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Sandra Jatahy Pesavento
Organizadora

Editora
Ida Universidade
Roíl-s--» S.J
Todos sabemos que as fronteiras, an
tes de serem marcos físicos ou naturais,
são, sobretudo, simbólicas. São produ
to da capacidade imaginária de refig;u-
rar a realidade a partir de um mundo
paralelo de sinais, através do qual os
homens estabelecem classificações, hie
rarquias e limites, que g^aiam o olhar e
a apreciação, pautando condutas.

Mas as fronteiras não são apenas mar


cos divisórios construídos, elas tam
bém induzem a pensar na passagem de
uma situação/lugar/época para outra.

Pensando a condição de fronteira nos


marcos da temporalidade, podemos
dizer que nos encontramos em um
momento privilegiado, ao qual talvez
se aplique esta expressão emblemáti
ca: fronteiras do milênio.
Fronteiras do ilênio
UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO
GRANDE DO SUL

Reitora
Wrana Maria Panizzi
Vice-Reitor
e Pró-Reitor de Ensino
|osé Carlos Ferraz Hcnnemann
Pró-Reitor de Extensão
Luiz Fernando Coelho de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE

Diretor
Geraldo F. Huff

CONSELHO EDITORIAL
Anna Carolina K. P. Regner
Christa Berger
Eloir Paulo Schenkel
Geor^ina Bond-Buckup
Jose Antonio Costa
Livio Amaral
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Maria da Graça Krieger
Maria Heloísa Lenz
Paulo G. Fagundes Vizentíni
Geraldo F. Huff, presidente

Editora da Universidade/UFRGS • Av. João Pessoa, 415 -90040-000 -Porto Alegre, RS -Fo
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ordenador), Carla M. Luzzatto, Cláudia Bittencourt, Maria daGlória Almeida dos Santos, Najá-
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Filho, Laerte Balbinot Dias, Norival Hermeto Nunes Saucedo,Júlio CésardeSouza Dias •Apoio:
Idalina Louzada, Laércio Fontoura.
Fronteiras do ilênio
Sandra JatahyPesavento
Organizadora

Fernando Catroga
Flavio Aguiar
François Hartog
Jaques Leenhardt
Roberto Vecchi
RogerChartier

i Editora
daliniversidacte
Univenkiade Federal do Rio Grande do Sd
© dos autores
edição: 2001

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Carla M. Luzzatto


Ilustração da capa: Infografia sobre
Bondo/Union (1956), de M. C. Escher.
Revisão: Najára Machado
Luciane Leipnitz
Editoração eletrônica: Cláudia Bittencourt

F935 Fronteiras do milênio / organizado por SandraJatahy Pesavento.


- Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRCS, 2001.

I. Ciências humanas - Fronteiras. I. Pesavento,SandraJatahy.


II. Título.

CDU 167.822

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1023


ISBN 85-7025-588^
SUMÁRIO

Fronteiras do milênio 7
Sandra Pesavento

A testemunha e o historiador 11
FrançoisHartog

Memória e história 43
Fernando Catroga

Barbárie e representação:
o silêncio da testemunha 71
Roberto Vecchi

Globalização e transdisciplinaridade:
a segunda revolução identitária 95
JacquesLeenhardt

Os filhos de Satã 105


FláxnoAguiar

Uma crise da história?


A história entre narração e conhecimento 115
RogerChartier
FRONTEIRAS DO MILÊNIO

Sandra Pesavento

Todos sabemos que as fronteiras, antes de serem


marcos físicos ou naturais, são, sobretudo, simbólicas. São
produto desta capacidade imaginária de refigurar a re
alidade a partir de um mundo paralelo de sinais, através
do qual os homens percebem e qualificam a si próprios,
ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo. Faz parte
deste jogo de representações estabelecer classificações,
hierarquias e limites, que guiam o olhar e a apreciação,
pautando condutas.
Há uma tendência de pensar as fronteiras a par
tir de uma concepção que se ancora na territorialida
de e se desdobra no político. Neste sentido, a frontei-

SandraPesavento é historiadora e professora titularno Departamen


to e Programa de Fós-Graduação em História da UFRGS.
ra é sobretudo encerramento de um espaço, delimi
tação de algo, fixação de um conteúdo e de sentidos
específicos. Nesta medida, o conceito de fronteira
avança para os domínios daquela construção simbóli
ca de pertencimento a que chamamos identidade e
que corresponde a um marco de referência imaginá
ria que se define pela diferença e alteridade com re
lação a outros.
E ainda por esta dimensão da fronteira que se co
loca em cena o debate sobre novas - ou talvez nem tan
to, na sua realização histórica - categorias presentes na
nova temporalidade, como a da globalização. Afinal, em
um mundo globalizado, as fronteiras se apagam e dissol
vem os localismos, ou, pelo contrário,justo neste momen
to é que se acirram as questões identitárias?
Mas as fronteiras não são apenas marcos divisórios
construídos, que representam limites e que estabelecem
divisões. Elas também induzem a pensar na passagem, na
comunicação, no diálogo e no intercâmbio. Figurando
um trânsito não apenas de lugar, mas também de situa
ção ou época, esta dimensão da fronteira aponta para a
instigante reflexão de que, pelo contato e permeabili
dade, a fronteira possibilita o surgimento de algo novo,
híbrido, diferente, mestiço, de um terceiro que se insi
nua nesta situação de passagem.
Fronteira é, por assim dizer, conceito ambivalente
ou bifronte, que se compara como a uma espécie bas-
culante entre o encerramento e a abertura, entre o
marco que define e delimita e ajanela ou porta que pos
sibilita a comunicação.
Se pensarmos a condição de fronteira nos mar
cos da temporalidade, poderíamos dizer que nos en
contramos em um momento privilegiado, ao qual tal
vez se aplicasse esta expressão emblemática: frontei
ras do milênio.
Sabemos que o tempo do calendário discutea ade
quação das passagens —do século e do milênio, bem en
tendido e que diante do tempo cósmico, físico e da
natureza, o 1- de janeiro não se distingue em nada de
um 31 de dezembro, salvo na cabeça das pessoas...
Bem sabemos que mesmo aquele tempo da natu
reza tem sido sempre objeto da reordenação humana, a
reinscrever nele o tempo do vivido. Estão aí os calendá
rios, as datas, os ritos, as celebrações, as comemorações,
a indicarem o que é preciso lembrar... e o que é possível
esquecer.
Se os calendários são delimitações do tempo no
espaço, tais marcos antes assinalados são lugares no tem
po. Falar de memória é, por seu lado, falar também no
esquecimento, onde mais uma vez a força do simbólico
aponta para este movimento ímpar de fronteira.
Concordamos todos quanto à constatação de que
o tempo social tem sido pensado deforma diferente atra
vés das épocas, mas o historiador sabe ainda que aquilo
que foi um dia será contado de forma diferente no fu
turo. Ou não? Há coisas, fatos e situações que não podem
nem devem ser esquecidas? Onde fica a presença, o va
lore a garantia de um testemunho? Que fazer diante dos
silêncios da história?
Sem contar as fronteiras do conhecimento que
parecem abrir-se à passagem e ao diálogo dos dizeres e
saberes sobre o mundo nesta nossa época de interdisci-
plinaridade. Discursos que se intercambiam, em umjogo
de espelhos, na composição de um puzzle que fala sobre
o real. Não mais uma hierarquia de saberes ou de ramos
do conhecimento, mas sim olhares que se cruzam e que
mantêm um diálogo entre si.
História, ela própria, como um conhecimento de
fronteira, que toma, cada vez mais em conta, esta aber
tura de espaços, pontos de vista, objetos. História que.
cada vez mais, se compreende como construção de ana
logias, pois escrever história é pensar sempre sobre uma
alteridade, sobre um outro, sobre algo que se passou por
fora da experiência do vivido e onde toda experiência
narrativa se configura como um "ser como", como um
"ter sido", plausível, verossímil.
Momento especial, pois, este das fronteiras do
milênio. Situação de fechamento e abertura, de balan
ço do que foi feito, de inventário da bagagem a levar para
um novo tempo, de desafios e dúvidas em busca de res
postas.
Tudo leva e estimula ã reflexão, e é sob este espí
rito que reunimos aqui pensadores das ciências huma
nas para discutir este trânsito/passagem com toda a sua
carga simbólica.
Neste tempo/espaço de fronteira, o que levar para
um novo século, milênio?
François Hartog, Fernando Catroga, Roberto Vec-
chi, Jacques Leenhardt, Flávio Aguiar e Roger Chartier
são alguns destes intelectuais que nos ^udam a pensar
toda a gama de questões que se apresentam àqueles que
enfrentam o desafio da fronteira e buscam a passagem.

10
A TESTEMUNHA E O HISTORIADOR*

François Hartog

A testemunha e o historiador? Este problema pa


rece resolvido há muito tempo: prática e epistemologi-
camente. A testemunha não é um historiador; o histori
ador, embora possa ser uma testemunha, não tem de sê-
lo e, sobretudo, é apenas quando se distancia da teste
munha (qualquer uma, inclusive ele próprio) que pode
começar a tornar-se historiador. Assim, ser testemunha
jamais foi uma condição suficiente ou necessária para ser
historiador. Mas isso Tucídides já nos tinha ensinado. A
própria autópsia devia passar pelo filtro prévio da críti
ca. Se nos deslocarmos agora do historiador para seu

François Hartog é historiador e diretor de Estudosda Écoledes Hau-


tes Etudes en Sciences Sociales de Paris.
*Traduzido do francês por Patrícia Chittoni Ramos.

11
relato, a questão passa a ser: como contar como se eu ti
vesse visto (para fazer com que o leitor também veja) o
que não vi e não podia ver? Velha questão!
Depois, quando a história finalmente conseguiu,
no século XIX, defínir-se como ciência, a ciência do pas
sado, ela já não conhecia mais do que "documentos". As
"vozes" tinham-se transformado em "fontes" e, ao final
dessa transformação, as "testemunhas" chegaram mesmo
a acreditar que deviam assemelhar-se a historiadores.
Charles Péguy, que lamenta isso, observava: "Você encon
tra um homem. Ele não passa de uma testemunha".
"Você vai encontrá-lo velho. Instantaneamente, ele não
passa de um historiador".' Ele fala como um livro.
Por que, então, reabrir essa questão neste ciclo de
conferências consagrado ao Milênio? Porque delimitar m^iis
uma vez, talvez um pouco melhor, essa distância do princí
pio? Sua história poderia lançar uma luz sobre a historio
grafia: uma oportunidade para atravessá-la novamente, a
passos largos, dos gregos até nós, revendo algumas da con
figurações epistemológicas que foram como que seus cen
tros organizadores; uma maneira, enfim, de questionar o
papel deste personagem antigo, familiar e, no entanto,
estranho, que é o historiador em nossas sociedades.
Porém, na verdade, é a conjuntura presente, jus
tamente marcada nos últimos vinte anos pela progressiva
escalada da testemunha, a "Era" da testemunha, confor
me anuncia um livro recente,^ que vai guiar a reflexão
que gostaria de fazer hoje. A testemunha não é um novo
personagem, mas ocupa no final deste século um novo
lugar. Proponho ir do presente ao mais distante e voltar.

' PEGUY, Ch. Clio, OEuxrres enprose completes. Bibliothèquede Ia Pléia-


de. Paris: Gailimard, 1992. t.III.p.l.187-1.188.
^WIEVIORKA, A. L'ère du íémoin. Paris: Plon, 1998.

12
tentando esclarecer, em alguns pontos, um através do
outro: o método é bem clássico.

I - Atestemunha, como e por quê?

Levada pela ondulação da memória, a testemunha,


vista ela própria como portadora de memória, impôs-se
pouco a pouco em nosso espaço público. É reconheci
da, buscada, presente e até, à primeira vista, onipresen
te. A testemunha, qualquer uma, mas primeiramente a
testemunha como sobrevivente. Aquela que o latim de
signava por superstes, isto é, aquela que se mantém sobre
a coisa mesma, ou aquela que subiste além.® As testemu
nhas da Shoah são aquelas que transpuseram. Mesmo que
o primeiro reconhecimento da testemunha no cenário
público internacional date do processo Eichmann, foi nos
Estados Unidos, e à primeira vista, paradoxalmente, que
a testemunha se impôs. "Se os gregos inventaram a tra
gédia, os romanos, a correspondência, e a Renascença,
o soneto, nossa geração inventou um novo gênero lite
rário, o testemunho". Essa fórmula de Elie Wiesel vale
pelo que é, mas todos compreendem o que ela quer dizer.
Ele próprio se definiu como "a testemunha" e tomou-se
o bardo do Holocausto. Há também, nesse mesmo papel
da testemunha, mas de uma maneira mais sóbria, mais
leiga e mais trágica. Primo Levi que, como o Vieux marin
de Coleridge, deve contar sua história sempre que "em
uma hora incerta, volta essa agonia".'*
Existem os testemunhos transcritos e reescritos, gra
vados e filmados, até o projeto recente, empregando cen-

' BENVENISTE, E. Vocabulaire des instilutions indo-européennes. Paris:


Ediüons de Minuit, 1969. p.276.
*LEVI, P. Les naufragés et les rescapés. Trad. Paris: Gallimard, 1989. p.lO.

13
tenas de pessoas, conduzido pela Fundação Spielberg.
Mas há também as reflexões sobre o próprio ato de teste
munhar - suas funções, seus efeitos sobre a testemunha,
sobre os ouvintes ou os espectadores -, que encerram ine
vitavelmente o problema, lancinante ou recorrente, da
transmissão, ou seja, tudo o que gira em tomo, como se
diz em inglês, do vicarious witness.
Com efeito, quem quiser refletir sobre o fenôme
no do testemunho só pode partir da centralidade pre
sente de Auschwitz e portanto também, ou primeira
mente, da centralidade do Holocausto (se empregar
mos seu nome inglês) no espaço americano, onde o
fenômeno pode ser percebido, se ouso dizer, com sua
força e sua clareza.
O que se passa na França? A questão não pode evi
dentemente ser separada de Vichy, do processo do Esta
do francês. De modo que testemunhar colocou-se, aqui
mais do que em outros lugares, em termos estrita ou mais
diretamente legais. Isso é verdade no que tange às teste
munhas comuns, mas também o é no caso dessas teste
munhas particulares que alguns historiadores foram cha
mados a ser por ocasião dos processos por crimes contra
a humanidade.
Porém, três livros recentes traduzem uma tomada
de consciência da amplitude do fenômeno e propõem
uma reflexão sobre o testemunho. O livro de um soció
logo, Renaud Dulong, Le témoin oculaire, o de uma histo
riadora, Annette Wieviorka, Uère du témoin e, bem recen
temente, o de um filósofo (que acaba de ser traduzido
do italiano), Giorgio Agamben, Ce qui reste d'Auschwitz.
Três livros eruditos, em outro nível de interpretação. O
primeiro é uma "investigação sobre as condições sociais
da atestação (com esta definição: "ser testemunha não
é tanto ter sido espectador de um acontecimento quan
to declarar que este foi visto" e se comprometer a repe-

14
ti-lo nos mesmos termos).^ Wieviorka propõe uma "re
flexão sobre a produção do testemunho". Agamben re
flete sobre a "variação inscrita na própria estrutura do
testemunho".®
De que maneira a testemunha e o dever de tes
temunho impuseram-se aos Estados Unidos? Vou-me li
mitar a algumas das manifestações mais recentes e mais
maciças.
Emblemático disso é o United States Holocaust Memo
rial Museum, construído no Mall de Washington e inau
gurado em 1993. Cada palavra é importante: comemo
rado nesse perímetro sagrado, o Holocausto toma-se um
acontecimento da história americana inscrito na memó
ria coletiva. Já em sua arquitetura, o prédio é um teste
munho a ser decifrado: as formas, o uso do tyolo, as vi
gas metálicas lembram the hard industrialforms do Holo
causto.' O visitante começa atravessando um espaço jus
tamente chamado de Hall of Witness, espaço frio que,
segundo o arquiteto, é "como uma estação ; dali, é obri
gado a tomar elevadores para subir aos andares reserva
dos à exposição permanente, antes de chegar ao espaço
hexagonal vazio do Hall ofRemembrance.
Aexposição combina fotos, filmes e objetos, como
estratégias de apreensão do real. Os organizadores do
museu pensaram, de fato, que era importante ter obje
tos autênticos, presentes em sua materialidade, possibi
litando quase um contato físico. Deste modo, fizeram-se
colecionadores e até arqueólogos do Holocausto. Quan
to ás fotos, elas atestam que essas crianças, essas mulhe-

^DULONG, R. Letémoin oculaire. Les conditions sociales de rattestation


personnelle. Paris: Editionsde TEHESS, 1998.
®AGAMBEN, G. Cequireste d'Auschwtz. Trad. Paris: Rivages, 1999.
' LINENTHAL, E. Preserving memory. Tlie Struggle to create America's
Holocaust Museum. Penguin Books, 1997, p.88.

15
res, esses homens existiram e não existem mais, combi
nando mais do que nunca presença e ausência. (Wiesel,
122; Sontag, 174: antes, depois, epifania negatíva). Toda
a pedagogia do museu visalevar os visitantes, durante sua
visita, a identificarem-se com as vítimas (distribuem-se até
mesmo, na entrada, carteiras de identidade de vítimas,
187). Além de instalar o Holocausto em um museu per
manente, a visita pretende transformar cada visitante, e
eles se contam aos milhões, em uma testemunha dele
gada, uma testemunha substituta, um vicarious witness.
Ademais, conforme as palavras de seu diretor, uma visita
ao museu colabora para "um aprofundamento da vida
cívica e política americana e para um enriquecimento
da fibra moral deste país".
Em 1994, cria-se a Survivors ofthe Shoah Visual History
Foundation, desejada e concebida por Steven Spielberg.
História visual? "Quero contar a história de cada um,
diz Spielberg, ("I want to get everybody's stories").
Como Schindler, ele gostaria de salvá-los todos: reco
lher todos os testemunhos dos sobreviventes, mesmo
daqueles que já testemunharam. Memória e pedago
gia, mas para jovens de hoje: com CD-Rom e acesso on
line. O Holocausto interativo e a domicílio. As críticas
suscitadas por esse programa, assim como os proble
mas de segurança a serem resolvidos (sem esquecer a
preocupação de não dar a mínima abertura aos revisi
onistas) retardaram esses projetos. Trata-se, em suma,
de tornar presente um real passado por intermédio do
virtual. São os jogos delicados ou perigosos do virtual
e do real com fins pedagógicos. Spielberg pensa, em
todo caso, que essa forma de história em vídeo vai fa
zer escola. Ela vai mudar, diz, "a maneira como as pes
soas vão conservar sua história, quer se trate do movi
mento feminista, dos direitos civis, dos gays ou das lés
bicas". A etapa seguinte é a guerra do Vietnã: "next

16
in line for the on line".® Vai-se assim da testemunha
ao espectador sem intermediários.
Esse campo não é virgem, mas considerando os
meios de que Spielberg dispõe, tende a ocupá-lo intei
ramente. Bem anterior era o FortunoffVideo Archivefor
Holocausl Testimonies, com objetivos bastante diferentes:
não contar uma história, mas oferecer a possibilidade de
contar sua história ãqueles que o desejassem. Dori Laub,
co-fundador desses arquivos, co-autor com Soshana Fel-
man de um livro hoje em dia muito citado, Testimony, é
ao mesmo tempo uma testemunha (a criança sobreviven
te que foi), alguém que se consagrou a recolher os tes
temunhos dos outros e um observador do próprio ato de
testemunhar.® Dessa longa experiência de trabalho com
as testemunhas e sobre os testemunhos, ele extraiu a
noção de "acontecimento-sem-testemunha"; isso não sig
nifica evidentemente que não h^a uma, mas que a frag
mentação do próprio ato do testemunho dissolve a pos
sibilidade de toda comunidade de testemunho.
Qual o contexto dessas manifestações? O livro (pu
blicado) de Peter Novick, The Holocaust in american life,
retraça as etapas que fizeram o Holocausto passar das
margens ao centro (hoje em dia, isto significa vários mi
lhares de profissionais trabalhando em tempo integral)
e esclarece o contexto desse deslocamento em um país
conhecido por cultivar ao mesmo tempo o gosto pelas
novidades e a amnésia.'® Enfatizou-se a necessidade de
lutar contra um anti-semitismo renascente, de deter um

®SHATZ, A.; QUART, A. Spielberg's List. Village V&ice.January, 9,1996,


p.32.
' FELMAN, S.; LAUB, D. Testimony. Crisesof witnessing in literature,
psychoanalysis and history. New York e Londres: Routledge, 1992.
NOVICK, R The Hobcausl in american life. Boston/New York: Hou-
ghton Mifflin Company, 1999.

17
punhado de revisionistas (Butz), mas, sobretudo em um
período em que a identidade é reivindicada como dife
rença, o Holocausto tornava-se o único denominador
comum da identidade dos judeus americanos. A isso se
acrescenta, na corrida ao reconhecimento público, esta
espécie de competição vitimária, que o historiador Mai-
er chamou de competition for enshrining gneuancesr. ter um
lugar, senão o primeiro, nesta competição" . O porquê
do tema das lições e da testemunha não no papel de
doador, mas no de detentor de lição.
A esse respeito, e sem querer me deter mais no
Holocausto nos Estados Unidos, cabem três observações
de alcance e de ordem diferentes.
Não vivemos em uma economia midiátíca que se
move â base de testemunha? E preciso apresentar uma
testemunha {La marche du siècle),^^ o imperativo do ao
vivo, a exigência de proximidade, elas próprias envoltas
na aura da compaixão. Diferentemente da testemunha
de Péguy, ela não fala mais como um livro: não se trans
forma mais em historiador, mas é, ao contrário, uma voz
e um rosto, uma presença, e é uma vítima. A partir das
fotos dos campos no momento de sua liberação, a parce
la cada vez maior do visual no testemunho ("As fotos não
mentem", dizia o editorial de 26 de abril de 1945 do Stars
and Stripes) é constitutiva de sua autenticidade e de sua
verdade. As fotos republicadas desde então na impren
sa por ocasião das comemorações, as fotos nas exposições
e nos museus.'^ Essas fotos que, a partir de então, são a

" MAIER, Ch. S. ASurfeit Memory? Reflections onHistory, Melancho-


ly andDenial, History and Memory, 5,1993, p.l47.
Programa de debates e entrevistas, com a presença de testemunhas
dos fatos discutidos, transmitido pela televisão francesa (N.T.).
" ZELIZER, B. Remembering toforgeí. Holocaust Memory throught the
Camera'a Eye. Chicago: The University ofChicago Press, 1998. p.l44.

18
referência para medir o horror. Quanto mais cercado e
encurralado, mais o real parece escapar.
Recolher, registrar, conservar, fixar os testemu
nhos, cada um e, se possível, todos hoje em dia, o velho
imperativo deutoronômico de pelo menos duas testemu
nhas não vigora nesse caso, o problema não é absoluta
mente este. Trata-se, ao contrário, de escutá-las cada uma
em sua singularidade: permitir a cada testemunha que
conte sua história, enfim ou mais uma vez.
A colocação da testemunha em primeiro plano acar
reta também uma ampliação da noção de testemunha.
Testimony, esse livroJá citado por mim, dedica páginas a
Paul Celan: sua poesia é lida como um testemunho sobre
o extermínio, o que certamente é, mas se percebe tam
bém o que instalá-lo no papel da (mera) testemunha pode
ter de redutor para sua obra. O mesmo ocorre com relei-
turas recentes de Camus. E verdade que A peste se apre
senta como um testemunho, uma "crônica". Sendo cha
mado a testemunhar, por ocasião de uma espécie de cri
me, declara o narrador, o doutor Rieux, acrescenta que
"manteve uma certa reserva, como convém a uma teste
munha de boa vontade", mesmo que se coloque do lado
das vítimas (1468); ou ainda "o narrador age como histo
riador".''' Porém, identificar a testemunha Rieux à "tes
temunha" Camus seria evidentemente simplista (e falso).
Como se depois de ter dado tudo ao texto, proclamando
a elisão do sujeito, se quisesse dar tudo ao sujeito e mais
nada ao texto. Camus, afinal de contas, também conhe
cia seu Tucídides e a peste de Atenas.
Da relativa indiferença do pós-guerra à retomada
nos anos 70, a curva do testemunho registra, certamen-

" CAMUS, A. La Pesle. Bibliothèque de Ia Pléiade. Paris: Gallimard,


1468. p. 1.222.

19
te, uma urgência geracional, mas também, em uma pro
porção difícil de medir, a vontade mais do que legítima
de resistir a esses assassinos da memória, que vieram ins
talar seus tristes cavaletes exatamente nesse ponto cen
tral e doloroso do testemunho. Considerando que o pla
no de extermínio também previa a supressão das teste
munhas e dos vestígios do crime, o testemunho assumiu
de saída um lugar crucial. No entanto, com o correr dos
anos, o número das testemunhas e a massa dos testemu
nhos resgatados e descobertos foram crescentes. O pla
no fracassou ou, como diz Henri AJleg em La Queslion,
"sempre se sabe tudo". Ora, os revisionistas retomaram
exatamente onde os nazistas tinham parado: mostre-me
pelo menos uma testemunha. E a ironia quis que o pai
do revisionismo. Paul Rassinier, cuja biografia passou por
uma fria autópsia de Nadine Fresco, tenha primeiramen
te avançado sua qualidade de testemunha, mas uma tes
temunha que, em seu depoimento sobre os campos, quis
de saída não estabelecer, mas "restabelecer a verdade
para os historiadores e os sociólogos do futuro".'^
Em terceiro lugar, a impossibilidade do testemu
nho. Primeiramente, há a distância entre o que fora su
portado e o que se podia dizer sobre isso. Distância ime
diatamente observada por Robert Antelm, por exemplo:
"A desproporção entre a experiência que vivêramos e o
relato que se podia fazer dela".'® Mas também porque,
segundo a expressão, delicada de gerir, de Dori Laub,
trata-se de um "acontecimento sem testemunha" ou, na
reformulação de Renaud Dulong, sem possibilidade de
atestação partilhada, como se a regra das duas testemu-

RASSNIER, P. Le mensonge d'Ulys5e. l.ed. em 1950. Essa frase é a últi


ma da dedicatória da edição de 1998. Ver FRECO, N. Fabrication dun
anlisémile. Paris: Editions du Seuil, 1999.
ANTELME, R. Vespèce humaine. Paris: Gallimard, 1957. p.9.

20
nhas não pudesse justamente aplicar-se a isso. Já Primo
Levi ia mais longe ainda: "Nós, os sobreviventes, não so
mos as verdadeiras testemunhas... são eles, os muçulma
nos, os desaparecidos, as testemunhas integrais, aqueles
cujo depoimento teria uma significação geral. A destrui
ção levada a seu termo, ninguém a contou, como nin
guém jamais voltou para contar sua própria morte"."
Toda a reflexão de Agamben parte precisamente dessa
frase de Levi. E ouço como que um eco direto dessa fra
se nestas cinco palavras de Paul Celan: "Niemand zeugt
für den Zeugen".'®
A testemunha está só: ninguém pode testemunhar
por ela. Ela não tem ninguém a quem se voltar. Entre
aquilo de que foi testemunha e os outros, não há senão
ela. Ou então ela está ainda mais sozinha porque a "ver
dadeira" testemunha não pode estar presente para tes
temunhar. Ela não passa de uma testemunha delegada
ou substituta, sobre quem pesa ainda mais a carga de
testemunhar.

II - Da testemunha que ouve à testemunha que vê

Indo do presente a um passado muito distante,


proponho-lhes um desvio historiográfico, que vale como
exercício de olhar distanciado. Algo como a pré-história
das relações entre o historiador e a testemunha.
O grego antigo relacionou ver e saber, estabelecen
do como uma evidência que, para saber, é preciso mais
ver do que ouvir. Os ouvidos, diz um personagem de
Heródoto, são menos críveis que os olhos.Idein, ver, e

" LEVI, P. op. cil., p.82.


CELAN, P. Gloire descendres (Aschenglorie).
HERODOTO, 1, 8.

21
oida, eu sei, remetem de fato a uma raiz comum, wid.
Isso é bem conhecido e, no entanto, a epopéia homéri-
ca tem um personagem que se chama histôr, onde se
encontra essa mesma raiz. Assim, segundo Benveniste,
este seria "uma testemunha na medida em que sabe, mas
primeiramente na medida em que viu".^" Entretanto, o
histôr, que intervém em duas situações de disputa, na
verdade nada viu nem ouviu. Durante os funerais de
Pátroclo, Ajax e Idomeneu discordam sobre quem, de
pois de ter ultrapassado a marca, está à frente na corri
da de bigas. Ajax aposta com Idomeneu e propõe tomar
Agamenon como histôr?^ Seja qual for o papel exato de
Agamenon, é certo que nada viu da cena em questão.
No extraordinário escudo forjado por Hefaístos para
Aquiles, está representada uma cena onde dois homens
que discordam entre si (a redenção de um assassinato)
decidem apelar a um histôrP Este último não é eviden
temente uma testemunha do assassinato.
Intervindo nos dois casos em uma situação de lití
gio, o histôr é não aquele que, apenas com sua interven
ção, vai resolvê-la, arbitrando entre duas versões confli
tantes, mas, antes, acredito, o aval (para o presente e mais
ainda para o futuro) daquilo que ficar convencionado
pelas duas partes. Antes de ter olhos, o histôrdeve, por
tanto, ter ouvidos.
E a testemunha, então, chamada martus em gre
go? A etimologia leva-nos ao radical de um verbo que
significa lembrar-se, sânscrito smarati, grego merimna,
que originou memor {iaY^ em latim. Quando, no mo
mento de pronunciar um juramento, ainda na epopéia.

BENVENISTE, op. dl., p.l73.


2' HOMERO, Iliade, 23, 482-487.
22 HOMERO, Iliade, 18,497,508.
2® KITTEL, G. Theologicaí Dictionary ofIheNew Testament, s.v. Martus.

22
chamam-se os deuses por testemunha, theoi maturoi,
estes são convidados não a ver, mas a ouvir os termos de
um pacto. Trata-se também de ouvir e de guardar na
memória. Também o martus tem primeiramente ouvi
dos. Observemosque se pode igualmente dizer, no caso
de um juramento, ''Istô Zeus"" (Que Zeus o ateste, seja
testemunha..."), onde se encontra a mesma raiz, wid,
presente em histôr. O latim convocará aliás Júpiter, di
zendo "Audi Juppiter^'.
Mas então qual a diferença entre histôr e martus, se
ambos têm em princípio (não se trata de dizer somente)
ouvidos? O que muda de um para outro é o contexto de
intervenção e suas relações respectivas com o tempo. O
histôr, que intervém em uma situação de litígio, é requeri
do pelas duas partes, escuta ambas, ao passo que o martus
só se preocupa com um único lado, mais exatamente, há
apenas um. O martus intervém no presente e para o futu
ro, enquanto o histôr áewe acrescentar a dimensão do pas
sado,já que sua intervenção atual compromete no futuro
em relação a uma disputa que surgiu no passado.
Desse martus, como testemunha (não ocular), isto
é, aval, passou-se facilmente à testemunha como autori
dade. Assim, Heródoto, evocando, para apoiar o que
acaba de declarar, a autoridade do oráculo de Amon no
Egito, diz que ele "testemunha", "marturef-, também
Homero, sob forma de citação, testemunha , vem pro
var uma observação, um raciocínio do narrador das His
tórias.^'^ São aqueles que Aristóteles chamará na Retórica
de "os velhos ou as antigas testemunhas", palaioi martu-
res.^^ Dessa testemunha não ocular, extrairemos de Tu-
cídides um último exemplo, quando este opõe esses tes-

HERODOTO, 2,18; 4, 29.


ARISTÓTELES, Retórica, 1,15,13.

23
temunhos, relatos sobre acontecimentos antigos, ao que
viram os ouvintes do discurso que lhes está sendo feito:
"Para que lhes falar de acontecimentos muito antigos,
quando são atestados mais por relatos {martures logôn)
ouvidos do que pelo que viram nossos ouvintes? {opsis tôn
akousomenôn)"?^ As "testemunhas" estão do lado das pa
lavras e do passado: do lado daquilo que não se viu ou
não se pôde ver.
Esse antigo histôr, tal como apresentado en passant
pela epopéia, eu o veria, pois, bem próximo do mnêmôn,
este homem-memória ou "recordação viva", conforme
chamara Gernet e em quem ele reconhecia "o advento
no direito de uma função social da memória"." Não
podendo retomar aqui o caminho que leva dele ao pri
meiro historiador (a historein e historie) ysalientarei ape
nas o que subsiste do primeiro ou é passado no segun
do. Heródoto emprega o verbo historein para designar o
tipo de trabalho que desenvolveu, na maioria das vezes,
em um contexto de investigação oral. Quando se dedi
ca a resolver a questão controversa das fontes do Nilo, ele
precisa: "Eu fui e vi com meus próprios olhos (autoptês)
até a cidade de Elefantina; quanto ao resto, fiz uma in
vestigação oral (akoei historeôn)}^ Essa investigação, que
confronta o que ele sabe, ou o que se diz, principalmen
te entre os gregos, com o que dizem seus interlocutores
(que certamente falam grego) guarda algo da conside
ração dos dois lados, que era a razão de ser do antigo
histôr. De maneira mais imediatamente surpreendente,
há muito tempo foi observada a preocupação, encontra-
da já na frase de abertura das Histórias, de mencionar o
que foi realizado tanto pelos gregos quanto pelos bárba-

2«TUCIDIDES, 1,73.
" GERNET, L.Anthropologie de IaGrèce. Paris: Maspero, 1968. p.286.
HERODOTO. 2, 29.

24
ros, estabelecendo uma simetria que, por outro lado, a
própria formação desse par gregos-bárbaros, assimétrica
por definição, desmente.
Voltemos mais uma vez à epopéia. Na cena que
coloca Ulisses diante do aedo dos feácios, é delineada
uma notável configuração de saber: aquela do historia
dor e da testemunha, ao pé da letra, mas avant Ia lettre.
Com efeito, Ulisses, que ainda não revelou sua identida
de, pediu-lhe para cantar a tomada de Tróia. O que ele
faz tão bem, "de maneira demasiado perfeita , diz o tex
to, que Ulisses não pode deixar de declarar. Cantas com
perfeição os infortúnios dos aqueus, os seus feitos, os seus
sofrimentos, as suas fadigas, como se tu mesmo por ^ca
so tivesses estado presente ou sabido por outrem .
Como se o aedo fosse um historiador avant Ia lettre, ao
passo que Ulisses sabe pertinentemente que ele nada riu
ou ouviu: é o aedo cego que busca toda sua inspiração
na Musa, que se define como aquela que está sempre ali,
sempre presente e onisciente. Ulisses sabe disso tanto
mais porque se encontra na posição de testemunha (do
superstes), ou mesmo da única testemunha. Emblemáti
ca sob vários aspectos, essa cena apresenta portanto um
aedo, espécie de super-historiador, para quem ver, ou
vir e dizer são uma única e mesma coisa - um "histona-
dor" que ocupa a posição de único sujeito da enuncia-
ção - e uma testemunha muda (que chora).
Tucídides retomará para si este lugar de enuncia-
dor onisciente. Mas, para ele, que pretende ser resolu
tamente moderno, bem distante não apenas do disposi
tivo da fala épica, mas também em ruptura em relaçao a
histona de seu predecessor imediato, é preciso legitimar

^ HOMERO, Odissée, 8, 489-491 (Trad. bras.) São Paulo: Cultrix,


1989. p.98.

25
um lugar de anunciação apoiado na autópsia, o que re
quer igualmente uma crítica das testemunhas e da me
mória e tem por corolário que a única história factível é
aquela do tempo presente. A autópsia, poderíamos sus
tentar, é uma maneira de recusar ou de calar as teste
munhas (Silencing the wtiness, evocando o livro de um de
seus colegas!): o olho do historiador, portanto, contra o
ouvido das testemunhas.
O latim dispõe de várias palavras, estudadas por
Benveniste, para designar a testemunha, precisando sua
função e enriquecendo a noção. Além de superstes, já
mencionada, há arbiter (no sentido mais antigo, aquele
que assiste a algo), testis (por terstis, ou seja, aquele que
assiste como terceiro), actor (o aval, como o palaios mar-
tus de Aristóteles) Em contrapartida, Roma não tem
muito a nos ensinar sobre a testemunha ocular na histo
riografia ou sobre o par testemunha/historiador. Simpli
ficando, a história romana é, de fato, uma história sem
historia (no sentido grego de investigação), sem testemu
nha, sem autópsia, e até mesmo sem dois lados (Roma
está inteira em Roma). Ela é concebida como uma nar
rativa literária, narratio, composta por autores (scriptores)
que apelam, quando julgam necessário, a avais ou auto
ridades {auciores).

111 - A autori dade da testemunha ocul ar

O historiador grego desejava retardar o esqueci


mento dos grandes momentos (Heródoto), ou fornecer
um instrumento que permitisse não prever, mas compre
ender o que acontecerá no futuro (Tucídides); sua ta-

' BENVENISTE, op. cit.,p. 119-121,277.

26
refa ou sua missão, entretanto, não era de modo algum
transmitir exatamente uma experiência a ser preserva
da como tal, em suasingularidade. Somente com os pri
meiros cristãos, na virada do primeiro século de nossa era,
a testemunha vai-se tomar esta figura indispensável, cm-
cial para o estabelecimento e a validação de uma cadeia
da tradição. Evidentemente, essa testemunha foi judia
antes de ser grega. A partir do instante em que se entra
no espaço das religiões reveladas e do Livro, a própria
concepção da testemunha não pode permanecer incó
lume, e a figura moderna da testemunha foi profunda
mente marcada por isso.
A testemunha é, com efeito, uma figura importan
te na Bíblia: testemunha que vê ou que ouve, testemu
nha que atesta e dá seu aval, testemunha que dá seu tes
temunho diante do tribunal. O Deutoronômio estabelece
assim a famosa regra (à qual já fiz alusão) da necessida
de de pelo menos duas testemunhas para acusar e con
denar um homem. Mas a cena do tribunal onde a teste
munha é convocada pode ser transposta, como em Isaí-
as, por exemplo, onde a questão se passa entre Yavé, eis
nações e Israel.^' As nações são convidadas a produzir suas
testemunhas (o que são evidentemente incapazes de
fazer, já que não têm nenhum testemunho a produzir
em benefício de seus falsos deuses), ao passo que Yavé
faz de seu povo suas "testemunheis" {martures) e seu ser
vo. Yavé apresenta-se a si mesmo como testemunha, dan
do testemunho dos outros ou para os outros, advogado
e juiz, mas também, e é o único que pode ocupar esta
posição, testemunha de si mesmo.
Em uma cena menos grandiosa e mais imediata
mente próxima de nossas interrogações, Rávio Josefo é.

" ISAIAS, 41,21 e seguintes.

27
atrevo-me a dizer, uma boa "testemunha". Quer se tra
te, com efeito, do episódio do suicídio coletivo na gruta
de Yotapata ou do suicídio de Massada, seu relato, ob
servou-se, não contraria a regra das duas testemunhas:
no primeiro caso, ele mesmo e um de seus companhei
ros; no segundo, as duas mulheres sobreviventes podem
testemunhar sobre o que aconteceu.^^
Lá onde Tucídides jogava, lembremos, com uma
disjunção entre a testemunha e a visão, Flávio Josefo
opera uma conjunção. Assistindo ao cerco de Jerusa
lém, Tito é declarado por Josefo "autoptês kai martus":
ele viu com seus próprios olhos (poderia ser o histori
ador) e é testemunha (tem um poder de autentica
ção). Com efeito, Martus não é simplesmente redun
dante, ele acrescenta uma dimensão de autoridade,
Josefo precisa imediatamente que Tito é "o distribui
dor soberano dos castigos e das recompensas".^^ Belo
exemplo de expressão com ressonâncias simultanea
mente gregas e judaicas.
Josefo foi ainda mais longe nesse caminho. Para
defender sua Guerra judaica dos caluniadores, ele se
apresenta como um historiador que pratica a história à
Tucídides. Sua história é verdadeira. Mas faz mais do
que isso: "tomou como testemunhas", diz, aqueles que
tinham comandado na guerra, Vespasiano e Tito. "O im
perador Tito, acrescenta em sua autobiografia, deseja
va tanto que o conhecimento dos acontecimentos fos
se transmitido aos homens apenas a partir de meus li
vros que lhes apôs sua própria assinatura e ordenou sua
publicação".'** É o oposto de Tucídides e da prática

FLAVIOJOSEFO. Guerre desJuifs, 3,8; 7,8-9.


^ FLAVIOJOSEFO, Guerre desJuifs, 6, 34.
^ FLAVIOJOSEFO, Autobriographie, 363.

28
histórica grega, já que se assiste à primeira disposição
deste procedimento que se tornará regra na Idade
Média, a autenticação. A testemunha é o aval (o auctor
latino) e a melhor testemunha será evidentemente
aquela que detiver a maior autoridade.
Retomando esse quadro geral, os cristãos vão não
somente fazer da testemunha ocular uma pedra an
gular da Igreja nascente, mas também da testemunha,
do testemunho e de sua dramaturgia legal uma ex
pressão da Revelação, uma maneira de dizê-la, reto
mando e deslocando o antigo Testamento. Como me
faltam tempo e competências, limito-me a algumas
observações. O texto mais surpreendente a esse res
peito é o Evangelho deJoão, o Evangelho do testemu
nho por excelência {martusfois) e sobre o testemunho.
Ele inicia com o depoimento de João Batista, interro
gado pelos fariseus, e cuja função é a da testemunha
(ele é primeiramente uma voz: aquele vem para o
testemunho") e termina com este versículo, que não
é do próprio Evangelista, "É aquele o discípulo que
testemunha sempre sobre essas coisas, que as escreveu
e sabemos que seu testemunho é verdadeiro . Ele
estava lá, o discípulo que Jesus amava, ele o seguiu e,
quando entrou no túmulo vazio, viu e acreditou . E
uma testemunha verídica (deixo de lado a questão de
saber se João, o filho de Zebedeu é ou não o autor do
Evangelho). Entre oinício eofim, vários episódios são
relatados, e principalmente esse debate, no fundo,
esse processo recorrente entre os judeus, os fariseus
particularmente eJesus, que gira em torno da ques
tão do testemunho, ^^uem e ele? Se diz testemunhar

'JOÃO, 21,24.

29
a si mesmo, seu testemunho não pode ser verdadeiro
(em virtude da própria lei das duas testemunhas).
O problema de Lucas é diferente, e sua inter
venção estabelece-se em outro plano. Trata-se menos
de uma mística ou de uma teologia do testemunho do
que da sucessão das testemunhas. Não tendo tido con
tato direto com os acontecimentos, já que pertence à
segunda ou terceira geração, é chegado o momento,
julga, de proceder a uma primeira ordenação e fixa
ção da tradição: o estabelecimento de uma linhagem
de testemunho. "Visto que muitos, escreve no prólo
go, reproduziram um relato dos acontecimentos ocor
ridos entre nós, de acordo com aquilo que nos trans
mitiram aqueles que se tornaram, desde o início, tes
temunhas oculares e ministros da palavra {autoptai kai
huperetai genomenoi), pareceu-me conveniente, após me
ter meticulosamente informado de tudo a partir das
origens, redigir com cuidado para ti um texto orde
nado, excelente Teófllo, a fim de que possas reconhe
cer a solidez das palavras que ouviste".®® Todas as pa
lavras gregas têm importância; foram naturalmente
comentadas e o prólogo em seu conjunto foi associa
do aos prefácios dos historiadores ou das obras cientí
ficas (médicas) gregas. Lucas indica ao destinatário de
seu Evangelho que seu relato parte das origens, base
ando-se naqueles que viram com seus próprios olhos.
Ele não emprega o grego "testemunhas", mas a pala
vra com ressonâncias tucididianas autoptai. Os apósto
los viram com seus olhos. A autoptai, porém, ele agre
ga imediatamente a palavra huperetai, servos, assim
como a forma de particípio genomenoi: convém então
traduzir, acredito, por "aqueles que desde o início tor-

^ LUCAS, 1, 1-4 (extraído da tradução de F, Bovon. Genève: Labor


etFides, 1991).

30
nam-se autoptai e servos". Os que viram tornaram-se
servos ou, em outras palavras, viram e acreditaram, e
aqueles que desde o início tornam-se servos são os que
viram. Ver e servir andam juntos. De modo que aque
les que viram sem se tornarem servos, no fundo não
viram realmente. E os que se tornaram servos viram,
poder-se-ia acrescentar, com os olhos da fé. Será exa
tamente neste ponto que Kierkegaard fundará seu pa
radoxo da contemporaneidade.^'
Enfim, compreende-se como, em tal contexto de
valorização da testemunha, pode-se passar da testemu
nha- martus- ao mártir, aquele que dá testemunho, com
sangue, não de si mesmo, mas de Cristo e que se toma,
por sua vez, um elo na cadeia das testemunhas.
Quanto à história, um pouco mais tarde torna-
se com Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica, preci
samente a história da sucessão das testemunhas, des
de o Salvador até o tempo presente. Ela tem por ob
jeto estabelecer, preservar e transmitir o séquito dos
apóstolos e dos bispos sucessores, decidir o que entra
ou não no cânone dos textos. Para isso, Eusébio cita
"testemunhas", e depois testemunhas de testemunhas,
os primeiros sendo justamente aqueles que têm mais
autoridade, e reúne "testemunhos" (textos, cartas, do
cumentos diversos). No total, essa história é uma his
tória com testemunhos, mas sem autópsia: a escritura
do historiador está sempre em segunda posição, mes
mo quando ele chega ao presente.^® Tucídides calava
as testemunhas e Eusébio, ao contrário, lhes dá toda a
palavra e se apaga por detrás delas. O historiador como

" KIERKEGAARD, S. Mielles philosophiques. OEuvres completes. Paris,


p.97,102.
HARTOG, E IJhistoire d'Homère à Auguslin. Paris: Editions du Seuil,
1999. p.270.

31
compilador que encontraremos expressamente no
século XIII já está presente.

IV - Da testemunha 1 i cenci ada


ao retorno da testemunha

Tendo chegado a este ponto de nosso desvio his-


toriográfico, todos os componentes da testemunha, tal
como os recebemos ou esquecemos, estão presentes, e
o resto do caminho pode ser percorrido mais rapida
mente. A testemunha (humana e divina) está no cen
tro dos textos cristãos e no coração da Igreja como ins
tituição. No entanto, esse triunfo da testemunha pare
ce, paradoxalmente, abrir uma era em que a testemu
nha (como presença viva) vai-se encontrar licenciada,
já que a autoridade nos séculos seguintes será, antes de
tudo, a testemunha como auclor^ como autoridade.
No século VIII, quando Beda inicia sua História
eclesiástica da nação inglesa, começa por nomear suas
principais testemunhas, auctores, seus avais, suas auto
ridades, que designa igualmente, uma página adian
te, como testis, o termo usual para testemunha.'® Tra
ta-se de pessoas que adquiriram seus conhecimentos
de diferentes maneiras (oralmente ou por escrito).
Como Eusébio, Beda apenas coleta, reúne esses teste
munhos ad instructionem posteritatis. Traduzindo por
"fontes", como fazem as traduções modernas, queima-
se uma etapa. Tal economia do testemunho produziu,
com efeito, bastante logicamente, um sistema de ava
liação organizado de acordo com a polaridade do au-

®Beda, oVenerável, Hisloireecclésiastique dupeuple anglais, prefácio (edi


ção B. Golgrave, Oxford, 1969).

32
têntico e do apócrifo, que é na verdade uma medida
daautoridade respectiva das testemunhas, desde a que
tem mais até a que tem menos autoridade. Esse siste
ma de produção e de controle dos enunciados não
coincide, compreende-se facilmente, com a divisão do
verdadeiro e do falso. Eis por que o triunfo da teste
munha também pode ser, em um outro sentido, seu
canto do cisne.
Logicamente, o historiador, nos prólogos das
obras históricas do final do século XII até o século XIV,
vai-se apresentar como compilador {colligere, compila-
reivindicando até mesmo essa qualidade de com-
pilator. ele não é auctor^ mas compilator.^^ Auctor quer
dizer primeiramente que ele não é uma "testemunha":
não tem autoridade própria. O que faz? Reúne os tex
tos dos outros, e seu próprio texto é composto de ex
tratos justamente de auctores. Assim, logicamente, per
manece muitas vezes anônimo. Mas logo reivindicará,
na primeira pessoa e com seu próprio nome, o papel
de compilador. "Ego... compilavi": não sou auctor, mas
sou o autor de minha compilação. A ponto de os pró
prios prólogos chegarem a ser compilações de prólo
gos anteriores. "Vejam, parece dizer então, eu sou um
compilaíor quG conhece seu ofício!" Enfim, por uma
nova audácia, essa autoridade nascente do compilator
poderá levá-lo a utilizar de vez em quando, ao lado dos
textos autênticos, um texto apócrifo, isto é, sem auto
ridade própria, mas que, segundo ele, pode ser lido e
no qual se pode acreditar. O que se produz efetiva
mente a partir do século XIII. Quanto mais o compila
tor tornar-se um autor, menos o auctor será uma auto-

GUENEE, B.L'historien et Iacompilation au XIII s\èc\ç,Joumal des


savants,janset., 1985, p.l24

33
ridade ou, em outras palavras, a transformação do
auctor de testemunha em fonte passa pela afirmação
do historiador como compilator.
Quando, no século XIX, a história torna-se ciên
cia, ciência do passado, só lhe resta declarar que se faz
com "documentos"; precisar, com Langlois e Seigne-
bos, que autêntica, "tomada à linguagem legal relaci
ona-se apenas com a proveniência, não com o conteú
do do documento" e estabelecer que uma ciência cons
tituída só pode aceitar "a transmissão escrita".'*' A his
tória é a ciência dos vestígios escritos. A partir da li
nha do presente, o historiador ausente não passa de
um olho leitor de arquivos. Exit a testemunha: o auctor
se foi. Mas o compilator também é recusado: os fatos
falam, o historiador, a exemplo de Bouvard e Pécu-
chet, deveria (de modo ideal) ser apenas um scriptor,
isto é, um copista.
E claro que essa ciência pura, positiva e crítica, na
qual um Fustel queria crer, sempre foi contestada. Foi
recusada, mas também substituída por uma ciência que
buscava em profundidade, em estruturas invisíveis a olho
nu, a apreensão mais verdadeira do movimento real das
sociedades. História que conta e que mede, história anô
nima das forças produtivas, história arqueológica, até
mesmo arquitetônica das longas durações. As verdadei
ras testemunhas são índices a calcular e os testemunhos,
curvas a construir. As fontes tornam-se dados que, devi
damente processados e inseridos em máquinas, dizem o
que não conseguem dizer em estado bruto. Postos em
série, os testemunhos respondem a questões que não se
mostravam diretamente. As testemunhas de primeiro

LANGLOIS, Ch.; SEIGNOOS, Ch. Introduction auxéludes hisloriques.


Paris, 1898, p.133,153.

34
nível não sabem o que dizem, mais exatamente, não
podiam sabê-lo: só o historiador (mas isso é valido para
todo especialista em ciências sociais) tem condições de
decifrar, isto é, de reconstruir as mensagens por elas tra
zidas. Mesmo praticando e reivindicando uma forma de
autópsia diferente de Tucídides, esse historiador dos
vestígios cada vez menos visíveis (invisíveis a olho nu) tem
a mesma ambição ou pretensão de ver o real, e como ele,
em todo caso, é o único sujeito da enunciação. Uma
passagem vai-se operar dessa história anônima a uma
história dos anônimos: esta será, em parte, a tarefa de uma
história das mentalidades.
Porém, ao longo dos séculos XIX e XX, vozes dis
sonantes fizeram-se ouvir; todas, de uma maneira ou
outra, buscaram reintroduzir a testemunha e o testemu
nho. Não como sistema de autoridades, evidentemente,
regulando o que é admissível, nem como elemento cons
titutivo de um indício, mas como presença: como voz e
como memória viva. Na primeira fila, encontrar-se-ia
Michelet, invocado justamente como ancestral da histó
ria das mentalidades. "Nas galerias solitárias dos Arqui
vos onde errei por vinte anos, naquele profundo silên
cio, murmúrios chegavam entretanto aos meus ouvidos.
Os sofrimentos distantes de tantas almas sufocadas de
outrora queixavam-se em voz baixa"."*^ Os documentos
são vozes que comprometem e que são portadoras de
uma dívida a ser paga. Mas, para ouvir esses testemunhos,
o historiador deve ir aos arquivos, isto é, deve mergulhar
nas profundezas de uma época. Ele deve "passar e repas
sar o rio dos mortos", transgredir deliberadamente a fron
teira passado/presente. Resta, em seguida,fazercom que

^ MICHELET, J. Préface de 1869. Oeuvres complèles, IV. Paris:Flamma-


rion, 1974.p.24.

35
se ouçam essas vozes, o que não significa absolutamente
apagar-se diante delas. E precisamente essa operação
que, segundo Michelet, revela o verdadeiro historiador.
Poderíamos a seguir evocar Péguy que, marcado
de forma indelével pelo caso Dreyfus, não deixou de opor
memória e história, Michelet a Langlois, Seignobos ou
Lavisse. Ele teria preferido que o próprio Dreyfus não pos
sibilitasse a transformação do caso em história. A história
é "longitudinal", dizia, ao passo que a memória é "reme-
moração".'^^
Esse caso teve também uma importante conseqüên
cia não prevista,como que um caso particular na longa his
tória das relações entre o historiador e a testemunha. His
toriadores foram chamados como testemunhas durante
o processo Zola e no decorrer do processo de Rennes. Do
ponto de vista do código, eles são testemunhas (e devem
comportar-se como tais, prestando juramento, respeitan
do o caráter oral dos debates), mas tecnicamente é sua
especialização (e seus títulos são mencionados na sala de
audiência) que lhes permite refutar com autoridade os
Bertillon e os outros, que são os expertos oficiais."" Reen
contra-se aí a testemunha como auctor, como autoridade
livresca, salvo que ela vem do passado até presente, recu
sando, por um instante, o recorte que no restante do tem
po sua prática exige. Dessa experiência, permanecerá até
hoje uma matriz de Dreyfus do papel do historiador. Se
não justiceiro ou "encarregado da vingança dos povos",em
todo caso em uma cena legal efetivaou suposta, o histori
ador (seria mais exato dizer alguns historiadores) se en
volverá nas questões de seu presente: ora testemunha
(misturando auclorç. autópsia), orajuiz de instrução (re-

PEGUY, Ch. Clio, op. cit., p.1.190-1.191.


DREIYFUS, L'Afraire. Le procès Zola. Relatório estenográfico "in ex
tenso". Paris: Ed. Stock, 1998.

36
fazendo uma instrução mal feita, desmascarando as falsas
testemunhas, suprindo os testemunhos faltantes). Após o
Affaire Audin de Pierre Vaidal-Naquet (1958), houve, no
decorrer dos anos 80 e 90, a luta contra o revisionismo e
os processos por crimes contra a humanidade, onde se
reencontra o historiador como testemunha.''^
Nesse mesmo cortejo de vozes dissonantes, e mar
cada pela Guerra de 1914-1918, poder-se-ia colocar a
reflexão de Benjamin, organizada em tomo da noção de
"rememoração", assim como uma boa parte das críticas
dirigidas ao historicismo.
Mais próximo de nós, a partir de meados do anos
70, o brusco interesse pela história oral, ao qual Philippe
Joutard consagrou um livro, Ces voix qui nous viennent du
passé, fazendo ele mesmo eco ao livro de Thompson, The
voice of thepast, seria uma clara indicação. História oral?
Não, responderam alguns historiadores, como Pierre
Goubert: "Cada um quer seu próprio orgulho, seu an
cestral profeta ou sua tradição, e nossos pedagogos ado
ram isso: é o que se chama de história oral (boatos even
tuais)".'"' Outros, a maioria dos historiadores da época
contemporânea, responderam após refletirem: a histó
ria oral? Sim, mas com a condição de falar de "fontes
orais".'" Já vimos como o aucíor tinha-se transformando
em fonte, hoje a testemunha ressurgiu como voz, a his
tória profissional lhe estende com prazer seus microfo
nes, com a condição de poder inscrevê-la em seus regis
tros como "fonte". Talvez venha daí a ambigüidade des-

THOMAS, Y. La vérité, le temps, le juge et rhistorien. LeDébal 102,


1998.p.17-36.
•^JOUTARD, Ph. Ces voix qui nous viennent du passé. Paris: Hachette,
1983. p.7.
La bouche devéritélXjà recherche historique et les sources orales, sob
a direção de Danièle Voldman, LesCahiersde 1'IHTP, 21,1992.

37
ta definição da história contemporânea ou do tempo
presente como "história com testemunhas": nesse par
proposto pelo historiador, a testemunha não correria o
risco de esquecer que, aos olhos do historiador, ela não
passa finalmente de uma fonte? Não ficaria tentada a
escapar de seus 'mentores e falar em seu próprio nome?
Não encontra ouvidos, microfones, mídias para escutá-
la, até mesmo para solicitá-la e fazê-la falar? Sem inter
mediários. E ao historiador cabe falar menos de memó
ria, de história da memória e mais de história, isto é, de
arquivos escritos, de críticas das fontes e do ofício de
historiador. Seu pesadelo seria talvez aquele de uma
memória, ao mesmo tempo mercadoria e sacralizada,
fragmentada e formatada, explodida e exaustiva, esca
pando aos historiadores e circulando on-line, com a his
tória verdadeira da época.
Última voz dissonante, pelo menos em aparência,
a de Claude Lanzmann, não tão distante, ao menos em
seu princípio, daquelas de Péguy ou de Benjamin. Lanz
mann se opôs com constância aos historiadores e ao que
ele chama de seu "ponto de vista dominante". Com Sho-
ah, quis justamente "reabilitar o testemunho oral". Com
efeito, é um filme de testemunhas e sobre o testemunho,
mas não sobre os sobreviventes e seu destino, antes so
bre a "radicalidade da morte". Shoah, ele disse e repe
tiu, não é da ordem da lembrança, msis do "imemorial",
pois sua verdade está na "abolição da distância entre
passado e presente"."*® Sua força está, com efeito, em
fazer o espectador ver "homens que entram em seu ser
de testemunha"."*®

^LANZMANN,Cl. LesInrockuplibles, 136,1998. (Entrevista.)


^ DEGUY, M. Ausujei du Shoah, leJilm de Claude Lanzmann. Paris: Be-
lin, 1990. p.40.

38
Com o filme de Lanzmann, volto a meu ponto de
partida. De fato, esta última voz dissonante está, na verda
de, em plena ressonância com a centralidade recentemen
te adquirida de Auschwitz (ainda mais perceptível nos
Estados Unidos do que na França, onde deve passar pelo
prisma cinza de Vichy). A vaga memorial que se abateu
sobre o mundo ocidental (e ocidentalizado) não pode ser
separada de e seria incompreensível sem a onda propa
gada por Auschwitz. A testemunha é trazida por essaonda,
mas também a traz, testemunha que é, se assim posso di
zer, seu rosto e sua voz, assim como seu rumor.
Neste ponto e como conclusão, três observações
provisórias.
A historiografia deste século pode-se inscrever, gros
so modo, em um paradig^ma do vestígio. Com a escalada
da testemunha, é a voz (não mais a voz e o fenômeno,
mas o fenômeno da voz) que se deveria levar em conta.
Não estou certo de que a denominação "fontes orais",
proposta pelos historiadores, baste para resolver o pro
blema! Paul Ricoeur, observador sempre agudo e ágil do
que está acontecendo, retomou ou completou sua refle
xão sobre o relato histórico por meio de um exame das
trocas entre memória e história. Considerando o teste
munho como uma "estrutura de transição" entre a me
mória e a história, ele propõe "substituir o enigma da
relação de semelhança (se e como um relato assemelha-
se a um acontecimento) por aquele, talvez menos infle
xível, da relação fiduciária, constitutiva da credibilidade
do testemunho".®" Epistemologicamente, esse desloca
mento ou esse complemento auxilia a compreender e a
refletir. Naturalmente, ainda restam questões.

^ RICOEUR, P. Lamarque du passé. Revue de mélaphysique ei de mora-


fc. 1,1998. p.l4.

39
A testemunha de hoje é uma vítima ou o descen
dente de uma vítima. Esse estatuto de vítima fundamen
ta sua autoridade e alimenta a espécie de temor reveren-
cioso que às vezes a acompanha. De onde o risco de uma
confusão entre autenticidade e verdade, ou pior, de uma
identificação da segunda com a primeira, ao passo que a
distância entre a veracidade e a fiabilidade de um lado, e
verdade e a prova de outro, deveria ser mantida.
Em várias ocasiões, George Steiner correlacionou
a noite do Gólgota e as fumaças de Auschwitz, indican
do que as "conexões" de uma com as outras deveriam ser
pensadas.^' Não tenho qualificação para me pronunciar
sobre esse ponto e não gostaria de improvisar uma teo
logia barata. Mas o percurso que acabamos de fazer leva,
ao menos, a comparar esses dois momentos fortes da crise
do testemunho, respectivamente em torno do primeiro
século e os anos 80 do século XX. Se os conteúdos, as
mensagens, as temporalidades induzidas, etc., são bem
diferentes, encontra-se dos dois lados no mínimo a mes
ma questão da urgência a testemunhar e aquela da trans
missão (o vicaroius witness). O que denominei de triunfo
da testemunha (o primeiro momento) desembocou em
uma forma de história, de testemunhos Justamente, a
História eclesiástica^ que marcou duradouramente a his-
toriogrcifia ocidental. O segundo momento, atual, com
a considerável literatura de testemunho (no sentido
amplo) que o acompanha e não pára de crescer, não
corre o risco de reativar, sem saber, algo desse modelo?
A história é escrita pelos vencedores, mas apensis
por um tempo, diz Reinhart Koselleck, pois "a longo pra
zo, os ganhos históricos de conhecimento provêm dos

STEINER, G. NoPassion spenl Essays 1978-1995, YaleUniversityPress,


1995. p.395.

40
vencidos".^^ O que reformularei, convocando pela últi
ma vez meu histôráo início: enquanto a história dos ven
cedores vê apenas um lado, o seu, aquela dos vencidos
deve, para compreender o que se passou, levar em con
ta os dois. Pode uma história das testemunhas ou das ví
timas satisfazer essa exigência que a antiqüíssima palavra
historia traz consigo?

KOSELLECK, R. Lexpérience deVhisloire. Trad. Paris; Hautes Etudes,


Gallimard Le Seuil, 1997. p.239.

41
MEMÓRIA E HISTÓRIA

Fernando Catroga

Existe um relativo consenso acerca da necessida


de da anamnesis na formação das identidades pessoais
e sociais. Mas, um estudo recente (Joél Candau, Mé-
moire et Identiíé, 1998) destaca, num claro propósito de
superar o dualismo bergsoniano, a existência de três
tipos de memória: a proto-memória, fruto, em boa par
te, do habiíus e da socialização, e fonte dos automatis-
mos do agir que tendem a diluir a distanciação entre
o passado e o presente; a memória propriamente dita, que
enfatiza a recordação e o reconhecimento', e a metamemó-
ria, conceito que define as representações que o indi
víduo faz da sua própria memória e o conhecimento

Fernando Catroga é historiador, professor no Instituto de História e


Teoria das Idéias da Universidade de Coimbra.

43
que tem e afirma ter desse facto. Esta acepção reme
te, portanto, para a maneira como cada um se filia no
seu próprio passado e como, explicitamente, constrói
a sua identidade e a sua distinção em relação aos outros.
Dir-se-ia que a proto-memória e a memória propriamente dita
têm uma actualização mais subjectiva e subconscien
te, enquanto esta última e a metamemória se expressam
como rememoração; por sua vez, à metamemória cabe,
sobretudo, o papel de acentuar as características ine
rentes à chamada memória social ou colectiva e às moda
lidades de sua construção e reprodução. No entanto,
todos eles se interligam, num processo estruturante do
próprio eu, conquanto seja erro de perspectiva redu
zir a memória à autarcia do sujeito: ela recebe sempre
uma sobredeterminação social.

Memóri a e alteri dade

Porém, será pertinente falar-se de memória colecti


va^ Não será este conceito filho de uma ilusão holísti-
ca, de cariz antropomórfico e antropopático, incompa
tível com a crescente reivindicação da subjectividade e
com a actual desmistificação da auto-suficiência e au
tonomia das totalidades sociais? Com efeito, já Santo
Agostinho {Confissões, XI) centrou a recordação na alma,
instância mediadora do tempo, sendo este experenci-
ado como indizível tensão entre a anamnesis do passa
do e as saudades do futuro. Com isto, o autor da Cidade
deDeus inaugurou uma tradição que, passando por Lo-
cke e Husserl, circunscreveu a memória a uma modali
dade interior e privada da experiênciado tempo. E,com
efeito, na sua manifestação mais espontânea, toda a
memória humana é egocêntrica (Pomian). Outros au
tores, porém, têm sublinhado que, em coabitação com

44
esta memória privada, existe a memória pública, sendo di
fícil não reconhecer que ambas coexistem e se formam
em simultâneo. E isto porque, segundo Paul Ricoeur
{Eníve A4émoÍTe etHistoiTe, 1996-1997), recordat éem si mesmo
um acto de alteridade. Ninguém se recorda exclusivamen
te de si mesmo, e a exigência de fidelidade, que é ine
rente à recordação, incita ao testemunho do outro-, e,
muitas vezes, a anamnesis pessoal é recepção de recor
dações contadas por outros e só a sua inserção em nar
rações colectivas - comummente reavivadas por litur
gias de recordação - lhes dá sentido.
Por sua vez, nos quadros mentais do Ocidente, so
bretudo após o crescente impacto do cristianismo, ga
nhou curso a perspectiva tridimensional do tempo. E,
ainda que somente os indivíduos possam recordar, a in-
teriorização da alteridade permite invocar a existência
de uma analogia - aliás, já sublinhada por Santo Agosti
nho - entre a estrutura subjectiva do tempo presente
(presente-passado, presente-presente, presente-futuro)
e a que confere direcção à vida colectiva. Esta semelhan
ça levou Koselleck a sustentar que a própria constituição
da consciência histórica moderna nasceu da influência
judaico-cristã do tempo, pois secularizou os "horizontes
de expectativas", enraizando-os em "espaços de experi
ência", em que o presente histórico se entrecruza com a
recordação e com a esperança.
Embora se deva ser cauteloso na transposição des
sas semelhanças, é um facto que, nunca como no sé
culo XIX (e boa parte do século XX), aquela compa
ração foi tão acreditada. Esta também foi a época em
que se assistiu à banalização da idéia segundo a qual a
sociedade é um organismo, bem como à gradual enti-
ficação das "idéias colectivas" (Durkheim) e da memó
ria colectiva (Halbwachs), propostas teóricas que, no
fundo, foram condicionadas pelo império do paradig-

45
ma positivista e organicista, assim como pelas altera
ções sociais e urbanas provocadas pela industrialização.
Estas conduziram à emergência da sociedade de mas
sas e à conseqüente postulação de "sujeitos colectivos"
como motores do dinamismo histórico. E, se a hodier-
na valorização da subjectividade tem contestado esta
excessiva ontologização dos "factos sociais" (Burdhon,
Schütz, Peter Berger, Luckmann, Josette Coenen-
Huther), a verdade é que, em certo sentido, não se
pode negar que a tradução subjectiva da anamnesis se
dá dentro de "quadros sociais", interiorizados a partir
do topos histórico do próprio evocador, e que tudo isto
conduz à necessidade de se conferir uma coerência
narrativa à vida dos grupos, como se de "eus colecti
vos" se tratassem. Daí o diálogo que os indivíduos
mantêm, dentro de um processo socializador, com os
valores da(s) sociedade (s) e grupo(s) em que se situ
am, e o modo como, à luz do seu passado, organizam
o seu percurso como projecto.

Amemória como construção selectiva

Tal mecanismo impõe que a memória seja sempre


selectiva. Ela nunca poderá ser um mero registro, pois é
uma representação afectiva, ou melhor, uma re-presentifica-
ção, feita a partir do presente e dentro da tensão tridi
mensional do tempo. E, nesta, o futuro é ligado ao pas
sado por um fio totalizadore teleológíco. Isto é, toda a re
cordação tende a objectivar-se numa narrativa coerente
que, em retrospectiva, domestica o aleatório, o casual, os
efeitos perversos do real-passado quando este foi presen
te, actuando como se, no caminho, não existissem bura
cos negros deixados pelo esquecimento. Em certa me
dida, ela é uma previsão ao contrário. Assim sendo, en-

46
tende-se por que é que a anamnesis produz imagens em
que se misturam a história e a ficção, bem como o cam
pofactual com o campo estético e ético; e porque é que
já Halbwachs encontrava na narrativa memorial uma "ló
gica em acção", de estrutura finalístíca, cujos pontos de
partida e de chegada são edificados pelo próprio evoca-
dor, fale este em nome individual, ou em nome de um
grupo (Família, Associação, Partido, Igreja, Nação, Hu
manidade).
Quererá isto significar que a memória é um pro
duto exclusivamente subjectivista, que não se diferencia
da ima^nação, contradizendo as pretensões de objecti-
vidadeque o seu discurso visa alcançar? E indiscutível que
a recordação alimenta uma epistemologia ingênua, que
tende a confundir a representação com o real-passado, isto
é, com a passeidade, espécie de efeito mágico em que a
palavra dá ser ao que já não é. E, se esta característica a
distingue da imaginação, convém lembrar, porém, que
ambas convocam um "objecto ausente". Mas, enquanto
que a representação imaginária pode ter, ou não, refe-
rencialidade, o acto de recordar aceita subordinar-se ao
princípio da realidade. Isto dita que as evocações se conju
guem no tempo passado (anterioridade) e mobilizem
argumentos de veridição, tendo em vista garantir a fide
lidade do narrado. Com este propósito, elas encobrem
as razões normativas e pragmáticas que condicionam a sua
convocação qualitativa, selectiva e apaixonada do que já
não existe.

Memória e esquecimento

Compreende-se. A recordação tende a esquecer-


se do esquecido que ela mesma constrói, sendo uma es
pécie de ponta do iceberg que emerge do subconsciente

47
ou inconscientemente recalcado. E se, pelas suscitações
do presente, parte deste pode ainda vir a ser lembrado,
convém frisar que a memória estará sempre ameaçada
pela amnésia, permanente direito de portagem que a
anamnesis tem de pagar ao esquecimento.
Logo, como acreditar que a recordação seja voz
verdadeira do pretérito e não perceber que é ela quem
dá futuros ao passado, numa actividade de re-^esentijica-
ção que, no entanto, se não for praticada, será devorada
pela corrupção do tempo? A memória só poderá desem
penhar a sua função social através de liturgias próprias,
centradas em reavivamentos, que só os traços-vestígios do
pretérito são capazes de provocar. Portanto, o seu con
teúdo é inseparável dos seus campos de objectivação e
de transmissão - linguagem, imagens, relíquias, lugares,
escrita, monumentos - e dos ritos que o reproduzem. O
que mostra que, nos indivíduos, não haverá memória
colectiva sem suportes de memória ritualisticamente
compartilhados.
De facto, não há representação memorial sem tra
ços. Registrada desde o século XII, a palavra (do latim
tractus) designou, primeiramente, uma seqüência de
impressões deixadas pela passagem de um homem ou
de um animal. Naturalmente, a sua extensão denotativa
aumentou, podendo hoje ser aplicada a qualquer vestí
gio humano, voluntária ou involuntariamente produzi
do. E certo que a memória também pode operar a par
tir de traços inscritos na mente, mas a socialização do su
jeito exige revivificações rituais, como acontecia nas so
ciedades sem escrita. E, o aparecimento desta, embora
tenha desenvolvido novsis mnemotecnias, não matou o
rito enquanto meio adequado à construção e reprodu
ção de memórias individuais e colectívas. Aliás, não dei
xa de ser sintomático que a própria origem da palavra
memória o implique. Na verdade, a expressão latina mo-

48
numento deriva da raiz indo-europeia men. E esta remete
para uma das funções nucleares do espírito {mens), a
mernória. Todavia, o elo entre monumento e memória não
pode ser visto em termos exclusivamente eruditos; ele
também convida a relacionar as dimensões espaço-tem-
porais que ambos os conceitos conotam. E, se todo o
monumento é traço do passado, a sua leitura só será re-
suscitadora de memória, se não se confinar à perspectiva
gnosiológica (típica da leitura patrimonial e museológi-
ca) e se for ditada pela afectividade e pela comunhão
ritual.
De facto, nas suas enunciações mais apaixonadas,
o diálogo entre o presente e o passado, que a evocação
pressupõe, quase anula o distanciamento entre o sujeito
e o objecto e faz daquele, mais do que uma prática egói-
de, um acto cordial, um re-cordare com^ isto é, um co-me-
morar. O que leva a que a memória social se diga na lin
guagem pública, colectiva e instituintéi]do rito, pelo que
comemorar é sair da autarcia da recordação (manifesta
ção potencialmente patológica) e integrar o eu através
de práticas simbólicas e comunicativas. A mediação es
pacial do traço surge, portanto, como condição necessá
ria para que aquela não degenere em exclusiva imagi
nação, e para que, ao ser apelo à re-presentijicação, orde
ne, igualmente, o caos euenementiel, doando sentido ávida
dos indivíduos e dos grupos.

Funções dos ritos de recordação

Embora só os indivíduos possam recordar, os ri


tos de recordação, e particularmente os comemorati
vos, têm efeitos holísticos, pois desempenham funções
instituintes de sociabilidades (Pierre Bourdieu) que não
se esgotam no problema da fidelidade. E que a me-

49
mória, reavivada pelo rito, também tem um papel prag
mático e normativo. Em nome de uma história, ou de
um patrimônio comum (espiritual e/ou material), ela
visa inserir os indivíduos em cadeias de filiação identi-
tária, distinguindo-os e diferenciando-os em relação a ou
tros, e impor, em nome da identidade do eu, ou da
perenidade do grupo, deveres e lealdades endógenas.
Para isso, o seu efeito ritual tende a traduzir-se numa
mensagem. E esta, ao unificar recordações pessoais, ou
memórias colectivas, constrói e conserva uma unidade
que domestica a fugacidade do tempo num presente
que dura.
Como se vê, a identidade é uma construção social,
de certa maneira sempre em devir, no quadro de uma
relação dialógica entre o eu e o outro (Joèl Candau). Ora,
se isto é verdade, deve ainda ser sublinhada uma outra
face deste trabalho: a de dar forma às predisposições que
condicionam os indivíduos a seleccionarem o seu passa
do, processo psicológico em que as escolhas são sempre
acompanhadas do que consciente ou inconscientemen
te se deseja esquecer.
Na Modernidade - uma certa psicanálise afirma
ser desde sempre -, o núcleo social em que, paradig-
maticamente, tudo isto se concretizou foi a Família. E,
é a este nível que melhor se poderá surpreender o elo
entre identificação, distinção, transmissão e respectiva in-
teriorização como norma: recorda-se o espírito de Famí
lia, porque é necessário retransmiti-lo e reproduzi-lo.
De facto, as reminiscências comuns e as repetições ri
tuais (festas familiares), a conservação de saberes e de
símbolos (fotografias e respectivos álbuns, a casados pais
ou dos avós, as campas e mausoléus, os papéis de famí
lia, os odores, as canções, as receitas de cozinha, os no
mes), a par da responsabilidade da transmissão e do

50
conteúdo das heranças (espirituais ou materiais), são
condições necessárias para a criação de um sentimento de
pertença, em que cada subjectividade se auto-reconhe-
ce filiada em totalidades genealógicas que, vindas do
passado, se projectam no futuro.
Numa escala de socialidade mais extensa - como
nas classes, nos grupos sociais, na Nação -, a memória
é tecida em consonância com critérios unificantes e
de transmissão análogos aos do sistema de filiação (e
"de linhagem) .'MdiS, importa destacar que, nas liturgias
de recordação, existe sempre uma tensão entre cor
dialidade e conhecimento, bem como entre memória
e normatividade, antíteses que tendem a resolver-se
através de mensagens impulsionadoras de correntes
pulsionais que levam à sua assunção voluntária como
deveres sociais. Daí a estreita relação entre memória,
identidade, filiação e distinção. Sem aquela, estas nunca
existirão. Mesmo no campo subjectivo, cada indivíduo,
ao recordar a sua própria vida (ou melhor, certos as
pectos ou acontecimentos dela), urde os instantes do
tempo e os hiatos da amnésia numa espécie de filia
ção contínua e finalistica, em que o eu, reconhecendo-
se, estranhando-se ou distanciando-se do que foi, se
actualiza permanentemente como uno e idêntico,
num trabalho que também o diferencia dos outros. E
esta atitude também é condição necessária a uma vida
quotidiana não patológica.
Infere-se, assim, que a tarefa última dessas litur
gias é a de criar sentido e perpetuar o sentimento de
pertença e de continuidade, num protesto, de fundo
metafísico, contra a fluxão do tempo. O imaginário da
memória liga os indivíduos não só verticalmente, isto é,
a grupos ou entidades, mas também a uma vivência ho
rizontal e encadeada do tempo (subjectivo e social) que

51
integra cada existência numa "filiação escatológica" ga
rantida pela reprodução (sexual e histórica) das gera
ções e por um ideal de sobrevivência na memória dos
vivos. A raiz da memória mergulha, portanto, num "es
paço de experiência" aberto tanto à recordação como
às expectativas, horizonte que o recebe como herança e
como possibilidade de se vencer a morte, num jogo ilu
sório que finge esquecer que, tarde ou cedo (duas, três
gerações?), também os mortos ficarão órfãos de seus
próprios filhos.
A partir do que ficou exposto, é lógico que te
nha sido na Modernidade, e sobretudo no século XIX,
que este ritualismo memorial ganhou a sua mais pú
blica expressão, podendo mesmo afirmar-se que aque
le foi o "século da Memória'' (Pierre Nora). Mas, foi tam
bém, e não por acaso, o "século da História" e o "século
das Nacionalidades", isto é, o século da construção mí-
tico-simbólica da nova idéia de Nação. Entende-se. As
transformações sociais, culturais e simbólicas exigiam
que os indivíduos, as famílias, as novas associações as
sentes no contrato, as classes e os novos Estados-Nação
procurassem, no passado - democratizando uma ati
tude típica da antiga aristocracia -, a sua legitimação.
Por conseguinte, é a mesma estrutura teleológica (e
genealógica) que se encontra nas práticas evocativas
que, holisticamente, falam em seu nome, em ordem
a possibilitar a instituição e o reconhecimento de identida
des colectivas, bem como o delineamento de um evolu-
cionismo histórico com sentido.
Ora, só o desconhecimento dos mecanismos de
enraizamento poderá conduzir a que se confunda a
convocação do passado com atitudes passadistas ou nos
tálgicas. Como a memória é activa, a recordação (e a ne
cessária comemoração) nunca resultará da oposição ou
da separação entre o passado, o presente e o futuro.

52
Ao contrário, todaa retrospectiva é uma protensão, po
dendo mesmo defender-se que, em certa medida, o
futuro não é uma criação ex nihilo: o passado, enquan
to memória, participa na sua edificação. O que ajuda
a perceber melhor a dialéctica entre recordação e es
quecimento: sendo este a subterrânea presença do in
consciente ou conscientemente recalcado, ele é fon
te que, mediante a renovação potenciada pela impre-
visibilidade do porvir, possibilitaa existência não só de
futuros para o presente, mas também, numa atitude
justiceira, de futuros para o passado. Recordar é, por
isso e sempre, uma operação de resgate (Ricoeur). Daí
que, como Walter Benjamin sugeriu, se possa dizer
que, através da memória, o futuro também é projec-
ção de antigas esperanças.

Memóri a e hi storiografi a

As relações entre a memória e a representação


historiográflca do passado também não são lineares.
Autores como Halbwachs distinguiram a "memória his
tórica" (produto do pensamento crítico, com uma lin
guagem conceptual, abstracta e laica, e com uma fun
ção ensinável e utilitária) da "memória colectiva", ca
racterizada por ter uma origem anônima e espontânea,
por ser viva, concreta, múltipla, imagética e sacral, e
por possuir um cariz normativo. No mesmo sentido,
para Pierre Nora, a memória, vivida e suportada por
grupos sociais, é representação afectiva, em evolução
permanente, aberta à dialéctica entre recordação e es
quecimento, inconsciente das suas deformações e vul
nerável a todas as manipulações, sendo ainda suscep
tível de longas latências e de repentinas revitalizações.
Ao contrário, a historiografia será uma reconstituição

53
sempre problemática e incompleta do que já não exis
te; por isso, constitui uma laicizadora operação inte
lectual, assente na análise e na atitude crítica.
De acordo com todas estas posições - tributárias,
em última análise, de uma concepção cientista da his
toriografia -, também seriam distintos os respectivos
pressupostos epistemológicos: se a historiografia reivin
dica a exactidão das suas leituras do passado, a memó
ria limitar-se-á ao verosímil, pois a sua retrospectiva não
coloca entre parêntesis as paixões, emoções e afectos
do sujeito-evocador, baseando-se o seu critério de ob-
jectividade, mais na idoneidade do narrador, do que
nos argumentos racionais característicos das estratégi
as de convencimento postas em acção pelas narrativas
historiográficas. Para isso, dizem-se fruto do distancia
mento entre o sujeito e o objecto; ao invés, a memória
será sempre fundacional, sacralizadora e reactualizadora
de um passado que, estando ainda vivo, tende a fundir-
se num eterno presente.

Aescri ta da hi stóri a como ri to de recordação

Estas diferenças são indiscutíveis. No entanto,


como a historiografia nasceu para combater o esqueci
mento (Heródoto), deve perguntar-se: será ela intei
ramente estranha ao papel que as liturgias de recorda
ção (e, particularmente, o culto dos mortos) desempe
nham? De facto, não foi por acaso que a expressão
máxima das chamadas sociedades-memóriá!' coincidiu
com a apoteose do historicismo, fenômeno igualmen
te contemporâneo da emergência e expansão de um
novo culto dos mortos. Neste contexto, é lícito sugerir-
se que Oitocentos foi o ''século da História", porque tam
bém foi o "século da Morte".

54
Diga-se que o elo entre historiografia e evocação
dos mortos não passou despercebido a alguns historia
dores. Assim, para Oliveira Martins, tal como na lem
brança dos finados, também na escrita da História não
há "inimigos, há mortos", pelo que, se "o cadáver é o
símbolo do infinito, o cemitério [é] o tempo da eterni
dade [...]. Os cemitérios são as sociedades na história,
as sociedades são a história nos seus momentos", Dir-se-
á que, assim como a visita ao cemitério é acto memorial
de re-presentijicação, suscitado a partir de "sinais" que
referenciam um "objecto ausente", também a escrita (e
a leitura) da História provoca, a partir de traços, re-pre-
sentações que visam conhecer algo do que se sabe já não
existir. Deste modo, compreende-se que alguns histo
riadores tenham falado em "reconstituir" ou "ressusci
tar" o passado. Foi o caso de Ranke, com a sua preten
são de o reconstituir tal qual ele aconteceu, ou o de
Michelet, ao atribuir à escrita da História o papel de
"ressuscitador" de mortos.
Os ritos param o tempo, a fim de se fazer reviver,
simbolicamente, o que já passou. Por conseguinte, têm
razão os que, como Michel de Certeau, destacaram o
fundo ritual que anima o próprio trabalho do historia
dor. É que, em última análise, este procura "re-presen-
tar [ou, dizemos nós, re-presentijicar] mortos, através de
um itinerário narrativo". Por conseguinte, pode afirmar-
se que a historiografia também exorciza a morte, intro-
duzindo-a no discurso, para criar, como no jogo simula
dor g dissimulador áo culto evocativo dos mortos, a ilusão
da sua não existência. Daqui decorre a necessidade de
se construir um passado para o presente, de modo a que
este se situe num percurso com horizontes de futuro. De
facto, apesar da convocação discursiva e racional do "ob
jecto ausente", a historiografia congela e enclausura, à
sua maneira, o "mau gênio da morte" e provoca efeitos

55
performatívos, pois, marcar um passado, é dar lugar aos
mortos; mas é, também, um modo subliminar de redis
tribuir o espaço dos possíveis e indicar um sentido para
a vida... dos vivos.

A história "filha" da memória,


a memória "filha" da História

A ser assim, quais serão as identidades e as dife


renças que existem entre memória e historiografia? Fa
cilmente se aceita que as duas constituem modalidades
essenciais de afirmação da consciência histórica, e que
as suas narrações não são uma mimese do espaço e do
tempo reais; ambas referenciam "objectos ausentes",
embora se presuma a sua onticidade pretérita. Deste
modo, a imaginação memorial t. a imaginação histórica (Co-
llingwood) não podem ser confundidas com a imagina
ção artística. É certo que também existe dimensão esté
tica nas explicações que visam produzir conhecimen
tos; e o contrário também é verdadeiro. No entanto, na
imaginação estética, a referencialidade e a veridição não
constituem condições essenciais de ordenação e de
aceitação do discurso, sendo relativamente indiferen
te o problema da verdade ou o da verosimilhança.
Mesmo no romance histórico, o contrato que, tacitamen-
te, o emissor celebra consigo mesmo, com as regras éti
cas e metodológicas exigidas pelo seu ofício, bem como
com os hipotéticos destinatários do seu discurso, não
será avaliado à luz dos cânones do saber historiográfico
(como o seria, caso quisesse escrever como historiador);
independentemente do uso que possa fazer de fontes
históricas, o romancista será julgado, sobretudo, em
função dos efeitos estéticos que a sua obra poderá pro
duzir no leitor.

56
Por suavez, tanto a recordação como a historiogra
fia constróem re-presentiJicaçõesdi^zxÚT dainterrogação de
indícios e traços; e, fazem-no dentro de uma experiência
de tempo que é indissociável da memória e das expec
tativas. O que implica a existência, em ambas, do mes
mo intento de ordenar (retrospectivamente) o caos dos
acontecimentos. E, como tudo isto é mediado pelo pre
sente, o recordar e o historiar oferecem ao passado um
mundo aberto de possibilidades.
Nesta perspectiva, cair-se-á num outro tipo de in
genuidade epistemológica pensar que a dialéctica en
tre recordação e esquecimento é um pecado exclusivo
da memória. Também a historiografia, apesar de falar
em nome da razão crítica, se edifica sobre silêncios e
recalcamentos, como a História da História tem sobeja
mente demonstrado. Por conseguinte, também a con
vocação do testemunho memorial - por exemplo, ob-
jectivado na chamada História Oral - exige todas as
cautelas heurísticas e hermenêuticas, pois, quando ele
é arquivado, deixa de funcionar, na sua verdadeira
acepção, como uma recordação, isto é, como algo que
se mantém vivo; adquire, ao contrário, o estatuto de
traço ou de documento, sejam seus suportes o registo
sonoro e fílmico, ou a própria escrita. Todavia, não se
pode esquecer, igualmente, que os problemas que ca
racterizam os inquéritos da historiografia - formulados
de acordo com regras e especificidades metodológicas
próprias - só poderão nascer no seio de memórias (pes
soais e colectivas) adquiridas por experiência pessoal e
por transmissão oral e escrita. Como a mente do histo
riador não é uma página em branco, a pergunta histo-
riográfíca só pode brotar de espíritos já pré-ocupados,
atitude que, a par do desejo de acesso à verdade, ex
prime, em última análise, as inquietações do presente
que as formula. Por conseguinte, a escrita da história

57
também é fonte produtora (e legitimadora) de memo
riais e tradições, chegando mesmo a conferir credibili
dade cientista a novos mitos de (re)fundação e de iden
tificação de grupos sociais, ou da própria Nação (rein-
venção e sacralização das origens, dos momentos de
grandeza consubstanciados em "heróis" individuais e
colectivos, etc.).
E certo que este uso tem suscitado uma autêntica
"guerra civil" permanente entre a "história-crítica" e a
"história-oficial". Todavia, para além da argumentação
explícita da primeira, é possível encontrar, nas interpre
tações historiográficas, pré-conceitos análogos aos que se
detectam na representação do mundo construída pela
memória. Como escreveu Ricoeur, o mais difícil não é
admitir que os factos apareçam de outra maneira, ou
sejam contados por outros; o difícil é aceitar-se que os
acontecimentos fundadores, ou definidores da própria
identidade (individual, nacional), apareçam interpreta
dos e narrados segundo perspectivas diferentes das nos
sas. E esta atitude radica na dificuldade de ouvirmos o
outro contar-nos, centração narcísica em que se esque
ce que só nesse diálogo cada eu poderá formar-se e sa
ber quem é.
Em suma: nas suas motivações existenciais, nos
seus objectivos e até nos seus métodos, a historiografia
acaba por pedir emprestada alguma coisa à memória,
apesar de todas as suas prevenções racionalistas contra
esse contágio. Por conseguinte, pode dizer-se que, em
certo sentido, ela também é "filha da memória" (Paul
Veyne). Mas, o contrário também é verdadeiro: a me
mória, particularmente a partirda Época Moderna e do
crescimento dos mecanismos de socialização de idéias
e comportamentos (ensino, propaganda) também é
"filha" da historiografia.

58
Comemoração e poder

Como instância solidifícadora de identidades,


compreende-se que a expressão colectiva da memória,
ou melhor, da metamemória, não escape à instrumenta
lização dos poder(es) através da selecção do que se re
corda e do que consciente ou inconscientemente se
silencia. Assim, escrever uma "história social da memó
ria" só terá significado se, ao mesmo tempo, se redigir
uma siamesa "história social do esquecimento". Isto re
quer o julgamento da "história-memória" no fórum da
"história-crítica", mesmo quando são conhecidas as afi
nidades que existem entre as duas modalidades de
expressão da consciência histórica. E, basta assinalar
que, dentro de uma mesma sociedade, as identidades
são múltiplas (memórias de família, locais, de classe,
nacionais, etc.) e, comumente, alternativas e conflitu-
osas entre si, para se justificar o recurso a esta atitude.
O olhar do historiador só não se enredará na sedução
consensualizadora da memória se a souber confrontar
com perguntas como estas: quem deseja recordar? E por
quê? Qual a versão do passado que se registra e se pre
serva? E o que é que ficou esquecido?
Seja como for, aceitar-se-á a ilusão racionalista da
auto-transparência do sujeito epistémico se não se le
var em conta que a autonomização do discurso histo-
riográfico - processo correlato da afirmação da irre-
versibilidade do tempo, da substantivação da História
e da hegemonização do paradigma da Ciência moder
na, bem como da dissolução de muitas formas de soci-
abilidade tradicional - não deixou de contribuir para
a construção de memórias apostadas em socializar as
consciências e em diluir os antagonismos decorrentes
das novas relações sociais. Este trabalho simbólico tor
nou-se mais necessário quando, na Europa, as trans-

59
formações sociais solicitaram reinvenções do passado,
exigência que se acentuou no século XIX. Nesta con
juntura, assistiu-se, de facto, a intensos e conflituosos
processos de formação ou de refundação de uma nova
idéia e de um novo ideal de Nação e â consolidação
do poder dos novos grupos e classes emergentes.
A manifestação desta consciência histórica ultra
passou, porém, o terreno das Filosofias da História e da
historiografia, pois corporizou-se, igualmente, no reco
nhecimento do valor social e político da investigação,
ensino e popularização de interpretações do passado le-
gitimadoras do presente, assim como na institucionali
zação de práticas simbólicas postas ao serviço da sacrali-
zação cívica do tempo (comemorações) e do espaço (no
vos "lugares de memória"). Desta atitude resultou a en-
fatização da "sociedade-memórià!' oitocentista (Pierre
Nora), época em que, escudados em interpretações his-
toriográficas, os poderes fomentaram várias liturgias de
recordação, em ordem a conseguir-se o enraizamento
da(s) novas memória(s) em construção, ou em proces
so de refundação.
Em síntese: o século XIX foi o "século da Histó
ria" devido ao grande surto historiográfico (desde a
Alemanha, França, até Portugal) e reflexivo (Hegel,
Comte, Marx, etc.) e ao correlato reconhecimento da
utilidade social e político-ideológica do saber históri
co, necessidade traduzida em acções de divulgação e
de cariz pedagógico (ensino primário, secundário,
universitário), ou ainda em ritualizações comemora
tivas. E a função ensinável das interpretações racionais
do passado reflectiu-se no trabalho construtor e legi-
timador de novas memórias.
Como as diferentes modalidades de as expressar
não se esgotaram numa única linguagem, não se errará
muito defender que elas pressupunham, contudo, um

60
horizonte de pré-Jigurações comum, mormente ao postula
rem uma concepção orgânico-evolutiva, contínua, acu-
mulativa e finalística do tempo histórico, perspectiva em
que, numa versão cientista do velho preceito ciceriano
historia magístervitae, o estudo do passado (ou de um certo
passado) seria condição fundamental para se entender
o presente e se perscrutar a direcção do futuro. Mas, bem
vistas as coisas, toda esta visão do tempo acaba por pro-
jectar e reproduzir, em entidades colectivas, o modo
como cada eu se relaciona com o passado e com as ex
pectativas de futuro.
Não admira. Uma desconstrução de todo este
discurso revela um uso e abuso de uma retórica da ana-
logiüy em que a insinuação da existência de uma iden
tidade - ou, pelo menos, de uma semelhança - entre
as sociedades e os indivíduos foi levada às suas últimas
conseqüências. E, se se recorrer à utilização do passa
do na justificação do papel de um "sujeito colectivo"
como a Nação, poder-se-á surpreender, de um modo
exemplar, todo este mecanismo em acção. Com efei
to, aquela aparece como uma espécie de organismo
espiritual que, ao objectivar a sua índole ou idiossin
crasia, materializa (na Língua, nos Costumes, nas Leis
e Tradições) a sua vocação matricial, processo evolutivo
que constitui uma autêntica desenvolução, que o pre
sente e o futuro aparecem como explicitações tempo
rais de uma essência já presente na origem e omnipre-
sente em cada uma das fases do percurso de cada povo.
E a credibilidade que gozava o argumento historicista
transformou-o numa característica compartilhada por
várias ideologias político-ideológicas. Sem se negar a
existência de algumas especifícidades, isto explica que
se tenha construído, desde o século XIX, uma galeria
de mitos e heróis transversal a vários regimes políticos,
como, para o caso português, se demonstra através da

61
análise das comemorações cívicas realizadas desde a
Monarquia Liberal até praticamente aos nossos dias. E,
não raro, todo este capital simbólico encontrava legi
timação nos próprios discursos historiográficos.
A que melhor exemplo se poderá recorrer para
se relativizar o peso, na Modernidade, das memórias es
pontâneas e, simultaneamente, se perceber a importân
cia das memórias-consíruídas na fundação (ou refunda-
ção) de novos consensos nacionais e sociais? Como se
sabe, o positivismo comtiano - descontados os exage
ros da religião da Humanidade - teorizou a necessi
dade de se criar uma nova organicidade e de se legiti
mar, historicamente, a missão de um dado povo. Em
Portugal, a utilidade desta maneira de argumentar foi
logo compreendida, tanto mais que, nos finais do sé
culo XIX, se vivia num clima decadentista, situação que
certos grupos procuravam superar, incitando a opinião
pública a colher lenitivos nas liçÓes do passado. Daí o
forte investimento comemorativo.
Como escreveu um dos principais "mordomos"
do comemoracionismo português dos finais do século
XIX e princípios do século XX, "a memória é o cimen
to indispensável da vida individual. O apregoado en-
timema cartesiano: 'Eu penso, logo existo', poderia ser
mais intuitivo e estritamente expresso pela fórmula
'recordo-me, logo existo'. Passado, presente e futuro,
ocas palavras essas se acaso não se reflectisse no cére
bro humano a continuidade e a correlação dos movi
mentos; e idênticos fenômenos dominam [...] os agru
pamentos de homens, denominados nacionalidades
[...]. Quando na memória de um povo se oblitera os
interesses nacionais e a sua missão no mundo, esse povo
corre o perigo de perecer de inacção " (Henriques
Lopes de Mendonça). A comemoração implicava, por-

62
tanto, uma inevitável mediação revivescente. E se, atra
vés desta, se ritualizava a História, o seu espectáculo
não deixava de remeter para uma analogia como o
próprio culto cemiterial dos mortos, comparação que,
aliás, Comte não deixou de explicitar. Dir-se-ia que,
tal como nas famílias, também nas Nações os mortos
deviam governar os vivos.
Bem vistas as coisas,aquelas cerimônias punham em
cena características comuns à construção da memória
individual {re-fundação, identificação, filiação, distinção, fi-
nalismó), sendo igualmente selectivas e fragmentadoras
da seqüência dos acontecimentos, embora os inserissem
num horizonte prospectivo, porque, ao elegerem para
objecto de culto cívico "grandes homens" ou "grandes
acontecimentos", elevam-nos a exemplos paradigmáticos,
cuja lembrança aparecia como imperativo histórico que
o futuro devia cumprir.
Justifica-se, assim, o funcionamento aparentemen
te contraditório destas ritualizações do passado. Por um
lado, elas parecem ser um culto nostálgico e regressivo;
no entanto, o passado, ou melhor, uma certa representa
ção dele, é oferecido como lição ao presente. Por conse
guinte, o seu significado último assenta numa concep
ção irreversível do tempo e aponta para a produção de
efeitos consensualizadores. Como se escrevia no decre
to que instituiu os preparativos para as festas do cente
nário do Infante D. Henrique (1894), "são os monumen
tos comemorativos dos beneméritos da humanidade e da
pátria, simultaneamente testemunhos e padrões da jus
tiça e da gratidão dos povos; afirmação solene da solida
riedade histórica das gerações".
Como se vê, o comemoracionismo cívico, tal como
a idéia de tempo então dominante na historiografia,
punha em acção a mesma visão evolutiva e continuista
do devir, em que, como herança a resgatar, o melhor do

63
passado era decantado para funcionar como futuro do
presente. (O mesmo não ocorrerá no campo das recor
dações mais pessoais e de família?). Assim se mostra que,
afinal, as comemorações, tal como a escrita historicista da
História, são práticas de re-presentação, ou melhor, um
modo retrospectivo de se confirmar o que se acreditava
ser o sentido do porvir. Como defendia, em 1882, o po
sitivista e republicano Manuel Emídio Garcia, a propósi
to das festas pombalinas, as comemorações cívicas devi
am ser promovidas

em honra e para glória da humanidade para nortear es


tádios nesse caminhar incessante da civilização universal
[...], e não para impor, em nome de um passado irrestau-
rável, às novas gerações, a adoração dos seus 'fetiches', a
idolatria dos seus deveres [...], mas para lhe apontar o
exemplo dos seus beneméritos.

Desta maneira, elas constituíam ritos de recorda


ção (e de comemoração), em que se enalteciam figuras
exemplares ou momentos de grandeza, em ordem a
exorcizar-se (e a criticar-se) a decadência do presente e
a alentar-se a crença na redenção futura, marcando, as
sim, os ritmos de apogeu (em contraste crítico com os
períodos de decadência) da História de Portugal, no
contexto de uma História Universal, onde, outrora, já
teríamos sido grandes.

A crise da memória

O que ficou escrito, no que à chamada memória


social diz respeito, tem sobretudo a ver com a metame-
mória e referencia uma realidade que teve o seu apo
geu no século XIX. Todavia, hoje, a situação parece
ser de crise. Quais as razões que geraram as sociedades

64
amnésicas do presente, atravessadas, segundo alguns,
por uma espécie de mnemolropismo? Serão tais mudan
ças conseqüência do modo como o homem contem
porâneo experiência o tempo, vivendo-o como um sim
ples somatório de momentos sem nexo, e não como
um Jieri construído pela tensão entre memórias e a ex
pectativas?
Tem de se reconhecer que o anterior investimen
to comemorativo constituía uma prática adequada a
uma concepção acumulativa e evolutiva do tempo. Pre
sentemente, a realidade parece ser outra. As transfor
mações sociais e a contestação do historicismo e de seus
postulados - perfectibilidade, evolução, continuismo
temporal, progresso, previsibilidade - instalaram um
sentimento de descontinuidade, de pluralidade, de não
sentido em relação ao tempo psicológfico e ao tempo
histórico e social. Isto é, mesmo ao nível mais subjecti-
vo, tende-se a esquecer que a própria memória é tridi
mensional, sob o efeito de uma crescente dissolução da
vivência do tempo como presente real (complexo e ten-
sional) na atemporalidade e acronia do tempo real.
Sublinhe-se que, no presente real, se cruzam heran
çasç. expectativas, enquanto o tempo reaítranscorre como
tempo vulgar, logo, como uma mera sucessão, em que
cada momento transporta o esquecimento do instan
te que o precedeu (Ricoeur). E, se o presente real pos
suía a riqueza da "memória de acção", o tempo real
encerra, tão-somente, uma acção sem memória, veri
ficação que torna pertinente que a sua manifestação
seja ligada à actual crise dos historicismos e das ideo
logias, isto é, à crise das representações que previam
(ou prometiam) o cumprimento de destinos nacionais,
ou de escatologias sociais emancipadoras. Este mnemo-
tropismo será, assim, expressão da perda de referên
cias e da diminuição da crença na existência de iden-

65
tidades holísticas extensas e autônomas, posição que
parece ter como uma das suas causas maiores o esgo
tamento das grandes memórias organizadoras e repro-
dutoras do elo social (Família, Igreja, Partido, Sindi
cato, Nação, etc.). A idéia de futuro foi enfraquecen
do, o que provocou um crescente distanciamento en
tre o horizonte de esperança e o espaço da experiên
cia. Simultaneamente, os ritos de recordação concre
tizam-se como meras cerimônias, sem a seiva da comu
nhão ritual, enquanto os traços são encarados como
objectos a preservar, numa patrimonialização excessi
va que, elegendo como "lugares de memória" tudo o
que é antigo, acaba por não circunscrever e sacralizar
lugar nenhum.
Conduzirá tudo isto ao aparecimento de uma so
ciedade amnésica? Se muitos opinam que sim, outros,
porém, assinalam que a crise é, tão-sô, sintoma do apa
recimento de modos mais plurais e diversificados de
objectivação memorial, em conseqüência da fragmenta
ção dos sistemas culturais nas sociedades contemporâne
as. Segundo nota Bourdieu, a pluralidade de expectati
vas e de memórias é o inevitável corolário da existência
de uma pluralidade de mundos e de uma pluralidade
de tempos sociais. Com isto, afirma-se algo que a histó-
ria-crítíca, ao contestar os modelos ingênuos de tempo-
ralização herdados do século XIX, parece ter antecipa
do. Levando em conta estas modificações, comummen-
te ligadas ao questionamento da validade da concepção
linear, acumulativa e europocêntrica da progressão his
tórica, talvez se esteja a assistir, não a uma des-ritualiza-
ção e desmemorização, mas ao aparecimento, ainda que
pouco perceptível, de novos ritos e de novas formas de
socialização da memória, fenômeno derivado das muta
ções que, entretanto, têm ocorrido nas expectativas dos
indivíduos face à sociedade.

66
Não obstante, parece indiscutível que, hoje, já
não é o rito (actualizador de memórias desde os tem
pos arcaicos) o criador por excelência do elo social,
conquanto continue a ser válido defender-se que a re
cordação não se pode refugiar no ensimesmamento.
Ela deve ser acto de abertura ao outro; caso contrário,
o eu tornar-se-á narcísico e egóide, atitude que quebra a
relação de alteridade (e de socialidade) com que a
memória o constrói, pondo em causa a sua própria
identidade. Daí, a pertinência deste aviso de um ve
lho sábio grego: "os homens morrem, porque não são
capazes de juntar o começo ao fim"; somente Mnémo-
sine, divindade da memória, pode ligar o que nós fo
mos, o que nós somos e aquilo que seremos; os total
mente amnésicos e os anamnésicos em excesso (como
Funes, o memorioso, personagem de José Luís Borges),
esses, nunca poderão saber de si. Logo, e como frisou
Nietzche, é lícito reivindicar o direito ao esquecimen
to. Porém, não se pode olvidar que os abusos da am
nésia e os da recordação geram os mesmos efeitos. Am
bos desaguam no caos e no sem-sentido da existência.
E esta lição mostra não haver vida histórica sem esque
cimento, embora, para se saber algo sobre o passado
(individual ou colectivo), não se possa esquecer do que
ficou esquecido, imperativo ético e deontológico que
obriga o historiador - tanto quanto lhe for possível, e
sem qualquer pretensão ao monopólio da verdade - a
desenterrar os "esqueletos" escondido nos armários da
memória (Peter Burke).

Referênci as bi bli ográfi cas

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69
íiili
BARBÁRIE E REPRESENTAÇÃO:
O SILÊNCIO DA TESTEMUNHA
Roberto Vecchi

Então pela primeira vezapercebemo-nos


de que à nossa língua faltam as palavras
para expressar esta ofensa, a demolição
de um homem. Em uma fração de segundo,
com intuição quase profética, a realidade se
revelou para nós: chegamos ao fundo.
(Primo Levi, Sequesto è un uomo, p.23.)

O título que escolhi pelas considerações que seguem


poderia - e com razão - parecer bastante pretensioso.Já
assumir um binômio como barbárie e representação, nes
se limiar de tempo, que é a fronteira de um século e tam
bém de um milênio, implica pensar numa encruzilhada

Roberto Vecchi é professor de Literatura Brasileira na Università di


Bologna.

71
entre as mais complexas deste século que se esvai, isto é,
aquela entre ética e estética ou, para dizer melhor, entre
os limites da ética e o impasse da estética. Questão de ra
ízes milenárias, como a história da filosofia ensina, mas
questão também que, no final do século XX, a própria
história radicalizou aosextremos. As minhasreflexões, digo
como premissa, não propõem uma saída, ainda que críti
ca ou duvidosa, a esse dualismo aporético. Elas são muito
mais escombros sobreviventes de percursos individuais que
não se reorganizam em nenhum centro ou caminho line
ar, mas vivem - e dialogam - sobretudo em virtude da sua
dispersão, em força da sua desterritorialização.
Vou tentar colar um ao outro alguns desses fragmen
tos para ver se eles conseguem traçar algum mapa que por
certo não leva a lugar ou a conhecimento nenhum, mas
mais simplesmente representa o registro de encontros e
desencontros, de poucos achados e muitas perdas, em suma
a melancólica constatação que o tempo existe e insiste con
tra a memória. Pensando em pontos mais do que em dis
cursos ou contextos. Um pouco como o colecionador de
Walter Benjamin, aquele para quem a história "se toma
otgeto de uma construção cujo lugar não é o tempo vácuo,
mas aquela determinada época, aquela determinada vida,
aquela determinada obra": a sua tarefa é a de tirar "a épo
ca do âmbito da continuidade histórica reificada, e assim a vida
da época, e assim a obra da obra de uma vida".'

' BENJAMIN, W.DasKunslwerk im Zeitalter seiner technischen Refnvditzier-


barkeil (ed. or. 1955) citado da ediçáo italiana Vopera d'arleneWepoca de
liasuariproducilibità lecnica, tr.iL de E.Filippini, Torino, Einaudi, 1991. No
célebre ensaio em questão,"Eduard Fuchs, il collezionista e Iostorico",
os atributos citados são referidos ao materialista histórico e ao colecio
nador (p.83). Optei por fornecer, dos passos citados de textos não por
tugueses, a minha tradução a parür das fontes mencionadas em nota e
que como tal, portanto, devem ser considerados de agora em diante.

72
Quem hoje trabalha com a literatura contempo
rânea numa perspectiva, digamos assim, não exclusi
vamente formalista, sobretudo para quem, como eu,
se debruça sobre contextos outros daquele a que per
tence, tem de ter uma preocupação aberta para a
questão da mimese e de seus disiecta membra novecen-
tistas. A problematização é, no fundo, querendo deli
near de imediato um objeto, sobre o papel que a lite
ratura foi desempenhando ao longo desse século, bre
ve ou comprido, triunfante ou derrotado, onde a cri
se do sujeito - e, portanto, da representação - como
nunca foi elaborada, discutida e praticada na dimen
são que costumamos chamar do moderno. Não é em
virtude de uma reivindicação setorial, mas a história
das idéias e da cultura do século XX, quando for es
crita, quando o século tiver terminado, talvez possa
coincidir como em nenhuma outra época com a his
tória literária. Porque a literatura tem sido o lugar do
moderno onde o pensamento contemporâneo se ar
ticulou com maior audácia chegando nas proximida
des do que - como diz Walter Benjamin - "nunca foi
escrito, nunca foi representado".^
Por essa razão, as considerações de âmbito crítico-
literário desvendam de imediato o seu valor cognitivo
sobre o pcissado pelo menos assim como foi pensado e
representado. Talvez esteja na forja uma figura nova de
historiador, num limiar de interdisciplinaridade, um
crítico-historiador que procura nos textos, sobretudo os
contemporâneos, uma imagem histórica, uma interpre
tação e um sentido de um passado de outra forma irre
cuperável. Aqui vou mais simplesmente apresentar algu
mas impressões de leitura nesse sentido.

' RELLA, F. Mili efigure dei moderno. Milano: Feltrinelli, 1993. p.45-46.

73
A meu ver, se quisermos já entrar no assunto das
aporias que o século XX proporcionou no tocante à mi-
mese, o fulcro da questão decorre basicamente de uma
evidência indiscutível que encontra logo, no entanto, a
sua própria etiologia: nenhum século como o nosso des
truiu tanto e tão inexoravelmente a experiência e a sua
possibilidade de ser dita ou escrita, em suma de ser re
presentada. Aliás, se há algum ponto assente para o ho
mem na sua condição novecentista sobre si próprio é
justamente a evidência desta incapacidade de fazer e
comunicar experiência.^
Já Benjamin tinha denunciado essa expropriação
ressaltando que as suas possíveis causas eficientes devi
am ser conduzidas mais em geral à problemática da
modernidade, do trauma da modernidade: em particu
lar, a catástrofe que em termos de experiência foi a Gran
de Guerra, o primeiro grande simulacro bélico do mo
derno, onde, do ponto de vista do sujeito, a perda de
controle da totalidade dos eventos vividos ou sentidos,
provoca uma ferida incicatrizável, uma queda vertigino
sa da experiência.'' A humanidade calada que regressa
da frente contínua ainda hoje o ícone mais significativo

^AGAMBEN, G. Infanzia esloria. Dislnizione deWesperienza eorigine delia


storia, Torino: Einaudi, 1978. p.5.
^Observa sempre Benjamin num dos seus ensaios mais glosados pela
crítica literária: "[...]as ações da experiência caíram. E dir-se-ia que
continuem a cair sem fundo. Cada espiada no Jornal nos revela que
ela caiu ainda mais em baixo, que não só a imagem do mundo exter
no, mas também a do mundo moral sofreu de um dia para outro
transformações que nunca teríamos considerado possíveis. Com a
guerra mundial começou a se manifestar um processo que desde en
tão nunca mais parou. Não se tinha visto, no fim da guerra, que as
pessoas regressavam da frente caladas, não mais ricas, mas mais pobres
de experiência comunicável?" (BENJAMIN, W. II narratore. Considera-
zioni suWopera diNicola Leskov. In: Angelus Novtis, org. por R.Solmi. To
rino: Einaudi, 1962. p.248.)

74
deste século diante da contemplação das ruínas da ex
periência. Talvez não seja atrevido dizer (e é uma boa
discussão) que é neste momento, ou melhor, no contex
to que produz este momento de que a Grande Guerra
não passa de uma figura, que se dá uma cesura seca en
tre história e memória. Ou seja, estamos num dos mo
mentos - da constelação dos momentos que teceu e vem
tecendo o nosso século e que tem um centro ainda lar
gamente obscuro e por explorar, Auschwitz - em que a
memória de uma testemunha, na aporia da capacidade
de fazer e comunicar experiência, interdiz ao historia
dor a possibilidade de apreensão do sentido do que efe
tivamente ocorreu.
E como se a história fosse condenada a perder
uma parte constitutiva de si, dos alicerces primordiais
sobre os quais se fundava a sua autoridade, afastando-
se daquela que é a sua matriz originária, pelo menos em
termos etimológicos: de fato, como sabem, o sentido
próprio do termo história, deriva do grego íoTCOp, his-
tor, que justamente significa testemunha, quem presen
ciou um evento e que, portanto, tem a autoridade para
podê-lo relatar. Em princípio, fora da modernidade, his
toriador e testemunha coincidiam (e na exegese histo-
riográfica mais ortodoxa, a físicidade do trabalho histó
rico se deslocaria depois para um objeto que mantém
uma relação direta, metonímica com o evento, isto é, o
documento). Mas como é que isso pôde acontecer? Há
uma metáfora que é uma das figuras mais poderosas
para compreender a modernidade e que se constrói
justamente a partir da posição da testemunha. Esta
metáfora é a do naufrágio. Hans Blumenberg, de fato,
retoma uma imagem clássica, tirada do Proemio do se
gundo livro do De remm natura de Lucrécio (II, 1-4) que
é uma alegoria do sábio epicureu:

75
Suave, mari magno turbantíbus aequora ventís,
e terra magnum alterius spectare laborem;
non quia vexari quemquamst iocunda voluptas,
sed quibus ipse malis careas quia cernere suave est."

Estudando o desenvolvimento no tempo da metá


fora do naufrágio, Blumenberg, em Naufrágio com espec
tador, percebe que a metáfora de Lucrécio não é mais
válida na modernidade porque todos estamos embarca
dos (e aqui retoma o famoso "Vous êtes embarqué" de
Pascal), não há mais distância entre espectador e espe
táculo trágico ou o náufrago, seus papéis são intercam-
biáveis, a viagem é sem fim e o mar na tempestade e o
naufrágio não são mais representados pelo cosmos mas
pela história (isso depois de Goethe e Hegel).®
A perda da distância entre testemunha e tragédia
é, portanto, a condição moderna. Diante desse impasse,
no entanto, que coloca a possibilidade de fazer cair a
memória do século da modernidade num labirinto pro
blemático, a literatura logo no começo deste século - de
forma significativa e radical, como antes dizia —tentou
foijar algumas respostas, esboçar uma certa atitude, con
dicionando irremediavelmente — eu acho - os desdobra
mentos que seguiriam, tornando a aporia do testemu
nho, da representação da experiência, um dos questio
namentos cruciais do século incipiente e marcando no
profundo o seu limiar. Aludo a duas obras capitais, dois

®Quando no grande mar os ventos perturbam águas tranqüilas, olhar


da terra a grande angústia de outrem: aí existe prazer: não que seja
regozijo agradável o fato que outrem sofra, mas é o prazer de ver o
mal de que tu próprio estás livre.
®BLUMENBERG, H. Schifjhruch mü Zuschauer. Paradigma einerDaseins-
tnelapher (ed. or. 1979) ed.it. Naufrágio con spetlalore. Paradigma di una
melafora deWesislenza, tr. de F. Rigotti e B. Argenton. Bolog;na: II Muli-
no, 1985. p.39-40.

76
romances, dois clássicos aliás, um português, outro bra
sileiro, ligados por uma impressionante problematização
do testemunho: A cidade e as serras de Eça de Queirós
(póstumo, de 1901) e Dom Casmurroáe Machado de Assis
(de 1899). No romance de Eça, durante muito tempo
objeto de mal-entendidos, o essencial não reside numa
atualização do apólogo canônico da oposição campo/ci
dade, mas na condição (que a crítica começou enfim a
encarar) da testemunha, ou seja, do narrador Zé Fernan
des, que deve repetir de modo contrário a experiência
de Jacinto para apreender o seu sentido e tomá-lo co
municável. Por outro lado, com Dom Casmurro Machado
de Assis não procedeu a uma adaptação brasileira ou tro
pical do Othello shakespeariano, pois o elemento deci
sivamente perturbante para o narrador/testemunha
Bentinho não é a traição, mas a evidência da impossibili
dade de conhecer —e conseqüentemente testemunhar
—o passado. São duas modalidades divergentes, embora
genuinamente modernas, de resposta à questão da re
presentação da experiência, uma reconciliadora, outra
irredutivelmente pessimista, sempre em relação à mo-
demidade e aos seus impasses. Mas a própria centralida-
de da testemunha (o narrador, omnisciente ou autodie-
gético dos dois romances) e a inviabilidade do testemu
nho caracterizam ambos os romances nesta passagem li
minar, ao mesmo tempo iniciática e perturbadora, de
início século. Circunstância não secundária, essa, e co
incidência que oferece um instigante ponto de partida,
certamente no que diz respeito ao universo literário da
língua portuguesa de pertinência das presentes consi
derações, que irrompe neste século com posturas tão
nítidas e reconhecíveis sobre a radicalização problemá
tica da relação entre mimese e a modernidade.
Mas então, é lícito perguntar-se, nesse quadro es
boçados de alguns efeitos e poucas causas, o que é que é

77
a testemunha neste século, o que é que ela se tornou?
Mais uma vez acho que é a literatura que nos fornece
indícios não para responder à questão, mas para podê-
la pelo menos melhor enfocar. No entanto, um primei
ro passo a ser dado é tentar ver qual é o sentido próprio,
desmetaforizado, da testemunha, qual é a tradição que
o inscreve no século XX em que talvez acabe por assu
mir feições próprias. Em latim, antes de tudo, havia dois
termos' para designar testemunha; o primeiro, testis,
indica aquele que se põe como terceiro {^terstis) que
ocupa a posição de terceiro num contencioso entre duas
partes; o outro, superstes, refere aquele que peissou por
uma experiência, ou seja, atravessou um evento por in
teiro e pode por isso testemunhá-la. Mas sempre fican
do na razão etimológica, há outras considerações interes
santes que se podem formular. E que relacionam logo a
testemunha com a memória: de fato, em grego, a teste
munha é martis, ou seja, mártir, de que foi derivado o
termo martirium que indicava a morte dos cristãos perse
guidos que testemunhavam assim a sua fé; agora vale a
pena ressaltar que o termo grego martisvem de um ver
bo que significa recordar. Essa rede de sentidos serve para
articular nela a semântica do termo testemunha. Diga
mos que, além do primeiro sentido de ordem jurídica,
os outros dois nos fornecem uma definição bastante cla
ra da área semântica da testemunha: o sobrevivente que
não pode não recordar.
E isso nos remete de imediato, mais uma vez, como
se esta presença fosse inevitável nas fendas de qualquer
discurso que tenha como objeto a interrogação do que que

'A problemática testemunhai aquidelineada muito deve ao decisivo


livro de Giorgio Agamben, Quel che resta diAuschwitz. Turim: Bollati Bo-
ringhieri, 1998.p.l5.

78
foi o século que está terminando, com o seu invólucro
incômodo e opaco, sendo Auschvvitz como que o paradig
ma do curto-circuito que a cultura (filosófica, ética, polí
tica, jurídica) teve no centro da História, da Europa e da
modernidade neste século. E importante observar que,
enquanto em termos históricos, jurídicos, técnicos e bu
rocráticos Auschwitz tem sido e vem sendo adequadamen
te explicado, a experiência de Auschwitz e sobretudo as
implicações que esta experiência continua a determinar
em nível ético e biopolítico permanecem em questão. Isso
se dá, sobretudo, porque ela é um emblemae uma teoria
de repetições, parciais e diferenciais, mas também redun
dantes de homologias que marcam não só o nosso passa
do mas também o nosso presente.®
Aliás, o termo que hoje mais propriamente (sem
pre dentro do repertório eufemístico e em relação ao
errado e até ofensivo do ponto de vista filológico de holo
causto)® se costuma usar para dizer o indizível do horror
é shoah (so' aíi), ou seja, destruição ou catástrofe em he
braico (na Bíblia com o sentido também de punição divi
na) mas cujo sentido se precisou (Felman-Laub) como o
de eventosem testemunhas. Aqui surgeuma questão que,
na nossa perspectiva, se toma interessante. E verdade que
a shoah é intestemunhável em dois sentidos, porque não

®Sobreo extermínio como produto da lógica internada modernida


de, em particular da afirmação de um modelo de racionalização e
burocratização da civilização ocidental, cf. BAUMAN, Z. Modemily and
theHobcaust (ed.or. 1989) ed. it. Modemilà ed Olocauslo, tr. de M. Bal-
dini. Bologna: II Mulino, 1992.
®O eufemismo, de raiz grega, indica o "tudoqueimado", o sacrifício:
nessesentido, a patrística o usoujustamente contra osJudeus para
condenar a inutilidade de seus saciríícios. Sobre os limites semânticos
não toleráveis do termo à luz da experiência histórica, cf. Levi, P. Le
parole, il ricordo. Ia speranza. In: Conversazioni e interviste 1963-1987.
Torino:Einaudi, 1997. p.219.

79
se pode testemunhar do interior da morte nem do exte
rior dela porque a parcialidade da experiência não per
mite a íntegra do testemunho.'" Agora entre os sobrevi
ventes que não podem não recordar, como dizíamos, o
imperativo categórico do testemunho é que se tornou a
razão própria da sobrevivência, como atesta Primo Levi
num passo exordial de Os afogados e os sobreviventes, que
mostra como os responsáveis do extermínio tivessem cons
ciência das dimensões da indizibilidade de seus atos:

Sejaqual for o fim desta guerra, a guerra contra vocêsven-


cêmola nós; nenhum de vocês restará para dar testemu
nho, mas,ainda que alguém escape,o mundo não lhe dará
crédito. Talvez h^a suspeitas, discussões, pesquisasde his
toriadores, mas não haverá certezas, porque nós destruire
mos as provasjunto com vocês. E ainda que fiquem algu
mas provase sobrevivam alguns de vocês, as pessoas dirão
que osfatos que vocês narram sãodemasiado monstruosos
para serem verdadeiros: dirão que são exageros e propa
ganda aliada e acreditarão em nós que negaremostudo, e
não em vocês. A história dos Lager, seremos nós a ditá-la."

É o caso exemplar de Primo Levi que nos fornece


elementos decisivos para colocar e problematízar a ques
tão da testemunha. Ele é a testemunha, é claro para ele
o que é testemunhar em relação por exemplo ao ofício
do historiador,'^ no seu testemunho é patente a consci
ência que é a experiência de quem é sobrevivente que

AGAMBEN, G. Quelcheresla...c\\.., p.32-33.


" Levireproduz o testemunho de Simon Wiesenthal que refere a fala
de um SS, em Jsommersi e i saívali, Torino Einaudi, 1991, p.3.
Cf. nesse sentído a entrevista que constitui o apêndice de Se queslo èun
iwmo, Torino: Einaudi, 1989, p.338, onde o escritorafirma: "Ao papel de
juiz prefiro o de testemunha: tenho que dar um testemunho, o dascoi
sas que sofn e vi. Os meus livros não são livros de história: ao escrevê-los,
limitei-me rigorosamente a referir os fatos de que tinha experiênciadi
reta, excluindo os que soube mais tarde pelos livros oujornais".

80
elequer comunicar, semacréscimos ou deformações. Mas
só aparentemente o seu é um testemunho integral. Na
verdade, é o próprio Levi que afirma com lucidez um
aspeto não marginal da questão, que todo testemunho
se funda sobre uma falha, sobre uma lacuna:

Há também uma outra lacuna, em cada testemunho: as tes


temunhas, por definição, são sobreviventese então todos,
de qualquer modo, beneficiaram de um privilégio. Digo
isto também de mim próprio: se não fosse químico e não
soubesse um pouco de alemão, meu destino teria sido ou
tro. O destino do presocomum ninguém o contou,porque
não era materialmente possível, para ele,sobreviver. O pre
so comum foi descrito também por mim, quando falo dos
"muçulmanos": porém os "muçulmanos" não falaram.''

É a lacuna da experiência que impede à testemu


nha de poder testemunhar tudo o que efetivamente se
deu. O "muçulmano" portanto é a testemunha. O muçul
mano, no jargão do campo, é o preso que está morrendo
por desnutrição, o homem que está desistindo, literalmen
te, de que sempre Primo Levi nos dá uma poderosíssima
imagem-documento que mostra como essa testemunha
integral representa não só o confim entre a vida e a mor
te, mas marca o limiar entre o homem e o não homem

Eles povoam a minha memória com sua presença sem ros


to, e se eu pudesse resumir numa imagem todo o mal do
nosso tempo, escolheria essa imagem, que me é familiar:
um homem descarnado, de cabeça baixa e ombros curva
dos, em cujo rosto e em cujos olhos não se possa ler rasto
de pensamento.

Recentemente o filósofo italiano Giorgio Agamben,


a que se deve também a edição crítica da obra de Walter

" LEVI, P. Le parole, il ricordo. Iasperanza, cit., p.2I5.


" Idem, Se qtiesto...cii., p.82.

81
Benjamin, publicou um ensaio impressionante, Quelche resta
di AtLschwiíz (1998) que se propõe interpretar não como
foi possível que isso acontecesse, mas o significado de Aus-
chwitz. E faz isso com uma brusca - e a meu ver muito efi
caz - mudança de paradigma: ao lado do paradigma do
extermínio introduz o paradigma do muçulmano (que
arrasta consigo a questão da testemunha, a aproximação
daquela que Levi chama a "zona cinzenta", ou seja a inédi
ta e inaudita problematízação da ética que a experiência
de Auschwitz proporciona, aquém do bem e do mal, como
zona de irresponsabilidade) o que o leva a considerar que
"antes ainda de ser o campo da morte, Auschwitzé o lugar
de uma experiência ainda impensada, onde, além da vida
e da morte, o judeu se transforma em muçulmano, e o ho
mem em não-homem".'®
O que explica de algum modo os títulos dos dois
principais livros-testemunho sobre o extermínio que pare
cem decorrer dessas mesmas considerações: E isto um ho
mem'? de Primo Levi e A Espécie humana de Robert Antei
me, que se semantizam não no sentido de mostrar o que é
humano e o que não o é, mas, pelo contrário, atestam que
se perdeu qualquer possibilidade de distinguir de forma
clara entre humano, e inhumano.'^ Consideração terrível

Àdemarcação dessa "zona cinzenta", P. Levi dedica um importan


te capítulo de Os afogados e os sobreviventes a que se remete cf. R Levi I
sommersL..ci\.., p.24-52
AGAMBEN, G. Quelcheresta...c\\.., p.47.Sobre a duplicidade, presen
te na reflexão de Agamben, do campo como lugar de uma situação
extrema, mas ao mesmo tempo lugar que revela a verdade de situa
ções normais, veja-se T, Todorov, Face à 1'exlrême (ed.or.l991) ed.it. Di
fronte aWeslremo, tr.de E.K. Imberciadori. Milano: Garzanti,1992. p.275.
" Cf. ao propósito a citada entrevista do próprio Levi quando afirma:
"Certamente o título desse livro {Se questo è un uomo) é expressivoa esse
respeito: não é mais homem nem um nem outro. Havia uma desumani-
zação em ambos os lados: por um dos lados sofrida, pelo outro mais ou
menos escolhida". (Leparole,il ricordo,lasperanza,cit.,p.216e/)assím).

82
do ponto de vista étdco (marcando aliás o colapso de qual
quer ética), mas a infinita destruição do humano deixa al
guma coisa, um resto. Este resto é o muçulmano, a teste
munha integral. Para Levi, a testemunha "mutilada" pela
experiência, tem uma espécie de delegação por parte de
quem não pode testemunhar (eele diz que fia em nome
de) mas é uma delegação que não é dada, porque quem a
deveria dar, o muçulmano, não pode: o testemunho, nes
tes termos, é algo que decorre de um vazio (de uma lacu
na, como Levi assinalava) de uma ausência; não è que algo
Ique se queria dizer não foi dito, mas é uma impossibilida
de absoluta de dizer. E esta a possibilidade impossível que
o campo de extermínio criou e que explica o sentido da
famosa definição de Goebbels da política como "a arte de
tomar possívelo que parece impossível": sobre esses termos,
justamente sobre "o que resta", Agamben estrutura a sua
leitura, julgo eu, decisiva.'®
De fato, destas considerações surge assim uma ou
tra possibilidade de interpretação etimológica do testemu
nho e é a que decorre do termo do latim tardio auctor, que
expressa o que intervém no ato de um menor (ou de
quem, por qualquer razão, não pode emitir sozinho um
ato juridicamente válido). Nesse sentido, auctor

indica a testemunha enquanto o seu testemunho pressu


põe sempre algo - fato, coisa ou palavra - que lhe pree-
xiste, cuja realidade e força deve ser convalidadas ou cer-

'®Deste ponto de vista é central, pelo percurso que propõe, a defini


ção de Auschwitz que G. Agamben dá: "Auschwitz representa, nesta
perspectiva, um ponto de colapso histórico desses processos, a expe
riência devastadora em que o impossível vem feito transitar de força
no real. Ele é a existência do impossível, a negação mais radical da
contingência—portanto a necessidade mais absoluta. O muçulmano,
que ele produz, é a catástrofe do sujeito que dele decorre, o seu apa-
gamento como lugar da contingência e a sua manutenção como exis
tência do impossível", Quelche resta...c\i., p.137-138.

83
tificadas [...] O testemunho é, portanto, sempre um ato
de "autor", implica sempre uma dualidade essencial, em
que uma insuficiência ou uma incapacidade são integra
das e tornadas válidas.'®

Essas considerações abrem brechas muito interes


santes e complexas. Talvez, de um certo ponto de vista,
problemáticas. Podemos observar que é pelo testemu
nho que Levi se toma escritor. Ou que as testemunhas,
como sujeitos éticos, apresentam uma ampla coincidên
cia com os poetas - os auctores por excelência - sendo
ambos sujeitos de uma desubjetivizaçào e tirando sua
autoridade do fato de poder falar em nome de uma
impossibilidade de dizer, o que os leva a fundar a sua lín
gua sobre o que resta.
Agora a propósito dessa aliança inesperada mas
plausível entre testemunhas e poetas, sempre Auschwitz,
ou o pensamento que tem desencadeado, levou a afir
mar algo diametralmente aos antípodas. Refiro-me a uma
célebre observação de Adorno (em Crítica à cultura e à
sociedade, 1949) aliás reafirmada em várias ocasiões sem
pre com tom polêmico, ou seja, que "Escrever um poe
ma após Auschwitz é um ato bárbaro". Não é mais possí
vel escrever poesias depois de Auschwitz? E como então
assumir que o testemunho decorre essencialmente de
uma impossibilidade de testemunhar, que ao realizar-se
adere a processos próximos ou idênticos aos literários,
que o testemunho é em primeiro lugar um ato da lin
guagem, justamente como a poesia, a literatura, etc.? De
recente, Jeanne Marie Gagnebin tentou explicar o apa
rente paradoxo adomiano em particular no que diz res
peito aos dois pontos antitéticos que o constituem: por

" Ibidem, p. 139-140.

84
um lado, a luta contra o esquecimento e o recalque (que
corresponde à luta contra a repetição), por outro, evi
tar que a memória do extermínio se tome um otyeto de
consumo cultural onde "o princípio de estílização artís
tico torna Auschwitz representável",^" o transforme em
mercadoria de sucesso, facilitando a sua remoção na
cultura que o gerou.
Estamos aqui na plena aporia do paradoxo, que
reivindicando a necessidade de dizer e representar, afir
ma ao mesmo tempo a sua indizibilidade, a sua irrepre-
sentabilidade. Mas não é igualmente perigoso correr os
riscos de representar o extermínio pela literatura, ou
seja, de produzir uma memória deformada, como de
silenciá-lo pela sua unicidade, ou, de podê-lo definir só
através de "eufemismos"^' que parecem a tácita aceita
ção do que se quer encobrir?
Estamos deparando com uma questão crucial do
nosso fim de século, ou seja, da legitimidade de preen
cher pelos recursos da arte a impossibilidade de repre
sentar e dizer da experiência, sobretudo se esta tem os
contornos do horror do extermínio racionalmente exe
cutado. La vita è bella de Roberto Benigni, por exemplo,
é uma operação legítima ao transformar o horror em
farsa ou pertence, como notara sempre Adorno, numa
célebre sentença do capítulo final da Dialética negativa,
àquela cultura que, depois Auschwitz, pode ser só lixo?^^
Sempre nesta linha e recuperando o sentido de
testemunha como alguém que lembra, podemos descon-

®"GAGNEBIN, Jeanne Mane. A (im)possibilidade da poesia, Cult, 23


(1999), p.51.
Do verbo grego euphémein, que significajustamente "venerar em
silêncio".
^ Cf. ADORNO, T. W. Negative Dialelik (ed.or. 1966) ed. it., Dialettica
negativa, tr. de CA. Donolo. Torino: Einaudi, 1970. p.31

85
siderar que a memória não é a totalidade mimética do
passado, mas uma síntese fragmentária, uma colagem de
cacos do ocorrido, recolocados em seu lugar - no meio
de lacunas, vazios, acréscimos - que exige uma arte, a
arte da memória - comojá bem sabiam os clássicos- para
colocar-se em seu tenso diálogo com o esquecimento
(que portanto é incindível da memória) não uma tau-
tologia mas uma tradução? Há um problema que é o da
legitimidade: na consciência que testemunhar/represen
tar pela memória sempre exige uma reelaboração até que
ponto isso pode ocorrer, até que ponto o auctor está "au
torizado" pelas testemunhas integrais que não testemu
nharão? Em sentido mais amplo estamos problematizan-
do a assim chamada "literatura (ou arte) de massacres"
(ou de guerra, ou de extermínio, ou de repressão, ou
de resistência) em seu elo msiis íntimo, da relação entre
violência e representação, entre barbárie e mimese,
como suprir a lacuna da experiência direta e integral?
Tendo de fazer um exemplo em termos literários,
cito imediatamente dois clássicos da literatura brasileira
que nos permitem enquadrar melhor a questão. O pri
meiro é Os sertões de Euclides da Cunha, cujo autor é
testemunha ocular do massacre republicano (com uma
ampla matéria Jornalística, aliás produzida diretamente
do campo de batalha) mas cuja narrativa (e língua) ro
manescas são o fruto de um enorme e consciente traba
lho estético que, no entanto, funda uma memória do
Conselheiro e Canudos que permanecerá. O segundo.
Tristefim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, na últi
ma parte sobre a repressão da Revolta da Armada (1893-

" Sobre a relação catástrofe e arte da memória ver o importante


estudo de M Seligmann-Silva, A literatura do trauma. In: Cult, 23
(1999),p.40-47.

86
94), evento não presenciado pelo personagem-testemu-
nha epônimo, mas escrito pelo autor (publicado em
1911) enquanto na cena histórica era em curso um ou
tro massacre republicano: a repressão da Revolta da
Chibata (1910). O questionamento portanto é esse: es
tamos diante de dois projetos estéticos de representação
da barbárie que criam uma memória daqueles eventos
pela ficção: é viável essa operação e quais são - se tem -
seu limites éticos? Observo isso porque foi notado, desig
nadamente a respeito dos dois romances apenas citados,
que uma característica da narrativa de massacre é que
um evento remete para outro, uma barbárie contribui a
esclarecer outra, formando "uma série que subverte a
lógica histórica do antes ou do depois".^'*
Sobre essa relação constitutiva entre factume Jictum
surge o problema do limite porque, se repararmos, o
campo é o mesmo do revisionismo que se funda sobre o
controle da memória (e do esquecimento) e trabalha
justamente na consciência da lacuna, da impossibilida
de de testemunhar, do fato da testemunha sempre pre
cisar, de qualquer modo, de um ato de autor.
Para introduzir a última problemática que gosta
ria de abordar, encerrando assim o conjunto de reflexões
sobre experiência e representação, há uma pergunta de
partida que enfoca a questão: qual é a ética necessária
para usar a memória sem cair nas armadilhas do revisio
nismo, numa palavra como representar a barbárie, ape
sar de todas as aporias miméticas, para fundar a sua

DE DECCA, E. Salvadori. Quaresma: um relato de massacre repu


blicano. In: Anos 90,8 (1997), p.55.
^ Veja-se sobre o revisionismo P. Vidal-Naquet, Les assassins de Ia mé-
moire (ed.or. 1987) ed. it Gli assassini delia memória, tr. de R.Ricci et al.
Roma: Editori Riuniti, 1993, em particular o §IV epônimo e o § 1 "Un
Eichmann di carta".

87
memória? Ou seja, é possível definir os termos de uma
ética da representação? Não para responder, mas para
mais uma vez problematizar, recorro aqui também a tex
tos literários. Propositalmente não utilizo fatos históricos
e textos brasileiros (poderia falar da literatura que sur
ge com a abertura política em 79 ou de O que isso compa
nheiro? romance e filme tentando refletir sobre a repre
sentação de uma resistência armada onde há os bons e
coitados (os estudantes) e os maus e diabólicos (os ope
rários) etc. Não o faço (deixando eventualmente isso
para a discussão) porque estou mais interessado num
caso de estudo, digamos assim leigo, em que não haja
nenhum envolvimento, ideológico, histórico ou pessoal.
Aproveito um outro evento histórico que tem a ver
com a história recente de Portugal: não só a Revolução
dos Cravos de 1974 mas, sobretudo, o massacre histórico
que a originou, isto é, a guerra colonial que Portugal
combateu na África, a partir de 1961, contra os movimen
tos nacionalistas e independentistas africanos nas colô
nias que na época, com um eufemismo à portuguesa,
eram chamadas províncias ultramarinas. Essa circunstân
cia proporciona um campo de estudo excepcional, não
só pela natureza moderna da guerra (tipo a do Vietnã)
que radicalizou sua experiência e, portanto, a sua possi
bilidade de tradução testemunhai, mas porque em jogo
tinha algo de mais complexo do que a defesa do espaço
colonial: como declamava a retórica do regime salazaris-
ta em jogo estavam cinco séculos da História de Portu
gal. Isto é, a sua modernidade se dá também porque põe
de imediato uma questão ontológica (coletiva) baseada
sobre uma pseudomemória (alimentada pela ditadura)
que é o modo da ideologia.
Dessa experiência surge, quase sincronicamente,
mas com vigor reforçado depois de 25 de abril de 1974
uma vasta literatura de índole testemunhai. As dimen-

88
sões que a guerra assumiu, no decurso dos quase treze
anos, foram táo amplas que não houve parte da socieda
de portuguesa que direta ou indiretamente não tenha
ficado afetada por ela. O espectro testemunhai da lite
ratura da guerra colonial é, portanto, muito amplo: vai
das testemunhas que foram diretamente para o campo
de batalha e assistiram e participaram do massacre em
nome de uma ideologia que abertamente contestavam
ou sentiam obsoleta ou insuficiente, até às testemunhas
indiretas, as mulheres e os homens que viveram das re
taguardas, das cidades, da metrópole um conflito que,
de qualquer modo, habitava o seu cotidiano. Trata-se em
geral, em termos narrativos, de textos freudianamente
melancólicos, que tentam elaborar uma perda, uma fa
lha, de um objeto, de um tempo, de alguém, ou da pos
sibilidade de comunicar a experiência. E interessante
notar que a maioria (pelo menos dos mais interessantes
do ponto de vista literário) se constróem sobre uma es
tética do fragmento, através de um discurso que tenta
recompor o corpo estilhaçado da experiência, ou atra
vés do monólogo com um narrador hipertrofizado, que
coagula tempos, espaços, figuras, traumas (é o caso de
Os eus deJudas de Antônio Lobo Antunes, de 1979) ou
através da colagem de fragmentos de várias temporali-
dades do passado desordenadamente remontados que,
porém, pela recomposição, fornecem uma representa
ção paradoxalmente mais coerente do que efetivamen
te ocorreu (como em Percursos de Wanda Ramos, de
1981) ou através da tentativa de compensar a falha do
testemunho, colando, sempre pela montagem, testemu
nhos que pertencem a campos opostos do conflito (afri
canos e portugueses) sempre em busca de uma totali
dade fictícia que a própria experiência não proporcio
nou (é o caso de Autópsia de um mar de ruínas de João de
Melo, de 1984). Outro elemento comum a essa literatu-

89
ra é que ao exibir essa vontade irreprimível de testemu
nhar, faz isso questionando a própria estética do roman
ce, discutindo o próprio meio da representação.
E tão importante a contribuição cognitiva que essa
literatura traz que quem quiser um dia saber o que a
guerra colonial foi e significou não poderá não transitar
por essas fontes literárias. Não foi ainda escrita uma His
tória da guerra colonial, mas há uma antologia de textos
da guerra. Os anos da guerra de João de Melo (1988,
l.ed.), que relata a guerra a partir dos textos literários,
esforçando-se por fornecer uma imagem de conjunto.
E aqui estamos num ponto nevrálgico do percurso
que talvez se explicite melhor vendo mais de perto um
romance. Que não é de uma testemunha vivencial da
guerra colonial, que não trata da guerra, que aparente
mente se afasta e muito do compromisso ético e estético
de dar autoridade à experiência de uma catástrofe. O
romance é do "nosso" Nobel,José Saramago, um dos seus
menos famosos. Manual depintura e de caligrafia^ de 1977.
E a história banal de um medíocre pintor que vive pro
fissionalmente de retratos encomendados pela alta bur
guesia lisboeta, mas que se apercebe, realizando um re
trato, que há outro retrato possível que começa a exe
cutar em paralelo. O fracasso da experiência o leva a
desistir da pintura e a passar para a escrita, onde come
ça a compor "exercícios autobiográficos", na verdade
auto-retratos. O romance, que é o relato de uma crise,
de um despertar de consciência, se constrói no trânsito
crucial da ficção para a história: da temporalidade nar
rativa na última página se passa para o tempo da histó
ria, o 25 de Abril onde a palingenesia do pintor (que
resolve seauto-retrataragora) sesobrepõe àquelado país.
Na verdade, os trânsitos do livro são multíplices: do re
trato ao auto-retrato, da biografia à autobiografia, da
percepção à idéia, da mimese platônica à mimese aris-

90
totélica, da falsidade do verdadeiro à autenticidade do
verosímil, da ficção à história e finalmente - e sinotica-
mente - da pintura à caligrafia.
Mas o trânsito crucial da obra é de fato a reflexão
teorética e estética sobre a "representação", em parti
cular sobre a possibilidade de conjugar representação
e conhecimento através da escrita. Porém, a reflexão
estética fixa-se numa conjuntura histórica crucial para
Portugal e para a sua cultura, de modo que a proble
mática da representação, da relação entre evento, ex
periência e escrita, recoloca-se se a formularmos nou
tros termos: o que significa representar não num con
texto pacífico de uma ordem histórica, estética e ideo
lógica estável, mas sobre um pano de fundo profunda
mente perturbado, de dilaceramento e crise, em 1974,
isto é, no momento da fratura histórica fundadora do
Portugal contemporâneo, a que reorienta o destino
histórico do país, reconfigura as suas coordenadas es
paciais e temporais?
E isto é levado a cabo da forma mais complexa, ou
seja, não alegorizando em termos ideológicos ou temáti
cos a indizibilidade desse momento irrepetível da Histó
ria, mas fixando-se no nó nevrálgico da irrepetibilidade
e da inefabilidade própria daquela experiência. Porque
se havia algo de precário e de incerto nesse pós-Abril,
quando a História imprimia à realidade uma aceleração
que impedia a transposição segura, que minava qualquer
certeza ontológica e abria um abismo sem fundo visível,
o da crise, era o discurso na primeira pessoa, a represen
tação e a auto-representação. Na crise pessoal do prota
gonista ou na sua palingenesia substancial, se joga algo
de mais amplo e complexo que é a pertinência e a viabi
lidade de uma ética do representar, a questão da teste
munha. No entanto, emerge de forma veemente e ine
quívoca ligada ao tema que, na fase de redemocratiza-

91
ção, abriga o risco de uma perigosa tendência revisionis
ta na historicização do passado: refiro-me à experiência
lutuosa da guerra colonial, o cadáver no armário nunca
removido nem enterrado, e que condiciona a rearticu-
lação dos poderes, das novas hegemonias e dos novos
discursos. No Manual, esse aspecto encontra o espaço de
um aceno, mas a sua essencialidade não nos impede de
lhe perceber o alcance e o valor como chave de inter
pretação do conjunto da obra:

Repetir hoje tudo isto, para que tudo viesse a ter a teste
munha que faltou: eu. Eu, português, pintor, vivo em
1973, neste Verão que está a acabar, nestejá Outono. Eu,
vivo, morrendoemÁfrica, paraonde mandei morrerou
consenti que fossem portugueses, tão mais novos do que
eu, tão mais simples, tão amanhã mais úteis do que eu,
apenas pintor. Pintor deste santo, desta Lapa, deste már
tir, deste crime e desta cumplicidade. Em 1485,Já Nico-
lò delPArca compreendera muita coisa: da sua Lamenta
ção, só aparentemente chorada sobre a morte de um deus,
pode tirar-se o Cristo e substituí-lo por outros corpos: o
corpo branco rebentado pela mina, com todo o baixo ven
tre arrancado (adeus, meu filho impossível); o corpo ne
gro, queimado a napalme, com as orelhas cortadas, algu-
res gfuardadasnum frasco de álcool (adeus Angola, adeus
Guiné, adeus Moçambique, adeus África). Não vale a
pena tirar as mulheres: não há nenhuma diferença no
choro. Pensando bem, não tenho feito muita coisa.^®

O centro da narrativa portanto não é o conteúdo


do testemunho, mas o próprio ato de testemunhar e a
própria representação, a questão clássica, portanto, da
mimese, da relação, mediada ou direta, particular ou
universal, entre obra e realidade, entre idéia e percep-

^ SARAMAGO,J. Manual depintura ecaligrafia. 4.ed. Lisboa: Caminho,


1993. p.l96.

92
ção. Mais do que escrever a nova história, o Manual de
pintura e caligrafia ataca de frente uma outra questão:
como escrever a nova história?
O que de algum modo universaliza a experiência
singular, quebrando-a e tornando-a partilhável pelos
outros: em suma, é o ato de testemunhar que se torna
testemunho.
Essa caligrafiapossui então espessura gnosiológica,
já que problematiza a história pessoal e coletiva e assim
funda uma memória que se apresenta como barreira
contra a manipulação e os riscos de revisão. O narrador
se pode tornar testemunha, problemática certamente,
mas salvaguardado pelo fato de aquilo que testemunha
se imprimir numa forma que lhe resguarda o sentido e
a capacidade de também significar fora da circunstân
cia histórica que representa.
Agora, tentando voltar para a questão que defini
crucial e que remete para o problema da legitimidade e
dos limites do autor no que diz respeito a testemunha.
Lembro, em particular, uma lúcida consideração de Paul
Ricoeur, justamente em relação à possibilidade de nar
rar o genocídio, que repõe a função de categorias como
mimese, verosimilhança, Jictio em relação com as realia
da história, quando observa "A ficção dá olhos ao narra
dor horrorizado. Dá-lhe olhos para ver e para chorar".^'
Mas se recorrer a ela pode fazer reviver o passado
na memória, pode-se afirmar também que uma diferen
ça surge entre este uso da estética no autor-testemunha
ou no revisionista. Poderíamos dizer - e espero que o
romance de Saramago que citei contribua a mostrá-lo -
que no primeiro caso o próprio discurso exibe suas pró-

" RICOEUR, R Tempset récit (ed.or. 1985) ed. it. Tempo eracconto, tr. de
G. Grampa. Milão;Jaca Book, 1988.v. III, p.290.

93
prias marcas de funcionamento. Representa e mostra a
forma —e os limites —da representação. Isto não só lhe
dá duração em termos significativos, mas continua a
mostrar a lacuna do testemunha e como ela foi preen
chida. No outro caso, este aspecto será desconsiderado
ou ocultado aos olhos do leitor.
Acho, para finalizar as minhas reflexões com uma
proposta crítica (ou seja, problemática, bem mais do que
resolutiva), que o que, então, de algum modo garante
(é auctor também, poderíamos dizer) a testemunha em
relação ao revisionista é a presença desta preocupação
ética (embora seja tão complexa a inscrição da respon
sabilidade na ética, pertencendo ela muito mais à esfera
jurídica)^® o compromisso em mostrar como a ficção
funciona no discurso, a problematização da representa
ção. Nesses termos então, também se toma mais claro o
que Primo Levi escreve em É isto um homem^ e que mais
tarde aponta como ato de nascimento do seu testemu
nho: "Escrevo o que não saberia dizer a ninguém".^^

^Como lembra sempre Agamben {Quelcheresta...cit., p.20) o gesto de


assumir a responsabilidade é efetivamente jurídico e não ético, como
confirma a origem do termo que deriva do latim spondeo, isto é, tor
nar-se garante por alguém de algo diante de alguém (de que decor
rem também outros termos, como sponsa ou sponsor). A razão etimo-
lógica, deste ponto de vista, esclarece as considerações de Levi sobre
o difícil tema do perdão para os sobreviventes de Auschwitz: "diante
da culpa, e especialmente a essa culpa, cometida contra osjudeus da
Europa, eu sinto uma prepotente necessidade de justiça, não de vin
gança". II suono e Ia mente. In: Levi, P. Conversazioni...cit., p.38.
®LEVI, P. Seque5to...cit., p.I26 e p.329.

94
GLOBALIZAÇÃO
E TRANSDISCIPLINARIDADE:
A SEGUNDA REVOLUÇÃO IDENTITÃRIA
Jacques Leenhardt

A globalização não é um fenômeno que se possa


analisar do ponto de vista só do espaço. Sem dúvida, é o
processo de extensão a todo o planeta das redes de trans
porte, de comunicação e de comércio. Mas ela ganha
uma dimensão política, econômica e social a integrar
também o fluxo dos mercados financeiros e modifica
assim também a nossa consciência do tempo.
Esta transformação do espaço e do tempo, a redu
ção dela ao que se tem chamado "a aldeia planetária",
implica a modificação do parâmetro fundador de toda

Jacques Leenhardt ésociológo e diretor de Estudos na École des Hau-


tes Études en Sciences Sociales de Paris.

95
consciência espaço-temporal. Com a invenção do que se
chama de "tempo real", isto é, com a co-presença, no
instante, de todos os atores em todos os lugares na con-
temporaneidade prática das redes de comunicação, esta
revolução do "tempo real" implica uma modificação de
parâmetros metafísicos.
As categorias com as quais nós pensamos as nossas
relações com os outros, tais como aqui/ali, endogêneo/
heterogêneo, mesmo/outro, têm perdido uma grande
parte de sua pertinência na situação globalizada. A glo
balização é, portanto, uma revolução tanto epistemoló-
gica como técnica e econômica. Na história do mundo,
ela é comparável com a do Renascimento e ou, mais do
que isso, ela é o ponto final, a sua completude.
Essa história começa com as grandes descobertas
do século XIV e XV, no momento em que o espaço cul
tural europeu descobre através de Marco Polo, a China
e o Oriente, onde uma cultura até mais desenvolvida que
aquela da Europa está florescendo, mas também onde a
Europa se abre à América, a qual ela vai rapidamente
submeter. Neste momento, Michel de Montaigne inau
gura para a Europa uma reflexão inédita sobre o tema
"o mesmo e o outro". Esta descentração inaugural da
autoconsciência européia se desenvolverá na tese do
universalismo humanista.
Sem dúvida, esta consciência tem antecedentes na
abertura intelectual de um Las Casas, que já havia reco
nhecido o valor cultural dos índios americanos. Será
preciso, entretanto, esperar a teorização da igualdade de
valor de todos os seres humanos, para que a questão do
"outro" possa ser claramente posta na sua dimensão cul
tural e política. Somente a partir deste momento será
possível para um Montesquieu ironicamente se interro
gar: "como é possível ser um persa"?

96
Será preciso mais uma etapa do processo de pla-
netarização da consciência huméma para que estas des
cobertas teóricas influam sobre o sistema prático de co
nhecimento. E no momento em que o imperialismo
colonial da modernidade industrial forja e integra seus
impérios naÁsia e na África que a etnologia, como disci
plina científica, começa a registrar e analisar as diferen
ças culturais. Para esse efeito, a sociologia dos países in
dustriais elabora um conhecimento sobre o "povo", como
o outro interno, local, no quadro da chamada "questão
social", quando não só a etnologia, mas também a litera
tura colonial, constróem um conhecimento do outro
externo, o outro colonial, que aponta para a integração
deles no mundo ocidental.
As condições históricas e epistemológicas de cada
uma destas aberturas, tal como as dos modos de conheci
mento ligados a estas, são profundamente distintas. Daí o
interesse de notar a coloração específica que afeta cada um
destes saberes na suas circunstâncias históricas e políticas.
O ainda muito recente movimento de navegação
marítima de terras incógnitas, bem como a busca de Ci-
pango, tinham, sim, como finalidade não somente a gló
ria dos reis católicos, mas também a possibilidade de abas
tecer o mercado europeu com matérias de luxo, como
as especiarias. Agora, em nível epistemológico, a chama
da "descoberta" na sua relação cognitiva aos objetos e
seres "descobertos" fica marcada pelo motivo da "curio
sidade metafísica".
•Esse modo de reconhecimento da existência do
outro, mesmo limitado, levou a cultura européia a pôr
um nome nesses seres, fosse ele arbitrário, e a dar a eles
também um lugar nas suas nomenclaturas. Na "curiosi
dade metafísica" está o simples reconhecimento do fato
de outros seres existirem além do que a tradição e os
costumes nos ensinam.

97
o espaço caraterístico desses seres no imaginário
ocidental é o gabinete de curiosidades onde todos os
fenômenos esquisitos se encontram colocados sem or
dem, liberados à curiosidade, nova atitude do espírito
levada a uma forma de pesquisa sem regras. O modo
de conhecimento que se desenvolve nas sociedades do
minadas pela exploração escravista é bem distinto. Nes
te contexto, podemos constatar a existência de um
duplo registro. De um lado, sobrevivem as formas mais
primitivas de relação ao outro, as quais levam concreta-
mente, na prática cotidiana, a tratá-lo como um animal.
Do outro lado, tomando uma distância nova dessa rea
lidade da exploração, o intelectual, o filósofo e às vezes
o teólogo desenvolvem um modo novo de conhecimen
to do outro, onde domina a idéia do progresso. Assim,
aparece a concepção da história como maturação, epi-
gênese, onde a metáfora da infância da humanidade
abre um espaço para o selvagem. Ele é o testemunho
atrasado dessa infância. Portanto, a exploração desse ser
primitivo vira problemática e dá passo a um interrogan-
te de tipo moral.
Essa atitude nutre uma vontade de compreender
a partir da qual o tema universalista se desenvolverá: to
dos os homens são criaturas de Deus. Assim, como tais,
eles são igualmente dignos objetos de conhecimento e
de evangelização.
Com a dominação imperialista aparecerá, finalmen
te, a necessidade de saber, a necessidade de um saber
prático, orientado para a eficácia. Trata-se, pois, de uma
atitude cognitiva, da qual a finalidade era apaziguar as
relações violentas provocadas pela conquista colonial
encabeçada pelas sociedades européias industriais, rela
ções que impediam o desenvolvimento harmonioso da
exploração das riquezas.

98
Assim, no plano da elaboração de um saber sobre
o "outro", a evolução da nossa cultura parece obedecer
â regra comtiana das três etapas teológicas primárias (o
índio tem alma ou é um animal?), metafísicas secundá
rias (o que é o Outro?, qual é a sua identidade? qual é a
minha, frente a esta?) e, finalmente, as positivas, no sen
tido comtiano ou científico, no quadro das quais se ela
borou o saber sociológico e etnológico.
' Ainda hbje vivemos nesse quadro epistemológico,
elaborado para o período imperialista, ou melhor, come
çamos a sair dele já que a globalização, fenômeno secu
lar, tem produzido os seus efeitos radicais.
Por isso, não é mais tempo de se interrogar sobre
tal ou tal etnia, como os etnólogos faziam, senão sobre a
idéia mesma de identidade, tal como está sendo levada
pelo discurso antropológico. Com este novo otyeto, fru
to lentamente amadurecido ao longo dos séculos, apa
rece uma interrogação radical: quais são os deuses, as
verdades, dos quais nós, ocidentais, somos os filhos,Já que
os deuses e os mundos são plurais, e, como conseqüên
cia disto, também as verdades são plurais.
Essa interrogação ressurge a partir das ciências
humanas. Michel Foucault tirou as conseqüências apa
rentemente paradoxais desta evolução, indicando que
o triunfo das ciências sociais era, ao mesmo tempo, o sin
toma da desaparição do homem ou do humanismo, en
tendido do universalismo humanista das Luzes. A morte
de Deus, ou do que lhe é equivalente, e a proliferação
dos deuses leva ao relatívismo dos valores.
Como poderemos, neste contexto epistemológico,
caracterizar o que eu chamo de "segunda revolução da
identidade" e quais são os efeitos dela sobre as ciências
humanas?
Cabe primeiro constatar que as ciências sociais es
tão em crise. A sociologia talvez ainda mais que as outras.

99
na medida em que ela havia construído o seu objeto
exatamente dentro dos parâmetros de um mundo fecha
do, de um mundo definido pela seu fechamento. A so
ciedade, tal como a sociologia a concebe, está constituí
da por um conjunto de fenômenos mais ou menos siste
matizados, quer dizer, fenômenos que reagem uns com
os outros dentro de uma matriz global fechada. Assim
concebido, o conceito da sociedade, fortemente influ
enciado pelos Estados-nação europeus da época, encon
tra-se hoje ameaçado pela emergência, dentro dele, de
agrupamentos significativamente definidos como "etni
as". Ao olhar dos sociólogos atuais, a sociedade está, por
2issim dizer, "canibalizada" pelos grupos que nascem den
tro dela, reclamando uma autonomia cada vez maior.
A crise da sociologia toca, em particular, o concei
to de sociedade como um todo, como um sistema, fecha
do. A globalização fez com que se pense que é para to
dos óbvio e palpável que a sociedade está hoje em dia
aberta, no sentido de que ela está sem defesa contra o
que vem do exterior: capital financeiro, os trabalhado
res migrantes, a cultura, a mídia. As nossas sociedades são
totalmente permeáveis. Como a sociologia e a etnologia
poderão analisar tais sociedades, elas que pensam só em
termos de recorrências, de permanências, de legalida-
des e normas, elas que têm como paradigma fundador
o princípio da identidade do ser a si mesmo, a identida
de A = A?
Já há dois séculos esta noção da identidade dos fe
nômenos sociais tinha recebido uma formulação menos
estática, através da idéia da dialética, das diferenças e das
contradições no interior do todo. Não tinha, portanto, um
começo de pensamento sobre a heterogeneidade.
Na tradição hegeliana e marxista, as contradições
constituem a identidade do objeto social na sua histori-
cidade. O que podemos formular, na linguagem marxis-

100
ta: as contradições entre interesses opostos de classes são
o modo de existência histórica das sociedades capitalis
tas. Agora, a dinâmica própria dos fatos, chamada de
materialismo histórico, constrange esta realidade a de
saparecer para dar lugar à sociedade sem classes, isto é,
sem diferenças, a qual realizará a identidade completa
da sociedade consigo.
Podemos notar aqui que é por causa deste mode
lo fechado que a esquerda marxista não chegou, na Eu
ropa, a integrar as relações coloniais e imperialistas na
análise das sociedades industriais. Para isto seria neces
sária a abertura do modelo. Como explicar, no quadro
de uma epistemologia essencialista, que o operário eu
ropeu é, ao mesmo tempo, explorado dentro do quadro
do modo de produção capitalista e explorador dentro
do sistema colonial ou imperialista onde se desenvolve
esse modo de produção? Como explicar que, por isso, a
classe operária está perdendo o seu espírito revolucio
nário? Intelectualmente difícil, tal análise está politica
mente impossível, sendo a democracia como é. Trata-se
de um desafio que poucos sociólogos e, ainda menos,
políticos querem afrontar.
A globalização nos confronta com o mesmo tipo de
problemas. Tomemos a questão da circulação globaliza
da do capital financeiro. Os europeus se queixam de que
esses meios financeiros saem da Europa para serem in
vestidos em outros países, provocando deslocações indus
triais e desemprego. Nos países em desenvolvimento, ao
contrário, as pessoas se queixam porque esses meios fi
nanceiros não vêm ou porque não ficam, quando sentem
uma situação perigosa. As pessoas acusam, pois, esses
capitais de imorais. Eles são só amorais, sem moral, quer
dizer, sem nenhuma inscrição geográfica da sua verda
de, a do lucro.

101
Tal como Pascal dizia: "Verdade deste lado dos Pi-
rineus, erro do outro lado". Num mundo globalizado,
o interesse de um grupo não pode dar um fundamen
to para uma moral, ao contrário do que ocorria no pas
sado, onde as estruturas regionais ou nacionais ofereci
am um quadro para a verdade e para o bem e para o
mal. Sendo o princípio do interesse universal, ele não
oferece uma base para uma ética do comportamento
econômico.
Destruindo as raízes locais das verdades, a globali
zação provocou uma reação de defesa que tomou a for
ma de uma afirmação compensadora da identidade.
Sendo esta um gênero, uma língua, uma crença, uma
fé ou mesmo uma característica qualquer, as nossas soci
edades vêem crescer os grupos distintos sobre a base
destas características, que reivindicam uma identidade
própria e um reconhecimento por parte da sociedade.
Essas reivindicações, que nutrem os irredentismos,
os integrismos e os racismos, têm sua origem no enfra
quecimento deis identidades coletivas que anteriormen
te dominavam. O efeito destruidor da globalização sobre
as identidades de classe, de nação e mesmo sobre as iden
tidades pessoais deixa o campo social e psicológico total
mente desorientado.
A questão da globalização está posta diante do te-
lão das ruínas das identidades.
Podemos concluir? Existem os elementos para uma
superação das angústias identitárias?
Na verdade, trata-se de renovar o nosso instrumen
to cognitivo. Trata-se de fornecer um instrumento de
conhecimento do homem que não o encaixe na sua
aparente identidade imediata. Desde sempre se sabe que
esta é uma ilusão, talvez uma estratégia para se garantir
contra o pavor, a angústia que nos assalta cada vez que
saímos do marco do conhecido, cada vez que vamos mais

102
para a frente da armadura fantasmática da equivalência
"eu = eu".
Foi o mais egoísta dos filósofos quemanalisou o que
é o "eu" e o que é o método para conhecê-lo num mun
do aberto e globalizado: JeanJacques Rousseau. Ele es
creve, no seu "Discurso sobre a origem e os fundamen
tos das desigualdades entre os homens", que ele náo vai
tentar analisar a essência do homem, encerrado entre a
natureza e a sociedade. Não por ser modesto, senão por
que esta questão remete a outra, de natureza metodoló
gica, ou seja, o homem não se conhece diretamente a si
mesmo, senão através do outro. Rousseau afirma que a
identidade do homem, se quisermos utilizar esta palavra
enganosa, encontra a sua verdade na identidade do seu
outro, humano ou animal. Para terminar com uma fór
mula aparentemente paradoxal, a identidade do homem
é a identidade do outro.
Se as ciências humanas não revisarem o seu apara
to epistemológico e metodológico de acordo com esta
evidência desconhecida, elas não poderão lidar com o
desafio da globalização e ela seguirá fazendo mudanças
ou bobagens.

103
os FILHOS DE SATÃ

Flávio Aguiar

Everybody knows the war is over,


Everybodyknows the good guyslost
Leonard Cohen

Quem olhar para os espaços da cultura e da ci


dadania no Brasil de hoje, seja qual for o espírito pro-
gramático que informe o seu olhar, não poderá esca
par da sensação paradoxal de contemplar um "movi
mento em paralisia", Como nas Bolsas de Valores, a
agitação, por vezes frenética, revela que, na verdade,
o fluxo real das virtualidades em operação está se con-

FlávioAguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de


São Paulo, diretor do Centro Angel Rama da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas.

105
gelando, e congelando os que por ali operam. Quem
achar esta imagem paradoxal demais consulte o últi
mo livro do Inferno de Dante, onde Satã aparece deti
do e em movimento: só suas mandíbulas se movem, e
as asas; o vento por estas produzido cria o gelo que
prende o anjo decaído. Isto é uma alegoria da sua
impossibilidade de transcendência, imagem que visa
reconstruir em tempos de uma nova racionalidade
humanista ascendente a unilateralidade da visão uni
tária cristã do medievo. Sem que precisemos aceitar
suas implicações filosóficas e teológicas, a sua beleza
de metáfora sem par nos ajuda a compreender, neste
mundo, o impacto emocional que sobre nós tem a
nossa particular e periférica tragédia.
Essa divina tragédia se abate sobre a vida brasilei
ra como a instauração de uma nova forma de violência,
que engloba e repõe em novo patamar de inteligibili-
dade o conjunto das outras: o espaço público que mir-
ra e o privado que não só cresce, mas cresce ás custas
do outro, e cresce e devora em medida nunca vista; o
Estado que se fllantropiza, se minimiza, mas onde se
agiganta a "solene indiferença" diante da sorte dos que
ele mesmo torna em deserdados, através de uma polí
tica consciente de exportação de empregos e de fragi
lização de todas as formas de organização coletiva e de
solidariedade social - que se chama aproximadamente
de "desregulamentação das relações de trabalho". A
nova violência, que amplia os efeitos das duas outras, e
das muitas outras que as acompanham, é propiciada
pela emergência que acompanha esse quadro de desa
gregação, de um novo discurso articulado, entre fon
tes da mídia, governo e outros arautos da nova era, para
negar não só a pertinência, mas a condição mesma de
inteligibilidade de qualquer visão, proposta ou mesmo
suspeita de caminhos ou leituras alternativas. Esse dis-

106
curso propõe o diktat de uma nova forma de tempo: ao
evolucionismo desenvolvimentísta ou ao apocalipse re
volucionário sobrepõe-se, substituindo-os, o tempo de
uma fragmentação das escolhas.
Neste novo tempo os universos temporais anteri
ores explodiram ou implodiram; é impossível visualizar
qualquer coisa de sistematicamente cumulativo de for
ças e energias que re-abram a possibilidade de uma
transcendência. Diria mais: não só é impossível; é proi
bido, e essa proibição não se apresenta mais sob as for
mas rudes do encarceramento ou da queima de livros,
mas sim do desmantelamento de perfis alternativos pela
sua condenação ao ridículo, pela exclusão do novo con
senso que deve se impor. Pensar transformações que
não sejam a do "giro parado" do capital é coisa do pas
sado; o mundo é isto aí. Cabe apenas administrar o atu
al estado da arte. Arte e cultura podem ajudar a ame
nizar a vida, tornando suportável o que poderia ser in
suportável. Se o tempo cumulativo dò esforço transcen
dente está proibido, a acumulação é possível; o trânsi
to no espaço da cultura torna-se uma verdadeira coleta
intergalática de fragmentos dispersos em aglomerações
momentâneas que, se não abrem a possibilidade da
transcendência, provocam uma espécie de expansão do
ego, dando a satisfações imediatas - para quem pode,
e o pode aí é pagar. Junto constrói-se a sensação de que
o trabalho lento da formação de uma personalidade em
cujo epicentro esteja também a consciência de sua pre
sença e responsabilidade perante o espaço coletivo
pode eficazmente ser substituído pela idéia mais sim
ples e eficaz de que o que se acrescenta à vida indivi
dual e o que se constrói como própria identidade é
aquilo que se consegue subtrair do coletivo.
Pode-se visualizar este processo em termos de
uma simples privatização de bens ou de acesso a eles

107
com um certo sentimento de exclusividade. Mas ele
opera também de outros modos, alguns de grande com
plexidade, como na construção ou reconstrução de
campos identitários. O risco que esse processo traz para
quem o opera, ou por ele deixa operar, é o da sensa
ção de anonímia. Ao contrário do processo tradicional
ncis Américas de se construírem identidades nacionais
que possibilitassem a criação de uma hegemonia de
classe, hoje vivem-se processos constantes de perda
completa de identidade. Quem é o desempregado?
Quem é o empregado, se os empregos se volatizam
numa velocidade espantosa? O que é o Brasil? Antiga
mente era um mapa sobre o qual, nos cadernos escola
res, liam-se as letras em bloco "Meu Brasil", que se pro
jetavam em direção ao leitor, como se em terceira di
mensão, e o Brasil era "o país do futuro", ou seja, algo
em formação. Foi muito freqüente - e não sem justíça
—a condenação deste mito como operante dentro de
uma construção da hegemonia das classes dominantes
no campo da cultura. Em compensação, hoje pode-se
dizer com razoável dose de (in)certeza, que o Brasil
corre o risco de tornar-se um país "sem futuro", uma
vez que neste processo à beira da anonímia coletiva
consentida perdem-se as referências da formação de seu
passado, em troca de uma retórica de integração em
processos de globalização.
Mas o risco da anonímia permanece. Para res
ponder a esta nova angústia, constroem-se outras ima
gens onde se garantem redes de identificação, virtu
ais ou não. Vivemos um momento em que já se tornou
comum, no campo da cultura, identificações de gêne
ro, de etnia e de escolhas individuais de métodos de
vida não só reivindicarem seu espaço próprio frente a
identificações como as de nação ou classe, mas sim que
rerem derrogá-las e substituí-las. No campo da vida co-

108
mum constroem-se fratrias de consumo: é o que ex
prime, por exemplo, o costume que se tornou aceito
de modo generalizado, até com orgulho se a palavra
for estrangeira, de se estamparem nas próprias roupas
os nomes dos fabricantes ou comerciantes. (Coisa que
ocorre também nas camisetas de futebol). Com isso
redefine-se a função da presença pública do corpo:
dizer que as empresas-grifes querem transformar to
dos os corpos em propagandistas de suas marcas é
apenas uma face - e pequena - do problema. A ques
tão mais profunda é que com isto cria-se para o usuá
rio uma nova marca de identificação, como pertencen
te a um nível desejável de consumo e a um grau tam
bém aceitável de identificação com estes novos proces
sos "modernos", o que, no Brasil, vem acompanhado
da curiosa expressão de que o usuário sente-se um par
ticipante do "Primeiro Mundo", e o modelo de seu
corpo passa a ser o de um carro ou televisão, que le
vam as próprias marcas estampadas.
Esse processo no campo da reflexão sobre a cul
tura levou a uma fragilização do conceito de forma
ção, que foi uma das colunas-mestras da reflexão so
bre os processos literários, artísticos e outros caracte
rísticos das sociedades emergentes, nas Américas, da
dissolução dos impérios coloniais e da sua reordena-
ção em novos blocos econômicos e políticos com con
seqüências naquelas sociedades também. Conceitos
como os de nação, de cultura nacional, de sistemas
literários nacionais vão sendo progressivamente bani
dos como obsoletos, quando não são declarados como
inadequados desde sempre. Esta crise - ou reviravol
ta, conforme o ângulo de visão do observador - da
crítica e do pensamento crítico se dá numa paisagem
literária onde proliferam amálgamas espantosos, mas
despidos, internamente, de qualquer fonte de espan-

109
to: uma literatura próxima da auto-ajuda, já descrita
por um crítico literário (V. Benedito Nunes, "Ocaso
da literatura ou falência da crítica", em Antonio Cân
dido: pensamento e militância. São Paulo: Humanitas
Publicações e Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.
p. 126-135.) como uma mistura de partes diluídas de
cristianismo, budismo, pensamentos esotéricos e fra
ses sentenciosas. Ou então obras nas quais a colagem,
a cópia da cópia da cópia, tornam-se processos avassa-
ladores Juntando parágrafos como quem desloca blo
cos na tela do computador. Esses são fenômenos do
nosso tempo; mas há uma visão que se afirma como
crítica ao buscar nivelar todos os fenômenos literári
os, rompendo distinções entre originalidade e dilui
ção, ou mesmo rompendo os limites da literatura, vis
ta como produção necessariamente elitista, em dire
ção a uma textualidade global em que tudo é válido.
Abandona-se a perspectiva, por exemplo, de qualquer
interpretação ou até mesmo de valoração de um tex
to. A busca do significado descontextualiza-se, e tor
na-se a descrição de uma rede de associações de moti
vos que estão dispersos, como num campo virtual, nas
redes da cultura universal, ou envereda-se por uma
leitura comparada onde tudo é comparável, sem me
diações pelos sistemas em que foram construídos -
nacionais ou outros - pois o campo de atuação da cul
tura é uma seara de virtualidades acessíveis. Num ou
tro procedimento característico, revogam-se cânones
constituídos e instituem-se novos diariamente, quan
do não se abandona de todo a idéia de cânone, vista
como necessariamente repressora e inibidora. O que
contextualiza essas iniciativas é o despojamento da li
teratura e da arte de sua condição de patrimônio co
letivo, forjador de uma condição de inteligibilidade
que pode ser aprofundada, revista, negada, ampliada.

110
mas que em todo caso é compartilhada. Literatura e
arte passam a ter a virtualidade de um banco de da
dos totalmente intercambiáveis, onde todas as migra
ções e trocas são possíveis, segundo quaisquer ditames
postos pelo usuário.
Uma outra maneira de se ver a questão é situar
o conceito de formação e seus correlatos - sistema li
terário nacional, cultura nacional - e ainda seus cor
relatos em outras áreas do pensamento (formação eco
nômica, formação social, por exemplo) como concei
tos fortes, pertinentes, mas carentes de apoio no con
texto. Ou seja, se num certo momento pensou-se a
história - da cultura ou outras - como parte do pro
cesso de formação de uma sociedade integradora que
superasse os entraves da herança colonial, e sua per
manência nas sociedades nacionais em construção, ou
os novos entraves excludentes construídos pela desi
gualdade incorporada ou intensificada, hoje este con
ceito tornou-se, senão obsoleto, inoperante. As classes
dominantes dessas sociedades abandonaram qualquer
perspectiva integradora, ou de formação de uma so
ciedade nacional. E os projetos alternativos estão em
crise, pondo numa crise de identidade profunda os
seus possíveis agentes. Numa palavra, o conservadoris
mo ganhou, a sociedade nacional não completará a
processo de sua formação integradora, e que se pode
fazer então é uma espécie de "memória do desencan
to" ou de "memorial da maldição".
Numa terceira vertente, busca-se repensar o pró
prio conceito de formação - sem desperdiçá-lo, nem
dispensá-lo, nem vê-lo como inoperante - dentro des
te contexto desagregador. Ou seja, parte-se da crítica
à própria tentativa de construção de um simulacro de
razão que explique a atomização das consciências na
sociedade como uma espécie de "destino natural", se-

111
não "estado natural do homem", descrevendo a bar
bárie excludente como conseqüência inevitável de um
processo de seleção imperativo, se afirma pela nega
ção da inteligibilidade de qualquer pensamento que
projete possibilidades alternativas. Não se aceita que
a vida e a organização da sociedade estejam em seu
estado definitivo; e que, portanto, pensar projetos, no
sentido forte da palavra, seja inexeqüível. Como res
posta ao impulso desagregador desse momento, bus
ca-se pensar como, nos processos de formação que ti
veram curso - e que talvez não tenham acabado, pois
a manutenção da dúvida como método de pensar é
fundamental -, deu-se o acesso, ou a emergência a
novas formas de inteligibilidade. Para isso é necessá
rio rever, ou redefinir o alcance do conceito de for
mação dos novos sistemas culturais, entre eles, por
exemplo, e como carro-chefe histórico, o literário, pois
durante muito tempo pensar o Brasil, assim como em
outras sociedades americanas, foi pensá-lo literaria-
mente. Tivemos até hoje uma predominância do pen
sar apoiando-se nos aspectos positivos e integradores
desses processos de formação, nas escolhas feitas e nas
estruturações propostas. Mas em sociedades cujos
processos de formação se deram fortemente marcados
por processos correlatos de uma dramática e intensa
transculturação, isto é, por deslocamentos e reelabo-
raçòes de elementos de culturas dominadas e domi
nantes em contínuo choque, com resultados diversos
do que os previstos ou estabelecidos nas culturas de
origem, esses processos deram-se através de permanen
tes e complexas escolhas com base em princípios de
positividade e de negatividade. Para que se fosse algo,
ou para que se incorporasse algo, era necessário deixar
de ser uma outra coisa, ou era necessário rejeitar algu
ma outra coisa. Ao lado do fades positivo dos novos

112
processos e sistemas culturais, literários e outros, de
flagrados, construíram-se as suas sombras, feitas de
esquecimentos consentidos ou impostos, e de sonhos
e projetos desfeitos, deslocados ou transformados. As
formas emergentes, portanto, só desvelam a plenitu
de dos seus significados se compreendidas neste e
frente a este complexo de escolhas conscientes e in
conscientes, reflexas ou inovadoras e as tensões que,
mesmo sem darem em formas acabadas, abriram o
caminho para a transformação. Trata-se de fazer uma
leitura inversa do mito da caverna: ao darmos momen
taneamente as costas à cegante luz do sol, poderemos
divisar a extraordinária multiplicidade das sombras.
Portanto, mesmo diante das dificuldades de hoje, pro-
põe-se a continuidade do pensar dos processos cultu
rais como processos cumulativos, e de formação, do
estabelecimento, reconhecimento de tradições pró
prias, e da ruptura com elas ou de sua aceitação, no
todo ou em parte, abrindo continuamente espaço
para que se leiam não só as realizações, mas também
os projetos - os realizados e os não realizados - e de
como construíram sua condição de inteligibilidade,
mesmo que parcial. Isto porque não se pode conde
nar a história a um fim premeditado, nem pretendê-
la exaurida pela consciência conturbada de um mo
mento de triunfo conservador.
A própria negação da história e do devir faz par
te, hoje, de um projeto: o de reduzir as possibilidades
alternativas, os sonhos, a pó e sombra. Isto assombra a
nossa consciência, formada em torno de utopias posi
tivas, que Julgávamos mais concretas do que o mundo
real. Mas cabe a nós, hoje empurrados para o mundo
das sombras, negar essa bruta con-formação de uma
realidade como se fora unívoca, despida de contradi
ções. Os rumos desse movimento podem não estar à

113
vista de nossa consciência imediata. Mas isto não quer
dizer que não existam. E se de algum lugar pode-se
espreitar a sua nova inteligibilidade, é da arte, da lite
ratura, pela crítica. Talvez então o Satã oculto possa
começar a de fato mover-se, com conseqüências im
previsíveis.
A decorrência prática mais visível desse tipo de
proposição é a de se verificar quais os novos elemen
tos que devem compor o universo dos processos edu
cativos hoje em curso, por onde se dá uma das veicu-
lações básicas do processo formativo no campo da cul
tura, em todas as suas acepções, da absolutamente in
dividual à mais abrangente do ponto de vista coletivo.
Nossa hipótese é a de que mesmo em suas versões crí
ticas, a nota dominante desses processos é ainda a ca
racterização dos elementos de positividade por eles
determinados como resultante. Assim, por exemplo,
ao se estudar a Guerra de Canudos pode-se fazer a
denúncia do massacre perpetrado pelas tropas a man
do do governo; estuda-se pouco o que a comunidade
lá constituída buscou de foto como alternativas à or
dem triunfante, e que processos, por meios artísticos
e de outros tipos de difusão, a existência daquele pro
cesso ainda estimula, mesmo que com deformações e
deslocamentos, aliás, inevitáveis. Nesse caminho bus
ca-se a interação, performativa e de diálogo crítico,
com outros espaços de formação e difusão culturais na
sociedade brasileira, quais sejam, os da mídia e dos
novos meios que ela põe à disposição.

114
UMA CRISE DA HISTÓRIA?
AHISTÓRIA ENTRE NARRAÇÃO
E CONHECIMENTO*

Roger Chartier

"À beira do penhasco": esta imagem com a qual Mi-


chel de Certeau caracterizou o trabalho de Michel Fou-
cault' permite formular, de uma maneira quiçá mais ade
quada, que o diagnóstico de crise, muitas vezes proposto,
com relação á história,^ suas incertezas e tensões que carac-

Roger Chartier é historiador e diretor de Estudos na École des Hautes


Etudes en Sciences Sociales/Paris.
' Traduzidopor LuísAugustojunges Lopes e Ruben Daniel Mendez Cas-
tiglioni.
' CERTEIAU, Michel de. Microtechniques et discours panoptique: un
quiproquo. In: Hisloireelpsychanalyse entre science etJiclion. Paris: Gallimard,
1987.p.37-50 (Tr. Historia ypsicoanálisis entre cienàayficcióru México: Uni-
versidad Iberoamericana, 1995. p.27-37.)
' NOIRIEL, Gérard. Surta "crise"de fhistoire. Paris: Belin, 1996. (Tr. Sobre
Ia crisisde Ia historia Madrid: Cátedra, 1997.)

115
terizam nos dias de hoje a disciplina. Aos impulsos otimis
tas e conquistadores da "nova história" ocorreram, com efei
to, um tempo de dúvidas e de questionamentos. Esta in
quietude amplamente compartilhada tem diversas razões
já bem conhecidas e comentadas:^ a perda de confiança
nas certezas da quantificação; a renúncia às definições clás
sicas dos olyetos históricos - em particular, na tradição fran
cesa, a partir de sua dimensão territorial -, ou a crítica de
noções ("mentalidades", "cultura popular"), categoricis
analíticas (classes, classificação sócio-profissional) ou mode
los de compreensão (marxista, estruturalista, neomaltusia-
no, etc.) que eram os da historiografia dos anos 60 e 70.
Essa crise da inteligibilidade histórica teve duas con
seqüências. Em primeiro lugar, tirou da história sua posi
ção federativa no campo das ciências sociais. Não apenas na
França, mas também em toda a historiografia européia e
norte-americana, os dois programas sucessivos dos Annales
(nos anos 30, o programa governado pela história econô
mica e social, nos anos 70, o programa identificado com a
antropologia histórica) foram os que conferiram à história
o papel de pedra angular no encontro entre as diversas
ciências sociais. Já não é assim hoje em dia. Em segundo
lugar, o tempo das dúvidas e dos questionamentos é tam
bém um tempo de dispersão: todas as tradições historiográ-
ficas perderam sua unidade, todas se frag^mentaram entre
perspectivas diversas, às vezes contraditórias, que multipli
caram os oljetos de investigação, os métodos, as "histórias".''

' BOUTIER,Jean, yJULIA, Dominique.(ed.) Passés recomposés. Champs


elchantiers deVhistoire. Paris:ÉditionsAutrement, 1994.
*BÉDARIDA, François (ed.). ühisloiwet lemélierd'hislorien enFrance 1945-
1995. Paris: Éditions de IaMaison desSciences de rHomme, 1995; AP-
PLEBY, Joyce; HUNT, Lynn; JACOB, Margaret. Telling lhe Truíh about
Hislory. NewYorkand London: W.W. Norton and Company, 1994. (Tr.
La verdadsobre Iahistoria. Santíago de Chile:Editorial Andres Bello, 1998.)

116
Diante do retrocesso dos modelos explicaüvos in
ternacionais, uma primeira e forte tentação é o retomo
ao "arquivo", ou seja, quaisquer que sejam os documen
tos que registram as palavras singulares dos atores histó
ricos consideradas, como sempre, mais ricas e comple
xas do que o historiador, analisando-as, pode escrever a
seu propósito. Desaparecendo por trás da palavra do
outro, o historiador tenta libertar-se da postura que her
dou de Michelet e que, segundo Jacques Rancière, con
siste em "fazer falar os pobres fazendo-os calar, em fazê-
los falar como mudos".®
Há ainda algo paradoxal nessa vontade do histo
riador de desvanecer-se por trás das palavras dos mor
tos em um tempo em que, pelo contrário, se afirmam
a reivindicação de sua subjetividade, a presença do "eu"
no discurso histórico e as tentações da "ego-história".®
Mas a contradição é somente aparente. Como escreve
Arlette Farge, dar a ler as palavras dos atores não é de
nenhuma maneira "copiar o real". Por suas eleições,
suas seleções, suas exclusões, o historiador atribui um
sentido novo às palavras que tira do silêncio dos arqui
vos: "Recolher as palavras antigas traduz a preocupação
de introduzir as existências particulares no discurso
histórico e desenhar com estas palavras cenas que são
tantos acontecimentos".' Muda assim o sentido da cita-

®RANCIÈRE, Jacques. Les Mols de 1'hisloire. Essai de poélique du savoir.


Paris: Éditions du Seuil, 1992.p.96.
®NORA,Pierre (ed.). Essaisd'ego-hisloire. Paris: Gallimard, 1987; HORA,
Roy, y TROMBOLI,Javier (ed.). Pensar Ia Argentina. Los historiadores
hablan dehistoria y política. Buenos Aires: Ediciones EI Cielo por Asai-
to, 1994.
' FARGE, Arlette. Le cours ordinaire des chosesdans ía cité au XVIIIesiècle.
Paris: Editions du Seuil, 1994. p.9. Legoút de Varchive. Paris: Editions du
Seuil, 1989. (Tr. La Atracción dei archivo. Valencia: Ediciones Alfons el
Magnanim, 1991.)

117
sos dinâmicos (negociações, transações, intercâmbios,
conflitos, etc.) que traçam de maneira móvel, instável,
as relações sociais ou as diferenças culturais, ao mesmo
tempo que perfilam os espaços abertos às estratégias
individuais."
A partir daí, uma questão essencial, às vezes es
quecida pelos estudos micro-históricos: como articu
lar as percepções, as linguagens e as racionalidades
próprias dos atores com as interdependências desco
nhecidas por eles e que, no entanto, constrangem e
governam suas estratégias? Desta articulação depen
de a possibilidade de evitar o enfrentamento estéril
entre, por um lado, o estudo estruturalista das posi
ções e hierarquias e, por outro, a análise fenomenoló-
gica das ações e relações. Superar esta oposição entre
"física social" e "fenomenologia social" exige a cons
trução de novos espaços de investigação, nos quais a
própria definição dos delineamentos obrigue a inscre
ver os pensamentos, as intenções individuais, as von
tades particulares, dentro dos sistemas de coerção co
letivos que, ao mesmo tempo, os tornem possíveis e os
freiem. Os exemplos destas repartições inovadoras de
onde se articulam necessariamente estruturas objeti
vas e representações subjetivas seriam múltiplas —por
exemplo, o espaço de trabalho que une a crítica tex
tual, a história do livro e a sociologia cultural e que
pretende compreender como a liberdade do leitor é
sempre contida pelas coações da escrita do texto que
lê, das formas do objeto escrito que maneja ou das ca
pacidades e das normas de leitura próprias de sua co
munidade.

"CONTRERAS,Jaime. Sotos contra Riquelmes. Re^dores, inquisidoresy crip-


lojudios. Madrid: Anaya/Mario Muchnik, 1992.

120
Uma abordagem cujo traço principal é transfor
]) mar as fronteiras canônicas se encontra em muitos ou
tros campos da investigação histórica: os estudos sobre
a cidade, sobre os processos educativos, sobre a constru
ção dos saberes científicos. Estas aproximações recor
dam que as produções intelectuais e estéticas ou as
práticas sociais são sempre governadas por mecanismos
e dependências desconhecidos pelos próprios sujeitos.
E a partir de tal perspectiva que se deve compreender
a importância atribuída, às custas das noções habituais
da história das mentalidades, a um conceito como o de
representação. Seus diversos sentidos permitem, com
efeito, designar e enlaçar três grandes realidades: pri
meiro, as representações coletivas interiorizadas que
organizam os esquemas de percepção e apreciação, a
partir dos quais os indivíduos classificam, Julgam e atu
am; depois, as formas de exibição do ser social ou do
poder político que utilizam os signos e as atuações sim
bólicas - por exemplo, as imagens, os ritos ou a "estili-
zação da vida", segundo a expressão de Max Weber
finalmente, a representação por parte de representan
te (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de
uma identidade social ou de um poder dotado também
de continuidade e de estabilidade.
Inúmeros são os trabalhos que utilizaram recen
temente com ou sem a palavra esta tripla definição da
representação. Há duas razões para isso. Por uma par
te, o retrocesso da violência que caracteriza as socie
dades ocidentais entre a Idade Média e o século XVIII
e que resulta na tendência ao confisco por parte do
Estado do monopólio sobre o emprego legítimo da for
ça, faz com que os enfrentamentos baseados nos con
frontos diretos e brutais dêem cada vez mais lugar às
lutas que têm por armas e por objetos as representa
ções do outro ou de si mesmo. A violência simbólica

121
foi, assim, situada no centro de uma nova compreen
são da história da dominação colonial'^ ou das relações
entre os sexos.Por outra parte, é da aceitação ou da
rejeição das representações que propõe de si mesmo
que depende a força de um poder ou a identidade de
um grupo. A partir daí, os esforços para cruzar a his
tória das representações e dos dispositivos que preten
dem impor uma autoridade política ou uma identida
de social e a história das formas de crenças que acei
tam ou rejeitam esta imposição.'"*
O retorno dos historiadores ao arquivo, ao docu
mento citado em sua literalidade, constitui um aspecto
particular de um movimento mais amplo: a atenção nova
dada aos textos. Os historiadores perderam um pouco
de sua ingenuidade e timidez diante dos textos canõni-
cos de seus vizinhos: os historiadores da literatura, da
ciência, da filosofia. Ao mesmo tempo, em todas estas
"outras" histórias, as aproximações sócio-históricas encon
traram uma nova vitalidade depois da dominação abso
luta das perspectivas estruturalistas e formalistas.
Por exemplo, hoje em dia os postulados clássicos
da história da filosofia perderam sua hegemonia. É con
tra eles, ou seja, a definição da legitimidade dos proble
mas e dos autores plenamente "filosóficos", a partir dos
questionamentos filosóficos contemporâneos e da auto-

GRUZINSKI, Serge. La colonisaíion deVimaginaire. Sociélés indigènes et


occidentalisaíion dans le Mexique espagnol, XVIe-XVIIIe siècle. Paris: Galli-
mard, 1988. (Tr. La colonización deIo imaginaria. Sociedades indígenasy oc-
cidenlalización en elMéxico espanol, Siglos XVI-XVIII. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1991.)
" BOURDIEU, Pierre. La dominalion masculine. Paris: Seuil, 1998.
GINZBURG, Cario. / Benandanli. Stregoneria e culli agrari tra Cinque-
cenlo eSeicenío. Torino: Einaudi, 1966; MARIN, Louis. Leporlrail du roi.
Paris: Les Editions de Minuit, 1981 y Des pouvoirs de 1'image. Gloses. Pa
ris: Les Editions de Minuit, 1993.

122
nomia destes problemas, independentemente de toda
formulação histórica particular - que se construíram
novas maneiras de pensar a relação da filosofia com sua
história. Em uma tipologia clássica, Richard Roty distin
gue assim, ao lado das reconstruções voluntariamente
anacrônicas da filosofia analítica, três outras maneiras de
escrever a história da filosofia, todas plenamente históri
cas: em primeiro lugar, a Geitsgeschichte, definida como a
história da formulação das questões consideradas como
especificamente filosóficas e a história da construção do
repertório dos autores canônicos; em segundo lugar, a
"história intelectual", entendida como a história das con
dições próprias que tornam possível, de diversas manei
ras de acordo com os tempos, a prática filosófica, e, fi
nalmente, as reconstituições históricas que pretendem
estabelecer o sentido dos textos em relação ao seu con
texto de produção e recepção.'^ Esta últinia perspecti
va é, com certeza, a mais próxima da prática dos histori
adores da cultura, uma vez que se apóia na descontinui-
dade da atividade filosófica, diferenciada segundo vári
os critérios: o lugar social ou a instituição do saber onde
se exerce, as variações do repertório das questões legíti
mas e dos estilos aceitáveis, os gêneros que pode empre
gar o discurso filosófico ou as configurações intelectuais
que dão diversos sentidos aos mesmos conceitos.
Um segundo exemplo da atenção nova dada aos
textos "canônicos" reside no cruzamento entre crítica
textual e história cultural. Focaliza a aproximação das
obras literárias sobre o processo através do qual os leito-

RORTY, Richard. The Historiography of Philosophy: Four Genres.


In: RORTY, Richard; SCHNEEWIND,J. B. and SKINNER, Quentin.
(ed.) Philosophy in Hislory. Essays on theHistoriography ofPhilosophy. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1984.p.49-75. (Tr.La Filosofia enIa
historia. Barcelona: Paidós, 1990.)

123
res, os espectadores ou os ouvintes dão sentido aos tex
tos dos quais se apropriam. O delineamento não é novo
no campo da história da literatura. Ele sustentou, em
reação contra o estrito formalismo do New Criticism, to
dos os esforços críticos que procuraram distanciar ou
"tirar" a leitura do texto, considerá-la em sua autonomia
e pensar a produção da significação, seja como uma re
lação dialógica entre as proposições das obras e as cate
gorias estéticas e interpretativas de seus públicos {Rezep-
iionstheorié) yseja como uma interação dinâmica entre o
texto e seu leitor {Reader-response theory), ou ainda como
o resultado de uma "negociação" entre as obras própri
as ou as práticas comuns que são, ao mesmo tempo, as
matrizes da criação estética e as condições de sua inteli-
gibilidade (New Historicism).
Tais perspectivas perturbaram, felizmente, o so
nho dogmático do estruturalismo triunfante que remi
da o sentido dos textos ao único funcionamento, auto
mático e impessoal, da linguagem. A interpretação so
berana do crítico literário substituía, assim, à dos ato
res historicamente envolvidos na construção do senti
do. No entanto, estas perspectivas não podem satisfa
zer totalmente os critérios de um enfoque histórico dos
textos, literários ou não.
Seu primeiro limite reside no fato de que elas
consideram os discursos como se existissem em si mes
mos, fora das materialidades (quaisquer que sejam)
que são seus suportes e seus veículos. Contra esta "abs
tração" dos textos, é necessário recordar que as formas
nas quais se oferecem para a leitura, para a escuta ou
para a visão, participam também da construção de sua
significação. O mesmo texto, fixado na escrita, não é
o mesmo" se mudam os dispositivos de sua inscrição
ou de sua comunicação.

124
Um segundo limite dos enfoques que consideram
a leitura como "recepção" ou "resposta" obedece a "abs
tração" e a universalização da leitura que estas perspec
tivas operam implicitamente. Por um lado, contra as ten
tações do "etnocentrismo da leitura" (segundo a expres
são de João Hansen), é necessário recordar que são inú
meros textos antigos que não supõem como destinatá
rio um leitor solitário e silencioso. Feitos para serem di
tos ou lidos em voz alta e compartílhados em uma escuta
coletiva, investidos de uma função ritual, pensados coino
máquinas de produzir efeitos, eles obedecem as leis pró
prias da performance ou da efetuação oral e comunitária.
Foram recebidos, identificados, compreendidos a partir
de categorias e de critérios totalmente diferentes daque
les que caracterizam nossa relação com o escrito. Por este
motivo, para entendê-los, há de historizar os critérios de
classificação dos gêneros, as maneiras de ler, as represen
tações do destino e dos destinatários da obras, tais como
nos foram legados pela "instituição literária".
Por outro lado, a leitura não deve ser considerada
como um ato de puro intelecto, cujas circunstâncias e
modalidades concretas não importam; a leitura é, na
verdade, o resultado da projeção ao universal de práti
cas de ler historicamente particulares: as dos leitores le
trados e, com freqüência, profissionais de nosso tempo.
Contra esta perspectiva, é necessário recordar que a lei
tura também tem uma história (e uma sociologia) e que
o significado dos textos depende das capacidades, dos
códigos e das convenções de leitura próprios das diferen
tes comunidades que constituem, na sincronia ou na
diacronia, seus diferentes públicos. Há de recordar tam
bém, com Pierre Bourdieu, que a leitura letrada, a do
leitor sábio, distanciado e glosador da escolástica univer
sal, não é universal e que ela supõe suas próprias condi
ções de possibilidade:

125
Questionar-se sobre as condições de possibilidade da
leitura é se indagar sobre as condições sociais de possi
bilidade das situações nas quais se lê [...] e também so
bre as condições sociais de produção dos leitores. Uma
das ilusões do leitoré a que consiste em esquecer suas
próprias condições sociais de produção, em universali
zar inconscientemente as condições de possibilidade de
sua leitura.'®

Dissipar esta ilusão é justamente uma das princi


pais tarefas da história das obras literárias e das práticas
culturais.
Uma história dos textos é, portanto, a meu ver,
uma história das diferentes modalidades da apropria
ção dos discursos e muito além de todas as formas sim
bólicas (imagens, ritos, práticas do cotidiano) que plas
mam e comunicam os sistemas de representação do
mundo, do outro e do eu próprios dos indivíduos sin
gulares ou das comunidades sociais. Ela deve conside
rar, por uma parte, que o "mundo do texto", no expres
sar de Ricoeur, é um mundo de objetos e de performan
ces, cujos dispositivos e suas regras, ao mesmo tempo,
permitem e limitam a produção do sentido. Por outra,
deve ter em conta que o "mundo do leitor" é sempre o
da "comunidade de interpretação" (segundo a expres
são de Stanley Fish) à qual pertence e que é definida
por um mesmo conjunto de competências, normas, usos
e interesses. A partir daí, a necessidade de uma aten
ção redobrada: à materialidade dos textos, à corporali-
dade social e cultural dos leitores.
Em cada sociedade, certos discursos se designam
por sua distância com relação aos discursos e às práticas

BOURDIEU, Pierre. Lecture, lecteurs, lettrés, littérature. Choses di


tes. Paris: Editions de Minuit, 1987, p, 132-143. (Tr. Cosas dichas. Barce
lona: Gedisa, 1988.)

126
comuns e que são produzidos e representados em um
espaço social específico que tem instituições, hierarqui
as e apostas próprias. A história da literatura tem, por
tanto, como primeiro objeto o reconhecimento das fron
teiras, diversas segundo os tempos e os lugares, entre o
que é "literatura" e o que não pertence a ela e, assim, a
identificação dos conflitos cujo objeto é exatamente o
poder para traçar semelhantes fronteiras. A partir daí, a
definição de domínios de investigação particulares (o
que não quer dizer que sejam próprios de uma ou outra
disciplina): por exemplo, as variações dos critérios que
definiram a "literariedade" em diferentes períodos; as
instituições e os dispositivos que constituíram os reper
tórios de obras canônicas; as pegadas deixadas nas pró
prias obras pela "economia da escrita", na qual foram
produzidas (segundo as épocas, as coações exercidas pela
corte, o patronato, as academias, o mercado, etc.), ou as
categorias que construíram a "instituição literária" (bem
como também as noções de autor, obra, livro, etc.)."
Essa historização da especificidade das produções
estéticas tem por corolário o questionamento sobre as
relações que as obras mantêm com o mundo social. Lon
ge da tentação (que foi forte nos historiadores) de re
duzir os textos a um puro estatuto documental, há de
trabalhar sobre as distâncias. Distâncias entre as repre
sentações propostas pela ficção e as realidades sociais que
representam, deslocando-as para o registro da ficção e
da fábula. Distâncias entre o significado e a interpreta
ção "corretos", tais como pretende fixá-las a escrita, o
comentário ou a censura, e as apropriações plurais que
sempre inventam, deslocam,subvertem. Distâncias, fmal-

" CHARTIER, Roger. Cullureécnleet sociélé. Uordre deslivres(XTVe-XVIIIe


siècles). Paris: Albin Michel, 1996.

127
mente, entre as diversas formas de inscrição, de trans
missão e de recepção das obras.
Produzidas em uma ordem específica, as obras
fogem disso e adquirem existência; entretanto, estão
carregadas de significados que lhes atribuem seus dife
rentes públicos, às vezes em muito longa duração. Arti
cular a diferença que funda (diversamente) a especifi
cidade das produções simbólicas e as dependências
(múltiplas) que as inscrevem no mundo social: isto é,
no meu entender, a melhor formulação do encontro
necessário entre a crítica textual e a história cultural.
Trata-se, portanto, antes de mais nada, de construir um
novo espaço intelectual que obrigue a inscrever as obras
nos sistemas de coações que limitam, mzis também tor
nam possível sua produção e sua compreensão. O cru
zamento inédito de enfoques que foram, durante mui
to tempo, alheios uns aos outros (a crítica textual, a
história do livro, a sociologia cultural) pretende dar
conta de um problema fundamental: compreender
como a recepção particular e inventiva de um leitor
singular (ou de um ouvinte ou de um espectador) está
encerrada em uma série de determinações complexas
e entrecruzadas: os efeitos de sentido buscados pelos
próprios dispositivos da escrita; os usos e as apropriações
impostos pelas formas de "representação" do texto (no
escrito ou na voz, no volumen ou no codex, no manuscri
to ou no impresso, sobre o cenário ou na leitura, no li
vro ou na tela, etc.); e as competências, as categorias e
as convenções que governam a relação de cada comu
nidade com os diferentes discursos.
Estas três abordagens têm seus equivalentes em
outros campos: por exemplo, a história da ciência ou da
arte. Ilustram um retorno aos textos (ou às obras) que
os remete ao lugar social de sua produção ou destino,
que os situa no repertório dos gêneros e convenções

128
próprias à sua época, e que dá atenção às formas de sua
circulação e apropriação.
Um efeito do retomo aos textos assim entendido é
a importância recuperada pelas disciplinas emditas, ciyo
objeto é justamente a descrição e a análise das formas
materiais que veiculam os discursos. A paleografia é assim
transformada em uma história dos usos sociais da escrita'®
e a bibliography em uma sociologia dos textos'® dedicada a
reconstruir suas condições de produção, de disseminação
e de recepção. Contra a tirania das abordagens estritamen
te lingüísticas, estas disciplinas assim transformadas indi
cam que as determinações que operam no processo da
construção do sentido são múltiplas. Referem-se não ape
nas aos efeitos de sentido buscados pela escrita, mas tam
bém aos usos impostos pelas materialidades que são os
suportes dos textos e às categorias que regulam as relações
de cada comunidade com a cultura escrita. A sociologia
dos textos entendida de tal maneira se vincula estreitamen
te com o uso histórico da noção de representação, já que,
como sublinhou Louis Marin, toda representação tem
duas dimensões: uma dimensão transitivaque faz com que
a representação represente algo, e uma dimensão refle
xiva que faz com que a representação se apresente como
representando algo.^® Os dispositivos materiais dos textos
(ou dos quadros) desempenham este papel reflexivo que
caracteriza cada representação - pelo menos, na tradição
ocidental.

PETRUCCI, Armando. La scrittura: Ideolo^ae rappresentazione. Tori-


no: Einaudi, 1986; Lescritlure ultime. Ideologia delia morte estrategie dello scri-
verenella tradizione occidentale. Torino:Einaudi, Alfabetismo, escri
tura, sociedad.Barcelona; Gedisa,1999.
" MCKENZIE, D.F. Bibliography and thesociobgy oftexts. The Panizzi Lec-
tures 1985. London: Britísh Library, 1986.
^ MARIN, Louis. Opacité deIapeinture. Essais sur Iareprésentation au Quat-
trocento. Paris: Editions Usher, 1989.

129
Hoje em dia, o retorno ao arquivo e ao texto re
forçou a convicção dos historiadores de que eles também
escrevem textos. As pioneiras reflexões de Michel de
Certeau^' e o grande livro de Paul Ricoeur^^ lhes obri
garam, de boa ou má vontade, a reconhecer a pertença
da história ao gênero da narração, entendido no senti
do aristotélico de "pôr em intriga ações representadas".
A afirmação não foi fácil de aceitar para aqueles —por
exemplo, os historiadores dos Annaks - que, ao negar a
história dos fatos {Vhistoire événementielle) a favor de uma
história estrutural e quantificada, pensavam que haviam
terminado com as falsas aparências da narração e com a
enorme e duvidosa proximidade entre a história e a fá
bula. Entre uma e outra, a ruptura parecia sem solução:
no lugar que ocupavam os personagens e os heróis dos
antigos relatos, a "nova história" colocava entidades anô
nimas e abstratas; o tempo espontâneo da consciência era
substituído por uma temporalidade construída, hierar-
quizada, articulada; ao caráter auto-explicativo da narra
ção era oposta a capacidade explicativa de um conheci
mento objetivo.
Em Temps et récií (Tempo e narração), Paul Ricoeur
mostra quão ilusória era esta proclamada cesura. De fato,
toda história, inclusive a menos narrativa, ainda que a mais
estrutural, está sempre construída a partir das fórmulas
que governam a produção dsis narrações. As entidades
que dirigem os historiadores ("sociedade", "classes",
"mentalidades", etc.) são "quase personagens", dotados
implicitamente de propriedades que são as dos heróis
singulares ou dos indivíduos comuns, que conformam as

CERTEAU, Michel de. IJEcriture de llnsloire,op. cit.


®RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris; Editions du Seuil, 1983/1985.
(Tr. Tiempoy narración. Madrid: Cristiandad, 1987.)

130
coletívidades que designam estas categorias abstratas. Por
outra parte, as temporalidades históricas sustentam uma
grande dependência em relação ao tempo subjetivo: a
longa duração não é mais que uma modalidade deriva
da da colocada no conflito dos acontecimentos. Final
mente, os procedimentos explicativos da história conti
nuam solidamente ancorados na lógica da imputação
causai singular, ou seja, ao modelo de compreensão que,
no cotidiano ou na ficção, permite dar conta das deci-
;sões e das ações dos indivíduos.
Uma análiseassim, que inscreve a história na catego
ria das narrações e que identifica os parentescos fundamen
tais que unem a todos os relatos, sejam de história ou de
ficção, tem muitas conseqüências. A primeira permite con
siderar como uma pergunta mal-elaborada o debate surgi
do pelo suposto "ressurgimento da narrativa" que havia
caracterizado a história nestes últimos anos. Como poderia,
de fato, haver "ressurgimento" ou retomo ali onde jamais
houve nem partida nem abandono? Existe um deslocamen
to, mas este é de outra ordem. Tem a ver com a preferên
cia outorgada a certasformas de narrações em detrimento
de outras, mais tradicionais. Por exemplo, as "micro-histó-
rias" não empregam as mesmas construções discursivas que
as grandes narrações da história global ou que os "relatos"
estatisticos da história quantitativa.
Do anterior, surge uma segunda proposição: a neces
sidade de identificar as propriedades discursivas específi
cas da narração histórica em relação às outras. Estas tendem,
primeiro, à organização "folheada" (como escreveu de
Certeau) de um discurso que compreende em si mesmo,
sob a forma de citações, os materiais dos que pretende pro
duzir uma compreensão. Elas tendem, igualmente, aos
procedimentos de crença específicos, graças aos quais a
história pretende mostrar e garantir seu estatuto de conhe
cimento verdadeiro: citações, notas, cifras, etc.

131
Descobrir as formas discursivas através das quais se
dá o relato histórico pode conduzir a diversas tarefas inte
lectuais. As primeiras tratam de estabelecer taxonomias e
tipologias universais e de identifiCcir as figuras retóricas que
governam todos os modos possíveis da narração e da ex
plicação históricas - por exemplo, os quatro tropos da
retórica neoclássica ou as constantes que constituem
as estruturas temporais da experiência histórica e que
regem seus modos de representação.^** Outras aborda
gens, ao contrário, estão convictas das diferenças que ca
racterizam como os historiadores que pertencem a uma
mesma "escola" mobilizam, de maneira muito diversa, a
projeção ou o desaparecimento do "eu" no discurso do
saber, o sistema dos tempos verbais, a personificação ou
não das entidades abstratas, a retórica da prova, etc.^^
Estas reflexões projetam uma questão essencial:
por que a história desconheceu por tanto tempo sua
pertença ao gênero das narrações? Esta estava necessari
amente ocultada em todos os regimes de historicidade
que postulavam uma identidade sem distância entre os
acontecimentos históricos e o discurso que se encarre
gava de restituí-los.^® Foi o caso na Antigüidade, quan
do a história era considerada como um repertório de

^ WHITE, Hayden. Melahistory. TheHisloricalhnagination in Nineteenth


Century Europe. Baltimore and London: The Johns Hopkins Universi-
ty Press, 1973. (Tr. Metahistoria. La imaginación histórica en Ia Europa dei
si^ XIX. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992.)
^^KOSELLECK, Reinhart. Erfahrungswandel und Methodenwechsel.
Eine historische historischanthropologische Skizze. In: MEIER, C. y
RÜSEN.J. (ed.) HistorischeMelhode. München, 1988. p.13-61.
^ CARRARD, Philippe. Poetics oftheNeiu History. French HistoricaíDiscour-
sefrom Braudel toChartier. Baltimoreand London: The Johns Hopkins
University Press, 1992.
^ HARTOG, François. L'art du récit historique. In: BOUTIER, Jean
yJULIA, Dominique (eds.). Passes recomposés. Champs et chantiers de
Vhistoire. Paris: Editions Autrement, 1984. p. 184-193.

132
exemplos e de modelos morais e políticos. Foi o caso com
a tradição historicista alemã do século XIX que inscrevia
à maneira hegeliana o desenrolar dos fatos históricos na
escrita historiográfica, da Geschichte na Histoire. Foi o caso
com a história "científica" que utilizava a língua dos cál
culos para assegurar que, como escreveu de Certeau, "o
passado (o que as ciências modernas rejeitaram e cons
tituíram como passado - uma coisa terminada, separa
da) se produz e se conta nela"."
Nestas perspectivas, a narração não tinha e nem
podia ter nenhum estatuto próprio, porque era anula
da nas figuras da retórica, ou era o próprio lugar em que
os acontecimentos se desenrolaram, ou era percebida
como um obstáculo à cientificidade do conhecimento.
É apenas quandoa epistemologia da coincidência se tor
nou duvidosa e quando os historiadores tomaram cons
ciência da distância que sempre existe entre o passado
e sua representação (ou no dizer de Ricoeur, "entre o
que foi um dia e o que já não é" é os discursos construí
dos para "tomar o lugar de" ou representar este passa
do) que pode começar uma reflexão sobre as caracte
rísticas comuns a todas as narrações e as singularidades
próprias às narrações que se dão como históricas.
A consciência da dimensão narrativa da história,
qualquer que seja seu objeto ou sua técnica, lançou um
desafio considerável a todos os que rejeitam uma posi
ção como a de Hayden White, que considera que tal his
tória e como a escreve o historiador não dependem nem
da realidade passada, nem das operações próprias da
disciplina. Segando ele, a eleição que faz o historiador
de uma matriz tropológica, de uma modalidade na uri-

" CERTEAU, Michel de. L'histoire, science et fiction. In: Hisloire et


psychanalyse entre science etfiction. Paris: Gallimard, 1987. p.66-96. (Tr.
Historiaypsicoanálisis entreciênciayficción, op. cit., p.51-75.)

133
didura de uma intriga, de uma estratégia explicativa é
idêntica a do romancista. Esta posição se reafirma cons
tantemente. 1974: "Em geral, houve uma renúncia a
considerar as narrações históricas como o que mais niti
damente são: ficções verbais cujos conteúdos são tão in
ventados quanto descobertos".^® 1982: "Deve encarar-se
o feito que, diante do dado histórico {thehistoricalrecord),
não existem fundamentos neste próprio dado para pre
ferir uma forma de construir seu significado em vez de
outra".^® Resulta, então, algo completamente ilusório
querer classificar ou hierarquizar as obras históricas, em
função de sua maior ou menor pertença, para dar conta
da realidade passada que constitui seu objeto. Os crité
rios de diferenciação entre elas são puramente formais
e internos ao discurso, seja que dependam da coerência
e da totalidade do relato ou que demonstrem uma cons
ciência aguçada das diversas possibilidades oferecidas
pelo uso sucessivo dos diferentes modelos tropológicos
e as narrações rivais.
Diante de seus adversários, que denunciam este
posicionamento como destrutivo de qualquer saber,
Hayden White responde que considerar a história como
uma ficção, que compartilha com a literatura as mesmas
estratégias e procedimentos, não é despojá-la de seu valor
de conhecimento, mas simplesmente considerar que
carece de um regime de verdade próprio. De fato, o
mito e a literatura são também formas de conhecimen
to: "Por acaso, alguém poderia acreditar seriamente que

^ WHITE, Hayden. Tropics ofDiscourse. Essays in Cultural Crilicism. Bal-


timore and Lx)ndon: Thejohns Hopkins UniversityPress, 1978.
«WHITE, Hayden. The Conienl of lheFonn. NarrativeDiscourse and His
torical Imaginalion. Baltimore and London: Thejohns Hopkins Univer
sity Press, 1987. (Tr. Elcontenido deIaforma. Narrativo, discurso y represen-
tación. Barcelona: Paidós, 1992.)

134
o mito e a ficção literária não se referem ao mundo real,
não dizem verdades sobre ele e não nos proporcionam
um conhecimento útil desse mundo real?".'" Engendra
do pela mesma matriz, o relato histórico desenvolveria o
mesmo tipo de conhecimento que as ficções narrativas.
Contra um enfoque dessa natureza, parece-me
necessário recordar que o objetivo de um conhecimen
to específico é constitutivo da intencionalidade históri
ca em si. Este objetivo fundamenta as próprias operações
da disciplina: construção de dados, produção de hipó
tese, crítica e verificação de resultados. Ainda que se
escreva em forma "literária", o historiador não faz litera
tura, e isso por causa do fato de sua dupla dependência.
Dependência em relação ao arquivo, portanto, em rela
ção ao passado do qual este é a pegada. Como escreveu
Pierre Vidal-Naquet:

o historiador escreve e esta escrita não é nem neutra nem


transparente. Ela se molda sob as formas literárias, certa
mente sob as figuras da retórica [...] Quem lamentará que
o historiador tenha perdido sua inocência, que se deixe
tomar como otyeto, que se tome a si mesmo como oly eto?
Mas se o discurso histórico não se vinculasse através de tan
tos intermediários como se queira, ao que chamaremos, na
falta de outra coisa, de realidade, estaremos sempre no dis
curso, mas este discurso deixaria de ser histórico.'^

Dependência, continuando, em relação aos crité


rios de cientificidade e ás operações técnicas relativas a
seu "ofício". Reconhecer suas variações não implica.

WHITE, Hayden. Figuring the Nature of the Times Deceased: Lite-


rary Theory and Historical Writing. In: COHEN, R. (ed.) TheFutureof
Literary Theory. 1990.p.19-43.
VIDAL-NAQUET, Pierre. LesAssassinsde Ia mémoire. Un Eichmann de
papieret auíreséludes surle révisionnisme. Paris: La Découverte, 1987.

135
portanto, concluir que estas restrições e critérios não
existam, e que as únicas exigências que freiam a escrita
histórica são as mesmas que governam a escrita de ficção.
Essa lembrança me parece particularmente útil em
um tempo em que a vontade de afirmação ou de recon
quista das identidades perdidas ou reprimidas corre o
risco de apagar toda a diferença entre um saber históri
co controlável, verificável, universal, e as reconstruções
míticas que reforçam as memórias e as aspirações parti
culares. Como escreveu Eric Hobsbawn:

a projeção no passado dos desejos do tempo presente ou


em termos técnicos, o anacronismo é a maneira mais co
mum e fácil para criar uma história própria para satisfazer
as necessidades de grupos ou "comunidades imaginári
as", segundo a expressão de Benedict Anderson, que não
são todas exclusivamente nacionais.^^

Mas é possível resistir a esta deriva, muito perigosa


para o estatuto referencial da história, apenas reafirman
do a dimensão crítica da disciplina? Não é necessário
empreender uma reflexão mais fundamental, uma vez
que o saber histórico já não se pode pensar como uma
simples "reprodução" ou "equivalência" entre um obje
to e um discurso, entre o passado e sua representação
pela narração histórica?
E a razão pela qual Joyce Appleby, Lynn Hunt e
Margaretjacob tentaram recentemente definir uma nova
"teoria da objetividade", entendida como uma relação
recíproca entre o sujeito investigador e o objeto exteri
or que analisa —o que se poderia descrever, à maneira

HOBSBAWN, Eric. L'historien entre Ia quête d'universalité et Ia


quête d'identité, Diogène, 168, 1994, La responsabilité sociale de
rhistorien, p.52-86 (p.61).

136
de Foucault, como a constituição recíproca do otgeto do
saber pelo sujeito cognoscente e a do sujeito cognoscente
pelos saberes que o objetivam, A posição das três histori
adoras norte-americanas é a de um "realismo prático" no
qual a objetividade é compatível com a pluralidade das
interpretações e no qual "existem critérios para discri
minar entre as proposições válidas e as que não o são,
mesmo que estes critérios sejam historicamente constru
ídos e variáveis".^'^
Por sua parte, Paul Ricoeur refletiu sobre as con
dições de possibilidade de um "realismo crítico do co
nhecimento histórico". Remete-as, em primeiro lugar, à
pertença do historiador e de seu objeto ao mesmo cam
po temporal: "é um mesmo sistema cronológico que in
clui os três acontecimentos que são os princípios do pe
ríodo considerado, seu fim ou conclusão, e o presente
do historiador (ou mais precisamente o presente do
enunciado histórico)". Em segundo lugar, remete Ri
coeur as condições de possibilidade do "realismo crítico
do conhecimento histórico" à pertença do historiador e
dos atores históricos a um campo de práticas e de expe
riências que é suficientemente compartilhado para fun
damentar "a dependência da ocupação do historiador
na ocupação dos agentes históricos". Ricoeur acrescen
ta: "é, em primeiro lugar, como herdeiros que os histori
adores se situam em relação ao passado, antes de serem
os mestres artesãos dos relatos que fazem deste passado.
Esta noção de herança supõe que, de uma certa manei
ra, o passado se perpetua no presente e «issim o afeta".®'*
Pode parecer um pouco paradoxal que um his
toriador como eu, que costuma subtrair as diferenças e

APPLEBY, Joyce; HUNT, Lynn;JACOB. Margaret. TeUing lhe Truth


about Hislory, op. cit., p.259y 283.
^ RICOEUR, Paul. Histoireet rhétorique, Diogèn^ 168,op. cit, p.24-25.

137
as defasagens, ressalte a posição hermenêutica e feno-
menológica de Paul Ricoeur que postula, pelo contrá
rio, a existência de invariantes antropológicos. Mas éjus
tamente confrontando estas duas perspectivas que,
quiçá, pode entender-se como é possível a compreen
são do passado ou do outro mais além das descontinui-
dades que separam as configurações históricas e produ
zem o estranhamento.
Esta observação não é suficiente, no entanto, para
conferir à história o estatuto de um saber verdadeiro. Em
um texto a que sempre há de se voltar, Michel de Cer-
teau formulou a tensão fundamental que caracteriza a
história. Esta é uma prática "científica" produtora de
conhecimentos, mas uma prática cujas modalidades de
pendem das variações de seus procedimentos técnicos,
dos constrangimentos que lhe impõem o lugar social e a
instituição do saber na qual é exercida ou, inclusive, as
regras que necessariamente governam sua escrita. O que
pode igualmente enunciar-se assim: a história é um dis
curso no qual intervém construções e figuras que são as
da escrita narrativa, portanto, também da ficção. Contu
do, ao mesmo tempo, produz um corpo de enunciados
"científicos" se por eles se entende "a possibilidade de
estabelecer um conjunto de regras que permitam 'con
trolar' operações proporcionadas à produção de objetos
determinados".'® Nesta citação, cada palavraé importan
te: "produção de objetos determinados" remete à constru
ção de seu objeto pelo historiador e rejeita a idéia segun
do a qual o passado seria já constituído como objeto ci
entífico; "operações" indica que a investigação histórica
supõe técnicas e métodos que definem em sua especifi-

^ CERTEAU, Michel de. VEcriture de1'histoire, op. cií. (Tr. La Escritura


de Ia historia, op. cit., p.68, nota 5.)

138
cidade o próprio ofício do historiador; "rígraj" inscreve
a produção historiográfíca na ordem de um conhecimen
to verificável, compartilhado, objetivo.
O que Michel de Certeau nos convida aqui a pen
sar é o próprio da compreensão histórica. Sob quais con
dições podemos ter por coerentes, plausíveis, explica
tivas as relações instituídas entre a operação historiográ
fíca que constrói seu objeto e submete a validação de
seus procedimentos às regras da disciplina, e, por ou
tro lado, a realidade referencial que ela pretende re
presentar adequadamente? A resposta não é fácil em
um tempo em que as certezas da objetividade crítica e
a epistemologia da coincidência entre o real e seu co
nhecimento não protegem mais a história de uma in
quietude como seu regime de verdade. Ricoeur o in
dica com exatidão: "Quando se quer assinalar a diferen
ça entre ficção e história, invoca-se inevitavelmente a
idéia de uma certa correspondência entre o narrado e
o que realmente ocorreu. Ao mesmo tempo, somos bem
conscientes de que esta reconstrução é uma constru
ção distinta do curso dos acontecimentos relatados. Por
isso, muitos autores rejeitam corretamente o termo "re
presentação" que lhes parece contaminado pelo mito
de uma reduplicação termo por termo da realidade na
imagem que dela formamos. No entanto, o problema
da correspondência com o passado não se limita pela
mudança de vocabulário. Se a história é uma constru
ção, o historiador gostaria instintivamente que esta cons
trução fosse uma reconstrução".'®
E verdade que os historiadores gostariam a possi
bilidade de semelhante construção. Mas, ao mesmo tem-

RICOEUR, Paul. La realidad dei pasado histórico, Historiay grajia,


n.4,I995,p.l8S-210(p.202).

139
po, perderam suas ilusões. Sabem que devem iniciar uma
nova reflexão sobre a natureza das relações que seus dis
cursos mantêm com o real, uma vez que, como escreve
de Certeau, "a historiografia (ou seja, história e escrita)
leva inscrita em seu próprio nome o paradoxo - e quase
o oxímoro - da relação entre dois termos antinômicos:
o real e o discurso".^' Deve-se agora reformular esta re
lação problemática, paradoxal, que liga história e "gra
fia", o conhecimento do que foi e a escrita que o enun
cia do passado.
No final deste século ferido pelo retorno da bar
bárie, os sofrimentos mciis indizíveis e as múltiplas falsifi
cações do passado, pensar e praticar a história como um
conhecimento crítico são uma exigência çssencial. Te
mos que respeitá-la como historiadores, mas também
como cidadãos, segundo a expressão de Kant, como
membros da sociedade universal dos homens.

" CERTEAU, Michel de. L'Ecrilure deVhistoire, op. cü. (Tr. La Escritura
dela historia, op. cit.,p.3.)

140
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9(10t[KI€a-P(xtaA!«ge.RS
Fdne{51)33tS409a
vtndas.e(Ãxa@iâgsJx
e(ílora@tiiigib(*www.e(f1oraadrgstr
Momento especial, pois, este das fron
teiras do milênio. Situação de fecha
mento e abertura, de balanço do que
foi feito, de inventário da bagagem a
levar para um novo tempo, de desafios
e dúvidas em busca de respostas.

Tudo leva e estimula à reflexão, e é sob


este espírito qüe Fronteiras do milênio
reúne pensadores das ciências huma
nas - François Hartog, Fernando Catro-
ga, Roberto Vecchi, Jacques Leenhardt,
Hávio Aguiar e Roger Chartier - para
discutir este trânsito/passagem com to
da a sua carga simbólica.
Orjunízíiiioríi

MçoisHarto^ • .t' '

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Rokrto Vmhi
Ro^erCkrtier .'I-

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Editora
da Universidade

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