, ou simplesmente uma ingênua retórica dos símbolos.” Lefebvre, 1991, p. 145.
28
SANTOS, 1996, p. 83
29
ROSSI, 1982, p. 195
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 2009.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola. 1992.
HUGO, Victor. Guerre aux démolisseurs: in Littérature et philosophie mêlée. Paris: Renduel, 1834. T. XI.
JAMESON, Fredric.Pós-modernismo:a lógica cultural do capitalismo tardio. S. Paulo:Ática, 1996.
KURZ, Robert. Palestra proferida na Escola de Engenharia da USP em São Carlos, em 15/04/1993. Disponível
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141993000200002
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
NAVA, Pedro. Balão Cativo. São Paulo: Atelier Editorial, 2000.
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