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ISSN 0102-2571

Nº 35 Nº 35 Nº 35
2017 2017 2017

Neste número
Andrey Rosenthal Schlee

Hermano Queiroz

Jurema Machado

Lia Calabre

Lucia Hussak Van Velthem

Marcia Sant’anna

Márcia Chuva

Marcos Olender

Maria Cecília Londres Fonseca

Maria Lucia Bressan Pinheiro

Mário Chagas

Milton Guran

Paulo Ormindo de Azevedo

Roberto Pontes Stanchi

Tania Andrade Lima

Yussef Daibert Salomão de Campos

Zoy Anastassakis

Iphan 1937–2017
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional nº 35 / 2017
ISSN 0102-2571

Iphan 1937–2017
ORGANIZAÇÃO: Andrey Rosenthal Schlee
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO BRASIL
Michel Temer

MINISTRO DE ESTADO DA CULTURA


Sérgio Sá Leitão

PRESIDENTE DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO


HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
Kátia Bogéa

DIRETORES DO IPHAN
Andrey Rosenthal Schlee
Hermano Queiroz
Marcelo Brito
Marcos José Silva Rego
Robson Antônio de Almeida

CHEFE DE GABINETE DO IPHAN


Rafael Arrelaro

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO IPHAN SELEÇÃO DAS IMAGENS A Revista do Patrimônio é publicada


Fernanda Pereira Andrey Rosenthal Schlee pelo Instituto do Patrimônio
Assessoria de Comunicação Histórico e Artístico Nacional, do
ORGANIZAÇÃO Autores Ministério da Cultura, desde 1937.
Andrey Rosenthal Schlee Cristiane Dias Os artigos são autorais e não
refletem necessariamente a posição
ORGANIZADORES-COLABORADORES COLABORADORES do Iphan e do organizador deste
António Miguel de Sousa Adélia Soares número, Andrey Rosenthal Schlee.
Hermano Queiroz Carolina Di Lello Silva
Yussef Daibert de Campos Glayson Nunes Instituto do Patrimônio Histórico
Ivana Cavalcante e Artístico Nacional
EDIÇÃO E COPIDESQUE Karina Monteiro De Lima SEPS 713/913, Bloco D, Edifício
Caroline Soudant Leonardo Prudente Iphan. 70390-135 - Brasília (DF)
Roberto Stanchi
REVISÃO E PREPARAÇÃO DOS TEXTOS
Gilka Lemos FOTO DA CAPA
Marcel Gautherot
DIREÇÃO DE ARTE E DIAGRAMAÇÃO
Cristiane Dias (a partir do projeto
gráfico de Victor Burton)
Iphan 1937–2017
Maria Lucia Bressan Pinheiro Mário Chagas
Trajetória das ideias preservacionistas Museus e patrimônios: por uma
no Brasil: as décadas de 1920 e 1930 13 poética e uma política decolonial 121

Lia Calabre Marcia Sant’Anna


O Serviço do Patrimônio Artístico A cidade-patrimônio no Brasil:
Nacional dentro do contexto da lições do passado e desafios
construção das políticas públicas contemporâneos 139
de cultura no Brasil 33
Maria Cecília Londres Fonseca
Paulo Ormindo de Azevedo A salvaguarda do patrimônio cultural
Patrimônio Cultural e Natural como imaterial no Iphan: antecedentes,
fator de desenvolvimento: a revolução realizações e desafios 157
silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979 45
Roberto Stanchi
Zoy Anastassakis O patrimônio arqueológico: oitenta
A cultura como projeto: Aloisio anos de delegações 171
Magalhães e suas ideias para o Iphan 65
Yussef Daibert Salomão de Campos
Márcia Chuva Desafios propostos pela Constituição
Possíveis narrativas sobre duas de 1988 ao patrimônio cultural 203
décadas de patrimônio: de 1982 a 2002 79
Milton Guran
Andrey Rosenthal Schlee e Hermano Queiroz Sobre o longo percurso da matriz
O jogo de olhares 105 africana pelo seu reconhecimento
patrimonial como uma condição
para a plena cidadania 213

Lucia Hussak vanVelthem


Patrimônios culturais indígenas 227

Jurema Machado
Feito em casa: o Iphan e a cooperação
internacional para o patrimônio 245

Tania Andrade Lima


O licenciamento ambiental no Iphan:
o socioambiente em questão 285

Marcos Olender
O afetivo efetivo. Sobre afetos,
movimentos sociais e preservação
do patrimônio 321

Acervo: Cyro Corrêa Lyra.


Kát i a B ogéa
A pr e s e nta ç ã o

Não serei o poeta de um mundo caduco. Foi no dia 13 de janeiro de 1937 que o
Também não cantarei o mundo futuro. presidente Getúlio Vargas sancionou a Lei
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
nº 378. Dava prosseguimento ao projeto
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
de modernização do Estado brasileiro,
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
reorganizando o ainda jovem Ministério da
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Educação e Saúde e criando, entre outras
instituições, o Serviço do Patrimônio
Carlos Drummond de Andrade1
Histórico e Artístico Nacional, atual
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – Iphan.

Estabelecido com a finalidade de


promover, em todo o país e de modo
permanente, o tombamento, a conservação,
o enriquecimento e o conhecimento do
patrimônio histórico e artístico nacional, o
Iphan extrapolou os limites daquilo que lhe
foi originalmente proposto.

Passados oitenta anos de sua criação, é pos-


sível olhar para o passado e perceber que mais
do que preservar ou salvaguardar os bens cultu-
rais escolhidos como referências para a Nação,
o Iphan foi capaz de, a par de imensas difi-
culdades estruturais, firmar-se como uma das
mais respeitadas instituições públicas do país e,
simultaneamente, construir uma sólida noção
1. Trecho do seu poema “Mãos dadas”, publicado pela primeira Fonte Ribeirão
vez em 1940, no livro Sentimento do mundo. do que é o patrimônio cultural do Brasil. Acervo: Iphan/C.Knepper.
Vou dar um exemplo. Na cerimônia Com tal espírito solicitei a Andrey
Iphan 1937–2017

de abertura dos XXXI Jogos Olímpicos, Rosenthal Schlee que organizasse uma
A C I O N A L

realizados na cidade do Rio de Janeiro, o edição comemorativa da tradicional Revista


Mundo assistiu, certamente surpreso, a um do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
que também está completando oitenta anos
N

belíssimo espetáculo artístico voltado para


Kátia Bogéa
R T Í S T I C O

mostrar a cultura do país anfitrião. E o que – foi Rodrigo Melo Franco de Andrade,
vimos ou ouvimos? Justamente aquilo que nosso primeiro presidente, que, ainda em
A

o Iphan vem protegendo durante oitenta 1937, a concebeu como um veículo capaz de
E

“divulgar o conhecimento dos valores da arte


I S T Ó R I C O

anos! As curvas de nossa arquitetura, a


arte geométrica brasileira, os grafismos e história do Brasil”.
indígenas, as estampas africanas e os azulejos
H

O programa a mim apresentado foi


A T R I M Ô N I O

portugueses... As matrizes do samba, o


ambicioso: a publicação simultânea de
maracatu, os bate-bolas, o bumba meu boi...
dois números da Revista. O primeiro,
As celebrações, os saberes, as formas de
retrospectivo, que olha criticamente para
P

expressão e os lugares onde são concentradas


D O

o passado da Instituição. E o segundo,


ou reproduzidas práticas culturais coletivas.
E V I S T A

prospectivo, que lança os olhos para o futuro


Tudo isso para, no final da cerimônia, do patrimônio. A exemplo do que sempre
R

reafirmar que o Brasil, com a maior floresta fez Rodrigo Melo Franco de Andrade,
e a maior reserva de biodiversidade do especialistas das mais variadas áreas foram
planeta, chama a atenção do Mundo para a convidados para assinar artigos absolutamente
necessidade urgente de promover também autorais sobre temas afetos ao Iphan. Entre os
a paz com o planeta. Ou seja, a preservação textos, como ilustrações, apenas belas imagens
integrada dos valores culturais e naturais. E de bens culturais brasileiros, sem datação ou
8 não foi isso que o Iphan sempre fez? localização. Imagens captadas pelos fotógrafos
da Repartição, profissionais que atuaram na
O Instituto tem uma vocação
ou para a Instituição ao longo de anos e que,
genuinamente pública e republicana.
assim, serão homenageados.
Preservamos e salvaguardamos o patrimônio
cultural do Brasil para o usufruto de Todos, O primeiro número apresenta-se dividido
no presente e no futuro. Enfrentamos em duas partes. Uma destinada a revisitar a
inúmeras dificuldades e idiossincrasias, e história do Iphan, das ideias preservacionistas
nos apresentamos como uma Instituição de da década de 1920 ao início de minha
Estado. Acontece que, aos oitenta anos de administração, considerando os mandatos de
existência, o próprio Instituto do Patrimônio Rodrigo Melo Franco de Andrade, Renato
Histórico e Artístico Nacional tornou-se Soeiro e Aloisio Magalhães, bem como
um patrimônio. Cabe, portanto, à Nação os períodos de 1982 a 2002 e de 2002 a
Brasileira buscar os meios que garantam a sua 2016. São seis artigos dispostos em ordem
serena continuidade e plena atuação. cronológica e de responsabilidade de Maria
Lucia Bressan Pinheiro, Lia Calabre, Paulo

Iphan 1937–2017
Ormindo de Azevedo, Zoy Anastassakis,

A C I O N A L
Márcia Chuva, Andrey Schlee e Hermano
Queiroz. A segunda parte explora grandes
temas ou desafios que a Instituição enfrentou

Kátia Bogéa
R T Í S T I C O
ou continua a enfrentar: os museus, os
centros urbanos, as referências culturais, a

A
arqueologia, as inovações da Constituição

E
Federal de 1988, o patrimônio afro-brasileiro,

I S T Ó R I C O
o patrimônio indígena, a cooperação
internacional, o licenciamento ambiental e

H
a participação cidadã. Ao todo, são mais dez

A T R I M Ô N I O
artigos, assinados por Mário Chagas, Márcia
Sant’Anna, Maria Cecília Londres Fonseca,

P
Roberto Stanchi, Yussef Salomão de Campos,

D O
Milton Guran, Lucia van Velthem, Jurema

E V I S T A
Machado, Tania Andrade Lima e Marcos
Olender. A quem agradecemos.

R
O segundo número não apresenta uma
lógica estrutural. Mas apenas uma provocação
de fundo: pensar o patrimônio no futuro.

Meu desejo é que a leitura deste número


35 da Revista permita o conhecimento do
9
que fomos capazes de fazer e uma reflexão
crítica da importância assumida pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
nos seus primeiros oitenta anos de vida,
incansavelmente, voltada à defesa do que
é de Todos e daquilo que nos identifica
como Nação.
A pr e s e nta ç ã o d a Va l e

Para a Vale, investir em cultura é uma


forma de reconhecer o que é genuíno e
tem significado para a vida das pessoas.
Contribuímos com iniciativas e projetos
que promovam a identidade da nossa gente
e seus patrimônios culturais, a conexão e o
aprendizado para o desenvolvimento.

Os oitenta anos do Iphan são motivo


de orgulho para todos nós brasileiros, que
reconhecemos e valorizamos o patrimônio
cultural.

Ao patrocinar a publicação da edição


especial da Revista do Patrimônio,
reforçamos as nossas crenças e valores, que
compartilhamos como forma de homenagear
a identidade do nosso país.

Por isso, convidamos vocês para conhecer


a história e inúmeras contribuições do Iphan Festa do Nosso Senhor
do Bomfim, Salvador
para o presente e para o futuro do nosso rico Acervo: Iphan/
Marcelo Reis.

patrimônio.

Vale
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

12
Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Mar ia Lucia Bressan Pinheiro

A C I O N A L
T RAJETÓRIA DAS IDEIAS PRESERVACIONISTAS NO B RASIL :
1920 1930

N
AS DÉCADAS DE E

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Para bem restaurar, é necessário amar e Não é tarefa fácil investigar os primeiros
entender o monumento, seja estátua, quadro ou indícios da emergência de uma sensibilidade
edifício, sobre o qual se trabalha (...) Ora, que preservacionista no Brasil, que se configuraria

P
séculos souberam amar e entender as belezas do
como a pré-história de nosso primeiro órgão

D O
passado? E nós, hoje, em que medida sabemos

E V I S T A
federal especificamente voltado à salvaguarda
amá-las e entendê-las?
do patrimônio brasileiro: o Iphan, cujos
(Boito, 2002:31).

R
oitenta anos de atividade são celebrados em
2017. Entre os vários enfoques possíveis, o
presente artigo, inspirado na exortação de
Camilo Boito na epígrafe acima, abordará o
tema a partir do mapeamento dos primeiros
e incipientes estudos sobre a arquitetura
brasileira, considerados aqui como as 13
primeiras demonstrações de interesse,
mesmo que tênue, por tais manifestações
do patrimônio cultural brasileiro. Tal
abordagem parece pertinente, também,
diante do viés arquitetônico, por assim dizer,
de que se revestiram as primeiras iniciativas
preservacionistas no Brasil, inclusive aquelas
protagonizadas no início das atividades
do Iphan – então denominado Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
Sphan.
Profeta Habacuc
A esse respeito, não seria ocioso lembrar Acervo: Copedoc/Iphan/
Marcel Gautherot.
que, nascido sob o signo da globalização, em
Grafismo Wajãpi
seu momento inicial – que podemos situar Acervo: Iphan.
na grande expansão ultramarina portuguesa no período; e dela é emblemático não só o
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

–, o Brasil acabou de completar cinco séculos descaso pelos vetustos edifícios coloniais,
A C I O N A L

desde seu descobrimento. Entretanto, foi velharias a serem derrubadas pelas “picaretas
necessário o decurso de quase trezentos regeneradoras”, mas também a escassez
anos até a emergência das primeiras atitudes de estudos específicos sobre aqueles
N
R T Í S T I C O

de afirmação de uma identidade nacional, exemplares arquitetônicos que estavam sendo


consubstanciadas nos movimentos em busca animadamente demolidos.
A

da autonomia política – destacando-se, aí, a Assim, do ponto de vista privilegiado


E

Inconfidência Mineira e Tiradentes, sua figura aqui, posição de destaque cabe ao engenheiro
I S T Ó R I C O

máxima, em 1789. português Ricardo Severo, radicado


Após a independência política, esses definitivamente no Brasil desde 1910 e
H

primeiros pendores nacionalistas foram plenamente inserido na alta sociedade


A T R I M Ô N I O

paradoxalmente sufocados pela franca paulista por matrimônio e pela sua ligação
abertura à cultura europeia em geral, e profissional com o arquiteto Ramos de
P

francesa em particular, que caracterizou o Azevedo. Severo exerceu entre nós importante
D O

século XIX – inclusive com patrocínio oficial, papel no despertar de um interesse pela
E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro

como aconteceu no episódio da Missão arquitetura brasileira dos primeiros séculos,


R

Francesa. A paulatina inserção de algumas que viria a consubstanciar-se no movimento


regiões brasileiras no mercado internacional, conhecido como Neocolonial.
através da produção de determinadas As propostas de Severo foram enunciadas
matérias-primas – o café, o algodão, a em duas conferências intituladas A arte
borracha –, facilitando intercâmbios de tradicional no Brasil (Severo, 1916:37-82).
todos os tipos, veio reforçar o processo. No A primeira, proferida em São Paulo em 20
final do século, há uma associação clara, de julho de 1914, conclamava os “jovens
14
por parte das elites brasileiras, entre valores arquitetos nacionais” a iniciar “uma nova era
culturais europeus e as noções vigentes de de Renascença Brasileira”.
modernidade e de civilização, manifestadas Nessa oportunidade, explicitando
nos costumes, nas artes, na moda, com desde logo seu entendimento da arte como
destaque para a arquitetura, capaz de “fenômeno coletivo”, Severo afirmou que “a
evocar/emular paisagens urbanas dignas das Arquitetura (...) é a mais social de todas as
metrópoles europeias. Pretendia-se esquecer, artes”, indo muito além das “obras-primas
obliterar mesmo, o passado colonial, dos artistas geniais” e “manifestando-se nos
primitivo, retrógrado, tacanho, em nome do artefatos humildes do povo”.
progresso. Progresso esse consubstanciado Seu objetivo era, claramente, demonstrar
em extensas operações de modernização e a qualidade e adequação ao meio físico da
embelezamento urbano, realizadas a partir arquitetura brasileira do período colonial
do arrasamento das áreas mais antigas das – que ele denomina Arte Tradicional – e,
cidades brasileiras. ao mesmo tempo, ressaltar suas origens
Essa é, de fato, a atitude predominante portuguesas.
Para Severo, as semelhanças climáticas pois reproduzir a própria tradição do que a

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
entre Portugal e o Brasil permitiram que as alheia”.

A C I O N A L
formas tradicionais portuguesas, decantadas Ao advogar a produção contemporânea de
de diversas correntes migratórias ao longo de uma arquitetura de base tradicional, Severo
séculos,

N
procurava afastar de sua exortação qualquer

R T Í S T I C O
laivo de “saudosismo” romântico e retrógrado,
(...) aqui se estabelecessem com naturalidade,
enraizando-se e resistindo, como na velha afirmando que

A
metrópole, à invasão das influências cosmopolitas”.

E
(...) não se intima ao artista de hoje a postura

I S T Ó R I C O
inerte da esfinge, voltada em adoração estática para
A palestra foi ilustrada com fotografias
o passado, mas sim a atitude viva do caminhante
e desenhos de exemplares da arquitetura
que, olhando o futuro, tem de seguir um caminho

H
residencial brasileira, destacando seus

A T R I M Ô N I O
demarcado pela experiência e pelo estudo do
elementos construtivos tradicionais, como passado.
telhados, beirais, janelas, portas, rótulas etc. –
Em março de 1917, evidenciando o

P
uma abordagem absolutamente fora do usual,

D O
naquele momento. Pouco usual era também sucesso de sua conferência de 1914, o

E V I S T A
a importância conferida por Severo ao casario engenheiro português foi convidado a

Maria Lucia Bressan Pinheiro


anônimo que compunha o tecido urbano palestrar perante o grêmio estudantil da

R
das cidades, em detrimento dos edifícios Escola Politécnica de São Paulo (Severo,
excepcionais. Com efeito, revelando-se leitor 1917:394-424). Aproveitou a oportunidade
atento de A lâmpada da memória, uma das e propôs a utilização, para o estudo da
Sete lâmpadas da arquitetura, de John Ruskin, arquitetura brasileira, do método de
o engenheiro afirmou: “investigação direta”, próprio da etnografia
e da arqueologia, em oposição à pesquisa
(...) há que ponderar que o caráter de uma
documental, privilegiada pelos historiadores – 15
cidade não lhe é dado por seus monumentos,
justificando-se com as seguintes palavras:
colocados em pontos dominantes, grandes praças
ou lugares históricos. Ligam esses locais as ruas e A arqueologia não é apenas o estudo da
avenidas, marginadas por casas de variado destino; antiguidade, analisada como uma ossatura
e são estas que dão a característica arquitetônica morta, ou dissecada como um cadáver em
da cidade; com efeito, o monumento é uma laboratório de anatomia. Não se prende às coisas
exceção, a casa é a nota normal da vida quotidiana do passado, como petrificações imobilizadas na
do cidadão, é como uma lápide epigráfica de sua
rocha sedimentar que é seu eterno jazigo. Estuda
ascendência e de sua história. manifestações da vida da humanidade, fases de
civilização; analisa as criações do homem como
Numa referência à recém-iniciada
integrações da coletividade, em determinado meio
construção da nova catedral de São Paulo,
e tempo. (grifo nosso)
que viera substituir a antiga matriz colonial,
Ricardo Severo não se furtou a criticar o Reiterando sua visão da arte como
caráter importado do estilo adotado – o fenômeno coletivo, transmitido pela
neogótico –, ressaltando que “Melhor fora experiência, ressaltou que, para a arqueologia,
(...) as mais rústicas ruínas têm um valor Minas, como se fosse composição do mesmo
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

máximo e o mais modesto edifício tem uma arquiteto (o “Aleijadinho”) da segunda metade do
brilhante significação, pela natureza dos século XVIII.
A C I O N A L

seus materiais, técnica construtiva, caráter


arquitetônico, época, estilo ou escola, seu destino Assim, buscando evitar preconceitos
N

e tradição. ditados pelo gosto ou pela moda, Severo está


R T Í S T I C O

entre os primeiros a destacar a originalidade


Cabe destacar que a menção à “natureza da arquitetura barroca mineira, que, para ele,
A

dos materiais” e à “técnica construtiva” era tinha


E

absolutamente inusitada, no período. A título


I S T Ó R I C O

de exemplo, Severo apresentou um “grosseiro (...) uma legitimidade tão legal quanto o
dogma clássico das ordens arquitetônicas dos
esboço” da arquitetura religiosa brasileira,
H

panteões greco-romanos. Na arte não há estilos


A T R I M Ô N I O

capaz de “orientar o estudo das artes no


privilegiados.
Brasil” segundo o método proposto.
Dos cinco tipos genéricos de edifícios Com tal visão anticonvencional da
P

religiosos que identificou, “segundo o arquitetura, Severo lançou as bases para o


D O

critério arqueológico da sua composição movimento que logo ficaria conhecido como
E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro

arquitetônica”, o primeiro tipo era composto Neocolonial e que se mostraria capaz de


R

por igrejas paulistas de grande simplicidade – promover significativa mobilização simbólica


cuja beleza, segundo Severo, “não se percebe fora dos estreitos círculos acadêmicos,
com os olhos, mas com o coração”, afirmando alcançando grande popularidade em meios
também que bastante diversificados. Tratando-se de uma
proposta ancorada na arquitetura, que exige
(...) só o culto do passado é que nos faz
perceber a linguagem das ruínas, traduzir o
para sua concretização o comprometimento
encanto e a poesia dessas grosseiras fábricas de efetivo de recursos vultosos, tal feito não pode
16
taipa, amassada com a própria terra que nos ser menosprezado.
alimenta a vida e nos dilui a morte na perpétua Curiosamente, entretanto, seu bem-
alma do universo. sucedido empenho em valorizar a arquitetura
tradicional brasileira nunca se traduziu em
Os demais tipos mereceram comentários
quaisquer veleidades preservacionistas de
mais sucintos, com exceção do terceiro
sua parte. Porém, sua contribuição parece
tipo, composto pelas igrejas ouro-pretanas
ter sido decisiva para a formação de um dos
do Rosário e de S. Francisco de Assis e pela
mais emblemáticos intelectuais brasileiros
Igreja do Carmo de São João del-Rei – casos
da primeira metade do século XX: Mário de
em que “a paixão pelas linhas curvas passa
Andrade, um jovem escritor em princípio de
dos elementos decorativos da arquitetura ao
carreira então.
próprio plano da igreja”. Severo atribuiu tal
Com efeito, em 1920, Mário escreveu
originalidade ao Aleijadinho:
uma série de artigos intitulada A arte
(...) Pode dizer-se que este tipo de plano religiosa no Brasil, claramente motivada
curvilíneo é original nessa parte do estado de pelas conferências de Severo. Nesses escritos,
Mário, várias vezes, retoma e complementa os importantes artistas de cada região, ao

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
temas abordados pelo engenheiro português, contrário da ênfase de Ricardo Severo

A C I O N A L
fazendo até mesmo pequenas retificações. É no caráter anônimo e coletivo das igrejas
fácil compreender seu entusiasmo: discorrer brasileiras, e sua filiação genética à arquitetura
sobre a arquitetura colonial brasileira,

N
portuguesa.

R T Í S T I C O
identificando técnicas construtivas, motivos Citando textualmente alguns trechos
ornamentais recorrentes ou soluções de planta da conferência do engenheiro português,

A
inovadoras – por mais sumárias que fossem as Mário também endossou com entusiasmo sua

E
análises empreendidas, quase meras descrições

I S T Ó R I C O
hipótese relativa à originalidade das plantas
– era algo inédito até aquele momento. curvilíneas mineiras, reiterando que, em
É evidente, nos artigos, a preocupação Minas,

H
A T R I M Ô N I O
de Mário com o que ele considerava a
(...) os elementos decorativos não residem só
decadência da arquitetura religiosa no início
na decoração posterior, mas também no risco e na
do século XX, diante da miscelânea de
projeção das fachadas, no perfil das colunas, na

P
estilos empregados nas novas igrejas, com

D O
forma das naves.
predominância do Neogótico. Nesse sentido,

E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro


perguntava-se: Dessa forma, o Barroco

R
Que divisar senão uma parva desorientação (...) assume a proporção dum verdadeiro estilo,
e um tresloucamento lamentável? (...) Há ainda equiparando-se, sob o ponto de vista histórico, ao
artistas cristãos, não há mais arte cristã, com Egípcio, ao Grego, ao Gótico. E é para nós motivo
normas exatas, com diretriz firme e determinada de orgulho bem-fundado que isso se tenha dado
(Andrade, 1920a:96). no Brasil (Andrade, 1920b:103).

Entusiasmou-se, portanto, com a Entretanto, tal como Severo, Mário não


17
sugestão de Severo sobre o aproveitamento chegou a manifestar qualquer preocupação
de elementos arquitetônicos coloniais quanto à preservação da arquitetura religiosa
como fonte de inspiração para a arquitetura brasileira; defendia veementemente, aliás,
residencial do período, comparando-os a “um a necessidade de renovação das igrejas
tesouro abandonado onde os nossos artistas paulistanas:
poderiam ir colher motivos de inspiração”
(Andrade, 1920a:96). Neste orgulhoso estado de São Paulo, que se
não podia, com justiça, contentar com as velhas
Apropriando-se do roteiro tipológico
igrejas, pardieiros a esfrangalhar-se, foi necessário
apresentado em 1917 pelo engenheiro
substituir tudo. Onde fomos buscar inspiração?
português, Mário identificou três centros
Em Portugal, que nos deu o que possuímos? Ou
principais de irradiação da arquitetura nos progressos dessa dádiva, realizados na vastidão
religiosa brasileira: Bahia, Rio de Janeiro do Brasil? Nada disso. Queríamos ser progressistas,
e Minas Gerais. E seus principais artistas: reformadores, cubistas, fomos buscar o que não
Chagas, Mestre Valentim e o Aleijadinho. era nosso, imitamos sem altivez, copiamos sem
Buscava, assim, individualizar os mais engenho (Andrade, 1920b:109).
Não criticava, portanto, a demolição do espanhol Antônio Garcia Moya, um
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

de templos coloniais, mas a escolha errônea projeto neocolonial de autoria do arquiteto


A C I O N A L

do estilo a ser empregado nas novas igrejas. polonês Georg Przyrembel. O Neocolonial
Pouco depois dessa série de artigos, Mário assumia indiscutivelmente, assim, foros de
inaugurou a coluna “De São Paulo” na revista modernidade.
N
R T Í S T I C O

carioca de cultura Ilustração Brasileira; na A divulgação do Neocolonial encontrou


crônica de estreia, manifestou explicitamente seu mais eloquente arauto no médico
A

seu entusiasmo pela nova tendência pernambucano José Mariano Filho, cuja
E

neocolonial: campanha pelas ideias de Ricardo Severo


I S T Ó R I C O

no Rio de Janeiro iniciou-se em 1920,


São Paulo, mais uma vez e em outro terreno,
como afirmou em várias ocasiões. Figura
H

vai glorificar-se, reatando uma tradição artística


proeminente, e polêmica, do panorama
A T R I M Ô N I O

que o Aleijadinho de Vila Rica, o gênio inculto


do portal de S. Francisco de Assis, em Ouro cultural carioca dos anos 1920 e 1930,
Preto, e da escadaria de Congonhas encetou e Mariano Filho era extremamente ativo junto
P

que nenhum ousara continuar. E Brecheret, cujas aos artistas e arquitetos do Rio de Janeiro,
D O

forças artísticas rapidamente se maturam ao calor a quem prestigiou através de inúmeras


E V I S T A

de empecilhos e rivalidades, não só renova o


Maria Lucia Bressan Pinheiro

iniciativas, valendo-se de sua fortuna e


passado em que a Bahia deu Chagas, o Rio Mestre prestígio pessoais. Foi presidente da Sociedade
R

Valentim e Minas João [sic] Francisco Lisboa,


Brasileira de Belas Artes e era muito influente
como realiza o ideal moderno de escultura, templo
junto aos órgãos de classe dos arquitetos;
onde pontificam Bourdelle, Lehmbruck, Carl
chegou a assumir o cargo de Diretor da
Millés e Mestrovic (Andrade, 1920c).
Escola Nacional de Belas Artes – Enba entre
A menção à “renovação do passado” e à 1926 e 1927. Nesse curto período, procurou
“realização do ideal moderno” em Brecheret introduzir uma disciplina sobre arte brasileira
18
prenuncia a Semana de Arte Moderna, marco no currículo da escola, proposta que não foi
do Modernismo no Brasil, que teria lugar em aprovada pela Congregação.
fevereiro de 1922 – e da qual Mário seria um José Mariano Filho conseguiu “interessar
dos principais organizadores. no movimento [de Severo] os mais formosos
De fato, em fevereiro de 1921 – espíritos da moderna geração de arquitetos
exatamente um ano antes da realização brasileiros”, entre os quais se incluía Lucio
da própria Semana – Mário elogiava Costa, além de Nereu Sampaio, Raphael
declaradamente “o glorioso estilo Galvão e Nestor de Figueiredo (Pinheiro,
Neocolonial, que um grupo de arquitetos 2011:134).
nacionais e portugueses, com o Sr. Ricardo Os contatos de Mariano Filho com esse
Severo à frente, procura lançar” (Andrade, grupo de arquitetos devem remontar aos
1921). concursos de projetos neocoloniais por ele
Não foi por acaso, portanto, que a promovidos na primeira metade da década
seção de arquitetura da Semana de Arte de 1920, os quais alcançaram razoável
Moderna incluiu, além de alguns desenhos repercussão na imprensa. Em 1924, por
exemplo, Lucio Costa foi entrevistado pelo Um aspecto sobre o qual José Mariano

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
jornal A Noite a respeito do projeto com costumava insistir era a falta generalizada

A C I O N A L
que concorrera ao Prêmio Heitor de Mello, de conhecimento a respeito da arquitetura
promovido por José Mariano Filho em 1923, colonial brasileira que imperava então,
no qual alcançara o segundo lugar (Pinheiro,

N
gerando pastiches de mau gosto. Nesse

R T Í S T I C O
2013:58). sentido, considerava que
Os esforços de divulgação do Neocolonial
(...) o programa de ação desse movimento

A
realizados por Mário de Andrade e por
[Neocolonial] consiste, antes de tudo, no

E
José Mariano Filho muito se beneficiaram

I S T Ó R I C O
reconhecimento e seleção do vocabulário
das comemorações ligadas ao Primeiro característico do estilo tradicional brasileiro”
Centenário da Independência do Brasil, (Pinheiro, 2011:141).

H
celebrado na grande Exposição Internacional

A T R I M Ô N I O
do Centenário da Independência, inaugurada A nosso ver, definiu claramente, assim, a
em setembro de 1922, na área resultante do principal contribuição do Neocolonial para a
cultura brasileira.

P
desmonte do Morro do Castelo, o antigo

D O
centro histórico do Rio de Janeiro. Coerentemente, procurou suprir a

E V I S T A
carência de estudos e de repertório sobre a

Maria Lucia Bressan Pinheiro


Em tal ambiente de exaltação nacionalista,
arquitetura brasileira através da concessão

R
o deputado pernambucano Luiz Cedro
apresentou em 1923 um projeto de lei de bolsas de viagem a jovens arquitetos ou
criando a Inspetoria dos Monumentos estudantes de arquitetura às cidades mineiras
Históricos dos Estados Unidos do Brasil. do ciclo do ouro, patrocinadas pela Sociedade
Trata-se da primeira iniciativa inteiramente Brasileira de Belas Artes – SBBA, da qual era
voltada para a preservação do patrimônio diretor. Assim foram custeadas as viagens de
arquitetônico brasileiro, contemplando Nestor de Figueiredo a Ouro Preto; de Nereu
Sampaio a São João del-Rei e Congonhas 19
imóveis públicos ou particulares, que seriam
“classificados como monumentos nacionais”1. do Campo, e de Lucio Costa a Diamantina,
Todas as igrejas que mencionou em seu todas no ano de 1924.
discurso de encaminhamento do projeto Em São Paulo, também havia esforços no
à Câmara dos Deputados, em 3/12/1923, sentido de documentar a arquitetura colonial
haviam sido comentadas por Ricardo brasileira: Ricardo Severo financiava viagens
Severo na conferência de 1917, da qual de estudo ao pintor José Wasth Rodrigues, e o
Cedro extraiu inclusive citações textuais. O engenheiro e professor Alexandre Albuquerque
deputado mencionou também seu “amigo empreendia regularmente, entre 1921 e 1925,
o Dr. José Mariano Filho” (Pinheiro, excursões a cidades coloniais com seus alunos
2011:261), evidenciando, assim, sua da Escola Politécnica de São Paulo, com o
proximidade com os círculos neocoloniais. objetivo de suprir a carência de registros de
importantes exemplares arquitetônicos.
1. Em 1920, Alberto Childe, conservador do Museu Nacional, As cidades mineiras do ciclo do ouro
apresentara um anteprojeto de lei voltado à proteção de sítios
arqueológicos. eram o principal destino desses viajantes.
Em abril de 1924, estiveram em Minas Folgamos em ver realizado o sonho do grupo
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

Gerais os estudantes cariocas bolsistas da de intelectuais paulistas que, o ano passado, fez
uma longa e proveitosa excursão às nossas cidades
A C I O N A L

SBBA, assim como Mário de Andrade e seus


históricas. Aliás, o sonho era de todos, paulistas ou
amigos modernistas – Tarsila do Amaral,
mineiros, que temos a coragem de nos preocupar
N

Oswald de Andrade e Dona Olívia Guedes com assuntos de arte nesse tempo de vida cara e
R T Í S T I C O

Penteado, entre outros – ciceroneando de revoluções caudilhescas. Em Belo Horizonte,


o escritor Blaise Cendrars, amigo e os novos bandeirantes trataram com entusiasmo
A

conterrâneo do arquiteto Le Corbusier, que de lançar as bases de uma associação que tivesse
E

por fim defender o nosso malbaratado patrimônio


I S T Ó R I C O

logo daria sua contribuição à arquitetura


artístico. A ideia floresceu. A comissão escolhida
brasileira, como sabemos. Trata-se da
pelo Sr. Mello Vianna tratará provavelmente de
chamada “Viagem de Descoberta do Brasil”,
H

estabelecer uma sociedade protetora das obras de


A T R I M Ô N I O

na qual os paulistas encantaram-se com o arte em Minas (A Revista, nº 1, 1925:46, apud


rico patrimônio mineiro e chegaram mesmo Lima, 2015:186-187).
a pensar na fundação de uma organização
P

O artigo faz menção à Comissão


D O

voltada à sua preservação (Calil, 2006).


encabeçada pelo jurista Jair Lins, criada
E V I S T A

Mas, por suas consequências futuras para


Maria Lucia Bressan Pinheiro

naquele mesmo mês de julho de 1925 pelo


a preservação no Brasil, o mais importante
R

governador do estado de Minas Gerais,


evento dessa viagem foi o encontro, em Belo
Fernando de Mello Vianna e voltada
Horizonte, entre Mário de Andrade e os
à preservação do patrimônio mineiro.
escritores e intelectuais mineiros membros
Aliás, um pouco antes, em 16/10/1924,
do Grupo Estrela, como Carlos Drummond
o poeta e deputado mineiro Augusto de
de Andrade e Gustavo Capanema (Lima,
Lima apresentara um projeto de lei com o
2015:186). Esse foi o início de amizades
objetivo específico de impedir a saída do
20 duradouras entre o escritor paulista e nomes
país de obras de arte tradicional brasileira
que assumiriam grande relevância na área
– uma questão que mobilizava a imprensa,
cultural na década de 1930, especialmente no
naquele momento.
que diz respeito à criação do Sphan. A iniciativa de Mello Vianna não obteve
As circunstâncias do encontro êxito, mas dela resultou um projeto de lei
propiciaram a inclusão de um novo tópico, bastante maduro, que mais tarde traria
além da literatura, no leque de afinidades subsídios para a elaboração do Decreto-lei
entre mineiros e paulistas: o apreço pela no 25, de 1937. Os trabalhos da comissão
arquitetura colonial mineira, que logo certamente estimularam as primeiras
assumiria contornos de preservação do medidas bem-sucedidas no âmbito da
patrimônio artístico nacional, como veremos. preservação: a criação da Inspetoria Estadual
Tais afinidades transparecem em artigo de Monumentos Históricos da Bahia,
publicado no primeiro número do periódico em 1927, e a da Inspetoria Estadual de
A Revista, lançado em julho de 1925 pelo Monumentos Históricos de Pernambuco,
Grupo Estrela: em 1928.
Como se vê, na segunda metade da feitas intervenções pontuais na Igreja do

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
década de 1920, a questão patrimonial se Rosário, na Capela de S. João e na Matriz

A C I O N A L
intensifica, sendo que, também em 1928, a do Pilar. Gustavo Barroso privilegiou as
cidade de Ouro Preto começa a aparecer no obras públicas, e não as suntuosas igrejas do
epicentro das atenções, bem como seu artista Aleijadinho, apesar das atenções que para ele

N
R T Í S T I C O
maior, o Aleijadinho. Nesse ano, o poeta se voltavam naquele momento.
pernambucano Manuel Bandeira visitou a Reforços na estrutura da Casa dos Contos

A
cidade, registrando em inúmeras crônicas – onde então funcionava uma agência dos

E
a profunda impressão que lhe causara a Correios e Telégrafos – acabaram sendo

I S T Ó R I C O
arquitetura mineira e propondo a criação de incluídos no plano de obras de Barroso.
um órgão voltado à sua preservação. Também O trabalho foi dirigido pelo “jovem e

H
dedicou um artigo ao Aleijadinho, no qual distinto engenheiro da Repartição Geral

A T R I M Ô N I O
anunciou o bicentenário de nascimento do dos Telégrafos, Epaminondas de Macedo”,
genial artista mineiro que se aproximava, recebendo elogios do então diretor do MHN

P
devendo ser comemorado em 29/8/1930. (Barroso, 1955:19).

D O
Entre 1928 e 1929, talvez inspirados por As obras realizadas por iniciativa de

E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro


Bandeira, também Mário de Andrade e Lucio Barroso em Ouro Preto entre 1928 e 1929

R
Costa dedicaram artigos ao Aleijadinho, de constituem, portanto, uma das poucas
pontos de vista bastante distintos. ocasiões em que os discursos preservacionistas
Quem também esteve em Ouro Preto em da década de 1920 se traduziram em ações
1928 foi Gustavo Barroso, diretor do Museu efetivas, a incidir na própria materialidade
Histórico Nacional – MHN, o primeiro de exemplares do patrimônio brasileiro.
museu brasileiro especificamente voltado à Registre-se, nelas, a colaboração de um
história do Brasil, criado em 1922. Barroso futuro integrante dos quadros do Iphan:
21
procurou o então governador de Minas Epaminondas de Macedo.
Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, É difícil identificar as motivações dessa
com quem mantinha relações políticas, para precoce atuação de Barroso em Ouro Preto,
convencê-lo a promover reparos na cidade mas podemos formular algumas hipóteses.
– e foi bem-sucedido na empreitada. Ficou Além da sua posição como diretor do MHN,
acertado que Antônio Carlos destinaria à guardião máximo da memória nacional, é
prefeitura “a verba de 200 mil cruzeiros para bem possível que interesses políticos tenham
as obras urgentes de Ouro Preto”, ficando guiado sua ação, já que previsivelmente
Barroso encarregado “de inspecionar, como Antônio Carlos seria eleito presidente do Brasil
técnico, os trabalhos de restauro” (Barroso, nas eleições de 1930, conforme o acordo de
1955:5-6). alternância de poder então vigente entre Minas
Dessa forma, foram feitos reparos Gerais e São Paulo, conhecido como “política
emergenciais nos chafarizes da Glória, dos do café-com-leite”. Momento politicamente
Contos, do Largo de Dirceu, de Claudio oportuno para uma reaproximação com o
Manuel e do Alto da Cruz; também foram governador mineiro, portanto.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

22
Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Luiz Santos.
Acervo: Iphan/
Ilha do Paty
Sambadeira,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
23

Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0


Essa hipótese ganha consistência diante Assim, ao mesmo tempo em que assinala
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

de outro episódio inusitado que ocorreu um a importância que a cidade de Ouro Preto
A C I O N A L

pouco depois, em setembro de 1929: a visita assumia no cenário nacional, a proposta de


dos deputados federais gaúchos João Batista Luzardo também evidencia que a preservação
Luzardo e Joaquim Francisco de Assis Brasil do patrimônio começava a ser valorizada
N
R T Í S T I C O

a Ouro Preto, em companhia do deputado como moeda de troca no jogo político.


mineiro Virgílio de Melo Franco (primo de E assim chegamos a 29/8/1930, data
A

Rodrigo Melo Franco de Andrade) e dos da comemoração do bicentenário do


E

estudantes locais Hugo Gouthier, Newton Aleijadinho, bastante noticiado em nível


I S T Ó R I C O

de Paiva e Francisco de Sá Pires. nacional, e que atraiu muitos visitantes


Menos de quinze dias depois dessa para Ouro Preto, entre eles José Mariano
H

visita, já em plena crise desencadeada pelo Filho, que pronunciou a conferência Mestre
A T R I M Ô N I O

rompimento da “política do café-com-leite”, Aleijadinho e sua obra “do púlpito da Igreja


devido ao apoio declarado de Washington de São Francisco de Assis, de Ouro Preto”
P

Luís ao candidato paulista Júlio Prestes (e (Pinheiro, 2011:277).


D O

não ao mineiro Antônio Carlos, conforme Pois foi precisamente nesse dia que o
E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro

acertado), João Batista Luzardo propôs à deputado José Wanderley de Araújo Pinho,
R

Câmara dos Deputados a formação de um membro do Instituto Histórico e Geográfico


conselho técnico para identificar sítios, da Bahia, animou-se a apresentar um projeto
monumentos e edifícios de Ouro Preto a de proteção do patrimônio histórico e
serem preservados como patrimônio da artístico nacional mais avançado do que
educação nacional. Em outras palavras, qualquer outro já proposto. Entretanto,
Luzardo propunha uma Comissão para a o projeto foi tornado sem efeito devido
preservação da ex-capital mineira (Lima, à dissolução do Congresso Nacional pela
24
2015:195). Revolução de 1930, que pôs fim também
Embora não tenha sido aprovada, à vigência da Constituição de 1891.
a proposta – que partiu de um político Reapresentado em 1935, o projeto seria
do Rio Grande do Sul, importante novamente rejeitado (MEC/Sphan/Pró-
articulador político de Vargas – assinala Memória, 1980:17).
uma inusitada aproximação entre a Câmara Evidentemente, a Revolução de 1930 teve
dos Deputados (portanto, nível federal) impacto generalizado em todas as instâncias
e as instâncias estadual e local, articulada da vida nacional. De nosso ponto de vista
em torno da preservação de Ouro Preto. específico, cabe destacar que a proeminência
O interesse do governador Antônio Carlos de Ouro Preto como patrimônio histórico e
no patrimônio ouro-pretano teria passado, artístico brasileiro não foi abalada, mas até
assim, a ser considerado um capital reforçada com a ascensão de Getúlio Vargas
político a ser utilizado na busca de uma ao poder. De fato, prestigiar a cidade somava-
aproximação do grupo varguista com os se às demais estratégias para a estabilização
políticos mineiros. do novo regime, que não podia prescindir
do apoio político mineiro. Por outro lado, a a de Gustavo Barroso – foi aprovado o

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
característica ímpar de locus da Inconfidência Decreto no 24.735, que reformulava o

A C I O N A L
Mineira assegurava a Ouro Preto uma posição regulamento do Museu Histórico Nacional
de honra no panteão da simbologia nacional, – MHN, criando o Serviço de Inspeção
sobrepondo-se a interesses regionais – o que dos Monumentos Nacionais no âmbito da

N
R T Í S T I C O
também convinha a Vargas. instituição. Esse Serviço ficou conhecido
Emblemática dessa proeminência foi a como Inspetoria de Monumentos Nacionais,

A
elevação da cidade à condição de Monumento embora nunca tenha se constituído como

E
Nacional, efetivada em 12/7/1933. De certa órgão autônomo, permanecendo sempre

I S T Ó R I C O
forma, é como se Vargas decidisse aprovar a como uma divisão do MHN.
proposta de criação de uma Comissão para a E, dois dias depois da ampliação das

H
Preservação de Ouro Preto, apresentada em atribuições do MHN, em 16/7/1934, foi

A T R I M Ô N I O
1929 pelo deputado João Batista Luzardo. aprovada a Constituição de 1934, com a
Há referências de que teria sido o inclusão do famoso artigo 148, que dispunha

P
advogado Vicente Racioppi, entusiasta do sobre a proteção do patrimônio histórico

D O
legado físico e moral da ex-capital do estado e artístico do país. Essa coincidência quase

E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro


(Lima, 2015:204-207) e figura central na exata de datas entre o Decreto-lei de

R
criação do Instituto Histórico e Geográfico de reorganização do MHN e a Carta Magna
Ouro Preto – IHG-OP, em 29/8/1931, quem brasileira muito contribuiu para conferir
sugeriu a Vargas a elevação daquela cidade à legitimidade ao recém-criado Serviço de
condição de Monumento Nacional. A esse Inspeção dos Monumentos Nacionais – que,
respeito, Rodrigo Melo Franco de Andrade na verdade, tinha muito pouco amparo legal,
faz menção a uma “sugestão propícia” na como apontou Rodrigo Melo Franco.
origem desse decreto, “a primeira lei federal Ainda no mês de julho de 1934, apenas
25
sobre a matéria”, o que parece corroborar dez dias depois da promulgação da nova
a participação de Racioppi na iniciativa Constituição, Gustavo Capanema assume a
(Andrade,1952:45-46). O advogado parece pasta da Educação e Saúde Pública – o que
ter gozado, de fato, de uma inusitada representou uma guinada decisiva quanto aos
familiaridade com Vargas, com quem teve rumos da cultura e da preservação no Brasil,
vários encontros pessoais, conforme registrado como se sabe.
no diário presidencial (Vargas, 1995). No final de 1934, poucos meses depois
Assim, apesar da naturalização do episódio de assumir o Ministério, eis que Capanema
nos estudos sobre a trajetória da preservação convida Mário de Andrade, durante “almoço
no Brasil, a patrimonialização de Ouro Preto no restaurante Albamar, Rio de Janeiro”, para
reveste-se de conotações políticas inequívocas, elaborar “um anteprojeto de lei de proteção à
a imprimir uma nova dinâmica ao processo. arte no Brasil” (Andrade, 1988:175).
De fato, quase exatamente um ano O inusitado convite nos remete ao já
depois da nova legislação, em 14 de julho de mencionado encontro de Mário de Andrade
1934 – agora por outra “sugestão propícia”, com os intelectuais mineiros do Grupo
Estrela, do qual Capanema fazia parte, nos – DC, criado provisoriamente em 1935
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

idos de 1924. Também parece indicar que (Duarte,1985:343).


A C I O N A L

Gustavo Barroso – titular do único cargo No dizer de Antonio Candido, o DC


voltado à preservação do patrimônio em nível procurava, mais do que “rotinizar a cultura”,
nacional então existente – não contava com as
N

“arrancá-la dos grupos privilegiados para


R T Í S T I C O

boas graças do novo ministro. transformá-la em fator de humanização da


Seja como for, nenhum anteprojeto maioria, através de instituições planejadas”.
A

chegou a ser elaborado, naquele momento, Tratava-se justamente da


E

como se depreende da carta, datada de


I S T Ó R I C O

(...) tentativa de Mário de Andrade e de


16/12/1934, de Mário a Carlos Drummond
Paulo Duarte para fazer da arte e do saber um
de Andrade, chefe de gabinete de Capanema
H

bem comum; para incorporar as conquistas do


à época e também ex-membro do Grupo
A T R I M Ô N I O

Modernismo à tradição que ele veio atualizar


Estrela, de quem o paulista se tornara amigo e e fecundar; para extrair dos grandes ideais do
correspondente desde 1924: decênio de 1920 as consequências no terreno da
P

educação e da pesquisa (Duarte, 1985:14-15).


D O

Logo que cheguei do Rio e do nosso almoço,


E V I S T A

andei matutando um pouco no que o Capanema


Mário de Andrade assumiu a direção do
Maria Lucia Bressan Pinheiro

pedira. Depois a vida me tomou de novo e não


DC em 30/5/1935, pondo-se imediatamente
R

organizei nada. Mas me volta sempre a lembrança


daquilo. Como arte é difícil de proteger e orientar, a organizar as inúmeras frentes de trabalho
desde que não seja proteção ditatorial e particular idealizadas: construção de parques infantis
a artistas! E eu ando com raiva dos artistas. Assim “onde se cantavam e se representavam as
mesmo, me andam cá bestando no cérebro umas canções populares e o que de melhor o
ideiazinhas, talvez viáveis (Andrade:1988:173, 175). folclore do Brasil podia inspirar”; organização

Certamente as tais “ideiazinhas, de um sistema de bibliotecas, com dotações


26 regulares para compra de acervos; restauração
talvez viáveis” estivessem relacionadas às
elucubrações de um grupo de intelectuais de documentos históricos para publicação;
paulistas – liderados pelo jornalista Paulo recenseamentos socioeconômicos da
Duarte e pelo próprio Mário de Andrade população etc. (Duarte, 1985:34-35).
--, relativas à criação de uma instituição Quatro meses depois de assumir sua
cultural moderna e dinâmica, com uma nova função, eis que Gustavo Capanema lhe
visão abrangente e inclusiva de cultura. Após dirigiu novo convite, agora para colaborar
o trauma da derrota paulista na Revolução diretamente com sua administração no
de 1932, a conjuntura político-intelectual próprio Ministério da Educação e Saúde
iniciada em 07/9/1934, com a nomeação Pública – Mesp, no Rio de Janeiro, o que,
de Armando de Sales Oliveira para o naturalmente, implicaria sua demissão de
governo de São Paulo e Fábio Prado para a seu cargo no DC. Por lealdade ao prefeito de
prefeitura da capital, propiciou campo fértil São Paulo, Mário declinou mais uma vez do
para tais ideias, que se consubstanciaram tentador convite, através de carta datada de
no Departamento de Cultura de São Paulo 19/9/1935:
O Fábio Prado confiou em mim, pôs Universitária como representante do

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
mesmo em mim uma confiança admirável de Sindicato Nacional de Engenheiros e do
generosidade. Eu fui muito combatido quando ele

A C I O N A L
Instituto Central de Arquitetos, associações
falou o meu nome, e ele fincou o pé contra toda a
de classe que tinham reagido fortemente
argumentação poderosíssima da política. (Andrade,

N
1988:177-178).
contra o convite feito por Capanema ao

R T Í S T I C O
arquiteto italiano Marcello Piacentini para
Esse episódio evidencia que, a par de elaborar o projeto carioca.

A
suas atividades no Rio de Janeiro, Capanema Sua conhecida participação no projeto

E
acompanhava com interesse as atividades de

I S T Ó R I C O
para a sede do Mesp, por outro lado, deu-se
Mário de Andrade em São Paulo, à frente do por convite direto do ministro. Insatisfeito
DC. E, em 1935, estavam em andamento
com o resultado do concurso, concluído

H
duas importantes iniciativas do Mesp: o

A T R I M Ô N I O
em dezembro de 1935 com a vitória do
projeto para a Cidade Universitária da
projeto marajoara de Arquimedes Memória,
futura Universidade do Brasil e o concurso
Capanema desobrigou-se de realizá-lo,

P
para o projeto da nova sede do Ministério

D O
convidando Lucio Costa para elaborar uma
(Schwarzman,1984:97). Nesse momento

E V I S T A
alternativa para o edifício, em março de

Maria Lucia Bressan Pinheiro


reaparece a figura de Lucio Costa, que
1936. O convite foi rapidamente aceito,

R
permanecera alheio à esfera governamental
com a condição de que o projeto fosse
desde seu fugaz envolvimento com a reforma
desenvolvido por uma equipe composta por
do ensino universitário colocada em prática
Carlos Leão, Afonso Reidy, Jorge Moreira,
em 1931 pelo ministro Francisco Campos,
que o nomeou diretor da Enba2. Ernâni Vasconcellos e Oscar Niemeyer, sob a
A essa altura, Lucio já tinha abraçado supervisão de Lucio.
publicamente a causa modernista – mudança
27
que só começara a se tornar evidente a partir
de sua atuação na Enba, quando tomou
iniciativas como a contratação de Gregori
Warchavchik, Alexander Buddeus, Celso
Antônio e Leo Putz como professores da
Escola e, principalmente, a organização
integral do Salão de Belas Artes de 1931, para
a qual recorrera inclusive ao auxílio de Mário
de Andrade a fim de arregimentar os artistas
modernistas paulistas (Pinheiro, 2011).
Agora, em 1935, Costa participava da
comissão de desenvolvimento da Cidade

2. É pertinente mencionar que, em 1931, Mário de Andrade


também fora convidado a colaborar com Francisco Campos na
reorganização do Instituto Nacional de Música.
Pois foi também em março de 1936 Inspeção dos Monumentos Nacionais do
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

que Gustavo Capanema telefonou a Mário MHN. No entanto, enquanto estava sendo
A C I O N A L

de Andrade, solicitando a sua colaboração gestada a criação do novo órgão, Gustavo


para organizar “um serviço nacional Barroso, investido da condição de Inspetor
para a defesa do nosso extenso e valioso dos Monumentos Nacionais do Brasil,
N
R T Í S T I C O

patrimônio artístico” (Brasil, 1980:22). mantivera-se ativo na nova função. Após


Trata-se do terceiro convite dirigido por um hiato inicial, devido a um período de
A

Capanema ao escritor paulista – que, dessa intenso engajamento na militância integralista


E

feita, acedeu de bom grado. Em duas (Magalhães, 2004:127), Barroso voltou-


I S T Ó R I C O

semanas, Mário apresentou o projeto para se novamente para Ouro Preto, onde já
o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional colaborara ativamente com a administração
H

– Span. Submetido a Getúlio Vargas em Antônio Carlos em 1928, e que constituía


A T R I M Ô N I O

13/4/1936, foi autorizado pelo presidente a o único Monumento Nacional – digno,


ser encaminhado à Câmara dos Deputados portanto, de receber as atenções do Serviço de
P

uma semana depois. Assim, a partir de abril Inspeção do MHN – oficializado até então.
D O

de 1936 começou a funcionar o Serviço do Gustavo Barroso logo convidou o


E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional engenheiro Epaminondas de Macedo “para


R

“em bases provisórias”, conforme as palavras se encarregar da direção material dos serviços
de Gustavo Capanema (Andrade, 1952:59). da Inspetoria de Monumentos”. O convite
Portanto, as tratativas iniciais para a foi aceito com entusiasmo por Macedo,
criação de um órgão federal de preservação que, para viabilizar a nova atividade, deu
do patrimônio ocorreram em paralelo à imediatamente início às providências para seu
decisão de Capanema de contratar Lucio afastamento do Departamento dos Correios
Costa para elaborar o novo projeto para a e Telégrafos (Barroso, 1955:23). Entretanto,
28
sede do Mesp; sendo que Lucio passou a seu processo de contratação foi bastante
integrar os quadros do novo órgão desde seu moroso, só se efetivando em 2/12/1935. Isso
início, juntamente com mais dois membros não o impediu de, entre junho e novembro
da equipe do projeto: Carlos Leão e Oscar de 1935, antes mesmo de sua efetivação junto
Niemeyer. Mário de Andrade, por sua vez, ao MHN, elaborar o Plano de Restaurações
assumiu a função de representante do Sphan em Ouro Preto que foi apresentado ao
em São Paulo. ministro Gustavo Capanema no final daquele
Configura-se, assim, de forma mais que ano (Barroso, 1955:43). O relatório compõe-
emblemática, a imbricação da arquitetura se da caracterização física e do estado de
modernista nas raízes da arquitetura conservação de várias pontes, chafarizes e
tradicional, sempre destacada. igrejas de Ouro Preto que a Inspetoria de
É digna de nota a ausência de qualquer Monumentos Nacionais pretendia restaurar,
menção, convite, ou proposta de colaboração além da descrição das intervenções propostas
entre o recém-criado Serviço e aquele outro, e respectivos orçamentos. Trata-se de um
criado apenas dois anos antes: o Serviço de documento precioso, por disponibilizar
grande quantidade de informação, Como se vê, concordemos ou não com

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
inclusive levantamentos métricos e registros as medidas e escolhas tomadas, o fato é que,

A C I O N A L
fotográficos, sobre o estado em que se entre 1935 e 1937, o Serviço de Inspeção
encontrava grande parte dos bens culturais de Monumentos Nacionais do MHN
de Ouro Preto naquele momento (Barroso, levou efetivamente a cabo um conjunto de

N
R T Í S T I C O
1955:34-127). intervenções visando preservar monumentos
Como já ocorrera em 1928, Barroso ouro-pretanos, todas precedidas de estudos

A
privilegiou logradouros, pontes e chafarizes, técnicos preliminares – um caso inédito até

E
isto é, os equipamentos urbanos, que então. Raras vezes mencionado, esse trabalho

I S T Ó R I C O
compunham o que ele chamou de “ambientes foi feito em paralelo à criação do Sphan e
históricos” – e que se encontravam então à sua progressiva institucionalização, que

H
bastante deteriorados. Trata-se de uma se deu, como vimos, entre abril de 1936 –

A T R I M Ô N I O
postura inovadora naquele momento, pois quando o anteprojeto de Mário de Andrade
o termo ultrapassa a noção convencional de foi autorizado por Vargas a ser submetido

P
monumento isolado, de caráter excepcional à Câmara dos Deputados – e novembro de

D O
(Barroso, 1955:35-43). 1937, quando foi aprovado o Decreto-lei no

E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro


Evidentemente, a parte técnica do Plano 25, que, ao regulamentar as atribuições do

R
de Restaurações apresentado por Barroso novo órgão, possibilitou sua atuação efetiva.
foi elaborada por Epaminondas de Macedo, Tal seria, portanto, uma sucinta
que a iniciou até mesmo antes de sua con- apreciação do processo de emergência de
tratação, como vimos. Uma vez autorizado uma sensibilidade preservacionista no Brasil,
o Plano, o engenheiro deu início às obras a confluir na criação do Sphan – um tema
propriamente ditas, passando a apresentar ainda carente de pesquisas aprofundadas.
relatórios regulares, de periodicidade qua- Mapeando caminhos pouco explorados, o
29
se semanal, do andamento do trabalho, presente trabalho propôs uma abordagem
que cobrem o período de novembro de transversal e abrangente do período,
1935 a julho de 1937, quando o Sphan já privilegiando as conexões entre os temas
estava funcionando em bases provisórias. de investigação que iam se descortinando.
Os trabalhos consistiam geralmente no Recusando clivagens consagradas, recorreu a
conserto de telhados, caiação, recomposição uma abordagem inclusiva, voltada à busca das
de peças de cantaria e ornatos quebrados continuidades e dos intrincados percursos e
ou desaparecidos, limpeza e remoção de volteios dos processos de circulação de ideias.
camadas de pintura em retábulos e portadas. Do quadro delineado emerge uma noção
Em muitos casos foram colocadas placas plural da questão da identidade nacional – em
de pedra-sabão assinalando os serviços rea- que tradição e modernidade não constituem
lizados pelo MHN, como no Chafariz de uma dicotomia, mostrando-se, ao contrário,
Antônio Dias e na Ponte dos Contos – que fortemente entrelaçadas ao longo do período –
mais tarde foram “misteriosamente retiradas” o que constitui uma das observações de caráter
(Barroso, 1955:129-167). conclusivo possíveis de serem elencadas aqui.
De fato, a importância das ideias transformação em Ministério da Educação e
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

tradicionalistas de Ricardo Severo e sua Saúde – MES, após o Estado Novo.


A C I O N A L

popularidade junto a alguns dos mais Evidentemente, a dimensão político-


importantes protagonistas da preservação ideológica é inerente ao âmbito da
do patrimônio no Brasil, como Mário de preservação cultural, o que também
N
R T Í S T I C O

Andrade e Lucio Costa, evidencia-se a partir transparece das muitas lacunas, silêncios e
da presença do Neocolonial na Semana omissões identificadas ao longo da singular
A

de 1922, da elaboração dos primeiros e pré-história da preservação no Brasil, como


E

incipientes esforços de reconhecimento e nos referimos a esse período.


I S T Ó R I C O

registro da arquitetura colonial brasileira e – Nesse sentido, ainda há muito que


talvez o aspecto mais importante da questão pesquisar para uma compreensão mais
H

– da ininterrupta interlocução, desde 1924, aprofundada do multifacetado processo,


A T R I M Ô N I O

entre Mário de Andrade e os intelectuais notadamente quanto ao protagonismo


mineiros que viriam a orbitar em torno do pontual de Lucio Costa em diferentes
P

Ministério da Educação e Saúde Pública, após momentos. Peça essencial das tratativas em
D O

a Revolução de 1930. curso, a trajetória do arquiteto é composta


E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro

Para além do entrosamento intelectual de momentos de grande exposição pública


R

apontado, também é possível acompanhar a que se alternam com outros de singular


paulatina inserção da questão da preservação opacidade, notadamente no que diz respeito a
do patrimônio histórico e artístico nacional sua aproximação de Gustavo Capanema. Sua
no jogo de interesses políticos do conturbado posição ímpar de profissional comprometido
período que antecedeu a revolução de 1930, com a renovação da arquitetura brasileira e,
e dos anos posteriores. Com efeito, desde os ao mesmo tempo, defensor do patrimônio
esforços empreendidos por Gustavo Barroso arquitetônico nacional, assumiu contornos
30
em 1928 para reaproximar-se de Antônio de mitificação, favorecendo interpretações
Carlos, passando pela proposta de formação simplificadoras dos complexos mecanismos
de uma Comissão de Preservação de Ouro em operação.
Preto apresentada pelos deputados gaúchos De resto, nada há de surpreendente
Batista Luzardo e Assis Brasil em 1929, até na constatação de que a preservação do
a intensificação das iniciativas patrimoniais patrimônio é por excelência um campo
federais de 1933, 1934 e 1936 – culminando de tensões, as quais, porém, se procura
com a criação do Sphan –, fica evidente o ignorar ou subestimar, a partir de conceitos
interesse ideológico que o tema assume, naturalizados de memória, identidade
no bojo da política de fortalecimento e e pertencimento. O presente trabalho
integração do estado nacional que marca o pretendeu explorar algumas das múltiplas
período Vargas. dimensões do tema, que nos remetem ao
Tais fatos apontam para a importância processo de construção – e reconstrução – dos
e o prestígio de que se revestirá o Mesp sob mitos e símbolos pelos quais se pretende que
Gustavo Capanema, principalmente após a sua uma sociedade se reconheça a si mesma.
REFERÊNCIAS MARIANO FILHO, José. À margem do problema

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
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A
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P
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D O
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E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro


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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

32
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
Lia Calabre

A C I O N A L
O S ERVIÇO DO P ATRIMÔNIO A RTÍSTICO N ACIONAL

N
DENTRO DO CONTEXTO DA CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS

R T Í S T I C O
PÚBLICAS DE CULTURA NO B RASIL

A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Em que momento as políticas públicas Em 1930, Getúlio Vargas criou o
de cultura no Brasil tiveram início? Para Ministério da Educação e Saúde Pública –
uma grande maioria dos estudiosos e Mesp, inicialmente sob a chefia de Francisco

P
especialistas da questão, nos anos 1930, no Campos, que, em 1934, foi substituído

D O
E V I S T A
governo do presidente Getúlio Vargas e, por Gustavo Capanema, tendo este último
mais especificamente, na segunda metade permanecido à frente do órgão até 1945.

R
dessa década. É partindo da perspectiva da Vários intelectuais foram colaboradores
construção das políticas públicas de cultura no do ministro Capanema, como: Carlos
país que o presente artigo pretende revisitar os Drummond de Andrade, Mário de Andrade,
primeiros tempos de existência do Instituto do Rodrigo Melo Franco de Andrade, Anísio
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Teixeira, Fernando Azevedo, Heitor Villa-
Nessa década, o país passou por Lobos, Manuel Bandeira, entre outros.
significativas mudanças em áreas diversas e, A gestão Capanema foi marcada por um 33
em especial, na de estruturação e elaboração processo de construção institucional do
de políticas públicas. A Revolução de 1930 campo da cultura, ainda que, segundo Cecília
marcou a ruptura da chamada política do Londres, essa não fosse uma das prioridades
café-com-leite, que, de maneira simplificada, do ministro, “que em seu discurso de posse
pode ser explicada como um pacto político deu destaque à educação nacional, à saúde
que garantia uma espécie de revezamento pública e à assistência social” (Londres,
no controle do poder federal, entre paulistas 2001:85). De uma maneira geral, naquele
e mineiros, ainda que contasse com apoio momento, a ideia de cultura estava muito
de grupos oligárquicos de outras regiões do vinculada à de educação, ao conhecimento
país. Foram anos de profundas mudanças, erudito e aos “hábitos culturais cultivados”,
marcados por um processo de urbanização tais como ler clássicos da literatura canônica,
crescente, pelo aumento da produção conhecer a dramaturgia universal (ocidental
Rodrigo Melo Franco
industrial e pela conquista e consolidação de e especialmente europeia), ouvir música de Andrade
Acervo: Copedoc/Iphan/
uma série de direitos trabalhistas. erudita, enfim, o projeto era o de aumentar Marcel Gautherot.
o nível “civilizatório” do país. Ainda que a criação do Departamento Administrativo
políticas públicas de cultura no Brasil
O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das

houvesse correntes intelectuais trabalhando do Serviço Público – Dasp, que investia na


A C I O N A L

na consolidação da ideia da valorização de formação dos quadros públicos. Havia um


uma cultural nacional, enaltecendo saberes e projeto de uma efetiva profissionalização da
N

fazeres populares. área pública. Segundo Eli Diniz:


R T Í S T I C O

Apesar do discurso de posse, o que


O aperfeiçoamento e a diversificação
verificamos na gestão Capanema foi a
dos instrumentos de intervenção do Estado
A

realização de ações e a construção de políticas nas diferentes esferas da vida social e política
E

que extrapolaram fronteiras tradicionalmente


I S T Ó R I C O

viabilizaram a implementação de um projeto


demarcadas. Ainda segundo Cecília Londres, nacional por cima da rivalidade entre as elites. Esse
durante o longo período (onze anos) em que conjunto de mudanças foi aprofundado com a
H
A T R I M Ô N I O

o ministro esteve à frente da pasta não houve reforma do Estado que, iniciada durante o governo
um setor que não tenha recebido atenção: institucional, tem seu ápice com a instauração do
regime autoritário (Diniz, 1999:26).
(...) desde a radiodifusão e o cinema ao
P
D O

decisivo apoio prestado à arquitetura e às artes O decreto que dispõe sobre os serviços
E V I S T A

plásticas contemporâneas. Nesse período foram do novo Ministério cria o Departamento


criados vários museus nacionais – Museu Nacional de Ensino e três departamentos para
R

Lia Calabre

Nacional de Belas-Artes, Museu Imperial, Museu


a área de saúde. Os museus, as bibliotecas
da Inconfidência – e, no âmbito do Serviço
e as escolas de arte ficaram subordinados
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ao Departamento Nacional de Ensino. Em
– Sphan, inúmeros museus regionais e casas
históricas. Capanema fez, inclusive, incursões 1931, através do Decreto n° 19.850, foi
em áreas como o artesanato e a questão indígena. criado o Conselho Nacional de Educação.
Terminada sua gestão estava esboçado o desenho Dentre os objetivos do órgão, estava o de
34 básico da organização institucional da cultura no elevar o nível da cultura brasileira e, entre
Estado brasileiro e plantado o embrião do que, em suas atribuições, a de promover e estimular
1981, veio a se constituir na Secretaria de Cultura iniciativas em benefício da cultura nacional.
do MEC e, em 1985, no Ministério da Cultura
Ou seja, temos as primeiras referências
(Londres, 2001:85/86).
diretas às questões da cultura, ainda que
O desenho institucional criado na gestão sob a ótica da educação, do crescimento
Capanema fez com que o período seja tomado do conhecimento escolarizado e erudito
como o marco do início das políticas culturais e de uma cultura “civilizada” nos padrões
no Brasil. No campo da administração europeus-ocidentais.
pública, esse foi o momento da construção
de uma racionalidade administrativa que A PROTEÇÃO DO
buscava romper com a tradição de uma PAT R I M Ô N I O
república oligárquica. Em 1934, foram
instituídos concursos públicos para ingresso no As discussões e os projetos de defesa dos
funcionalismo de carreira e, em 1938, ocorreu monumentos históricos no país ganharam
força e maior efetividade na década de 1920, conservação e restauração, sugerir aquisição

políticas públicas de cultura no Brasil


O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
tendo como importantes aliados os modernistas e fazer os serviços de publicidade necessários

A C I O N A L
– isso não significa dizer que grupos mais para a propagação e conhecimento do
conservadores ou de outras vertentes de patrimônio artístico nacional1.
O anteprojeto marioandradiano

N
pensamento não tivessem projetos para a área.

R T Í S T I C O
Havia uma disputa entre algumas correntes era ambicioso, alargando o conceito de
acerca do conceito de patrimônio que deveria patrimônio. O documento delimita as

A
ser operacionalizado pelo Estado. Segundo obras de arte patrimoniais a partir de oito

E
categorias: a arqueológica, a ameríndia, a

I S T Ó R I C O
Lúcia Lippi, as viagens dos modernistas
paulistas (como Mário de Andrade) e popular, a histórica, a erudita nacional, a
mineiros às cidades coloniais de Minas Gerais erudita estrangeira, as aplicadas nacionais e as

H
aplicadas estrangeiras. Na categoria popular,

A T R I M Ô N I O
desencadearam um processo de redescoberta
do Brasil; novos olhares eram lançados, por exemplo, estava previsto o tombamento
especialmente sobre o passado colonial. de objetos, monumentos, paisagens e

P
folclore; aqui estaria excluída a arte de origem

D O
O grupo de intelectuais modernistas e seus ameríndia. As obras tombadas deveriam ser

E V I S T A
pares mineiros, grupo composto por Gustavo
registradas em quatro Livros do Tombo. O
Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade,

Lia Calabre
projeto também previa a criação de quatro
Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, entre
museus onde seriam expostas as coleções
outros, teria papel fundamental na educação, na
definição da política de patrimônio, na construção de arte correspondentes a cada um desses
de uma identidade nacional para o país (Oliveira, livros. Ao Livro do Tombo Arqueológico e
2008:116-117). Etnográfico corresponderiam as categorias
de artes arqueológicas, ameríndias e
As mobilizações intensas em favor populares. O Livro do Tombo Histórico
do patrimônio contribuíram, em muito, 35
seria correspondente à arte histórica (com
para a criação de inspetorias estaduais de o respectivo museu histórico já existente).
monumentos históricos em Minas Gerais Ao Livro do Tombo das Belas Artes
(1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco corresponderia a criação da Galeria Nacional
(1928). de Belas Artes. E, ao Livro do Tombo das
Quando ainda estava no Departamento Artes Aplicadas corresponderia a criação
de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade de um museu de artes aplicadas e técnica
foi convidado, pelo ministro Gustavo industrial. Cada museu deveria ter, em seu
Capanema, para elaborar o anteprojeto da saguão de entrada, a cópia do Livro do
criação do Serviço do Patrimônio Histórico Tombo das artes a que ele correspondesse,
e Artístico Nacional – que foi entregue em para ser consultado pelos visitantes. Estava
24/3/1936. No documento projetado pelo ainda prevista a criação de uma revista do
modernista, caberia ao Serviço do Patrimônio
determinar e organizar o tombamento, 1. O documento pode ser encontrado no CPDOC/FGV, no arqui-
vo Gustavo Capanema. Ref. 36.03.24/2, ou publicado na Revista
sugerir a conservação e defesa, determinar a do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 30, de 2002.
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l

36
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil

Caio Reisewitz.
Acervo: Monumenta/Iphan/
Pintura de forro
Sphan e a publicação regular dos Livros do órgão (desde o período de funcionamento

políticas públicas de cultura no Brasil


O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
Tombo, de monografias, livros, catálogos de provisório, antes da aprovação da lei) e

A C I O N A L
museus, entre outros. mantendo-se no mesmo até 1967. Para a
O projeto era bastante abrangente. Em difícil tarefa de dar efetividade ao Sphan,
uma entrevista concedida em 2001, um dos inclusive com o necessário caráter nacional,

N
R T Í S T I C O
funcionários do grupo que trabalhou na Rodrigo contou com a contribuição de
implantação do Serviço do Patrimônio, o destacados profissionais das mais diversas

A
arquiteto, desenhista e pintor Alcides da Rocha áreas – arquitetos, juristas, engenheiros,

E
Miranda, declarou que o projeto de Mário historiadores, literatos, mestres de obras, entre

I S T Ó R I C O
outros. Atuaram na consultoria jurídica do
(...) era uma coisa imensa, tão grande, que era
difícil de fazer funcionar, porque não havia verbas
órgão, por exemplo, Afonso Arinos de Melo

H
Franco e Prudente de Morais Neto. Para

A T R I M Ô N I O
suficientes, não havia elementos humanos com
conhecimento e prática” para dar efetividade ao as ações em Pernambuco, Rodrigo contou
planejado (Miranda, 2002:247). com os serviços de Gilberto Freyre; para o

P
Rio Grande do Sul, com Augusto Meyer; e,

D O
Segundo Cecília Londres, além da
para a região amazônica, com Arthur Cezar

E V I S T A
extensão do projeto, que, sem dúvida,
Ferreira Reis. Mário de Andrade produziu
influíra na decisão da não implementação

Lia Calabre
estudos sobre São Paulo. Carlos Drummond
integral do mesmo, dois outros fatores foram
de Andrade foi o organizador do Arquivo e
determinantes. O primeiro deles era o aspecto
chefe da Seção de História e Lucio Costa,
jurídico, pelo qual Rodrigo tinha forte
chefe da Divisão de Estudos e Tombamento.
interesse,
Em suma, o Sphan contou com importantes
(...) seria praticamente inviável criar um intelectuais, seja coordenando trabalhos
instrumento de proteção legal aplicável não só aos regionais (Freyre e Meyer), seja produzindo
37
bens materiais como imateriais. estudos pontuais de interesse para a área
(Manuel Bandeira).
E o segundo era de aspecto político, a
Somente parte do anteprojeto entregue
pluralidade da cultura brasileira identificada
a Capanema foi efetivamente incorporado à
por Mário “ia de encontro ao projeto de
lei. Em correspondência trocada com Rodrigo
unidade nacional do governo” getulista,
Melo Franco de Andrade, em 29 de julho de
ou seja, não contribuía com o projeto de
1936, Mário de Andrade, após ler a versão do
construção de uma cultura nacional oficial
projeto de lei para o Serviço do Patrimônio,
(Londres, 2001:98).
respondia ao amigo:
Rodrigo Melo Franco de Andrade2 foi
o responsável pela organização do Serviço Li seu projeto de lei que achei, pelos
do Patrimônio, assumindo a direção do meus conhecimentos apenas, ótimo. Aliás,
preliminarmente é preciso que eu lhe diga
2. Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969). Formado em com toda a lealdade que dado o anteprojeto ao
direito, jornalista, escritor, por indicação de Mário de Andrade Capanema, eu bem sabia que tudo não passava
e Manuel Bandeira, foi convidado, em 1936, para organizar e
dirigir o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. de anteprojeto. Vocês ajudem com todas as
luzes possíveis a organização definitiva, façam e estudos necessários para o fim de dar início às
políticas públicas de cultura no Brasil
O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das

desfaçam à vontade, modifiquem e principalmente obras de conservação ou de restauração que


acomodem às circunstâncias, o que fiz e não reclamarem alguns monumentos aí situados, entre
A C I O N A L

tomou em conta muitas circunstâncias porque os quais se destacam os vestígios das construções
não as conhecia (Andrade, 1981:60). (grifo nosso) jesuíticas, em São Miguel. (Xavier, 2008:44).
N
R T Í S T I C O

Havia efetivamente uma preocupação Na correspondência de Rodrigo com


grande por parte de Rodrigo Melo Franco de Gilberto Freyre3, de 19 de fevereiro de 1937,
A

Andrade quanto aos problemas e resistências ficam expressas as dificuldades na organização


E

que o projeto iria sofrer. Buscando garantir


I S T Ó R I C O

do Sphan, em especial, as de caráter


um alto grau de efetividade e de excelência orçamentário. Rodrigo comenta que vive
nos trabalhos que viriam a ser realizados,
H

Rodrigo manteve uma ativa rede de (...) uma luta insana, sobretudo contra a
A T R I M Ô N I O

correspondência e sociabilidade intelectual. inércia, a estupidez e o desleixo do Ministério


da Fazenda, com umas escaramuças parciais
Nas missivas trocadas com Augusto Meyer,
frequentes com a contabilidade da Educação e do
P

Mário de Andrade e Gilberto Freyre (só


D O

Tribunal de Contas.
a título de exemplo), Rodrigo tanto trata
E V I S T A

das questões de trabalho no campo do Com todas as dificuldades burocráticas


R

Lia Calabre

patrimônio, quanto mantém ativa, e chega que fazem parte da natureza das ações
mesmo a ampliar, sua rede de sociabilidade públicas no Brasil, somadas ao campo da
intelectual, tratando de outros projetos novidade que seria o da criação de um órgão
intelectuais e de questões diversas.
efetivo de caráter nacional que deveria
No período que antecede a promulgação
cuidar do patrimônio, Rodrigo busca se
da lei do patrimônio, em intensa
munir de argumentos e informações legais
correspondência com Augusto Meyer,
38 para dar efetividade a uma nova política
em várias ocasiões Rodrigo expressa a
pública de preservação do patrimônio
necessidade de possuir inventários e relações
nacional. Deveriam ser tomadas medidas
de bens prontos para serem tombados após
de várias naturezas, como a apontada na
a publicação da lei. Em carta de março
correspondência abaixo:
de 1937, Rodrigo convidou Meyer para
colaborar com as tarefas do Serviço do A lei não tarda a ser sancionada e precisamos,
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, portanto, estar preparados para lhe dar
que estava ainda em fase de organização cumprimento. Daí a necessidade de apurarmos a
administrativa, apontando algumas das quem pertence e de que autoridades dependem
diretrizes e projetos do novo órgão: todas as edificações aí existentes com excepcional
valor histórico e artístico, a fim de notificarmos
O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico oportunamente os proprietários ou responsáveis
Nacional se empenhará por dilatar a sua ação até (Xavier, 2008:88).
o Rio Grande do Sul, no propósito de inventariar
os bens de valor histórico e artístico excepcional
3. Correspondência não publicada e disponível para consulta na
existentes no estado e bem assim proceder aos Fundação Gilberto Freyre.
Em 13 de janeiro de 1937, pela Lei nº Previa a existência de um Conselho

políticas públicas de cultura no Brasil


O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
378 e através do Decreto-lei nº 25, de 30 Consultivo do qual deveria participar o

A C I O N A L
de novembro de 1937, foi respectivamente diretor do Sphan, os diretores dos museus
criado e organizado o Serviço do Patrimônio nacionais (históricos ou artísticos) e mais
dez membros nomeados pelo presidente da

N
Histórico e Artístico Nacional – Sphan. O

R T Í S T I C O
decreto foi o responsável pela organização República. Através da mesma lei, foi criado
do Serviço de Proteção do Patrimônio e o Museu Nacional de Belas Artes4, destinado

A
está vigente, com poucas alterações, até os a recolher, conservar e expor as obras de

E
dias de hoje. Segundo o mesmo, constitui artes pertencentes do patrimônio federal.

I S T Ó R I C O
patrimônio o Todos os museus federais existentes, ou que
viessem a ser criados, deveriam cooperar com

H
(...) conjunto dos bens móveis e imóveis
as atividades do Sphan. Ao Museu Histórico

A T R I M Ô N I O
existentes no país e cuja conservação seja de
Nacional foi assegurada a função de guardar,
interesse público, quer por sua vinculação a fatos
conservar e expor as relíquias referentes ao
memoráveis da história do Brasil, quer por seu

P
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, passado do país, ficando mantido o curso de

D O
bibliográfico ou artístico. museologia ali existente.

E V I S T A
O Decreto-lei nº 25 determinava a
Também ficaram sujeitos a tombamento

Lia Calabre
inscrição dos bens em quatro Livros do
monumentos naturais, sítios e paisagens que Tombo: o Arqueológico, Etnográfico e
sejam julgados merecedores de proteção. Paisagístico; o Histórico; o das Belas Artes;
O texto introdutório do decreto o e o das Artes Aplicadas. Prevendo ainda a
apresenta como a legislação que organiza a realização de acordos entre o governo federal
proteção ao patrimônio. O primeiro órgão e os estados na tentativa de uniformizar a
federal da área de proteção ao patrimônio legislação relativa à proteção do patrimônio.
foi a Inspetoria dos Monumentos 39
Em 1939, um balanço das atividades
Nacionais, criada em 1934, no Museu do Sphan, feito por Rodrigo Melo Franco
Histórico Nacional, por iniciativa de de Andrade, registrava que em todo o país
Gustavo Barroso. Com a criação do Sphan, haviam sido efetivamente tombados 261
a inspetoria foi desativada. monumentos, seis logradouros e nove
A Lei nº 378 tratava de uma conjuntos arquitetônicos e urbanísticos,
reestruturação maior do Ministério. No caso apesar de um número bem mais significativo
do patrimônio, o artigo 46 estabelecia a de bens inventariados. Ainda segundo
criação do Rodrigo, até aquele momento, o Serviço
ainda não havia conseguido realizar ações nos
(...) Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, com a finalidade de promover,
estados do Amazonas, Mato Grosso e Goiás
em todo o país e de modo permanente, o (Fonseca, 2005:111).
tombamento, a conservação, o enriquecimento
e o conhecimento do patrimônio histórico e 4. A lei prevê ainda a extinção do Conselho Nacional de Belas
Artes, cujas funções passam a ser exercidas pelo Museu Nacional
artístico nacional. de Belas Artes.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

40
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
Heitor Reali.
Acervo: Iphan/
Pintura corporal Wajãpi
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
41

Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
OS Parece ocioso repetir aqui a existência de
políticas públicas de cultura no Brasil
O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das

CAMPOS DA POLÍTICA
serviço público da natureza daquele a que vimos
aludindo. Recorre do reconhecimento por parte
A C I O N A L

Nos anos 1930, o patrimônio, enquanto


dos civilizados de que os indígenas devem ser
campo de conhecimento e de ação de
considerados, pela constatação do direito à terra
políticas públicas, era novo. O Serviço
N

que habitavam (Torres, 1937:25).


R T Í S T I C O

enfrentou pesadas batalhas jurídicas para


efetivar o tombamento de determinados bens, E continuava:
principalmente os que se encontravam em
A
E

mãos da iniciativa privada. Mesmo na esfera Em nossa terra, ainda persiste em muito
I S T Ó R I C O

pública, fora do âmbito do Ministério da espírito que se arvora em progressista a ideia


Educação, havia uma resistência considerável. de que o elemento aborígene deve desaparecer,
quanto mais depressa, melhor. O grande espírito
H

Os órgãos não queriam abrir mão da sua


A T R I M Ô N I O

autonomia sobre alterações, negociações ou progressista dessa natureza não faz, na maioria das
vezes, senão acobertas grandes ambições materiais.
mesmo venda do patrimônio edificado. Nesse
sentido, o trabalho com os inventários era A tarefa da construção de políticas públicas
P

fundamental, como momento dos estudos,


D O

é árdua, em especial em áreas de governo


das discussões técnicas, do aprofundamento
E V I S T A

consideradas menos prioritárias. Albino


do conhecimento histórico. Segundo Maria
Rubim, ao analisar o processo histórico da
R

Lia Calabre

Cecília Londres Fonseca, a prioridade nos


construção das políticas públicas de cultura
processos de tombamento foi dada aos
no Brasil, identifica algumas tristes tradições
(...) remanescentes da arte colonial brasileira, e muitos desafios. Para o autor, algumas
justificada pelos agentes institucionais como expressões condensam parte significativa
decorrência do processo de urbanização que já se
dessa história: “autoritarismo, caráter tardio,
acelerava” e colocava em risco de desaparecimento
descontinuidade, desatenção, paradoxos,
42
definitivo tais exemplares (Fonseca, 2005:107).
impasses e desafios” (Rubim, 2007:11). Ao
Ao assumir a função de criar e dar estudarmos mais detidamente as políticas
efetividade a um Serviço de Defesa do culturais estabelecidas dentro de períodos
Patrimônio, Rodrigo Melo Franco de autoritários, como é o caso da ditadura
Andrade tinha a exata noção das dificuldades varguista do Estado Novo, verificamos que as
a serem enfrentadas – como vimos na outras tristes tradições que cercam a elaboração
correspondência trocada com Augusto Meyer. de tais políticas eram muito presentes.
A problemática da disputa entre o A gestão do ministro Gustavo Capanema
progresso e a preservação é uma preocupação esteve inúmeras vezes ameaçada e com ela os
constante. No primeiro número da Revista próprios projetos de construção de políticas
do Serviço do Patrimônio Histórico e públicas que extrapolavam o campo restrito da
Artístico Nacional, ao tratar do patrimônio educação e da saúde. Em 4 de janeiro de 1938,
arqueológico, Heloisa Alberto Torres buscava Rodrigo escreve a Meyer (que seria nomeado
apoio para as teses que defendia em outros para o Instituto Nacional do Livro), para falar
serviços de proteção existentes. sobre a demora no despacho presidencial com
a nomeação do mesmo. Em meio à conversa Ao longo desses oitenta anos de

políticas públicas de cultura no Brasil


O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
Rodrigo informa que, ao procurar o ministro existência, tendo vivenciado algumas

A C I O N A L
para saber o que se passava, o mesmo declarou alterações de nomenclatura, mas nada
que “estando na iminência de ser substituído, que tenha alterado significativamente sua
não tomaria mais nenhuma iniciativa sobre o missão, o Instituto do Patrimônio Histórico

N
R T Í S T I C O
provimento de cargos de confiança” (Xavier, e Artístico Nacional é um raro exemplo de
2008:120). Rodrigo continua afirmando efetividade e continuidade de política pública,

A
que havia a possibilidade, caso o Capanema especialmente na área de cultura.

E
saísse, de ele próprio deixar o Serviço, mas

I S T Ó R I C O
que mesmo assim continuaria tomando as REFERÊNCIAS
providências necessárias para garantir os

H
trabalhos em curso, como os que já haviam ANDRADE, Mário. Mário de Andrade - cartas de

A T R I M Ô N I O
trabalho: correspondência com Rodrigo Melo Franco de
sido iniciados na região das Missões. Já em Andrade, 1936-1945. Brasília: Sphan/Fundação Pró-
final de janeiro o perigo da substituição parecia Memória, 1981.

P
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos
ter passado (Xavier, 2008:126).

D O
1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.
Em correspondência com Gilberto Freyre, DINIZ, Eli. “Engenharia institucional e políticas

E V I S T A
mais de um ano depois, a descontinuidade públicas: dos conselhos técnicos às câmaras setoriais”. In:
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo.

R
volta a assombrar o Ministério e o Serviço.

Lia Calabre
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.
Em sua carta Rodrigo informa: FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em
processo: trajetória da política federal de preservação no
Deixei para o fim o seguinte: anda por aqui Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Minc/Iphan, 2005.
uma campanha muito pérfida contra o Capanema. ______. “A invenção do patrimônio e a memória
Atribuem-lhe tendências esquerdistas e ligações nacional”. In: BOMENY, Helena (org.). Constelação
Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed.
com elementos comunistas, certamente com o
FGV; Bragança Paulista: Universidade de São Francisco,
objetivo de avançar no Ministério da Educação. 2001, p. 85-101. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br
43
Neste momento mesmo acabam de trançar uma Acesso em 20/1/2009.
rede de sacanagem junto ao ministro da Guerra MIRANDA, Alcides da Rocha. Entrevista. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 30, 2002.
para convencê-lo que o novo edifício do Ministério
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura e identidade nacional
da Educação tem a forma de um martelo para
no Brasil do século XX. In: GOMES, Ângela Castro et
significar o empenho do Capanema em perpetuar al. (coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
seu amor ao emblema da URSS (29/4/1939 – Fronteira/CPDOC, 2002.
_________. Cultura é patrimônio: um guia. Rio de
Arquivo Gilberto Freyre).
Janeiro: Ed. FGV, 2008.
RUBIM, Antônio Albino Canelas. “Políticas culturais no
Ao terminar o governo Vargas e a gestão
Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM et
Capanema, o Serviço do Patrimônio já se al. Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.
encontrava mais consolidado. O empenho TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo
da proteção ao material arqueológico e etnográfico
em garantir a presença do Serviço em todas as do Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
regiões do país, construída a partir das redes Artístico Nacional, nº 1, 1937.
pessoais de sociabilidade intelectual de Rodrigo XAVIER, Laura Regina. Patrimônio em prosa e verso: a
correspondência de Rodrigo Melo Franco de Andrade
Melo Franco de Andrade se mostrou uma para Augusto Meyer. (Dissertação de Mestrado). Rio de
estratégia acertada. Janeiro: CPDOC-FGV – 2008.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

44
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
Paulo Or mindo de Azevedo

a c i o n a l
p aTrimônio c ulTural e n aTural como faTor de

desenvolvimenTo : a revolução silenciosa de

n
r t í s t i c o
r enaTo s oeiro , 1967-1979

a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A mudança de guarda no Serviço do A preparação de Renato Soeiro para
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – assumir o cargo incluiu sua promoção, em
Sphan, em 1967, foi preparada por Rodrigo 1946, à chefia da Divisão de Conservação

P
Melo Franco de Andrade, seu fundador, com e Restauração da Diretoria do Patrimônio

d o
antecedência de vinte anos. Diante da recusa

e v i s t a
Histórico e Artístico Nacional – , DPHAN,
de Lucio Costa a se envolver com questões em que havia sido transformado o Sphan,

r
burocráticas, o escolhido foi o arquiteto naquele ano, no mesmo nível de Lucio Costa.
Renato de Azevedo Duarte Soeiro, um dos Durante 21 anos ele foi o braço direito de
pioneiros da arquitetura modernista brasileira Rodrigo Melo Franco de Andrade.
que colaboraram no projeto da estação de Mas não bastava isso, era preciso estar
hidroaviões do Rio de Janeiro. Ele era o a par do que acontecia nos organismos
profissional mais qualificado para gerir o internacionais. Entre outras missões que lhe
órgão cuja principal atribuição era preservar foram confiadas, ressaltamos a participação 45
monumentos e cidades históricas. A sucessão na reunião preparatória da Convenção
era tão tácita que a transmissão do cargo foi para a Proteção do Patrimônio Cultural em
feita num sábado pela manhã, sem a presença
Evento de Conflito Armado, Unesco 1952, o
de autoridades nem jornalistas, como
Simpósio de Preparação (1965) e a Reunião
assinalou Carlos Drummond de Andrade:
sobre a Conservação e a Utilização do
Sai sem ruído, entra sem ruído Renato Soeiro, Patrimônio e Lugares de Interesse Histórico e
antigo e impecável colaborador dessa obra delicada Artístico, que aprovou as Normas de Quito,
e áspera. Soeiro conhece na palma da mão os OEA, 1967. Em relatório desse evento,
problemas de seu ofício. E dono de uma energia
ele assinala a contribuição ao documento
mansa, tranquila, eficiente. O melhor, o mais certo
e a reivindicação de inclusão de Portugal
substituto de mestre Rodrigo, para garantia de
e criação de um Centro Interamericano
nossos bens de arte e história. Que o governo lhe
dê meios para cumprir a tarefa, pois engenho e arte de Investigação e Estudos, no Brasil, para
não lhe faltam, em sua nobre discrição (Andrade, ampliar a assistência que o Iphan já dava
Renato Soeiro
1969:32-33). à parte meridional do continente (Soeiro, Acervo: Iphan.
1967b). No mesmo ano de 1967, Soeiro outorgada uma nova Constituição e, um
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

foi eleito para o Conselho do Centro ano mais tarde, decretado o AI-5. No final
A C I O N A L

Internacional de Estudos para a Conservação de 1969, o presidente Gal. Costa e Silva


e o Restauro de Bens Culturais – ICCROM, sofreu um derrame e foi substituído por uma
Roma, e participa de reunião conjunta do junta militar, passando depois o comando
N
R T Í S T I C O

Conselho Internacional de Monumentos e do país ao Gal. Emílio Garrastazu Médici,


Sítios – Icomos, e Institut Royal du Patrimoine que endureceu o regime. A cultura era um
A

Belgique para a organização do Centro de dos setores mais reprimidos. Mas o governo
E

Documentação do Icomos (Soeiro, ca.1967d). militar, nacionalista, tendia a favorecer o


I S T Ó R I C O

Os autores que mais têm estudado a patrimônio como fator de unidade nacional,
política patrimonial no país – Gonçalves como o fizera Vargas.
H

(1996), Fonseca (1997), Chuva (2009) Soeiro tinha consciência de que o


A T R I M Ô N I O

e Sant’Anna (2015) – vêm dando pouca patrimônio não podia continuar à margem
importância à interação do Iphan com os da dinâmica socioeconômica do país, como
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P

organismos internacionais, iniciada em 1952 um peso morto. Os objetivos econômicos


D O

e maximizada no período de 1967 a 1979. A do regime militar, explicitados ainda no


E V I S T A

ampliação do conceito de patrimônio cultural governo Castelo Branco com o Plano de Ação
R

e natural, sua relação com o planejamento Econômica do Governo – Paeg, eram claros:
urbano e o aproveitamento turístico foram desenvolvimento econômico e combate
conquistas universais em que o Iphan teve um à inflação. A estratégia de Soeiro seria a
grande protagonismo. integração do patrimônio a esse processo
de desenvolvimento, cooptando para isso
O PA N O R A M A D A D É C A D A outras esferas de poder – federal, estadual e
DE 1960 municipal. Esses pontos já estavam delineados
46
em seu discurso de posse (Soeiro,1967a) e
O ambiente socioeconômico e cultural seriam desenvolvidos no Plano Estratégico de
brasileiro, no final da década de 1960, era Ação que analisaremos adiante.
inteiramente distinto dos trinta anos anteriores. Internamente a DPHAN enfrentava uma
A industrialização, deflagrada a partir da grave crise. Desde o término do Estado Novo,
década de 1950, e a consequente urbanização como assinalou Joaquim Falcão, o Sphan
haviam transformado o país. Aquele foi o vinha perdendo prestígio (Falcão, 1984:21-
período de maior urbanização do Brasil, 38). Rodrigo reconheceria depois que os
quando o mercado imobiliário se estruturou maiores problemas não eram com o setor
em bases capitalistas. O desafio do patrimônio privado, mas com o poder público (Andrade,
não era mais a afirmação, senão sua gestão, 1987:53). O isolamento da DPHAN dentro
frente às pressões urbanas e econômicas. do governo era crescente e a importância
A posse de Soeiro ocorreu no período do órgão se devia mais ao alto conceito
mais duro da ditadura militar instalada com intelectual e ético de seu fundador e diretor,
o golpe de 1964. Naquele ano de 1967, foi do que pelo trabalho realizado (Fonseca,
1997:138-141). Rodrigo não escondia seu (168) e Rio de Janeiro (152), refletindo a

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
dissabor. Em carta de 1960, ao amigo e origem dos membros de seu grupo fundador

A C I O N A L
historiador argentino Mario Buschiazzo, (Brasil, 1994). Rodrigo defendia o tratamento
ele desabafava: ”continuo preso ao posto privilegiado dado a Minas Gerais, dada a
de chefia da Dphan enleado nas mesmas originalidade do Barroco mineiro.

N
R T Í S T I C O
dificuldades de sempre, que me parecem
mais aflitivas na medida em que me sinto O PLANO DE R E N AT O S O E I R O

A
envelhecer” (Andrade, 1986:24).

E
Entre 1953 e 1967, o número de Para orientar sua administração, Soeiro

I S T Ó R I C O
tombamentos havia se multiplicado por elabora, em 1968, um Plano Estratégico de
cinco, enquanto as verbas para conservação e Ação, que seguiria à risca, embora nunca o

H
restauração, deflacionadas, haviam encolhido tivesse divulgado1. Esse documento prova

A T R I M Ô N I O
para um terço da dotação de 1953 (Soeiro, cabalmente que a expansão silenciosa do
1967c). O órgão resistia, sem fazer concessão patrimônio na década de 1970 foi planejada

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P
ao governo, como uma grande família por ele e não “apesar dele”. Em cinco

D O
amalgamada pelo carisma de seu diretor. A capítulos, ele define sua linha de ação. O

E V I S T A
identidade da instituição com a figura de primeiro é a “Filosofia” do órgão, que ele

R
seu fundador/diretor fazia com que ele fosse toma de empréstimo a Rodrigo, sinalizando a
conhecido como o “Sphan de Rodrigo” ou, no continuidade com a sua tradição:
dizer de Drummond, “o casal Rodrigo-Sphan”.
Somente a extensão territorial, com seus
Trinta e um anos depois de fundado,
acidentes e riquezas naturais, somada ao povo
o órgão não tinha regimento interno e que a habita, não configura de fato o Brasil, nem
mantinha praticamente o mesmo quadro de corresponde a sua realidade. Há que computar
funcionários. O próprio Rodrigo ocupava também (,,,) a produção material e espiritual
47
o cargo em comissão. Ao deixar o serviço duradoura ocorrida de norte a sul e de leste a
público, não tinha direito a aposentadoria, oeste do país, constituindo as edificações urbanas
tendo sido necessário que o presidente e rurais, a literatura, a música, assim como tudo
Castelo Branco baixasse um decreto mais que ficou em nossas paragens, como traços de
caráter nacional, do desenvolvimento histórico do
concedendo-lhe uma pensão.
povo brasileiro (Andrade, 1987b:56).
Uma das críticas mais frequentes ao
Sphan, no “período heroico”, especialmente O texto prioriza as ações a serem
a endereçada pelos nordestinos – incluindo adotadas, começando pela reestruturação
Gilberto Freyre, inspirador do conceito administrativa e financeira do órgão. Em
de patrimônio nacional, com sua casa- seguida, propõe uma ampla campanha de
grande, capela e sobrado urbano –,,era o conscientização cidadã do que representava
favorecimento a Minas Gerais e ao Rio o patrimônio como valor cultural, de
(Azevedo, 2016). Dos 745 tombamentos identidade e como gerador de riqueza.
realizados no período, 320, ou cerca de 43%,
estavam concentrados em Minas Gerais 1. Ver detalhes do mesmo em Azevedo, 2013.
O segundo capítulo é denominado de Casas de Cultura de iniciativa do egrégio Conselho
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

“Instrumentação” e traça a estratégia para Federal de Cultura (...) (Soeiro, 1968).


A C I O N A L

modernizar a emperrada administração do


O quarto capítulo refere-se aos “Recursos”
órgão. Ela se impunha não só para melhor
e traça uma estratégia de sustentação do
N

atender aos encargos do Decreto-lei no


órgão, com fontes alternativas como a criação
R T Í S T I C O

25/1937, como para consolidar as leis


de fundos, taxação da atividade turística e
complementares e acautelar o impacto das
venda de produtos:
A

mudanças do país.
E

Além das verbas orçamentárias que lhe forem


I S T Ó R I C O

Assinale-se, ainda, o surto de desenvolvimento


atribuídas no orçamento da União, os órgãos
urbano e industrial do país que envolve, em seus
autônomos do PHAN e dos Museus Nacionais
H

planos, monumentos, conjuntos, até municípios


deverão participar de outras receitas, inclusive das
A T R I M Ô N I O

tombados, obrigando a DPHAN à mobilização de


provenientes de tributações e incentivos fiscais que
técnicos para o exame e o acompanhamento desses
incidirem direta ou indiretamente sobre atividades
projetos, além daqueles de sua própria iniciativa,
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o

relacionadas com a cultura, tais como as ligadas à


P

visando a defesa e a valorização de bens e sua indústria do turismo, às transações e exportações


D O

integração no plano nacional de turismo cultural, de objetos e obras de arte, à venda de ingressos,
E V I S T A

alguns já em realização, com assistência da Unesco publicações, reproduções, Fundos de Participação


e possivelmente em breve com a cooperação da
R

dos Estados e Municípios através de convênios,


OEA (Soeiro, 1968). Fundo Nacional de Desenvolvimento da Cultura,
a ser criado etc. (Soeiro, 1968).
O terceiro capítulo, “Irradiação
nacional”, trata da descentralização do órgão Por fim o plano trata da “Legislação”, ace-
e criação de uma rede de preservação do nando com a possibilidade de aperfeiçoamen-
patrimônio nacional, integrada pela DPHAN to da legislação patrimonial, especialmente no
e instituições assemelhadas estaduais e que toca a sua aplicação a cidades e conjuntos
48
municipais a serem criadas. A ideia era pôr históricos. Com a complementação do Decre-
em funcionamento, pela primeira vez, o to-lei n° 25, ele pretendia:
artigo 23 do Decreto–lei n° 25/1937, que a) Efetivação da legislação proposta pelo
previa acordos entre a União e os estados para Conselho Federal de Cultura, assegurando
a preservação do patrimônio nacional. utilização condigna e conveniente aos
monumentos inseridos nos Livros do Tombo da
A DPHAN, atuando em todo o país, é DPHAN.
órgão de irradiação nacional. Sua atuação será b) Distinção, em projeto a ser proposto, entre
complementada: zona monumental e zona de ambientação como
a) pelos Serviços de Patrimônio Histórico indispensável à maior e mais eficiente proteção aos
e Artísticos estaduais que têm incentivado e se bens tombados (...)
destinam a atender não só a proteção de obras c) Obrigatoriedade legal de prévia consulta ao
e monumentos de interesse regional, como de órgão encarregado da proteção do patrimônio (...)
auxiliar a União na preservação dos monumentos de toda e qualquer iniciativa, pública ou particular,
nacionais ali localizados (...) que interfira de algum modo na visibilidade e na
b) pelos Conselhos Estaduais de Cultura e as ambiência do bem tombado.
d) Conveniência de se atribuírem aos conservadores de pintura, escultura e

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
proprietários, mediante proposta legislativa, de documentos, arquivologistas e museólogos.
imóveis tombados que requeiram, benefícios e

A C I O N A L
O primeiro curso nacional de especialização
isenções compensatórios dos ônus do tombamento
em restauração para arquitetos ocorreria em
(Soeiro, 1968).
1974, na USP. A seguir foram realizados

N
R T Í S T I C O
Esse capítulo se ocupa também da cursos em convênio com as Universidades
obrigatoriedade da educação patrimonial e Federais de Pernambuco (1976) e Minas

A
da formação de técnicos, de diferentes níveis, Gerais (1978). A partir da sua quarta edição,

E
realizada em 1981 em Salvador, decidiu-se

I S T Ó R I C O
para cuidar da preservação do patrimônio.
Até então, a formação dos técnicos da dar sede ao curso naquela cidade. Convênio
DPHAN se fazia nos canteiros de obra. semelhante foi celebrado com a Universidade

H
Federal de Minas Gerais para formação de

A T R I M Ô N I O
O Plano Estratégico de Ação seria
institucionalizado com os Compromissos de técnicos em conservação e restauração de bens
Brasília (Compromisso, 1970) e de Salvador, móveis, dando origem ao Cecor.

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P
em 1971 (Brasil, 1973). Nele já estava

D O
prevista a criação do Ministério da Cultura, O I N Í C I O D A N O VA

E V I S T A
de um Fundo Nacional de Desenvolvimento ADMINISTRAÇÃO

R
da Cultura, como ocorreria em 1991 com
o Programa Nacional de Apoio à Cultura – Os dois primeiros anos da administração
Pronac, e de incentivos fiscais. Mas muitas de Soeiro foram de muito poucos recursos,
de suas propostas não avançaram devido reflexo da instabilidade do governo Costa e
ao receio, dentro da própria DPHAN, de Silva e da junta militar que o sucedeu. Mas a
fragilizar o Decreto-lei nº 25/1937. nova administração não ficaria imobilizada,
O Plano Nacional de Turismo, então aproveitaria esse recesso para reestruturar a
49
em discussão, deveria beneficiar os centros casa e buscar em instituições internacionais
históricos, monumentos e museus, mas os expertise para realizar os primeiros planos
lobbies do turismo não permitiram. Em diretores de patrimônio de cidades históricas.
compensação, negociações junto ao Tribunal A cooperação com a Unesco, que havia
de Contas da União resultaram na Resolução sido iniciada em 1952, teve um grande
nº 74/1970, que permitia destinar 5% reforço no final da administração de Rodrigo,
da cota-parte do Fundo de Participação por iniciativa do embaixador Carlos Chagas
dos Estados e Municípios a trabalhos de junto àquele órgão, e resultou na missão
preservação da cultura. A grande ampliação do arquiteto Michel Parent, entre 1966 e
dos recursos do órgão viria, porém, de 1968 (Leal, 2008). O título do relatório
convênios com outros ministérios, que era: Brésil, protection et mise en valeur du
analisaremos adiante. patrimoine culturel brésilien dans le cadre
Uma das recomendações do du développement touristique et économique,
Compromisso de Brasília dizia respeito que expressava a nova diretriz da Unesco.
à formação de arquitetos restauradores, No mesmo período, Soeiro participou da
50
elaboração das Normas de Quito, OEA, Passarinho para pedir apoio para o seu plano

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
1967. Esses dois documentos teriam um e surge a ideia da realização dos encontros

A C I O N A L
impacto muito positivo junto aos tecnocratas de governadores para a defesa do patrimônio
do regime militar. (Sant’Anna, 2015:215).
Em abril de 1968, no início de seu

N
De outra parte, se processava, com a Carta

R T Í S T I C O
mandato, Soeiro vai a Roma para uma de Veneza de 1964, uma revisão do conceito
reunião do Iccrom. Dali segue para Paris, de patrimônio, que deixava de ser a expressão

A
onde acerta com a Unesco a volta de Michel da identidade nacional para se converter

E
Parent para uma missão no Pelourinho.

I S T Ó R I C O
em uma herança comum de todos os povos.
Como esse não pôde voltar, em seu lugar foi O monumento isolado perdia importância
acertada a vinda do arquiteto Jean-Bernard para os sítios urbanos e naturais. A Unesco

H
Perrin, especialista em legislação de cidades

A T R I M Ô N I O
promulgaria, em 1972, a Convenção para a
históricas (Brasil, 1980b). Consegue também Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural
a vinda dos urbanistas ingleses Graeme

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
e Natural, em cuja preparação Soeiro teve

P
Shankland e Dave Walton, para elaborar
papel importantíssimo. O Conselho da

D O
um plano de turismo para o Pelourinho, e

E V I S T A
Europa lançava em 1975 a Declaração de
do arquiteto português Viana de Lima, para
Amsterdam, que defendia o princípio da

R
os estudos do plano diretor de Ouro Preto
conservação integrada, ou seja, a preservação
e avaliação de São Luís do Maranhão e de
de conjuntos históricos feita através da
Alcântara como centros históricos. Para o
planificação urbana (Cartas patrimoniais).
ano seguinte, foi acordada a realização de
O Iphan estava inteiramente identificado
missões no Pelourinho e em Ouro Preto e
com esse aggiornamento do pensamento
a elaboração de um plano urbanístico para
preservacionista e seu diretor afirmaria, no
Parati, pelo urbanista Limburg-Stirum.
final de seu mandato: 51
Através da OEA viriam o mexicano Flores
Marine, e por organismos da ONU o Mais preocupado com o monumento
colombiano Guillermo Trimmiño e o isolado nos seus 30 primeiros anos – 1937/1967
holandês Sylvio Mutal. – e atuando quase sempre isoladamente,
Estávamos no final da década de 1960 e o desenvolvimento econômico do país vai
o desenvolvimento econômico era a solução impor-lhe novas obrigações, que se traduzem
na necessidade de organização de planos de
recomendada pelos organismos internacionais
conjuntos urbanísticos, visando a preservação
para superar a pobreza regional, em especial
e o desenvolvimento dos núcleos históricos
pela Comissão Econômica para a América
afetados pelas novas estradas, represas, complexos
Latina e o Caribe – Cepal. O turismo
industriais etc., providências essas que definem
cultural, promovido pela Unesco e OEA, era uma segunda fase de atividades para o órgão e para
apresentado como a tábua de salvação, não só a qual era indispensável o apoio dos governos dos
do patrimônio, como da própria economia estados e dos municípios, fase esta marcada pelos
dos países da região. É nesse momento que o Encontros de Brasília e Salvador, em que foi fixada Azulejos de Portinari
Acervo: Iphan/
diretor da DPHAN procura o ministro Jarbas a nova política para o Iphan (Soeiro, 1979a). Márcio Vianna.
Essa nova orientação não ficou no papel. b) Criação de mais cinco novos Distritos, com
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

Entre 1967 e 1979, os conjuntos paisagísticos sedes em Belém, São Luis, Rio de Janeiro, Brasília
e Porto Alegre.
A C I O N A L

passaram de oito para quinze, enquanto o


c) Constituição de um serviço de Consultoria
número de cidades históricas cresceu de nove
Jurídica.
para quatorze e os conjuntos urbanísticos de
N

d) Reformulação completa dos seus quadros


R T Í S T I C O

24 para 29 (BRASIL, 1994). Começava-se a


administrativos e técnicos.
implementar, pela primeira vez, uma política
A

para esses sítios, em vez de apenas tombá-los Essa proposta se transformaria no novo
E

e congelá-los. Regimento Interno do Iphan (Portaria


I S T Ó R I C O

Na reestruturação administrativa do MEC n° 230/1976). Para implantar essa


MEC, de 1970, Soeiro conseguiu incluir a reforma, Soeiro designa como seu assessor
H

Irapoan Cavalcanti de Lyra, seu colega no


A T R I M Ô N I O

transformação da DPHAN em Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Conselho da Casa de Rui Barbosa, que havia
Iphan (Decreto n° 66.967, de 27/7/1970). transformado aquele museu-biblioteca em
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P

O dilema estava entre criar uma fundação uma fundação dinâmica.


D O

com maior agilidade, mas sem poder


E V I S T A

embargar obras, ou mantê-lo como um órgão A ASSOCIAÇÃO IPHAN/DAC


R

centralizado do MEC, com todas as travas E O PAT R I M Ô N I O I M AT E R I A L


que isso implicava, porém com poder de
polícia e direito a fórum privilegiado. Unificar Tendo integrado o Grupo de Trabalho
os dois modelos de instituição parecia muito Incumbido de Estudar a Reforma e
difícil. A solução encontrada foi a criação de Atualização das Instituições Culturais, em
uma autarquia, o Iphan. A história recente do 1968 (Decreto n° 63.235/1968), Soeiro
órgão demonstrou o acerto da opção adotada. seria convidado pelo ministro Passarinho,
52
A transformação da DPHAN em Iphan dois anos mais tarde, para organizar o
consistiu na adoção da proposta encaminhada Departamento de Assuntos Culturais –
ao MEC, pouco antes da posse de Soeiro, DAC, do Ministério, cumulativamente com
com base no art. 172 do Decreto-lei n° 200, a direção do Iphan. Diante das limitações
de 25/2/1967. O fato dele incorporar essa do Decreto-lei nº 25/1937 no que se refere
proposta a seu Plano Estratégico de Ação revela aos bens imateriais, a criação do DAC
sua participação na elaboração da mesma: abria a possibilidade de protegê-los com
instrumentos adequados. Não se contava,
a) Criação de mais quatro Divisões
até então, com uma política cultural
Técnicas: Restauração de Obras de Talha e
integrada, e o DAC iria fazer as primeiras
Pintura; Arqueologia; Museus Regionais e
formulações. É com o DAC que se inicia a
Casas Históricas; e Difusão Cultural, que
deveria “abranger não só a divulgação através do institucionalização do setor cultural no país,
ensino, como a iniciativa de execução de filmes que resultaria na criação do Ministério da
documentários, publicações, programas de Rádio Cultura, em 1985 (Azevedo, 2013). Não se
e TV Educativa (...) (Soeiro, 1968). pode, portanto, desvincular a ação de Iphan
da do DAC, conduzida pelo mesmo diretor. campos da cultura, pretende integrar, preservar

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
Em entrevista, após sua posse no DAC, e incentivar tudo aquilo que for digno de apreço
e que, ao mesmo tempo, torne as populações

A C I O N A L
Soeiro aponta, além das dificuldades
conscientes dos seus valores locais dentro da
conceituais, a insensibilidade da burocracia
cultura nacional (Soeiro, 1973).

N
do MEC para com a cultura, totalmente

R T Í S T I C O
absorvida pelas questões educacionais, e a O inventário seria um dos objetivos da
falta de recursos para cumprir sua missão. fundação a ser criada para tornar mais ágil a

A
Mas, mesmo assim, elabora e publica, em ação do Iphan, mas não chegou a ser realizado

E
1973, o Programa de Ação Cultural – PAC,

I S T Ó R I C O
diante da extensão da tarefa e pelo fato de
no qual demonstra igual preocupação com Soeiro ter deixado a direção do DAC para
a cultura do passado e do presente, do se dedicar integralmente ao Instituto. Deve-

H
A T R I M Ô N I O
patrimônio material e imaterial e com o se ressaltar que não existia, na época, uma
fomento da produção cultural. experiência internacional nesse campo, salvo
em uma cultura muito diversa da ocidental,

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
O Departamento de Assuntos Culturais, do

P
como a japonesa. A primeira manifestação da

D O
Ministério da Educação e Cultura, organizou
Unesco sobre o assunto seria a Recomendação

E V I S T A
o PAC, através do qual se propõe à execução e
a criação de novas condições para que o acervo sobre a salvaguarda da cultura tradicional e

R
brasileiro no campo artístico, histórico, literário, popular, de 1989.
arqueológico – e nas demais manifestações do As manifestações culturais imateriais e
pensamento – seja resguardado, ao tempo em que performáticas, além de registradas, deveriam
se intensifiquem e se multipliquem as atividades em ser incentivadas, amparadas e desenvolvidas.
todos os campos da cultura no país (Soeiro, 1973). Para isso foi criada, em 1975, no DAC, a
O principal programa do DAC era Fundação Nacional de Arte – Funarte, que

o Projeto Rodrigo M. F. de Andrade, de cuidaria da música – popular e erudita –,


53
das artes plásticas e visuais, incorporando
identificação e registro integral do patrimônio
a Fundação Nacional de Artes Cênicas –
nacional. Resgatava-se assim o espírito da
Fundacen e o Instituto Nacional de Folclore
proposta de Mário de Andrade, de 1936, para
– INF. Subordinados ao DAC também
o Sphan.
estavam a Fundação do Cinema Brasileiro
O Ministério da Educação e Cultura chegou – FCB e seu braço comercial a Embrafilme,
à conclusão de que se apresenta o momento criada em 1969 para divulgar o filme nacional
de se proceder a um diagnóstico do estágio de
no exterior, mas que seria redirecionada,
maturação cultural atingido por nosso processo
em 1975, para a produção e distribuição de
histórico, utilizando-se as vantagens das ciências
filmes nacionais no mercado interno, de qual
do homem e da tecnologia moderna, posta à nossa
chegou a conquistar 40%.
disposição e com as quais nos será permitido o
levantamento da realidade cultural brasileira. O Programa de Ação Cultural do DAC
Assim, o Projeto Rodrigo M. F. de Andrade, seria a semente do primeiro plano federal
promovendo um inventário da inteira produção de cultura, intitulado Política Nacional
do passado e do presente brasileiros, nos diversos de Cultura – PNC, de 1975, elaborado
por uma comissão de membros do MEC o objeto da proposta, aprovando-se, assim,
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

e do Conselho Federal de Cultura, sob a a Convenção para a Proteção do Patrimônio


A C I O N A L

coordenação de Afonso Arinos de Melo Mundial Cultural e Natural, na 17ª Assem-


Franco, intelectual muito ligado ao Iphan bleia da Unesco (Jornal do Brasil, 1972).
(Fonseca, 1997:183). Nele o conceito de No que toca à OEA, assinale-se a reunião
N
R T Í S T I C O

cultura como identidade era oficializado pelo que promulgaria as Normas de Quito (1967)
MEC. O país só iria ter um segundo Plano e a reunião para elaboração do anteprojeto
A

Nacional de Cultura em 2010. do Programa Regional de Desenvolvimento


E

Em função dos trabalhos que se Cultural e Avaliação do Desempenho do


I S T Ó R I C O

realizavam no país naquele período, o Departamento de Assuntos Culturais,


diretor do Iphan foi convidado a participar Washington, 1968. Como membro do
H

de numerosas reuniões da Unesco. Além Comitê Interamericano de Cultura – Cidec,


A T R I M Ô N I O

da reunião do ICCROM, já referida, Soeiro participou, entre 1970 e 1974, de


assinale-se o Seminário sobre Formação de sete das oito reuniões do grupo, realizadas
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P

Arquitetos em Conservação e Restauração de em diferentes países das Américas. Em


D O

Monumentos, Pistoia, 1968; a Conferência 1972, Soeiro presidiu a reunião do grupo


E V I S T A

Intergovernamental sobre Aspectos de especialistas designados pela OEA para


R

Institucional, Administrativo e Financeiro das o Estabelecimento de Normas Visando


Políticas Culturais da Unesco, Veneza 1970; a Identificação, Proteção e Vigilância do
e a reunião do Comitê de Experts sobre a Patrimônio Cultural dos Países Americanos,
Preservação e Expansão dos Valores Culturais, São Paulo, 1972. Participou, ainda, da IV
Varsóvia, 1977 (Azevedo, 2013). Reunião do Conselho Interamericano de
Fundamental seria a contribuição brasilei- Educação, Ciência e Cultura – CIECC),
ra na reunião do Comitê Especial de Peritos em Mar del Plata 1972, onde foi aprovada
54
Intergovernamentais incumbidos de preparar a resolução sobre o mesmo tema (Soeiro,
os projetos de Convenção e Recomendação ca.1967d).
sobre a Proteção de Monumentos, Conjuntos
e Lugares Históricos, Paris, 1972. A maioria
dos 52 delegados nacionais queria que a Con- O PROGRAMA DAS CIDADES
venção tivesse como foco o patrimônio cultu- HISTÓRICAS
ral, de acordo com a convocação da reunião,
enquanto os Estados Unidos e o Canadá, Para os militares, uma das questões mais
com seu grande peso político e possuidores preocupantes eram os desníveis regionais, que
de grandes parques naturais, pressionavam provocavam tensões sociais e expulsavam os
para que ela tratasse apenas de temas ligados retirantes em busca de melhores condições
ao patrimônio natural. Armou-se, assim, devida. O maior desses desafios ocorria em
uma contenda aparentemente sem solução. Pernambuco, com as Ligas Camponesas,
Soeiro, eleito por aclamação vice-presidente lideradas pelo deputado Francisco Julião. Por
do Comitê, convence as duas partes a ampliar um acaso estavam em altos postos do governo
federal representantes das duas regiões menos inspiração na reconstrução europeia depois

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
desenvolvidas do país: João Paulo Reis Veloso, da II Guerra e recomendações da Unesco e

A C I O N A L
piauiense, da Secretaria de Planejamento da OEA.
e Coordenação Geral da Presidência da A primeira reunião do grupo foi realizada
República – Seplan-PR, Jarbas Passarinho,

N
na representação da Seplan-PR no Recife, em

R T Í S T I C O
acreano, ministro do MEC e, logo abaixo janeiro de 1973, e ali ficaria sediado o PCH.
dele, Renato Soeiro, paraense, diretor do Os recursos eram provenientes do fundo

A
Iphan e DAC, e Josué Montelo, maranhense, Plano de Ações Integradas da Seplan-PR, que

E
diretor do recém-criado Conselho Federal

I S T Ó R I C O
financiava 80% dos projetos apresentados
de Cultura. Eles e outras lideranças políticas por estados e municípios, e estes bancavam
e até militares viam no desenvolvimento
os 20% restantes. Os projetos deviam ser

H
daquelas regiões, mais que na repressão, a

A T R I M Ô N I O
previamente aprovados pelo Iphan. Com esse
solução para o problema2. Com a riqueza
programa milionário, o protagonismo da
patrimonial da região, experiência de

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
preservação do patrimônio se deslocou do Rio

P
planejamento de cidades históricas e as

D O
para o Recife.
recomendações da Unesco e da OEA, o

E V I S T A
Em 1975, em plena ascensão do PCH, o
diretor do Iphan sugeriria um programa de
brilhante Aloisio Magalhães, designer oficial

R
desenvolvimento do Nordeste com base no
do regime militar, mas sem antecedentes na
turismo cultural.
área do patrimônio, criou o Centro Nacional
O Iphan, com o novo estatuto, podia
firmar convênios com outros ministérios
e efetivamente firma um amplo convênio
com a SEPLAN-PR visando a preservação
do patrimônio cultural. O programa foi
55
criado pela Exposição de Motivos nº 076-B,
de 21/5/1972, e detalhado por um Grupo
de Trabalho Interministerial reunindo
representantes do MEC, Seplan-PR, Sudene
e Embratur. O representante do MEC era
o diretor do Iphan e DAC, articulador da
proposta. Chamava-se Programa Integrado
de Reconstrução das Cidades Históricas
do Nordeste com sua Utilização para Fins
Turísticos, nome depois reduzido para
Programa das Cidades Históricas, ou PCH.
A sua denominação original evidencia a

2. Vanderli Silva (2001) aponta forte influência da doutrina da


Escola Superior de Guerra – ESG na política cultural inaugurada
em 1974.
de Referência Cultural – CNRC, através núcleos urbanos tombados. Somente uma ação
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

de convênio da Secretaria de Educação e conjunta com aqueles organismos financeiros


aliados, mais uma vez, aos órgãos de cultura será
A C I O N A L

Cultura do Distrito Federal e o Ministério da


possível resguardar a nossa identidade cultural,
Indústria e Comércio, como um programa
possibilitando, de maneira democrática, a solução
paralelo e alternativo ao Iphan.
N

para o problema que a coletividade brasileira


R T Í S T I C O

O sucesso do PCH foi tanto, que ele


enfrenta para garantir estes direitos básicos do
foi, por reivindicação, estendido em 1977 indivíduo: o da habitação e o da livre transmissão
A

aos estados de Minas Gerais, Espírito Santo da cultura (Soeiro, 1979c).


E

e Rio de Janeiro. Nesse período, o Sudeste


I S T Ó R I C O

volta a arrebatar dois terços dos recursos do Em 1983, foi realizada a última dotação

programa, assustando os técnicos do Recife. importante de recursos para o programa,


H

com um empréstimo de 7 milhões de dólares


A T R I M Ô N I O

Entre 1973 e 1979, foram financiados 193


projetos de restauração de monumentos, além concedido pelo governo francês. Entre 1973
e 1983, foram investidos no PCH cerca
das intervenções em dez conjuntos urbanos,
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o

de 73,8 milhões de dólares, incluídas as


P

da realização de quinze planos diretores de


D O

contrapartidas dos estados, um montante


preservação de cidades históricas, onze cursos
E V I S T A

de recursos com que nunca mais a área


e seminários de formação de mão de obra
do patrimônio viria a contar (Sant’Anna,
R

de níveis médio e superior e oito projetos de


2015:235).
inventário e pesquisa (Sant’Anna, 2015:234).
O PCH seria estendido a todo o país,
em 1979, e incorporado ao Iphan. Mas o
A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA
E A N O V A P O L Í T I C A C U LT U R A L
órgão não tinha os recursos da Seplan-PR,
sobretudo durante a época do chamado
A progressiva desativação do PCH, no
“milagre brasileiro”. Com as atribuições
56 início dos anos 1980, deveu-se não só à menor
aumentadas e as verbas reduzidas, Soeiro, sem
disponibilidade de recursos como à mudança
desanimar, imaginava lançar mão de recursos
de foco da política cultural. Nos últimos anos
destinados à habitação social do Banco
da década de 1970, com a crise econômica
Nacional da Habitação – BNH3.
que obrigou o Brasil a pedir empréstimo
Uma nova etapa é aguardada com a ao Fundo Monetário Internacional, a volta
incorporação definitiva do Programa (das galopante da inflação e a crescente oposição
Cidades Históricas) ao Iphan e o envolvimento
ao regime militar, era preciso reformular a
indispensável com outros setores da Administração
política cultural, como já chamaram a atenção
Pública e da área privada, o que deverá resultar
Vera Milet (1980), Vanderli da Silva (2001) e
na cooperação de organismos federais de
financiamento para a tarefa de preservação e Roberto Sabino (2012).
valorização do acervo residencial dos bairros e Com efeito, na década de 1970, o Estado,
que, em 1964, rompera com o pacto populista,
3. No ano anterior este autor havia apresentado uma proposta definindo-se claramente como um Estado de
nesse sentido, num seminário do BNH em Salvador, que foi
muito bem recebido pelo banco e pelo Iphan (Azevedo, 1988). classe, encontra-se em crise de legitimação,
necessitando, urgentemente, ampliar suas bases populares da religião, do folclore, de hábitos de

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
sociais. Para tanto, recorre a um ideário em que alimentação, hábitos de cura, hábitos de lazer etc.,
todos se sintam representados. É nesse sentido que e não somente traços característicos do consumo

A C I O N A L
retoma o ideário contido no projeto de proteção elitista (Demo, 1980:89-90).
aos bens culturais de autoria do escritor Mário de

N
Andrade, proposto em 1936, que valoriza melhor

R T Í S T I C O
Essa era uma reivindicação difusa de
a heterogeneidade e complexidade culturais
grupos marginalizados da sociedade brasileira
inerentes à formação social brasileira (Milet,
que buscavam o reconhecimento de sua

A
1988:192).

E
identidade étnica, como negros e índios. Esses

I S T Ó R I C O
O Gal. João Figueiredo toma posse grupos não tinham monumentos, mas uma
em março de 1979 e nomeia para o MEC cultura imaterial importante. A cooptação das

H
o pernambucano de formação Eduardo camadas populares fazia parte da estratégia de

A T R I M Ô N I O
Portella. Este, por sua vez, indica o sociólogo abertura política gradual e controlada, frente
e filósofo Pedro Demo como Subsecretário- ao fortalecimento de movimentos sociais,

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
Geral do MEC. Demo trabalhava no Ipea, do

P
como as Comunidades Eclesiais de Base e

D O
Ministério do Planejamento, desde 1970. O outros (Sabino, 2012:5)

E V I S T A
PCH era um projeto custoso e de resultados a Por outro lado, durante a década de
longo prazo, o que não atendia aos interesses 1970, a indústria imobiliária se fortaleceu

R
imediatistas do governo de transição do Gal. fundando a Associaçao de Dirigentes de
Figueiredo. Pedro Demo, orientado por Empresas do Mercado Imobiliário – Ademi
Portella, seria o principal formulador da nova em praticamente todos os estados. A nova
política cultural do país. É dele o texto que se política cultural desviava o foco dos sítios
segue, de 1979: urbanos e naturais para bens imateriais, sem
No quadro da política social, o cuidado valor de mercado, aliviando o orçamento
57
cultural aparece normalmente como secundário. do órgão e a tensão com o setor imobiliário,
Essa ótica desagrada os culturalistas, mas, uma que pressionava contra o tombamento
vez bem enfocada, pode ser recolocada na linha de conjuntos históricos, cidades e até
da sedimentação de traços culturais participativos,
municípios inteiros.
como pontos altos do processo educativo, bem
Além dessas duas forças, existia uma
como do processo cultural.
luta surda pelo controle de um órgão que
Dentro de um país com profundos possuía naquele momento muitos recursos
desequilíbrios regionais e sociais, a meta prioritária e prestígio junto a governadores e prefeitos.
da política social é a população de baixa renda, A disputa pelo Iphan não era apenas
que, além de muito pobre, é também maioria
conceitual, senão política e regionalista.
(...). Esse conteúdo cultural pode revelar alienação
Pode-se dizer que a mudança nos rumos do
acentuada, quando se perde na identificação de
Iphan em 1979 foi, além de uma tentativa
valores ligados à elite, como se o povo não tivesse
cultura. Por isso, insistem em que a identificação de cooptação de setores populares para a
se volte para o todo da sociedade, principalmente transição democrática gradual, a revanche
para o povo, podendo valorizar manifestações do Nordeste em razão do monopólio do
órgão por um grupo de intelectuais de antropólogos e filósofos que vieram do CNRC.
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

Minas Gerais e do Rio de Janeiro, durante A Fundação Pró-Memória tinha as atribuições


A C I O N A L

43 anos. de definir a política do órgão, selecionar


O discurso alternativo de Aloisio referências culturais e financiar o sistema. A
Magalhães, sua relação com os militares, os
N

Sphan tinha as funções duras da aplicação


R T Í S T I C O

trabalhos do CNRC, ao lado da sua origem da lei: tombar, fiscalizar e embargar. Os


pernambucana, tornavam o seu nome o mais funcionários da Sphan recebiam os salários da
A

adequado para tocar a nova política no Iphan. administração pública e os da Fundação, os de


E

Com seu carisma e o apoio da Globo, para


I S T Ó R I C O

mercado. Enquanto Aloisio, com seu carisma,


quem havia feito sua primeira logomarca, dirigiu os dois órgãos não houve grandes
Aloisio se transforma em uma estrela conflitos, eles surgiriam depois.
H

nacional. Entrevistado, logo após sua posse,


A T R I M Ô N I O

Aloisio transforma, então, o DAC em


por um jornalista que lhe perguntou se lhe Secretaria de Cultura – SEC, núcleo do
causou surpresa a sua nomeação para diretor futuro ministério e assume sua direção.
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P

do Iphan, Aloisio responde: Para o sistema Sphan/Pró-Memória ele


D O

nomeia Irapoan Cavalcanti de Lyra, carioca,


E V I S T A

Há duas respostas. A primeira: não me


causou surpresa (...). O ano passado comecei a me filho de tradicional família pernambucana,
R

preocupar com a institucionalização do CNRC antigo colaborador de Soeiro. Com sua


(...). Então cheguei à conclusão que havia um morte prematura, em 1982, os técnicos
órgão oficial onde o CNRC caberia perfeitamente:
da Seplan-PR no Recife, da Sudene e um
o Iphan (...). Me surpreendi com a nomeação
grupo de intelectuais do local conseguem
porque há grande diferença entre ter um conceito
de um determinado problema e se deparar, depois, de Eduardo Portella nomear para sucedê-
com a realidade, a fim de resolvê-lo (Magalhães, lo na Secretaria de Cultura do MEC outro
58 1985:113-114). conterrâneo, Marcos Vinicios Vilaça, membro
do Conselho Diretor da Fundação Joaquim
Após a posse, a nova diretoria do Iphan
Nabuco. O novo secretário mantém Irapoan
põe em execução estudos que encontrou de sua
Lyra na presidência do sistema Sphan/Pró-
antecessora, como uma fundação para agilizar
Memória, mas a disputa entre os dois grupos
a ação do órgão. Aloisio opta por criar um
continuaria.
sistema formado por uma Secretaria de Estado,
O Sphan/Pró-Memória não conseguiu
a Sphan, e uma fundação. Sistema que viria
criar um instrumento apropriado de
a ser designado como Sphan/Pró-Memória.
preservação do patrimônio imaterial, nem
Entre os objetivos da nova fundação figurava o
abandonar o patrimônio de “pedra e cal”
Projeto Rodrigo M. F. de Andrade, do DAC,
protegido por lei. Uma das suas mais fiéis
para a realização do grande inventário cultural,
colaboradoras reconhece que a proposta de
que nunca foi realizado.
Aloisio permaneceu apenas no discurso.
Aloisio manteve na Sphan os arquitetos
que ele apelidou de “pedra e cal” e colocou na O fato é que, na prática, a síntese pretendida
Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM os por Aloisio Magalhães não chegou a se concretizar
realmente, e as inevitáveis diferenças de orientações da dele. José R. S. Gonçalves, referindo-se

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
dos técnicos das três instituições (Sphan, CNRC à primeira publicação da Fundação Pró-
e PCH) “fundidas”, sobretudo entre os da

A C I O N A L
Memória, que pretendeu historiar a trajetória
“referência” e os da “pedra e cal”, não foram
do Iphan (Brasil, 1980a), comenta:
superadas em uma proposta de trabalho comum.

N
A proposta do CNRC, apropriada e desenvolvida De acordo com a historiografia oficial

R T Í S T I C O
pela FNPM, encampada pela SEC e, em certa do Iphan, o “período heroico” da instituição
medida, inclusive pela Constituição Federal corresponde àquele que se estende desde a sua

A
de 1988, ficou conhecida praticamente apenas criação em 1937 até a morte de Rodrigo, em

E
I S T Ó R I C O
enquanto discurso (Fonseca, 1997:200-201). 1969. Um segundo período é identificado por
essa historiografia, de 1969 (sic) a 1979, tempo
Com a redemocratização e a criação do em que a direção esteve a cargo de Renato

H
Ministério da Cultura pelo presidente José Soeiro, próximo colaborador de Rodrigo, mas

A T R I M Ô N I O
Sarney, em 1985, o seu mais duradouro que não foi marcada por quaisquer mudanças
ministro, o cearense Celso Furtado, significativas em termos de política oficial de

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
patrimônio (Gonçalves, 1996:51).

P
entendendo que a disputa era regionalista,

D O
nomeia para a Fundação Pró-Memória o A ocultação da obra de Soeiro pelo

E V I S T A
pernambucano Joaquim Falcão, ligado à Sphan/Pró-Memória era fundamental para a
Fundação Joaquim Nabuco, e para a Sphan o

R
afirmação da nova política cultural e do grupo
professor Ângelo Oswaldo, mineiro. Mas essa emergente. Quem melhor resumiu o legado
divisão salomônica não resolveria a disputa. da administração de Renato Soeiro foi Marcia
Na onda neoliberal, Sarney, na tentativa Sant’Anna em sua imparcial história do Iphan
talvez de resolver a contenda, delega ao setor registrada no livro Da cidade-monumento à
privado a política cultural do país, com a cidade-documento.
lei de renúncia fiscal que levou seu nome.
A gestão de Renato Soeiro correspondeu ao 59
Diante das infindáveis brigas intestinas do
processo de modernização administrativa do Iphan
órgão, o presidente Collor de Mello dissolveu
e à democratização da questão do patrimônio.
o sistema Sphan/Pró-Memória , em 1990,
Foi nesse período que o patrimônio, apesar
e o substituiu pelo Instituto Brasileiro de das resistências, extrapolou o âmbito do órgão
Patrimônio Cultural – IBPC, de vida curta. criado por Rodrigo M. F. de Andrade e passou
Com o presidente Fernando Henrique a ser também assunto de governos estaduais e
Cardoso, o órgão voltaria a ser um instituto, municipais. Correspondeu ainda ao período em
em 1994, como havia concebido Renato que o Iphan contou com o maior volume de
Soeiro. recursos para investimento desde a sua criação, o
que, a nosso ver, põe por terra a afirmação de que
Soeiro havia favorecido o Nordeste com
Renato Soeiro não gozava de bom trânsito político
o PCH e valorizado o patrimônio imaterial
no governo. Bastaria também lembrar que ele foi
e popular com a Funarte, mas era o herdeiro o primeiro diretor do Departamento de Assuntos
institucional de Rodrigo e seu grupo, ainda Culturais do MEC, origem e embrião do futuro
que não fosse mineiro, nem carioca, e tivesse Ministério da Cultura (...). Não fossem suficientes
uma plataforma de ação muito distinta os fatos citados, a administração de Soeiro também
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

60
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
Maranhão
Acervo: Iphan.
Bumba meu boi,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
61

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
poderia ser caracterizada como o momento em que ______. ”PCH: a preservação do patrimônio cultural
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979

se formulou uma nova política de preservação de e natural como política regional e urbana”. In: Anais do
Museu Paulista, vol. 24, n.1. São Paulo: jan-abr. 2016.
A C I O N A L

áreas urbanas (Sant’Anna, 2015:256-257). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_


arttext&pid=S0101-47142016000100237, acessado em
Soeiro foi demitido sumariamente, 1º/12/2016.
N

após 41 anos de serviços em prol da cultura


R T Í S T I C O

BRASIL, MEC/DPHAN. Compromisso de Salvador.


nacional, sem, ao menos, um telefonema 2.º Encontro de Governadores para a Preservação do
Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Natural
do ministro Eduardo Portella. Coube a
A

do Brasil. Rio de Janeiro, 1973.


Carlos Drummond de Andrade, seu colega
E

BRASIL, MEC/Sphan/Pró-Memoria. Proteção e


I S T Ó R I C O

de lutas no Iphan, fazer o desagravo numa revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma
trajetória. Brasília, 1980a.
nota jornalística sutilmente chamada de “A
______. Restauração e revitalização de núcleos históricos:
H

recompensa de Soeiro”, que termina assim:


A T R I M Ô N I O

análise face à experiência francesa. Brasília, 1980b.


A alegria de ter bem cumprido a missão BRASIL, MinC/Sphan/FNPM. Bens móveis e imóveis
sem embargo daquilo que não pôde fazer, por inscritos nos Livros do Tombo do Patrimônio Histórico e
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o

Artístico Nacional, 4ª ed. Rio de Janeiro, 1994.


P

deficiências insanáveis do aparelho administrativo


D O

CARTAS PATRIMONIAIS. Disponível em www.


brasileiro, há de pousar na casa de Renato Soeiro
portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/226. Acessado em
E V I S T A

como recompensa melhor, senão única, do seu 2/12/2016.


trabalho (Andrade, 1979).
R

CHUVA, Márcia R. R. Os arquitetos da memória:


sociogênese das práticas de preservação do patrimônio
REFERÊNCIAS cultural no Brasil (1930-1940). Rio de Janeiro: Editora
da UFRJ, 2009.
COMPROMISSO de Brasília. São Paulo: Departamento
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Rendição
de História da Universidade de São Paulo/Instituto de
de guarda”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25
Arquitetos do Brasil-SP; 4o Distrito da DPHAN, 1970.
jun.1967, apud A lição de Rodrigo. Recife: Amigos da
DPHAN,1969, p. 32-33. DEMO, Pedro. Pobreza socioeconômica e política.
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FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em
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Aula proferida no Instituto Garujá-Bertioga, São Paulo,
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AZEVEDO, Paulo Ormindo. A recuperação do JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 8 abr.1972.


patrimônio habitacional. Rua –Revista de Urbanismo LEAL. Claudia Feierabend Baeta (org.). As missões da
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MILET, Vera. A teimosia das pedras: um estudo sobre a ______. “Discurso de agradecimento à homenagem

Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:


a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
preservação do patrimônio ambiental do Brasil. Olinda: do Instituto de Arquitetos do Brasil”. Rio de Janeiro,
Prefeitura Municipal, 1988. 30 mar.1979c. (Arquivo Noronha Santos. Sphan –

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defendida no PPG de Museologia e Patrimônio da SOPHIA, Daniela. “As políticas de preservação do

N
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www.culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/
Soeiro (1967-1979)”. In: GRANATO, Marcus (org.).
files/2012/09/Roberto-Sabino.pdf. Acessado em
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1º/12/2016.
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A
SANT’ANNA, Marcia. Da cidade-monumento à cidade- Disponível em http://www.mast.br/hotsite_mast_30_

E
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I S T Ó R I C O
anos/pdf/volume_01.pdf. Acessado em 1º/12/2016.
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SILVA, Vanderli M. da. A construção da política cultural
no regime militar: concepções, diretrizes e programas

H
(1974-1978). (Dissertação de Mestrado em Sociologia).

A T R I M Ô N I O
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001, p. 211.
SOEIRO, Renato de A. D. “Discurso proferido no ato da

Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
posse como Diretor do Patrimônio Histórico e Artístico

P
D O
Nacional”. Rio de Janeiro, 24 jun.1967a. (Arquivo
Noronha Santos, Sphan – Personalidades. SOEIRO,

E V I S T A
Renato de Azevedo Duarte. Pasta. 93.03.13.S). Não
paginado.

R
______. “Notas sobre a reunião de Quito”, 14/2/1967b.
Iphan/Copedoc, Rio de Janeiro, Personalidades.Soeiro,R,
IIA, p.422.
______. “Reaparelhamento do patrimônio histórico
e artístico nacional”. Trabalho apresentado na 14ª
Sessão Plenária do Conselho Federal de Cultura, Rio de
Janeiro, 27 abr.1967c. Iphan/Copedoc. Rio de Janeiro,
Personalidades, Soeiro, R., IIA, p.422. Matriz da Lapa-PR
Acervo: Iphan/
Cyro Corrêa Lyra.
______. “Curriculum Vitae”. Rio de Janeiro, ca. 1967d.
(Arquivo Noronha Santos, Sphan – Personalidades. 63
SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte, pasta.
93.03.13.S). Não paginado.
______. “Plano Estratégico de Ação”. Rio de Janeiro,
14 set. 1968. (Arquivo Noronha Santos, Sphan –
Personalidades. SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte.
Pasta. 93.03.13.S). Documento datilografado sem título,
em papel timbrado do órgão, definindo a política a ser
seguida pelo órgão. Título atribuído pelo autor. Não
paginado.
______. O Programa de Ação Cultural, em 1973. Brasília:
MEC/DAC, 1973. Não paginado.
______. “Pronunciamento lido na sessão do Conselho
Consultivo do Iphan 13 mar.1979a”. Rio de Janeiro:
Arquivo Noronha Santos, Sphan – Personalidades.
SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte, Pasta. 93.03.13.S.
Não paginado.
______. “Discurso de transmissão do cargo”. Rio de
Janeiro, 27 mar.1979b. (Arquivo Noronha Santos. Sphan
– Personalidades. SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte.
Pasta. 93.03.13.S). Não paginado.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

64
Zoy Anastassakis A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
Zoy Anastassakis

A C I O N A L
A CULTURA COMO PROJETO :
A LOISIO M AGALHÃES E SUAS I PHAN

N
IDEIAS PARA O

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO do Iphan1 no final da década de 1970 se
caracteriza como marco de uma substantiva

Para o Iphan, 1979 foi um ano de virada nas políticas públicas de patrimônio

P
cultural no Brasil, que, orientada segundo

D O
rupturas. Com a nomeação de Aloisio

E V I S T A
um “paradigma antropológico” (Anastassakis,
Magalhães para a sua presidência, se fundem
2014), opera uma significativa ampliação
ao Instituto o Programa das Cidades

R
semântica do conceito de patrimônio
Históricas PCH e o Centro Nacional
cultural, que a partir de então passa a
de Referência Cultural – CNRC. Logo
incorporar, progressivamente, os bens
em seguida, o órgão é reestruturado, culturais de natureza imaterial ou intangível
decompondo-se em duas entidades, a saber, a e, dentre esses, as manifestações da cultura
Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico popular.
Nacional – Sphan e a Fundação Nacional Assumindo a relevância da mudança 65

Pró-Memória – FNPM. A essa reestruturação paradigmática operada em meio à gestão de


institucional, segue-se também uma Aloisio Magalhães à frente do Iphan, este
reorganização das políticas de preservação do artigo propõe trazer à tona, mais do que as
patrimônio cultural conduzidas pelo órgão. ações de preservação do patrimônio cultural

A partir dessa reconfiguração, se inaugura desenvolvidas durante o período de 1979


a 1982, o debate e os antecedentes que
uma segunda fase das políticas públicas
informam a virada cultural e projetiva que
de preservação do patrimônio cultural no
se articula em meio às políticas públicas de
Arte popular
país, conhecida como “fase moderna”, que Acervo: Copedoc/Iphan/
patrimônio cultural a partir de 1979. Marcel Gautherot.
se distingue da “fase heroica”, caracterizada
pelo período compreendido entre 1937
e 1967, em que o Iphan é presidido por
Rodrigo Melo Franco de Andrade. Assim, a 1. Para discutir a atuação de Aloisio Magalhães à frente do Iphan,
ver também Falcão, 2001 e 2003, Fonseca, 2005 e Gonçalves,
chegada de Aloisio Magalhães à presidência 2002.
ALOISIO MAGALHÃES convergente, nas inúmeras conversas que teve em
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan

E SEU
P R O J E T O P O L Í T I C O PA R A O seu gabinete em Brasília com Aloisio (idem).
A C I O N A L

IPHAN Logo ao assumir a presidência do Iphan,


Aloisio propõe o desdobramento do Instituto
N

Antes de abordar o debate que informa


em dois órgãos2, a Secretaria do Patrimônio
R T Í S T I C O

as mudanças capitaneadas por Aloisio


Histórico e Artístico Nacional – Sphan e
Magalhães à frente do Iphan, é importante
a Fundação Nacional Pró-Memória. Em
A

comentar alguns dos antecedentes e das ideias


E

novembro de 1979, em discurso ao presidente


I S T Ó R I C O

que compõem a trajetória profissional do


da República João Figueiredo por ocasião da
designer pernambucano e que contribuem
assinatura do projeto de lei que autorizava a
para a sua chegada à presidência do Instituto.
H

criação da Fundação, Aloisio, talvez fazendo


A T R I M Ô N I O

Aloisio, que desde 1960 estava à frente de


menção à iminência de abertura política,
um dos maiores escritórios de design do país,
comenta o caráter transitório das funções
no início da segunda metade da década de
ocupadas por cada um dos presentes na
P

1970 encontra-se plenamente envolvido


D O

Zoy Anastassakis

cerimônia, afirmando, em contrapartida, que


com projetos que, mais do que de design
E V I S T A

se eram transitórias as funções de cada um


propriamente dito, podem ser definidos
deles, todos, por serem brasileiros, dividiam
R

como de política cultural. Se em 1975 ele se


de uma mesma responsabilidade, que essa,
afastara do escritório no Rio de Janeiro para
sim, deveria ser assumida, de forma coerente.
coordenar o CNRC em Brasília, quatro anos
Essa responsabilidade teria a ver com
depois é convidado a presidir o Iphan, para
onde transpõe as ideias gestadas pelo Centro. (...) o momento em que a nação brasileira,
Segundo Joaquim Falcão, foi depois de um período de relativa sombra, procura
reencontrar os seus verdadeiros caminhos, (...) os
66 Eduardo Portella, ministro da Educação e fundamentos da nacionalidade, para construirmos
Cultura, que o levou à presidência do Iphan, e, uma forma e um modelo que nos caiba
mais do que chefe, foi interlocutor permanente (Magalhães, 2003:240).
na tarefa de reconceituação, inclusive da noção
de patrimônio transtemporal; além de sutil Quando assumida, implicaria em
negociador nas indispensáveis negociações com o uma atitude de devolução, o que significa
Congresso (2003:253). “devolver à nação os privilégios que
Além da relação de Aloisio com recebemos” (2003:241).
o ministro Portella, Falcão destaca a No âmbito da preservação do patrimônio
importância do vínculo do designer com o cultural, assumir a responsabilidade de
então ministro-chefe da Casa Civil, Golbery devolução implicaria em construir, em meio
do Couto e Silva, que foi aos modelos que se mostraram insatisfatórios,

(...) capaz de lhe abrir as portas de uma 2. O redesenho da área de patrimônio cultural ocorre em meio a
burocracia federal quase sempre desconfiada dos um processo mais amplo de “construção institucional” (Miceli,
1984:56) durante a gestão do ministro Ney Braga no governo
pleitos da cultura, sendo também interlocutor Geisel (1974-78).
nosso próprio modelo, que, segundo ele, diversas faces do mesmo cristal (apud Souza Leite,

A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan


deveria ser buscado entre os indicadores do 2003:11).

A C I O N A L
nosso comportamento cultural, moldado
Aloísio propõe uma aproximação da
de forma heterogênea “no fazer do homem
nova Fundação com áreas do governo ligadas
brasileiro, na pequena dimensão muitas

N
mais diretamente às questões econômico-

R T Í S T I C O
vezes frágil de uma atividade pré-industrial”
produtivas, sugerindo que o patrimônio
(idem: 242), pois é a partir dele que se
cultural pode contribuir para o processo de

A
encontrariam os indicativos de um modelo

E
desenvolvimento nacional, na medida em que
de desenvolvimento autêntico da nação e da

I S T Ó R I C O
identidade nacional (idem). (...) uma cultura é feita dos elementos
É significativa desse posicionamento a fala compostos do passado que são vistos pelos

H
em que Aloisio evoca a metáfora do bodoque,

A T R I M Ô N I O
homens transitórios do presente e que desenham o
a fim de descrever a relação entre passado e caminhar projetivo (idem).
futuro, segundo sua perspectiva:
Segundo Falcão, com essas falas, Aloisio

P
D O

Zoy Anastassakis
(...) uma cultura é avaliada no tempo e se insere busca marcar um novo posicionamento

E V I S T A
no processo histórico não só pela diversidade dos
das políticas públicas de preservação do
elementos que a constituem, ou pela quantidade
patrimônio cultural, que estivesse mais

R
das representações que dela emergem, mas
sobretudo por sua continuidade. Essa continuidade
afinado ao clima geral de mudança que
comporta modificações e alterações num processo envolvia o fim do regime autoritário no país
aberto e flexível, de constante realimentação, (2003:248). Captando, sistematizando e
o que garante a uma cultura sua sobrevivência. tentando concretizar esse clima, Aloisio optou
Para seu desenvolvimento harmonioso pressupõe por atuar dentro das políticas de Estado
a consciência de um largo segmento de passado (idem:250), buscando articular cultura e
histórico. Pode-se mesmo dizer que a previsão 67
desenvolvimento (idem:252). Nesse sentido,
ou a antevisão da trajetória de uma cultura
para Falcão, ele foi tanto fruto quanto artesão
é diretamente proporcional à amplitude e
da abertura política que se insinuava de forma
profundidade de recuo no tempo, do conhecimento
e da consciência do passado histórico. Da mesma mais direta a partir daquele momento.
maneira como, por analogia, uma pedra vai mais Sua estratégia para “institucionalizar
longe na medida em que a borracha do bodoque é no Iphan uma continuidade revitalizadora
suficientemente forte e flexível para suportar uma consistia na incorporação de duas experiências
grande tensão, diametralmente oposta ao objetivo inovadoras na área patrimonial, que já
de sua direção. Pode-se mesmo afirmar que, no ocorriam no governo” (idem:254), o Centro
processo de evolução de uma cultura, nada existe
Nacional de Referência Cultural – CNRC e
propriamente de “novo”. O “novo” é apenas uma
o Programa das Cidades Históricas – PCH.
forma transformada do passado, enriquecida na
continuidade do processo, ou novamente revelada,
Na tentativa de ampliação democrática do
de um repertório latente. Na verdade, os elementos conceito de patrimônio (idem), Aloisio
são sempre os mesmos: apenas a visão pode ser propôs a absorção, dentro das políticas
enriquecida por novas incidências de luz nas públicas de preservação, das manifestações
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

68
Zoy Anastassakis A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
Maranhão

Edgard Graeff.
Acervo: Iphan/
Tambor de crioula,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
69

Zoy Anastassakis A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
culturais ligadas às matrizes africana e de patrimônio cultural delineada por Mário
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan

indígena, bem como a consideração das de Andrade no anteprojeto para a criação do


A C I O N A L

colocações das comunidades habitantes das Sphan, documento datado de 1936. Segundo
cidades históricas contempladas por políticas Maurício Chagas, assim como Lina Bo Bardi
de preservação (idem). Assim, os órgãos de
N

no projeto para o Solar do Unhão, ainda nos


R T Í S T I C O

patrimônio assumiam a responsabilidade anos 1960, na Bahia, Aloisio partilha com


de intermediar os diálogos entre os agentes Mário
A

culturais e o governo, o que, deve-se notar,


E

(...) do reconhecimento da grandeza da


não se deu sem embates.
I S T Ó R I C O

produção anônima e conformadora da verdadeira


Assumindo que cuidar do patrimônio
identidade de um povo – a valorização do fazer
cultural implicava também em projeto
popular –, que não era uma atitude inovadora,
H

e participação e na consideração dos


A T R I M Ô N I O

nem em Lina Bo Bardi nem no CNRC. O discurso


aspectos materiais e imateriais relativos aos da apaixonada descoberta da face popular do país
processos culturais, Aloisio contribui para a já integrava as preocupações dos modernistas de
P

sedimentação de uma nova perspectiva de 22 e, posteriormente, as de Mário de Andrade ao


D O

Zoy Anastassakis

enfoque para o patrimônio no país, que se elaborar o famoso parecer que veio dar origem ao
E V I S T A

consolida em termos legais somente no ano Decreto-lei nº 25, de 1937, de criação do Sphan.
A novidade que se apresenta nessas duas propostas
R

de 2000, quando se institui o decreto do


– Unhão e CNRC – é a atitude de reconhecer, no
patrimônio imaterial.
caráter de uma produção tida como marginal, não
Em meio a essa visada sobre o patrimônio
apenas o traço da identidade nacional, mas, sim, o
cultural ensejada por Aloisio, se prenunciam
imenso potencial de valor econômico nela contido
dois instrumentos de preservação que só
desde que fosse corretamente inserida em um
viriam a ser institucionalizados, seja em modelo apropriado de desenvolvimento adequado
âmbito nacional quanto global, anos mais às suas múltiplas características (2002:81).
70
tarde, a saber, os conceitos de patrimônio
imaterial ou intangível e de paisagem Apesar de a perspectiva adotada por
cultural. Essa perspectiva, delineada a Aloisio estabelecer diálogos com as referências
partir de sua gestão no Iphan, considerava acima citadas, na medida em que valorizava
que a preservação do patrimônio histórico a combinação da ideia de cultura nacional
só faria sentido se articulada às condições popular a princípios modernos e a valores
socioculturais presentes e a um projeto de econômicos, é preciso ressaltar que o
desenvolvimento futuro. patrimônio cultural que interessa a Aloisio
Em diálogo com a perspectiva formulada não é aquele ”de pedra e cal” praticado até
por Lucio Costa anos antes, Aloisio se então, no Brasil, nem tampouco aquele que
diferenciava dele na medida em que, para restringe ao passado os valores culturais a
o pernambucano, o outro popular não se serem protegidos e preservados.
localizava no passado, mas, sim, no presente. É nesse ponto que suas ideias mais se
Quando busca justificar suas propostas para distanciam daquelas formuladas por Lucio
o Iphan, Aloisio também faz uso da noção Costa. Entendendo que “a ‘boa tradição’
que vinha da Colônia havia sido transmitida pernambucano” (idem: 303), Gilberto

A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan


e guardada não pelo arquiteto, mas pelo Freyre, por sua vez, “constrói um léxico que

A C I O N A L
homem simples” (Rubino, 2009:34), para traz o bem arquitetônico para o universo da
Aloisio, assim como para Lina Bo Bardi, de cultura escrita, tornando-se assim o sociólogo
quem trata Rubino, dos arquitetos” (idem: 305). Assim, a obra

N
R T Í S T I C O
de Freyre contribui para a legitimação,
(...) se o povo era arquiteto, capaz de construir
na perspectiva de trabalho adotada pelo
obras corretas com poucos recursos, era um

A
povo do presente, vivo nesse Brasil dos anos de Sphan, de “um lugar para o evento passado

E
se construir” (idem: 307). Desse modo, o

I S T Ó R I C O
redemocratização (idem).
passado tradicional, requalificado por Freyre
Assim, em Casa-grande e senzala, se insere em um

H
projeto intervencionista no presente (idem:

A T R I M Ô N I O
(...) se um “outro” no passado poderia
conduzir a uma forte política de preservação, esse 306), a saber, as ações de tombamento
“outro” presente levou à politização de seu discurso realizadas pelo Sphan, em grande parte

P
em pleno período de aposta na modernização lideradas por Costa.

D O

Zoy Anastassakis
do país. A noção de autenticidade era deslocada: Voltando às propostas de Aloisio para o

E V I S T A
autêntico era o povo (idem). Iphan: mesmo que formuladas em diferentes

R
instâncias e com abordagens distintas,
Em meio a esse debate, é fundamental
nelas são acionadas outras concepções de
comentar o que Rubino nomeia de “parceria
patrimônio cultural, orientadas segundo as
intelectual entre o antropólogo e sociólogo
questões que o levaram a discutir, logo antes,
Gilberto Freyre e o arquiteto Lucio Costa”
os limites e as possibilidades de atuação em
(2010:302), na medida em que parece
design. Então, assim como suas considerações
haver uma estreita ligação entre os dois,
sobre design (Anastassakis, 2014; Souza
notadamente no que tange à formulação 71
Leite, 2003), suas concepções de patrimônio
de uma vinculação da arquitetura moderna
cultural são similarmente guiadas por um
brasileira à história cultural do país3,
comprometimento com as questões culturais
formulação essa que permitira aos dois
no presente, visando desenvolvimentos
construírem, via arquitetura, um elo entre o
futuros. Nesse sentido, não deixam de estar
Movimento Moderno e a boa tradição (idem).
alinhados aos compromissos firmados durante
Valendo-se da apresentação de uma série
a Convenção para a Proteção do Patrimônio
de ocasiões em que um cita o outro, Silvana
Mundial, Cultural e
Rubino ilumina um processo de legitimação
Natural, organizada pela
recíproca, segundo o qual, “se a explicação
Unesco em 1972.
mais sociológica que Lucio Costa constrói
Trata-se, então, de
está visivelmente inspirada pelo sociólogo
uma visada sobre os

3. As relações entre Lucio Costa e Gilberto Freyre também são


patrimônios culturais
discutidas por José Tavares Correia de Lira, que em meio aos dois que considera, sim, a
posiciona Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro presidente
do Sphan (1997:110). preservação dos aspectos
materiais, mas entendendo, sempre, que esses da sustentabilidade socioeconômica que se
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan

devem estar indissociavelmente ligados às garante, a eles, estabelecer. Trata-se, então, de


A C I O N A L

práticas culturais dos grupos que nele – ou uma visada projetiva do patrimônio cultural,
em torno dele – vivem. Nesse ponto é que ancorada na convicção de que é somente
Aloisio mais se reaproxima da concepção de através da consideração das especificidades
N
R T Í S T I C O

patrimônio cultural formulada por Mário culturais que se pode constituir um projeto
de Andrade, nos modos como intentam de desenvolvimento futuro.
A

aproximar arte erudita e arte popular; se Nessa medida, não se trata, segundo
E

valem de conceitos de nacionalismo que não as propostas de Aloisio para o Iphan, de


I S T Ó R I C O

implicam em uma negação de certos ideais políticas de patrimônio cultural per se, mas
universalistas; percebem valor no fato de de investimentos em ações políticas de
H

o Brasil ser um “país novo”, “emergente”; patrimônio cultural, com fins a um projeto
A T R I M Ô N I O

buscam integrar a produção artística nacional de transformação social via consideração


no curso geral da modernidade; investem em das especificidades culturais. Então, assim
P

mapeamentos da produção cultural popular; como, uma década antes, o campo do design
D O

Zoy Anastassakis

incorporam os bens culturais de natureza representara para ele uma porta de acesso às
E V I S T A

imaterial; valorizam o heterogêneo da questões de transformação sociocultural, nesse


R

produção cultural nacional (Freitas, 1999:76- contexto, é no âmbito das políticas públicas
79). de patrimônio cultural que se constitui, a seu
Além da aproximação conceitual com a ver, um domínio a partir do qual se torna
noção de patrimônio cultural, Freitas sinaliza possível ensaiar uma intervenção no “mundo
que, ao estabelecer, textualmente, vínculos real”. Desse modo, design e políticas culturais
entre suas propostas para o Iphan e as se configuram como áreas ou domínios a
formuladas por Mário de Andrade quarenta partir de onde, em distintos momentos de
72
anos antes, Aloisio Magalhães buscava sua trajetória profissional, Aloisio Magalhães
legitimar seu trabalho à frente do CNRC, logra viabilizar suas propostas de projeto para
bem como estabelecer uma base de diálogo o próprio país.
com o grupo de intelectuais remanescentes
da “fase heroica” (1999:89), que, em grande ALGUNS ANTECEDENTES DA
parte, resistiam às mudanças sugeridas pelo REESTRUTURAÇÃO POLÍTICO-
grupo do Centro, incorporado ao Instituto INSTITUCIONAL DE 1979
após a nomeação de Aloisio para a sua
presidência. Como já comentado acima, logo antes
Além da preocupação com o presente, de assumir a presidência do Iphan, Aloisio
essa visão do patrimônio cultural está atuava à frente do CNRC (Anastassakis,
engajada com o desenvolvimento de projetos 2007), considerado como o tubo de ensaio
de futuro, ou seja, nela a continuidade em que teriam sido experimentadas as ideias
dos processos culturais, seja em seus que informaram as propostas de políticas
aspectos materiais ou imateriais, depende públicas de preservação patrimonial a partir
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
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de 1979. Deve-se ressaltar, contudo, que, do Centro para a formulação da virada São Francisco do
Paraguaçu
diferentemente do Iphan, o CNRC não fazia nas políticas de patrimônio cultural que é Acervo: Iphan/
Nelson Kon.

parte da estrutura do Ministério de Educação articulada por Aloisio, não apenas porque 73

e Cultura. Localizado em Brasília, o Centro a experiência do CNRC teria informado a


teve seu funcionamento viabilizado por um subsequente atuação do pernambucano na
convênio multi-institucional, organizado em presidência do Iphan, mas também porque, ao
torno do Ministério da Indústria e Comércio assumir esse cargo, Aloisio leva consigo, para o
– MIC. Como definido por seus integrantes, Instituto, a equipe e os projetos do Centro.
o objetivo do CNRC era Além do CNRC, também se funde ao
Iphan o Programa das Cidades Históricas
(...) traçar um sistema referencial básico para a
– PCH, que desde 1973 era coordenado
descrição e análise da dinâmica cultural brasileira,
por Henrique Oswaldo de Andrade. Com
tal como é caracterizada na prática das diversas
essas fusões, o Instituto é reestruturado,
artes, ciências e tecnologias (Magalhães, 1997:42).
decompondo-se em duas entidades, a saber,
Não obstante a distância institucional que a Secretaria de Patrimônio Histórico e
inicialmente separava o CNRC do Iphan, Artístico Nacional – Sphan e a Fundação
deve-se notar a importância fundamental Nacional Pró-Memória. A essa reestruturação
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
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Acarajé de Iansã institucional, segue-se também uma políticas de preservação cultural durante os
Acervo: Iphan/
Francisco Moreira
da Costa.
reorganização das políticas de preservação do anos 1970, não apenas no Brasil, mas em
patrimônio cultural conduzidas pelo órgão. todo o mundo. Primeiramente, ela destaca
Ao propor toda essa reformulação política, algumas transformações percebidas nas
Aloisio Magalhães considerava também as disciplinas que fundamentavam a seleção de
mudanças que começavam a se ensaiar no país bens considerados dignos de preservação.
74 a partir do desgaste do modelo implementado Dentre elas, a história e a antropologia, que
pelo regime militar a partir de 1964 e da sofreram significativas revisões no que tange
remobilização da sociedade civil. Segundo a seus objetos e abordagens de pesquisa.
Joaquim Falcão, ele percebia que “novas Para essa autora, essas mudanças no campo
demandas sociais pressionavam por políticas acadêmico teriam acontecido em paralelo
governamentais diferentes” (2003:248). Para a uma difusão da democracia em outros
Falcão, o grande mérito de Aloisio foi ter tido campos. Corria pelo mundo o processo de
a sensibilidade de captar, antes dos demais, descolonização e o surgimento de novos
o clima de mudança para, a partir do que o Estados-nação. Era assim uma época de
momento demandava, formular um projeto reivindicações de direitos e identidades
político e institucional que permitisse a coletivas. Vinha à tona a consciência da
concretização das mudanças necessárias. dominação cultural das ex-colônias e dos
Para Maria Cecília Londres Fonseca grupos denominados “minoritários”.
(2005), vários fatores contribuíram para A cultura surgia, nesse contexto, como
as modificações ocorridas no campo das uma via possível de libertação da dominação
e de elaboração de novas identidades a aposentadoria de Rodrigo Melo Franco de

A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan


coletivas. Ainda em nível mundial, Fonseca Andrade, em 1967, evidenciara-se a fraca

A C I O N A L
enfatiza que, a partir da década de 1960 e na autonomia do Instituto. Além disso, pesa
década seguinte, o Modernismo passar a ser sobre o Iphan o distanciamento de suas
contestado e revisto. No Brasil, é de destaque políticas face ao modelo de desenvolvimento

N
R T Í S T I C O
a consagração do modelo desenvolvimentista nacional firmado entre os anos 1950 e 1960,
e industrial, alavancado a partir do governo pois a ideologia de desenvolvimento a ele

A
de Juscelino Kubitschek, e a hegemonia da vinculada teria atrelado o nacionalismo

E
arquitetura modernista, consagrada pela a valores de modernização, em contraste

I S T Ó R I C O
construção de Brasília. Nos anos 1960, e a ideais preservacionistas, tais quais os
principalmente a partir do governo de João acionados pelo Iphan durante as primeiras

H
Goulart e do golpe militar que a ele se segue, décadas de sua existência, voltadas quase

A T R I M Ô N I O
cresce também a politização da atividade que exclusivamente para a preservação de
cultural e ampliam-se as manifestações da edificações de “valor histórico”.

P
sociedade através de movimentos populares, Para dissolver os impasses surgidos a partir

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Zoy Anastassakis
artísticos e estudantis. de então, o Iphan teria recorrido também

E V I S T A
Mas é apenas à Unesco, que o auxiliou a reformular a

R
sua atuação, compatibilizando-a com o
(...) com o início da ‘distensão’, no governo
novo modelo de desenvolvimento nacional
Geisel, que o Estado passa a atuar na área cultural,
(Fonseca, 2005). Segundo as diretrizes da
não apenas como repressor, mas também como
Unesco, o Iphan deveria se transformar
organizador da cultura (2005:134).
em um negociador e um conciliador de
Deve-se ressaltar que essa ”distensão” interesses, ou seja, um órgão que conseguisse
vinha acompanhada de uma crise econômica demonstrar à sociedade que é viável a
75
internacional, o que tornaria mais nítidas as compatibilização entre preservação e
contradições do modelo econômico adotado desenvolvimento, valores culturais e valores
pelo regime militar. A partir de todo esse econômicos. As novas diretrizes divulgadas
estado de crise, o regime teria passado a pela Unesco nas Normas de Quito (1967)
enfrentar também uma crise de legitimidade. contribuíram, indiretamente, para a criação
Assim como o regime de governo, o do PCH, em 1973, e o CNRC, em 1975.
modelo de preservação do patrimônio Fazendo parte de um movimento de
cultural adotado pelo Iphan desde 1937 descentralização ocorrido no campo das
passava por uma crise decorrente do desgaste políticas de patrimônio cultural nos anos
das políticas implementadas pelo órgão 1970, movimento esse que tem por objetivo
em sua ”fase heroica”. Dentre os fatores suprir as lacunas que a atuação do Iphan
constituintes desse desgaste, Fonseca destaca, vinha apresentando, pode-se considerar,
primeiramente, a dificuldade do Iphan em então, que, mesmo que sem tal intenção,
mobilizar a sociedade e o governo para a PCH e CNRC surgem como alternativas ao
causa da preservação. Em segundo lugar, com Iphan. Tais lacunas não seriam somente de
ordem operacional; em termos conceituais o 1936 redigiu o anteprojeto do Serviço de
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan

órgão também era alvo de críticas. Patrimônio e Artístico e Histórico Nacional


A C I O N A L

– Sphan. Retomando algumas das propostas


Para setores modernos e nacionalistas do
de Mário no que tange à valorização das
governo, era necessário não só modernizar a
raízes populares para a construção da
N

administração dos bens tombados, como também


R T Í S T I C O

atualizar a própria composição do patrimônio, identidade nacional, Aloisio dele se diferencia


considerada limitada a uma vertente formadora da na medida em que vincula o bem cultural
A

nacionalidade, a luso-brasileira, a determinados a um valor econômico. Com isso, através


E

períodos históricos, e elitista na seleção e no trato da cultura ele busca formular alternativas
I S T Ó R I C O

dos bens culturais, praticamente excluindo as ao desenvolvimento do país. Percebendo a


manifestações culturais mais recentes, a partir da
fraqueza política da área de preservação do
H

segunda metade do século 20, e também a cultura


patrimônio cultural, Aloisio teria buscado
A T R I M Ô N I O

popular (2005:143).
vincular a questão da cultura a áreas
politicamente fortes do governo, explorando o
OUTRAS D I R E Ç Õ E S PA R A A S
P

potencial econômico dos bens culturais.


D O

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Zoy Anastassakis

Assim, com sua nomeação para a


C U LT U R A L : A C U LT U R A
E V I S T A

presidência do Iphan se delineia uma virada


COMO PROJETO
nas políticas de preservação que toma
R

a cultura não apenas como documento


Assim, é em outras direções que Aloisio
(portanto passível de registro e tombo), mas,
Magalhães propõe conduzir o Iphan, a partir
sobretudo, como projeto (logo, como possível
de sua nomeação. Segundo José Reginaldo
agenciadora de futuros desenvolvimentos).
Gonçalves (2002), Aloisio surge como alguém
Articulando bens materiais e imateriais e
que autentica sua posição, desafiando aquela
considerando os valores culturais locais,
76
conquistada pelo primeiro presidente do
as ações de preservação levadas a cabo
órgão, Rodrigo Melo Franco de Andrade.
pelo Iphan desse período, tais como o
A fim de concretizar esse objetivo, ainda
reconhecimento do Centro Histórico de
segundo Gonçalves, Aloisio teria se utilizado
Ouro Preto (MG) pela Unesco, em 1980;
de uma estratégia discursiva que propunha
a formulação do Projeto Interação, que
novas concepções de patrimônio e identidade
buscava desenvolver ações que garantissem
nacional, menos vinculadas à noção de
e facilitassem a participação comunitária em
memória e mais ligadas aos processos e
processos educacionais; e a criação de Grupo
dinâmicas dos saberes e fazeres populares.
de Trabalho para a preservação do patrimônio
Uma perspectiva em que presente e futuro
histórico, artístico, urbanístico e paisagístico
seriam tão importantes quanto o passado.
de Brasília, a fim de estudar, propor e adotar
Nesse ponto é que sua posição se aproxima
medidas para a preservação do patrimônio
das questões de interesse dos modernistas de
histórico-cultural da capital federal (Iphan),
1922 e, dentre eles, mais especificamente,
indicam outras direções possíveis para
das ideias de Mário de Andrade, que em
as políticas públicas de preservação do
patrimônio cultural. Como na imagem do (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação

A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan


em Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Salvador: 1997,
bodoque, da tensão entre passado, presente e
p. 98-118.

A C I O N A L
futuro é que a cultura passa a ser percebida, MAGALHÃES, Aloisio. E Triunfo? A questão dos bens
naquele momento, como base de lançamento culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/
para ações que apontassem outras direções. Fundação Roberto Marinho, 1997 (1985).

N
R T Í S T I C O
______. “Na fundação da Fundação”. In: SOUZA
LEITE, João (org.). A herança do olhar: o design de
REFERÊNCIAS Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003, p.

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ANASTASSAKIS, Zoy. Dentro e fora da política oficial MICELI, Sergio (org.). Estado e cultura no Brasil.

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de preservação do patrimônio cultural no Brasil: Aloisio São Paulo: Difel, 1984.
Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural. RUBINO, Silvana. “A escrita de uma arquiteta”.
(Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação In: GRINOVER, Marina; RUBINO, Silvana

H
em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade (orgs.). Lina por escrito. Textos escolhidos de

A T R I M Ô N I O
Federal do Rio de Janeiro, 2007. Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009,
______. Triunfos e Impasses: Lina Bo Bardi, Aloisio p. 19-40.
Magalhães e o design no Brasil. Rio de Janeiro: ______. “Gilberto Freyre e Lucio Costa ou

P
Lamparina Editora, 2014. a boa tradição. O patrimônio intelectual do

D O

Zoy Anastassakis
CHAGAS, Maurício de Almeida. Modernismo e SPHAN”. In: GUERRA, Abílio (org.). Textos

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tradição: Lina Bo Bardi na Bahia. (Dissertação de fundamentais sobre a história da arquitetura
Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Romano
e Urbanismo. Universidade Federal da Bahia. Salvador,

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Guerra, 2010a, p. 299-314.
2002. SOUZA LEITE, João (org.). A herança do
FALCÃO, Joaquim. Patrimônio imaterial: um sistema olhar: o design de Aloisio Magalhães. Rio
sustentável de proteção. Tempo Brasileiro, nº 147, out- de Janeiro: Artviva, 2003.
dez.2001, p. 163-180.
______. “Um líder e seu projeto”. In: SOUZA LEITE,
João (org.). A herança do olhar: o design de Aloisio
Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003, p. 248-259.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em
77
processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ/MinC/Iphan, 2005.
FREITAS, Marcelo de Brito Albuquerque Pontes. Mário
de Andrade e Aloisio Magalhães: dois personagens
e a questão do patrimônio cultural. PÓS – Revista
do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da FAU/USP, nºs 97/98. São Paulo: set.1999,
p. 71-93.
GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda.
Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ/MinC/Iphan, 2002.
IPHAN. Portal web. http://portal.iphan.gov.br/.
LIRA, José Tavares Correia. “O popular na cultura,
a arquitetura brasileira e a história: Gilberto Freyre,
os mocambos, os modernistas e os primeiros anos do
Iphan”. In: CARDOSO, Luiz Antonio Fernandes;
OLIVEIRA, Olívia Fernandes (orgs.). Rediscutindo o
moderno: universalidade e diversidade no movimento Praça da República-PA
Acervo: Iphan/
moderno em arquitetura e urbanismo no Brasil. Caio Reisewitz.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

78
Márcia Chuva Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
Márcia Chuva

A C I O N A L
P OSSÍVEIS NARRATIVAS SOBRE DUAS DÉCADAS DE

PATRIMÔNIO : DE 1982 2002

N
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R T Í S T I C O
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I S T Ó R I C O
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A T R I M Ô N I O
Escrever para a revista do Iphan nos seus se de uma narrativa comprometida com
oitenta anos é um desafio. Incumbiram-me percepções, pontos de vista, reflexões a partir
de tratar do período de 1982 a 2002, vinte de um lugar de fala construído na vivência

P
anos marcantes, registrados em diferentes desses anos.

D O
E V I S T A
impressões, camadas de sensibilidade e Buscamos dar inteligibilidade a esse
inteligibilidade. Pensar sobre a instituição recorte temporal como contexto e, nesse

R
é pensar sobre seus quadros, seus agentes e sentido, alguns momentos de inflexão nos
os sujeitos que nela se constituem, também pareceram significativos para explorar e
sobre seu multifacetado universo de ação arriscar uma compreensão mais ampla do
e sobre a amplitude de suas práticas. campo do patrimônio no período, a começar
Infelizmente, não teria condições de dar a pela morte de Aloisio Magalhães, em 1982,
devida dimensão a toda essa grandeza. Esses que dá início ao período recortado. Morte
vinte anos da ação institucional no campo vivida como trauma na instituição, em um 79
do patrimônio serão abordados aqui numa momento de grandes expectativas no Brasil.
perspectiva que inevitavelmente deixará A Fundação Nacional Pró-Memória estava
muitos aspectos de fora. Se não posso precisar dando uma nova feição ao setor cultural
a medida do que está ausente, posso apenas brasileiro, em especial às instituições a ela
me desculpar antecipadamente. Vale dizer vinculadas (Peregrino, 2012; Brito, 2014).
que as reflexões deste artigo são fruto de um Dava-se mais um importante passo para a
olhar afetivo sobre uma experiência1. Trata- retomada plena dos direitos civis, com a volta,
depois de suspensas por quase vinte anos, das
1. Ingressei na instituição em 1982, como estagiária da Fundação
Nacional Pró-Memória, no setor de Estudos de Tombamento eleições diretas para os governos dos estados e
coordenado pela arquiteta Dora Alcântara, na Diretoria de
Tombamento e Conservação – DTC, chefiada pelo arquiteto as prefeituras das capitais.
Augusto Carlos da Silva Telles, no oitavo andar do Palácio
Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Ao longo da década de
A segunda inflexão no âmbito do recorte
1980, descobri e me formei no mundo do patrimônio. A partir temporal proposto pode ser verificada com
de 1992 e nos dez anos seguintes, até 2002, integrei a equipe de
inventários de bens imóveis, coordenada pela arquiteta Lia Motta, os novos rumos dados à política brasileira Capela do Engenho Una
no Departamento de Identificação e Documentação, o DID, Acervo: Copedoc/Iphan/
dirigido por Célia Corsino. no início dos anos 1990, após as primeiras Marcel Gautherot.
eleições diretas para presidência da República, pareceram adequados para compreender a
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

que elegeram Fernando Collor de Mello. complexidade do campo do patrimônio como


A C I O N A L

Os dois anos de seu governo trouxeram parte indissociável dos processos de formação
momentos difíceis para todo o setor cultural, do Estado, da esfera de poder público e do
com traços violentos como perseguições a cenário político-social em que se insere.
N
R T Í S T I C O

funcionários e o desmonte da Fundação Diferentes escalas de aproximação foram


Nacional Pró-Memória. Foram tempos de acionadas nessa abordagem, considerando
A

perdas, inclusive por meio do Programa camadas de leitura que se sobrepõem, como
E

De Demissão Voluntária – PDV. Aqueles estratégia discursiva na construção de uma


I S T Ó R I C O

que permaneceram na instituição foram leitura possível do campo do patrimônio


posteriormente integrados ao Regime Jurídico associado ao recorte temporal sobre o qual se
H

constrói a narrativa. Desse modo, a aparente


A T R I M Ô N I O

Único – RJU como servidores públicos


federais. Nos anos subsequentes, houve um perspectiva panorâmica da narrativa aqui
esvaziamento de recursos materiais e humanos desenvolvida deve ser desde já desmascarada,
P

no setor, sem qualquer ajuste salarial durante tendo em vista ser ela fruto de camadas
D O

Márcia Chuva

toda a década . A vaga neoliberal iniciada


2 sobrepostas, escalas que ora aproximam, ora
E V I S T A

drasticamente com Fernando Collor teve afastam focos e visadas aqui intencionalmente
R

continuidade de forma mais estável ao longo operadas.


dos anos 1990, com efeitos diretos sobre
o campo do patrimônio. Nosso recorte NOVOS P R O B L E M A S , N O VA S
temporal se encerra em 2002, contando que, ABORDAGENS, NOVOS
em 2003, uma nova e significativa inflexão se OBJETOS
deu, com o início do governo de Luiz Inácio
Lula da Silva, a reestruturação do Ministério A famosa coleção organizada por Jacques
80
da Cultura, na gestão de Gilberto Gil , e a 3 Le Goff e Pierre Nora, publicada em 1974,
nova estrutura regimental do Iphan. na França, intitulada Faire L’Histoire, com
Para percorrer esses vinte anos, foram três volumes (Nouveaux problèmes; Nouveaux
selecionados assuntos e eventos que, da Aproches; Nouveaux Objets), inspira a
minha visada, julguei relevantes para narrativa que construímos para tratar do
uma compreensão de mudanças que campo do patrimônio no Brasil, nas décadas
tiveram efeitos de longo prazo na história de 1980 e 19904. Essa coleção inaugurava
institucional, inserida em contextos mais
4. A coleção organizada por Pierre Nora em comemoração aos
amplos da história do Brasil. Eles me duzentos anos da Revolução Francesa, Les Lieux de mémoire.
Tomo 1. La République (1 volume, 1984); Tomo 2. La Nation
(3 volumes, 1987); Tomo 3. Les France (1992), pela Gallimard,
2. Em 2005 ocorreu o primeiro concurso público na instituição, especialmente seu artigo Entre memória e história: a problemática
após as novas regras de acesso ao serviço público instituídas pela dos lugares, publicado na revista Projeto História, São Paulo, v.10,
Constituição Federal de 1988. 1993, também deve figurar entre as referências emblemáticas do
3. O Ministério da Cultura foi criado em 1985. Em 1990, foi período, no âmbito da formação em História, em particular. Jani-
transformado em Secretaria da Cultura, diretamente vinculada ce Gonçalves (2012) analisa a contribuição do historiador Pierre
à Presidência da República, situação que foi revertida em 1992. Nora para os estudos relacionados ao campo do patrimônio
Em 2003, foi feita nova reestruturação do Ministério. Ver http:// cultural, em especial a partir da noção de “lugares de memória”,
www.cultura.gov.br/historico. Acesso em 22/6/17. apresentada na referida obra).
na França a autodenominada Nova História, ocorreu uma virada cultural, que incorporava

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
cujos integrantes foram formados na esteira uma concepção da história como narrativa,

A C I O N A L
da École des Annales e dela sentiam-se tendo surgido estudos sobre uma diversidade
continuadores, herdeiros em terceira geração. de temas (abordagens, objetos e problemas),
como gênero, minorias étnicas e religiosas,

N
Publicada no Brasil logo em seguida, pela

R T Í S T I C O
Livraria Francisco Alves Editora, em 1976, hábitos e costumes. Para o campo do
com segunda edição em 1979, História: novos patrimônio, esse contexto historiográfico

A
problemas; novas abordagens; novos objetos foi expressivo, pois compartilhou a quebra

E
atingiu boa parte dos jovens que se formaram de paradigmas acerca de verdades históricas,

I S T Ó R I C O
nos anos 1970 e 80 nos cursos de História rupturas com uma história política tradicional
e de Ciências Sociais no Brasil que tinham ou com uma visão de cultura restrita às artes,

H
música ou literatura, para a uma definição

A T R I M Ô N I O
contato com a escola francesa, em anos de
ditadura militar e abertura política, ávidos mais ampla, como práticas, processos e
por revolucionar o pensamento, o Estado, a cotidiano (Burke, 1992).

P
vida cultural, as práticas sociais – o país. Os Teve também entrada no Brasil, o livro

D O

Márcia Chuva
efeitos no campo do patrimônio produzidos de Eric Hobsbawm e Terence Ranger The

E V I S T A
por essa historiografia francesa não serão invention of tradition, lançado originalmente

R
analisados neste artigo5, mas situar essa em 1983 e aqui publicado, em 1984, pela
obra no mesmo contexto pode iluminar em editora Paz e Terra. Os dois historiadores
certa medida as mudanças conceituais que ingleses de base teórica marxista também
verificamos no período aqui recortado. Pode incorporavam a perspectiva cultural em seus
também deixar pistas para aprofundamento estudos de história social, desconstruindo
e produção de novos estudos que percebam ícones e emblemas, dessacralizando
conexões entre as reflexões teóricas sobre o costumes e patrimônios. Era, sem dúvida,
81
campo do patrimônio no Brasil e o debate um contexto de viradas epistemológicas.
Essa virada cultural que atingia em cheio a
acadêmico no da história naquele momento,
história produzia os primeiros passos de uma
tal como se verificou na França (cf. Roiz e
aproximação da disciplina com a temática do
Santos, 2012).
patrimônio no Brasil.
Como apontou Peter Burke (2005),
Em obra posterior, tratando da história
nos anos 1970, aspectos culturais do
do capitalismo, Hobsbawm ([1993]1995)
comportamento humano se tornaram
fez uma leitura panorâmica do século XX
foco em estudos históricos na Europa (não
e apresentou os anos 1970 e 1980 como
somente na França) e foram estabelecidas
as “décadas de crise” do sistema, com
conexões entre história, antropologia e
predomínio da recessão e da estagnação da
literatura. Para o autor, nesse momento
economia mundial. Décadas marcadas por

5. O estudo dessas relações está por ser feito. Sobre a influência


um novo tipo de concorrência em termos
da historiografia francesa na formação de historiadores no Brasil, globais que a tecnologia promoveu, com a
em especial da Escola dos Annales, ver ROIZ e SANTOS, 2012
e ROIZ, 2008. expansão do poder transnacional do capital,
a ignorar as fronteiras nacionais. É possível as primeiras eleições para a Presidência da
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

afirmar que esse contexto deu margem República, depois de vinte e quatro anos de
A C I O N A L

ao fortalecimento de recortes identitários ditadura militar no Brasil6.


multifacetados, de clivagem religiosa, étnica, Os efeitos da conquista dos valores
ideológica, de gênero, reconfigurando as
N

fundamentais da liberdade, dos direitos


R T Í S T I C O

perspectivas sobre uma identidade nacional. humanos e da tolerância, expressões que não
Essas identidades emergentes também podem ser esquecidas, nem cair no vazio,
A

trouxeram questões para os debates sobre serão sentidos a longo prazo, no campo do
E

o patrimônio cultural, que acompanharam patrimônio. É o que buscaremos apontar


I S T Ó R I C O

a virada epistemológica aqui referida e o a seguir.


predomínio de uma perspectiva processual
H

da cultura, que tomava a vida cotidiana O IPHAN


A T R I M Ô N I O

E O CAMPO DO
como objeto de investigação. Bens e práticas PAT R I M Ô N I O : 1982-2002
culturais até então alheios a esse universo
P

passaram a concorrer legitimamente para Os anos 1980 foram de luta, de mudanças


D O

Márcia Chuva

serem incluídos na categoria de patrimônio e, principalmente, de esperança no Brasil


E V I S T A

cultural (cf. Canclini, 2007). e também no Iphan. Nesse contexto,


R

No Brasil, essas mudanças conceituais transformou-se o perfil dos quadros


ocorreram no contexto de abertura política da instituição, com a incorporação de
vivida no país associada à crise econômica profissionais de áreas diversificadas, como
da qual o Brasil não escapava. Os anos 1980 sociólogos e educadores do Centro Nacional
ficaram apelidados de a “década perdida” por de Referência Cultural – CNRC, arquitetos
economistas, devido ao péssimo desempenho e economistas do Programa das Cidades
da economia brasileira e aos altos índices Históricas – PCH e historiadores e arquitetos
82
inflacionários. Esse apelido, no entanto, contratados pela Fundação Nacional Pró-
desmerece as grandes conquistas políticas Memória. Os tipos de bens passíveis de
e sociais daquele momento memorável. A patrimonialização e as perspectivas sobre eles
Campanha das Diretas Já, em 1984 – ainda também se transformavam. O paradigma da
que derrotada –, e a promulgação da nova excepcionalidade do patrimônio nacional
Constituição Federal Brasileira, em 1988, que marcou a ação institucional passava
são eventos inesquecíveis, que estruturaram a conviver com a compreensão do bem
a vida democrática brasileira. José Sarney, como peça do cotidiano, do mundo do
último presidente da República eleito trabalho, de religiosidades não dominantes,
indiretamente por um colégio eleitoral,
terminou seu mandato, segundo Ana Cristina 6. O pleito de 1989 foi a primeira e única eleição que reuniu
tantos personagens marcantes da história brasileira. Estavam dis-
Teodoro da Silva (2003), com a imagem de putando a Presidência da República Ulysses Guimarães, Leonel
um presidente fraco, “impotente diante dos Brizola, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Collor
de Mello e Guilherme Afif Domingos, entre muitos outros.
eternos três dígitos nos índices anuais de Ainda fazia parte da disputa Paulo Maluf, candidato derrotado na
disputa presidencial de 1985, que elegeu Tancredo Neves e José
inflação”, no ano de 1989, em que ocorreram Sarney pelo colégio eleitoral, em uma eleição indireta.
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N
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R T Í S T I C O
E
I S T Ó R I C O
A T R I M Ô N I O
D O

Márcia Chuva
RE V I S T A
dos subalternos e das minorias e, nem por e tradicional (1984) ou o dos Vestígios do Renda Irlandesa de
Divina Pastora,SE
Acervo: Iphan/
isso, menos significativo como referência de Quilombo dos Palmares, tombado no ano de Fabrícia de Oliveira Santos.

identidades e como fonte para a produção de 1986, em Alagoas, integrando novos sujeitos
conhecimento sobre a história do Brasil. à cena do patrimônio nacional. Também
O tombamento do Terreiro da Casa pode ser incluído nesse grupo o tombamento,
83
Branca, Ilê Axé Iyá Nassô Oká, de Salvador , em 1990, de 48 edificações na zona central
em 1984, tem sido recorrentemente apontado de Antônio Prado, no Rio Grande do Sul,
(Velho, 2006; Fonseca, 1997, entre outros) que, por sua vez, incorporou ao patrimônio
como emblemático das lutas para inclusão nacional uma expressão da colonização
de representações de grupos de identidade italiana. Essa proteção decorreu de demanda
diversificados na categoria de patrimônio advinda de técnicos, especialistas e setores
cultural brasileiro, por meio da demanda sociais, em busca de uma representação mais
de movimentos sociais que se apropriaram ampla e diversa da nação7.
dos instrumentos disponíveis, como o Em todos esses casos, os debates no
tombamento, em favor dos interesses das Conselho Consultivo, verificados por meio
minorias. Podem ser somados a esse contexto
tombamentos inovadores, como o da Fábrica 7. Esse tombamento não foi aceito de imediato pela população
de Vinho de Caju em João Pessoa, que incluiu local e foram realizados projetos de “educação patrimonial”, vista
então como meio para reduzir as tensões geradas pela ação insti-
as técnicas industriais utilizadas e, portanto, tucional. Sobre o assunto hoje, ver clipping do Ministério Público,
em 14/7/2009, em que foi instituído o tombamento voluntário:
uma expressão de modos de fazer popular https://www.mprs.mp.br/memorial/noticias/id18399.htm
das atas das reuniões, podem ser reveladores integrava um projeto mais amplo de
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

das posições dominantes e das visões de democratização da sociedade brasileira como


A C I O N A L

mundo em disputa naquele momento, bem um todo.


como da força dos movimentos sociais, Até 1980, o Iphan dispunha de duas
N

trazendo à luz sujeitos que por diferentes linhas editoriais, as séries Revista do
R T Í S T I C O

estratégias foram colocados na invisibilidade, Patrimônio e Publicações. Na gestão de


inclusive em função da censura feita à Renato Soeiro à frente do Iphan (1967-
A

imprensa pelo regime ditatorial. 1979) saíram apenas os números 16, 17 e


E

18 da revista, referentes aos anos de 1968,


I S T Ó R I C O

O antropólogo Gilberto Velho foi


membro do Conselho Consultivo da Sphan 1969 e 1978 (Thompson, Leal, Sorgine
enquanto diretor do Museu Nacional e e Teixeira, 2012). Desde sua criação, a
H
A T R I M Ô N I O

participou, em diversas situações, desses Fundação Nacional Pró-Memória investiu


debates. Em artigo na Revista do Patrimônio significativamente numa ação editorial,
Histórico e Artístico Nacional n 20, de 1984,
o começando por lançar em 1980 o livro
P

ele assinalava que democratizar a política Proteção e revitalização do patrimônio histórico


D O

Márcia Chuva

e artístico no Brasil – uma trajetória8. Como


E V I S T A

cultural no Brasil era, de fato, questão central


naquele momento e afirmava que tratado anteriormente (Chuva, 2009 e
R

2014), entendo que esse livro inaugurou uma


(...) a ampliação do próprio conceito de
perspectiva historiográfica sobre a preservação
patrimônio cultural e o enriquecimento e
do patrimônio cultural no Brasil, construindo
flexibilização dos meios e instrumentos de que
dispomos fazem parte de um projeto mais amplo,
uma narrativa que se consagrou e, ainda hoje,
de longo prazo, de democratização da sociedade tem lugar dominante.
brasileira (Velho, 1984:39). Essa publicação produziu uma narrativa
84
sobre a trajetória das políticas de proteção
Dizia ele que era preciso “levar em conta desenvolvidas pelo Iphan. Nela, as origens
com o devido peso a questão da diversidade”, da nação foram identificadas no período
bem como colonial, a autoridade de Rodrigo Melo
(...) discutir e levar em conta os costumes Franco de Andrade foi consagrada, bem
e valores dos grupos e segmentos sociais que como ficou estabelecida a tese de que a
ocupam posições subordinadas e hierarquicamente prática da preservação cultural deveria
inferiores na sociedade (idem:38). ser desempenhada pelo poder público. A
periodização das políticas de patrimônio
Se observarmos o conjunto de publicações
colocava as gestões de Rodrigo Melo
da instituição, do qual esse número da revista
Franco de Andrade e Aloisio Magalhães
faz parte, podemos nos surpreender com a
como responsáveis por sua fundação e
intensidade do investimento feito no sentido
da criação de canais de comunicação com a
8. Publicado pela então Secretaria do Patrimônio Histórico e
sociedade, nos quais se expunham diferentes Artístico Nacional – Sphan e Fundação Nacional Pró-Memória
– FNPM, como número 31 da série Publicações, interrompida
posições. Parece-nos que tal investimento em 1945.
modernização, respectivamente. Foram apresentava sua ideia do bem cultural como

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
denominadas de “fase heroica” e “fase algo

A C I O N A L
moderna” e, por meio dessa estratégia
(...) múltiplo como as manifestações culturais
discursiva, os doze anos de gestão de Renato
que emergem das estruturas sociais formadoras do
Soeiro, de 1967 a 1979, foram colocados

N
povo brasileiro, em que as suas produções culturais

R T Í S T I C O
na sombra. Nessa versão, o Iphan estaria seriam tão valorizadas quanto o espaço em que elas
esvaziado e enfraquecido no momento ocorrem10.

A
em que Aloisio Magalhães o assumiu. Há

E
algumas evidências, contudo, que mostram Por sua vez, a seção de cartas do Boletim

I S T Ó R I C O
o importante papel de Renato Soeiro à permitia o conhecimento de demandas e
frente da instituição: ele tinha assento no opiniões de um público que até então se

H
Conselho Federal de Cultura e no Conselho manifestava apenas de forma dispersa, sem

A T R I M Ô N I O
Consultivo do PCH, além de ter dirigido o dispor de um canal próprio de comunicação
Departamento de Assuntos Culturais – DAC, ou apresentação de demandas. Era esse,

P
a autarquia que sediava os programas PAC portanto, um espaço para questionamentos

D O

Márcia Chuva
e PCH, até 1974 (Azevedo, 2013 e Chuva em relação às práticas institucionais.

E V I S T A
e Lavinas, 2016). É fato que ambos, Renato Tais publicações, como o livro Proteção e

R
Soeiro e Aloisio Magalhães, desfrutaram de revitalização do patrimônio histórico e artístico
boas relações com setores do governo durante no Brasil - uma trajetória ou a coleção do
o regime militar. Boletim, são fontes ricas para investigação
O Boletim Sphan/Pró-Memória, editado da história das políticas institucionais de
mensalmente de 1979 a 1989 ,,foi uma 9 preservação do patrimônio no Brasil. Suas
publicação de tiragem bastante expressiva. narrativas são datadas, mas ainda ecoam
Welbia Carla Dias descreveu diversas de suas no presente, tendo sido disseminadas por
85
características, capazes de defini-la como um diferentes canais e autores. Joaquim de
espaço comunicativo. Para ela, Arruda Falcão foi um deles, ao afirmar que a
política cultural durante o regime militar teria
(...) o Boletim serviu como um espaço para
tido início somente com a criação do CNRC
discussão e compreensão de um período do
órgão repleto de questionamentos em relação aos e que o Iphan teria permanecido no “atraso
conceitos e às práticas preservacionistas (Dias, conceitual e metodológico” até a nova direção
2012:123). de Aloisio Magalhães (Falcão, 1984)11.
A Revista do Patrimônio criada em 1937
Servia também para divulgar as ações
– Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
da instituição. No número zero do Boletim,
lançado em 1979, Aloisio Magalhães 10. Conforme analisado por Laís Lavinas, “a noção de cultura
apresentada no Boletim é (...) a cultura compreendida como um
‘processo global que não separa as condições do meio ambiente
9. No número 0/1979, o periódico chamou-se Boletim do Iphan. daquelas do fazer do homem’.”(Lavinas, 2014:157).
A partir do número 1, é denominado Boletim Sphan/Pró-Memória 11. Tais como Fonseca (1997), Gonçalves (2002). O debate
(da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da historiográfico mais recente conta com estudos sobre as políticas
Fundação Nacional Pró-Memória). Entre 1985 e 1987 o boletim culturais e de patrimônio dos anos 1970 (Lavinas, 2014, Pereira,
não foi publicado. Ver Dias (2012). 2009; Maia, 2010; Calabre, 2009).
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

86
Márcia Chuva Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
Convento

Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
São Francisco
do Paraguaçu, BA
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
87

Márcia Chuva Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
Artístico Nacional – também nos dá elementos do Capacete, e a morte de Chico Mendes12,
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

para compreendermos o contexto recortado eventos que não podem ser banalizados, para
A C I O N A L

neste artigo. O primeiro número publicado que não percamos de vista a intensidade das
no período entre 1982 e 2002 saiu em 1984. conquistas daquele momento, em diversas
frentes.
N

Ele buscava desarrumar a fala canônica


R T Í S T I C O

dos estudos sobre o patrimônio publicados Por isso mesmo, enfatizamos o fato de
na revista até 1978. Em novo formato, o 1988 ter sido, também, o ano da Assembleia
A

projeto original da revista dispunha de novas Nacional Constituinte, que consagrou a


E

ampliação da noção de patrimônio cultural


I S T Ó R I C O

dimensões, muitas ilustrações e um desenho


moderno, ainda que tenha sido mantida sua no texto da nova Constituição Federal, com
finalidade de intercâmbio entre especialistas, a consolidação de uma perspectiva ampla
H

e plural da identidade brasileira e trazendo


A T R I M Ô N I O

como dito no editorial. O novo projeto criou


seções que permitiam a apresentação de um para a cena jurídico-política a noção de bens
culturais de natureza imaterial. Vale destacar,
campo dinâmico, ao garantir um espaço de
P

como já apontado, que essas conquistas


D O

debates com publicação de mesas redondas,


Márcia Chuva

foram possíveis devido à reunião de forças


E V I S T A

com falas múltiplas e posições multifacetadas


políticas de esquerda, partidos e grupos
e até dissonantes sobre as políticas de
R

de intelectuais, com o intuito de forjar


patrimônio (Thompson, Leal, Sorgine e
um conceito de patrimônio cultural que
Teixeira, op. cit.). O número 22 foi o último
favorecesse o exercício da cidadania, como
número nesse formato e saiu em 1987. Nele,
resultado de lutas e reflexões que vinham
o sociólogo Sergio Miceli apontou a questão
sendo processadas desde os anos 1970 (Telles,
da democratização dos modos de seleção e
2007 e Arantes, 2015).
exposição da cultura como ponto chave de
88 qualquer política de patrimônio em termos
A CONSTITUINTE –
globais e, em especial, no Brasil, tema delicado
NOVOS SUJEITOS EM CENA
no contexto de abertura política do país. Para
ele, as políticas de Estado de âmbito cultural Desde a Constituição Brasileira de
deveriam assegurar a representatividade de 1934, o amparo à cultura é tratado como
diferentes setores e movimentos sociais que dever do Estado; o direito de propriedade
fossem direta ou indiretamente por elas está subordinado ao interesse social ou
atingidos (Miceli, 1987). coletivo, cabendo à União, aos estados e aos
Numa perspectiva mais ampla do processo municípios proteger os objetos de interesse
de abertura política brasileira, vimos sujeitos histórico e o patrimônio artístico do país.
ligados a minorias e movimentos sociais As constituições brasileiras subsequentes
ocupando dramaticamente as manchetes e anteriores à Constituição de 1988
dos jornais. O ano de 1988 foi marcado por
acontecimentos chocantes, como o massacre 12 . Líder sindical, seringueiro e ambientalista, Chico Mendes foi
assassinado em sua própria casa, em Xapuri, no Acre. Em 2011, o
dos índios Tikuna, chamado de Massacre Iphan tombou esse imóvel, em homenagem à sua memória.
reproduziram essas ideias com pequenas § 1º - O poder público, com a colaboração da

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
variações. Nos 42 anos que separam a comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários,

A C I O N A L
Constituição Democrática de 1946 da
registros, vigilância, tombamento e desapropriação,
Constituição Cidadã de 1988, o campo
e de outras formas de acautelamento e preservação.
do patrimônio se ampliou, se tornou mais

N
§ 2º - Cabem à administração pública, na forma

R T Í S T I C O
complexo e o texto Constitucional de 1988 é
da lei, a gestão da documentação governamental
revelador desse percurso. Nele encontramos e as providências para franquear sua consulta a

A
traços desse tempo percorrido e das lutas quantos dela necessitem.

E
a ele coevas, nos extensos artigos 215 e

I S T Ó R I C O
§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção
216, bem como no artigo 68 do Ato das e o conhecimento de bens e valores culturais.
Disposições Constitucionais Transitórias – § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural

H
ADCT. Considerando nosso recorte temporal serão punidos, na forma da lei.

A T R I M Ô N I O
e a importância do assunto, optamos por § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os
sítios detentores de reminiscências históricas dos
reproduzi-los aqui. São eles, tal como
antigos quilombos.

P
promulgado em 1988:

D O
ADCT - Art. 68 - Aos remanescentes das

Márcia Chuva
E V I S T A
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno comunidades dos quilombos que estejam
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

R
da cultura nacional, e apoiará e incentivará a definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos
valorização e a difusão das manifestações culturais. respectivos.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, Através desses dispositivos, a Constituição
e de outros grupos participantes do processo Federal Brasileira consagrou a tese da
civilizatório nacional. diversidade cultural, ao considerar a
§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas importância da contribuição dos “diversos
comemorativas de alta significação para os grupos formadores da sociedade brasileira” e 89
diferentes segmentos étnicos nacionais. a necessidade de proteção e salvaguarda do
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural
patrimônio cultural de natureza material e
brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
imaterial pertencente a esses diferentes grupos.
tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à A noção de “grupos formadores” cumpriu
memória dos diferentes grupos formadores da um papel crucial em termos discursivos, no
sociedade brasileira, nos quais se incluem: sentido da inclusão e do reconhecimento da
I - as formas de expressão; diversidade cultural brasileira.
II - os modos de criar, fazer e viver; Refletindo sobre a eficácia da noção de
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
“grupo” após o transcurso de algumas décadas
IV - as obras, objetos, documentos, edificações
e das novas configurações do campo, alguns
e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais;
dos efeitos da sua apreensão como algo
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor permanente podem ser verificados na prática
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, de seleção de bens culturais como patrimônio:
paleontológico, ecológico e científico. se por um lado essas práticas ampliaram
significativamente o universo de bens modos de pertencimento a essa categoria.
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

tombados, com elementos de representação Diferentes significados a ela atribuídos foram


A C I O N A L

do imigrante, do afrodescendente ou do confrontados ao longo dos anos 1990 até


indígena, por outro, ficou evidente o objetivo alcançar o (relativo) consenso da atualidade.
Como vimos anteriormente, os
N

de somar grupos distintos, como se fosse


R T Í S T I C O

possível alcançar uma totalidade, isto é, um movimentos sociais que reivindicavam


somatório de diferenças prontas. Esse modo direitos civis e culturais ganharam força nas
A

de perceber a realidade levou à colocação de ruas, na imprensa, na mídia e as agências


E

brasileiras de preservação (nos planos


I S T Ó R I C O

uma falsa pergunta, repetida em diferentes


situações: como contemplar todos os grupos federal, estadual e municipal) começaram
que constituem a nação? Isso só seria possível a enfrentar demandas para proteção e
H

valorização das artes e dos ofícios cultivados


A T R I M Ô N I O

se tais grupos fossem tipificados e estanques.


Os grupos formadores da sociedade brasileira por setores populares, populações afro-
são configurações históricas, portanto, brasileiras e nações indígenas (Arantes,
P

mutáveis, sempre em processo de formação e 2009). Naquele momento, o que estava em


D O

Márcia Chuva

transformação13. jogo era a plena inclusão dessas camadas


E V I S T A

Por sua vez, o parágrafo 5º do Art. da sociedade no processo político formal,


R

216 e o Art. 68 do ADCT consagraram os no sentido de reconquistar seus direitos de


remanescentes de quilombos como objeto cidadania. Suas demandas, amplificadas pela
de reconhecimento e proteção por parte do redemocratização do país, estimularam uma
Estado e colocaram em foco comunidades revisão crítica dos valores que ao mesmo

até então ignoradas pelas políticas de tempo fundamentavam e eram promovidos


pelas políticas públicas de patrimônio14.
patrimônio no Brasil, envolvendo o Iphan
Veremos então, a seguir, como
90 em políticas afirmativas e de reparação
foram produzidas novas realidades no
que não faziam parte do escopo de sua
campo institucional do patrimônio, que
atuação. Os debates que se sucederam à
interpretou as expectativas geradas pelo texto
Constituinte em relação ao texto do art. 68
constitucional, (re)configurando suas práticas
do ADCT e, especificamente, em relação ao
dentro dos limites históricos do Brasil nos
conceito de quilombo revelaram problemas
anos 1990.
de natureza política e epistemológica. A
Para isso, vamos destacar três noções
impossibilidade de serem inventariados todos
criadas, ou ressemantizadas, no contexto
os quilombos do Brasil mostrava a imprecisão
em análise que nos parecem centrais para a
do conceito e colocava em xeque
narrativa que vimos construindo: referência
algumas das interpretações
cultural, quilombo e cidade-documento.
vigentes a seu respeito, como
Ao refletir sobre a apropriação dessas
também trazia à cena os
14. Esse aspecto tem sido abordado por caminhos diferentes, tais
13. Para aprofundar esse como Fonseca, 1997; Marins, 2016; Chuva, 2012; Nascimento,
debate, ver Canclini, 2007. 2012, dentre outros.
noções nos anos 1980 e 1990, veremos a noção refere-se aos sujeitos de atribuição de

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
configuração de novos objetos passíveis de valor de patrimônio e não à natureza dos

A C I O N A L
se tornarem patrimônio, novos problemas bens tornados patrimônio. Desse modo,
a serem enfrentados e novas abordagens é possível afirmar que isso significou uma
sobre antigos objetos patrimoniais. Esses

N
importante inversão na lógica consagrada

R T Í S T I C O
elementos indicam que os paradigmas do dos processos de patrimonialização, fundada
campo do patrimônio estavam (e estão) sendo na ideia de que os objetos teriam valores

A
redesenhados (Chuva, 2014). intrínsecos. (Chuva, 2012).

E
Contudo, esse entendimento, tal

I S T Ó R I C O
NOVOS OBJETOS – A NOÇÃO como apresentado por Fonseca, não estava
D E R E F E R Ê N C I A C U LT U R A L plenamente desenhado na década de 1980 e,

H
A T R I M Ô N I O
quiçá, 1990. Em sua tese, Lia Motta (2017)
Essa noção, introduzida pelo Centro faz uma interessante revisão historiográfica
Nacional de Referência Cultural, teve papel e, com uma abordagem inovadora e farto

P
decisivo na virada que viabilizou a ampliação material empírico, percebe que a noção de

D O

Márcia Chuva
da noção de patrimônio cultural no Brasil e, referência cultural dos anos 1970 era mais

E V I S T A
com ela, a inclusão de novos objetos passíveis uma marca e bem menos um conceito. A

R
de serem reconhecidos como tal. Ela foi referência cultural era uma categoria em
também fundamental para a inclusão dos construção. São as lutas de representação em
grupos sociais como sujeitos no processo de torno da legitimidade do patrimônio e dos
seleção desse patrimônio. Formulada nos sujeitos de atribuição de valor, processadas
anos 1970, aparece no texto constitucional, ao longo daquelas duas décadas, que vão
através da noção de referência, que consta conferir sentido e encorpar os significados da
no caput do Art. 216, ao lado da definição de noção de referência cultural, até que se torne
91
patrimônio como “bens de natureza material uma categoria operacional, na metodologia
ou imaterial”. Ao indicar a necessidade de do Inventário Nacional de Referências
“colaboração da comunidade” nas ações Culturais – INRC, elaborada em 200015.
de promoção e proteção ao patrimônio, Sem dúvida, seus significados na atualidade
empreendidas pelo Estado, a Constituição dão consistência e operacionalidade à ideia
também inova por incluir outros agentes no dos novos sujeitos de atribuição de valor de
processo que, até então, era monopolizado na patrimônio. Isto é, os produtores, detentores
fala do Estado e de seus especialistas. e/ou agentes da cultura foram incluídos no
Os sentidos históricos dados à noção de
processo de reconhecimento e valorização da
referência cultural, principalmente a partir
prática cultural, transformando os processos
da implantação do Decreto no 3.551/2000,
estabeleceram uma associação quase que 15. O antropólogo Antonio Augusto Arantes coordenou a
exclusiva com o patrimônio imaterial, que equipe responsável pela concepção da metodologia do Inventário
Nacional de Referências Culturais, contratado pelo Iphan para
não estava prevista na Constituição. Para desenvolvimento do Projeto Piloto no Museu Aberto do Desco-
brimento, Porto Seguro, em 1999-2000. Foi presidente do Iphan
Maria Cecília Londres Fonseca (2003), a de 2004 a 2006.
de construção de legitimidade do patrimônio à cultura do imigrante, restritos ao sul do
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

e, com eles, as regras de atribuição de valor país, reproduzindo-se um pensamento


A C I O N A L

de patrimônio. modernista e colonial, ainda que por meio da


Historicamente, isso se processou com inclusão de bens de tipologias inovadoras.
a inclusão de novos objetos na categoria de No mesmo contexto em que esses
N
R T Í S T I C O

patrimônio cultural brasileiro, para atender estudos de tombamento de terreiros eram


a demandas de setores que encontraram nas realizados, ocorria uma mobilização para
A

políticas de patrimônio e no instrumento que fossem debatidos os encaminhamentos


E

do tombamento uma ferramenta na luta por da Constituição relativos ao patrimônio


I S T Ó R I C O

direitos culturais, direito à memória e imaterial. O Departamento de Identificação


à identidade. e Documentação do Iphan, o DID16, teve
H

Ideias inauguradas nos anos 1980, protagonismo na coordenação desse debate


A T R I M Ô N I O

contudo, não se tornaram hegemônicas na e em torno dele juntaram-se técnicos


década seguinte, como tratou Paulo Cesar anteriormente envolvidos com os estudos e a
P

Garcez Marins (2016). Podemos afirmar, salvaguarda da cultura popular e do folclore,


D O

Márcia Chuva

portanto, que a ampliação da noção de por um lado, e da referência cultural por


E V I S T A

patrimônio cultural – como algo processual outro, isto é, do Centro Nacional do Folclore
R

e dinâmico, cotidiano e diverso e sujeito e do antigo CNRC, respectivamente. Entre


a sentidos variados e mesmo conjunturais os eventos significativos desse período, vale
– se deu de modo lento, controvertido destacar a realização do VIII Congresso
e nada linear. Quantitativamente, os Brasileiro do Folclore, em 1995, que lançou
tombamentos diminuíram nos anos 1990, a Carta do folclore brasileiro, reabilitando essa
correspondendo a apenas 42% do número de noção, e trouxe agências e agentes para a
tombamentos realizados nos anos 1980. Mas cena das políticas de patrimônio. Vale dizer
92
nesse período, conforme dados de Marins que, em 1996, a museóloga Célia Corsino,
, diferentes religiões foram contempladas com trajetória no campo da cultura popular,
com tombamentos, como o Terreiro Axé assumiu a direção do DID. Esse foi um
Opô Afonjá em Salvador (2000) e o da Torá momento importante de reconfiguração de
do Museu Nacional (1999). Ao produzir redes de agentes e de posições, bem como de
esses dados sobre os anos 1990, o autor construção das conexões entre os campos do
acredita que o “paradigma modernista” de patrimônio e do folclore e cultura popular.
entendimento da nação forjado nos anos A partir do seminário internacional
1930 teve continuidade, embora com fissuras Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas
importantes provocadas nos anos 1980. de Proteção, organizado pelo Iphan em
Segundo Marins (2016), isso fica ainda mais Fortaleza, em 1997, uma série de medidas
evidente ao analisar a distribuição territorial foi tomada e redundou na criação da política
dos bens tombados nos anos 1990, pois os
bens relacionados à cultura afrodescendente 16. De 1986 a 1990, funcionava como Coordenadoria de
Registro e Documentação – CRD; de 1990 a 2003, como Depar-
ficaram restritos à Bahia e aqueles vinculados tamento de Identificação e Documentação – DID.
de patrimônio imaterial no Brasil17. Na Iphan antes de 1988 era de sítio

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forma de um texto normativo, o Decreto n o
arqueológico, logo, sua gestão não envolvia

A C I O N A L
3.551/2000 pode ser visto como o fato síntese relações com sujeitos de identidade
que encerra esse período, com a criação do quilombola no presente. O debate
para a inclusão dessa temática no texto

N
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial.

R T Í S T I C O
Os seus efeitos se fizeram sentir a partir de constitucional envolveu diferentes setores
2002, ano do primeiro registro realizado . 18 da sociedade e foi relatado pelo referido

A
Novos objetos só poderiam ter surgido antropólogo, que, na época, era presidente

E
da Associação Brasileira de Antropologia –

I S T Ó R I C O
porque socialmente se configuraram novos
problemas e novas abordagens foram ABA. Termos como quilombo, remanescentes
propostas. Os dados produzidos por de quilombo, quilombolas, adotados na

H
Constituição, colocaram em debate o

A T R I M Ô N I O
Marins (idem) acima apresentados são, sem
dúvida, expressivos. Contudo, observar as reconhecimento da existência de grupos
políticas de patrimônio exclusivamente pelo detentores de modos de vida específicos

P
tombamento pode limitar o olhar sobre associados à vivência da territorialidade

D O

Márcia Chuva
e da diferenciação étnica, em oposição
uma realidade mais complexa. Buscaremos

E V I S T A
à perspectiva passadista e de abordagem
apontar, a seguir, outros aspectos das políticas
arqueológica que predominava entre

R
dos anos 1990 que são fruto das inovações
legisladores e também no Iphan.
conceituais e políticas forjadas nos anos 1980,
A concepção de quilombo
evidenciando também descontinuidades com
contemporâneo, que a ABA sistematizou em
o paradigma modernista.
um documento datado de 1994, subsidiou
os debates que levaram à regulamentação
NOVOS PROBLEMAS –
do Art. 68 da ADTC, quase uma década
A NOÇÃO DE QUILOMBO 93
depois, em 2003, como citado por Eliane
O’Dwyer:
Para a reflexão sobre os novos problemas,
voltamos ao texto constitucional, no que se Contemporaneamente, portanto,
refere aos quilombos e suas relações com o o termo Quilombo não se refere a
resíduos ou resquícios
campo do patrimônio. Segundo Antonio
arqueológicos
Augusto Arantes (2015), a concepção
de ocupação
predominante da categoria “quilombo” no temporal ou de
comprovação
17. A Comissão foi criada pela Portaria nº 37, de 4 de março de biológica.
1998, com a finalidade do estabelecimento de critérios, normas
e formas de acautelamento do patrimônio imaterial brasileiro e Também não se
o Grupo de Trabalho, cuja finalidade era dar assessoramento à
referida Comissão, foi criado pela Portaria nº 229, de 6 de julho
trata de grupos
de 1998, ambas assinadas pelo Ministro da Cultura Francisco isolados ou de
Weffort (Iphan, 2003). Sobre a composição dos dois grupos
citados, ver também Iphan, 2003. uma população
18. Em 2002, ocorreram os primeiros registros de patrimônio estritamente
cutural de natureza imaterial: o Ofício das Paneleiras de Goiabei-
ras, Vitória (ES) e a Arte Gráfica dos Índios Wajãpi, no Amapá. homogênea.
Baiana
Acervo: Iphan/
Da mesma forma nem sempre foram constituídos Convocado a posicionar-se nesse
Francisco Costa. a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados debate e responder às novas determinações
mas, sobretudo, consistem em grupos que constitucionais, em especial ao parágrafo 5º
94 desenvolveram práticas cotidianas de resistência na
do Art. 216, o Iphan apresentou, em 1998,
manutenção e reprodução de seus modos de vida
um parecer técnico que mantinha a posição
característicos e na consolidação de um território
institucional restrita às situações em que
próprio (Abant, 1994, apud O’Dwyer, 2002).
fossem encontrados vestígios materiais de
Em 1995, ano das comemorações dos existência dos antigos quilombos. A partir
trezentos anos da morte de Zumbi dos daí a instituição desenvolveu uma série de
Palmares, a temática quilombola conseguiu estudos e foram abertos onze processos de
entrar na pauta nacional, demarcando o tombamento, dos quais foi tombado somente
início de uma batalha jurídica e legislativa o bem relativo ao processo dos Remanescentes
que seria travada no Congresso brasileiro do Antigo Quilombo do Ambrósio. Nesse
(Arruti, 2008). Nesse mesmo ano, os caso, foram identificados restos arqueológicos,
conflitos fundiários tornaram-se manchete bem como marcos geográficos e referências
nacional com o massacre de Corumbiara, históricas da existência de quilombo
em Rondônia, e, em 1996, o massacre do constituído de negros fugidos do sistema
Eldorado dos Carajás, no Pará. escravista no local (Vaz, 2016).
Naquele momento, o Iphan eximia-se do representativa da comunidade, cabendo ao

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
debate sobre a questão fundiária, o direito à Instituto Nacional de Colonização e Reforma

A C I O N A L
terra por remanescentes de comunidades de Agrária –Incra a responsabilidade sobre a
quilombos no presente e, portanto, sobre o regularização fundiária das comunidades
quilombolas19. Desse modo, como apontou

N
próprio cerne do Art. 68, da ADTC, cujo

R T Í S T I C O
enfrentamento fervilhava no Congresso. José Maurício Arruti, a noção de “terra”
Em 2001, Fernando Henrique Cardoso ganhou a dimensão conceitual de território,

A
assinou o Decreto n 3.912, que acabou
o pois nela se incluem:

E
não tendo efetividade, porque foi julgado

I S T Ó R I C O
(...) não só a terra diretamente ocupada no
inconstitucional pelo Ministério Público, momento específico da titulação, mas todos os
por estabelecer um prazo excessivamente espaços que fazem parte de seus usos, costumes e

H
A T R I M Ô N I O
curto para apresentação de demandas de tradições e/ou que possuem os recursos ambientais
regularização fundiária quilombola e por necessários à sua manutenção e às reminiscências
exigir que as comunidades comprovassem históricas que permitam perpetuar sua memória

P
uma história de cem anos de “posse pacífica” (Arruti, 2008:23).

D O

Márcia Chuva
da terra, desde 13 de maio de 1888 até a data

E V I S T A
Especialmente com a implantação das
de promulgação da Constituição de 1988. políticas de patrimônio imaterial, essa questão

R
Essa batalha judicial que se arrastava há tornou-se central em diversas situações
mais de uma década só teria novo desfecho de registro e de inventário, passando a ser
em 2003, com a assinatura do Decreto compreendida e enfrentada também no
no 4.887 por Luiz Inácio Lula da Silva, Iphan por meio do conceito de quilombo
que regulamentou o procedimento para contemporâneo20.
identificação, reconhecimento, delimitação, Na rede de agências e agentes envolvidos
demarcação e titulação das terras ocupadas com a questão jurídico-legal quilombola, vale 95
por remanescentes das comunidades destacar a Fundação Cultural Palmares, que
dos quilombos. O decreto consagrou o se tornou responsável pela certificação das
significado de quilombo contemporâneo, em comunidades quilombolas que a reivindicam,
seu Art. 2º: antes que o Incra procedesse à regularização
da posse da terra para tais comunidades.
Consideram-se remanescentes das
A fundação é vinculada ao Ministério da
comunidades dos quilombos, para os fins deste
decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios Cultura, tal como o Iphan, sendo que as duas
de autoatribuição, com trajetória histórica própria, instituições puderam estreitar relações de
dotados de relações territoriais específicas, com parceria a partir da implantação do Decreto
presunção de ancestralidade negra relacionada com no 3.551/2000.
a resistência à opressão histórica sofrida.
19. Percebem-se nessa definição traços semelhantes àqueles que
O decreto prevê a possibilidade de serão definidos posteriormente no Decreto no 3.551/2000, para a
Salvaguarda do Patrimônio de Natureza Imaterial.
desapropriações e estabelece que a titulação 20. Esse foi o caso, por exemplo, do Jongo no Sudeste, que foi
inventariado em conformidade com a metodologia do INRC e foi
deva se efetuar em nome de entidade registrado no Livro de Registro das Formas de Expressão em 2005.
Haja vista os conflitos de interesses Os princípios que regem essa categoria
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

nesse campo, o conceito e as políticas foram lançados no parecer de tombamento


A C I O N A L

implementadas não alcançaram a estabilidade da cidade de Laguna, em Santa Catarina, em


esperada, conforme entendimento de Arruti 1985, elaborado pelo arquiteto do Iphan Luiz
(2008), sendo recorrentemente apresentados
N

Fernando Franco (Fonseca, 1997 e Franco,


R T Í S T I C O

projetos de lei no Congresso Nacional com o 1995). A área urbana de valor patrimonial
intuito de derrubar o Decreto n 4.887/2003.
o
passava a ser concebida como documento
A

Essas tensões refletem a frágil legitimidade capaz de narrar a história da rede de cidades
E

conquistada pelas comunidades quilombolas que se constituiu desde o processo inicial


I S T Ó R I C O

diante da sociedade brasileira. de colonização no Brasil. Verificou-se ali


A inserção dessa temática no campo a valorização da forma do sítio urbano
H

do patrimônio no início nos anos 1990


A T R I M Ô N I O

(vestígios materiais urbanos) como fonte de


contribuiu fortemente com os novos investigação de processos sociais e culturais
paradigmas que colocaram a temática do de construção do espaço e, desse modo, o
P

patrimônio como direito e como instrumento valor histórico tornou-se crucial na seleção de
D O

Márcia Chuva

de reparação. cidades ou trechos urbanos nos tombamentos


E V I S T A

realizados especialmente nos anos 1980, mas


N O VA S –
R

ABORDAGENS também com efeitos na década seguinte21.


A NOÇÃO DE CIDADE- As cidades, que logo no início da ação
DOCUMENTO institucional foram patrimonializadas
numa perspectiva estética e pautada na
Novos objetos, novos problemas são fruto excepcionalidade como o valor maior do
também de novas abordagens que tiveram patrimônio, passavam a ser vistas como
lugar nesse contexto. Elas podem se referir aos um documento impresso no território que
96
olhares distintos que foram lançados sobre deveria ser preservado para a produção de
objetos tradicionalmente patrimonializados.
conhecimento sobre a história da ocupação
Para tratar esse tema, optamos por trazer
do território brasileiro. A convivência dessas
o conceito de cidade-documento como a
diferentes posições no interior da instituição
abordagem que predominantemente orientou
pode ser percebida nos pareceres técnicos e nas
processos de patrimonialização de cidades,
dissonâncias presentes dentro do Conselho
nos anos 1980. Embora sem presença
Consultivo, especialmente ao se observar
explícita no texto constitucional, essa noção
os bens cujo tombamento foi rejeitado ou
ganhou aplicabilidade e consistência nas
aprovado sem unanimidade. O quadro geral
ações de inventário que proliferaram nos
de bens tombados e rejeitados no período é
anos 1990, como veremos a seguir, dando
indício desses confrontos. (Nascimento, 2012).
concretude a um dos cinco instrumentos
de proteção do patrimônio, listados no 21. Para conhecer a trajetória das políticas de proteção de cidades
mencionado Art. 216: inventários, registros, históricas no Brasil, a partir da ação do Iphan, bem como um apro-
fundamento sobre o conceito de cidade-documento e sua relação
vigilância, tombamento e desapropriação. em oposição ao de cidade-monumento, ver Sant’Anna, 2014.
Em relação aos tombamentos de Bens Imóveis: Sítios Urbanos Tombados –

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
exemplares de arquitetura moderna, Flávia INBI-SU, ele próprio uma nova proposta de

A C I O N A L
Nascimento (2016) indica uma importante abordagem do bem patrimonializado.
inflexão nesse momento, tendo em vista que Veremos então, a seguir, como essa
os primeiros tombamentos desse tipo de bem nova abordagem metodológica levou à

N
R T Í S T I C O
se deram até 1967, ligados à escola carioca de compreensão da cidade histórica como um
arquitetura moderna, logo após terem sido bem em processo dinâmico, constituído

A
construídos. Nos tombamentos ocorridos pelos sujeitos que nela habitam. Deixava

E
nos anos 1980, segundo a autora, começa a de ser, portanto, um bem do passado – que

I S T Ó R I C O
haver uma percepção distinta desse tipo de deve ser protegido da destruição – para
bem, na qual a arquitetura moderna passa a tornar-se um bem apropriado pelos sujeitos

H
ser vista como história e não como partido do presente, devendo ser negociadas as

A T R I M Ô N I O
arquitetônico em disputa. formas dessa apropriação e preservação.
É também nos anos 1980 que a gestão Naquele contexto, os caminhos encontrados

P
do bem tombado consagra-se como um para tal foram os inventários.

D O

Márcia Chuva
problema incontornável a ser abordado,

E V I S T A
tendo em vista o enorme acervo de bens OS PA D R Õ E S N A C I O N A I S
DE INVENTÁRIO: NOVOS

R
tombados, as dificuldades para a fiscalização
da sua conservação e a evidência dos INSTRUMENTOS DE
processos de crescimento das cidades, P R E S E R VA Ç Ã O
inclusive aquelas tombadas. O estudo de
Lia Motta sobre Ouro Preto, publicado na O ano de 1989 foi decretado Ano
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Inventário, durante a gestão
Nacional n 22, de 1987, estabeleceu
o
de Ítalo Campofiorito como presidente do
97
parâmetros importantes para o debate Iphan. Esse evento anunciava as prioridades
sobre a gestão das cidades tombadas e da década seguinte.
servirá de ponte para refletirmos sobre os Após o desmonte do setor cultural
inventários. Embora o conceito de cidade- promovido pelo meteórico governo de
documento tenha sido inaugurado com os Fernando Collor de Mello, momento que
estudos de tombamento, como já vimos, ele apontamos como importante inflexão no
também foi utilizado nos inventários que campo do patrimônio, a sequência da década
se desenvolveram para subsidiar a gestão de 1990 foi marcada pelos oito anos de
do patrimônio tombado. Por isso, além dos governo neoliberal de Fernando Henrique
novos tombamentos de cidades, vale dizer Cardoso na presidência da República.
que as cidades com tombamentos anteriores, Marco Aurélio Santana (2003) afirma
cujos atributos apontados eram de ordem que ao mesmo tempo em que a mídia fazia a
estética, foram revisitadas sob a perspectiva defesa aberta do neoliberalismo, visto como
documental, especialmente, através da única alternativa para a crise econômica
metodologia do Inventário Nacional de global, o movimento sindical brasileiro sofria
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

98
Márcia Chuva Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
significativo refluxo, comparativamente ao regional em cada estado da federação

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
ressurgimento que teve no início dos anos (Motta: 2015).

A C I O N A L
1980. Vale dizer que no período surgiram Como vimos até aqui, ocorreram alterações
também as primeiras leis visando a indenização de ordem conceitual, que pretendiam romper
das famílias de opositores da ditadura militar a com as concepções hegemônicas civilizadoras.

NR T Í S T I C O
partir do reconhecimento de crimes de tortura Conhecer, identificar, documentar tornavam-
e morte cometidos contra eles pelo Estado. se ações tão importantes para a preservação

A
Foram emblemáticos os casos de Carlos do patrimônio quanto proteger e conservar.

E
Lamarca e Carlos Marighella (Prado, 2004). O inventário passava a ser um modo de

I S T Ó R I C O
Segundo Santana, “Fernando Henrique preservação do patrimônio cultural, segundo a
assumirá como insígnia de seu governo tese defendida por Paulo Ormindo de Azevedo,

H
‘o fim da era Vargas’ e de tudo o que ela ainda nos anos 1980 (Azevedo, 1987).

A T R I M Ô N I O
representava” (2003:302). Na economia, foi o Havia experiências de inventários de
início de um processo tanto de flexibilização varredura, em escala regional (Motta e

P
das leis trabalhistas e da Consolidação das Rezende, 1998), mas foi nos anos 1980 que

D O

Márcia Chuva
Leis do Trabalho – CLT, responsabilizada teve início o desenvolvimento de metodologias

E V I S T A
então por dificultar a geração de empregos, de inventário para aplicação em nível nacional,
com a preocupação voltada para subsidiar

R
por causa dos encargos patronais por ela
gerados, quanto de redução do Estado, nos a gestão do bem tombado, cada vez mais
moldes da cartilha neoliberal. atingido pelas pressões do crescimento urbano,
Nessa esteira, uma série de medidas buscando, ao mesmo tempo, dar transparência
atingiu a gestão de Francisco Weffort no às ações institucionais e assistir às demandas
Ministério da Cultura, que manteve um das populações atingidas.
pequeno quadro de funcionários, bem As metodologias que foram então
concebidas tiveram larga aplicação no período, 99
como uma estrutura institucional reduzida.
Nenhuma Superintendência Estadual do principalmente por constituírem a principal
Iphan surgiu após 1990, ano de criação da ação de fortalecimento institucional do
Superintendência do Paraná, até 2002, ano Programa Monumenta (Duarte, 2010). Foram
de criação da Superintendência do Distrito elas o Inventário Nacional de Bens Móveis
Federal. Esses dados tornam-se expressivos e Integrados – INBMI (com o objetivo de
se considerarmos a ampliação das atribuições controle do tráfico ilícito de bens culturais) e
institucionais que a Constituição Federal o Inventário Nacional de Bens Imóveis: Sítios
havia produzido. Significativos, também, Urbanos Tombados – INBI-SU (aplicado em Matriz de Tiradentes, MG
Acervo: Iphan/
Nelson Kon.
comparativamente, pois nos anos 1980 cidades tombadas)22.
haviam sido criadas as superintendências
22. O INBMI foi financiado por um convênio estabelecido com
do Ceará (1982), do Amazonas (1987) e a Fundação Vitae. O INBI-SU foi executado com recursos do
de Sergipe (1989) e, entre 2004 e 2009, Iphan e, posteriormente, com Recursos do Programa Monumen-
ta/BID, foi aplicado em inúmeras cidades tombadas. O manual
foram criadas mais onze superintendências, da metodologia e alguns resultados do INBI-SU foram parcial-
mente reproduzidos nas Publicações do Senado Federal (Rezende,
concluindo a meta de uma representação 2007, 2007a, 2007b, 2007c).
O INBI-SU adotava a noção de O
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2

PAT R I M Ô N I O D E
cidade-documento. Compreendendo a DUAS DÉCADAS
A C I O N A L

cidade como um organismo dinâmico,


buscava registrar a apropriação dos traços Nossa Constituição Cidadã é o maior
N

materiais por sua população e desenvolvia- patrimônio destacado na narrativa aqui


R T Í S T I C O

se por meio de levantamentos físico- construída. Ela condensa e sistematiza


arquitetônicos, sociológicos e de pesquisa conceitos e anseios fortemente enraizados
A

histórica sobre a forma urbana, bem na sociedade civil nos anos 1980, como
E
I S T Ó R I C O

como sobre o estado de conservação dos buscamos apontar. A partir do texto


imóveis. Para cada tipo de levantamento, constitucional, exploramos os modos
formulários padrões eram utilizados. Uma como alguns aspectos centrais foram sendo
H
A T R I M Ô N I O

quantidade significativa de dados foi regulamentados e conduzidos, produzindo


então levantada em formato analógico. novas realidades no universo do patrimônio.
Com a aplicação da metodologia do As práticas do campo institucional
P

INBI-SU em larga escala, a partir de do patrimônio estavam limitadas pela


D O

Márcia Chuva

recursos do Programa Monumenta, singularidade histórica do país. E sobre


E V I S T A

pretendia-se superar as dificuldades de elas buscamos enfatizar aspectos que


R

estabelecimento de padrões que fossem tivessem produzido mudanças com efeitos


objetivos e transparentes na gestão dos duradouros. Nesse sentido, apontamos nas
sítios tombados, em relação às demandas políticas do Iphan dos anos 1990 aquelas
dos moradores em suas casas23. que estiveram relacionadas a inovações
Como resultado das novas abordagens conceituais e políticas forjadas na década
sobre um bem tradicionalmente protegido anterior, para evidenciar descontinuidades
como patrimônio – as cidades históricas com o paradigma modernista, mostrando que
100
–, consagrou-se a necessidade de as noções de referência cultural, quilombo
e cidade-documento constituíram-se como
estabelecimento de padrões nacionais de
novas chaves de entendimento e de ação no
inventários. As metodologias que foram
campo do patrimônio.
desenvolvidas nas décadas seguintes partiram
Com isso, pretendíamos corroborar
do consenso acerca da necessidade do
com as teses que admitem haver mudanças
estabelecimento de padrões nacionais e do
significativas dos paradigmas do campo
envolvimento das populações atingidas,
do patrimônio, por meio da ocorrência
afetadas, detentoras, enfim, produtoras do
de uma série de movimentos que colocam
patrimônio, seja ele de natureza material
a temática do patrimônio no âmbito dos
ou imaterial.
direitos cidadãos e mais, como instrumento
de reparação e de políticas afirmativas. Não
falamos em patrimônio na atualidade sem
falar sobre direito à memória e ao respeito à
23. Sobre o Programa Monumenta, ver Duarte, 2010 e
Giannecchini, 2014. pluralidade de identidades, assuntos que nos
anos 1980 estavam ganhando forma, como REFERÊNCIAS

Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
vimos nas palavras de Gilberto Velho (1984).

A C I O N A L
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90: transição democrática e predomínio neoliberal.
não visam mais propriamente evitar a
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N
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104
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z O jogo de olhares
Andrey Rosenthal Schlee e
Her mano Fabrício Oliveira Guanais e Queiroz

A C I O N A L
O

N
JOGO DE OLHARES

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO Estabeleceu, portanto, de forma unilateral
e discricionária, o que se entendia como
Este artigo analisa os oitenta anos de “patrimônio histórico e artístico nacional”

P
ou que, atualmente, se considera como parte

D O
atuação do Instituto do Patrimônio Histórico

E V I S T A
e Artístico Nacional no sentido de preservar do “patrimônio cultural brasileiro”.
e salvaguardar bens materiais e imateriais que Embora o Brasil tenha acompanhado

R
constituem o chamado Patrimônio Cultural a discussão internacional que levou à
Brasileiro1. Considerando a amplitude da ampliação da noção de Patrimônio – com
ação institucional, concentra a análise apenas importante repercussão na Constituição
na aplicação de três instrumentos legais (o Federal de 1988 –, o principal documento
Decreto-Lei nº 25 de 1937, a Lei nº 3.924 legal aplicado para a proteção de bens
de 1961 e o Decreto nº 3.551 de 2000) e materiais permanece sendo o Decreto-
explora a contribuição dos quatro últimos lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. 105

presidentes: Maria Elisa Costa, Antonio Foi ele que instituiu o tombamento, ato
Augusto Arantes Neto, Luiz Fernando de administrativo de inscrição ou tombo de
Almeida e Jurema de Sousa Machado. um bem em livro apropriado, e definiu seus
De janeiro de 1937 a janeiro de efeitos, as limitações ao exercício do direito

2017, o Instituto do Patrimônio de propriedade, do tipo non facere. Sendo

Histórico e Artístico Nacional – Iphan assim, discutir temas relacionados à gestão

classificou, via tombamento, 1.241 bens2. do múltiplo patrimônio cultural brasileiro


implica, primeiro, reconhecer o processo
1. Uma primeira versão do presente artigo foi apresentada em de ampliação e atualização dos conceitos
Portugal, com o título “Brasil, 80 anos protegendo um patrimô-
nio”. aplicados ao campo e perceber como ele tem
2. 1.241 bens inscritos, ou aguardando homologação do Ministro
da Cultura, ou já notificados e aguardando reunião do Conselho
moldado as práticas institucionais.
Consultivo do Patrimônio Cultural. Fonte: Depam/Iphan. Em oitenta anos de atuação, o Iphan
Dados levantados por Anna Elisa Finger e Cláudia Bastos do
Nascimento. Uma primeira versão do presente artigo foi apresen- evoluiu do chamado Patrimônio Histórico Manaus
tada em Portugal, com o título “Brasil, 80 anos protegendo um Acervo: Iphan/
patrimônio”. e Artístico Nacional para o Patrimônio Márcio Vianna.
Cultural; de bens com excepcional valor OLHAR
O jogo de olhares

PA R A O
arqueológico para monumentos arqueológicos EXCEPCIONAL
A C I O N A L

de qualquer natureza existentes no território


nacional; de bens materiais com endereço A partir de 1936 (de modo experimental)
N

fixo para bens imateriais com manifestação e ao assumir formalmente a direção do


A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O

nacional; de edificações isoladas para Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico


conjuntos urbanos inteiros; de monumentos Nacional, em 1937, o advogado Rodrigo
A

singulares para bens seriados; da vizinhança Melo Franco de Andrade estabeleceu uma
E

para a ambiência da coisa tombada; de


I S T Ó R I C O

rede de amigos colaboradores que, atuando


paisagens com valores cênicos para paisagens em suas respectivas regiões, foi capaz de
culturais; de excepcional valor cultural para indicar os primeiros bens a serem protegidos
H
A T R I M Ô N I O

referências culturais; do lote ao território, do e os nomes dos primeiros assistentes técnicos


proprietário à comunidade. a serem contratados. Entre outros, a rede
É possível afirmar que o Iphan atua, cada contou com a participação do escritor
P

vez mais, em áreas que conhece menos. E que Mário de Andrade em São Paulo, do
D O

tem considerado sociólogo Gilberto Freyre em Pernambuco,


E V I S T A

do historiador Godofredo de Figueiredo


R

(...) um amplo espectro de bens e significados, Filho na Bahia, do historiador Salomão de


de culturas cada vez mais variadas, de um passado Vasconcellos em Minas Gerais, do escritor
cada vez mais próximo, num território cada vez Augusto Meyer no Rio Grande do Sul. No
mais superposto e extenso (Figueiredo, 2014). Rio Janeiro, o grupo era um pouco maior,
mas não menos significativo, a exemplo do
Por outro lado, a sociedade em geral, poeta Manuel Bandeira, do arquiteto Carlos
e os detentores em particular, tem exigido Leão e da antropóloga Heloisa Alberto Torres.
106
participar de forma ativa dos processos de Tais intelectuais montaram propostas
identificação, reconhecimento, normatização, ou listas contendo edificações, ruínas,
fiscalização e monitoramento, salvaguarda e jardins, paisagens, coleções e acervos a serem
conservação de seus bens culturais. acautelados. O modus operandi gerou efeito
Frente a tal contexto, cabem as seguintes imediato. Logo em 1938 foram indicados
perguntas: o modelo de gestão que 328 bens, resultando em 313 tombamentos3
o Iphan construiu ao longo dos e em apenas quinze indeferimentos. Entre
últimos oitenta anos os bens protegidos, destacam-se ainda hoje,
segue válido? A pela importância e abrangência, os conjuntos
cultura institucional arquitetônicos e urbanísticos mineiros de
consolidada será Diamantina, Serro, Tiradentes, São João
capaz de dar conta del-Rei, Mariana e Ouro Preto. De onde se
dos desafios que depreende que, mesmo contando com um
se colocam para os
próximos oitenta anos? 3. Sendo 243 bens tombados ainda em 1938.
corpo técnico absolutamente reduzido, o servidores por meio de cursos internos

O jogo de olhares
Iphan, desde o primeiro momento, atuou ministrados por não arquitetos, como os

A C I O N A L
na quase totalidade de seis cidades ditas de Hanna Levy, Heloisa Alberto Torres ou
“históricas”. Afonso Arinos de Melo Franco;

N
Cabe perceber que o Decreto-lei nº 25 III. A promoção de pesquisas em

A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
organizou a proteção do patrimônio, baseado arquivos de todo o país, de maneira a
na existência dos quatro “Livros do Tombo” confirmar a narrativa histórica adotada,

A
e não na indicação das tipologias de bens que como as conduzidas por Dom Clemente

E
Silva Nigra, Judite Martins ou Manoel

I S T Ó R I C O
poderiam ser protegidas. Dessa maneira, um
determinado bem só é considerado acautelado José de Paiva Jr.;
quando identificado(s) o(s) seu(s) valor(es) e IV. A colaboração com historiadores

H
A T R I M Ô N I O
após a sua inscrição em pelo menos um dos internacionais que validaram o caminho
livros: do Tombo Arqueológico, Etnográfico e adotado, entre eles o americano Robert
Paisagístico; do Tombo Histórico; do Tombo Smith, o francês Germain Bazin, o inglês

P
das Belas Artes; ou do Tombo das Artes John Bury e o português Mário Chicó;

D O
Aplicadas. V. A divulgação dos resultados obtidos,

E V I S T A
Foi a opção pelo jogo dos livros que principalmente por meio da sua Revista

R
garantiu a longa permanência e a atualidade ou da coleção de publicações do Serviço
do Decreto-lei nº 25, mesmo frente ao do Patrimônio.
processo de ampliação dos conceitos ou Em linhas gerais, o Iphan “deveria
da incorporação de novos bens ao rol do tratar das coisas móveis e imóveis com valor
patrimônio protegido. excepcional”, o que não incluía
Considerando a amplitude e a diversidade
(...) uma vasta quantidade de bens
da produção cultural brasileira – e baseado 107
culturais cuja preservação, embora de manifesta
nos conceitos de “tradição” e “civilização”
conveniência pública, escapa à alçada do serviço
– Rodrigo estabeleceu recortes temáticos e
mantido pela União (Andrade, 1968).
temporais bastante claros que permitiram
uma atuação segura da “repartição”4. Para
Rodrigo chegou a citar algumas categorias
tanto, simultaneamente, lançou mão das
de bens que, na sua opinião, não deveriam
estratégias seguintes:
ser consideradas pelo Iphan: os documentos
I. A definição de uma narrativa
históricos; parcelas apreciáveis do espólio
histórica única e linear capaz de legitimar
de obras de arte antiga e de artesanato
as ações e escolhas do Iphan, elaborada
tradicional; sítios urbanos e rurais em que
pelo próprio Rodrigo e pelo arquiteto
predominam os traços de ancianidade,
Lucio Costa;
de pitoresco ou de beleza de paisagem;
II. A qualificação do quadro de
edificações que, conquanto não assumam a
importância de monumentos nacionais, são,
4. Maneira carinhosa como Rodrigo Melo Franco se referia ao
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. contudo, produções genuínas de arquitetura
brasileira, popular ou o seu tanto eruditas; valor estético (mas sempre excepcionais).
O jogo de olhares

coleções de peças a reclamar proteção Destacam-se, entre eles, o tombamento do


A C I O N A L

desvelada – depositadas em sedes de institutos acervo do denominado Museu da Magia


históricos, museus regionais e lojas maçônicas Negra, Rio de Janeiro (RJ), em função do
(Andrade, 1968).
N

seu valor etnográfico e, por isso, inscrito


A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O

Concebido e estruturado por intelectuais, apenas no Livro do Tombo Arqueológico,


em um primeiro momento, o Iphan voltou Etnográfico e Paisagístico; e do Conjunto
A

sua atuação, principalmente, para a proteção Arquitetônico e Urbanístico de São João


E

de bens relacionados ao período colonial Marcos, em Rio Claro (RJ), tombado


I S T Ó R I C O

em todo o Brasil, com destaque para Minas por solicitação externa para evitar sua
Gerais e para o que ficou conhecido como destruição devido à construção de uma usina
H

“Barroco mineiro”, onde se teria produzido


A T R I M Ô N I O

hidrelétrica, e inscrito apenas no Livro do


uma arquitetura e uma arte “autenticamente Tombo Histórico5.
brasileiras”. Nesse sentido, foi tombado um Salvo as solicitações externas, de um
P

grande número de monumentos religiosos modo geral os processos de tombamento


D O

(capelas, matrizes e mosteiros), militares eram bastante sucintos, muitas vezes não
E V I S T A

(fortificações), administrativos (palácios e demonstrando com clareza a motivação


R

casas de câmara e cadeia), conjuntos urbanos, do acautelamento proposto. Isso permitiu


obras de arte (com destaque para peças a celeridade dos trabalhos, sendo que um
sacras), além de alguns monumentos naturais expressivo número de bens foi tombado
(que representariam as belezas do país). A em um curto espaço de tempo. Assim, nas
esses bens, foram atribuídos prioritariamente duas primeiras décadas de atuação, o Iphan
valores artísticos, como se observa pelo protegeu o equivalente a 50% do patrimônio
predomínio das inscrições no Livro do tombado até hoje.
108
Tombo das Belas Artes e, em segundo lugar, Do ponto de vista da identificação e do
no Histórico (sendo uma grande parte
acautelamento de bens culturais, é necessário
dos bens inscrita nos dois livros). Fácil é
destacar a publicação de uma segunda lei
constatar que, no dia a dia da Instituição,
brasileira voltada à proteção do patrimônio
ocorreu uma hierarquização dos Livros do
cultural: a Lei nº 3.924, de 26 de julho
Tombo e uma direcionada “falta de rigor” na
de 1961, que dispôs sobre monumentos
determinação das inscrições. Bens indicados
arqueológicos e pré-históricos. Até a sua
com claro valor histórico foram inscritos
edição, o Decreto-lei nº 25 protegia, via
apenas no Livro do Tombo das Belas Artes,
tombamento, os bens com valor arqueológico.
a exemplo das ruínas jesuíticas Guarani de
O Iphan havia tombado três sítios e cinco
São Miguel das Missões (RS), o que reforça
coleções. Após a publicação da lei, por mais
a percepção de que a perspectiva estética
predominou nesses primeiros anos. 5. Em 1940 o conjunto foi “destombado” para permitir a execução
Poucos foram os tombamentos de bens da obra e, após ter sido evacuado, o conjunto acabou não sendo
submerso pela barragem, como se esperava. Em 1988 foi aberto
“não tradicionais” ou que fugiam à regra do um novo processo de tombamento para tratar de suas ruínas.
de trinta anos, a Instituição não tombou nas solicitações externas de tombamento,

O jogo de olhares
novos bens arqueológicos, que passaram a demonstrando maior interesse da sociedade.

A C I O N A L
ser geridos por outra lógica (a do resgate e da Tais processos levaram o Iphan a refletir sobre
interpretação), e os poucos processos abertos a sua capacidade de, isoladamente, continuar
foram indeferidos. Entretanto, a partir de a promover a preservação do patrimônio

A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
1985 nota-se um ligeiro aumento do número cultural no país. Buscando enfrentar o novo
de processos abertos (a maioria arquivado), contexto, Soeiro reescreveu as estratégias de

A
sendo tombados o Parque Nacional da Serra Rodrigo em outros termos, propondo:

E
da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI), I. A manutenção da narrativa histórica

I S T Ó R I C O
e a Ilha do Campeche, em Florianópolis (SC), única e linear, admitindo a existência
além de uma coleção de artefatos, também de bens com importância estadual ou

H
em Florianópolis (SC). municipal e semeando a ideia de um

A T R I M Ô N I O
Por força da Lei nº 3.924, os sistema nacional de patrimônio;
monumentos arqueológicos ou pré-históricos II. A organização de cursos para a

P
de qualquer natureza existentes no território formação de técnicos aptos a atuar nos

D O
nacional e todos os elementos que neles se diferentes órgãos de patrimônio em todo

E V I S T A
encontram estão sob a guarda e proteção o país, como os cursos ofertados em São

R
do poder público. O Centro Nacional de Paulo, em 1974; Recife, em 1976; Minas
Arqueologia – CNA, ligado ao Iphan, é Gerais, em 1978; e Salvador, em 1980;
o responsável pela gestão do patrimônio III. A articulação do Iphan com
arqueológico, que atualmente conta com outros ministérios no sentido de
cerca de 24 mil sítios cadastrados, envolve construir políticas e programas voltados,
quatrocentas instituições de pesquisa e guarda principalmente, para a preservação dos
e acompanha, aproximadamente, 10 mil conjuntos monumentais e para o fomento
109
projetos de pesquisa autorizados. ao turismo;
Rodrigo manteve-se na presidência IV. A colaboração com consultores
do Iphan até 1967, sendo substituído internacionais indicados pela Unesco,
pelo arquiteto Renato de Azevedo Duarte como Graeme Shankland, Paul
Soeiro, que dirigiu a instituição por mais Coremans, Michel Parent, Frédéric
doze anos. Foi quando teve início uma Limburg de Stirum e Evandro Evangelista
primeira revisão ou redefinição da política Viana de Lima;
institucional. Em virtude da crescente V. A manutenção da Revista do
expansão urbana pela qual passava o país e Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
do consequente aumento da demanda por Em 1970 e 1971 o Ministério da
áreas urbanizadas – impactando fortemente Educação e Cultura promoveu dois
os conjuntos protegidos e a ambiência dos Encontros de Governadores, propondo aos
monumentos isolados –, observou-se uma estados e municípios o compartilhamento
forte preocupação com o entorno desses e a descentralização da responsabilidade
bens. Por outro lado, ocorreu um aumento pela preservação do patrimônio cultural.
Simultaneamente, em 1973, foi instituído o Entretanto, devido a um maior rigor técnico
O jogo de olhares

atualmente denominado Programa de Cidades na instrução dos processos, o número de


A C I O N A L

Históricas – PCH, provavelmente a primeira tombamentos caiu significativamente,


experiência brasileira a pretender enfrentar fazendo com que os resultados desse
a difícil tarefa de promover a preservação de movimento, iniciado ainda no final dos anos
N

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R T Í S T I C O

modo economicamente sustentável. 1970, só fossem efetivamente percebidos na


Em outro sentido, observou-se um década seguinte.
A

estímulo à participação social, com mudanças


E

na relação entre Estado e sociedade. As OLHAR PA R A O R E F E R E N C I A L


I S T Ó R I C O

discussões sobre democratização do país,


que ultrapassavam o âmbito político, Em 1979, o designer Aloisio Magalhães
H

influenciaram também o campo da assumiu como diretor-geral do Iphan,


A T R I M Ô N I O

preservação, fazendo críticas ao modo de realizando, até 1982, um conjunto de


seleção de bens, prioritariamente a partir de transformações estruturais na instituição.
P

valores estéticos e eruditos, associados a uma Foi ele quem “substituiu o patrimônio
D O

elite política e às classes dominantes. Nesse histórico e artístico de Rodrigo pela noção
E V I S T A

sentido, as discussões capitaneadas pelos de bens culturais” (Porta, 2012). Se, até
folcloristas, das décadas de 1940 a 1960, os então, o Patrimônio trabalhava com os
R

trabalhos realizados pelo Centro Nacional conceitos de Civilização e Tradição, passou


de Folclore e Cultura Popular – CNFCP e a considerar as ideias de Desenvolvimento e
as novas concepções levadas no âmbito do Diversidade Cultural. Embora de passagem
Centro Nacional de Referência Cultural – rápida, aproximadamente quatro anos,
CNRC6 influenciaram as ações do Iphan, Aloisio conseguiu transformar o conjunto de
notadamente na questão da atribuição de estratégias de atuação institucional, a partir:
110 valor e da seleção de bens a serem protegidos. I. Da adoção de uma nova narrativa:
A noção de “identidade nacional” foi a das “referências culturais” (sentidos e
progressivamente abrindo espaço para a valores atribuídos pelos diferentes sujeitos
“diversidade” e “representatividade social” e a bens e práticas sociais);
a política de preservação começou a voltar II. Da reorganização institucional,
seus olhos para bens representativos de grupos com a criação da Fundação Pró-Memória
até então excluídos das ações patrimoniais. (FNPM: 1979-1990);
III. Da articulação do Sphan com outros
ministérios;
6. Criado em Brasília, em 1975, o Centro Nacional de Referência
Cultural – CNRC era formado por profissionais de perfis distin- IV. Da institucionalização do Centro
tos dos arquitetos de até então, como cientistas sociais, críticos Nacional de Referências Culturais –
literários, biblioteconomistas, técnicos em educação e informática,
entre outros, e buscava refletir sobre a cultura brasileira contem- CNRC e do Programa de Cidades
porânea, estabelecendo um sistema de referências para a análise
da dinâmica cultural. Funcionou até 1979, quando foi unido ao Históricas – PCH;
Iphan e ao PCH para formar a SPHAN (que deu continuidade ao
trabalho do Iphan e PCH) e a Fundação Nacional Pró-Memória V. Da colaboração com consultores
(que assumiu o trabalho desenvolvido pelo CNRC), ambos sob o
comando de Aloisio Magalhães.
internacionais indicados pela Unesco e
O jogo de olhares
A C I O N A L
N

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A
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I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
P
D O
E V I S T A
R
da apresentação de candidaturas à lista do bens relacionados a minorias ou a grupos Caboclinho,
Pernambuco
Patrimônio Mundial: Ouro Preto (1980) até então não reconhecidos, tais como Acervo: Iphan/
Felipe Peres.

e Olinda (1982); imigrantes, quilombolas ou religiosos de


VI. Da criação do Boletim SPHAN, matriz africana. Também foram acautelados 111

como forma ágil de comunicação e bens não monumentais; edifícios ecléticos;


divulgação das atividades realizadas pela e testemunhos da ocupação do território,
Instituição. da história urbana, dos diferentes grupos
Apesar de permitirem significativos étnicos, da história da ciência e da tecnologia.
avanços nas discussões relativas a temas Igualmente foram ampliadas as discussões
como cultura popular, identidade cultural relativas à proteção do patrimônio natural e
e valorização das referências de grupos do arqueológico.
excluídos, tanto o CNRC quanto, mais Essas mudanças, não por acaso,
tarde, a FNPM não conseguiram produzir coincidiram com o período de
novos instrumentos de acautelamento. redemocratização do Brasil, quando a
Mesmo assim, a partir de 1980, observou-se representatividade social foi oficialmente
a ampliação do leque de bens que passaram a assumida pela Constituição de 1988. Carta
fazer parte do patrimônio nacional, incluindo que, em seus artigos 215 e 216, consagrou
o aumento significativo do tombamento de a obrigação do Estado de assegurar a todos
o pleno exercício dos direitos culturais e a –, a partir dos anos 1980 houve uma
O jogo de olhares

proteção das “manifestações das culturas ampliação das inscrições no Livro do Tombo
A C I O N A L

populares, indígenas e afro-brasileiras, e das Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico para


de outros grupos participantes do processo diversas categorias de bens, notadamente os
conjuntos urbanos.
N

civilizatório nacional” . 7
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R T Í S T I C O

Como exemplos desse processo, merecem Em 1985, o Conselho Consultivo do


destaque os tombamentos da Fundação Patrimônio Cultural estendeu a proteção
A

Osvaldo Cruz em 1981, do Hospital São dada aos templos religiosos a seus acervos
E

Francisco de Assis em 1983 e da Escola de de bens móveis e integrados, com efeitos


I S T Ó R I C O

Enfermagem Ana Neri em 1986, todos no retroativos sobre 385 monumentos. Fato que,
Rio de Janeiro (RJ), bem como da Casa de por um lado, garantiu coerência à preservação
H

dos valores atribuídos aos edifícios, mas,


A T R I M Ô N I O

Saúde Carlos Chagas em 1985, em Lassance


(MG), como testemunhos da história da por outro, trouxe um problema de grandes
ciência e da tecnologia; da Fábrica de Vinho dimensões para o Iphan: o da identificação e
P

Tito Silva em 1984, como modelo de saberes documentação desse acervo. Problema ainda
D O

tradicionais; da Casa da Dona Neni em hoje não solucionado.


E V I S T A

1985, no centro de Antônio Prado (RS); Os anos 1980 também foram marcados
R

e, na sequência, de diversos outros bens pela preocupação com o rigor técnico na


no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, instrução dos processos de tombamento,
representativos da imigração alemã e italiana dando origem à edição da Portaria Iphan
no sul do Brasil; do Centro Histórico de nº 11, em 1986, e à abertura de uma série
Laguna (SC) em 1985, primeiro centro processos voltados para a delimitação de áreas
histórico tombado na Região Sul do Brasil de entorno de bens protegidos, de maneira
por sua importância como um documento independente dos respectivos processos de
112
para a história urbana do país; da Estação tombamento.
Ferroviária de Lassance (MG) em 1985, Ao final da década, porém, o presidente
relacionada ao patrimônio industrial; do da República Fernando Collor de Mello
Terreiro da Casa Branca em Salvador (BA), paralisou a atuação do Estado e das
em 1986, primeiro templo religioso não instituições culturais federais. Em 1990,
católico protegido e representativo das o Ministério da Cultura foi extinto e as
comunidades afro-brasileiras. atividades do Iphan e da FNPM foram

Se até então predominava o olhar entorpecidas com a dissolução do Conselho


Consultivo. Entretanto, dadas as suas
“estético” – ou, caso não se identificasse um
atribuições legais e o grande apoio da
premente valor artístico, o olhar “histórico”
sociedade, em 1992, foi criado o Instituto
7. Constituição Federal de 1988 - Art. 215. O Estado garantirá a Brasileiro de Patrimônio Cultural – IBPC,
todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da reconvertido para Iphan em 1994.
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão
das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifes- Foi só nos anos 2000 que o Iphan se
tações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. reestruturou, por meio de um redesenho
organizacional e da realização de concursos de Fazer Queijo de Minas, nas Regiões do

O jogo de olhares
para novos servidores . Observou-se também
8
Serro e das Serras da Canastra e do Salitre; o

A C I O N A L
a ampliação efetiva dos instrumentos de Modo de Fazer Cuias do Baixo Amazonas;
acautelamento. o Modo de Fazer Viola de Cocho; o Modo
de Fazer Renda Irlandesa de Sergipe; o

N
Em 2000, durante o governo de Fernando

A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Henrique Cardoso e com Carlos Heck Ofício das Baianas de Acarajé; o Ofício
na presidência do Iphan, foi constituído das Paneleiras de Goiabeiras; o Ofício dos

A
um Grupo de Trabalho do Patrimônio Mestres e a Roda de Capoeira; o Ofício

E
Imaterial com a finalidade de regulamentar de Sineiro e o Toque dos Sinos em Minas

I S T Ó R I C O
o instrumento legal do Registro, previsto no Gerais; a Produção Tradicional e Práticas
art. 216 da Constituição Federal de 1988, Socioculturais Associadas à Cajuína no Piauí;

H
os Saberes e Práticas Associados aos Modos

A T R I M Ô N I O
em consequência do célebre Seminário de
Fortaleza (1997). Após dois anos de estudo e de Fazer Bonecas Karajá; o Sistema Agrícola
discussão, foi publicado o Decreto nº 3.551, Tradicional do Rio Negro; o Círio de Nossa

P
que instituiu o Registro de Bens Culturais de Senhora de Nazaré; o Complexo Cultural

D O
Natureza Imaterial, concretizando finalmente do Bumba-meu-boi do Maranhão; a Festa

E V I S T A
as reivindicações já propostas por Mário de do Divino Espírito Santo de Paraty; a Festa

R
Andrade, pelos folcloristas e no âmbito do do Divino Espírito Santo de Pirenópolis; as
CNRC. O Registro foi, então, o instrumento Festividades do Glorioso São Sebastião na
adequado à preservação dos bens culturais Região do Marajó; a Festa do Pau da Bandeira
intangíveis. Adotando desenho semelhante ao de Santo Antônio em Barbalha; a Festa
proposto pelo Decreto-lei nº 25, o Decreto de Sant´Ana de Caicó; a Festa do Senhor
nº 3.551 também estabeleceu quatro livros, Bom Jesus do Bonfim; o Ritual Yaokwa do
mas definidos por tipologias de bens: a dos Povo Indígena Enawenê Nawê; a Romaria
113
Saberes, a das Celebrações, a das Formas de Carros de Bois da Festa do Divino Pai
Eterno de Trindade; a Arte Kusiwa – Pintura
de Expressão e a dos Lugares. Assim, um
Corporal e Arte Gráfica Wajãpi; o Carimbó;
determinado bem de natureza imaterial só é
o Cavalo-Marinho; o Fandango Caiçara; o
considerado acautelado quando, após passar
Frevo; o Jongo no Sudeste; os Caboclinhos;
pelo processo de identificação, fundamentado
o Maracatu Nação; o Maracatu de Baque
na mais ampla participação social, é inscrito
Solto; as Matrizes do Samba no Rio de
num dos quatro Livros de Registro.
Janeiro (Partido Alto, Samba de Terreiro e
Estabelecida a política institucional com
Samba-Enredo); Rtixòkò: Expressão Artística
base no Programa Nacional do Patrimônio
e Cosmológica do Povo Karajá; o Samba de
Imaterial, desde 2000, foram registrados os
Roda do Recôncavo Baiano; o Tambor de
seguintes bens imateriais: o Modo Artesanal
Crioula do Maranhão; o Teatro de Bonecos

8. Em 2005 foi realizado o primeiro concurso da história do


Popular do Nordeste; a Cachoeira de Iauaretê
Iphan, com a entrada de 222 novos profissionais, seguido por – Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos
outro em 2009, acompanhado por um aumento salarial que, na
época, revigorou os quadros técnicos. Rios Uaupés e Papuri; a Feira de Caruaru;
Cajuína
Acervo: Iphan/
a Tava – Lugar de Referência para o Povo 2005), Luiz Fernando de Almeida (2006 a
Marcio Vasconcelos.
Guarani. 2012) e Jurema de Sousa Machado (2012 a
A política de patrimônio imaterial do 2016). Período que ainda deverá ser analisado
Iphan, consagrada referência internacional, com maior detalhe e distanciamento, mas
serviu de inspiração à elaboração da que, desde já, pode ser caracterizado como o
114 Convenção para Salvaguarda do Patrimônio de um complexo “jogo de olhares”.
Imaterial da Unesco, de 2003, assim como
o seu Programa Nacional de Patrimônio OLHAR PA R A T R Á S
Imaterial está inscrito na Lista de Boas
Práticas de Salvaguarda. Ao assumir, Lula convidou o músico
Gilberto Gil para a pasta da Cultura. O
O JOGO DE OLHARES: convite, que em um primeiro momento
2003-2016 surpreendeu, logo se mostrou um acerto.
Homem da cultura, rapidamente se fez
No período compreendido entre os anos ministro, mantendo-se no cargo até 2008.
2003 a 2016, ou seja, durante os governos de Para presidir o Iphan, convidou a arquiteta
Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Maria Elisa Costa. Sendo filha de Lucio
o Iphan foi administrado por quatro Costa, sentiu-se imediatamente em casa.
presidentes: Maria Elisa Costa (2003 a 2004), Na sua primeira entrevista sobre o tema, a
Antonio Augusto Arantes Neto (2004 a presidente afirmou que desejava “fazer uma
vistoria geral. O que tem de antigo? Onde com uma Instituição com tais características Paneleiras de
Goiabeiras
é que tem cupim? Onde é que a instalação é tarefa delicada – errar a mão, apelar para Acervo: Iphan/
Marcio Vianna.

está ameaçando sofrer um incêndio para intervenções cirúrgicas radicais num paciente
com a resistência já abalada, pode significar
depois de amanhã?” (Costa, 2004). Ou seja, o
destruir o que existe de positivo. A precariedade
retorno ao patrimônio de Rodrigo e de Lucio.
da situação do Iphan é notória, com carências 115
Novamente a “pedra e cal”. Na verdade,
de toda ordem – de recursos humanos,
um profundo carinho familiar fez com que materiais, financeiros, etc., etc., carências
Maria Elisa concentrasse esforços no resgate essas que geraram consequências negativas no
das tradições construídas e consolidadas próprio comportamento interno da Instituição,
pelo próprio Iphan, especialmente aquelas tais como a dificuldade de integração dentro
relacionadas com o patrimônio material. da área central, com problemas entre Rio e

No entanto, em fevereiro de 2004, uma Brasília, gargalos indesejáveis na tramitação dos


processos, falta de diretrizes comuns, tendência
crise no Ministério da Cultura levou ao seu
ao estabelecimento de “feudos”, tendência a
pedido de demissão. Como testemunho, a
encarar o parecer em produto final, perdendo-se
presidente deixou uma sincera reflexão sobre a noção de que o produto final é o que acontece
a fragilidade institucional que encontrou. a partir dele, o hábito de dizer “não” quase por
Segundo suas palavras, o Iphan princípio, compulsivamente, o que desvaloriza o
“não” e induz ao fato consumado, dificuldade de
(...) passou por muitos e diversos traumas e se comunicar com o mundo exterior, a falta de
intervenções negativas. É fácil concluir que lidar um ”norte” comum à Casa como um todo [...]
Assim, a análise da situação encontrada revelou OLHAR
O jogo de olhares

PA R A F O R A
de forma inequívoca a necessidade de proceder
a uma reestruturação organizacional do Iphan
A C I O N A L

Se, durante os períodos de Rodrigo


substituindo a estrutura vigente por outra, na
Melo Franco e Renato Soeiro, a chamada
qual o trabalho se organizasse a partir dos temas
N

“repartição” trabalhou com as ideias de


A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z

e não das ações, estruturando os departamentos


R T Í S T I C O

em função das áreas de atuação (patrimônio Civilização e de Tradição e se, a partir


material, patrimônio imaterial, museus e centros da contribuição de Aloisio Magalhães, o
A

culturais, planejamento e administração – além patrimônio passou a considerar os conceitos


E
I S T Ó R I C O

de um centro de referência e documentação) e os de Desenvolvimento e de Diversidade


trabalhos em função de áreas específicas, às quais Cultural, é possível afirmar que foi com
correspondem saberes próprios (sítios urbanos, o arquiteto Luiz Fernando de Almeida
H

edificações isoladas, bens móveis e integrados,


A T R I M Ô N I O

que o Iphan incorporou outros dois temas


sítios arqueológicos), tanto para a atividade
fundamentais: o de Território e o de Políticas
rotineira como para programas e projetos
Culturais. Conforme suas próprias palavras,
P

(Costa, 2004).
D O

(...) com a expansão do conceito de


E V I S T A

OLHAR PA R A F R E N T E patrimônio cultural nas últimas décadas ficou


evidente que as políticas de preservação já
R

Com a inesperada saída de Maria Elisa, não estão apenas vinculadas ao conceito de
o antropólogo Antonio Augusto Arantes excepcionalidade, mas principalmente ao exercício
assumiu a instituição. Além de uma sólida de cidadania. Além disso, elas passaram a
considerar a dimensão territorial desse patrimônio.
carreira acadêmica, o novo gestor já tinha
Por essa razão, sua integração às demais políticas
administrado o Conselho de Defesa do
públicas, em busca de uma relação sincrônica e
Patrimônio Histórico, Arqueológico, diacrônica com o desenvolvimento e o futuro, deve
116 Artístico e Turístico do Estado de São apontar para além do que tem sido nossa atuação
Paulo – Condephaat, entre 1983 e 1984, e histórica (Almeida, 2012).
produzido um conjunto de textos basilares
sobre o Patrimônio Cultural, especialmente Assim como fizeram os principais
sobre sua dimensão imaterial. Arantes presidentes que o antecederam, Luiz
concentrou-se em três desafios centrais: o do Fernando também estabeleceu estratégias para
fortalecimento da autarquia por meio da sua a atuação do órgão:
reorganização administrativa, o da realização I. A adoção de uma nova narrativa,
do denominado “primeiro concurso a do patrimônio como instrumento
público” e o da consolidação da política de construção de políticas nacionais:
de salvaguarda do patrimônio imaterial. Território + Sociedade = Política
Embora tenha obtido sucesso em todos, viu Patrimonial;
seu mandato subitamente reduzido frente a II. A reorganização institucional, com a
um embate interno com os superintendentes presença do Iphan, por meio de suas supe-
da Instituição. rintendências, em todos os estados e DF;
III. A articulação do Iphan com outros apostando na internalização dos avanços

O jogo de olhares
ministérios, principalmente com o da ocorridos no país e no próprio Iphan.

A C I O N A L
Educação e o das Cidades; Seu primeiro discurso como presidente,
IV. A institucionalização do Programa realizado na entrega do Prêmio Rodrigo Melo

N
Monumenta e criação do PAC- Cidades Franco, em 2012, demonstrou sua refinada

A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Históricas; consciência do presente e seu combativo
V. A apresentação de candidaturas compromisso com a realidade institucional:

A
“polêmicas” à lista do Patrimônio

E
Refletindo sobre a trajetória do Iphan, quero

I S T Ó R I C O
Mundial: Rio de Janeiro (2012) e Cais do
Valongo (2017); revelar que a minha identidade com o projeto
em curso reside na crença em uma prática de
VI. A aposta no Sistema Nacional de

H
patrimônio radicalmente aderida ao presente. É o

A T R I M Ô N I O
Patrimônio Cultural.
que tento explicar melhor. O tempo, mais do que
Sobre a narrativa então adotada, explicou o passado e a memória, é a matéria do Iphan. Essa
Luiz Fernando: não é a única leitura possível, mas é, com certeza,

P
D O
uma das formas de se descrever os agora 75 anos
Acredito que o grande salto conceitual,

E V I S T A
dessa instituição. No projeto modernista de Mário
que aconteceu principalmente a partir dos anos de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade,

R
1980, foi entender que o conceito de patrimônio transparece a ideia de um tempo que descreve um
não estava mais somente vinculado a uma ideia percurso evolutivo, um traçado unificador ligando
de excepcionalidade, mas que estava ligado à o passado colonial ao Moderno. O projeto de
ideia de direito à cidadania e à de que, onde Aloisio Magalhaes talvez possa ser representado
houvesse território e onde houvesse pessoas, onde por um tempo não linear, que admite e valoriza a
houvesse gente e houvesse terra, haveria de existir simultaneidade do tempo lento da tradição com
uma política de patrimônio... Então, a ação da a instabilidade do contemporâneo. Sem medo de
instituição deixa de estar localizada em pontos personalismos, digo que o tempo do Iphan nesses 117
específicos do território e passa a abranger a sua anos em que foi dirigido pelo Luiz Fernando é o
globalidade. Deixa de fazer a gestão somente dos tempo presente. Aquele ao qual Drummond dizia
sítios históricos, por exemplo, e passa a ser uma estar irremediavelmente atado: “o tempo presente,
instituição que estimula a formação de políticas dos homens presentes, da vida presente”. No
de patrimônio nos estados, nos municípios, para entanto, o presente do patrimônio não é aquele
promover o fortalecimento da sociedade civil sob o domínio do efêmero e do imediato, mas o
(Almeida, 2012). que resulta do acúmulo e da experiência. É o que
nos permite reagir à angústia da obsolescência e
OLHAR PA R A D E N T R O desfrutar de registros da memória inseridos entre
nós como contrapontos que nos fazem olhar com
mais lucidez à nossa volta. Olhar e perguntar sobre
A arquiteta Jurema Machado exerceu a
a arquitetura, as cidades e os espaços públicos
direção do Iphan em um momento de difícil
que estamos produzindo; sobre como anda a
inflexão da vida nacional. Já não mais havia nossa capacidade de criar e inovar, ou para onde
a estabilidade e o vigor político-econômico caminham as nossas formas de sociabilidade e
dos tempos de Lula. Trabalhou, no entanto, a nossa relação com o ambiente. Estar atado ao
presente significa também buscar nossos ritos, colonial; o Paraná, com os tombamentos de
O jogo de olhares

línguas e conhecimentos tradicionais, não para olhar Antonina e Paranaguá, associados ao primeiro
para eles com complacência, mas entender o que
A C I O N A L

ciclo de exploração do ouro no Brasil, antes


eles ensinam e dar consequência ao seu desejo de
das Minas Gerais. Mais recentemente, como
autonomia, ao seu impulso de resistir a um destino
N

fruto de um trabalho específico9, foram


A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z

nivelador e aparentemente inexorável de todas as


R T Í S T I C O

ampliados os tombamentos de terreiros


coisas. Enfim, mirar a riqueza das diferenças não
para aplainá-las, mas para crescer no “arco tenso” de religiões de matriz africana, que conta
A

que elas traçam: diferenças de tempos, étnico-raciais, atualmente com nove bens protegidos.
E
I S T Ó R I C O

geracionais, de modos de ver e estar no mundo.


Acredito que aí se funde o nosso melhor como país CONCLUSÃO
e, se formos capazes de não abrir mão dessa ideia, o
H

que pode ser a forma particular do nosso projeto de


A T R I M Ô N I O

No Brasil, desde 1937, o Iphan foi


desenvolvimento (Machado, 2012).
legitimado para identificar bens e reconhecer
valores e significados dignos de proteção
No período que vai de 2003 a 2016,
P

e salvaguarda enquanto pertencentes à


D O

como consequência do que foi acima exposto,


noção de patrimônio cultural brasileiro. Na
E V I S T A

é possível perceber uma continuidade na


década de 1980, a partir da reorganização
busca pela diversidade cultural: decresceu o
R

reivindicatória da sociedade nacional e,


número de bens “tradicionais” protegidos,
principalmente, com as discussões em torno
a exemplo da arquitetura religiosa católica,
da noção de referências culturais, a Instituição
fortificações, palácios, e buscou-se ampliar
passou a construir meios mais consistentes
a diversidade de representação para bens
de diálogo com as populações locais, de
pouco ou nada considerados. Destaca-se,
maneira a buscar maior representatividade
nesse sentido, o tombamento do primeiro
118 em suas filtragens e escolhas. Decorre que
bem representativo da cultura indígena, os
– ao longo de oitenta anos –, de maneira
lugares indígenas sagrados denominados
menos ou mais autoritária, menos ou
Kamukuwaká e Sagihenku (alto Xingu), no
mais participativa, menos ou mais elitista,
estado do Mato Grosso (2010). Também se
o Iphan acautelou, via instrumento do
buscou ampliar a participação de estados e
tombamento, 1.241 bens materiais; via
regiões ainda pouco presentes no panorama
instrumento do cadastro, cerca de 24 mil
dos bens tombados no país, destacando-se a
sítios arqueológicos; e via instrumento do
Região Norte, com os centros históricos de
registro, quarenta bens imateriais (sem
Belém (PA), Manaus (AM), Vila Serra do
considerar as línguas inventariadas e os bens
Navio (AP) ou o Encontro das Águas em
ferroviários valorados). Resultado da mais alta
Manaus (AM); o Piauí, onde foram tombados
relevância para a cultura brasileira. Resultado
três centros históricos, de Parnaíba, Oeiras
ampliado em sua abrangência e importância,
e Piracuruca, e ainda outros bens isolados
reconhecidos como testemunhos da ocupação
9. Em 2013 foi criado o Grupo de Trabalho Interdepartamental
do interior do Brasil durante o período para Preservação do Patrimônio Cultural de Terreiros – GTIT.
quando percebemos que, dos bens culturais REFERÊNCIAS

O jogo de olhares
reconhecidos como patrimônio cultural, 84
ALMEIDA, Luiz Fernando de. Patrimônio cultural e

A C I O N A L
correspondem a conjuntos urbanos, tais como
desenvolvimento sustentável. Brasília: Iphan, 2012.
Ouro Preto, Diamantina, Goiás e Brasília, ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Âmbito do
e alguns bens imateriais estão presentes em Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Revista

A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Cultura, nº 7, Rio de Janeiro, p. 32-35, 1968.
todo o território nacional, a exemplo da Roda
COSTA, Maria Elisa. Ata da 39ª reunião do Conselho
de Capoeira. Consultivo do Patrimônio Cultural, 14/8/2003. Portal
Iphan. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/

A
Pensar no futuro do Iphan, ou mesmo

E
atasConselho>.
no futuro da noção de Patrimônio Nacional,

I S T Ó R I C O
COSTA, Maria Elisa. Entrevista a Antônio Agenor
implica em perceber que o acautelamento Barbosa. Portal Vitruvius, abr.2004. Disponível
de bens não pode significar um “fim em em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/

H
entrevista/05.018>.
si mesmo”. Ao contrário, reconhecer a

A T R I M Ô N I O
FIGUEIREDO, Vanessa Gayego Bello. Da tutela dos
importância de um “monumento” (daqueles monumentos à gestão sustentável das paisagens culturais
complexas: inspirações à política de preservação cultural
bens que, independentemente de sua natureza
no Brasil. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-

P
material ou imaterial, são legitimamente Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP.

D O
escolhidos como representativos das São Paulo, 2014.

E V I S T A
MACHADO, Jurema. Discurso. Documento inédito,
referências culturais de uma comunidade)
2012.
exige diálogo com toda a sociedade, de

R
PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio
maneira que ela possa assumir – direta e cultural no Brasil. Diretrizes, linhas de ação e resultados:
2000/2010. Brasília: Iphan, 2012.
conscientemente – a sua real conservação e SCHLEE, Andrey Rosenthal. Brasil, 80 anos protegendo
salvaguarda. No mesmo sentido, o resultado um patrimônio. In: FÓRUM INTERNACIONAL DO
de oitenta anos de política de preservação PATRIMÓNIO ARQUITETÓNICO PORTUGAL/
BRASIL. Universidade de Aveiro. Aveiro, mai.2017.
no Brasil aponta para a construção de
um novo modelo da gestão de tamanho
acervo patrimonial. Uma gestão sistêmica, 119

participativa e compartilhada, na qual cada


cidadão – detentor ou não, proprietário ou
não, socialmente organizado ou não – será
Fazenda Boi Só - PB
efetivamente responsável pelo Patrimônio Acervo: Iphan/
Cyro Corrêa Lyra.
Cultural Nacional.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

120
Már io Chagas Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
Már io Chagas

A C I O N A L
M USEUS E PATRIMÔNIOS :

N
POR UMA POÉTICA E UMA POLÍTICA DECOLONIAL

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
(...) agora vejo que vós outros maírs sois INTRODUÇÃO
grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis
grandes incômodos, como dizeis quando aqui
O artigo que aqui se inicia está dividido

P
chegais, e trabalhais tanto para amontoar

D O
riquezas para vossos filhos ou para aqueles que em oito fragmentos, ao longo dos quais se

E V I S T A
vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu examina a política de cultura que esteve
suficiente para alimentá-los também? Temos pais, especialmente voltada para o campo dos

R
mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos museus e dos patrimônios nas décadas de
de que depois de nossa morte a terra que nos 1930 e 1940 e posteriormente durante os
nutriu também os nutrirá, por isso descansamos
primeiros dezesseis anos do século XXI. Num
sem maiores cuidados. (Fala atribuída a um velho
movimento pendular, com idas e vindas,
tupinambá registrada no livro Viagem à terra do
Brasil, de Jean de Léry). pretende-se reconhecer que essas políticas,
desde muito tempo, operam com recuos e
121
avanços e que todas elas estão atravessadas por
questões que dizem respeito à modernidade e
à colonialidade, bem como aos movimentos Ruína de São Miguel
das Missões
de decolonidade. Acervo: Iphan/
Leonid Streliaev.
Nesses oito fragmentos discute-se a A esse respeito, Luciana Ballestrin (2013)
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

modernidade dos museus e dos patrimônios esclarece que a opção pela palavra decolonial
A C I O N A L

em diálogo com a colonialidade e busca- decorre de sugestão feita por Catherine


se um sinal na direção de uma poética e Walsh, para quem a palavra “decolonização”
de uma política decolonial. Modernidade (com ou sem hífen) deveria ter uso e sentido
N
R T Í S T I C O

e colonialidade andam juntas, mas, ainda distinto da palavra “descolonização”.


assim, o denominado Modernismo brasileiro,
A supressão da letra “s” marcaria a
A

em algumas situações, especialmente no


distinção entre o projeto decolonial do Grupo
E

que se refere à literatura, às artes visuais e


I S T Ó R I C O

Modernidade/Colonialidade [M/C] e a ideia


à música, foi bastante inovador e radical. histórica de descolonização, via libertação nacional
A esse respeito convém registrar o diálogo durante a Guerra Fria. Além disso, insere-se
H

possível dos Movimentos Pau-Brasil (1924) em outra genealogia de pensamento, sendo o


A T R I M Ô N I O

e Antropofágico (1928), colocados em pauta constitutivo diferencial do M/C, reivindicado por


por Oswald de Andrade, e a perspectiva Mignolo (2010:19).
Már io Chagas
P

decolonial.
D O

No presente texto, dialogamos com a


O tempo todo, o texto que aqui se
E V I S T A

sugestão de Catherine Walsh, mas, ainda


oferece estará em conversa com os artigos
assim, compreendemos que o movimento de
R

de Waldisa Rússio (“Cultura, patrimônio e


de(s)colonização não pode ser reduzido a um
preservação”, texto III, do livro Produzindo
problema linguístico ou fonético. De outro
o passado: estratégias de construção do
modo: do meu ponto de vista, podemos
patrimônio cultural, publicado em 1984),
e devemos utilizar com total liberdade os
de Luciana Ballestrin (A América Latina e
verbos decolonizar e descolonizar e todos os
o giro decolonial, publicado em 2013) e de
seus derivados, precisamos apenas, a favor do
Márcia Chuva (Para descolonizar museus
122 bom entendimento, explicitar os usos que
e patrimônio: refletindo sobre a preservação
estamos fazendo.
cultural no Brasil, publicado em 2013), bem
De um ponto de vista crítico,
como com a dissertação de João Paulo Pereira
especialmente no que tange à “história
do Amaral (Da colonialidade do patrimônio
da museologia”1, construída em instância
ao patrimônio decolonial, defendida em
acadêmica que adota como referência
2015) e com as entrevistas de Hugues de
perspectivas europeias saudadas como
Varine-Bohan, publicada em 1979 no livro
universais, vale registrar que durante a
Os museus no mundo e de Walter Mignolo,
década de 1950, no Brasil, desenvolveram-se
“Decolonialidade como o caminho para a
experiências inovadoras e com características
cooperação”, publicada em 2013 na Revista
de(s)coloniais e, possivelmente, mais
do Instituto Humanitas Unisinos.
A observação atenta dos títulos 1. Registre-se que a expressão “história da museologia”
mencionados estimula a questão: afinal, considerada na atualidade traduz de modo anacrônico a
pretensão universalista do discurso ideológico da modernidade/
quais as diferenças e semelhanças entre o colonialidade. Esse discurso, no entanto, não dá conta sequer das
diferentes museologias que convivem e disputam o passado, o
descolonial e o decolonial? presente e o futuro na própria instância de onde é enunciado.
relevantes para a museologia brasileira do 1. O MUSEU É MODERNO,

Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial


que as referências das metrópoles europeias. DIZIA O CEGO A SEU FILHO2

A C I O N A L
Esse é o caso dos trabalhos desenvolvidos
por Nise da Silveira (Museu de Imagens A cidade de Ouro Preto foi tombada
do Inconsciente), Darcy Ribeiro (Museu

N
como patrimônio brasileiro pelo Serviço do

R T Í S T I C O
do Índio) e Abdias do Nascimento (Museu Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
de Arte Negra). Mas, ainda assim, é – Sphan no dia 20 de abril de 1937, dois

A
importante ressaltar, por um lado, que essas dias após o primeiro aniversário da gestão de

E
são experiências desenvolvidas num tempo

I S T Ó R I C O
Rodrigo Melo Franco de Andrade à frente
em que a cidade do Rio de Janeiro era o
do órgão e um dia antes do 145º aniversário
Distrito Federal e, por outro, que a “história
de morte de Tiradentes. No final de 1938,

H
da museologia” carioca não está autorizada

A T R I M Ô N I O
o Museu da Inconfidência foi criado por
a traduzir e falar em nome da história da
lei, mas a sua instalação só viria a acontecer
museologia brasileira. Esse é um problema
seis anos depois, no antigo edifício da

Már io Chagas
P
sério e que tem graves repercussões na

D O
Casa de Câmara e Cadeia3 da cidade de
atualidade.

E V I S T A
Ouro Preto, no dia 11 de agosto de 1944,
Nos anos de 1980 e 1990, outras
quando se comemorava o bicentenário de

R
experiências inovadoras foram colocadas em
nascimento do poeta e inconfidente Tomás
movimento. Nesse contexto destacam-se o
Antônio Gonzaga. Todas essas datas estão
I Encontro Internacional de Ecomuseus,
carregadas de intencionalidade. Nelas não há
realizado em 1992 na cidade do Rio de
ingenuidade ou acaso; ao contrário, resultam
Janeiro (RJ), antes da ECO 92, e o Seminário
de escolhas precisas e amparam-se no desejo
Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas
de construção de outras memórias e histórias,
de Preservação, realizado em novembro
de ocupação política e poética do passado, do 123
de 1997 na cidade de Fortaleza (CE). Este
presente e do futuro.
último foi responsável pela elaboração da
A decisão tomada em 1936 pelo
Carta de Fortaleza, que teve papel decisivo
para a construção do dispositivo legal presidente Getúlio Vargas de transferir para o
conhecido como Decreto nº 3.551, de 4 de Brasil os restos mortais dos inconfidentes que
agosto de 2000, que instituiu o Registro de haviam sido degredados para a África pela
Bens Culturais de Natureza Imaterial que Coroa Portuguesa no final do século XVIII
Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro fazia parte dos movimentos políticos que
e criou o Programa Nacional do Patrimônio buscavam acionar memórias de resistência do
Imaterial. período colonial. Todos esses gestos políticos
Por fim, o artigo que quer ser lido destaca
2. Paráfrase dos dois primeiros versos da letra da música
algumas experiências de museus realizadas a Trastevere, de autoria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos,
partir de 2006 em sintonia com a chamada incluída no álbum Minas, de 1975.
3. Permanece como um desafio o estudo da relação entre poder,
Museologia Social. resistência, memória e esquecimento, particularmente no que
se refere aos museus instalados em antigos prédios de Câmara e
Cadeia.
e poéticos estavam vincados por interesses 2. O
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

PAT R I M Ô N I O TA M B É M
ancorados nas relações entre memória e É MODERNO
A C I O N A L

poder. Algumas vezes esses vincos e dobras


estimulam e propiciam movimentos de O ficcionista e bacharel em direito
descolonização, outras apenas reiteram a
N

Rodrigo Melo Franco de Andrade, autor


R T Í S T I C O

colonialidade, com base no argumento da dos contos publicados no livro Velórios,


modernidade. O moderno, a modernidade assumiu o Serviço do Patrimônio Histórico
A

e a modernização têm sido argumentos e Artístico Nacional em 1936, no mesmo


E

utilizados até hoje, com muita frequência,


I S T Ó R I C O

ano em que publicou esse seu único


para justificar o combate e o enfrentamento livro de ficção, que, diga-se de passagem,
das comunidades populares e das formas de conta com uma fortuna crítica bastante
H

organização popular.
A T R I M Ô N I O

especial. Durante sua atuação à frente da


Entre o final da denominada Primeira instituição (1936-1967), o ficcionista de
Guerra Mundial (1919) e o início da assim um único livro esteve permanentemente
Már io Chagas
P

chamada Segunda Grande Guerra (1939), cercado e assessorado por intelectuais,


D O

como observa Nelson Werneck Sodré poetas, cientistas, artistas e arquitetos de


E V I S T A

(1979:55-56), os laços de dependência grande produção e renome, entre os quais


R

política e econômica ficaram mais frouxos, se incluem Carlos Drummond de Andrade,


o que estimulou a indústria nacional e Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
contribuiu para a emergência de múltiplos Vinicius de Moraes, Pedro Nava, Cecília
e diferentes nacionalismos. No campo da Meireles, Heloisa Alberto Torres, Lígia
cultura, no Brasil, a situação não foi diferente Martins Costa, Candido Portinari, Sérgio
e pode ser identificada a partir de iniciativas Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Lucio
capazes de mobilizar afetos (políticos e Costa, Oscar Niemeyer e muitos outros.
124
poéticos), tais como a criação do Museu Foram essas e esses intelectuais que,
Histórico Nacional (1922), a elevação de a partir de perspectivas internacionais,
Ouro Preto à categoria de Monumento nacionais e regionais, contribuíram para a
Nacional (1933), a criação da Inspetoria dos construção, consolidação e aprimoramento
Monumentos Nacionais (1934), a criação do da política de patrimônio do Sphan
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico como política pública de Estado. Ao que
Nacional (1937), a criação do Museu tudo indica, Doutor Rodrigo (como era
Nacional de Belas Artes (1937), a viagem conhecido) soube cultivar uma poderosa rede
moderna de Lucio Costa para as ruínas de de relações políticas e soube conviver com
São Miguel das Missões e sua proposta para intelectuais que entre si não tinham boas
a criação do Museu das Missões (1937), a relações, como é o caso de Mário de Andrade
promulgação da lei de criação do Museu da e Gilberto Freyre ou Mário de Andrade e
Inconfidência (1938) e diversas outras ações, Heloisa Alberto Torres.
leis e propostas. Uma das orientações estruturantes da
política cultural do Sphan diz respeito à
decisão de deslocamento e interiorização Os remanescentes das ruínas da Igreja

Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial


da proteção dos patrimônios e da criação de São Miguel Arcanjo e do povoado

A C I O N A L
de museus. Concentrar a prática social dos missioneiro foram registrados em 1938 como
museus e patrimônios na Região Sudeste e patrimônio histórico e artístico nacional
nas capitais não contribuiria para a expansão no Livro do Tombo das Belas Artes. Nesse

N
R T Í S T I C O
da noção de patrimônio nacional e menos mesmo ano foi iniciada a construção do
ainda para a sua preservação. É possível singelo edifício do museu projetado por

A
imaginar que essa estratégia de política Lucio Costa. Dois anos depois, ou seja, em

E
cultural tenha dado ao Iphan o sentido de sua 1940, o museu foi juridicamente instituído e,

I S T Ó R I C O
existência. em 1942, aberto ao público.
Essa orientação estruturante foi Na região das Missões, que hoje se

H
evidenciada durante a inauguração do encontra nas fronteiras entre a Argentina, o

A T R I M Ô N I O
Museu da Inconfidência, em 1944, ocasião Brasil e o Paraguai, ao longo de 150 anos,
em que Rodrigo Melo Franco de Andrade entre os séculos XVII e XVIII, desenvolveu-

Már io Chagas
P
pronunciou um discurso que no campo se um projeto geral que articulava trinta

D O
dos patrimônios e museus ficou bastante povoados, com forte expressão cultural,

E V I S T A
célebre. Nesse discurso, além de desenhar religiosa, política e econômica e que
constituíam unidades urbanas distantes das

R
uma política para os museus e de sublinhar,
em nome do poder público, o desejo de cidades controladas pelas metrópoles.
interiorizá-los, dizia: Como indica Jean Baptista (2006:9):

A criação do Museu da Inconfidência, em É esta uma proposta audaciosa: erguer


Ouro Preto, assinala o início de uma orientação cidades em meio à selva, sobretudo a
nova e de relevante significação, adotada pelo partir da mão de obra indígena, coisa que
governo da União a respeito dos museus nacionais. somente a fé garante aos missionários
125
Deixando de limitar-se a organizar e desenvolver que se obterá. Em choque, duas
essas instituições federais apenas na capital da culturas com duas concepções de
República, ele deliberou fundá-las e mantê-las trabalho, produção e organização
também no interior do país, a fim de não ficar profundamente distintas, mas
circunscrita às divisas do Distrito Federal a muito próximas no que diz
obra de inestimável alcance cultural que a tais respeito a alguns aspectos da
estabelecimentos incumbe realizar (Andrade, religiosidade, especialmente
1987:165). aqueles relacionados com
a devoção. Com isso,
É possível identificar nesse discurso um ambos fazem das estruturas
tom “chapa branca”, mas nele também há um reducionais um campo
movimento que aponta para a necessidade de manifestações materiais
dessas relações simbólicas,
de rompimento com o cânone até então
compondo implicações sociais
estabelecido, que se confirma, por exemplo,
profundas para a geração
nas ações patrimoniais levadas a efeito no daquela organização.
extremo sul do Brasil.
A proposta para o Museu das Missões contemporânea, explicitamente assumido
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

tinha, por sua simplicidade arquitetônica e pela Museologia Social – que também pode
A C I O N A L

museográfica, por sua abordagem temática ser considerada uma Museologia Insurgente,
e por sua proposta museológica, um aspecto nos termos de Boaventura de Souza Santos
inovador. Segundo Lucio Costa (1999:39): –, é romper com as camisas de força, com as
N
R T Í S T I C O

práticas de domesticação e colonização, com


O ”museu” deve ser um simples abrigo para
a anestesia e o entorpecimento produzidos
todas as peças que, todas de regular tamanho,
A

muito lucrarão vistas assim em contato direto pela museologia colonialista que se estrutura
E

em bases hierárquicas e patriarcais, que


I S T Ó R I C O

com os demais vestígios; e como a casa do


zelador precisa ficar no recinto mesmo das acredita no poder das disciplinas, que se
ruínas, é natural que os dois sejam tratados considera pura e ideologicamente neutra,
H

conjuntamente, ocupando a construção, de que atribui mais valor à teoria do que à


A T R I M Ô N I O

preferência, um dos extremos da antiga praça prática e que valoriza, de modo especial, a
para servir de ponto de referência e dar uma ideia
memória do poder.
melhor das suas dimensões.
Már io Chagas
P

De algum modo, a memória desses


D O

O Museu das Missões e o Museu da movimentos constitui um patrimônio, ou


E V I S T A

Inconfidência, nascidos no âmbito do Iphan melhor, um contrapatrimônio, ou, ainda


R

e hoje vinculados ao Instituto Brasileiro de melhor, um “fratrimônio” (Chagas e Storino,


Museus – Ibram, em virtude de sua localização 2014:71-90) que pode ser acionado a favor da
e temática, preservam registros de movimentos vida e das liberdades humanas.
de libertação do domínio colonial. A existência Como indica Jacques Le Goff (2003:419-
desses registros, no entanto, por si só, não 476):
garante que eles estejam em sintonia com as (...) A memória, onde cresce a história,
práticas e teorias decoloniais. que por sua vez a alimenta, procura o passado
126
Os desejos e movimentos de resistência, para servir o presente e o futuro. Devemos
independência, rompimento com o pacto trabalhar de forma a que a memória coletiva
colonial e descolonização em termos sirva para a libertação e não para a servidão
políticos, econômicos e sociais, ao longo do dos homens.
tempo, conviveram com avanços, retrocessos Nesse breve excerto, depois de ter feito uma
e violentas ações de repressão por parte do análise crítica e de ter examinado a historicidade
Estado. Alguns exemplos de movimentos do vocábulo e do conceito “memória”, o
de resistência, rebeldia, revolta e separação historiador faz votos e investe no devir como
podem ser encontrados na Guerra quem reconhece a indispensabilidade dos
Guaranítica (1750-1756), na Inconfidência compromissos sociais a favor da vida e da
Mineira (1789), na Conjuração Baiana libertação dos corpos e mentes.
(1798-1799) e na Revolução Pernambucana Na contemporaneidade, movimentos
(1817). Não raro a memória desses e de resistência e de criatividade dos povos
outros movimentos é musealizada e quilombolas e dos povos indígenas, das
domesticada. Um dos desafios da museologia comunidades populares urbanas e rurais,
dos moradores das favelas e das chamadas Por esse caminho, falar em bem viver implica

Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial


periferias continuam mobilizando referência direta ao sumak kawsay (em língua

A C I O N A L
afetos políticos e afetos poéticos a favor quéchua); ao suma qamaña (em língua
da decolonização epistêmica, política, aymara) e ao tekó porã (em língua guarani).

N
econômica, social e cultural. Contra esses Talvez esse seja um desafio para os próximos

R T Í S T I C O
movimentos erguem-se sistematicamente vinte anos do Iphan.
os setores mais conservadores da sociedade Nesse sentido, a inscrição da Tava5 como

A
brasileira, utilizando como argumentos patrimônio imaterial, na categoria de Lugar

E
I S T Ó R I C O
a defesa da ordem e do progresso, do de Referência Cultural para o Povo Guarani,
patrimônio privado e do desenvolvimentismo. no Livro de Registro dos Lugares, é um forte
A decolonização do pensamento indicativo de que é possível pensar e trabalhar

H
A T R I M Ô N I O
museológico, dos museus e dos patrimônios museus e patrimônios por outro caminho.
passa, em meu entendimento, pela atenção Na sociocosmogonia Guarani-Mbyá,
aos museus sociais e populares que no século os mais antigos, os mais velhos viveram

Már io Chagas
P
XXI espalharam-se pelo Brasil, bem como na Tava e ali deixaram nas pedras as suas

D O
pela defesa da paisagem cultural, dos direitos marcas corporais. Na Tava, os ancestrais que

E V I S T A
da natureza e do patrimônio imaterial, com a se transformaram em imortais podem ser

R
consciência de que nada disso tem valor em si relembrados, assim como as “belas palavras”
e que tudo depende do uso que se faz desses do grande deus Nhanderu. Além disso, ela
conceitos e práticas sociais. (a Tava) também propicia a experiência do
Destaca-se aqui uma sugestão para futuras Bem Viver, do bom modo de viver e ser
investigações: como articular os conceitos de Guarani-Mbyá6.
museus e patrimônios em pegada decolonial
com as construções teóricas e práticas do 3. SINAIS POTENTES, 127
“bem viver”, nos termos sugeridos por SINGELOS E FRÁGEIS
Alberto Acosta (2016), especialmente em seu
livro O bem viver – uma oportunidade para A criação nos anos de 1940 do Museu
imaginar outros mundos? 4
das Missões e do Museu da Inconfidência,
O bem viver envolve as dimensões bem como a criação nos anos de 1950 do
filosófica, ética, poética, política, social e Museu de Imagens do Inconsciente7, do
econômica da vida em relação (mais ou
menos) harmônica com a natureza e com 5. Palavra formada pela junção de ita (pedra) e avá (homem,
mulher, ser humano, humanidade). Ver o parecer sobre o registro
os outros seres. O ponto de partida para a da Tava Miri São Miguel Arcanjo – Lugar de Referência Cultural
para os Guarani, assinado por Carla Maria Casara, datado de 3
construção de sua teoria e vivência são as de dezembro de 2014. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/
uploads/ckfinder/arquivos/Parecer%20Conselho_TAVA.pdf
sociocosmogonias e as visões de mundo dos (última consulta: 28 de abril de 2017).
6. Ver no Portal do Iphan a matéria “Tava, Lugar de Referência
denominados povos originários da América. para o Povo Guarani”. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/
pagina/detalhes/507/ (última consulta: 28 de abril de 2017).
7. Museu revolucionário criado em 1952, a partir do trabalho de
4. Ver o vídeo em https://www.youtube.com/ Nise da Silveira (1905-1999). O Museu ainda (r)existe, localizado no
watch?v=h4yK2ugTvWQ (última consulta: 28 de abril de 2017). bairro Engenho de Dentro, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.
Museu do Índio8 e do Museu de Arte Negra9 “O então diretor do Museu das Missões,
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

constituem sinais a favor da decolonização do Claudio Silva, permitiu aos Guarani vender
A C I O N A L

pensamento museológico. São sinais potentes, artesanato no interior do sítio (...)10.


ainda que singelos e frágeis. É possível
Em 1996, na Reserva Indígena do
N

compreender esses cinco museus como


Inhacapetum, os Guarani constituíram a
R T Í S T I C O

processos que abordam, de modo mais ou


Tekoa Koenju (Aldeia Alvorecer), afastada das
menos crítico, temáticas de grande relevância
ruínas cerca de 27 km e, por isso, passaram a
A

social, produzem novos problemas e criam


pernoitar no sítio11. De acordo com o dossiê:
E

desafios para o mundo contemporâneo.


I S T Ó R I C O

Alguns museus criados pelo Sphan durante Ocuparam, inicialmente, uma casa em
o governo Vargas contribuíram, a princípio, ruínas, e, em seguida, foi construída uma casa de
H

passagem, após intensa negociação com o Iphan


A T R I M Ô N I O

para a problematização de certos temas, para


e prefeitura. Ainda, em 1996, nasceu a primeira
as discussões de identidade e construção
criança na nova aldeia, que recebeu o nome
simbólica da nação, mas, em seguida, por
de Miguelina Romeu, fato que ganhou grande
Már io Chagas
P

motivos e procedimentos variados, foram


D O

atenção da mídia local, tornando-se um marco do


capturados, drenados em sua potência.
E V I S T A

chamado “retorno dos Guarani às Missões12.


O Museu das Missões, nesse quadro,
R

parece ser uma espécie de contraexemplo, Além da comercialização de artesanato,


ou mesmo de uma prática de museologia os Guarani também passaram a participar
a contrapelo (Chagas e Gouveia, 2014:9- de eventos e da realização de apresentações
22). Na década de 1990, como está musicais no território das ruínas. Toda essa
indicado no Dossiê de Registro da Tava ação do Museu é notável e muito diferenciada
como Lugar de Referência Cultural, os em relação a outras instituições. Ainda assim,
Guarani voltaram há muito por fazer a favor do protagonismo e
128
contra o preconceito em relação aos Guarani
(...) a formar uma aldeia em São Miguel das
e outros povos.
Missões em uma área remanescente de mata, nas
proximidades de uma Fonte Missioneira (...)”. No artigo O desafio nativo: a inclusão
do protagonismo indígena no Museu das
A presença dos Guarani nas ruínas passou a Missões e no Sítio Arqueológico de São Miguel,
ser assídua. Jean Baptista e Tony Boita (2011:264-
279) argumentam: “Parte dos intelectuais
8. Museu criado por Darcy Ribeiro (1922-1997), em 1953, para dedicados à história das missões se focou nos
lutar contra o preconceito em relação aos povos indígenas. Até
1978 esteve localizado na rua Mata Machado, no Maracanã, jesuítas (...)”. Resultado: foram mobilizadas
palco de conflitos recentes (2013) entre o governo do estado e
grupos indígenas. categorias que reproduzem a lógica
9. Idealizado e fundado por Abdias do Nascimento (1914-
2011) – líder e articulador do Teatro Experimental do Negro –, colonial, tais como: “missões jesuíticas”,
o Museu de Arte Negra foi inovador no combate ao racismo e
na afirmação da potência criativa do negro. A ideia do Museu foi
fortalecida com a realização em 1955 do Salão de Artes Plásticas 10. Ver o dossiê publicado em http://portal.iphan.gov.br/pagina/
com o tema “Cristo Negro”. Em 1968, o Museu realizou uma detalhes/507/ (última consulta: 28 de abril de 2017).
exposição no Museu da Imagem e do Som, mas em seguida, após 11. Idem.
o exílio político de Abdias, entrou em hibernação. 12. Idem.
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
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“acervo jesuítico” e “barroco jesuítico”, 4. ALGUMA COISA Museu das Missões
Acervo: Copedoc/Iphan/
Silva Telles/Instituto
desconsiderando, assim, a força e a potência ESTÁ FORA DA ORDEM Moreira Salles.

guaranítica. Esses mesmos intelectuais (COLONIAL)


“importaram conceitos anacrônicos ou
exógenos às sociedades indígenas”, entre Que museus de caráter nacional existiam 129
os quais se destacam: “totalitarismo”, no Distrito Federal na década de 1940? De
“socialismo” e “ocidentalização”. imediato é possível mencionar o Museu
Radicalizando sua argumentação, os autores Nacional da Quinta da Boa Vista (1818),
informam: o Museu Histórico Nacional (1922) e o
Chegou-se até mesmo a dizer que quem Museu Nacional de Belas Artes (1937).
construiu a Igreja de São Miguel foi o padre Gian Essas três referências, ainda que existam
Battista Primoli, assim como se considera a saída outras, são relevantes e contribuem para
jesuítica como o fim da história das missões. Não uma melhor compreensão da importância
haveria, assim, uma história indígena nas missões,
do gesto simbólico do Iphan ao criar museus
mas apenas a história vitoriosa da sobreposição
fora da ordem do Distrito Federal e das
do ocidente (representado pela Igreja) sobre as
capitais dos estados.
culturas nativas. Em outras palavras, como ocorre
na maioria das instituições, ainda se está longe É possível imaginar que a mineiridade
de harmonizar o Brasil Indígena com o Brasil de Rodrigo Melo Franco de Andrade tenha
Colonizado (Baptista e Boita, 2011:264-279). contado a favor da criação dos museus
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regionais, entre os quais se incluem: o Museu cultura ameaçados de desaparecimento.


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Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/
J.J.Steinmann.
do Diamante, em Diamantina (MG), 1950; Essa preocupação motivou a instalação de
o Museu das Bandeiras, em Vila Boa de instituições de cunho regional, como os
Goiás (GO), 1952; o Museu Victor Meirelles, museus regionais propriamente ditos, os
em Florianópolis (SC), 1952; o Museu museus temáticos de cunho local e os museus
Regional de São João del-Rei, em São João a céu aberto14.
del-Rei (MG), 1954; o Museu da Abolição, Uma definição explícita dessa categoria foi
130
no Recife (PE), 1957 e o Museu Casa da produzida durante a realização, entre os dias 7
Hera, em Vassouras (RJ), 1966, além dos e 30 de setembro de 1958, no Rio de Janeiro,
já citados Museu das Missões e Museu da do Seminário Regional da Unesco sobre o
Inconfidência . 13
Papel Educativo dos Museus15. No relatório
Por mais contemporâneo que fosse o final do Seminário16, há uma seção dedicada
pensamento do Iphan a respeito dos museus
regionais, essa não era uma categoria nativa; 14. Skansen, o primeiro museu a céu aberto, estruturado em
torno de uma coleção de casas trazidas de várias partes do interior
ao contrário, foi produzida fora do Brasil e do país, foi inaugurado em Estocolmo, em outubro de 1891,
por iniciativa de Arthur Hazelius. Ver a dissertação de Claudia
depois “antropofagizada”. Desde pelo menos Storino (2008).
15. Em 1952, em Nova York (EUA), foi realizado um Seminário
meados do século XIX já se manifestava, Internacional sobre o Papel Educativo dos Museus; em 1954,
em Atenas (Grécia), foi realizado outro Seminário Internacional
em diversos países, a preocupação com com o mesmo título. Em 1958, importa observar, foi realizado
na cidade do Rio de Janeiro (Brasil) o Seminário com o mesmo
a preservação de aspectos regionais da título, ainda que apelidado de Regional. Por que um Seminário
do ICOM e da UNESCO em Nova York é chamado de Interna-
cional e na cidade do Rio de Janeiro é chamado de Regional?
13. O critério para a citação desses museus é o período de gestão 16. Ver a íntegra do relatório de 1958, publicado em: http://
de Rodrigo Melo Franco de Andrade. unesdoc.unesco.org/images/0013/001338/133845so.pdf
aos museus regionais e nela se encontram, “turismo”, “desenvolvimento”, “museu”,

Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial


além de uma definição para esse tipo de “genuíno” e “comunidade”. Tudo ali parece

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museu, questões técnicas referentes aos seus naturalizado, mas, por trás do pano de
programas, sua organização, sua operação, boca há muita disputa de sentido, muita
seus métodos de trabalho e suas implicações disputa ideológica e um jogo de realidades e

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para o Conselho Internacional de Museus ilusões que exige do jogador atenção crítica
– Icom e para a América Latina. Nesse permanente. Há em relação a esse Seminário,

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documento, o museu regional é conceituado que em 2018 completa sessenta anos, muitas

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nos seguintes termos: histórias controversas, muitos não ditos que

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talvez precisem encontrar o caminho da
Um museu com um programa
topograficamente restrito pode ser considerado
dizibilidade.

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De qualquer modo, é importante

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”regional”, qualquer que seja sua localização, e um
museu distante de qualquer grande cidade pode registrar que os museus existentes no Brasil
também ser incluído nessa categoria, qualquer que até a década de 1980, de uma maneira

Már io Chagas
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seja seu programa; mas o genuíno museu regional, geral, reproduziam o modelo colonialista.

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o tipo mais bem qualificado para essa definição e A situação atual não é tão diferente, mas já

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que melhor adapta seus métodos para atender seu
apresenta exceções. O modelo colonialista de
objetivo particular é o museu situado a alguma

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museu pode ser caracterizado pelos processos
distância de qualquer grande cidade, que cubra
administrativos hierarquizados, pela excessiva
assuntos de interesse tanto puramente regional
quanto universal. Esse tipo de museu atende valorização do patrimônio material, pelo
aos turistas, oferecendo-lhes um conhecimento baixo nível de participação, pelo preconceito
mais completo e sistemático da região que estão e discriminação em relação aos negros, aos
visitando, e também à comunidade local, para a indígenas, ao feminismo e ao movimento
qual ele é um recurso econômico como fator do LGBTQI e pela hipervalorização do “saber”
desenvolvimento do turismo e à qual ele serve, 131
do Icom, bem como do saber “acadêmico”,
ajudando-a a aprender mais sobre si mesma, bem
“teórico”, “técnico” e “científico”, em
como sobre o resto do mundo17.
detrimento de outros saberes.
A citação acima, ainda que longa, é
instigante e serviu de inspiração para reflexões 5 . M U S E U S E PAT R I M Ô N I O S
e práticas educacionais e comunitárias. Ainda (IN)DISCIPLINADOS
assim, é preciso reconhecer que nela há um
conjunto de problemas, entre os quais se Os museus públicos que foram vinculados
destacam os conceitos de: “grande cidade” ao Iphan e que hoje fazem parte do Ibram
(possivelmente algumas pequenas cidades – com raras e honrosas exceções – tendem a
nos anos de 1950, hoje, são grandes cidades. reproduzir a lógica da colonização, que, além
Brasília, que na ocasião estava em fase de de hierárquica, é autoritária e patrimonialista.
construção, é um bom exemplo), “região”, É possível estimular e contribuir para a
encarnação de processos museais fora dessa
17. Idem. lógica? Eu diria que sim. Mas, para isso é
preciso que existam outras forças, outras realizou-se a reunião internacional que
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

formas de gestão, resistência, pensamento ficou conhecida como Mesa Redonda de


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e luta, outras parcerias, outras lógicas [(in) Santiago do Chile. Os documentos gerados
disciplinares], outras formas de ser museu a partir dessa reunião são, ainda hoje, fontes
[(in)mundo] e de fazer e saber museologia de inspiração para muitas ações e projetos
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[(in)pura]; para isso é indispensável o diálogo que cuidam da função social dos museus.
com a contemporaneidade. Os museus A Recomendação sobre a Proteção e a
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existem aqui e agora. O passado não está Promoção dos Museus e Coleções, de sua
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dado, o passado continua em disputa e nele Diversidade e de sua Função na Sociedade18,


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há uma revolução em processo. datada de novembro de 2015, nos lembra


Nise da Silveira, Darcy Ribeiro e Abdias do lema da Inconfidência Mineira: Libertas
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do Nascimento enfrentaram, ao seu tempo Quae Sera Tamen (Liberdade ainda que
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e ao seu modo, esse debate e deixaram tardia). É possível dizer que, 43 anos depois,
pistas, especialmente por intermédio dos os temas de fundo da Mesa Redonda de
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textos e das práticas em que se aplicaram. Santiago do Chile, bem como alguns temas
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As experiências por eles desenvolvidas foram do Movimento Internacional para uma Nova
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brevemente comentadas. De igual modo, Museologia – Minom foram assumidos


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merecem atenção as referências do crítico como pauta e recomendação da Unesco, com


de arte, jornalista e professor Mario Pedrosa destaque para a função social dos museus.
(1900-1981), que, no campo dos museus
e da museologia, foi um dos apoiadores de 6. MUSEUS E PAT R I M Ô N I O S :
primeira hora do Museu de Imagens do EM BUSCA DA RADICALIDADE
Inconsciente e também idealizador e diretor PERDIDA
do Museo de la Solidariedad, em Santiago
132
do Chile, no início da década de 1970, Waldisa Rússio e Hugues de Varine-
que contou com um acervo formado por Bohan, inspirados em Paulo Freire (e isso é
doações de artistas de diversos países. Soma- notável para pensar processos decoloniais),
se a esses trabalhos o seu ousado e especial abriram importantes brechas, frestas e frentes
projeto denominado Museu das Origens, de combate no campo dos patrimônios,
que articulava o Museu do Índio, o Museu dos museus e das museologias em âmbito
de Arte Virgem (Museu do Inconsciente), nacional e internacional, sobretudo a partir
o Museu de Arte Moderna, o Museu do dos anos de 1970 e 1980.
Negro e o Museu de Artes Populares. Este Dois exemplos. Em 1979, na coleção
é um, entre tantos outros projetos, que Biblioteca Salvat de Grandes Temas, foi
merece atenção de pesquisadores dedicados publicado na Espanha, na Suíça e no Brasil
ao campo dos patrimônios, dos museus e das (que vivia uma ditadura militar) o livro Os
museologias decoloniais.
Em 1972, durante o governo 18. Ver https://www.researchgate.net/publication/303566241_
Sobre_a_Nova_Recomendacao_da_UNESCO_sobre_Museus_
democraticamente eleito de Salvador Allende, Coleccoes_sua_Diversidade_e_Funcao_Social
museus no mundo. Fazia parte desse livro Na quase esquecida entrevista, Varine-

Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial


uma importante entrevista com Hugues de Bohan afirmava:

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Varine-Bohan. Publicado em português,
A descolonização que se registrou mais tarde
espanhol e francês, com uma edição de foi política, mas não cultural; pode se dizer, por

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grande tiragem e de caráter popular, o livro conseguinte, que o mundo dos museus, enquanto

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circulou e se espalhou com grande velocidade. instituição e enquanto método de conservação
O mundo dos museus, na ocasião, já havia e de comunicação do patrimônio cultural da

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experimentado a crítica dos movimentos humanidade, é um fenômeno europeu que se

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difundiu porque a Europa produziu a cultura

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sociais dos anos 1960 e 1970, incluindo aí o
dominante e os museus são uma das instituições
movimento estudantil, o movimento negro,
o movimento feminista e o movimento derivadas dessa cultura (1979:12-13).

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hippie, e também já havia passado pela Mesa A crítica de Varine-Bohan, como se vê, é
Redonda de Santiago do Chile (1972), pela contundente no que se refere à colonização
Revolução dos Cravos em Portugal (1974), cultural, mas é “polida” no que tange à

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pelas Lutas de Libertação Nacional dos países esfera política. Por isso mesmo, é preciso

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da África e pela guerra americana no Vietnã. aprimorar a sua crítica e reconhecer que,
Os jovens alinhados com a contracultura, mesmo em termos políticos e econômicos,

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por todos os cantos e esquinas, manifestavam a descolonização, em muitos países, não
sua insatisfação com o sistema estabelecido e foi radical; não tocou nos problemas de
com as guerras; anunciavam uma “era de paz fundo, não enfrentou os latifundiários,
e amor” e produziam novos modos de vida e não combateu os preconceitos e continuou
novas formas de comportamento. A América submissa aos interesses políticos e econômicos
Latina vivia o drama das ditaduras militares, do grande capital com âncoras na Europa, nos
das torturas e das perseguições políticas e ao Estados Unidos e, posteriormente, na Ásia. 133
mesmo tempo dos movimentos de luta e de Waldisa Rússio, também em 1979,
resistência e, ainda assim, foi fortemente tocada durante um memorável encontro
pelos movimentos das juventudes rebeldes. denominado A Criança e o Museu, realizado
Na referida entrevista, Hugues de na cidade do Rio de Janeiro, no Museu do
Varine-Bohan considera que, a partir de Primeiro Reinado (Casa da Marquesa de
princípios do século XIX, o desenvolvimento Santos), apresentou-se com um expressivo
dos museus no mundo é um fenômeno conjunto de estudantes e cuidou para
puramente colonialista. Diz ele: que todos fossem protagonistas. O seu
pensamento museológico libertário, o seu
Foram os países europeus que impuseram aos
flerte anarquista com o anarquismo, as
não europeus seu método de análise do fenômeno e
patrimônio culturais; obrigaram as elites e os povos suas referências a Charles Chaplin e suas
destes países a ver sua própria cultura com olhos posições políticas decolonizadoras eram (e
europeus. Assim, os museus na maioria das nações continuam sendo) inspiradoras. Além disso,
são criações da etapa histórica colonialista (1979:12). num momento em que as posições políticas
majoritárias no campo da museologia, dos 5º) as suas referências, aulas e cursos que
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

museus e do ensino da museologia eram colocavam em pauta a Museologia Popular,


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fortemente conservadoras e alinhadas com a o que me incentivou a avançar na direção da


ditadura militar, os posicionamentos teóricos, Nova Museologia e da Museologia Social,
políticos e pedagógicos de Waldisa Rússio sempre de um modo libertário.
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traziam uma lufada de inovação para o campo Um dos desafios do pensamento


museal brasileiro. Reduzir seu pensamento e contemporâneo no campo dos museus, das
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sua obra aos textos que produziu e que apenas museologias e dos patrimônios é a recuperação
E

recentemente, ainda que em boa hora, foram da radicalidade criativa. Em outras palavras:
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organizados e publicados, é uma injustiça é indispensável recuperar a potência poética


derivada do pensamento colonial, é assinar e política dos patrimônios e dos museus
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carta de desistência de compreensão da em perspectiva decolonial, o que significa


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influência e da abrangência do pensamento contribuir com os avanços dos grupos e povos


e da ação dessa mulher (e aqui é preciso subalternizados em direção à emancipação e
Már io Chagas
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repetir), dessa mulher transgressora e ao exercício pleno do direito à memória, ao


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revolucionária. Cinco pontos, entre outros patrimônio, ao museu e à cidadania.


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tantos, no pensamento e na prática de


Waldisa Rússio, me tocaram de modo 7. DECLARAÇÃO DE
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intenso: 1º) o combate sistemático à ditadura F O R TA L E Z A ( 1 9 9 7 ) E


militar, o que me inspirou e alimentou minha C A R TA D E S A LVA D O R ( 2 0 0 7 )
resiliência; 2º) a ideia de sincronia no que
se refere à noção de patrimônio, o que me A Declaração de Fortaleza, que agora
conduziu ao conceito de fratrimônio; 3º) a completa vinte anos, foi responsável pela
argumentação de que não basta fazer “para”, introdução, de modo radical, da necessidade
134
é preciso fazer “com”, o que me conduziu às de criação de um dispositivo legal que
proposições de uma “museologia para”, de contribuísse para o reconhecimento, a
uma “museologia com” e de uma “museologia valorização e a proteção do denominado
in-mundo”; 4º) a compreensão de que a patrimônio imaterial. Essa ação foi decisiva
museologia estuda o processo museal, o que para a produção do Decreto nº 3.551, de 4
contribuiu para a libertação de toda uma de agosto de 2000, que instituiu o Registro
geração no que se refere aos aprisionamentos de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
institucionais; e Constituem o Patrimônio Cultural Brasileiro
e criou o Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial. Esse decreto contribuiu para alterar
a lógica da preservação e também para que
no âmbito internacional o denominado
patrimônio imaterial passasse a ser
valorizado e considerado, o que
representou um enorme avanço
em relação às práticas até então estabelecidas. Entre 2006 e 2016 desenvolveu-se

Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial


Em boa medida, esse decreto inspirador no Brasil, um pouco por todo canto,

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exerceu (e continua exercendo) um papel um conjunto notável de experiências
decolonial. museais fortemente ancoradas em saberes
O segundo documento, conhecido e fazeres que, durante muito tempo, foram

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como Carta de Salvador (2007), completa subalternizados e que passaram a assumir
na atualidade dez anos. Ele foi escrito e a produção e a escrita de suas próprias

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produzido no âmbito das comemorações narrativas. Essas experiências rompem com

E
dos 35 anos da Mesa Redonda de Santiago os cânones estabelecidos, assumem os museus

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do Chile. Trata-se de um documento forte e os processos museais como ferramentas de
e radical e que merece atenção, mas a sua luta, reinventam poéticas e políticas museais

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força e radicalidade não significam que ele e apontam na direção de uma museologia

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tenha sido inteiramente aplicado. Em suma, libertária, comprometida com a vida.
é importante manter uma desconfiança A esse respeito o depoimento de Cícero

Már io Chagas
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sistemática dos documentos e fontes. Pereira, liderança indígena Kanindé, de

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De qualquer modo, em meu Aratuba (CE), é muito eloquente:

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entendimento, a Declaração de Fortaleza
O museu pros Kanindé é bisavô, é avô, é
(1997) e a Carta de Salvador (2007) são

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pai e é mãe, porque é a história deles, a história
documentos que dialogam com o pensamento que tinha lá atrás, é o que a gente tem aqui. O
decolonizador e, por isso mesmo, é preciso museu pros Kanindé é vida. Nós gostamos do
visitá-los e é preciso fazer derivar deles museu o tanto que a gente gosta dos pais da gente,
contribuições para o fortalecimento dessa porque aí tem um pouco do retrato, da imagem
perspectiva. de tudo. Tem a imagem do peba, tem a imagem
do pote que foi feito antigamente. Tudo ali foi um
retrato dos nossos antepassados, retrato de quem
8. MUSEOLOGIA SOCIAL EM 135
construiu aquela história19.
MOVIMENTO (À GUISA DE
CONSIDERAÇÕES FINAIS) Por mais que alguns setores corporativos
e acadêmicos normativos tentem negar
Entre as experiências museais os saberes e os fazeres dessas e de outras
desenvolvidas nos anos de 1940 e as experiências, lançando mão de frágeis
experiências contemporâneas existem muitas argumentos de autoridade, pseudocientíficos
diferenças. Talvez o Iphan e o Ibram devessem e inteiramente descolados da empiria,
olhar com atenção para as iniciativas de a Museologia Social avança sem pedir
Museologia Social ou Sociomuseologia, permissão, produzindo novos saberes e fazeres
para os Pontos de Cultura, para os Pontos e afirmando cada vez mais a sua potência
de Memória e para as Casas do Patrimônio, como processo decolonial.
que trabalham com as noções de patrimônio,
memória social e processos museais em
19. Ver http://mkindio.blogspot.com.br/2014/06/objetos-e-me-
perspectiva decolonial. moria-kaninde.html
Há na atualidade um expressivo São Paulo (SP); Ponto de Memória Museu
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial

conjunto de experiências e reflexões em Indígena Kanindé (2012), Aratuba (CE);


A C I O N A L

sintonia com a Museologia Social. Esse é Museu de Quilombos e Favelas Urbanas


o caso, por exemplo, de inúmeras redes (2012), Belo Horizonte (MG); Museu de
espalhadas pelo Brasil. Aqui cito apenas Memes (2015), vinculado à Universidade
N
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quatro: Rede Indígena de Memória e Federal Fluminense, Niterói (RJ)24 e Museu


Museologia Social no Brasil20; Rede LGBT das Remoções (2016), Rio de Janeiro (RJ).
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Memória e Museologia Social21; Rede de Todos esses exemplos e outros tantos


E

Museologia Social do Rio de Janeiro22 e que poderiam ser citados são inspiradores de
I S T Ó R I C O

Rede dos Pontos de Memória e Iniciativas pesquisas, vídeos, palestras, artigos, cursos,
Comunitárias em Memória e Museologia exposições, manifestações artísticas, músicas,
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Social do Rio Grande do Sul23. Esse também poesias, publicações e registros nas redes
A T R I M Ô N I O

é o caso de inúmeras iniciativas que, sociais. É possível compreender que há uma


entre 2006 e 2016, se disseminaram pelo relação estreita entre essas experiências de
Már io Chagas
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território brasileiro. Aqui nomeio apenas Museologia Social e uma possível Museologia
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algumas delas: Museu da Maré (2006), Rio Decolonial.


E V I S T A

de Janeiro (RJ); Museu Vivo de São Bento O presente artigo, artesanalmente


(2007), Duque de Caxias (RJ); Museu de construído, tem o objetivo de colocar em
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Favela (2008), Rio de Janeiro (RJ); Museu diálogo museus, patrimônios, museologias,
de Periferia (2009), comunidade popular artes, práticas, políticas e poéticas em
do Sítio Cercado, Curitiba (PR); Ponto de perspectiva decolonial. Oxalá, eu tenha tido
Memória de Terra Firme (2009), Belém algum êxito!
(PA); Ponto de Memória da Estrutural
(2009), Brasília (DF); Ponto de Memória
136 da Lomba do Pinheiro (2009), Porto
Alegre (RS); Ponto de Memória Museu
Comunitário da Grande São Pedro (2009),
Vitória (ES); Ponto de Memória Museu do
Taquaril (2009), Belo Horizonte (MG);
Museu Cultura Periférica (2009), Maceió
(AL); Museu Mangue do Coque (2009),
Recife (PE); Ponto de Memória do Grande
Bom Jardim (2009), Fortaleza (CE); Ponto
de Memória do Beiru (2009), Salvador
(BA); Museu Social da Brasilândia (2010),

20. Ver http://redememoriaindigena.net.br/


21. Ver http://redelgbtmemoriamuseologia.blogspot.com.br/
22. Ver http://rededemuseologiasocialdorj.blogspot.com.br/
23. Ver http://redepontors.blogspot.com.br/ 24.Ver http://www.museudememes.com.br/
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AMARAL, J. P. P. do. Da colonialidade do patrimônio ao em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/

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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

138
Marcia Sant’Anna A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
Marcia Sant’Anna

A C I O N A L
A CIDADE - PATRIMÔNIO NO B RASIL :

N
LIÇÕES DO PASSADO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO com dados recentes colhidos entre 2014 e
20161. Essas pesquisas extrapolaram o âmbito
A questão da preservação e gestão do de minha prática profissional no Iphan, mas

P
se beneficiaram da minha vivência como

D O
patrimônio urbano, bem como a da sua

E V I S T A
conservação e utilização numa perspectiva servidora da instituição por 24 anos. Ao
do respeito à memória urbana, ao interesse longo desse período, tive a oportunidade

R
público e ao bem comum, me intriga e de participar de tarefas como a instrução de
ocupa boa parte do meu tempo como processos de tombamento de sítios urbanos, a
pesquisadora, desde o começo dos anos proposição de metodologias para a elaboração
1990. A despeito de ter passado os meus de normas e critérios de intervenção nessas
últimos anos envolvida com a implementação áreas, entre outras, que me deram acesso a
da política de salvaguarda do patrimônio documentos e procedimentos que foram
cultural imaterial, jamais a perdi de vista fundamentais para a construção do meu 139

ou deixei de acompanhar atentamente as entendimento sobre a questão. Mas talvez


políticas de preservação desse patrimônio e o mais importante tenha sido o contato
seus desdobramentos. Este artigo é, assim, estreito com o dia a dia da gestão dessas
uma tentativa de traçar, com base nessas áreas, tanto no que toca às atividades de
observações, um panorama histórico das análise e licenciamento de intervenções,
concepções e tratamentos dados à cidade- quanto no que diz respeito à observação dos
patrimônio no Brasil e, a partir dele, apontar resultados de projetos, ações e programas e ao
alguns problemas e desafios que, a meu ver, desenvolvimento de uma percepção do que Salvador
Acervo: Iphan/
estão colocados no momento. significa morar, trabalhar e viver em sítios Anderson Schneider.

Grande parte desse panorama


1. Essas pesquisas foram realizadas ao longo dos cursos de
fundamenta-se nas pesquisas que realizei mestrado e doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em
sobre a prática de preservação urbana no país Arquitetura e Urbanismo da UFBA e originaram os livros Da
cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de
e em alguns países do mundo durante os anos áreas urbanas no Brasil - 1937-1990 (2014) e A cidade-atração:
a norma de preservação de áreas centrais no Brasil dos anos 1990
1990 e 2000, as quais foram complementadas (2017).
urbanos tombados. Este artigo é, portanto, o reconhecimento dessas cidades como
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

uma espécie de síntese dos meus estudos, patrimônio e sua gestão naquele momento
A C I O N A L

reflexões e vivências em torno do tema da inaugural, bem como as limitações legais e


cidade-patrimônio, que ofereço ao Iphan administrativas que estavam colocadas, as
quais, pouco a pouco, foram modificando as
N

como uma homenagem pessoal no aniversário


R T Í S T I C O

dos seus oitenta anos, na esperança de que ideias iniciais e estabelecendo os contornos
possa contribuir para o enfrentamento fundamentais da prática. Contornos que,
A

produtivo dos desafios contemporâneos da mesmo atravessados e impactados por novas


E

noções, injunções e demandas surgidas


I S T Ó R I C O

preservação do patrimônio urbano e para a


superação dos problemas e dilemas que estão no decorrer dessa longa trajetória, ainda
há tanto tempo colocados. hoje marcam a forma de pensar e atuar da
H

instituição com relação às cidades e demais


A T R I M Ô N I O

UMA AÇÃO PIONEIRA áreas urbanas protegidas.


Entendo que pelo menos três fatores são
P

Em 1937, quando o Iphan foi criado, fundamentais para a compreensão da prática


D O

não havia no mundo ocidental nenhuma institucional entre 1938 e os anos 1960,
E V I S T A

Marcia Sant’Anna

experiência conhecida de preservação de quando a preservação de sítios urbanos se


R

cidades ou de contextos urbanos mais firma e consolida no Brasil. O primeiro diz


complexos. É possível assinalar, naquele respeito à função e ao significado atribuídos
período, iniciativas pontuais, como a ao patrimônio urbano; o segundo, aos

declaração de Ouro Preto como Monumento instrumentos legais e administrativos então


disponíveis para sua gestão/preservação; e
Nacional em 1933, que podem ser vistas
o terceiro, às conjunturas sociais, políticas,
como ações de reconhecimento patrimonial
econômicas e culturais que se configuraram
140 do ambiente urbano, mas que não
ao longo desse período.
produziram efeitos ou qualquer consequência
É importante ressaltar que a cidade-
prática em termos de preservação para além
patrimônio surgiu no Brasil com uma
da outorga de um título. O tombamento de
função, ao mesmo tempo, educativa e
seis cidades mineiras em 19382, por iniciativa
de representação, atendendo à demanda
da recém-criada instituição, foi, portanto,
política dos anos 1930 de afirmação de uma
uma ação sem precedentes.
identidade nacional e de construção de uma
Diversos documentos do período, como
ideia de arte e arquitetura brasileira. As
cartas de Rodrigo Melo Franco de Andrade a
cidades tombadas assinalavam o momento
representantes do Iphan, bilhetes enviados a
de construção da brasilidade como forma de
colegas juristas e manuscritos com propostas
ser, viver e construir, e funcionavam, ainda,
de aperfeiçoamento da legislação, ajudam a
como testemunhos vivos desse momento,
compreender as concepções que nortearam
destinados a propiciar aos cidadãos brasileiros
o entendimento da formação da sua
2. Ouro Preto, Mariana, Diamantina, Tiradentes, São João
del-Rei e Serro. própria cultura, arte e história. Os valores
estéticos, cognitivos e históricos atribuídos paisagem urbana seria de responsabilidade

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


a elas foram sintetizados na expressão do poder municipal, ao qual o tombamento

A C I O N A L
“cidade-monumento”, então correntemente deveria ser notificado. Entendia-se, portanto,
utilizada pelos fundadores do Iphan. Essa que a gestão da cidade-patrimônio deveria ser
expressão vincula-se também à ideia de obra do município, mas a trajetória institucional

N
R T Í S T I C O
unitária que, para cumprir suas funções, logo mostrou a inviabilidade dessa ideia.
deve permanecer íntegra. Embora o seu Os anos 1930 constituíram um momento

A
uso corrente tenha sido abandonado nos importante do processo de modernização do

E
documentos do Iphan já nos anos 1950, a país na esfera pública e marcaram também a

I S T Ó R I C O
noção de cidade-monumento permaneceu ascensão e a progressiva hegemonia da noção
vigente, ainda que de modo não exclusivo, na de “moderno” como ideologia organizadora

H
prática de preservação até hoje em dia. do cenário social, cultural e artístico do

A T R I M Ô N I O
Mas o objeto de preservação – a período. Ser moderna era, assim, a obrigação
cidade – não funciona necessariamente de cada cidade e mesmo os fundadores

P
em sintonia com o objeto idealizado – a do Iphan aceitavam essa ideia como um

D O
cidade-patrimônio. Desde cedo, o Iphan foi destino inexorável das grandes capitais e,

E V I S T A

Marcia Sant’Anna
obrigado a lidar com dinâmicas urbanas de por isso, nas primeiras décadas de atuação

R
crescimento e transformação, usando armas do Iphan, apenas edifícios isolados foram
legais e administrativas frágeis e inadequadas. aí protegidos. O tombamento de áreas
O instituto do tombamento, por exemplo, urbanas ficou, até o final dos anos 1950,
não explicita em seu texto nem um só efeito restrito a núcleos urbanos secundários e
direta ou claramente aplicável ao contexto que estavam mais ou menos à margem da
urbano. Rodrigo Melo Franco de Andrade vida socioeconômica e política da época.
sabia disso e, em correspondência enviada Nesses lugares, contudo, o desejo de ser
141
ao representante do Iphan em Diamantina , 3
moderno também imperava, o que levava
reconheceu o problema e explicitou o seu as prefeituras a rejeitar ou, no máximo,
entendimento do que seria um tombamento suportar os efeitos da patrimonialização.
dessa natureza. Nesse documento estão Além disso, a seleção de sítios urbanos para
explicitadas, pelo menos, duas concepções tombamento era completamente centralizada
iniciais importantes: a de que, no caso de e feita sem diálogo com as localidades, o que
extensos conjuntos urbanos, o objeto da afastava ainda mais as instâncias municipais
proteção é o que seria passível de apreensão e os habitantes da prática de preservação e,
pública, ou seja, os elementos físicos, naturais principalmente, do cumprimento de suas
e edilícios que compõem a paisagem urbana obrigações.
e lhe dão caráter; e que, como bem público O resultado, em geral, foi a crescente
pertencente a toda a cidade, a preservação da atuação do Iphan no lugar das instâncias
municipais, notadamente, nas tarefas de
3. Correspondência datada de 17/9/1941, que consta do processo licenciamento e fiscalização de intervenções.
de tombamento nº 64-T-38, da cidade de Diamantina, existente
no Arquivo Central do Iphan. Uma ação de gestão, portanto, muito
limitada, já que sem dispor das armas legais Estabeleceram-se, então, novas funções para as
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

e competências municipais, que, por sua cidades-patrimônio: as de dinamizadoras do


A C I O N A L

vez, em muitos casos, se chocavam com as desenvolvimento e da economia urbana, por


determinações do Iphan. Da mesma forma meio do desenvolvimento do turismo cultural,
que a noção de cidade-monumento ainda se e de propiciadoras de recursos próprios para
N
R T Í S T I C O

revela na prática institucional, esse problema sua conservação. Esses novos papéis passaram
inaugural ainda caracteriza a gestão da a estruturar as iniciativas de planejamento e
A

maioria das áreas tombadas em nível federal. as intervenções nas cidades tombadas, bem
E

como a formulação de políticas governais de


I S T Ó R I C O

UMA N O VA F U N Ç Ã O PA R A O preservação e de desenvolvimento urbano,


PAT R I M Ô N I O D A S C I D A D E S como o Programa de Cidades Históricas –
H

PCH, criado em 1973, que implementou uma


A T R I M Ô N I O

Esse modo centralizado de atuar na gestão primeira política integrada de preservação do


das cidades-patrimônio entrou em crise com patrimônio urbano no Brasil (Corrêa, 2016).
P

o avanço da industrialização do país nos anos O PCH pode ser considerado um marco
D O

1950 e com as novas dinâmicas urbanas que dessas mudanças, pois foi um importante
E V I S T A

Marcia Sant’Anna

emergiram em algumas cidades, até então, agente modernizador e transformador da prá-


tica e da organização institucional. Um dos
R

economicamente estagnadas, mas que se


tornaram, rapidamente, polos de atração principais resultados do programa foi induzir
populacional. Além disso, reverberações a criação de organismos estaduais de preser-
decorrentes do surgimento, após a Segunda vação, que passaram a complementar a ação,
Guerra, de novas formas de utilizar e gerir o até então, isolada do Iphan, conformando um
patrimônio nos países europeus, vinculadas sistema nacional, em que as instituições fede-
ao turismo cultural e ao planejamento rais envolvidas exerciam funções direcionais e
142
urbano, chegaram ao Brasil nos anos 1960, de fomento4, ao passo que às estaduais cabia a
imprimindo mudanças significativas no modo execução propriamente dita das intervenções.
de atuação do Iphan. Esse arranjo propiciou a ampliação do territó-
No final dos anos 1960, como resultado rio de atuação do Iphan, além de sua própria
de cooperação estabelecida com a Unesco, modernização administrativa. Podem ainda ser
na qual se destaca a atuação do então apontados como resultados positivos do pro-
técnico do Serviço Principal de Inspeção grama, os investimentos realizados em forma-
dos Monumentos e de Inspeção de Sítios ção profissional e o fomento para a organização
na França, Michel Parent, novas diretrizes de um segmento do setor da construção civil
para a política de preservação do patrimônio dedicado especificamente às obras de conserva-
urbano foram instauradas (Parent, 1968), ção e restauração de edifícios históricos.
com consequências importantes na seleção de
cidades a serem protegidas, no aproveitamento 4. O PCH foi um programa inicialmente coordenado pela então
Secretaria de Planejamento da Presidência da República, com a
do seu patrimônio e na gestão e utilização participação, na esfera federal, do Iphan, da Embratur e da Sude-
ne, esta última durante a fase inicial em que o programa atuava
daquelas que já haviam sido tombadas. apenas no Nordeste.
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
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Em consonância com as diretrizes de ação, no começo dos anos 1980, quando a Forte São Marcelo,
Salvador
preconizadas pela Unesco nos anos 1960, o crise econômico-financeira fechou os fundos Acervo: Iphan/
Nilton Souza.

PCH se propunha a promover a conservação federais de fomento que supriam o PCH. Essa 143

do patrimônio e o desenvolvimento nova forma de atuar partiu de uma crítica às


econômico das cidades-patrimônio através do limitações do turismo cultural como promotor
turismo. Para tanto, pesados investimentos da preservação e do desenvolvimento
foram feitos na recuperação e adaptação das cidades-patrimônio, propondo que
de imóveis para a implantação de hotéis, esse objetivo fosse atingido por meio do
pousadas, além de outros elementos da planejamento urbano e de políticas mais
infraestrutura turística. Apostava-se que amplas de desenvolvimento que enfatizassem
esses investimentos funcionariam como o aproveitamento habitacional do patrimônio
propulsores de um processo sustentável e construído. Mas, para além de uma experiência
progressivo de recuperação do patrimônio modelar realizada em Olinda – quando
urbano e que alavancariam investimentos se testou, com sucesso, a possibilidade de
privados. Esses objetivos, contudo, jamais implantação de uma carteira de financiamento
foram plenamente atingidos, mas essas falhas no antigo Banco Nacional da Habitação –
propiciaram a formulação de uma nova linha BNH, voltada para a recuperação de imóveis
em áreas tombadas –, pouco se realizou nesse Sem dúvida, uma das marcas mais
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

sentido. Com a extinção desse banco público indeléveis deixadas pelo modo de conceber
A C I O N A L

em 1984, o projeto foi abandonado. de gerir o patrimônio urbano no período


Algumas heranças desse período de entre o final dos anos 1960 e começo dos
modernização e mudança não foram, anos 1980 foi a consolidação do vínculo entre
N
R T Í S T I C O

contudo, tão positivas. Com a diminuição turismo e patrimônio (Sant’anna, 2015:115-


dos investimentos do PCH a partir de 133). Desde então, esse binômio é visto,
A

1983, e com o fim do programa logo em notadamente no Nordeste do Brasil, como a


E

seguida, o sistema que integrava o Iphan principal forma de conferir sustentabilidade


I S T Ó R I C O

e os organismos estaduais desestruturou- econômica às iniciativas de preservação do


se totalmente. Na medida em que estes patrimônio, ainda que os resultados tenham
H

últimos haviam criado, à imagem e sido sempre sofríveis.


A T R I M Ô N I O

semelhança do Decreto-lei no 25/1937, As transformações operadas na prática


sua própria legislação de proteção ao de preservação entre o fim dos anos 1960 e
P

patrimônio, sem qualquer vínculo com a começo dos 1980 impactaram as operações
D O

área federal, configurou-se, desde então, de seleção de cidades para tombamento e de


E V I S T A

Marcia Sant’Anna

uma atuação descoordenada entre as conservação do patrimônio urbano então


R

esferas de governo, alimentada por uma protegido. A percepção da cidade como um


compreensão hierarquizada e equivocada de monumento ou como uma “obra de arte
patrimônio, derivada da atribuição de uma pronta e acabada” (Motta, 1987:108-122),
importância nacional, estadual ou local aos concebida no período anterior, conduzia
bens culturais. O patrimônio cultural do ainda as intervenções na maioria dos casos,
Brasil, que deveria constituir um conjunto mas outros predicados urbanos emergiam
de bens tratados coordenadamente por todas no momento da decisão do que proteger.
144
as esferas de governo, desdobrou-se em O “potencial turístico” das localidades
patrimônios distintos protegidos e tratados passou a ser levado em conta, expressando-
por três sistemas de proteção isolados, se concretamente por meio da escolha
superpostos e impermeáveis entre si. Essa de paisagens pitorescas ou da relação de
situação configurou-se plenamente com a proximidade entre cidades e contextos de
entrada em cena, no final dos anos 1970, das beleza natural. Em articulação com sua nova
ações de preservação no âmbito municipal, função econômica, o patrimônio urbano foi
que, apesar de inovadoras e articuladas redefinido como patrimônio ambiental e
ao planejamento urbano e aos vínculos paisagístico e a conservação dessa paisagem
urbanísticos, se desenvolveram, desde então, urbana adquiriu objetivos cada vez mais
com alguma coerência apenas em algumas pictóricos e menos vinculados a momentos
grandes cidades . 5
históricos. A interpretação modernista do
nascimento identitário e cultural do Brasil
5. Uma exceção a essa regra é a experiência do Corredor Cultural nas cidades mineiras foi, assim, superada
da cidade do Rio de Janeiro, até hoje, a mais duradoura e signifi-
cativa no âmbito municipal. pela valorização econômica e pragmática
dos cenários urbanos pitorescos da região em seus vínculos com os chamados “grupos

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


Nordeste. formadores da sociedade brasileira”7. Além

A C I O N A L
No que toca à gestão desse patrimônio, dos colonizadores portugueses, dos indígenas
para além do momento de integração e africanos, passaram a ser incluídos na
federal e estadual promovida pelo PCH, a

N
formação do Brasil os europeus e asiáticos

R T Í S T I C O
incorporação das competências reguladoras, oriundos das levas de imigração dos séculos
licenciadoras e fiscalizadoras dos municípios XIX e XX. Os grupos sociais decorrentes

A
por parte do Iphan permaneceu sem dessa formação multicultural foram definidos,

E
alteração, exceto por algumas experiências no ainda, como sujeitos e intérpretes do

I S T Ó R I C O
Rio de Janeiro e em Recife, onde inciativas patrimônio, além de agentes fundamentais
pontuais de normatização de setores para sua conservação e gestão. Embora tenha

H
protegidos em conjunto com organismos

A T R I M Ô N I O
sido proferida fora do contexto de elaboração
municipais tiveram lugar nos anos 1950 e da nova Constituição, uma frase de Aloisio
19706. O problema inicial da articulação Magalhães, ideólogo e impulsionador da

P
com os municípios permaneceu, contudo, retomada da noção ampla de patrimônio

D O
basicamente inalterado. proposta por Mário de Andrade nos anos

E V I S T A

Marcia Sant’Anna
1930 e da revolução conceitual operada no
UMA REVOLUÇÃO

R
campo da preservação, com a criação da
CONCEITUAL E POLÍTICA Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM8,
expressa bem o espírito da Carta Magna
Os anos 1980 foram marcados, no de dessacralização do patrimônio e de sua
Brasil, pelo fim de uma ditatura militar vinculação ao cotidiano e à vida das pessoas:
de quase vinte anos, pelas consequências “o melhor guardião de um bem cultural é o
da crise econômica e financeira dos anos seu dono” (Magalhães, 1985:186).
145
1970 e pelo processo de redemocratização Se é certo que essas novas concepções
do país. Na área da cultura esse processo
encontraram eco no discurso e espaço
configurou-se de forma intensa, culminando
nas ações e projetos da FNPM, pouco
na afirmação da cultura como um direito
repercutiram no Iphan daquela época. A
fundamental dos cidadãos brasileiros e no
forma centralizada e mesmo, por vezes,
estabelecimento de uma nova concepção de
autoritária de decidir o que tombar e como
patrimônio cultural na Constituição de 1988,
gerir o bem tombado se manteve na maioria
que, conceitualmente, pôs por terra àquela
dos casos, embora, no que toca ao patrimônio
praticada desde os anos 1930. O patrimônio
urbano, tenham ocorrido importantes
foi redefinido em múltiplas expressões e nas
avanços. No plano conceitual, cabe ressaltar
suas dimensões material e imaterial, e mesmo
7. Artigo 216 da Constituição Federal.
6. São exemplos, nesse sentido, as normas estabelecidas para o 8. Em 1979 criou-se o sistema Sphan/FNPM (extinto em 1990),
conjunto da Igreja e Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, e do no qual a antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Pátio de São Pedro, no centro de Recife, na década de 1950, bem Nacional conservava a natureza de unidade da administração
como as referetes aos morros da Urca, Pão de Açúcar, Babilônia e pública direta com poder de polícia, e a FNPM atuava como seu
Cara de Cão, nos anos 1970, no Rio de Janeiro. braço financeiro e executor.
a emergência de uma nova concepção de a manutenção das marcas deixadas pela
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

cidade-patrimônio, que dava ênfase ao seu passagem do tempo, acolhendo-se como


A C I O N A L

papel na consolidação do território nacional importantes e dignos de preservação os


e como documento dos processos históricos exemplares arquitetônicos do Ecletismo que
de formação, desenvolvimento e produção do
N

antes haviam sido definidos pelos modernistas


R T Í S T I C O

espaço urbano. Essa nova concepção, que, em como “anomalias” ou “falsas arquiteturas”
oposição à anterior, proponho denominar de (Costa, 1931), indignas, portanto, de
A

“cidade-documento” (Sant’anna, 2014:261- conviver com a “boa tradição” do período


E

321), promoveu impactos significativos nas colonial (Costa, 1937, p. 39).


I S T Ó R I C O

operações de seleção e de conservação das A despeito dessa revolução conceitual,


cidades tombadas. No primeiro caso, as áreas que, em função da crise e da falta de
H

urbanas deixaram de ser selecionadas apenas


A T R I M Ô N I O

investimentos públicos, pouco se desdobrou


a partir de seus atributos estéticos, estilísticos em termos práticos para além da instrução
e paisagísticos e passaram a ser escolhidas de processos de tombamento e da discussão
P

pela sua capacidade de conter elementos e em torno de algumas restaurações9, o


D O

informações sobre os processos históricos problema da gestão das cidades-patrimônio


E V I S T A

Marcia Sant’Anna

que conformaram a cidade. Os elementos permaneceu. Cabe registrar, contudo, a


R

que compõem o patrimônio urbano se consolidação, no período, das portarias da


estenderam, assim, para além das fachadas presidência do Iphan como instrumentos
e dos volumes das edificações, atingindo as de explicitação e detalhamento das normas
características do sítio físico, a trama viária, e critérios de intervenção no entorno de
o macro e o microparcelamento, as formas monumentos e em áreas tombadas. A
tradicionais de ocupação do solo urbano e elaboração do Inventário Nacional de Bens
as relações estabelecidas entre o construído Imóveis: Sítios Urbanos Tombados – INBI-
146
e o não construído. Áreas e setores urbanos, SU, metodologia para levantamento de dados
antes vistos como “feios”, heterogêneos
históricos, morfológicos e socioeconômicos
e fragmentados, cuja proteção como
destinada ao aperfeiçoamento da gestão de
patrimônio, até então, teria sido impensável,
áreas protegidas, também pode ser registrada
passaram a ser tombados e valorizados como
como outro avanço ocorrido no período.
documentos fundamentais para a memória
Por fim, a regulamentação da instauração,
urbana e social.
instrução e tramitação dos processos de
A conservação dessa cidade-patrimônio
tombamento, por meio da Portaria n°
deixou então de ter essencialmente
11/1986, que, entre outras determinações,
objetivos estéticos e de composição de
instituiu a obrigatoriedade de notificação
cenários urbanos. A restauração, até então a
do tombamento de áreas urbanas a todos os
principal forma de intervenção nos edifícios
considerados inadequados para composição 9. Um bom exemplo nesse sentido foi a polêmica em torno da
desses cenários, tornou-se uma intervenção restauração do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, quando elemen-
tos da modernização arquitetônica do edifício foram eliminados
excepcional. Em seu lugar, defendia-se em favor do retorno à sua feição do período colonial.
proprietários de imóveis nela existentes, por de cidade-documento. Essa concepção,

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


meio de edital publicado no Diário Oficial entretanto, logo perdeu espaço para outra

A C I O N A L
da União e em jornais de circulação local. que se configurou já no começo dos anos
Com isso, perdeu-se definitivamente a ideia 1990, quando novos agentes públicos e
inicial de que o tombamento de cidades privados ganharam espaço na produção do

N
R T Í S T I C O
deveria corresponder ao tombamento de patrimônio urbano no Brasil.
um bem público (e não ao tombamento de
A E R A D A C I D A D E - AT R A Ç Ã O

A
um conjunto de imóveis individualizados,

E
privados ou não). Em contrapartida,

I S T Ó R I C O
ampliou-se a possibilidade de alguma A reestruturação e descentralização das
participação social nesses processos, mesmo atividades produtivas após a crise do sistema

H
que a prática de patrimonializar cidades sem capitalista nos anos 1970, a mundialização

A T R I M Ô N I O
a participação direta dos atores sociais tenha da economia, os avanços tecnológicos e
continuado a ser a norma. a crise do Estado de Bem-Estar Social

P
Os avanços acima registrados, de todo atingiram os países centrais e muitas de

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modo, repercutiram pouco em âmbito suas cidades a partir daquela década,

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Marcia Sant’Anna
nacional, já que, no período, as portarias tendo como consequências imediatas sua

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para a regulamentação de intervenções desestruturação econômica, o aumento do
ficaram restritas ao Rio de Janeiro e a desemprego, a precarização do trabalho,
aplicação do INBI-SU limitada à experiência o esvaziamento de setores urbanos e o
realizada na cidade de Tiradentes. Apesar abandono de equipamentos, como portos,
desses parcos resultados e do baixo impacto setores fabris e outros. Diante do novo
na transformação da prática, a década papel de planejamento e criação de novos
de 1980 foi importante pela crítica ao produtos assumido por várias cidades
147
caráter autoritário do tombamento e pelo dos países centrais, outras funções foram
hiato que proporcionou no processo de atribuídas a esses vazios urbanos, vinculadas
exploração econômica do patrimônio à cultura, ao turismo e ao lazer, bem como à
urbano. A insolvência e a crise financeira do produção imobiliária para estratos sociais de
Estado, que refrearam os investimentos do renda mais elevada. Experiências inaugurais
setor público naquela década, reforçaram, em cidades como Baltimore, nos Estados
em contrapartida, as alegações de que Unidos, produziram um entendimento desses
o tombamento esvaziaria o conteúdo projetos urbanos como a produção de locais
econômico da propriedade, impulsionando destinados a promover uma nova imagem
a criação de programas de incentivos fiscais à para as cidades e a atrair investimentos. Um
ação privada de preservação. Mas o período urbanismo de fundo pragmático, e atrelado
foi, sobretudo, conceitualmente muito à ideologia neoliberal, começou, assim, a ser
rico, pois uma concepção de patrimônio praticado nas cidades e a se apoderar do seu
urbano mais abrangente e socialmente patrimônio (Hall, 1995:407-428; Arantes,
mais inclusiva foi afirmada com a noção 2000:24).
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
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Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/
Experiências como a de Baltimore, intervenção, que começaram a ser praticados
Monica Zarattini.
alimentaram, nos anos 1980, um conjunto no país, de modo mais sistemático, nos
de outras em países europeus, entre as quais anos 1990, tendo como foco inicial áreas
148
as implementadas em Barcelona e Bilbao são centrais deterioradas ou esvaziadas de
as mais comentadas. Com elas, difundiu- grandes metrópoles. Esses novos projetos
se mundialmente o discurso do chamado urbanos impulsionaram a reafirmação da
“planejamento urbano estratégico”, no qual função econômica do patrimônio urbano e
a “requalificação”, a “regeneração” ou a sua redefinição como recurso estratégico da
“revitalização” de setores urbanos deteriorados competição entre cidades por um lugar de
ou esvaziados são definidas como intervenções destaque nas redes da economia globalizada.
fundamentais para a dinamização de Essas novas concepções foram absorvidas no
economias urbanas e aproveitamento cenário da preservação como um caminho
do patrimônio construído. Essa prática para a conservação autossustentável desse
desenvolvida nos países capitalistas centrais, patrimônio, promovendo a renovação dos
logo, foi exportada para os periféricos. vínculos estabelecidos com o turismo e o
As principais cidades brasileiras lazer urbano. A criação de um shopping a céu
não ficaram imunes a esses modelos de aberto na área do Pelourinho, em Salvador,
inaugurou esse tipo de intervenção no país, No desenvolvimento dessa nova

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


tornando-se, rapidamente, uma referência concepção, que correspondeu, em

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para várias outras cidades da região Nordeste. grande parte, a tentativas de realizar
O Rio de Janeiro, com ações de requalificação uma gentrificação à brasileira em centros
urbana no projeto Rio Cidade, juntamente históricos, o Estado desempenhou um papel

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com outras previstas no Projeto Porto do fundamental de promotor e financiador de
Rio; e São Paulo, com as Operações Urbanas intervenções que, contudo, não chegaram

A
Anhangabaú e Centro, enveredaram, com propriamente a alavancar os investimentos

E
suas próprias nuances e especificidades, pelo privados esperados. Elas se revelaram

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mesmo caminho. muito limitadas nesse sentido, devido ao
O Iphan, cuja situação de pauperização conjunto de fatores que distingue nossas

H
cidades daquelas dos países capitalistas

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institucional e financeira havia se agravado
ao longo dos anos 1990, foi, inicialmente, centrais. Um dos principais diz respeito
um espectador desses novos espetáculos à escassez do mercado consumidor, na

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urbanos. Foi também, por vezes, uma medida em que segmentos de renda mais

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pedra no caminho, ainda que sem força alta não têm interesse de viver e, raramente,

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Marcia Sant’Anna
para modificá-los. Os agentes públicos de consumir nas áreas centrais de grandes

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fundamentais desses processos foram cidades, tornado-as desinteressantes para
os governos estaduais e, sobretudo, as investimentos imobiliários ou comerciais.
prefeituras de grandes cidades, atuando Outro fator que contribui para lhes tirar
por meio de financiamentos concedidos força de atração é que as zonas centrais mais
por agências internacionais como o Banco antigas e consolidadas têm de competir com
Interamericano de Desenvolvimento – outras ainda em expansão e catalizadoras de
BID e o Banco Mundial. Essas agências investimentos. As intervenções que lograram
149
financeiras haviam, à época, redescoberto sair do papel – e o dito a seguir se verificou
o patrimônio dos países da América Latina principalmente no Nordeste – produziram,
como uma nova fronteira para investimentos no máximo, guetos turísticos insustentáveis,
públicos e privados10, passando a alimentar devido ao fluxo insuficiente de visitantes,
a formulação de programas nacionais além de desarticulados da dinâmica cotidiana
de preservação, entre os quais o mais das cidades. Tiveram também grande
importante, no Brasil, foi o Monumenta. importância, nesses malogrados processos de
Esse novo momento pode ser sintetizado na gentrificação, a inexistência de operadores
expressão “cidade-atração”. privados autônomos decididos a investir e
o alto custo das operações de reabilitação
10. Nos anos 1960 e 1970, essas agências internacionais de imobiliária no Brasil.
financiamento também atuaram na América Latina com projetos
de aproveitamento turístico do patrimônio urbano, na esteira do O fracasso desses projetos de
discurso das chamadas Normas de Quito, de 1967, documento transformação do perfil de uso e ocupação
resultante da Reunião sobre Conservação e Utilização de Monu-
mentos e Lugares de Interesse Histórico e Artístico, promovida popular do patrimônio de áreas urbanas
pelo Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos
Estados Americanos – OEA. centrais, nos anos 1990, abriu espaço, em
cidades como São Paulo, para o surgimento receberam o aval do Iphan. Com prazos de
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

e fortalecimento de movimentos sociais carência variáveis e adaptáveis a cada caso,


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que reivindicaram permanência e moradia essa linha de ação atrelava os pagamentos


nessas áreas e, ainda, para o surgimento desses empréstimos a um Fundo Municipal
de programas voltados para a produção de Preservação, cuja missão seria reinvestir
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habitacional destinada a essas faixas de os recursos assim arrecadados na conservação


renda . Essas iniciativas, contudo, esbarraram
11
do sítio urbano definido como área de
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na fragilidade e na inadequação da política intervenção do programa.


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e dos instrumentos de financiamento Embora essa ação tenha feito mais sentido
I S T Ó R I C O

habitacional no Brasil e em entraves e obtido melhores resultados em cidades de


diversos de natureza urbana, fundiária, médio e pequeno porte, provou ser muito
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tecnológica e política, o que prejudicou o seu significativa no sentido de uma utilização


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desenvolvimento e resultados, a despeito de econômica e socialmente sustentável do


focalizarem demandas reais. patrimônio das cidades, além de dinamizar
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No desenvolvimento da cidade- as economias locais e incentivar os habitantes


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patrimônio como cidade-atração, entretanto, a aproximarem-se da prática de preservação.


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Marcia Sant’Anna

é possível registrar algumas conquistas Com o fim do Programa Monumenta, o


positivas. A principal delas ocorreu no
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Iphan tentou ampliar essa ação para sítios


âmbito do Programa Monumenta – em urbanos protegidos por meio do PAC-
sua fase de 2006 a 2010, quando deixou de Cidades Históricas – PAC-CH, mas sem
ser um programa do Ministério da Cultura sucesso. Esse novo programa, lançado
e passou para a alçada do Iphan –, com o em 2009 com a ambição de aperfeiçoar
desenvolvimento, ainda que limitado, do seu os anteriores, superar suas fragilidades e
subcomponente denominado Financiamento ampliar suas conquistas, acabou tornando-
150
de Imóveis Privados. Tendo começado em se um programa de obras de restauração de
1999 como um programa que, de certa grandes monumentos e de requalificação
forma, atualizava a proposta do PCH de espaços públicos, o que diminuiu muito
em termos de execução descentralizada e sua capacidade de reversão de quadros de
aproveitamento turístico do patrimônio esvaziamento e deterioração de áreas situadas
urbano (Bonduki, 2010:28), o Monumenta em contextos urbanos mais complexos.
financiou, nessa fase final, obras de
conservação e adaptação de edificações DESDOBRAMENTOS
localizadas em cidades participantes do CONTEMPORÂNEOS
programa, executadas por seus proprietários
ou ocupantes, a partir de projetos que Os acontecimentos da última década
têm demonstrado a continuidade, no
11. São exemplos o Programa de Revitalização de Sítios Urbanos Brasil, dos processos de apropriação do
– PRSH, criado no ano 2000 pela Caixa Econômica Federal, o
Projeto da 7ª Etapa do Programa de Recuperação do Centro His- patrimônio urbano desenvolvidos nos anos
tórico de Salvador e componentes do Programa de Reabilitação
do Centro, da Prefeitura de São Paulo, de 2003. 1990, no sentido da consolidação da cidade-
patrimônio como um ativo econômico, absorção dos excedentes de capital, bem como

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


cuja paisagem histórica atua como um de incorporar à produção e, principalmente,

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diferencial competitivo para a exploração ao consumo, todo um contingente
imobiliária e, por vezes, puramente populacional marginalizado. A exploração
financeira. Impulsionada pela integração dos de mercados consumidores emergentes por

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mercados financeiros, a produção do espaço meio da ampliação do crédito, voltado,
urbano, primeiramente nos países centrais notadamente, para aquisição de imóveis e

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e, em seguida, nos periféricos, manteve-se, produção do espaço urbano, e a procura de

E
nas primeiras décadas do século XXI, como taxas adequadas de acumulação do capital

I S T Ó R I C O
uma das principais formas de absorção de por meio de investimentos financeiros têm
excedentes e de acumulação de capital, sido as saídas mais constantes para essa crise

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mediante a implementação de projetos do sistema. Como consequência, “bolhas” de

A T R I M Ô N I O
urbanos apoiados em sistemas de crédito capitais fictícios se formam constantemente
e abertos a investidores do mundo inteiro em diversos setores.

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(Harvey, 2011:143). Sistemas de crédito que, No que toca ao ambiente construído,

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como aponta Rolnik (2015:143-155), têm essa forma especulativa de acumulação busca

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Marcia Sant’Anna
como principal finalidade a remuneração lucrar com a expectativa de transformação,

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dos capitais investidos, transformando mesmo que ela venha ou não a se realizar.
os processos de reestruturação urbana – O espaço construído torna-se, assim,
inclusive os que envolvem o patrimônio – em um mero conjunto de ativos passíveis de
fronteiras abertas para o capital financeiro. exploração ou de títulos negociáveis no
Isso explica o surgimento dos mesmos mercado financeiro, sem vínculos necessários
produtos imobiliários em áreas centrais, zonas com demandas reais de produção de novas
de expansão e em vazios urbanos das mais estruturas. Harvey (2011:137-147) observa
151
distintas cidades do mundo. que esses procedimentos caracterizam,
Na última década, diversos autores contemporaneamente, um verdadeiro
têm apontado que a descentralização “fenômeno global de urbanização”, que
e a flexibilização do setor produtivo, a se expressa também como processo de
precarização do trabalho e a concentração gentrificação.
de centros de decisão e planejamento nos Nos anos 1980 e 1990, os projetos
países capitalistas centrais permaneceram urbanos dessa natureza mantinham um
caracterizando o sistema capitalista a partir vínculo importante com o ambiente urbano
da sua reestruturação nos anos 1970, mas preexistente, mas o que se verifica agora é
que outros aspectos emergiram nos últimos uma relativa perda de importância desse
anos e se tornaram também essenciais para aspecto e a adoção de outras características.
a compreensão de sua configuração atual Apesar de a paisagem urbana histórica
(Harvey, 2011; Piketty, 2014; Jappe, 2015). permanecer produzindo diferenciais
Entre eles, cabe ressaltar o esgotamento da competitivos, além de legitimando a
capacidade de crescimento econômico e de necessidade dessas intervenções, observa-se
uma importância crescente da criação de financeiros, legais e urbanísticos destinados
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

novos potenciais construtivos como um dos a concretizar os objetivos de reprodução


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principais elementos de atração. Na cidade e de acumulação do capital por meio de


do Rio de Janeiro, a Operação Urbana projetos urbanos que articulam patrimônio
Consorciada Porto Maravilha – OUCPM e produção imobiliária de alto padrão. Essas
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pode ser apontada como um referencial intervenções propiciam especular não só com
desses desdobramentos no momento atual, títulos, mas também com imóveis e terrenos,
A

na medida em que disponibiliza cerca de 4 que são comprados, muitas vezes, mediante
E

milhões de metros quadrados de potencial empréstimos subsidiados, cujos recursos


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construtivo novo, a ser comercializado por são aplicados em fundos de investimento


meio de cerca de 6,4 milhões de títulos heterodoxos que possibilitam embolsar
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mobiliários, os chamados Certificados um lucro extra. Essas operações ajudam a


A T R I M Ô N I O

de Potencial Adicional de Construção – compreender porque, em certas cidades como


Cepacs. Essa operação demonstra ainda Salvador, edificações e terrenos localizados
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a permanência da tendência, já verificada nos centros históricos são comprados para


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nos anos 1990, de aumento da importância não se fazer nada com eles e porque, no Rio
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Marcia Sant’Anna

dos poderes executivos municipais nessas e em São Paulo, por exemplo, potenciais
intervenções, mas também o crescimento do
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construtivos claramente exagerados são


papel formulador e executor do setor privado, postos à disposição do mercado, mesmo
mediante Parcerias Público-Privadas – PPPs sabendo-se que dificilmente serão utilizados.
e concessões urbanísticas que permitem O crescimento da importância do setor
aos executores explorarem comercialmente público como agente facilitador e viabilizador
serviços, estruturas e equipamentos dessas estratégias é, certamente, um traço
resultantes da intervenção. Os investidores atual importante, especialmente em razão
152
podem ainda especular com os títulos postos da transformação dos projetos dos anos
à disposição, embora até o momento, no caso 1990 em operações urbanas consorciadas,
da OUCPM, o grande investidor seja mesmo articuladas a concessões urbanísticas,
o FGTS – um fundo público –, que adquiriu onde essas especulações ocorrem de modo
todos os Cepacs, criados com vistas a institucionalizado.
viabilizar financeiramente a operação (Galiza, Em suma, na década atual, assiste-se ao
2015:102-103). Em suma, como nos anos surgimento de um novo modelo nacional
1990, os investimentos realmente privados de intervenção em áreas de valor cultural e
pouco se materializaram até o momento12. paisagístico, fundado em operações urbanas;
Os últimos anos se caracterizam, assim, no investimento público em obras de
pelo aperfeiçoamento dos instrumentos infraestrutura e grandes projetos âncoras
vinculados a usos culturais e comerciais;
12. Segundo o site da OUCPM, o valor inicial e unitário dos Ce- na implementação de planos e projetos
pacs, tal como adquiridos pelo FGTS, era de R$ 545,00, sendo
atualmente cotado em R$ 1.706,03. Contudo, o total de Cepacs formulados por empresas privadas e na
consumidos até momento corresponde a apenas 8,74% do total
disponível. Fonte: http://portomaravilha.com.br. concessão da exploração dos serviços urbanos
e equipamentos gerados à iniciativa privada do Centro Histórico de Salvador e o já

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


(Sant’anna, 2017). comentado Financiamento de Imóveis

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A concepção de patrimônio urbano que Privados, que apostaram na possibilidade de
sustentou a noção de cidade-atração nos uma utilização socialmente mais significativa
anos 1990, que privilegiava as fachadas, do patrimônio urbano. Contudo, na

N
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a cenografia urbana e desconsiderava os presente década, a instituição tem oscilado
demais elementos materiais e imateriais que entre uma posição de mero espectador ou

A
o compõem, teve continuidade nas décadas de colaborador secundário desses novos e

E
seguintes. Mas também esses aspectos têm grandiosos espetáculos urbanos, por meio da

I S T Ó R I C O
sofrido, agora, um certo rebaixamento e articulação de suas ações ao PAC-CH. Assim,
uma relativa perda de importância, em favor embora esteja longe de ser o único, um

H
da criação de uma paisagem urbana onde dos maiores desafios do Iphan, atualmente,

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arquiteturas caracterizadas pela ousadia é recuperar o seu lugar na condução das
formal ou pelo padrão internacional das políticas de preservação do patrimônio das

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torres corporativas ganham destaque e cidades, mantendo o tradicional papel de

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superam o patrimônio como elemento de defensor do interesse público a ele associado.

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Marcia Sant’Anna
atração e consumo visual.
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Mas, se nos anos 1990 os movimentos D E S A F I O S A E N F R E N TA R
sociais de resistência, de reivindicação de
participação e de afirmação do direito à cidade Uma instituição como o Iphan
eram mais ou menos restritos à capital paulista, dificilmente conseguirá atuar no sentido da
a realidade agora é outra. Em várias cidades, afirmação de uma noção ampla e de uma
e de formas diversas, esses movimentos têm apropriação democrática de patrimônio
mobilizado habitantes, denunciado ilegalidades urbano, na contemporaneidade, sem
153
e afrontas ao interesse público, inclusive articular a política de preservação a outras
por meio da judicialização dos processos políticas públicas das áreas de planejamento,
de transformação do ambiente construído, desenvolvimento urbano e social, produção
notadamente nas áreas centrais de valor habitacional, provisão de infraestrutura e
patrimonial. Assim, aqueles que são afetados transportes, educação, saúde e mesmo de
negativamente por essas intervenções não são acesso mais amplo à cultura. A carência
mais espectadores passivos, mas sim, cada vez de articulações sistemáticas e duradouras
mais, atores fundamentais das conjunturas nas nesse sentido tem sido um dos principais
quais essas novas atrações/explorações urbanas problemas para uma atuação mais consistente
buscam se enraizar. da instituição em prol do patrimônio
A partir de meados da década de 2000, urbano, desde suas atividades inaugurais
o Iphan, através do Programa Monumenta, nos anos 1930. Assim, a constituição, pela
buscou empreender ações, como o programa via legislativa, de um sistema nacional de
habitacional de interesse social iniciado preservação do patrimônio que envolva outras
na 7ª Etapa do Programa de Recuperação áreas e esferas de governo, além da sociedade,
constitui, portanto, um dos desafios mais mais forte entre os setores patrimonializados e
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

importantes dos próximos anos. o restante das cidades. Para isso, a formulação
A C I O N A L

No enfrentamento desse desafio, o e implementação de planos voltados para a


fortalecimento dos organismos estaduais e identificação e o tratamento dos problemas
municipais de preservação não poderá ser estruturais e processos urbanos que afetam
N
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deixado em segundo plano. Transformar os sítios históricos, assim como a ampliação


o Iphan em uma instituição capacitada a dos investimentos que já estão sendo feitos
A

coordenar um sistema de âmbito nacional pelo Iphan na dimensão normativa da


E

– no qual todos os membros estejam preservação do patrimônio urbano serão


I S T Ó R I C O

adequadamente aparelhados, atuem segundo igualmente necessários. Superar, por fim e


suas competências, compartilhem planos definitivamente, a velha e desgastada fórmula
H

e projetos e concorram para a preservação que agrega “patrimônio, turismo e lazer”


A T R I M Ô N I O

de um patrimônio que é de todos – será, constitui o desafio final.


certamente, uma ação fundamental. Mas que A despeito, contudo, dos altos e baixos,
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ainda dependerá da superação da ideologia dos problemas e carências que pontuam essa
D O

produzida nos anos 1970, que hierarquizou e trajetória e dos pesados desafios a enfrentar,
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fracionou o patrimônio cultural do Brasil em os oitenta anos de atuação do Iphan no


Marcia Sant’Anna

bens de valor nacional, estadual ou municipal. campo da preservação do patrimônio urbano


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No que toca mais especificamente apresentam um saldo altamente positivo. Se,


à cidade-patrimônio, a superação do hoje, grande parte desse patrimônio ainda
esteticismo e da visão histórica rasa da cidade- existe e está protegida, deve-se à instituição
monumento, bem como do pragmatismo e à sua ação pioneira e ininterrupta nesse
econômico-financeiro excludente da cidade- campo desde os anos 1930. Neste balanço,
atração, será igualmente necessária, em favor não é possível, assim, esquecer, nem deixar
154 de uma concepção mais próxima da noção de de lado, o quanto o Iphan foi importante na
cidade-documento e do que ela implica em garantia da permanência de centros históricos
termos de valorização das funções cognitivas, inteiros e paisagens urbanas valiosas,
memoriais, afetivas e sociais do patrimônio como a dos morros e florestas do Rio de
urbano. Para tanto, enfrentar e equacionar Janeiro, quando processos avassaladores de
dois outros desafios será também importante. verticalização e especulação urbana tomaram
O primeiro diz respeito a ampliar os canais as cidades brasileiras de assalto nos anos
de participação social nas operações de 1970. Se o tombamento se tornou, então, um
identificação, seleção, conservação e gestão instrumento sustentador de reivindicações
de cidades-patrimônio – inclusive levando- sociais vinculadas à qualidade de vida nas
se em conta as referências culturais das cidades, além de instrumento da política
populações que as habitam – e o segundo, a urbana, isso não se deveu à suas qualidades
investir seriamente no fortalecimento de usos intrínsecas, mas à ação firme do Iphan na
habitacionais e outros ligados à vida cotidiana defesa do interesse público ao longo de sua
nessas áreas, possibilitando-se uma integração trajetória.
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A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

156
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
Mar ia Cecília Londres Fonseca

A C I O N A L
A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

I PHAN : ANTECEDENTES , REALIZAÇÕES E DESAFIOS

N
NO

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Um dos maiores desafios que se selecionados passou da atribuição de valor
apresentam ao Instituto do Patrimônio “excepcional” – de acordo com o discurso
Histórico e Artístico Nacional - Iphan vigente nas primeiras décadas da instituição

P
desde sua criação, há oitenta anos, tem – à identificação de sua “relevância para

D O
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sido o de cumprir sua função institucional a memória, a identidade e a formação da
no que diz respeito a fundamentar, na sua sociedade brasileira” (art. 216 da CF de

R
atuação, a atribuição de caráter “nacional” 1988), considerada em sua diversidade –
ao patrimônio que vem sendo constituído conforme as concepções hegemônicas a
por meio de instrumentos a cada dia mais partir das últimas décadas do século XX, em
numerosos e diversificados – tombamento, que tem sido determinante a influência da
registro, inventário, chancela de paisagem antropologia e das ciências sociais. Essa nova
cultural, registro como sítio arqueológico etc. diretriz vem qualificar a trajetória do Iphan
É, portanto, com base nos critérios usados no sentido de acompanhar as transformações 157
para a atribuição de valores, tanto daqueles da sociedade brasileira, aproximando o
discriminados no Decreto-lei n 25, de 30
o
patrimônio titulado do modo como essa
de novembro de 1937 – histórico, artístico, sociedade se representa. Consequentemente
arqueológico, bibliográfico, etnográfico, – e também em decorrência do preceito
paisagístico –, quanto dos compatíveis constitucional de incluir a sociedade como
com a gama mais ampla e genérica de bens parceira do poder público na tarefa de
apresentada no artigo 216 da Constituição preservar o patrimônio (art. 216, par. 1º
Federal –CF de 1988, que o Iphan conquista da CF de 1988) –, na medida em que o
legitimidade junto aos outros entes do poder olhar da instituição se amplia, as leituras
público e à sociedade para preservar, por meio do território e de sua ocupação se fazem a
da aplicação dos institutos legais que definem partir de diferentes perspectivas e, sobretudo,
o escopo de sua atuação, os bens titulados. abrem-se espaços para acolher as múltiplas
Ao longo dos últimos oitenta anos, vozes das comunidades existentes nesta Bonecas Karajá
Acervo: Copedoc/Iphan/
a explicitação da importância dos bens imensa nação. Por esse motivo, os esforços Marcel Gautherot.
do Iphan têm contribuído, sobretudo nas – Sphan, a partir de sua criação, em 1937,
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

últimas décadas, para construir e divulgar, estruturou sua política visando proteger bens
A C I O N A L

junto a essa sociedade, “retratos do Brasil” móveis e imóveis de valor “excepcional”.


cujos elementos vão mapeando a rica e Foi esse olhar, portanto, que norteou o
multifacetada diversidade cultural do povo intenso e extremamente difícil trabalho de
N
R T Í S T I C O

brasileiro. identificação desses bens em todo o imenso


Neste artigo, vamos nos concentrar na território brasileiro, priorizando a proteção
A

abordagem dessa dimensão simbólica da daqueles ameaçados de descaracterização ou


E

missão do Iphan, analisando-a a partir dos desaparecimento, e concentrando-se, por


I S T Ó R I C O

passos dados pela instituição na formulação esse motivo, nas regiões em que a ocupação
e implementação de sua política pública em do colonizador deixou marcos reconhecidos,
H

seus oitenta anos de existência. Entretanto, tanto por serem testemunhos de “fatos
A T R I M Ô N I O

dada a proposta desta publicação e o fato de a memoráveis” de nossa história como por
história da instituição já ter sido apresentada serem considerados exemplares “autênticos”
P

em inúmeras obras, o fio condutor deste da criatividade artística brasileira. Esse


D O

texto será a construção da política federal processo de seleção tinha como bases uma
E V I S T A

para a salvaguarda do patrimônio cultural historiografia que privilegiava os marcos


R

imaterial (PCI). Nesse campo, de recente da conquista do território, assim como


M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

formulação, o Iphan foi um dos países as diferentes fases da organização política


pioneiros na comunidade internacional e da nação, e uma estética pautada em uma
constitui referência também para os estados determinada leitura dos estilos arquitetônicos
e municípios, bem como para iniciativas e artísticos.
da sociedade, elaborando conceitos, A equipe liderada por Rodrigo
instrumentos e práticas, num constante Melo Franco de Andrade, apoiada por
158
processo de produção e de avaliação, sempre um Conselho Consultivo composto
em parceria com os outros atores envolvidos. majoritariamente por arquitetos, historiadores
e artistas, contou também com uma rede de
COMO CHEGAMOS colaboradores nas diversas regiões do país,
O N D E E S TA M O S ? tais como Luís Saia (SP), Sílvio Vasconcelos
(MG), Airton Carvalho (PE), Godofredo
Um ponto de partida para a abordagem Filho (BA), que encontravam grandes
do tema pode ser a desconstrução das noções dificuldades, não só em termos operacionais
de “patrimônio” e de “valor nacional”, que como por atuarem em nome de uma política
são nucleares na formulação das políticas considerada “elitista” e que vinha de encontro
públicas de patrimônio nos diversos países. aos interesses “desenvolvimentistas” então
Com base em experiências europeias já vigentes, especialmente nos meios urbanos.
consolidadas – algumas desde o século Embora figuras como Mário de Andrade
XIX, como a francesa – o então Serviço do já propusessem, nos anos 1930, uma visão
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional mais abrangente do que seria o patrimônio
brasileiro, a imagem do Brasil moldada a elaborado em 1936 por Mário de Andrade

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
partir dos Livros do Tombo nas primeiras a pedido do então ministro da Educação e

A C I O N A L
décadas do Sphan só passou a ser questionada Saúde, Gustavo Capanema, que a atuação
devido aos seus limites materiais e sobretudo do Iphan passou a ser questionada nos anos
simbólicos, a partir das últimas décadas do 1970-1980. Esse movimento teve grande

N
R T Í S T I C O
século XX. E isso na medida em que se expressão no Centro Nacional de Referência
constatavam lacunas quanto a testemunhos Cultural – CNRC, criado em 1975 sob a

A
fundamentais de nossa história, entendida direção do designer Aloisio Magalhães –, e

E
numa perspectiva mais ampla – ou seja, da integrado à Fundação Nacional Pró-Memória,

I S T Ó R I C O
presença dos indígenas, habitantes destas no âmbito do então Ministério de Educação
terras desde tempos imemoriais; das inúmeras e Cultura – MEC, em 1979. O objetivo do

H
revoltas contra o poder constituído desde CNRC era o desenvolvimento de experiências

A T R I M Ô N I O
a Colônia; das marcas do longo período da voltadas para o conhecimento e apoio das
escravidão; dos movimentos rumo à ocupação mais diversas manifestações culturais, com

P
do interior do país, etc. Do mesmo modo, especial atenção ao chamado “patrimônio não

D O
não havia meios legais para a inscrição, consagrado”, bem como para ações visando à

E V I S T A
nos Livros do Tombo, das memórias e das inclusão das comunidades envolvidas como

R
tradições de vários grupos étnicos e culturais parceiras.

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
que vivem no Brasil, como os grupos A opção pelo foco na noção de “referência
indígenas, os afrodescendentes, as populações cultural” abriu espaço e orientou projetos
rurais etc. Essas últimas manifestações são, inovadores no campo do patrimônio, que,
em sua grande maioria, produções coletivas inclusive, puderam recorrer aos recursos
de transmissão oral – fugindo, portanto, do das incipientes tecnologias da informação.
caráter de “bens móveis e imóveis”, passíveis Essas experiências foram importantes para a
159
de tombamento. Mas eram objeto de atenção elaboração dos capítulos relativos à cultura
dos folcloristas, que, num movimento na Constituição Federal de 1988, que, por
paralelo à política do órgão federal que sua vez, forneceram as bases jurídicas para a
tinha como atribuição legal a proteção formulação da política federal de patrimônio
do patrimônio nacional, pesquisavam, imaterial, iniciada no ano 2000. Delas resultou
documentavam e recolhiam peças, reunindo também, nesse período, a elaboração, pelo
importantes acervos das culturas populares. Iphan, da metodologia do Inventário Nacional
Esse trabalho foi, em nível nacional, assumido de Referências Culturais – INRC, instrumento
pela Comissão Nacional do Folclore, criada amplamente utilizado para a identificação de
em 1947 e, a partir de 1958, pela Campanha bens culturais a serem preservados com base na
de Defesa do Folclore Brasileiro – CDFB, no percepção e nos valores que lhes são atribuídos
âmbito do Ministério da Educação e Cultura. por seus detentores.
Foi, portanto, a partir de uma releitura Além disso, o processo de
do anteprojeto para a criação de um Serviço redemocratização em curso desde o início
do Patrimônio Artístico Nacional – Span, dos anos 1980, mobilizando a sociedade
civil para a reivindicação de direitos, trouxe identificar, promover, proteger e fomentar”
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

para o Iphan – que, em 1985, foi integrado esse patrimônio.


A C I O N A L

ao recém-criado Ministério da Cultura – O trabalho que se seguiu resultou na


MinC com a denominação de Secretaria do edição, em 4 de agosto de 2000, do Decreto
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – no 3.551, que
N
R T Í S T I C O

Sphan – demandas que punham em questão


(...) institui o registro de bens culturais de
a representatividade nacional do “patrimônio
natureza imaterial que constituem patrimônio
A

consagrado” pelo poder público, tanto em cultural brasileiro, cria o programa nacional do
E

função dos limites legais do instituto do


I S T Ó R I C O

patrimônio imaterial e dá outras providencias.


tombamento, como de alguns critérios
vigentes para constituir esse acervo, como já Foram criados quatro livros de registro:
H

mencionado. Livro dos Saberes, Livro das Celebrações,


A T R I M Ô N I O

A Constituição Federal de 1988, Livro das Formas de Expressão, Livro dos


em seus artigos 215 e 216, incorporou Lugares (ver MEC/Iphan, 2000).
P

também em relação à cultura o princípio da Nesse decreto estão discriminadas as


D O

cidadania plena, ampliando e diversificando principais diferenças, no processo do registro,


E V I S T A

a conceituação do agora denominado em relação às condições aplicadas ao processo


de tombamento de bens materiais, conforme
R

“patrimônio cultural brasileiro” e instituindo


M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

a sociedade como parceira do Estado na o que está especificado no Decreto-lei no


responsabilidade e na tarefa pela preservação 25/1937: a) o pedido deve ter natureza
desse patrimônio. Em consequência, os coletiva; b) a instrução do processo é
preceitos constitucionais, ao garantirem descentralizada, não sendo, portanto, tarefa
explicitamente, no artigo 215, a valorização exclusiva do Iphan; c) o título é outorgado em
das culturas já mencionadas, e ampliarem, caráter transitório, devendo o bem objeto do
160
no artigo 216, além dos tipos de bens, os registro ser reavaliado a cada dez anos. A esses
instrumentos de preservação, trouxeram requisitos foram acrescentados, por inspiração
desafios aos órgãos públicos que tinham essa de programa da Unesco – Proclamação das
missão e, particularmente, ao novamente Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial
denominado Iphan. da Humanidade, criado em 1999 –, a
Esse foi um dos motivos para que a exigência de anuência prévia dos detentores
comemoração dos sessenta anos do Iphan, relativamente à titulação e a apresentação
em 1997, fosse marcada pela realização, de um plano de salvaguarda adequado à
em Fortaleza, do Seminário Internacional especificidade do bem, a ser elaborado
Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas com a participação de seus detentores. Já
de Proteção, cujas recomendações indicaram o critério de evidência de continuidade
ao ministro da Cultura a necessidade de histórica do bem cultural permanece comum
serem tomadas providências no sentido aos processos de tombamento e de registro
da “elaboração de diretrizes e a criação de a serem avaliados. No âmbito do Iphan,
instrumentos legais e administrativos visando foram criados, em 2004, o Departamento do
Patrimônio Imaterial – DPI, que incorporou A experiência do Iphan, e particular-

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
o Centro Nacional de Folclore e Cultura mente a do DPI, com a salvaguarda

A C I O N A L
Popular – CNFCP, e, junto ao Conselho dos conhecimentos tradicionais de bens
Consultivo, em 2010, a Câmara Setorial do registrados no Livro dos Saberes tem
Patrimônio Imaterial. habilitado a participação da instituição,

N
R T Í S T I C O
No curso dos dezessete anos da edição do representando o Ministério da Cultura, no
Decreto n 3.551/2000, a política do Iphan
o
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético

A
voltada para a salvaguarda do patrimônio – CGEN, no âmbito do Ministério do

E
imaterial foi se ampliando em várias direções, Meio Ambiente. Esse tipo de atuação está

I S T Ó R I C O
em função das demandas que o tema necessariamente relacionado à articulação
suscita e também dos processos de avaliação com outras áreas da administração pública,

H
realizados pelo próprio DPI, evidenciando e, não apenas a ambiental como as da

A T R I M Ô N I O
consequentemente, intensificando a relação agropecuária, do desenvolvimento, da justiça,
desse campo com os de outras políticas entre outras. No CGEN o representante do

P
públicas. MinC tem participado ativamente da Câmara

D O
Por exemplo, a partir do pedido de Temática de Conhecimento Tradicional

E V I S T A
registro de uma língua falada por imigrantes Associado. Em 2011 o Iphan foi credenciado

R
italianos do sul do país – o talian, que a participar também dos processos de

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
adquiriu aqui feição própria, diferenciando- autorização de pesquisa científica com foco
se do dialeto vêneto que lhe deu origem –, a em conhecimentos tradicionais associados
questão da diversidade linguística mereceu a recursos genéticos, uma vez que estava
um trabalho interinstitucional que levou à previsto no MP 2.186-16, de 2001, que criou
edição, em 2010, do Decreto da Presidência o CGEN, que esses conhecimentos “integram
da República n 7.387, de 9 de dezembro de
o
o patrimônio cultural brasileiro”, conforme
161
2010, que instituiu o Inventário Nacional especificado na Lei no 13.123/2015,
da Diversidade Linguística – INDL, conhecida como Lei da Biodiversidade.
instrumento julgado o mais apropriado para Embora não seja atribuição direta do
a documentação e valorização das diversas Iphan atuar na penalização da biopirataria,
línguas existentes no Brasil, desde as inúmeras ou da destruição do meio ambiente onde
línguas indígenas (a maioria ágrafas) até a vivem as comunidades que desenvolvem,
Língua Brasileira de Sinais – Libras. Essa perpetuam e utilizam os conhecimentos,
linha de atuação, sob a gestão do MinC, em geral essenciais à sua sobrevivência
envolve vários outros ministérios e tem e à sua identidade, é, sim, missão do
a participação fundamental do Instituto Iphan conscientizar esses grupos para a
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, importância cultural desses conhecimentos
que, desde então, vem reunindo informações e dar apoio em busca dos meios necessários
censitárias essenciais para as políticas voltadas à defesa de seus direitos, basicamente
para essa questão, em particular aquelas por meio da elaboração e participação no
relativas aos grupos indígenas. desenvolvimento de planos de salvaguarda.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

162
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

Acervo: Iphan.
São Benedito, PA
Mastro de
Um bom exemplo dessa situação é a elaboração da que veio a ser a Convenção

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural

A C I O N A L
do Rio Negro-AM, bem registrado em Imaterial, aprovada em 2003, uma vez
2010 no Livro dos Saberes. Trata-se de um que era um dos poucos países que já
conjunto articulado de conhecimentos, dispunham então de instrumento legal

N
R T Í S T I C O
práticas, sentidos e valores em torno do voltado para essa finalidade, assim como de
cultivo, processamento e utilização de conhecimentos e experiências nesse campo

A
diferentes espécies de mandioca, muitas desenvolvidos em anos anteriores. Além de

E
delas desenvolvidas pela comunidade participar das reuniões intergovernamentais

I S T Ó R I C O
no exercício dessa atividade e a partir de para a elaboração do texto da Convenção
trocas codificadas entre os detentores. A (2002-2003), o Brasil integrou o Comitê

H
configuração desse bem registrado e o Intergovernamental por ela criado (2006-

A T R I M Ô N I O
processo de sua salvaguarda comprovam 2008; 2013-2016) e tem prestado assistência
observação de Barbara Kirshenblatt- internacional sempre que solicitado. O

P
Gimblett (2004, p. 53): Congresso Nacional do Brasil ratificou

D O
a Convenção em 2006, o que a converte

E V I S T A
(...) enquanto, à semelhança do patrimônio
em lei a ser respeitada no território
tangível, o patrimônio imaterial é cultura, à

R
brasileiro (Decreto Legislativo no 22/2006,
semelhança do patrimônio natural, é vivo (...).

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
promulgado pelo Decreto no 5.753/2006).
Requer, portanto, instrumentos de Em nível regional, o Brasil é um dos
preservação mais flexíveis e, sobretudo, membros fundadores do Centro Regional
participativos. para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
No nível internacional, e no campo da América Latina – Crespial e participa
específico do que veio a ser denominado da Comissão de Patrimônio Cultural do
163
patrimônio cultural imaterial, o Brasil Mercosul.
já vinha acompanhando os trabalhos, na Até o final de 2016 foram inscritos
Unesco, de questionamento dos limites nos Livros de Registro do Iphan quarenta
do alcance da Convenção do Patrimônio bens. Nas Listas criadas pela Convenção
Mundial, de 1972, particularmente em da Unesco de 2003, foram inscritos cinco
relação ao reconhecimento e à preservação bens na Lista Representativa do Patrimônio
de culturas autóctones e populares, tais Cultural Imaterial da Humanidade; um
como os conhecimentos tradicionais e as bem na Lista do Patrimônio Cultural
manifestações folclóricas. Esses trabalhos Imaterial que Requer Medidas Urgentes
resultaram na aprovação, em 1989, da de Salvaguarda; e dois bens na Lista de
Recomendação sobre a Salvaguarda da Programas, Projetos e Atividades que
Cultura Tradicional e Popular (Blake, melhor refletem os princípios e objetivos da
2001). No início de 2002, o Brasil sediou, Convenção.
no Rio de Janeiro, uma das reuniões
da Unesco preparatórias ao processo de
QUAIS parte, ao caráter necessariamente participativo
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

A S C O N Q U I S TA S
ALCANÇADAS E QUAIS OS da prática de preservação do patrimônio
A C I O N A L

D E S A F I O S PA R A O F U T U R O ? cultural imaterial, têm influenciado também


as ações de proteção de bens culturais móveis
e imóveis e contribuído para um maior
N

A análise da experiência acumulada nesses


R T Í S T I C O

dezesseis anos nos permite fazer algumas envolvimento da sociedade nessa missão.
considerações sobre os resultados alcançados, Exemplo esclarecedor nesse sentido é
A

até o momento, por essa política pública o tratamento que vem sendo dado pelo
E

Iphan – juntamente com outras instituições


I S T Ó R I C O

federal e delinear alguns dos desafios que


se apresentam, não apenas ao Iphan, mas a públicas e privadas e com a sociedade –
todos os envolvidos com a salvaguarda do aos vestígios e, sobretudo, à memória da
H

escravidão, particularmente na cidade do Rio


A T R I M Ô N I O

patrimônio cultural imaterial.


A formulação de uma política pública de Janeiro. Como sabemos, a documentação
voltada especificamente para a proteção relativa a esse assunto foi em grande parte
P

desse patrimônio revelou-se uma estratégia destruída – ato cuja motivação tem sido
D O

oportuna, naquele momento, no sentido de objeto de controvérsias – e os vestígios


E V I S T A

abrir caminhos para a inclusão, no acervo materiais são igualmente escassos e pouco
R

do patrimônio cultural instituído pelo representativos. No Rio de Janeiro, cuja


M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

Iphan, de bens fundamentais no processo região portuária recebeu o maior fluxo


de formação da nação brasileira, o que de africanos escravizados nas Américas,
viabilizou o reconhecimento de manifestações sobretudo desde as últimas décadas do
culturais de grupos como os já citados, até século XVIII até a proibição do tráfico, em
então menos favorecidos pelas políticas de 1850, praticamente não restavam vestígios
patrimônio. Algumas dessas manifestações materiais do Cais do Valongo – e do Cais
164
chegaram, inclusive, a ser objeto de da Imperatriz, que o sucedeu –, encobertos
perseguição policial até meados do século em diferentes momentos. O mesmo ocorreu
XX, como rituais de religiões afro-brasileiras com o Cemitérios dos Pretos Novos, próximo
e indígenas (candomblé, umbanda, culto ao Cais do Valongo, de cuja localização
à jurema etc). Outras, embora aceitas e exata não se tinha informação segura. Esse
abertamente praticadas, eram reconhecidas cemitério, na verdade uma área de descarte
apenas enquanto “folclóricas”, de caráter dos africanos escravizados que chegavam
popular, carecendo, do ponto de vista mortos ou ainda moribundos ao porto
vigente na política federal de patrimônio do Rio de Janeiro, foi usado entre 1779 e
histórico e artístico, de requisitos para serem 1830 e abandonado quando da proibição
reconhecidas pelo poder público como do tráfico de escravos. O Cais do Valongo
patrimônio da nação brasileira. foi posteriormente encoberto pelo Cais da
Além do avanço do ponto de vista Imperatriz, em 1843, que, por sua vez, foi
conceitual, do ponto de vista operacional os aterrado na reforma urbanística da gestão do
resultados alcançados, devido, em grande prefeito Pereira Passos, no início do século
XX. A exata localização do cemitério ficou procurou-se trazer à tona os testemunhos

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
indefinida, pois se sabia apenas que era materiais de um momento da história do

A C I O N A L
próxima ao Cais do Valongo. Brasil amplamente referido em memórias,
Ora, em 1996, os proprietários de obras de arte – particularmente na iconografia
residência na região encontraram, no material produzida por viajantes estrangeiros, como

N
R T Í S T I C O
retirado do solo em obras de reforma, Debret – e, claro, na historiografia, mas que,
restos de corpos humanos identificados por salvo nos tombamentos do Terreiro da Casa

A
arqueólogos como vestígios de negros vindos Branca (BA) e da Serra da Barriga (AL),

E
da África que ali haviam sido enterrados. ocorridos nos anos 1980, não tinha presença

I S T Ó R I C O
Visando à preservação e exposição de material marcante nos Livros do Tombo.
encontrado na região, tão importante para a Sem dúvida, a menção específica à pro-

H
memória das comunidades afro-brasileiras, o teção do direito à propriedade da terra aos

A T R I M Ô N I O
casal de proprietários criou, em 13 de maio quilombolas como obrigação do Estado no
de 2005, o Instituto de Pesquisa e Memória artigo 68 da Constituição Federal de 1988

P
Pretos Novos – IPN, organização privada constituiu um expressivo avanço no reconheci-

D O
sem fins lucrativos, e instalou na casa o mento do direito à memória das comunidades

E V I S T A
Memorial dos Pretos Novos, local de visitação afrodescendentes do Brasil . Mas, no caso da

R
de estudantes e turistas. Essas iniciativas cidade do Rio de Janeiro, a presença africana

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
integram o sítio arqueológico do Cais do só passou efetivamente a integrar o patrimônio
Valongo, sob proteção do Iphan desde 2012, reconhecido pelo Iphan com o registro em
e que, por sua importância para a história da 2005, no Livro das Formas de Expressão, do
humanidade, é candidato a inscrição na Lista Jongo, em quatro estados brasileiros (SP, RJ,
do Patrimônio Mundial da Unesco. ES e MG), e também, em 2007, das Matrizes
Esse caso merece destaque neste texto do Samba Carioca – manifestação que teve
165
por evidenciar a importância de uma origem na mesma região do Rio de Janeiro,
concepção integrada de patrimônio cultural, então denominada Pequena África, para onde
pois consideramos que a distinção entre haviam sido trazidos anteriormente milhares
“material” e “imaterial” funcionou como uma de africanos escravizados. Outra referência
estratégia oportuna para viabilizar a inclusão, importante da presença afro-brasileira na re-
no repertório de bens protegidos pelo poder gião é o prédio das antigas Docas D. Pedro II,
público, de manifestações culturais como, no projeto do engenheiro afrodescendente André
caso do Brasil, o riquíssimo e diversificado Rebouças, tombado pelo Iphan em 2016.
legado das culturas afrodescendentes já Atualmente, portanto, a tendência no
incorporadas pelos historiadores e cientistas Iphan é de abordar, da forma mais abrangente
sociais como signos de uma identidade e integrada possível, os bens apresentados para
brasileira. Ora, no caso apresentado, a serem reconhecidos como patrimônio cultural
importância dessa iniciativa se dá no sentido do Brasil, identificando-os em suas múltiplas
contrário ao do movimento que levou à dimensões e aplicando os instrumentos de
edição do Decreto no 3.551/2000, ou seja, proteção adequados.
Quanto aos desafios que se apresentam o seu registro e que são constitutivos
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

à política de salvaguarda do patrimônio da identidade daquela comunidade.


A C I O N A L

cultural imaterial do Iphan, destacamos aqui Entretanto, diferentemente da reação a


os que nos parecem, no momento, os mais danos causados nos bens tombados, no
significativos: caso dos bens registrados não se trata de
N
R T Í S T I C O

1) Um aspecto de complexa abordagem necessariamente aplicar uma lei e punir


é a definição do bem a ser registrado, pois os que descaracterizaram o bem – mesmo
A

é preciso não esquecer que as propostas porque a identificação desses efeitos danosos
E

não são mero reflexo de uma realidade, é de difícil aferição –, mas de, sempre
I S T Ó R I C O

mas construções feitas a partir de leituras respeitando o protagonismo de produtores


e recortes com base nos contextos em que e detentores, apoiá-los na complexa tarefa
H

ocorrem as manifestações em questão. É da salvaguarda do bem. Cabe ao poder


A T R I M Ô N I O

possível que as propostas encaminhadas para público, e particularmente ao Iphan, auxiliá-


deliberação do Conselho Consultivo do los na mobilização dos recursos legais e
P

Patrimônio Cultural – que são fruto de um administrativos que possam contribuir para
D O

longo processo de coleta de informações e viabilizar a continuidade do bem, atendendo


E V I S T A

de análise – não coincidam exatamente com aos interesses dos detentores, com base no
R

o entendimento que alguns produtores e respeito aos seus direitos e na busca de formas
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

detentores têm de seus bens culturais. Por esse de reparação de danos a seu patrimônio.
motivo, é tão importante a participação de 3) Como foi dito antes, um decreto
todos os atores sociais envolvidos ao longo do como o que criou o registro não gera
processo, assim como o estabelecimento de nem normatiza o exercício de direitos
formas de permanente diálogo. e deveres específicos, mas, de acordo
2) Sem dúvida a concessão do título com interpretações recentes do texto
166
de Patrimônio Cultural do Brasil, em constitucional (Queiroz, 2016), seus
decorrência do registro, terá impactos na efeitos estão relacionados ao exercício dos
dinâmica do bem em questão. Se, por direitos culturais especificados no artigo
um lado, o reconhecimento, o apoio e a 215 da Constituição Federal de 1988, entre
divulgação de uma manifestação cultural eles o direito à memória, a que devem
podem trazer benefícios de toda ordem para ter acesso todos os cidadãos brasileiros. É
os detentores e as localidades onde ocorre, fato que algumas manifestações culturais
por outro lado deve haver atenção para que poderiam ser entendidas como
eventuais efeitos danosos de intervenções bens de caráter imaterial já dispõem de
externas, sobretudo no caso de comunidades instrumentos normatizados de proteção
tradicionais. A predominância do interesse legal, como as leis de direito autoral e de
pelo potencial do bem enquanto espetáculo, propriedade intelectual. Mas outras, como
por exemplo, assim como a ênfase em ações os conhecimentos tradicionais citados antes,
visando gerar lucros financeiros, pode vir em geral de caráter coletivo e de transmissão
a se sobrepor aos valores que justificaram oral entre as gerações, não apresentam
os requisitos para a aplicabilidade dos Wajãpi (AM), bem registrado em 2002 Cuias
Acervo: Iphan/
Francisco Costa.
instrumentos legais mencionados , embora e inscrito na Lista Representativa do 167
sejam muito vulneráveis à apropriação Patrimônio Imaterial da Unesco (Brayner,
indébita por parte de terceiros. Por esse 2012; Jaenisch, 2010; Queiroz, 2016 ).
motivo, a farta documentação produzida Assim, o DPI vem se dedicando a estruturar,
nos inventários e na instrução dos processos junto ao meio jurídico, formas de atuar em
de registro é fundamental para comprovar a defesa dos chamados direitos difusos desses
propriedade coletiva desses bens e assegurar grupos sociais.
a reparação de danos eventualmente 4) A noção de patrimônio cultural
causados por terceiros, assim como a justa imaterial enquanto objeto de política pública
repartição dos benefícios, de todo tipo, tem sido apropriada das mais diversas
gerados por seu uso. Um exemplo de maneiras, em parte devido à ambiguidade
iniciativa bem-sucedida nesse sentido foi que ainda cerca esse termo, de recente
a reação à tentativa de uso comercial, não incorporação às políticas culturais em todo
autorizado pelos detentores, dos padrões o mundo, mas também por sua capacidade
gráficos da Arte Kusiwa, da etnia indígena de mobilizar os mais diversos grupos sociais.
Ora, conforme estabelecido na Convenção exige um trabalho complexo de conceituação e
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

da Unesco de 2003, a principal justificativa de busca das formas adequadas de preservação.


A C I O N A L

para o investimento nesse campo do No caso da salvaguarda, não se trata apenas


patrimônio cultural é a preocupação com a de produzir documentação que assegure a
“salvaguarda” (termo utilizado no título dessa memória dessas manifestações, mas também
N
R T Í S T I C O

Convenção de 2003) de tais bens, sobretudo de contribuir para a manutenção de condições


quando reconhecidos pelo poder público. favoráveis à continuidade do bem registrado.
A

No caso do Brasil, está fundamentada no E, se no caso dos bens móveis e imóveis, a


E

parágrafo 1º do art. 216 da Constituição existência de um aparato legal é imprescindível


I S T Ó R I C O

Federal de 1988. Nesse sentido, alguns à atuação do poder público visando à sua
critérios, além dos já citados anteriormente, proteção, no caso do PCI são, sem dúvida,
H

deveriam ser respeitados em qualquer a vontade, a competência e o empenho


A T R I M Ô N I O

processo de titulação de bens culturais de dos atores envolvidos – com o necessário


natureza imaterial: a) a produção prévia de protagonismo dos produtores e detentores –
P

conhecimento que comprove, entre outros os fatores decisivos para a continuidade desse
D O

aspectos, a continuidade histórica do bem; tipo de patrimônio. Nesse sentido, um dos


E V I S T A

b) o encaminhamento participativo do objetivos mais importantes dos planos de


processo de reconhecimento, que legitima a salvaguarda é o de dar apoio à organização dos
R

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

iniciativa junto à sociedade; c) condições que detentores, de modo a constituir interlocutores


assegurem o compromisso do poder público que sejam considerados seus legítimos
no sentido de assumir, em parceria com as representantes pelas comunidades envolvidas.
comunidades envolvidas, a responsabilidade No caso da já citada Arte Kusiwa dos Wajãpi,
pela salvaguarda do bem. Entretanto, o cujo título de Patrimônio Cultural do Brasil
aspecto mais visível dessa política, no Brasil, foi revalidado na 85ª reunião do Conselho
168 tem sido a concessão de um título, o que Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada
é evidenciado em iniciativas de caráter em Brasília no dia 27 de abril de 2017, a
meramente declaratório, seja em nível federal, organização dos grupos Wajãpi em uma
estadual ou municipal – sobretudo por parte associação, a Apina, ainda antes do Registro,
do poder legislativo – e, em consequência, e a conscientização e qualificação das gerações
com repercussão predominantemente mais jovens quanto ao valor de seu patrimônio
política, sem maiores compromissos com e a importância de seu engajamento na
a salvaguarda do bem, o que induz a uma salvaguarda foram fundamentais para os
percepção equivocada dos objetivos dessa resultados alcançados nos mais de dez anos do
política pública, contribuindo para sua processo de salvaguarda, viabilizando assim a
banalização. revalidação do título. A etapa da salvaguarda,
5) A contribuição da antropologia, como no entanto, não é de fácil execução, uma vez
observa Chiara Bortolotto (2011:22), tem sido que implica em compatibilizar constantemente
fundamental na elaboração das noções relativas contextos culturais, visões de mundo e,
ao campo do PCI, que, por sua especificidade, frequentemente, interesses distintos. Por
esse motivo, torna-se difícil fixar normas REFERÊNCIAS

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
ou padrões de atuação, pois cada caso exige
BLAKE, Janet. Elaboration d’un nouvel instrument

A C I O N A L
a elaboração de propostas diferenciadas,
normatif pour la sauvegarde du patrimoine culturel
construídas em constante processo de diálogo, immatériel: eléments de réflexion. Paris: Unesco, 2001.
e permanentemente avaliadas quanto a seus

N
BORTOLOTTO, Chiara. “Le trouble du patrimoine

R T Í S T I C O
resultados (Sant’Anna, 2016). culturel immatériel”. In: ______ (org.). Le patrimoine
culturel immatériel: enjeux d’une nouvelle catégorie.
6) Finalmente, está cada vez mais Paris: Editions de la Maison des Sciences de l’Homme,

A
evidente que todos os desafios mencionados 2011. P. 22

E
exigem, tanto na proteção do patrimônio BRAYNER, Natália Guerra. Direitos culturais, afirmação

I S T Ó R I C O
identitária e patrimonialização: a salvaguarda das
material como na salvaguarda do imaterial,
expressões orais e gráficas dos Wajãpi. In: Colóquio
além da participação das comunidades e das Internacional La Transmisión de la Tradición para la

H
organizações da sociedade civil, articulação Salvaguardia y Conservación del Patrimonio Cultural,

A T R I M Ô N I O
2012, Campeche, México.
do Iphan com instituições públicas cujas
JAENISCH, Damiana Bregalda. Arte Kusiwa: pintura
políticas tenham interfaces com sua atuação corporal e arte gráfica wajãpi. Etnografia da Salvaguarda

P
e seus objetivos. Sem dúvida, trata-se de uma de um bem registrado como patrimônio cultural do

D O
Brasil. Brasília: Iphan, 2010.
tarefa difícil, inclusive em função de eventuais

E V I S T A
KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Intangible
instabilidades institucionais e interferência de
heritage as metacultural production. Museum
motivações sobretudo políticas, mas cabe ao

R
International, nº 221/222, Paris, Unesco, p. 53,

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
Iphan, em parceria com os atores envolvidos mai.2004.

nessa missão, administrar essas várias MEC/IPHAN. O registro do patrimônio imaterial: dossiê
final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
intercorrências, tendo sempre como objetivo do Patrimônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura/
o cumprimento de seus deveres institucionais Iphan, 2000.
junto à sociedade. QUEIROZ, Hermano Fabrício de Oliveira Guanais e. O
registro de bens culturais imateriais como instrumento
Concluindo, esses desafios, se não
constitucional garantidor de direitos
enfrentados em conformidade com as diretrizes 169
culturais. Salvador: Diretoria de
nacionais e internacionais dessa política Cultura/Ipac; Brasília:Iphan,
2016.
pública, podem se constituir em riscos, seja
SANT’ANNA, Márcia. A
devido às dificuldades na implementação noção de sustentabilidade
dessas diretrizes, seja por práticas que podem no âmbito da política
de salvaguarda do
levar à banalização dessa noção tão relevante
patrimônio cultural
para a identificação e valorização de nossa imaterial do Brasil.
riquíssima diversidade cultural, sempre no Aurora 463 – Revista
da Semana do
sentido de tornar cada vez mais nacional nosso
Patrimônio Cultural de
patrimônio. Por outro lado, é inegável que Pernambuco, nº 1, v. 1,
os esforços para desenvolver e divulgar essa Recife, Fundarpe, 2016.

política têm contribuído para desconstruir


preconceitos, promover a cidadania e incluir
todos os brasileiros na tarefa de preservar nosso
patrimônio.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

170
Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Rober to Stanchi

A C I O N A L
O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO :

N
OITENTA ANOS DE DELEGAÇÕES

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Dos primeiros tombamentos de bens no Brasil, sobretudo aqueles que aspiravam
arqueológicos no Brasil – como a Coleção se tornar textos oficiais, para além da cen-
Balbino de Freitas do Museu Nacional ou a tralidade das discussões ligadas aos aspectos

P
Coleção Arqueológica e Etnográfica do Museu arquitetônicos, minimizaram, quando não

D O
E V I S T A
Emílio Goeldi – à inclusão do Sítio do Cais ignoraram completamente, a existência de
do Valongo na Lista do Patrimônio Mundial, instituições pioneiras que antecederam o pró-

R
oitenta anos de uma prática institucional vol- prio Iphan e que já desenvolviam ações rela-
tada para a preservação do patrimônio arqueo- cionadas ao patrimônio e a sua preservação.
lógico foi consolidada. Revisitar o modo como O discurso fundacional “oficial” presente na
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico literatura especializada aparece quase sempre
Nacional, o Iphan, ao longo de tantos anos alicerçado no episódio em que Gustavo Capa-
considerou e tratou a arqueologia, e se relacio- nema, então ministro da Educação e Saúde,
nou com os arqueólogos, não é tarefa das mais encomenda a Mário de Andrade o famoso 171
fáceis. Para tanto, optamos por acompanhar a anteprojeto:
trajetória da Repartição pontuando, ou identi-
ficando, quatro fases específicas (a de delegação Telefonei a Mário de Andrade, então Diretor

institucionalizada, a de delegação pulverizada, do Departamento de Cultura da Prefeitura de São


Paulo. Expus-lhe o problema e lhe pedi que me
a de atuação através das consultorias, a de in-
organizasse o projeto. Mário de Andrade, com
ternalização), bem como dois momentos sig-
aquela alegria adorável, aquele seu fervor pelas
nificativos (o de tentativa de incorporação da grandes coisas, aquela sua disposição de servir,
arqueologia e o de desmantelamento). queria apenas duas semanas para o trabalho.
Decorrido o prazo, eis Mário de Andrade no Rio
A FASE DE DELEGAÇÃO de Janeiro, trazendo o projeto (MEC/Sphan/Pró-
INSTITUCIONALIZADA Memória, 1980:22).

Diversos artigos e publicações que pre- Esse tipo de “esquecimento” não parece Calçoene-AP
Acervo: Iphan/
tenderam contar a história da preservação despropositado, ao contrário, parece Heitor Reali.
deliberado, sendo seguidas vezes reiterado, Na proposta de Mário de Andrade, o
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

sobretudo nas publicações de arquitetos conceito de arte tem um sentido amplo,


A C I O N A L

ligados ao Iphan, como parte da estratégia onde se enumeram oito categorias de arte:
de legitimação do órgão; melhor dizendo, arqueológica, ameríndia, popular, histórica,
essas abordagens foram – e ainda são – erudita nacional, erudita estrangeira, aplicadas
N
R T Í S T I C O

integrantes de um processo de construção, nacional, aplicadas estrangeiras. Os bens


consolidação e valorização de um discurso pertencentes à arte arqueológica e ameríndia
A

patrimonial autorizado sobre o patrimônio deveriam ser inscritos no Livro de Tombo


E

que, em última instância, envolveu, desde Arqueológico e Etnográfico. Para Tatiana da


I S T Ó R I C O

a sua gênese, a manutenção do aparelho Costa Sena (2011), o anteprojeto categoriza


estatal nas mãos de uma elite intelectual e o patrimônio através dos vários tipos de
H

Roberto Stanchi

profissional (arquitetos) que monopoliza, arte e reflete um “método etnográfico” que


A T R I M Ô N I O

até os dias atuais, o campo das práticas pretendia “catalogar” todas as manifestações
preservacionistas. Ao reiterar esse discurso, culturais do homem brasileiro.
P

impõe-se uma espécie de monopólio das O documento apresentado a Gustavo


D O

práticas preservacionistas em detrimento Capanema, embora parcialmente apropriado,


E V I S T A

de outras, conferindo à instituição e aos sofreu importantes alterações, decorrentes,


R

seus agentes capital simbólico, cultural e entre outras coisas, dos interesses de alguns
social para uma formação discursiva como agentes e intelectuais de relevância, em que
instrumento de nomeação legítima da se destacavam as figuras de Gustavo Barroso
realidade. Walter Francisco Lowande (2012) (diretor do Museu Histórico Nacional) e de
destaca que o período de hegemonia de tal Heloisa Alberto Torres (diretora do Museu
formação discursiva teria correspondido Nacional).
ao que se convencionou denominar “fase No que diz respeito à estrutura de
172
heroica”, que somente cederia lugar, a funcionamento do futuro Serviço em relação
partir de meados da década de 1970, à nova ao patrimônio arqueológico, o anteprojeto
formação discursiva proposta pelo grupo previa a presença de dois arqueólogos
liderado por Aloisio Magalhães. compondo o Conselho Consultivo e um no
Na literatura sobre patrimônio cultural setor denominado Chefia de Tombamento.
brasileiro, o texto citado, em que Gustavo Além disso, cada Comissão Regional a ser
Capanema solicita a Mário de Andrade a criada nas capitais dos estados deveria ter um
elaboração de um anteprojeto de organização arqueólogo em seus quadros1. O anteprojeto
de um serviço nacional para a defesa do também propunha alterações na organização
patrimônio artístico brasileiro, aparece quase do Museu Nacional, que, ou se converteria
sempre como pedra fundamental, não apenas exclusivamente num museu de história natural
do que viria a ser o Iphan, mas como marco – retirando-lhe a arqueologia e a etnografia –
inicial da institucionalização da política
de patrimônio no país, aspecto que, sem 1. Até hoje, em 2016, mesmo após diversos concursos, o Iphan
ainda não conseguiu assegurar a presença mínima de um arqueó-
nenhuma dúvida, merece ser relativizado. logo em todas as suas superintendências estaduais no país.
ou em um museu arqueológico e etnográfico Contudo, temendo uma eventual

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


(Silva, 1996). Nessa proposta é possível criação do Serviço de Patrimônio nos termos

A C I O N A L
identificar elementos embrionários que irão, propostos por Mário de Andrade, Heloisa
de certa forma, moldar a maneira pela qual Alberto Torres propõe a Rodrigo Melo Franco
o patrimônio arqueológico será tratado pelo

N
de Andrade um rol de ações alternativas

R T Í S T I C O
Iphan: como uma temática secundária. Os (Lowande, 2013):
arranjos institucionais decorrentes dessa

A
característica, por sua vez, irão formatar o Penso que se poderia estabelecer uma

E
modo como os arqueólogos e a Sociedade colaboração estreita entre a Secção de Etnografia

I S T Ó R I C O
de Arqueologia Brasileira – SAB, principal do Museu Nacional e o “Serviço”, uma verdadeira
associação científica de arqueologia do país, articulação entre as duas entidades e da qual

H
poderia resultar benefício considerável para

Roberto Stanchi
irão se relacionar com os técnicos do Iphan.

A T R I M Ô N I O
este sem prejuízo dos trabalhos que aquela
Como resposta ante a possibilidade de
levasse a efeito. Todo o material de etnográfico
desmembramento de sua instituição, Heloisa
constaria do tombamento, os técnicos do Museu

P
Alberto Torres escreve, em carta datada de 9

D O
Nacional colaborariam no Conselho Consultivo
de maio de 1936, a Rodrigo de Melo Franco,

E V I S T A
da S.P.A.N.; organizariam relações de jazidas
rechaçando completamente a possibilidade etnográficas a serem tombadas, levariam mapas

R
de apoio ao projeto de Mário de Andrade com a distribuição geográfica dos monumentos
(Lowande, 2013): a serem protegidos, elaborariam monografias a
serem publicadas pela S.P.A.N. Por seu lado a
Admitamos que se pudesse remediar todos S.P.A.N. providenciaria melhores condições para
esses inconvenientes criando o “Serviço do ao desenvolvimento dos trabalhos da Secção de
Patrimônio Artístico, Histórico e Antropológico Etnografia do Museu Nacional.
Nacional” e instalando em edifício anexo ao ou
próximo do Museu de História Natural, ainda Na correspondência citada, alguns 173
surg[iriam] considerações muito ponderáveis.
aspectos saltam aos olhos. O primeiro
Uma, de natureza tradicionalista, não pode deixar
deles é a defesa da posição privilegiada do
de ser tomada em conta no momento em que
Museu Nacional, que deveria continuar
se pretende organizar a defesa do patrimônio
histórico do Brasil: é o golpe desferido a uma ocupando papel de destaque na formulação
instituição de 118 anos de existência e que, das primeiras políticas de preservação
malgrado incompreensão de suas finalidades, pela do patrimônio cultural brasileiro. Outra
maioria dos governos, tem conseguido levar e questão é a concepção ampla do conceito
manter em alto nível o nome do Brasil por todo de patrimônio, abrangendo as coleções
mundo, na divulgação do que a nossa terra tem de
arqueológicas e etnográficas. Por fim, o
mais belo: a natureza de sua gente. A organização
aspecto que parece ter sido determinante para
desse trabalho de defesa não pode ser iniciada pela
os rumos da arqueologia no Brasil: a proposta
mutilação de um instituto centenário e glorioso,
quando um dos primeiros monumentos nacionais de colaboração e articulação, palavras que,
a serem tombados pelo serviço projectado deveria do ponto de vista prático, significaram a
ser certamente o Museu Nacional. delegação das ações do Serviço voltadas para
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l

174
Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

Acervo: Iphan.
Alcântara, MA
o patrimônio arqueológico, inicialmente, me parece impraticável organizar um museu de

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


para uma única instituição e, mais tarde, em archeologia, ethnografia e arte popular com a
oposição intransigente de todo o pessoal do Museu

A C I O N A L
outro contexto, para uma rede de agentes. A
Nacional, tive de me conformar com a inclusão
argumentação de Heloisa Torres prevaleceu
apenas de um dispositivo do projeto prevendo para
e, de fato, embora o Museu Nacional não

N
o futuro a realização do empreendimento, a fim de

R T Í S T I C O
tenha sido a única instituição a colaborar
contar assim com a cooperação de Dona Heloisa,
com o Serviço, pode-se dizer que a atuação
quer para o tombamento do material reunido na

A
dessa instituição foi central no contexto de Quinta da Boa Vista, quer para o tombamento

E
delegação das práticas administrativas.

I S T Ó R I C O
geral. De resto, confesso a V. que fiquei intimidado
A lei de criação do Sphan (Lei nº 378) diante da responsabilidade de desmembrar do
já aponta que o trabalho a ser desenvolvido museu existente as coleções que nos interessavam.

Roberto Stanchi
deveria ser realizado com a cooperação Aquilo, tal como está organizado, tem sempre

A T R I M Ô N I O
dos museus nacionais de coisas históricas e produzido alguma coisa de apreciável. É uma
artísticas. Ainda segundo Walter Lowande instituição centenária que merece ser tratada com
uma consideração especial. Se a gente, insistindo

P
(2013), havia uma questão política que

D O
em reformá-la agora de acordo com o seu projeto,
fez com que a proposta fosse acatada em

E V I S T A
seria tido, por Dona Heloisa e pelos especialistas
detrimento da de Mário de Andrade: o
mais capazes de lá, como inimigo. Com que

R
grupo ligado ao Museu Nacional, assim elementos poderíamos contar para suprir o pacto
como os intelectuais mineiros e arquitetos de cooperação do pessoal melhor do Museu
modernos, dispunha de grande simpatia Nacional? Pelo menos, graças ao adiantamento
do governo autoritário de Vargas. Ainda da reforma, captamos a boa disposição da própria
segundo o autor, Mário de Andrade contava Dona Heloisa, cuja colaboração é preciosa. Mais
apenas com uma antiga filiação ao Partido para adiante, veremos o que será possível conseguir
Democrático Paulista e uma frágil situação naquele sentido (...).
175
junto ao Departamento de Cultura da
Cidade de São Paulo. Com a instauração do Estado Novo, o
Por fim, coube a Rodrigo Melo Franco Sphan é legalmente criado e, nesse sentido,
de Andrade expor suas justificativas ao colega fica claro que o texto do Decreto-lei nº 25
(Lowande, 2013): de 1937 contemplou a posição do Museu
Nacional. Por outro lado, sem dúvida
Achei procedente tudo quanto V. me escreveu que essas articulações iniciais, realizadas
a respeito da carta de Dona Heloisa. Sucedeu até pelos diferentes grupos que orbitavam em
que alguns dos seus argumentos já tinham sido torno de Capanema, foram decisivas para
indicados por mim, quando discuti com ela a
a naturalização da ideia de que seriam os
questão. Mas eu estava muito incapaz naquele
arquitetos os profissionais mais adequados ao
dia e oprimido por uma dificuldade de expressão
projeto de construção da nação, consagrando
maior ainda que a de costume. Fui reduzido com
facilidade, embora tivesse saído ainda convencido uma história que seria autenticada
das vantagens que resultaram da adoção do pela materialidade, conforme a prática
ponto de vista que V. sustentava. Como, porém, administrativa dos primeiros anos revelou,
de um patrimônio histórico arquitetônico redes de alianças que foram formadas para
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

(Chuva, 2009). o exercício do poder burocrático. Portanto,


A C I O N A L

Porém, é interessante notar alguns aspectos penso ser mais profícuo para a compreensão
contidos na negativa do Museu Nacional ou, desse processo não apenas identificar o pouco
espaço para o tema dentro do Iphan, mas
N

nas palavras de Rodrigo Melo Franco, de “todo


R T Í S T I C O

o pessoal do Museu Nacional” ao projeto de sim como foram estabelecidas as práticas


Mário de Andrade, bem como às estratégias administrativas por delegação, pois elas são
A

que foram posteriormente utilizadas na igualmente elucidativas de um poder estatal


E

que reforça a dualidade Estado/sociedade e


I S T Ó R I C O

constituição do Serviço.
No caso específico do patrimônio que, portanto, deve ser compreendido através
arqueológico, algumas articulações de suas práticas.
H

Roberto Stanchi

O período em que Luiz de Castro Faria2


A T R I M Ô N I O

institucionais foram criadas no período


inicial. Em momento posterior uma rede de esteve à frente Museu Nacional corresponde
alianças foi sendo construída de modo que o a um momento de extensa colaboração com
P

modelo de administração pública que estava o Iphan. Antes mesmo de se tornar diretor,
D O

sendo implantado era fortemente baseado o pesquisador possuía estreita relação com
E V I S T A

nas relações pessoais, conforme iremos o patrimônio, colaborando ativamente


R

demonstrar. com a instituição, na medida em que havia

Márcia Chuva (2009), ao discorrer sido designado, por Heloisa Alberto Torres,
para auxiliar na elaboração das ações de
sobre esse momento do Iphan, destaca que
identificação e preservação do patrimônio
o órgão partilhava de uma das marcas da
arqueológico brasileiro. Maria Lucia Pardi
administração pública do Estado brasileiro:
(2002) afirma que Castro Faria chegou a
O exercício de diferentes poderes,
ficar responsável pela gestão da dotação
176
concomitantemente, se instituía tanto a partir orçamentária do Serviço destinada à execução
das relações de poder pessoais em jogo, quanto de pesquisas arqueológica no país, bem como
da busca de legitimação mediante excelência de por coordenar o cadastro de sítios e materiais
um saber técnico: Configurava-se, assim, como arqueológicos.
estratégia de administração, uma privatização do Tania Andrade Lima (2009) demonstrou
público (Chuva, 2009:282). como o pesquisador, formado na
concepção boasiana da antropologia, de
É preciso relativizar o discurso acerca atuação nos chamados four fields, realizou
da marginalização da arqueologia dentro importantíssimas pesquisas em sítios
do Iphan, cuja representatividade estaria, arqueológicos brasileiros, especialmente
desde sempre, prejudicada em função das nos sambaquis do Paraná e Santa Catarina.
configurações assumidas pelo órgão, mas A autora destaca a relevante mobilização
tentar analisar como se configuraram os
modelos de administração através de outra 2. Luiz de Castro Faria foi diretor da Divisão de Antropologia e
diretor substituto do Museu Nacional. Entre os anos de 1964 e
dimensão do poder estatal, personificada nas 1967, foi Diretor do Museu Nacional.
política de Castro Faria, que, junto a a exploração científica dos sítios, dentre

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


outros cientistas e intelectuais preocupados outras. Mais uma vez, através de uma série de

A C I O N A L
com a destruição dos sítios arqueológicos convênios, realizados por intermédio de Castro
brasileiros, lutou para o surgimento de Faria, o Iphan delegou ao Museu Nacional a
legislação especifica voltada à proteção dessa elaboração dos novos instrumentos de gestão

N
R T Í S T I C O
categoria de patrimônio. Além de ter sido que seriam necessários.
personagem principal dessa mobilização, Ainda segundo Luciene Simão (2009),

A
reputa-se ao próprio Castro Faria a há uma extensa documentação referente aos

E
elaboração da minuta daquilo que viria a se custos de trabalho das pesquisas arqueológicas

I S T Ó R I C O
tornar em 1961 a Lei da Arqueologia, ou Lei e de aplicação de verbas em serviços de
nº 3.924/61 (Lima, 2002 e 2009). inventário, documentação e registro de sítios

Roberto Stanchi
Luciene de Menezes Simão (2009) realizados pelo Museu Nacional, sobretudo

A T R I M Ô N I O
sustenta que a principal norma para a no estado de Santa Catarina, nos primeiros
proteção do patrimônio arqueológico foi anos de aplicação da lei.

P
“gerada fora da Instituição”, no caso, o Iphan. A participação de Heloisa Alberto Torres

D O
A partir do estudo de correspondência, a na forma como se daria a regulamentação da

E V I S T A
autora demonstra a estreita relação de Castro Lei nº 3.924/61 e, sobretudo, na ingerência
que tinha dentro do Iphan fica também

R
Faria com Rodrigo Melo Franco de Andrade
e sua presença nas reuniões do Conselho documentada na carta que Eduardo E. G.
Consultivo do Iphan. Galvão, presidente do Conselho Nacional
Contudo, a dimensão da participação de Pesquisas, encaminha à pesquisadora
de Castro Faria na fundamentação científica (Lowande, 2013):
e na elaboração da minuta da lei de 1961
ficou evidenciada, segundo a autora, após D. Heloisa, Recebi sua carta de 10/09,
encaminhando o anteprojeto de regulamentação 177
a consulta ao parecer do antropólogo para
da Lei 3.924, de 26 de julho de 1961. Agradeço
o tombamento do sítio Grutas da Lapa da
a atenção da consulta. Nada tenho a acrescentar
Cerca Grande3. Nesse parecer, Castro Faria
ao anteprojeto, que me parece responder muito
enfatizou a necessidade de uma legislação bem às necessidades de proteção dos monumentos
específica para o patrimônio arqueológico arqueológicos e pré-históricos. Como única
como forma de resolver o problema da sugestão, e esta já fora do anteprojeto, mas dentro
proteção desses sítios e, ao final, sugeriu uma das atribuições internas do Sphan, seria a de
minuta para o texto normativo. um zoneamento geográfico de instituições que
A Lei nº 3.924/61, quando sancionada, ficariam responsáveis pela fiscalização da pesquisa
e como depositárias do material. Refiro-me, por
deu ao Iphan a incumbência de cuidar do
exemplo, a áreas como a Amazônia, ou a do Brasil
cadastramento dos sítios arqueológicos, da
Central, em que órgãos como o Museu Goeldi, e a
concessão de autorizações de pesquisa para Universidade de Brasília, teriam maiores facilidades
de controle (por delegação). Essa atribuição de
3. Processo n° 491-T-53 – Grutas Lapa da Cerca Grande e Lapa responsabilidade e institutos regionais, acredito,
dos Poções. Arquivo Noronha Santos, Arquivo central do Iphan,
Rio de Janeiro. virá facilitar o trabalho do Sphan, ao mesmo
tempo que neles incutir e exigir maior atenção a preservação do patrimônio arqueológico
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

sobre o problema (...). (grifo nosso) desenvolvidas pelo Iphan isto fica ainda mais
A C I O N A L

evidente. Não só inexistia essa unidade de


A carta contém uma sugestão importante. pensamento, como muito menos pode-se
Em período posterior, mesmo não estando
N

atribuir um espírito de corpo a um corpo


R T Í S T I C O

Heloisa Alberto Torres mais à frente do inexistente, visto que, nos primeiros trinta
Museu Nacional, o Iphan implementa um anos, o Iphan entregou aos cuidados do
A

sistema de redes muito parecido com a irmão mais velho, o Museu Nacional, suas
E

sugestão contida na carta de Eduardo Galvão. atribuições e responsabilidades relativas


I S T Ó R I C O

A chamada “fase heroica”4 do Iphan é ao patrimônio arqueológico, algo que, ao


constantemente apropriada de forma acrítica que parece, deixou fortes marcas na forma
H

Roberto Stanchi

por boa parte da historiografia do patrimônio


A T R I M Ô N I O

com que foram engendradas as práticas


e também pelo imaginário dos técnicos do administrativas, produzindo reflexos até os
Iphan. A expressão foi criada para designar dias atuais.
P

os primeiros trinta anos do Instituto, período


D O

em que, teoricamente, haveria um grupo de A FASE DE DELEGAÇÃO


E V I S T A

intelectuais coeso, todos dedicados à causa P U LV E R I Z A D A


R

do patrimônio, em torno da busca de uma


identidade cultural da nação. Em 1967, o arquiteto Renato Soeiro, que
No entanto, essa designação parece tentar já atuava desde a criação do órgão no setor
“purificar” aquilo que, na realidade, se mostra de restauração e tombamento, substituiu
como um emaranhado de relações, inseridas Rodrigo Melo Franco de Andrade na direção
no campo político e científico, que resultaram do Iphan5. Segundo Roberto Sabino (2012),
na introdução das ações de preservação do no período em que Soeiro esteve à frente do
178
patrimônio no âmbito das políticas públicas. órgão, o campo patrimonial já incorporava
Nesse emaranhado de relações e novas demandas, relacionadas, sobretudo,
colaborações, é possível identificar uma com a necessidade de compatibilizar
série de disputas em torno das diferentes desenvolvimento econômico e preservação
concepções de patrimônio e, ao mesmo do patrimônio, integrando os estados
tempo, temos uma série de campos de brasileiros nas ações de preservação e, por
conhecimento que também estão se fim, desenvolver o potencial turístico dos
estruturando e, portanto, demarcando seus bens patrimoniais. Portanto, afinadas com as
nichos de atuação. Nessa medida, as relações determinações do governo militar, as políticas
entre os grupos que orbitavam em torno do
públicas levadas a cabo pelo Iphan nesse
Iphan, desde sua criação, demonstram uma
período visaram conciliar o desenvolvimento
série de tensões e disputas.
No caso das primeiras ações voltadas para 5. Na época, ainda se chamava DPHAN. Foi apenas em 1970, a
partir do Decreto nº 66.976, que o órgão passou a ser identifica-
do como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
4. Ver Saia (1977). – Iphan.
das regiões com a preservação dos valores agora não mais restrita à articulação inicial

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


tradicionais. Nesse sentido, em 1973 foi estabelecida com o Museu Nacional.

A C I O N A L
criado o Programa Integrado de Reconstrução Nesse período, a delegação das atribuições
das Cidades Históricas do Nordeste com do Instituto em relação ao patrimônio

N
sua Utilização para Fins Turísticos, atual arqueológico atingiu o seu ápice. Não

R T Í S T I C O
Programa de Cidades Históricas – PCH, obstante, faz-se necessário aqui um parêntese
que visava criar uma infraestrutura adequada – pode-se dizer que, em certa medida,

A
ao desenvolvimento e suporte de atividades Soeiro foi responsável por colocar em

E
turísticas e ao uso de bens culturais como

I S T Ó R I C O
prática o sistema de cooperação sugerido por
fonte de renda para as regiões carentes do Eduardo Galvão a Heloisa Alberto Torres7
Nordeste (Fonseca, 2009:143). ainda na gestão de Rodrigo Melo Franco.

Roberto Stanchi
A T R I M Ô N I O
Em relação ao patrimônio arqueológico, Assim, foi criada a categoria dos chamados
com a regulação imposta pela aprovação da “representantes do Iphan para assuntos de
Lei nº 3.924/61 e a saída de Rodrigo Melo arqueologia”. Em sua maioria pertencentes

P
Franco de Andrade, a cooperação estabelecida aos quadros das universidades federais, eles

D O
com o Museu Nacional ficou menos efetiva6. atuavam em conformação com o disposto no

E V I S T A
Além disso, Soeiro convida o museólogo e parágrafo 2º do art. 11 da Lei nº 3.924/61,

R
bacharel em direito Alfredo Theodoro Russins então publicada há seis anos:
para assessorá-lo nas questões relacionadas
com o patrimônio arqueológico. As escavações devem ser realizadas de acordo
Dessa forma, passa a atuar como assistente com as condições estipuladas no instrumento
do diretor, cargo até então não existente. de permissão, não podendo o responsável,
sob nenhum pretexto, impedir a inspeção dos
Nessa função, estabelece estreitas relações
trabalhos por delegado especialmente designado
com os arqueólogos do país, participando 179
pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico
de diversos projetos, como a implantação
Nacional, quando for julgado conveniente.
do Museu Arqueológico do Sambaqui de
Joinville. Além disso, era responsável pelo
Representantes honoríficos do Iphan,
repasse de verbas destinadas a vistorias e
por delegação, atuavam em seu nome em
salvamentos aos arqueólogos, que, por sua
ações de vigilância, na análise das propostas
vez, transmitiam as informações das pesquisas
para a realização de pesquisas, realizando
realizadas ao Iphan (Silva, 1996; Lima, 2001
ainda salvamentos esporádicos com as
e Saladino, 2010).
verbas regulares repassadas por Russins. Não
Contudo, foi na gestão de Soeiro que o
obstante, cabia também a esses representantes
Iphan ampliou consideravelmente a rede de
atender a denúncias de destruição de sítios
cooperação com os arqueólogos brasileiros,
arqueológicos (Lima, 2001 e Saladino,
6. A cooperação com o Museu Nacional prosseguiu ainda por
muito anos, só que em outros termos, mas contando ainda com a 7. Ver carta na sessão anterior (fase de delegação institucionali-
participação de Luíz de Castro Faria, conforme demonstra LIMA zada). Todavia, não encontramos qualquer comprovação de que
(2009). Soeiro teria se baseado na sugestão de Eduardo Galvão.
2010). Ainda segundo Tania Andrade Lima coordenado por Mário F. Simões (Museu Paraense
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

(2001:5), foram representantes da Instituição: Emílio Goeldi) e financiado pela Eletronorte –


Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Araújo
A C I O N A L

Mário Simões, na Amazônia Legal; Nássaro de Costa, 1983; Simões e Araújo Costa, 1987).
Souza Nasser, no Rio Grande do Norte; Marcos Através desses convênios, os empreendedores
N

responsáveis pela degradação de vastas áreas de


R T Í S T I C O

Albuquerque, em Pernambuco; Valentin Calderón,


na Bahia; Celso Perotta, no Espírito Santo; Afonso interesse arqueológico forneciam infraestrutura e
de Moraes Bueno Passos, em São Paulo; Igor financiavam as pesquisas de campo e, em alguns
A

Chmyz, no Paraná; Walter Piazza e, posteriormente, casos, a datação dos materiais e a publicação dos
E

resultados dos estudos, mas não remuneravam os


I S T Ó R I C O

João Alfredo Rohr, em Santa Catarina.


pesquisadores.(Caldarelli e Santos, 2000:57).

Esse sistema de delegação pulverizada


H

Roberto Stanchi

Vale notar, mais uma vez, a existência


A T R I M Ô N I O

das atribuições do Iphan em relação ao


patrimônio arqueológico perdurou até dessa simbiose entre o que deveria ser
o começo da década de 1980. Ainda papel do órgão de preservação e fiscalização
P

nesse período, vale destacar, tiveram do patrimônio e as atividades exercidas


D O

por esses primeiros agentes formalmente


E V I S T A

início no Brasil os primeiros projetos de


pesquisa arqueológica atrelados a grandes delegados para assuntos de arqueologia.
R

empreendimentos do setor elétrico. Como Diferentemente do período anterior, em que


apontam Solange Caldarelli e Maria do o Museu Nacional, na figura de Luiz Castro
Carmo Santos (2000), nesse período Faria, exercia uma série de atividades que
surgem os primeiros projetos de salvamento deveriam ser realizadas pelo Iphan, tivemos
arqueológico nas áreas de inundação das na gestão de Soeiro uma ampliação dessa
hidroelétricas, realizados a partir de convênios estratégia de delegação de atribuições, agora
entre empreendedores e pesquisadores das pulverizada pelos diversos estados do país na
180
instituições regionais que também eram, na figura desses representantes.
maioria dos casos, os representantes do Iphan, As consequências dessa pulverização
conforme vemos abaixo: irão aparecer de forma bastante acentuada
anos mais tarde, mas é interessante destacar
Datam dessa época os projetos arqueológicos a recorrência da estratégia de delegação que
de Itaipu, PR, coordenado por Igor Chmyz foi implementada nos primeiros quarenta
(UFPR) e financiado pela Binacional Itaipu anos de atuação do Iphan em relação ao
(Chmyz 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, patrimônio arqueológico. Entendo que o
1983); Ilha Solteira, SP, coordenador por conceito de delegação seja mais apropriado
Silvia Maranca (USP) e financiado pela Cesp
para descrever esses dois primeiros
– Centrais Elétricas de São Paulo (Maranca
períodos (1937-1967 e 1967-1979), onde
1978); Sobradinho, BA, coordenado por
Valentin Calderón (Associação de Arqueologia
verifica-se a transferência das atribuições e
e Pré-História da Bahia) e financiado pela Chesf responsabilidades para pessoas e instituições
– Companhia Hidroelétrica do São Francisco externas ao quadro técnico do Iphan, que
(Calderón et. al.,1977) e Tocantins (PA), começava a ser formado.
Penso que qualquer representação do patrimônio arqueológico no Iphan,

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


institucional deve estar, minimamente, mas também a conformação do campo da

A C I O N A L
associada a uma definição prévia de conceitos, arqueologia brasileira. Algo semelhante ao
diretrizes, regramentos ou protocolos que, processo descrito por Timothy Mitchell
(1999) ao demonstrar que os mecanismos

N
por sua vez, balizarão a atuação daquele

R T Í S T I C O
que exerce uma representação. Entretanto, institucionais nunca estão confinados dentro
ao analisarmos as ações desenvolvidas pelos dos limites do que se chama Estado: “a

A
representantes do Iphan para assuntos aparente fronteira do Estado não demarca os

E
limites dos processos de regulação, mas é um

I S T Ó R I C O
de arqueologia, percebemos, através das
atividades por eles desempenhadas, que produto desses mesmos processos” (Mitchell,
elas iam muito além de uma representação, 1999:84). Nesse sentido é que justifico que

Roberto Stanchi
eles atuavam mais como delegados do que

A T R I M Ô N I O
quer seja no sentido da defesa dos
interesses, quer seja no sentido simbólico de como representantes, uma vez que suas
representatividade. Constantemente essas decisões eram decisões do poder estatal.

P
pessoas exerciam o poder decisório acerca das De fato, se por um lado houve,

D O
ações que deveriam ser realizadas em relação conforme Regina Coeli Silva (1996:54),

E V I S T A
ao patrimônio arqueológico, muitas vezes um “acomodamento por parte do Iphan

R
sequer necessitando de consulta ao Iphan. para a resolução de assuntos pertinentes
Isso fica claro numa passagem ocorrida com à arqueologia”, podemos dizer que os
arqueólogos aceitaram assumir um
Luiz Castro Faria, conforme aponta Tania
protagonismo que não lhes competia. Dessa
Andrade Lima (2009):
forma, o discurso de colaboração, assumido
Em ofício encaminhado aos diretores do Centro por grande parte da historiografia, parece,
Brasileiro de Arqueologia em 22 de abril de 1969, em alguma medida, ocultar que o regime
181
respondendo a denúncia de escavações e coleta de reciprocidades era, ao mesmo tempo,
de materiais em sítio pesquisado pela instituição, um limitado mecanismo de administração
Soeiro, como presidente da DPHAN, afirmou que burocrática em implementação, mas que,
“só ele (Castro Faria) pode(ria) realizar pesquisas ao ser posto em prática, conferia recursos e
sem autorização expressa desta Diretoria do poder aos seus participantes.
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Embora Renato Soeiro tenha tentado
sensibilizar o então ministro da Educação
Portanto, por mais que, semanticamente, e Cultura, Ney Braga, para a necessidade
tenha se estabelecido a conotação de uma de contratação de pessoal especializado,
representação, esses pesquisadores não agiam conforme atestam algumas correspondências8,
em nome do Iphan, eles eram o Iphan. essa estratégia de delegação permite que se
Em tal contexto, fica difícil estabelecer os entenda a organização da agência estatizada
limites que separavam a ação estatal e os
arqueólogos. Essa dificuldade marcou não 8. Trechos das correspondências foram publicados em: “Compa-
tibilizando os instrumentos legais de preservação arqueológica no
apenas o processo de institucionalização Brasil” (Silva,1996).
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

182
Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

Isabella Atayde Henrique.


Acervo: Iphan/
Serra da Capivara, PI
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
183

Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


a partir de uma rede de agentes e agências Em 1976, o Iphan foi reestruturado
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

de poder, componentes de uma aliança e, dois anos depois, a partir de um novo


A C I O N A L

de forças dotadas de instrumentos e de Regimento Interno, foi criada uma Divisão


legitimidade que definiram os termos da de Arqueologia. Russins foi designado seu
proteção do patrimônio arqueológico durante diretor, mas veio a falecer dois meses após a
N
R T Í S T I C O

os primeiros quarenta anos do Iphan (Souza nomeação. Sem a existência de um substituto,


Lima, 1995 e Chuva, 2009). a Divisão ficou desativada até o início da
A

Ainda que a atuação desses delegados tenha gestão de Aloisio Magalhães.


E

sido fundamental para o desenvolvimento das


I S T Ó R I C O

pesquisas e de ações de preservação realizadas A P R I M E I R A T E N TAT I VA


naquele período, estabeleceu-se uma relação DE INCORPORAÇÃO DA
H

Roberto Stanchi

que, sem nenhuma dúvida, deixou marcas no ARQUEOLOGIA


A T R I M Ô N I O

campo da arqueologia brasileira, na medida


em que engendrou, em parte, a constituição Aloisio Magalhães, após assumir o
P

do pensamento sobre as ações de preservação Iphan em 1979 e implementar profundas


D O

do patrimônio arqueológico que se tornaram transformações na instituição, inclusive


E V I S T A

dominantes. recuperando alguns aspectos contidos no


Dentre as características mais marcantes
R

anteprojeto de Mário de Andrade, voltou-


desse pensamento, destacamos a assunção, se novamente ao Museu Nacional, para
pelos arqueólogos, do exercício do poder suprir a lacuna deixada pelo falecimento
estatal. Essa característica fica muito evidente de Russins. Recorreu à arqueóloga Maria
nas décadas seguintes, quando, finalmente, o Beltrão, professora da instituição, solicitando-
Iphan inicia, timidamente, a estruturação da lhe a indicação de uma especialista que
área dentro dos seus quadros. pudesse ocupar-se das atividades relativas
184 Por fim, compreendemos que essas ao patrimônio arqueológico. Regina Coeli
delegações demonstram que devemos analisar Pinheiro da Silva, bacharel em Arqueologia
esse processo de institucionalização9 das ações e em Direito e então estagiária do Setor de
de preservação do patrimônio arqueológico Arqueologia do Museu Nacional, foi indicada
à luz de um “Estado-sistema”, conforme e contratada para, inicialmente, trabalhar na
as proposições de Philip Abrams, ou seja, documentação existente nos arquivos, com
pensar a existência do Estado enquanto um o objetivo de realizar um diagnóstico da
projeto ideológico de indivíduos ligados situação, a partir da documentação referente
por um sistema de conexões complexas ao patrimônio arqueológico, que havia se
(Abrams,1988). acumulado desde o falecimento de Russins.
O resultado de sua avaliação indicou,
9. Por institucionalização compreende-se o processo em que
certas práticas, cargos e funções, relações e temas passaram a ser dentre outras coisas, a necessidade de
abarcados por um mesmo aparato organizacional, com um mes- centralização das práticas administrativas no
mo escopo temático reconhecível e delimitado, sendo ainda uma
instância socialmente reconhecida como legitima no tratamento órgão federal, uma vez que, na ausência de
de um domínio definido de reflexão e intervenção (Foucault,
2008a:105). regulamentação e técnicos especializados, os
representantes regionais atuavam de forma patrimônio arqueológico, mas também

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


distinta sobre o patrimônio arqueológico e, nos procedimentos dirigidos aos demais

A C I O N A L
também, em relação aos arqueólogos que pesquisadores que, por força de Lei nº
recebiam autorização para a realização de 3.924/61, necessitavam submeter ao Iphan
pesquisa. Segundo o que relata Alejandra pedidos de autorização para a realização de

N
R T Í S T I C O
Saladino (2010:93), Regina Coeli Pinheiro da suas pesquisas.
Silva sugeriu ainda a Destacamos que a disparidade apontada

A
nesse primeiro levantamento só reforça

E
(...) independização da organização em relação a condição de delegação dada a esses

I S T Ó R I C O
ao apoio de cientistas do Museu Nacional e outros profissionais em detrimento da condição de
institutos de pesquisa e a criação de um setor de
meros representantes, haja vista a confirmada

H
arqueologia no Iphan

Roberto Stanchi
autonomia com que esses delegados tratavam

A T R I M Ô N I O
as questões em seus respectivos nichos de
Uma vez contratada, conseguiu montar
atuação. Não obstante, essa independência
um pequeno quadro de servidores e, ainda no

P
dos delegados do Iphan para assuntos de

D O
mesmo ano, foi criado10, dentro da estrutura
arqueologia parece-nos indicar, em certa

E V I S T A
do Iphan (na época Sphan/Fundação
medida, um recuo cronológico naquilo
Nacional Pró-Memória), um Núcleo de

R
que a historiografia assume como principal
Arqueologia.
característica do período posterior a esse, o
Em relação a essa primeira tentativa
momento em que o Iphan passa a ter em
de institucionalização, Alejandra Saladino
seus quadros sete arqueólogos atuando em
(2010) compreende que a demora na
suas regionais, cuja característica principal
estruturação de um setor específico para
do período é descrita como de excessiva
tratar do patrimônio arqueológico foi uma
autonomia, tendo criado, mais uma vez,
“consequência não intencional de uma 185
grande disparidade na atuação do órgão. Ou
escolha contingencial da organização” e,
seja, parece que a excessiva autonomia dos
possivelmente, resultado de influência do que
arqueólogos regionais do Iphan reproduziu
a autora chama de “fator extra-institucional:
uma dinâmica já ritualizada de práticas
a consolidação da área da própria arqueologia
administrativas que, uma vez rotinizadas,
no país” (Saladino, 2010:93-94). Há aspectos
constituíam valores que foram rapidamente
interessantes nos apontamentos realizados
introjetados no novo quadro técnico que se
pela pesquisadora que merecem algumas
formava.
considerações.
Embora Alejandra Saladino (2010)
O primeiro deles refere-se à constatação,
tenha entrelaçado adequadamente aspectos
por parte da primeira arqueóloga do
relevantes em sua análise, não nos parece
Iphan, de que os delegados atuavam
ser possível compreender o atraso da criação
de forma distinta, não apenas sobre o
de um setor de arqueologia do Iphan
como resultado “não intencional de uma
10. Existem divergências a respeito da formalização da criação
do Núcleo. escolha contingencial da organização”. Ao
contrário, nos parece que a delegação das institucional, é possível dizer que esse quadro
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

responsabilidades do Iphan em relação ao ainda não mudou por completo. Ainda hoje,
A C I O N A L

patrimônio arqueológico, característica de é possível identificar elementos residuais


seus primeiros quarenta anos de atuação, desse período, seja na forma como atuam os
decorre de uma estratégia intencional de um técnicos do Iphan, seja na maneira como os
N
R T Í S T I C O

conjunto de agentes que assumiu o Iphan. arqueólogos lidam com as atribuições desses
Estes constituíram uma forma própria de técnicos.
A

administrar que, ao contrário do que parece Em alguns momentos, a tensão entre os


E

ter ocorrido em relação ao patrimônio arqueólogos e técnicos do Iphan diminui


I S T Ó R I C O

arquitetônico, não visava a “monopolização bastante, sobretudo quando as ações


do saber via racionalização burocrática” institucionais apontam para um modus
H

Roberto Stanchi

(Chuva, 2009), mas a manutenção de uma operandi que, ao menos conceitualmente,


A T R I M Ô N I O

rede de alianças capaz de definir os termos da remonta ao período em que delegava parte
proteção do patrimônio arqueológico. considerável de suas atribuições, o que,
P

Foi por esse motivo que, conforme aponta naturalmente, não irá ocorrer nos mesmos
D O

Tania Andrade Lima (2001), o fortalecimento termos dos períodos anteriores. Da mesma
E V I S T A

do Núcleo de Arqueologia não foi visto com forma, o movimento contrário, ou seja, de
R

bons olhos pela comunidade de arqueólogos, maior combatividade dos arqueólogos em


pois os novos profissionais contratados pelo relação à instituição, ocorrerá sempre que os
Iphan, quase todos bacharéis em Arqueologia, dirigentes do órgão apontarem na direção
“escapavam aos mecanismo habituais de inversa, ou seja, na retomada das atribuições
controle da comunidade” e os embates e responsabilidades institucionais, bem como
decorrentes desse novo contexto acabaram no fortalecimento do seu quadro técnico.
criando um “forte antagonismo entre a SAB Esse movimento pendular é característico
186
e o Iphan”, pois os arqueólogos recusavam-se do processo de disputa política em torno
a aceitar as mudanças implementadas pelo da legitimidade das ações de proteção do
Núcleo e, constantemente, desqualificavam a patrimônio arqueológico desenvolvidas e
experiência profissional desses técnicos (Lima, implementadas pelo Estado brasileiro, ficando
2001:7). ainda mais acentuado nos momentos em que
Ainda segundo a autora, os arqueólogos regramentos e normas são estabelecidos.
brasileiros não conseguiram perceber a De todo modo, outro passo importante
importância das transformações que se para a consolidação de uma área de
operavam na estrutura do órgão no período, arqueologia dentro da estrutura burocrática
naquele que poderia ter sido um momento do órgão foi dado em 1986, um ano após a
oportuno para fortalecer a arqueologia criação do Ministério da Cultura, quando
internamente e aumentar a sua visibilidade o Iphan11, já tendo Angelo Oswaldo de
perante a sociedade.
Embora esse forte antagonismo tenha se 11. Naquele período o Sphan voltou a ser Secretaria, tendo à
frente Angelo Oswaldo de Araújo Santos e, como presidente da
dissipado em alguns momentos da trajetória FNPM, Joaquim Falcão,.
Araújo Santos a sua frente, eleva o Núcleo de arqueológicas realizadas, exigia “maior

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


Arqueologia à condição de Coordenadoria, preparo, consistência e consequência nas

A C I O N A L
subordinada à Presidência e, portanto, não investigações” (Lima, 2001:12).
mais vinculada à Divisão de Tombamento e
Conservação – DTC. Entretanto, somente O MOMENTO DE

N
R T Í S T I C O
na gestão do arquiteto Augusto Carlos da DESMANTELAMENTO
Silva Telles é que foi publicado o primeiro

A
instrumento legal interno para regulamentar Entretanto, as reformas administrativas

E
o processo de concessão de autorização de implementadas pelo governo Collor

I S T Ó R I C O
pesquisas arqueológicas: a Portaria Iphan nº (1990-1992), dentre outras, extinguiram o
07 de 1988. Ministério da Cultura e o Iphan12, criando

Roberto Stanchi
O novo documento normativo passou o Instituto Brasileiro do Patrimônio

A T R I M Ô N I O
então a orientar os pedidos de autorização de Cultural – IBPC. Por extensão, foi
pesquisa, estabelecendo critérios para obtê- extinta a Coordenadoria de Arqueologia.

P
la e prazos para entrega dos relatórios. Foi A estrutura do órgão passou a contar

D O
também um marco na limitação dos feudos: com o Departamento de Identificação e

E V I S T A
grandes áreas de pesquisa, que antes ficavam Documentação – DID, o Departamento

R
indefinidamente sob a responsabilidade de Proteção – Deprot, o Departamento de
de um único pesquisador, agora ficariam Promoção – Deprom e o Departamento de
disponíveis apenas pelo tempo limitado pela Planejamento e Administração – DPA.
portaria. Como resultado, ocorreu o
Além disso, reduziu consideravelmente desmantelamento das ações da
a subjetividade e a discricionariedade dos Coordenadoria, uma vez que os arqueólogos
técnicos no processo de concessão das do Iphan foram distribuídos por novas áreas
187
autorizações de pesquisa, regulamentando e superintendências. Dessa forma, ainda que
a forma como o poder público federal, por ressalvados os contextos, tivemos, novamente,
intermédio do órgão responsável, poderia a pulverização das práticas administrativas
decidir acerca da realização das pesquisas, relacionadas com o patrimônio arqueológico,
mediante a apresentação de um “plano de que, mais uma vez, ficaram fortemente
trabalho” (Portaria Iphan nº 07/88). personificadas. Contudo, não mais na antiga
Com isso, a necessidade do fortalecimento figura dos delegados, mas, agora, na dos
de um quadro técnico especializado, poucos arqueólogos que passaram a atuar
que pudesse analisar os aspectos técnico- diretamente nas superintendências estaduais.
científicos contidos nos projetos e relatórios Esses técnicos, gozando de grande
sujeitos à avaliação do Iphan, ficava ainda autonomia, sobretudo se comparados aos
mais reforçada. Porém, mais uma vez, houve técnicos de outras áreas do Iphan, passaram
forte mobilização dos arqueólogos contra a a atuar quase que livremente, repetindo
norma, na medida em que além de significar
maior controle do Iphan sobre as pesquisas 12. Nesse período ainda existia o sistema Sphan/FNPM.
assim, ainda que ressalvadas as especificidades Meio Ambiente – Conama. O novo arranjo
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

dos contextos, alguns dos problemas já institucional, que deixava a arqueologia em


A C I O N A L

identificados durante o modelo personalista segundo plano em relação ao patrimônio


de delegação pulverizada adotado pelo Iphan natural, corroborava, para muitos arqueólogos,
nos seus primeiros quarenta anos. a mensagem de descaso dos dirigentes do
N
R T Í S T I C O

As principais críticas dos arqueólogos Iphan com a temática.


brasileiros ao processo de institucionalização Nesse período, por conta do
A

das ações voltadas à proteção do patrimônio cumprimento mais efetivo das legislações
E

arqueológico ficaram registradas em ambientais introduzidas no país na década


I S T Ó R I C O

alguns documentos oficiais, quase sempre anterior, os técnicos do Iphan passaram a ser
produzidos no âmbito da Sociedade de cada vez mais demandados a analisar estudos
H

Roberto Stanchi

Arqueologia Brasileira. Conhecidos como ambientais (EIAs/Rimas).


A T R I M Ô N I O

Cartas de Goiânia13, esses documento são No início dos anos 2000, houve uma
elucidativos, no sentido de demonstrar a tímida tentativa institucional de enfrentar
P

forma como foram recebidas as primeiras o crescente número de estudos vinculados


D O

tentativas de implementação de mecanismos às análises de impacto ambiental e, nesse


E V I S T A

de gestão para o patrimônio arqueológico. sentido, foi criada extraoficialmente uma


Coordenação de patrimônio arqueológico
R

Esses mecanismos de gestão, teoricamente


inseridos no corpo estatal, foram sendo vinculada ao Deprot. Em 2001, o arqueólogo
moldados e, ao mesmo tempo, foram do Iphan Rossano Lopes Bastos assumiu essa
moldando a forma como se desenvolveram Coordenação de Arqueologia.
as condições de realização das pesquisas Em 2002, o Instituto publicou a Portaria
arqueológicas no Brasil. Iphan n° 230/02, com o objetivo de

188 (...) compatibilizar as fases de obtenção


A F A S E D E AT U A Ç Ã O
de licenças ambientais em urgência com os
AT R A V É S D A S C O N S U LT O R I A S
estudos preventivos de arqueologia, objetivando
o licenciamento de empreendimentos
O quadro da atuação individualizada potencialmente capazes de afetar o patrimônio
dos poucos técnicos de arqueologia do Iphan arqueológico (...).
através das superintendências estaduais
permaneceu por praticamente toda a década O documento passou a regulamentar a
de 1990, quando foi criada a Coordenadoria forma como se daria a inserção das pesquisas
de Patrimônio Natural e Arqueológico, arqueológicas no âmbito do licenciamento
subordinada ao Deprot. Sob a responsabilidade ambiental por mais de uma década. Sua
do arquiteto e paisagista Carlos Fernando de aplicação também transformou radicalmente
Moura Delfim, que se tornou o representante o perfil das pesquisas arqueológicas
da Instituição junto ao Conselho Nacional do majoritariamente realizadas no país. Segundo
dados do Centro Nacional de Arqueologia
13. Foram produzidas duas Cartas de Goiânia (1985 e 2000). – CNA, em 2013, somando todas as
autorizações de pesquisas arqueológicas longa manus do Iphan, embora fossem, junto

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


emitidas pelo Iphan, do total de 12.963 ao órgão, representantes do empreendedor, o

A C I O N A L
portarias emitidas entre 1991 e 2017, 98% que demonstra algumas das ambiguidades14
tinham como objetivo a obtenção de licença nas práticas administrativas adotadas.
ambiental e apenas 2% correspondiam ao

N
De outra forma, o termo carrega consigo

R T Í S T I C O
desenvolvimento de pesquisas acadêmicas. a ideia de que, através dos consultores, o
Esse dado corrobora a forte influência da Iphan pudesse “enxergar” o patrimônio

A
legislação ambiental e das normas do Iphan arqueológico do país e, portanto, à medida

E
no mercado de trabalho dos arqueólogos, que o enxergava, o órgão criava também o seu

I S T Ó R I C O
que passaram a ser cada vez mais requisitados poder de atuação sobre os sítios existentes.
para a realização de estudos atrelados ao Esse contexto de inserção das

Roberto Stanchi
licenciamento de empreendimentos. Como

A T R I M Ô N I O
pesquisas nas avaliações ambientais alterou
assinalam Caldarelli e Santos (2000:64), consideravelmente a forma tradicional
“o grande marco gerador de trabalho para de financiamento das mesmas, agora não

P
a arqueologia de contrato foi criado pela dependente exclusivamente das agências de

D O
Política Ambiental implantada no país”. fomento governamentais.

E V I S T A
Não obstante, ao regulamentar a Por fim, durante a reestruturação de

R
compatibilização das pesquisas com 2004, e no intuito de atender às crescentes
os estudos ambientais, essa norma demandas oriundas da arqueologia preventiva,
institucionalizava uma modalidade de foi instituída a Gerência de Patrimônio
pesquisa vinculada a uma empresa, instituição Arqueológico e Natural – Gepan, que, embora
de pesquisa ou universidade, que era hierarquicamente inferior à Coordenadoria,
contratada diretamente pelos empreendedores conferiu à arqueologia um lugar próprio
ou por empresas de consultoria de meio dentro do Iphan. Entretanto, coube a um
189
ambiente para a realização de pesquisas economista, e não a um arqueólogo, assumir o
arqueológicas. cargo de gerente da Gepan.
O desenvolvimento de pesquisas
vinculadas ao licenciamento proporcionou A FASE DE INTERNALIZAÇÃO
a identificação de sítios arqueológicos em
grande quantidade, por todo o território Em maio de 2009, durante a gestão
nacional, e os técnicos do Instituto muitas do presidente Luiz Fernando de Almeida,
vezes se referiam a esses consultores como o Iphan teve a sua estrutura regimental
sendo “os olhos do Iphan” nas áreas dos
alterada pelo Decreto nº 6.844/09. O órgão
empreendimentos.
continuava sendo dirigido por uma Diretoria
A utilização dessa expressão aqui é pro-
posital, pois além de muito utilizada entre 14. A ambiguidade das práticas administrativas do Iphan em rela-
os técnicos, conforme explicitado, remete a ção ao patrimônio arqueológico denota uma estratégia deliberada
de exercício do poder estatal, ou ainda, uma “tática de governo”
uma forma de conceber a atuação desses pes- em função dessa “governamentalidade que é ao mesmo tempo
exterior e interior ao Estado” (Foucault, 2008b), que o Instituto
quisadores-consultores como uma espécie de exerceu para o controle sobre esse tipo específico de patrimônio.
colegiada composta pelo presidente e quatro ambiental passou a compor oficialmente a
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

diretores. Contudo, o Departamento de estrutura do órgão na medida em que uma


A C I O N A L

Museus, que deixou de existir em função da das coordenações criadas dentro do CNA era
criação do Instituto Brasileiro de Museus a Coordenação de Pesquisa e Licenciamento.
– Ibram, deu lugar ao Departamento de Isso reforçava a mensagem institucional,
N
R T Í S T I C O

Articulação e Fomento – DAF. Nessa hoje considerada ultrapassada, de que o tema


estrutura, foram estabelecidas três novas deveria ser tratado exclusivamente pelos
A

unidades, entre elas o Centro Nacional arqueólogos.


E

de Arqueologia – CNA, subordinado ao Essa concepção contrariava a ideia de


I S T Ó R I C O

Departamento do Patrimônio Material que as avaliações de impacto ao patrimônio


e Fiscalização – Depam. As outras duas deveriam ser feitas contemplando os aspectos
H

Roberto Stanchi

unidades especiais passaram a ser: o Centro


A T R I M Ô N I O

materiais e imateriais que compõem os bens


Cultural Sítio Roberto Burle Marx – CCBM acautelados pelo Iphan, sendo necessária,
e o Centro Cultural Paço Imperial – CCPI. portanto, uma análise integrada dos estudos.
P

O Centro Nacional de Folclore e Cultura De certa forma, o novo regimento


D O

Popular – CNFCP já era considerado uma só veio a institucionalizar uma prática já


E V I S T A

Unidade Especial desde 2003. consolidada: o fato dos estudos ambientais


R

O Decreto nº 6.844/09 não detalha serem analisados apenas pelos arqueólogos do


as atribuições do CNA. Ao contrário, fica Iphan. Nesse sentido, é interessante observar
evidente, pelo texto abaixo, não apenas a sua que, se por um lado, havia queixas pela
subordinação ao Depam, mas a centralização arqueologia estar subordinada ao Depam e
das suas atividades no próprio Departamento, não diretamente à Presidência do órgão, não
conforme aponta o art. 17 do Anexo I, que ocorriam objeções quando os arqueólogos,
trata da estrutura regimental do Iphan: durante mais de uma década, através do
190
licenciamento, desenvolviam ações de
Art. 17. Ao Departamento do Patrimônio competência de outras áreas do Iphan.
Material e Fiscalização compete:
Em 2012, um novo regimento interno
(...)
foi aprovado e, dessa vez, as atribuições da
VIII - autorizar, por intermédio do
Centro Nacional de Arqueologia, as pesquisas
Coordenação de Pesquisa e Licenciamento
arqueológicas e avaliá-las, cadastrar e registrar os estavam detalhadas, mantendo-se vinculada ao
sítios arqueológicos brasileiros; CNA, conforme trecho do Regimento Interno
IX - acompanhar, por meio das apresentado abaixo (Portaria n° 92 de 2012):
Superintendências Estaduais e do Centro Nacional
de Arqueologia as pesquisas arqueológicas Art. 69. À Coordenação de Pesquisa e
realizadas em território nacional. Licenciamento – Copel compete:

I - subsidiar a direção da Unidade na proposição


A estrutura do CNA era composta de de diretrizes para o planejamento plurianual,
um cargo de direção e três coordenações. estratégico e orçamentário-financeiro do IPHAN,
Nesse momento, o tema do licenciando no âmbito de sua atuação;
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
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Roberto Stanchi
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II - elaborar, consolidar, gerenciar e monitorar os aplicação de penalidades e multas, nos termos da Pedra do Ingá, PB
Acervo: Iphan.
planos, programas e ações das atividades inerentes legislação pertinente; e
à sua área de atuação;
VII - subsidiar o CNA na avaliação e proposição
191
III - monitorar a execução orçamentária e de medidas mitigadoras e compensatórias pelo não
financeira dos recursos disponibilizados para os cumprimento das ações necessárias à proteção do
projetos de sua competência; patrimônio arqueológico.

IV - gerenciar e monitorar as ações de análise,


licenciamento, acompanhamento e fiscalização das Portanto, conforme organograma
pesquisas arqueológicas realizadas em território estabelecido naquela portaria, o tema do
nacional, nos programas de arqueologia acadêmica licenciamento ficava sob responsabilidade
e nos programas de arqueologia preventiva; de uma subárea no CNA. Esse quadro só foi
V - subsidiar o CNA na elaboração de normas alterado em 2015.
e procedimentos para a regulamentação A criação do Centro Nacional de
das ações de preservação e salvaguarda do Arqueologia – CNA, juntamente com suas
patrimônio arqueológico brasileiro no âmbito do três coordenações, significou, sem dúvida,
licenciamento de pesquisas; um importante avanço no sentido de
VI - subsidiar o CNA na proposição de conferir à arqueologia um espaço próprio
instrumentos, critérios de fiscalização e de dentro do Iphan. Contudo, esse movimento
institucional, embora relevante, ocorreu em cargos efetivos de técnico em arqueologia15.
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

decorrência da pesada demanda provocada Entretanto, curiosamente, o edital de seleção


A C I O N A L

pelo licenciamento ambiental, e não por não exigia como pré-requisito qualquer
uma valorização da área, como ao tempo de comprovação de habilitação profissional na
N

Aloisio Magalhães, no sentido de conferir área, sendo permitida a livre participação


R T Í S T I C O

à arqueologia a mesma importância dos para detentores de qualquer diploma de nível


outros patrimônios acautelados. Prova disso superior e, mais uma vez, o Iphan foi alvo de
A

foi não apenas a subordinação do Centro duras críticas dos arqueólogos brasileiros.
E

De fato, a presença majoritária16 de


I S T Ó R I C O

Nacional de Arqueologia ao Depam, como


o fato do Centro não compor a Diretoria profissionais sem formação específica em
colegiada do Iphan. arqueologia para lidar com o patrimônio
H

Roberto Stanchi
A T R I M Ô N I O

arqueológico refletia, num dado momento


A INCORPORAÇÃO DOS no tempo, a compreensão – em certa medida
TÉCNICOS institucionalizada - acerca do que, ao fim e
P

ao cabo, era o entendimento do Iphan sobre


D O

a arqueologia: uma espécie de subárea do


E V I S T A

As implicações do modelo
desenvolvimentista adotado pelo Estado patrimônio, desde sempre marginalizada
R

brasileiro no período dos governos “Lula- dentro da Instituição, seja no número de


profissionais envolvidos, seja na forma como
Dilma” impactaram diretamente a forma
a disciplina deveria ser encarada: atividade
como se desenvolviam as relações dos
“técnica” ou “burocrática”, palavras muitas
arqueólogos brasileiros com o Iphan. Essa
vezes utilizadas como sinônimo dentro e
relação, delicada desde a origem do Instituto,
fora do Iphan e que denotam uma visão
era pautada, principalmente, através das
em relação às atividades que, em tese, não
192 seguintes portarias do Iphan: n° 07/88, n°
possuem qualquer caráter reflexivo, ou ainda,
230/02 e n° 28/03,que, juntas, estabeleciam
são meramente cartoriais.
os critérios para a emissão das autorizações
Em 2008, o número de autorizações de
de pesquisas arqueológicas no contexto dos
pesquisa arqueológica, vinculadas às licenças
licenciamentos ambientais analisados pelo
órgão. Contudo, durante um longo período,
15. A prova que selecionou os candidatos também foi alvo de
parte considerável das pesquisas arqueológicas enorme polêmica entre os arqueólogos brasileiros, pois continha
inúmeras questões controversas, algumas consideradas sem
submetidas à avaliação do Iphan no contexto resposta e outras com mais de uma resposta possível, o que
resultou em recursos e pedidos de impugnação do certame. Esses
do licenciamento não seguia a lógica de recursos atrasaram a posse dos aprovados para as vagas de técnico
em arqueologia. Por esse motivo, o certame ficou conhecido
nenhum dos documentos balizadores acima. como “o concurso do dentista”, referência pejorativa utilizada
à formação profissional de um dos aprovados. A polêmica
No ano de 2005, ainda durante o prosseguiu ganhando fôlego quando, em momento posterior à
posse dos aprovados, veio à tona que a elaboração da prova havia
primeiro mandato do presidente Lula (2003- ficado a cargo de uma técnica do Museu Nacional da Universi-
2006) e na gestão do presidente Antonio dade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, sem a participação de
nenhum docente em arqueologia da Instituição contratado para a
Augusto Arantes, o Iphan realizou um elaboração do concurso.
16. Foram aprovados alguns poucos arqueólogos com formação
primeiro concurso para o preenchimento de específica em arqueologia.
ambientais publicadas no Diário Oficial da chamados “diagnósticos arqueológicos não

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


União – DOU, havia chegado a um total interventivos”. De forma bastante resumida,

A C I O N A L
de 661 17, mais que o dobro dos índices o memorando permitia que os diagnósticos
registrados em 2002, ano de publicação (avaliações exigidas pela Portaria Iphan
da Portaria Iphan nº 230/02. Porém, a nº 230/02) fossem realizados sem que

N
R T Í S T I C O
obtenção das autorizações de pesquisa, as houvesse necessidade de intervenção em
anuências às licenças e, por decorrência, sub-superfície e, dessa forma, dispensava esse

A
o crescimento exponencial da arqueologia tipo de estudo da análise e aprovação prévia

E
preventiva no Brasil esbarravam, quase do Iphan, diminuindo consideravelmente o

I S T Ó R I C O
sempre, na quantidade inexpressiva de número de documentos a serem analisados
técnicos do Instituto, composto basicamente pelos técnicos.

Roberto Stanchi
pelos antigos arqueólogos e pelos poucos Interessante destacar que avaliação desse

A T R I M Ô N I O
“técnicos em gestão do patrimônio tipo poderia ser realizada para qualquer
arqueológico” recém-aprovados18, o que tipologia de empreendimento, dos mais

P
resultava na notória morosidade das simples aos mais complexos, e, não obstante,

D O
avaliações realizadas pelo órgão. o texto do memorando, que estabelecia os

E V I S T A
Como resultado desse quadro, e de parâmetros de sua execução, trazia como
forma semelhante ao forte questionamento

R
justificativa o fato de que “publicar todas as
realizado quando da criação do Núcleo de pesquisas de diagnóstico não interventivo
Arqueologia, ainda na década de 1980, os em Diário Oficial só seria mais oneroso”,
arqueólogos, mais uma vez, reincorporaram além de apresentar uma enorme confusão
ao seu discurso de críticas ao Iphan a retórica entre metodologia de pesquisa e fases do
da dúvida quanto à qualificação profissional e licenciamento ambiental:
acadêmica dos seus analistas, dessa vez tendo
como aliados inúmeros empreendedores, 193
É importante ressaltar que os diagnósticos
igualmente dependentes das manifestações arqueológicos não interventivos relativos
do Iphan para a construção dos seus a programas de arqueologia preventiva
empreendimentos. são produzidos no momento em que o
Foi nesse contexto, e na tentativa empreendimento ainda está elaborando seus
de reverter a enorme morosidade e estudos de viabilidade, sendo imprudente,
portanto, exigir que estudos prospectivos sejam
acelerar o processo de análise dos estudos
desde já realizados, afinal, as intervenções em sítios
arqueológicos no âmbito dos licenciamentos,
arqueológicos devem ser sempre minimizadas,
que o CNA estabeleceu, ainda em 2008,
buscando sempre a preservação dos mesmos em
por meio de um Memorando Circular19, os sua integridade caso exista essa possibilidade
(Memorando Circular Gepam/Depam nº
17. Dados do Centro Nacional de Arqueologia – CNA.
18. Termos utilizados no edital de seleção do concurso de 2005.
002/2008).
19. É de se destacar o fato, no mínimo sui generis, que um
memorando, documento administrativo cuja finalidade exclusiva
é a comunicação interna, tenha sido utilizado durante anos, sem A confusão conceitual fica evidente
questionamentos internos e externos, para estabelecer procedi-
mentos distintos da Portaria Iphan n° 230/02. sobretudo em dois aspectos: 1) é exatamente
pelo fato da avaliação ser realizada no controle. E curiosamente, no período em que
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

momento em que se pretende verificar os diagnósticos arqueológicos não interventivos


A C I O N A L

a viabilidade do empreendimento que o estavam vigentes, não houve forte antagonismo


diagnóstico deve ser realizado, sob o ponto entre os arqueólogos e o Iphan.
de vista metodológico, da melhor maneira Ao contrário, assim como no período
N
R T Í S T I C O

possível, o que significa que o pesquisador de Russins, muitos arqueólogos, em


deve propor a metodologia que achar mais especial aqueles ligados as principais
A

adequada para a identificação de sítios empresas de arqueologia responsáveis


E

arqueológicos, não cabendo, portanto, ao pelo desenvolvimento das pesquisas, até


I S T Ó R I C O

Iphan, esse tipo de restrição; e 2) sem dúvida, hoje se reportam a essa época com grande
as intervenções em sítios arqueológicos devem saudosismo, sempre destacando as ótimas
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Roberto Stanchi

ser minimizadas, mas, na fase de diagnóstico, relações que mantinham com o economista
A T R I M Ô N I O

os sítios ainda serão identificados, sendo que respondia pela Gerência de Arqueologia,
que, na maior parte das vezes, o processo de então responsável pelas decisões relacionadas
P

identificação de sítios ocorrerá apenas em com a gestão do patrimônio arqueológico.


D O

momento posterior. Esse tipo de avaliação, em total desacordo


E V I S T A

Os chamados diagnósticos arqueológicos com os regramentos formais existentes, foi


não interventivos foram o retrato de um amplamente utilizado até o ano de 2012,
R

momento institucional em que, mais uma quando foi finalmente revogado.


vez, era dado aos arqueólogos a possibilidade
de realizar avaliações sem que fosse necessária O PRENÚNCIO DE
a submissão de um projeto de pesquisa ao MUDANÇAS
Iphan e, não obstante a sua metodologia,
em muitos casos, esses estudos atestavam Em 2011, esse cenário de relativa
194 a viabilidade dos empreendimentos sem a “tranquilidade” nas relações dos arqueólogos
realização de qualquer pesquisa interventiva com o Iphan começou a sofrer modificações.
ou prévia manifestação do Instituto. O governo federal, preocupado com a demora
A forma como a implementação desse das manifestações dos órgãos intervenientes
procedimento foi realizada é emblemática, para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
por demonstrar não apenas a secundarização e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama
histórica da arqueologia no Iphan, mas e com o atraso que estaria ocorrendo na
também corroborar o nível de informalidade emissão das licenças das obras do Programa
e personificação com que o tema era de Aceleração do Crescimento – PAC,
tratado no âmbito institucional. Isto é, um publicou a Portaria Interministerial n°
procedimento questionável foi estabelecido 419/2011, que regulamentava a atuação dos
por um memorando, portanto, sem respaldo órgãos e entidades da Administração Pública
legal e, ainda assim, passou a vigir por quase Federal no processo de licenciamento.
meia década, praticamente sem qualquer Podemos dizer que a principal conse-
questionamento interno ou dos órgãos de quência desse normativo foi estabelecer um
prazo máximo para a manifestação do Iphan estabeleciam os critérios e procedimentos para

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


nos processos de licenciamento ambiental a realização das pesquisas arqueológicas na

A C I O N A L
sob responsabilidade do Ibama e, principal- maioria dos licenciamentos dos quais o Iphan
mente, indicar que qualquer sítio arqueo- participava.
lógico, existente na área de um empreendi- Entretanto, no início de 2013,

N
R T Í S T I C O
mento, deveria dar lugar ao mesmo20. integrantes do alto escalão do governo
Além disso, pela primeira vez, um federal, mais especificamente, o ministro de

A
documento normativo passava a exigir Minas e Energia, Edison Lobão, acusavam

E
a atuação do Iphan nos licenciamentos publicamente o Iphan e as questões ambientais

I S T Ó R I C O
ambientais, não apenas no âmbito do como os principais responsáveis pelos atrasos
patrimônio arqueológico, mas também em na concessão das licenças das obras que

Roberto Stanchi
relação aos demais bens culturais federais poderiam evitar a crise no sistema elétrico:

A T R I M Ô N I O
acautelados, definidos conforme art. 2º inciso
I da PI n° 419/11: Questões ambientais já não são o único
entrave para o andamento das obras do setor

P
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Art. 2º. Para os fins desta Portaria, entende-se elétrico brasileiro. Um dos principais obstáculos

E V I S T A
por: aos empreendimentos de geração e transmissão de
II - Bens culturais acautelados: os bens energia atualmente é o Instituto de Patrimônio

R
culturais protegidos pela Lei nº 3924, de 26 de Histórico e Artístico Nacional (Iphan), segundo
julho de 1961, os bens tombados nos termos do o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (O
Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 e Estado de S. Paulo, 3 de março de 2013)21.
os bens registrados nos termos do Decreto 3551,
de 4 de agosto de 2000, indicados no Anexo I. A partir da possibilidade de um novo
apagão no país, o Iphan passou a ser visto
Contudo, suas diretrizes restringiam-se como um problema pelo governo Dilma
195
aos empreendimentos licenciados pelo Ibama, Rousseff, uma vez que foi considerado,
que, embora sejam de grande magnitude e juntamente com outros órgãos da
complexidade, são a minoria dentre aqueles administração pública federal, sobretudo a
que tramitam no Iphan, quando comparados Fundação Nacional do Índio – Funai, como
aos que são licenciados pelos órgãos estaduais motivo de atraso das obras do setor elétrico
e municipais de meio ambiente. Dessa forma, que poderiam impedir uma crise no sistema.
os documentos normativos mais importantes Esse atraso decorreria, no entendimento
para os arqueólogos continuavam a ser a do Ministério de Minas e Energia – MME,
Portaria Iphan n° 230/02 e o Memorando da morosidade do Instituto em analisar os
Circular n° 002/2008, pois ambos relatórios de pesquisas arqueológicas que
compunham os estudos ambientais desses
20. Portaria Interministerial nº 419/11 - Art. 6º, inciso III: empreendimentos.
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
- Avaliação acerca da existência de bens acautelados identificados
na área de influência direta da atividade ou empreendimento,
bem como apreciação da adequação das propostas apresentadas 21. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-diz-que-
para o resgate. -iphan-atrasa-obras-de-energia-imp-,1003751.
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
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Roberto Stanchi
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Pinturas Rupestres, Dessa forma, nesse mesmo ano, a Portaria Arqueologia Brasileira – SAB23.
Serra da Capivara, PI
Acervo: Iphan.
Iphan n° 230/02, publicada na década As modificações elaboradas pela nova
anterior, passou a ser objeto de revisão por Direção do CNA foram apresentadas, pela
196
parte da nova Direção do órgão, visando primeira vez, ainda em termos conceituais,
sua substituição por uma nova Instrução a um grande número de arqueólogos no
Normativa. Esse processo, por sua vez, foi principal congresso de arqueologia do país,
desencadeado um ano após ocorridas grande
evento organizado pela SAB, na cidade de
mudanças na Direção do CNA, com a
Aracaju, no ano de 2013. A presidente do
substituição de todos os coordenadores do
Iphan naquele período, Jurema Machado,
Centro, e também da sua diretora, causando
também esteve presente, algo inédito até então
assim uma enorme tensão no campo22
nos congressos da SAB.
da arqueologia, deflagrando uma série de
manifestações contrárias ao Iphan por parte Esse foi o primeiro grande evento onde
de seus representantes, incluindo, em alguns pude presenciar, como servidor do Iphan, o
momentos, a principal associação científica
23. Análise dos conflitos que ocorreram entre arqueólogos, SAB,
de arqueologia do país, a Sociedade de Ministério Público Federal – MPF e Iphan ao longo de todo o
processo que resultou na publicação da Instrução Normativa
Iphan nº 01 de 2015 está registrado em artigo de Saladino (2010)
22. Campo: aqui empregado na acepção de Bourdieu (1989). e tese de doutoramento de Stanchi (2017).
forte antagonismo dos arqueólogos, manifes- novos arqueólogos – corroborava minhas

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


tado de forma coletiva, em relação à atuação impressões24. Pela primeira vez o órgão,

A C I O N A L
do Instituto. Na verdade, minhas principais conhecido como uma “casa de arquitetos”,
impressões decorrem, ainda hoje, do meu passaria a ter, em algumas superintendências,
estranhamento acerca das manifestações que mais arqueólogos, dessa vez com formação

N
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pareciam mais preocupadas em questionar específica na área, do que qualquer outra
a legitimidade de um órgão público em ela- categoria profissional; e, por fim, meu

A
borar uma normativa, do que, precisamente, entendimento era o de que a futura instrução

E
discutir os aspectos técnicos ou as implicações normativa melhoraria, de forma significativa,

I S T Ó R I C O
daquilo que tinha acabado de ser apresen- os procedimentos para a realização das
tado. De uma forma geral, é possível dizer pesquisas arqueológicas no contexto dos

Roberto Stanchi
que as preocupações externadas durante o licenciamentos.

A T R I M Ô N I O
evento não guardavam relação direta com o Durante a continuidade do longo
patrimônio arqueológico, mas com o fato processo de elaboração, discussão e

P
das pessoas que ali estavam representando o aprimoramento da minuta que viria a se

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Iphan terem ou não capacidade de conceber tornar a Instrução Normativa Iphan n° 01,

E V I S T A
as propostas realizadas e, em especial, condu- pude participar de inúmeros seminários e
audiências públicas que se propuseram a

R
zir o processo de mudanças. A partir dos em-
bates que foram travados após a apresentação discutir o documento. É interessante notar
da proposta, é possível dizer que, dessa reu- como a “cena participativa” dessas reuniões,
nião em diante, os discursos da diretoria da em especial a audiência pública ocorrida no
SAB em relação ao Iphan voltaram aos duros Rio de Janeiro, é organizada para atingir
termos da década de 1980. um fim específico, como demonstra Bronz
Confesso que o estranhamento era (2011). Esses eventos, caracterizados por
normas de condutas preestabelecidas acerca 197
duplo, pois enquanto arqueólogo do Iphan,
acostumado ao fato da arqueologia ter sido, de como devem ocorrer as discussões,
por décadas, relegada a um papel secundário deixavam evidente a utilização de um modelo
na Instituição, minha impressão naquele predeterminado de persuasão que começava
momento era totalmente diferente. No meu a transparecer na definição dos participantes,
caso, talvez fortemente influenciado pela escolhidos pelo próprio Ministério Público
minha “visão intramuros”, a arqueologia, por Federal, refletindo um desequilíbrio na defesa
força de uma conjuntura específica, estava das ideias que foram debatidas25.
assumindo um protagonismo crescente Após quase dois anos de intensas
dentro do órgão. O fato de toda a Direção do discussões e, sobretudo, do recebimento de
Instituto estar envolvida no fortalecimento
24. Concurso para servidores temporários realizado no ano
da área – solicitando formalmente ao seguinte (2015), que, ao contrário do concurso de 2005, exigia
Ministério do Planejamento e à Casa Civil da em seu edital formação específica na área de arqueologia.
25. Para discutir a Instrução Normativa do Iphan, o MPF con-
Presidência da República a realização de um vocou três procuradores federais, o promotor de justiça de Minas
Gerais, a diretoria da SAB e a presidente do Iphan, que nessa
concurso que previa a admissão de oitenta audiência foi representada por um diretor e um coordenador.
contribuições advindas dos mais variados específico de verificação do cumprimento
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

agentes envolvidos com a preservação do das condicionantes; e, por fim, a exemplo da


A C I O N A L

patrimônio arqueológico26, no dia 25 de área ambiental, níveis distintos de requisição


março de 2015 a Instrução Normativa dos estudos.
nº 01/2015 do Iphan foi publicada. O
N

Contudo, cinco dias após a sua


R T Í S T I C O

documento alterou significativamente a publicação, mais especificamente no dia


forma como as pesquisas arqueológicas 30 de março de 2015, a SAB publicou, em
A

passaram a ser desenvolvidas no âmbito dos seu sítio eletrônico, um comunicado em


E

estudos ambientais, reposicionando o Iphan


I S T Ó R I C O

que se disse surpreendida com a publicação


como protagonista no processo de tomada da Instrução Normativa, documento que
de decisão em relação à preservação do vinha sendo discutido há quase dois anos
H

Roberto Stanchi

patrimônio arqueológico, durante todas as


A T R I M Ô N I O

com diversos interessados, inclusive com


fases do processo de licenciamento. a própria Sociedade, mas reconheceu
A instrução normativa também alterou que o texto final incorporou algumas das
P

significativamente a gramática do Iphan recomendações enviadas. Apontou aquilo


D O

na utilização de diversas terminologias, que considerou o “descaso do Poder Público


E V I S T A

que passaram a permitir um melhor com relação à construção democrática de


R

diálogo institucional com os órgãos de políticas públicas voltadas para a arqueologia”


meio ambiente, substituindo termos como e, por fim, conclamou os arqueólogos
diagnóstico, prospecção e resgate como para comparecerem “em massa” à próxima
sinônimos de fases do licenciamento pela assembleia da Sociedade que seria realizada
utilização de novos conceitos e elementos. no mesmo ano27.
Dentre outras novidades, as mudanças É importante destacar que nenhum
estabeleceram: a Ficha de Caracterização de outro documento normativo relacionado ao
198
Atividade – FCA, que, no caso do Iphan, patrimônio arqueológico, até então publicado
equivale às fases de screening e scoping para pelo Iphan, havia passado por tantos ciclos de
requisição dos estudos; a obrigatoriedade
debates junto aos arqueólogos, não obstante
da emissão de um termo de referência para
o também inédito escrutínio do Ministério
cada empreendimento; a recomendação da
Público Federal.
preservação in situ como regra principal;
No entanto, analisando o histórico do
o estabelecimento do projeto de avaliação
Iphan e suas práticas institucionais, em
de impacto ao patrimônio arqueológico
especial, a forma com que o Instituto lidou
como condição sine qua non para que o
com o patrimônio arqueológico ao longos
órgão pudesse deliberar sobre a viabilidade
dos seus oitenta anos, delegando, por diversas
de determinado empreendimento; a
vezes, a responsabilidade de sua preservação,
necessidade de uma programa de gestão
não surpreendeu o posicionamento da
do patrimônio arqueológico; o momento
27. Comunicado de 30 de março de 2015, disponível no sítio
26. Ver Stanchi, 2017. eletrônico da SAB: www.sabnet.com.br.
SAB, bem como a forte contrariedade de a participação do Iphan no processo de

O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações


muitos arqueólogos em relação ao órgão no licenciamento ambiental, na medida em

A C I O N A L
período em que a nova instrução normativa que os órgãos de meio ambiente começaram
foi discutida. Assim como não surpreendeu a demandá-los, conforme os requisitos
que, naquele contexto, muitos arqueólogos previstos na Instrução Normativa, para a

N
R T Í S T I C O
tenham desconsiderado o fato de que realização de pesquisas arqueológicas.
partiu do Iphan o movimento de levar ao Ou seja, a partir do novo documento

A
conhecimento de todos os associados da normativo, o Iphan passou a participar, cada

E
SAB, durante a realização do seu Congresso vez mais, dos processos de licenciamento

I S T Ó R I C O
Nacional, os princípios que norteavam a ambiental de inúmeras tipologias de
elaboração do documento, abrindo, desde o empreendimentos que antes não participava,

Roberto Stanchi
primeiro instante, um canal de comunicação e, por decorrência, solicitando um número

A T R I M Ô N I O
exclusivo para tratar do assunto. ainda maior de pesquisas arqueológicas,
Acredito que, em certa medida, toda essa algo só reconhecido pelos arqueólogos e,

P
tensão confirma a tese de que o modelo de em especial, pela SAB após um ano de sua

D O
delegação, adotado por mais de quarenta publicação.

E V I S T A
anos (1937-1967 e 1967-1979), deixou A forte reação de alguns segmentos
rastros, na medida em que, até os dias atuais,

R
empresariais, em especial aqueles que, sob
tenta-se negar ao Iphan as suas atribuições o regramento da Portaria Iphan 230/02,
e as de seu corpo técnico, mesmo neste estavam isentos da realização de pesquisas
caso onde, de maneira sem precedentes, arqueológicas, fez com que um deputado
a Instituição buscou uma construção federal do estado do Mato Grosso,
participativa desde o primeiro momento. Os representando o chamado agronegócio,
arqueólogos, por sua vez, souberam utilizar apresentasse ao Congresso Nacional o
199
a liberdade a eles conferida, legitimando Projeto de Decreto Legislativo n° 540, cujo
suas práticas sem praticamente qualquer principal objetivo era “sustar a aplicação da
ingerência estatal. Instrução Normativa n° 01 de 2015”, tendo
Entretanto, passados dois anos de como justificativa a excessiva burocratização,
sua publicação, ao contrário de algumas a morosidade e os “altíssimos custos
previsões pessimistas que chegaram a financeiros” que a norma estava acarretando
anunciar o “fim da arqueologia preventiva”28 ao setor empresarial do país.
no país, alguns setores empresarias, antes Assim, no final de 2016, através de
isentos de qualquer tipo de avaliação de novo comunicado publicado em setembro
impacto ao patrimônio arqueológico, de 2016, a SAB se posicionou contra essas
rapidamente passaram a ver como excessiva ações, apoiando o Iphan e reconhecendo
que sustar a instrução normativa significaria
28. Em carta endereçada aos arquelógos brasileiros e à presidente “fragilizar os principais mecanismos de
do Iphan, um promotor da República, fortemente envolvido
no processo de contestação da Instrução Normativa, referiu-se à proteção ao patrimônio arqueológico”,
norma como uma “aberração”, sentenciando o fim das pesquisas
arqueológicas preventivas no país. podendo “vir a comprometer também o
processo de licenciamento ambiental, pois a REFERÊNCIAS
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações

IN define critérios que podem interromper o


A C I O N A L

andamento dos processos”29. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABRAMS, Philip. “Notes on the difficulty of studying
Portanto, conforme procurei demonstrar, the State”. Journal of Historical Sociology, v. 1, nº 1, p.
N

as tensões cíclicas entre os arqueólogos e 58-89, 1988.


R T Í S T I C O

o Iphan historicamente se agravaram nos BRONZ, Deborah. Empreendimentos e empreendedores:


formas de gestão, classificação e conflitos a partir do
momentos em que o Instituto estabelecia
licenciamento ambiental, Brasil, século XXI. (Tese de
A

regramentos que incidiam na forma com que Doutorado). UFRJ/PPGAS, Museu Nacional. Rio de
E

Janeiro, 2011.
I S T Ó R I C O

as pesquisas arqueológicas eram desenvolvidas


e se distensionavam à medida que eram CALDARELLI, Solange Bezerra; SANTOS, Maria do
Carmo Mattos Monteiro dos. Arqueologia de contra-
introjetados.
H

to no Brasil. Revista USP, nº 44, p. 52-73, São Paulo,


Roberto Stanchi
A T R I M Ô N I O

Por fim, nos últimos anos, parece que, en- dez.1999-fev.2000.


quanto arqueólogos, SAB e Iphan disputaram CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese
das práticas de preservação do patrimônio cultural no
entre si a legitimidade da condução das ações
Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
P

voltadas para a preservação do patrimônio ar-


D O

2009.
queológico, representantes de setores empre-
E V I S T A

FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em


processo: trajetória da política federal de preservação no
sariais, como habitação, agronegócio e mine-
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
R

ração se organizaram, passando a atuar junto


FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Coleção
aos seus representantes no poder legislativo Ditos e Escritos v. II. São Paulo: Loyola, 2008a.
para questionar não apenas o novo regramen- ______. Segurança, território, população. São Paulo:
Martins Fontes, 2008b.
to de proteção do patrimônio utilizado pelo
LIMA, Tania Andrade. A proteção do patrimônio ar-
Iphan no âmbito do licenciamento ambiental,
queológico no Brasil: omissões, conflitos, resistências.
mas a própria política ambiental existente, Revista de Arqueologia Americana, nº 20, México, Institu-
demonstrando, atualmente, a fragilidade to Panamericano de Geografía e Historia, Organización
200
de los Estados Americanos, p. 51-79, 2001.
dos argumentos positivos, tradicionalmente
______. Atas do simpósio A Arqueologia no Meio Empresa-
manejados sob o viés preservacionista, mas rial. Goiânia: Universidade Católica de Goiás/Sociedade
que, como sabemos, não são compartilhados de Arqueologia Brasileira, 2002.

por grande parte da sociedade, colocando em ______. Luiz de Castro Faria: também um arqueólo-
go. Memórias de Ciência e Tecnologia, Série Produção
cheque a preservação do patrimônio e a exis- Científica Brasileira, Centro de Memória do Conselho
tência do próprio órgão federal no momento Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq, Brasília, 2009.
em que completa seus oitenta anos.
LOWANDE, Walter Francisco Figueiredo. “Historio-
grafia e patrimônio: singularidades narrativas e práticas”.
In: CHUVA, Márcia; NOGUEIRA, Antonio Gilberto
Ramos (orgs.). Patrimônio cultural: políticas e perspec-
tivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, ,
2012, p. 79-92.
______. Em busca da autenticidade primitiva: as ações
de preservação do patrimônio arqueológico e etnográ-
29. Comunicado de 21 de novembro de 2016, disponível no sítio fico no Brasil (1937-1961). In: XXVII SIMPÓSIO
eletrônico da SAB: www.sabnet.com.br. NACIONAL DE HISTÓRIA: CONHECIMENTO
HISTÓRICO E DIÁLOGO SOCIAL. Natal, jul.2013, STANCHI, Roberto Pontes. A proteção do patrimônio

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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

202
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural
Yussef Daiber t Salomão de Campos

a c i o n a l
d esafios proposTos pela c onsTiTuição de 1988

n
ao paTrimônio culTural

r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
inTrodução e Papuri; o Complexo Cultural do Bumba-
meu-boi do Maranhão; o Modo Artesanal de
A Constituição Federal de 1988 foi, sem Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro

P
e das serras da Canastra e do Salitre/Alto

d o
dúvida, uma ponte para a atual dimensão

e v i s t a
que hoje temos do patrimônio: deixa de Paranaíba; o Ritual Yaokwa do povo indígena
ser “histórico e artístico” para se tornar Enawenê Nawê; Ritxòkò: expressão artística

r
“cultural”, ao menos pela perspectiva jurídica, e cosmológica do povo Karajá; o Sistema
assim como a categoria imaterial e o registro Agrícola Tradicional do Rio Negro; o Toque dos
adentram o ordenamento jurídico pátrio. Ao Sinos em Minas Gerais tendo como referência
determinar, no caput de seu artigo 216, que São João del-Rei e as cidades de Ouro Preto,
“constituem patrimônio cultural brasileiro Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo,
os bens de natureza material e imaterial”; Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes1.
e, no §1º do mesmo artigo, que “o poder O desafio de atender à ampliação 203

público, com a colaboração da comunidade, conceitual trazida pela Carta de 1988 ao


promoverá e protegerá o patrimônio cultural Iphan já foi exaustivamente tratado (Abreu e
brasileiro, por meio de inventários, registros Chagas, 2003; Fonseca, 1997, 2003, 2005;
(...)”, a Constituição abriu as portas para Gonçalves, 1996; Sant’Anna, 2003; Campos,

que se legislasse, especificamente, sobre o 2010 etc.). Contudo, gostaria de aqui trazer

patrimônio imaterial, regulamentado via algumas questões que perpassam, direta ou


indiretamente, o campo do patrimônio, a
Decreto no 3.551/2000.
partir da dinâmica da Constituição e de seu
A partir daí foram registrados bens
processo constituinte. Trata-se de perscrutar
referentes “à identidade, à ação, à memória
o reconhecimento de terras indígenas e
dos diferentes grupos formadores da sociedade
quilombolas e sua vinculação aos seus
brasileira” (Brasil, 1988). Para ficar em alguns Arte popular
Acervo: Copedoc/Iphan/
patrimônios. Marcel Gautherot.
exemplos, a Arte Kusiwa, pintura corporal e arte
gráfica Wajãpi; a Cachoeira de Iauaretê, lugar
1. Para maiores informações: http://portal.iphan.gov.br/pagina/
sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés detalhes/228.
Para isso, além de indicar alguns exemplo, índios”2; Antonio Augusto Arantes,
Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural

dispositivos diretamente relacionados ao antropólogo e representante da Associação


A C I O N A L

patrimônio, como os presentes no artigo Brasileira de Antropologia – ABA na ANC,


216, buscarei outros dispersos pelo texto estabelece, sobre o que ficou determinado
constitucional. Essa dispersão trouxe alguns
N

pelos constituintes no §5º do artigo 216


R T Í S T I C O

efeitos à interpretação e aplicação de normas (tombamento dos sítios quilombolas) e a


constitucionais que resultam, claramente, em comemoração do centenário da Abolição da
A

desafios ao Iphan na gestão do patrimônio Escravatura em 1988: “Eu acho que ‘jogaram
E

cultural brasileiro. para a plateia’”3. Sobre o mesmo parágrafo,


I S T Ó R I C O

Waldimiro de Souza, então presidente do


CONTEXTOS Centro de Estudos Afro-brasileiros – Ceab,
H
A T R I M Ô N I O

diz que “aquilo tudo foi de brincadeira”4.


Há muito o que dizer sobre o patrimônio Arantes destaca a mácula da redução
cultural no âmbito do mais recente da condição cultural brasileira ao que
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s
P

processo constituinte pátrio e o que a Carta ele denomina “mito das três raças” que
D O

Constitucional nascida dele oferece como construíram a nação. Subjugar essa cultura a
E V I S T A

desafios propostos a partir do fim da década matrizes estereotipadas engessa a percepção


R

de 1980. Questões indeléveis sobre a posse antropológica de cultura e cria matizes


e a propriedade de terras, locais de práticas simplificados onde há uma aquarela de
culturais e de vivência de valores e costumes expressões culturais diversas. Esse mito é
– indispensáveis para a patrimonialização de tratado pelo antropólogo como um
bens culturais –, foram pontos polêmicos na
Assembleia Nacional Constituinte – ANC (...) freio ideológico, mental, que atuava
(1987-1988). Para isso, devo apresentar, realmente nas pessoas presentes ali. Não tinha
204
ainda que brevemente, como cada grupo como mudar a cabeça das pessoas a esse respeito...
social participou e como cada reivindicação era um limite real5.
foi atendida. Já se trata de um primeiro (...)
tópico dissonante, de acordo com memórias Veja que o mito das três raças, o mito das
três raças no DNA da nação de cultura brasileira,
aqui trazidas por participantes da ANC. Com
a maldição das três raças, continua aqui. Mas
funções e representações das mais distintas,
não é certo que as pessoas não estivessem alertas
alguns deles foram por mim entrevistados
para isso, tanto que no capítulo sobre os direitos
para o desenvolvimento de minha tese de indígenas houve avanços importantíssimos. Mas
doutorado, que tem neste artigo um de seus quanto ao tombamento dos “documentos e os sítios
frutos. Vejamos alguns desses depoimentos.
Enquanto Octávio Elísio, deputado 2. Entrevista concedida ao autor em 3 de junho de 2013, na cidade
de Belo Horizonte, Minas Gerais.
constituinte pelo PMDB/MG, afirma 3. Entrevista concedida ao autor em 29 de abril de 2013, na cidade
que “houve várias, evidentemente, de São Paulo, capital.
4. Entrevista concedida ao autor em 10 de abril de 2013, da cidade
manifestações (...) muito mais simbólicas de Brasília, por telefone.
5. Entrevista concedida ao autor em 29 de abril de 2013, na cidade
do que efetivamente contribuição, por de São Paulo, capital.
detentores de reminiscências históricas dos antigos exclusão social” (Carneiro, 2002: 182); a luta

Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural


quilombos”... Não se pode esquecer que 1988 é o para a obrigatoriedade do ensino sobre História
ano do Centenário da Lei Áurea. Além disso, esse e Cultura Afro-Brasileira nas escolas de Ensino

A C I O N A L
parágrafo esquece que o tombamento é um processo Fundamental e Médio (Santos, 2005:33); intenso
jurídico-administrativo extremamente complexo, movimento pela aprovação do Projeto de Lei

N
que deve atender determinadas exigências, a das Cotas Raciais (PL 73/99). Amauri Mendes

R T Í S T I C O
primeira das quais é a precisa identificação de seu Pereira indica que a partir desse momento os
objeto. Um tombamento genérico como esse cria militantes negros afirmam a “necessidade de

A
expectativas, ao mesmo tempo que não atende a tornar a luta contra o racismo uma luta de toda a

E
I S T Ó R I C O
nenhuma; ele cria o direito e o dever de preservar sociedade brasileira” (Pereira, 2009:224). Um dos
uma categoria indefinida de bens6. pontos de pauta defendido por esse movimento
foi apresentado durante a preparação para o

H
processo Constituinte em 1987, na 1º Convenção

A T R I M Ô N I O
Em relação aos movimentos negros (como
Nacional do Negro pela Constituinte, realizado
o Movimento Negro Unificado – MNU),
em Brasília, nos dias 26 e 27 de agosto de 1986,
desde a década de 1970 podemos identificar

Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s
convocado pelo Movimento Negro Unificado

P
mobilizações em torno da democratização

D O
(MNU). Estes apresentaram a proposta de uma
do país. Suas reivindicações encontrarão eco

E V I S T A
norma que garantisse os direitos das comunidades
não só na virada entre as décadas 1970 e negras rurais do Brasil. Os deputados

R
1980, embora dificultadas pelo viés militar da Constituintes ligados a esse movimento, como
política, como também marcarão presença na por exemplo, Carlos Alberto Caó (PDT/RJ) e
própria Constituinte, na atuação parlamentar, Benedita da Silva (PT/RJ), apresentaram essa
questão durante o processo Constituinte (1987-
por exemplo, da primeira congressista
1988). Após vários embates aprovou-se o art.
negra do país: Benedita da Silva. A respeito,
68 do Ato das Disposições Constitucionais
Cardoso e Gomes (2011) afirmam: Transitórias (ADCT) na Constituição de
1988 que determina que “aos remanescentes 205
Com o nomeado ”fervilhar dos anos de 1970”, das comunidades dos quilombos que estejam
o Movimento Negro Unificado (MNU) passa ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
tanto a denunciar, de modo mais sistemático, o definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
racismo como parte estruturante da sociedade respectivos (Cardoso e Gomes, 2011).
brasileira quanto exige políticas de ações
afirmativas para um amplo escopo de demandas.
Sobre os antecedentes da ANC, o
antropólogo Alfredo Wagner Berno de
Posso enumerar algumas exigências
Almeida indicou que “em 1986, ocorreu o I
que fariam parte da Constituinte que se
Encontro das Comunidades Negras Rurais
aproximava:
no Maranhão. Havia uma certa mobilização”,
Pode-se citar o exemplo da organização das
como contextualização do engajamento
mulheres negras, em especial no “combate às político em era de assembleia constituinte.
diversas manifestações de racismo, sexismo e Determinando a gênese das exigências sobre
os sítios quilombolas e da organização dos
6. Idem. grupos reivindicantes, enfatizou que
(...) o falar em ”terras de preto” pelos vê, são 20 anos... 25 anos. Mas o que é
Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural

corredores em Brasília por si só já prenunciava quilombo? Quilombo é o território ocupado


uma determinação de existência e uma forma por uma população insurgente? Até que data? E
A C I O N A L

organizativa. Uma já dialogava com a outra. aqueles que continuaram lá, continuam sendo
quilombolas? Onde se faz o corte temporal
N

desse objeto? Muitas populações quilombolas


R T Í S T I C O

Porém, não houve uma determinação


reivindicam o direito - e com razão - às terras
semântica sobre o que seria terra de preto e
que ocupam, e que vêm ocupando há gerações,
sítio quilombola.
A

muitas vezes sem serem capazes de traçar


E
I S T Ó R I C O

exatamente todos os elos da cadeia que os ligam


O que não havia e não houve naquele aos seus antepassados. (...). Outro problema
momento foi uma interpretação do movimento é que a questão fundiária relacionada aos
H

negro das ”terras de preto” enquanto quilombos. quilombos é atribuição do Incra. O documento
A T R I M Ô N I O

Isso foi posterior. A ressemantização ocorreu ainda apresentado na Audiência Pública em nome
em 1988, mas posterior à Constituição (Berno da ABA refere-se ao direito à diferença e aos
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s

apud Dias, 2009:30). territórios dos quais depende a reprodução dessa


P
D O

diferença, como são, por exemplo, as terras


E V I S T A

Em mesmo sentido, Arantes proclama indígenas e quilombolas9.


que essas atribuições semânticas possuem
R

implicações jurídicas muito importantes. Para Waldimiro de Souza, as políticas


“Uma delas, nesse caso, por exemplo, públicas voltadas aos negros e sua ingerência
diz respeito ao conceito de quilombo e na ANC teriam que ser aceitas naturalmente,
à propriedade fundiária” . Questiona e
7
pois, “querendo ou não, nós somos a
responde: “Então, o que acontece? ” . 8
maioria”10. Todavia, politicamente não
eram: “Nós não fomos considerados como
O tombamento no plano federal é uma maioria. Se não estamos com poder não
206
atribuição do Iphan; entretanto, nesta área somos maioria. (...). A maioria só no poder.
especificamente, essa instituição não pode atuar
Não temos os cargos”11. A expectativa criada
sozinha. Ela depende da Fundação Palmares, na
pela convocação da ANC permitiu a (re)
medida em que esta é a instituição responsável
organização de setores da sociedade que se
pela identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por encontravam desarticulados. A possibilidade
remanescentes das comunidades dos quilombos. de figurar no parlamento como protagonista
Sendo, ambos, órgãos do Ministério da Cultura, do estabelecimento de um Estado de Direito
espera-se que eles operem com entendimentos repercutiu nos movimentos sociais como
compatíveis do que venha a ser quilombo, mas chance única de atendimento às ambições de
este é um assunto extremamente controvertido. reconhecimento. Mas que frustrou alguns,
Pelo menos era até 2006, quando eu deixei
como Waldimiro.
a Presidência do órgão de preservação. Você

9. Idem.
7. Entrevista concedida ao autor, em 29 de abril de 2013, na cida- 10. Entrevista concedida ao autor, em 10 de abril de 2013, da
de de São Paulo, capital. cidade de Brasília, por telefone.
8. Idem. 11. Idem.
Tambor de Crioula
Acervo: Arquivo Iphan.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
207

Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural


Quanto ao indígena, segundo Egon Heck Ailton Krenak diz que a participação
Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural

(2009:67-68), representante do Conselho indígena foi organizada. Diz que participou


A C I O N A L

Indigenista Missionário do Mato Grosso do


Sul – CIMI/MS na ANC: (...) como membro de um segmento da nossa
sociedade que estava demandando ao Congresso
N
R T Í S T I C O

Foram três anos de intensos debates, desde questões de direitos que ainda não estavam
o momento em que foi aprovado o processo definidos. E demandando como parte da sociedade
Constituinte. O movimento indígena, então mobilizada em torno destes novos direitos; (...)
A

eram novos direitos de certa maneira, mas eram


E

articulado pela União das Nações Indígenas


I S T Ó R I C O

novos direitos que tinham implicação direta


(UNI), encontrava-se um tanto desgastado.
com a fruição (...) da nossa cultura, das nossas
Foi o momento de oxigenar o movimento, a
práticas, ligadas com a saúde, com a educação,
H

partir das regiões e das mobilizações. Apesar das


com a memória, com o próprio acervo material da
A T R I M Ô N I O

discordâncias em relação às estratégias a serem


cultura (...)12.
adotadas quanto às propostas e metodologias a
serem utilizadas para a conquista dos direitos
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s

DINÂMICA
P

indígenas, as forças foram se aglutinando no andar CONSTITUINTE


D O

do processo, resultando na histórica vitória com a


E V I S T A

aprovação por quase unanimidade do Título VIII, O legislador de 1987/1988 desagregou


Capítulo VIII, art. 231 (...). textos que nasceram indissociáveis. Os
R

artigos 67 e 68 do Ato das Disposições


Oliveira completa, ainda sobre a Constitucionais Transitórias – ADCT assim
participação indígena, que: dispõem:

Desde a aprovação da proposta de realização Art. 67. A União concluirá a demarcação das
de uma Assembleia Constituinte, em 1985, terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da
208 as organizações indígenas e de apoio à causa promulgação da Constituição.
indígena, além de juristas, movimentaram- Art. 68. Aos remanescentes das comunidades
se para debater a questão. Foram produzidas dos quilombos que estejam ocupando suas terras
propostas de estudos no campo do Direito é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
Internacional Comparado; inovação de leis; o Estado emitir-lhes os títulos respectivos
documento com propostas apresentado ao (Brasil, 1988).
governo brasileiro por meio do Ministro da
Justiça e ao Presidente da Comissão de Estudos Durante a constituinte, esses textos
Constitucionais, Afonso Arinos, nomeado na estavam alocados, originalmente, aos textos
época pelo Presidente da República. Documentos que se transformaram nos artigos 231, §
que sintetizavam as demandas das populações 1º, e 216, § 5º, que foram aprovados com a
indígenas também foram elaborados e enviados
seguinte redação (Brasil, 1988):
ao Congresso Nacional, além da promoção de
Art. 231, § 1º - São terras tradicionalmente
intensa discussão no âmbito da sociedade civil
ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
organizada em conjunto com o movimento
indígena, juristas, academia e mídia (Oliveira,
12. Entrevista concedida ao autor, em 3 de junho de 2013, em
2009:94-95). Belo Horizonte, Minas Gerais.
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades definam as áreas dos índios urgentemente.

Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural


produtivas, as imprescindíveis à preservação dos Entendo que como já há outro artigo na
recursos ambientais necessários a seu bem-estar Constituição, se não me engano é o artigo 198,

A C I O N A L
e as necessárias à sua reprodução física e cultural, que trata dos direitos indígenas, talvez seja
segundo seus usos, costumes e tradições. desnecessário incluir aqui esta mesma questão

N
Art. 216, § 5º - Ficam tombados todos social. Não tenho uma posição formada, mas acho

R T Í S T I C O
os documentos e os sítios detentores de que os direitos das comunidades indígenas já estão
reminiscências históricas dos antigos quilombos. inseridos na Constituição. E temos de lutar para

A
preservá-los14. (grifo nosso)

E
I S T Ó R I C O
Durante a Assembleia Constituinte havia,
ao fim do que apresenta o parágrafo 1º do Como lutar para preservar aquilo
que se entende desnecessário? A reforma

H
artigo 231 acima referido, a expressão

A T R I M Ô N I O
que irá reconhecer a propriedade de terra
(...) segundo seus usos, costumes e tradições, de índios não será tratada em Comissão
competente? Encarar assim esse tema, como

Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s
estando incluídas as áreas necessárias à preservação

P
do meio-ambiente e do seu patrimônio cultural . 13
fizeram Lobão e Oliveira, me faz buscar em

D O
Bourdieu (2007:11) uma ratificação de meu

E V I S T A
Logo, vejamos: a relação entre patrimônio posicionamento. Afirma ele que

R
e propriedade da terra estava previamente
estabelecida. Esses irmãos siameses – terra (...) as diferentes classes e frações de classes
e cultura – não poderiam ser desvinculados estão envolvidas numa luta propriamente
simbólica para imporem a definição de mundo
sem o risco de morte para ambos. Interesses
social mais conforme aos seus
de proprietários de terra e de latifundiários
interesses (...).
falaram mais alto. A comissão destinada à
Reforma Agrária, presidida por Edison Lobão 209
Claro
(Partido da Frente Liberal – PFL/MA), em
está qual
toda sua extensão de tratativas, nada debateu
foi a visão
sobre os quilombolas e, quanto aos indígenas,
vitoriosa nesse
foi limitada. Nos dizeres de Dante de
processo.
Oliveira, então Ministro da Reforma Agrária:

(...) a questão indígena tem a minha total


solidariedade fui e sempre serei um defensor forte
da questão indígena. Os índios têm o direito
sagrado de terem as suas terras. E as reservas
indígenas devem ser demarcadas definitivamente
para que reine a paz e a tranquilidade e que

13. Anexo à Ata da 3ª Reunião da Subcomissão dos Negros, Po- 14. Anexo à Ata da décima terceira reunião ordinária da subcomis-
pulações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. 22 de abril de são da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, realizada
1987. em 6 de maio de 1987.
N O TA S REFERÊNCIAS
Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural

FINAIS
A C I O N A L

Ao desentranhar do texto permanente DOCUMENTOS

o reconhecimento de posse e propriedade BRASIL. Sugestões apresentadas. 1987. Assembleia


Nacional Constituinte, 1987-1988, p. 1-410.
N

de terras de comunidades centenariamente


R T Í S T I C O

marginalizadas, o constituinte lega ao Iphan a BRASIL. Atas da Subcomissão da Educação, Cultura e


Esportes. Assembleia Nacional Constituinte, 1987-1988,
difícil tarefa de gerir bens culturais vinculados p. 1-570.
A

a demandas cujos órgãos competentes nem BRASIL. Atas da Comissão da Família, da Educação,
E
I S T Ó R I C O

sempre estão em permanente e profícuo Cultura e Esportes, da Ciência, e Tecnologia e da


diálogo, como Incra e Fundação Palmares. Comunicação. Assembleia Nacional Constituinte, 1987-
1988, p. 1-280.
Além de provocar a incidência de uma maior
H

BRASIL. Atas da Subcomissão dos Negros, Populações


A T R I M Ô N I O

burocracia e a necessidade premente de


Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Assembleia
negociações políticas de alto vulto. Nacional Constituinte, 1987-1988, p. 1-194.
Testemunhei desde a Ação Direta de
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s

BRASIL. Atas da Comissão da Ordem Social. Assembleia


P

Inconstitucionalidade perante o STF para Nacional Constituinte, 1987-1988, p. 1-189.


D O

questionar o Decreto no 4.887/2003, que


E V I S T A

BRASIL. Atas da Subcomissão da Política Agrícola e


tratou de regulamentar a propriedade Fundiária e da Reforma Agrária. Assembleia Nacional
Constituinte, 1987-1988, p. 1-300.
R

de sítios quilombolas, até massacres de


BRASIL. Atas da Comissão da Ordem Econômica.
indígenas em disputa pela terra, como tem
Assembleia Nacional Constituinte, 1987-1988, p. 1-169.
acontecido em Mato Grosso e Mato Grosso
BRASIL. Sugestões da população para a Assembleia
do Sul, por exemplo. Nacional Constituinte de 1988. Sistema de apoio
A Carta política de 1988 “apresenta Informático à Constituinte – Saic, Assembleia Nacional
direitos às classes subalternas, mas muitos Constituinte, 1987-1988. Disponível em: http://
www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/
deles nunca foram implementados (...)”, Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-
210
conforme Barbosa (2016:259). Ao tentar Constituinte/sugestao-dos-cidadaos. Acesso em janeiro
atender ao que dispõem os artigos citados, de 2015.

o Iphan tem a árdua empreitada de mexer COMISSÃO Provisória de Estudos Constitucionais.


“Anteprojeto constitucional”. Diário Oficial da União,
com o vespeiro que é a expressão política da
seção 1, 26 set.1986.
memória: o patrimônio cultural. Poderá ser o
Iphan, no que toca ao binômio patrimônio-
E N T R E V I S TA S
terra, um dos protagonistas a completar a
ARANTES, Antonio Augusto. Entrevista realizada em
lacuna que Florestan Fernandes chamou de
29/4/2013. São Paulo (SP). Acervo pessoal.
“Constituição Inacabada” (1989).
ELÍSIO, Octávio. Entrevista realizada em 15/4/2013.
Belo Horizonte (MG). Acervo pessoal.

KRENAK, Ailton. Entrevista realizada em 03/6/2013.


Belo Horizonte (MG). Acervo pessoal.

SOUZA, Waldimiro. Entrevista realizada em 11/4/2013.


Brasília (DF). Acervo pessoal.
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Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural


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p. 56-76.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

212
Milton Guran Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
Milton Guran

A C I O N A L
S OBRE O LONGO PERCURSO DA MATRIZ AFRICANA

N
PELO SEU RECONHECIMENTO PATRIMONIAL COMO UMA

R T Í S T I C O
CONDIÇÃO PARA A PLENA CIDADANIA

A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Quando o Serviço do Patrimônio consolidar a construção de uma memória
Histórico e Artístico Nacional, primeira social e histórica europeizada e para promover
versão do Iphan, foi criado, estávamos a sistemática desvalorização e mesmo o

P
distantes duas gerações apenas do término apagamento do aporte africano à construção

D O
E V I S T A
do maior e mais longevo regime escravagista da nacionalidade.
das Américas. Em mais de três séculos, o A institucionalização de um projeto

R
Brasil tinha absorvido cerca de 4 milhões, republicano de construção de memória
dos 10 milhões de cativos africanos, que, ganhou relevância a partir da década de
estima-se, tinham chegado vivos neste 1930, um momento em que se vivia uma
lado do Atlântico, vítimas do tráfico, hoje espécie de refundação do Estado brasileiro,
considerado crime contra a humanidade. quando tomou corpo o debate a respeito
Esse contingente de mão de obra forçada da composição da população brasileira
viabilizou o projeto colonial português e a e da construção da identidade nacional. 213
posterior consolidação da nação brasileira. Datam desse período as principais obras de
Salvador e Rio de Janeiro, sucessivas capitais Arthur Ramos e Gilberto Freyre, para citar
do país, chegaram a ter mais da metade da sua apenas dois dos autores mais polêmicos
população composta por africanos e crioulos que colocaram a questão racial em primeiro
escravizados ou libertos e por africanos livres plano nos debates sobre a identidade
que aqui viviam. nacional. Mário de Andrade, por sua vez,
Essa situação era incompatível com o organiza por essa época o Departamento
projeto colonial e civilizatório ocidental, de Cultura e Recreação da Prefeitura de
tendo sido, desde o Segundo Império, São Paulo e inicia seu ambicioso projeto de
objeto de todo tipo de ações de Estado para pesquisa sobre folclore e cultura popular, que
revertê-la. Às óbvias políticas de imigração iria levá-lo a fundar, em 1937, a Sociedade
visando ao branqueamento demográfico e à de Etnografia e Folclore.
substituição da mão de obra negra pela do Esse debate foi bem capitalizado pelo Lavagem simbólica
do Cais do Valongo.
imigrante europeu somaram-se medidas para governo Vargas, que acabara de enfrentar Foto: Milton Guran.
seu maior desafio com a Revolução escamoteada no discurso oficial, como se
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania

Constitucionalista de 1932 e via na noção observa na definição de patrimônio histórico


A C I O N A L

de patrimônio cultural mais uma forma de e artístico nacional dada pelo art. 1º do citado
promover a unidade nacional. Tanto é que a decreto-lei:
Constituição de 1934 foi a primeira a tratar
N
R T Í S T I C O

diretamente da preservação do patrimônio (...) o conjunto dos bens móveis e imóveis


cultural nacional. Até então, todas as existentes no país e cuja conservação seja de
interesse público, quer por sua vinculação a fatos
A

tentativas de dispor sobre a matéria, desde


E

o Império, tinham esbarrado sempre no memoráveis da história do Brasil, quer por seu
I S T Ó R I C O

excepcional valor arqueológico ou etnográfico,


conceito de propriedade privada absoluta, o
bibliográfico ou artístico.
qual era colocado, dessa forma, acima mesmo
H

da noção de nação.
A T R I M Ô N I O

O seu art. 4º chega a mencionar “coisas


Enterrada a Primeira República, naquele
momento em que novo regime oriundo pertencentes às categorias de arte (...)
ameríndia e popular”, mas sequer cogita em
P

da Revolução de 1930 se propunha a


D O

reorganizar o Estado, a criação de um órgão nomear a matriz africana como produtora


E V I S T A

de patrimônio – observa Lima (2012:37) de algo que merecesse ser preservado, ainda
que como uma parte específica da categoria
R

– esteve relacionada à necessidade de dar


forma à nação a partir de uma unidade “popular”.
coerente representada pelas narrativas O fato é que, no processo de seleção dos
produzidas incialmente no contexto de bens culturais que seriam representativos
da cultura brasileira – ou seja, que dariam
Milton Guran

institucionalização do patrimônio.
Nesse sentido, o ministro da Educação materialidade à identidade nacional –, o
e Saúde Pública Gustavo Capanema lugar de destaque absoluto coube à arte e às
214 edificações ligadas diretamente à colonização
encarregou Mário de Andrade, reconhecido
por suas pesquisas sobre a cultura brasileira, portuguesa, já que o patrimônio cultural a ser
de elaborar o projeto do que viria a ser o preservado era entendido como patrimônio
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico material revestido de caráter monumental.
Nacional – Sphan. Esse projeto, após receber Como as matrizes indígena e africana não
contribuições de Rodrigo Melo Franco de apresentavam edificações que testemunhassem
Andrade, serviu de base para o Decreto-lei suas contribuições, justificava-se, aos olhos
nº 25, de 30 de novembro de 1937, que dos gestores, que o foco deveria estar nos
regulamentou a criação e o funcionamento do exemplares materiais da civilização e da arte
Sphan, o qual foi presidido por Rodrigo Melo europeias.
Franco de Andrade por trinta anos. Cabe lembrar que a salvaguarde e a
Embora a diversidade cultural brasileira preservação eram efetivadas através do
tenha sido um dos fatores que alavancaram tombamento e esse instituto, por definição,
a criação do Sphan, a contribuição africana é aplicável apenas à cultura material. Como
a essa diversidade foi, desde o início, reforça Lima (2012:39),
(...) a escassez de referências das matrizes Interessante notar que esse tombamento,

Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
africanas e indígenas nesse momento inicial que não se enquadra nos princípios então
no campo da preservação poderia ser explicada

A C I O N A L
vigentes na Instituição, foi feito de forma
pela suposta ausência de testemunhos materiais
sumária, sem justificativa ou mesmo descrição
das populações e pela tendência em valorizar as

N
detalhada dos objetos, o que dificulta o
edificações representativas das formas estéticas

R T Í S T I C O
e arquitetônicas europeias. A existência de entendimento da sua razão de ser. Segundo
apenas um instrumento jurídico e o foco na Lima (2012:46),

A
monumentalidade do patrimônio material também

E
contribuíram para que eventuais vestígios materiais (...) a “preocupação” do Sphan que culminou

I S T Ó R I C O
vinculados ao universo cultural negro e indígena na preservação do Museu de Magia Negra não
não fossem valorizados a ponto de fazerem parte pode ser considerada um reconhecimento, nos

H
do conjunto de bens culturais. A maior parte moldes do que se pratica atualmente em relação às

A T R I M Ô N I O
da trajetória da política de preservação no Brasil comunidades quilombolas, terreiros de candomblé
esteve relacionada à manutenção de bens culturais ou mesmo às manifestações de natureza imaterial
representativos de uma elite cultural e social que constituintes do universo cultural afro-brasileiro.

P
construíram por meio dos discursos intelectual

D O
A lógica higienista e a literatura produzida sobre os
e técnico um retrato da nação a partir de um

E V I S T A
negros, no início da atuação do Sphan, indicavam
conjunto específico de bens culturais. uma percepção negativa de suas manifestações

R
culturais objetificada na criminalização de suas
Na prática, então, o órgão encarregado de práticas e na apreensão de seus objetos de culto.
zelar pela proteção do patrimônio histórico e
artístico surgia com a missão precípua de dar Em outras palavras, esse tombamento

Milton Guran
visibilidade, legitimar e garantir perenidade à servia como prova da ligação da cultura
matriz cultural europeia. de matriz africana com práticas então
Nesse quadro, causa estranheza o consideradas ilegais e associadas ao mal.
215
tombamento pelo Sphan, poucos meses Em suma, como analisa Alexandre Corrêa
depois da sua criação, do Acervo do Museu (2006:40, apud Lima, 2012:46), o bem
da Magia Negra, constituído pelas apreensões tombado constitui
da Seção de Toxicos e Mystificações (sic) da
Polícia do Distrito Federal, em cumprimento (...) uma coleção museológica que representa
do artigo 197 do Código Penal Republicano, os conflitos civilizacionais e culturais no campo
de 1890, que proibia “o espiritismo, a magia e religioso brasileiro, do ponto de vista de uma
seus sortilégios”. Inscrito no Livro do Tombo sociedade eurocêntrica, iconoclasta, positivista e
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, cientificista.
esse foi o primeiro tombamento de caráter
etnográfico do país. Segundo Conduru Por tudo isso, Lima (2012:47) sublinha
(2013:199), a solicitação de tombamento que seria equivocado interpretar esse
teria sido feita ao Sphan pelo delegado Silvio tombamento como um reconhecimento
Terra, que empresta seu nome à Acadepol, a de um bem cultural ligado à cultura afro-
Academia Estadual de Polícia Silvio Terra. brasileira, tendo em vista, além do já
exposto, o contexto adverso demonstrado Efetivamente, foram necessários 48 anos –
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania

pelo discurso negativo dominante naquele mais da metade da existência do órgão – para
A C I O N A L

período sobre os afro-brasileiros e suas que outro bem de matriz africana figurasse na
práticas culturais. Contribui ainda para o Lista dos Bens Culturais Inscritos nos Livros
estranhamento, o fato de que o tombamento do Tombo, no caso, a Serra da Barriga (AL)
N
R T Í S T I C O

do Acervo do Museu da Magia Negra – elevada a Patrimônio Cultural do Mercosul


não figurou na lista de bens tombados em junho de 2017, por inciativa do Iphan
A

pelo Iphan até a publicação do livro sobre com apoio da Fundação Cultural Palmares
E

os tombamentos, em 1984 (cf. Corrêa, – e, logo depois, o Terreiro da Casa Branca,


I S T Ó R I C O

2005:405-409, apud Lima, 2012:45). em Salvador (BA). Como bem observou


Analisando as relações do Iphan com Lima (2012), o reconhecimento desse
H

terreiro, também conhecido como Terreiro de


A T R I M Ô N I O

as expressões culturais afro-brasileiras ao


longo da sua existência, Lima estabelece três Candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká, concluído
“dinâmicas” que pautaram esse processo: em 1986, marca uma mudança de paradigma
P

no entendimento do que seria um patrimônio


D O

A primeira refere-se ao tombamento do cultural, pondo definitivamente em questão a


E V I S T A

Museu de Magia Negra em 1938, um acervo que, noção de que a “pedra e cal” constitui a mais
dentre outras peças, se constituía de objetos de
R

importante categoria entre os bens culturais a


culto afro-brasileiros apreendidos nas operações serem valorizados.
da polícia do Rio de Janeiro. A segunda dinâmica
Essa mudança de paradigma foi
refere-se ao tombamento do Terreiro da Casa
consequência de vários fatores, tais como
Branca de Salvador, inscrito em dois livros:
Milton Guran

a alteração da perspectiva política a partir


Livro do Tombo Histórico e Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em dos últimos anos do regime militar, do
agosto de 1986. A terceira dinâmica (...) ocorre esgotamento do modelo ideológico adotado
216
a partir do registro de vários bens culturais afro- pelo órgão encarregado da proteção
brasileiros em diferentes Livros de Registro, a do patrimônio desde a sua criação e,
partir de 2000 (2012:41-42). naturalmente, da atuação da sociedade civil,
que se reorganizou em torno de um projeto
Vale ressaltar que, em cada um desses de redemocratização inclusiva a partir do
momentos, o Iphan se encontra em sintonia final dos anos 1970. A destacar, no campo
com o contexto político e cultural no da matriz africana, a criação do Movimento
qual estava inserido. Podemos dizer que o Negro Unificado, em 1979, que iria exercer
órgão, embora com um tempo próprio e um forte protagonismo político e pautar as
nem sempre com a agilidade desejada, tem lutas contra o racismo e pela reparação em
procurado, no entanto, buscar caminhos todo o processo de redemocratização e nos
para institucionalizar, nas suas práticas, as debates de Constituinte.
principais demandas da sociedade, de modo a No que toca especificamente às
manter-se como um ator de expressão real na representações do patrimônio nacional, nosso
arena política. principal foco, duas correntes se opuseram
entre 1967 e 1984, ano em que se deram os promovendo a integração nacional, embora

Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
decisivos debates em torno do tombamento sempre mantendo o mesmo entendimento de

A C I O N A L
da Serra da Barriga (tombada como que o patrimônio nacional a ser preservado e
Patrimônio Natural) e do Terreiro da Casa valorizado era aquele de caráter monumental
que remetia à matriz civilizatória europeia.

N
Branca, efetivados dois anos mais tarde. De

R T Í S T I C O
um lado estava a corrente representada por Em tempos de redemocratização, no final
Renato Soeiro, que assumiu o DPHAN em da década de 1970, a principal queixa ao

A
1967, com a aposentadoria de Rodrigo Melo trabalho do Iphan por vários setores do

E
governo e, sobretudo, da sociedade civil

I S T Ó R I C O
Franco de Andrade1, e de outro, a corrente
voltada para a diversidade cultural brasileira, era justamente a ausência de políticas
liderada por Aloisio Magalhães, criador do patrimoniais que contemplassem outros

H
elementos da cultura brasileira que não

A T R I M Ô N I O
Centro Nacional de Referência Cultural –
CNRC em 1975 e que viria a assumir o
2 fossem exclusivamente de origem europeia
cargo de Diretor-geral do Iphan após a saída (Sabino, 2012:6).

P
de Soeiro, em 1979. Já o CNRC nasceu com perspectiva

D O
Renato Soeiro é visto como alguém que mais abrangente, muito mais próxima,

E V I S T A
continuou a política implementada pelo inclusive, das orientações da Unesco na

R
criador do órgão e seu diretor por trinta anos. época, as quais propunham que o conceito
Essa política se construiu em sintonia com de patrimônio cultural se sobrepusesse ao
a ideologia da época e também em resposta de patrimônio histórico e artístico (Costa,
aos anseios do governo Vargas de consolidar 2012:29). Nesse sentido, além de propor

Milton Guran
a imagem do Brasil como nação, sendo a ampliação do conceito de patrimônio,
pondo em causa o foco exclusivo nos bens
que o patrimônio deveria funcionar como
de origem europeia, o Centro considerava
um instrumento para educar a população 217
fundamental valorizar a participação da
sobre a unidade e a permanência da nação.
comunidade na definição do bem a ser
Pouco tinha sido alterada até então. Soeiro,
preservado e cuidar para que esse bem
por sua vez, deu ênfase à necessidade de se
estivesse a serviço da comunidade. Como
combinar a preservação do patrimônio com
sublinha Sabino (2012:6):
o desenvolvimento econômico, fomentando
o potencial turístico e ao mesmo tempo
Uma das características mais caras ao
Centro era a participação da comunidade
1. Criado em 1937 como Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – Sphan, o atual Iphan passou a se chamar Di- ou grupo que estava diretamente ligado
retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – DPHAN ao objeto de estudo em questão. Em
em 1946 e se torou Instituto em 1970. Em 1979, se desdobra na
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan,, segundo lugar, o órgão estudava expressões
com funções normativas, e na Fundação Pró-Memória, com fun-
ções executivas. Ambas foram extintas em 1990, com a criação
culturais ditas ”populares” e que garantiam
do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural –IBPC, o qual , a sobrevivência de um percentual altíssimo
por sua vez, voltou a se denominar Iphan em 1994.
2. O CNRC funcionou primeiramente na Universidade de da população brasileira e que nunca haviam
Brasília. Em 1979, com a nomeação de Aloisio Magalhães para a sido, sequer, mencionadas pelo Iphan em suas
direção do Iphan, ele passou a integrar a recém-criada Fundação
Nacional Pró-Memória – FNPM. políticas de preservação.
O próprio termo referência cultural, que Constituem patrimônio cultural brasileiro os
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania

nomeia o Centro de Magalhães, pressupõe a bens de natureza material e imaterial, tomados


individualmente ou em conjunto, portadores
A C I O N A L

entrada em cena com destaque de um novo


de referência à identidade, à ação, à memória
sujeito, aquele para quem determinado bem
dos diferentes grupos formadores da sociedade
N

pode ser referência.


brasileira (...).
R T Í S T I C O

Essa perspectiva, como observa Costa


(2012:32),
A longa trajetória da matriz africana
A

pelo seu reconhecimento patrimonial como


E

(...) veio deslocar o foco dos bens – que em


I S T Ó R I C O

uma das condições para o exercício pleno da


geral se impõem por sua monumentalidade, por
sua riqueza, por seu “peso” material e simbólico
cidadania é marcada, como não poderia deixar
H

– para a dinâmica de atribuição de sentidos e de ser, pela luta política e resistência cultural
A T R I M Ô N I O

valores. dos afrodescendentes. E esse aspecto foi


ressaltado pelos mais diversos atores envolvidos
A metodologia de trabalho do CNRC com o processo de tombamento do Ilê Axé Yiá
P
D O

compreendia várias fases: a identificação da Nassô Oká, que marcou o ponto de virada do
E V I S T A

relevância de um fenômeno; o seu registro; Iphan rumo ao reconhecimento e à legitimação


da matriz africana.
a sua indexação através de uma metodologia
R

O relator do processo desse tombamento


descritiva para produzir uma espécie de
no Conselho Consultivo do Patrimônio
memória da sua dinâmica; e, por fim, a
Cultural foi o antropólogo Gilberto Velho, na
devolução à comunidade desse conhecimento
época chefe do Departamento de Antropologia
produzido. Na prática, tratava-se de
Milton Guran

do Museu Nacional, que deixou consignado,


identificar e valorizar os saberes, fazeres e
alguns anos depois, um depoimento preciso
celebrações que poderiam ser definidos como
218 das circunstâncias em que se deram os debates
patrimônio imaterial.
no artigo intitulado “Patrimônio, negociação e
Com Aloisio Magalhães assumindo o
conflito” (2006). Diz ele:
comando do Iphan, a visão eurocêntrica
que sempre pautou as ações do órgão
Na época, o Secretário de Cultura do MEC
passou a conviver com a percepção da era o Dr. Marcos Vinicios Vilaça, que presidia
pluralidade cultural do país, marca também o Conselho da Sphan e que desempenhou
registrada do pensamento do novo diretor, um papel fundamental para o sucesso do
que expressava melhor o momento político tombamento. O Conselho encontrava-se bastante
e o entendimento do que é cultura. Essa dividido. Vários de seus membros consideravam
desproposital e equivocado tombar um pedaço de
forma de pensar influiu no texto da
terra desprovido de construções que justificassem,
Constituinte de 1988, que, no seu art.
por sua monumentalidade ou valor artístico, tal
216, assim define o patrimônio cultural
iniciativa. Cabe lembrar que, até aquele período,
brasileiro, legitimando de forma definitiva o estatuto do tombamento vinha sendo aplicado,
a nova orientação do órgão federal de basicamente, a edificações religiosas, militares
preservação do patrimônio: e civis da tradição luso-brasileira. As primeiras
principais medidas de legitimação e proteção ao fundamental chamar a atenção para o fato de que Tambor de crioula,
Maranhão
patrimônio foram tomadas, sobretudo, em relação “o acompanhamento e a supervisão da Sphan Acervo: Iphan/
Edgard Graeff. 219
a prédios coloniais e, em menor proporção, aos do deve, mantendo seus elevados padrões, incorporar
período do Império e da Primeira República. (...) uma postura adequadamente flexível diante desse
Valorizei a importância da contribuição das fenômeno religioso” e, ainda, que “o tombamento
tradições afro-brasileiras para o Brasil como um deve ser uma garantia para a continuidade da
todo. Chamei a atenção, particularmente, para a expressão cultural que tem em Casa Branca um
dimensão das crenças religiosas dessas tradições espaço sagrado”. (...)
que, inclusive, extrapolavam as suas fronteiras Os membros do Conselho da Sphan que
formais. Defini cultura como um fenômeno discordavam dessa posição tinham suas convicções
abrangente que inclui todas as manifestações honestas e arraigadas, produto de décadas de
materiais e imateriais, expressas em crenças, práticas voltadas para um outro tipo de política de
valores, visões de mundo existentes em uma patrimônio.(...)
sociedade. (...) Argumentou-se também que não era possível
Destaquei tratar-se de ”um fato social, um tombar uma religião. Quase todos os presentes
terreiro em plena atividade, com seus fiéis, na reunião de Salvador concordavam que era
sacerdotes e ritual em pleno dinamismo”. necessário proteger o terreiro, mas alguns insistiam
Ao recomendar o tombamento, considerei em não se utilizar a figura do tombamento. É
interessante registrar que um número considerável antropólogo Ordep Serra deu o tom de como
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania

de conselheiros não compareceu à reunião. Entre a decisão foi vista pelos setores mais engajados
esses sete ausentes certamente estavam vários
A C I O N A L

da sociedade civil3:
opositores à medida de tombamento.

O tombamento da Casa Branca foi uma


N

Velho sublinha que essa histórica sessão


R T Í S T I C O

vitória contra o preconceito, o elitismo, o racismo,


aconteceu nos salões da Santa Casa da o etnocentrismo. Fez reconhecer a importância
Misericórdia, em Salvador, e contou com a das criações culturais afro-brasileiras. Abriu espaço
A

presença de um numeroso público, altamente


E

para que se ampliasse o campo de percepção do


I S T Ó R I C O

engajado. Na abertura da sessão, esteve que seja patrimônio cultural no Brasil.


presente até Dom Avelar Brandão, então
H

Cardeal Primaz do Brasil, certamente para Como observamos, o tombamento da


A T R I M Ô N I O

fazer pesar, com a sua presença, a posição da Casa Branca impôs novos parâmetros à
Igreja católica, contrária ao tombamento. política de proteção e preservação do Iphan,
A votação final foi muito apertada, com expandindo o conceito de patrimônio, que
P
D O

três votos a favor do tombamento, um pelo seria ainda mais ampliado pela Constituição
E V I S T A

adiamento, duas abstenções e apenas um voto de 1988, ao reconhecer o bem imaterial como
contra. E conclui Gilberto Velho (2006): patrimônio e estender a ele a proteção do
R

Estado. Esse reconhecimento do patrimônio


É inegável que para a vitória do tombamento imaterial foi fundamental para garantir à
foi fundamental a atuação de um verdadeiro cultura afro-brasileira um protagonismo
movimento social com base em Salvador, reunindo condizente com seu papel histórico na
Milton Guran

artistas, intelectuais, jornalistas, políticos e formação do país. Como frisa Lima


lideranças religiosas que se empenharam a fundo
(2012:91),
na campanha pelo reconhecimento do patrimônio
220
afro-baiano. Havia um verdadeiro choque de
(...) a institucionalização do patrimônio
opiniões que não se limitava internamente ao
imaterial no Brasil pode ser entendida como
Conselho da Sphan. Importantes veículos da
o resultado de uma série de transformações
imprensa da Bahia manifestaram-se contra o
conceituais e políticas, mas também como o
tombamento, que foi acusado, com maior ou
surgimento de novas relações entre os grupos
menor sutileza, de demagógico. É importante
sociais e o patrimônio.
rememorar esses fatos, pois a vitória foi muito
difícil e encontrou fortíssima resistência. Foi
necessário um esforço muito grande de um grupo Essas novas relações são, por tudo isso,
de conselheiros, do próprio Secretário de Cultura marcadas pela entrada de demandas sociais
do MEC e de setores da sociedade civil para que e de lutas políticas específicas na arena de
afinal fosse obtido sucesso. definição do patrimônio, como foi bem
explicitado na afirmação de Serra citada acima.
A propósito da mobilização a favor do
tombamento e da maneira como ele foi 3. No artigo “O tombamento do Terreiro da Casa Branca Ilê Axé
Iyá Nassô Oká”, citado no portal.iphan.gov.br/noticias/deta-
entendido naquele momento, o também lhes/2347, acessado em 8 de setembro de 2017.
No entanto, no período que se seguiu aos em todos os níveis – ainda não se

Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
tombamentos do Terreiro da Casa Branca e conscientizaram da importância da proteção

A C I O N A L
da Serra da Barriga, a atuação do Iphan, no ou não se organizaram a ponto de ocupar esse
que diz respeito aos bens afro-brasileiros, foi espaço institucional como frente de luta pelo
“limitada e descontínua” (Lima, 2012:55).

N
reconhecimento de seus direitos dentro de

R T Í S T I C O
Tanto que somente em 2000 um novo bem uma perspectiva mais ampla.
entrou na lista de tombamentos, no caso, o Já no que toca aos bens imateriais

A
Terreiro Axé Opô Afonjá, em Salvador (BA). registrados, a proporção é mais favorável,

E
De lá aos nossos dias, foram tombados mais uma vez que, de um total de quarenta bens

I S T Ó R I C O
sete terreiros, todos na Bahia, cobrindo as registrados, doze são vinculados à matriz
principais tradições de culto – jêje/fon, nagô/ africana. Em 2004, foi efetivado o primeiro

H
iorubá e banto/angola – e contemplando ainda

A T R I M Ô N I O
registro de um bem imaterial ligado à matriz
o reservado culto aos ancestrais – Egunguns. africana, o Samba de Roda do Recôncavo
O Iphan se organizou para fazer Baiano, hoje também reconhecido como

P
frente a esse desafio, criando inclusive Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade

D O
mecanismos específicos para contemplar a pela Unesco. Dentre os bens registrados

E V I S T A
matriz africana, como o Grupo de Trabalho nessa categoria, o processo de registro da

R
Interdepartamental e Interdisciplinar capoeira – também reconhecida pela Unesco
para procedimentos relacionados aos com patrimônio cultural – é exemplar e
remanescentes das comunidades de quilombo, merece destaque pelo rigor e cuidado com
em 2011, e, mais recentemente, o Grupo que o processo foi conduzido: para garantir

Milton Guran
Interdepartamental para Preservação do a perenidade da essência do bem, o registro
Patrimônio Cultural de Terreiros. O processo se deu em duas modalidades, estendendo a
de capacitação do órgão para responder às salvaguarda ao Ofício dos Mestres e à Roda de
221
demandas dessa mudança de paradigma – Capoeira. No seu parecer sobre a demanda de
desde a fiscalização até a análise de propostas registro da capoeira como Patrimônio Cultural
– está em andamento, dentro das limitações do Brasil, em fevereiro de 2008, a antropóloga
do momento político e econômico atual. Maria Paula Fernandes Adinolfi, lotada na 7ª
No entanto, ainda hoje, em um total
Superintendência Regional do Iphan4, ressalta
de 1.241 bens tombados, apenas treze são
a importância dessa nova postura do Estado
diretamente vinculados à matriz africana.
frente à cultura afro-brasileira, situando-a no
Uma análise dos processos de tombamento
contexto mais amplo do momento político do
(bens materiais) atualmente em avaliação
país na época:
nos traz outra informação relevante: dos
338 processos em exame, praticamente Este conjunto de ações constitui uma resposta
todos de iniciativa da sociedade civil, apenas do Estado brasileiro às demandas sociais por
33 são vinculados à matriz africana. Isso reconhecimento e valorização de práticas culturais
quer dizer que os principais interessados
– os afrodescendentes e suas organizações 4. Processo nº 01450.002863/2006-80. Parecer nº 031/08.
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
A C I O N A L
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R

de matriz africana e indígena, secularmente esfera pública, dentre elas várias universidades
Milton Guran

Capoeira.
Acervo: Iphan/
Carlos Café. excluídas das políticas públicas, que, por um federais e estaduais e o serviço diplomático; a
longo período, foram vistas como um estorvo criação da Lei 10.639/03, que institui o ensino
222 ao projeto civilizatório pautado na ideologia do de História e cultura africana e afro-brasileira
branqueamento da sociedade nacional. Apenas no ensino fundamental e médio; a criação da
recentemente, desde o início da década de Fundação Cultural Palmares e o reconhecimento
1990, em virtude da grande pressão exercida das comunidades remanescentes de quilombos;
por segmentos da sociedade civil organizada, o a assinatura de diversas convenções e resoluções
Estado tem assumido a tarefa urgente de reverter o internacionais em prol da igualdade racial e a
quadro da exclusão social de parcela expressiva da elaboração do Estatuto da Igualdade Racial.
população do país. Não se pretende aqui apresentar um quadro
As políticas públicas formuladas com tal completo dessas políticas; tenciona-se, apenas,
objetivo não se limitam ao âmbito da cultura, demonstrar a grande relevância do reconhecimento
mas se espraiam também pelas áreas de educação, do patrimônio cultural afro-brasileiro enquanto
saúde, emprego e renda. Podem ser mencionadas matriz formadora da nacionalidade e da identidade
aqui a criação, na esfera federal, e posteriormente brasileira e, portanto, a afinação da proposição do
seguida por diversos estados e municípios, da registro da capoeira com as diretrizes traçadas pelas
Secretaria Especial de Políticas de Promoção políticas públicas no Brasil de hoje, preocupadas
da Igualdade Racial (SEPPIR); a adoção de com o reconhecimento de nossa diversidade
políticas de ação afirmativa em diversas áreas da cultural e, ao mesmo tempo, buscando evitar que
tais diferenças culturais continuem a produzir em cena a salvaguarda dos bens imateriais

Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
diferenciação no acesso a direitos de cidadania e – que o número de bens ligados à matriz
mesmo a direitos humanos elementares.

A C I O N A L
africana tombados como patrimônio cultural
se ampliou, embora ainda se mantendo
A verdade é que, nos últimos dez anos, em proporção muito desfavorável em

N
R T Í S T I C O
a situação política e social da população relação ao conjunto. Como já vimos, a lista
afro-brasileira mudou radicalmente. Vimos passou de singelos três itens – Acervo do
crescer a tomada de consciência e surgirem

A
Museu da Magia Negra, de 1938, Serra

E
novas formas de organização e articulação da Barriga e Terreiro da Casa Branca,

I S T Ó R I C O
dessa parcela da população, em grande ambos de 1986 – aos atuais 25, entre bens
parte favorecida pelas políticas públicas materiais e imateriais. Cabe destacar que

H
afirmativas implementadas no período, as a totalidade desses bens está localizada nas

A T R I M Ô N I O
quais contribuíram para a formação de uma regiões Sudeste e Nordeste e no estado do
massa crítica politicamente ativa como não Maranhão, embora haja remanescentes
tínhamos visto até então.

P
de quilombos de larga tradição e singular

D O
No censo de 2010, pela primeira vez, riqueza cultural por toda a Região Norte, no

E V I S T A
a maioria dos brasileiros se declarou negra Centro-Oeste e mesmo na Região Sul, sendo
(pretos e pardos), o que dá ao Brasil a segunda a cidade de Porto Alegre a que concentra,

R
população negra do mundo, logo depois da atualmente, o maior número de terreiros e
Nigéria, e a maior fora da África. A par do fato casas de culto de matriz africana no país.
de a taxa de fecundidade da mulher negra ter Se é verdade que o Brasil, ao criar
sido superior à da mulher branca – entre 2000 o órgão federal encarregado de definir,

Milton Guran
e 2010 o crescimento da população negra foi da salvaguardar e preservar o patrimônio cultural
ordem de 2,5% ao ano, enquanto o da branca da nação, escamoteou deliberadamente o
foi igual a zero –, o que fez realmente a diferença papel desempenhado pela matriz africana 223
nesses números foi o aumento significativo de na construção do país e da identidade social
pessoas que se declararam pardas. Esse quadro, e cultural do seu povo, também é verdade
vale insistir, sem dúvida se deve em grande parte que coube a esse mesmo órgão dar o mais
ao aumento da autoestima desse segmento significativo passo no plano internacional,
da população, fruto de uma conscientização para assumir, aos olhos do mundo e diante
progressiva retroalimentada pelas ações de si próprio, a matriz africana como
afirmativas que essa própria conscientização vem vertente legítima e fundamental em sua
impondo à agenda política. formação, tal como é hoje: a candidatura
É interessante notar que foi justamente do Sítio Arqueológico Cais do Valongo a
a partir de 2000 – quando, segundo os Patrimônio Mundial da Unesco. Trata-se do
dados do censo, a população negra deu a primeiro bem ligado à diáspora africana nas
sua arrancada rumo à posição de maioria Américas a ser proposto para integrar a Lista
e as políticas de ação afirmativa foram se do Patrimônio Mundial, o que testemunha a
concretizando, ao mesmo tempo que entrou excepcionalidade da atitude política do Brasil.
Foi na praia do Valongo, então da valorização da matriz africana da cidade do
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania

praticamente fora dos limites da capital Rio de Janeiro.


A C I O N A L

da Colônia, para onde o vice-rei marquês Pela sua excepcionalidade e valor


de Lavradio transferiu o desembarque de simbólico, já reconhecidos pelo Projeto Rota
africanos escravizados, que se situou o do Escravo da Unesco em 2013, o Cais do
N
R T Í S T I C O

maior complexo comercial escravagista do Valongo é considerado o mais contundente


continente entre 1774 e 1831. Por ali podem lugar de memória da chamada diáspora
A

ter passado até um milhão de cativos. Para africana fora do seu continente de origem,
E

termos uma ideia mais clara do que esse testemunho material irretorquível do tráfico
I S T Ó R I C O

número significa, estima-se que para os atlântico de africanos escravizados, hoje


Estados Unidos da América foram levados justamente considerado crime contra a
H

aproximadamente 400 mil africanos no total. humanidade, convém sempre relembrar.


A T R I M Ô N I O

O chamado cais, na verdade um calçamento É um sítio de memória sensível, daqueles


de pedras irregulares diretamente assentadas que se reportam a um evento reconhecido
P

na areia, é um exemplo perfeito do sistemático como extremamente doloroso por toda a


D O

apagamento da memória do período humanidade, como Auschwitz-Bierkenau ou


E V I S T A

escravagista levado a termo pelo poder público. Hiroshima, que precisam ser lembrados para
Primeiro o cais foi encoberto pela construção impedir que voltem a acontecer.
R

do Cais da Imperatriz, onde desembarcou em Por acreditar que o Sítio Arqueológico


1843 a Imperatriz Thereza Christina, e, mais Cais do Valongo é capaz de simbolizar de
tarde, pela Praça Municipal, hoje Praça Jornal forma excepcional e totalizante a história da
do Comércio. Somente em 2011, o cais veio de presença africana no Brasil e nas Américas e as
Milton Guran

novo à luz, quando foram realizadas escavações circunstâncias que marcaram sua efetivação,
no local pela arqueóloga Tania Andrade Lima, o Iphan, em nome do Estado brasileiro,
224 do Museu Nacional (UFRJ), por conta das apresentou a sua candidatura a Patrimônio
obras do Porto Maravilha. Na ocasião, escapou Mundial e, desde 2014, em parceria com
de ser encoberto mais uma vez e conseguiu a administração municipal do período, se
guardar sua janela de observação arqueológica empenhou pela sua aprovação5.
aberta, graças à mobilização dos meios
acadêmicos e da sociedade civil, com forte 5. Para elaboração do dossiê de candidatura, foi constituído
participação das entidades representativas das um grupo de trabalho ad hoc composto por Milton Guran
(coordenador), pela arqueóloga Rosana Najjar, do Centro
raízes africanas. E, verdade seja dita, na ocasião a Nacional de Arqueologia, pela historiadora Monica Lima, pelo
arquiteto José Pessoa e por Til Pestana, do Centro Lucio Costa,
causa contou também com importantes aliados ao qual o grupo inicialmente esteve ligado. O GT contou
ainda com uma assessoria técnica composta por historiadores,
na administração municipal. Essa mobilização arqueólogos, arquitetos, um fotógrafo e representantes do
levou à criação do Circuito Histórico e IRPH, da Companhia de Desenvolvimento da Região do Porto
– CDURP e da Coordenadoria de Relações Internacionais
Arqueológico de Celebração da Herança da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, além de com um
Conselho Consultivo que reuniu órgãos públicos e personalidades
Africana, pelo Instituto Rio Patrimônio da do meio acadêmico e da sociedade civil. Os trabalhos de
elaboração do dossiê se iniciaram em novembro de 2014, sendo
Humanidade – IRPH, iniciativa que, embora que a sua versão final, já sob a direção do Departamento de
Articulação e Fomento – DAF, foi encaminhada à Unesco em
suscite ressalvas, significa um avanço no sentido fevereiro de 2017.
Vizinho ao Cais do Valongo se situa o nacional negra fora da África. O Iphan, nos

Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
prédio Docas Pedro II, construído em 1871 seus oitenta anos de existência, ao se fazer

A C I O N A L
por André Rebouças, primeiro engenheiro porta-voz de uma demanda tão expressiva,
negro formado pela Escola Politécnica de certa forma se redime de desencontros
do Rio de Janeiro. Ao que se sabe, esse passados no que toca à matriz africana e se

N
R T Í S T I C O
armazém foi a primeira grande obra civil apresenta em perfeita sintonia com a nação.
construída na capital sem o emprego de mão
REFERÊNCIAS

A
de obra escrava. Então, da mesma forma

E
que o Cais do Valongo representa a tragédia

I S T Ó R I C O
CONDURU, Roberto. Pérolas Negras – primeiros fios:
da escravidão, o prédio Docas Pedro II experiências artísticas e culturais nos fluxos entre África e
representa simbolicamente a superação dessa Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013.

H
tragédia. Por tudo isso, o Iphan tombou CORRÊA, Alexandre Fernandes. A coleção do Museu de

A T R I M Ô N I O
Magia Negra do Rio de Janeiro: o primeiro patrimônio
definitivamente o prédio em novembro
etnográfico do Brasil. Mneme – Revista de Humanidades,
de 2016 e o destinou a abrigar o futuro v. 7, nº 18, UFRN, 2005.

P
Memorial da Diáspora Africana, equipamento COSTA, Amanda Gabrielle de Queiroz. Os projetos do

D O
cultural previsto no dossiê de candidatura do Centro Nacional de Referência Cultural: referenciamento

E V I S T A
da cultura brasileira. In: XI ENCONTRO ESTADUAL
sítio a Patrimônio Mundial. DE HISTÓRIA, Universidade Federal do Rio
O valor universal excepcional do

R
Grande do sul (FURG) de 23 a 27 de julho de 2012.
Disponível em www.eeh.anpuh-rs.org.br/resources/
Sítio Arqueológico Cais do Valongo foi
anais/18/1346437321_ARQUIVO_artigoANPUH.pdf.
oficialmente reconhecido por unanimidade Acesso em 9 de setembro de 2017.
pelo Comitê do Patrimônio Mundial da LIMA, Alessandra Rodrigues. Patrimônio cultural afro-
Unesco por ocasião da sua 41ª Reunião, brasileiro: as narrativas produzidas pelo Iphan a partir da

Milton Guran
ação patrimonial. (Dissertação de Mestrado). Curso de
ocorrida em Cracóvia, na Polônia, em julho Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio
de 2017, quando o incluiu na Lista do Cultural. Iphan, 2012.
Patrimônio Mundial. SABINO, Roberto. As disputas pela representação do 225
patrimônio nacional (1967-1984). In: III SEMINÁRIO
Neste momento em que se celebra a
INTERNACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS.
Década Internacional de Afrodescendentes Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2012, p.
(2015-2024), instituída pela Organização 1-10.Disponível em: culturadigital.br/politicacultural/
casaderuibarbosa/files/2012/09/Roberto.Sabino.pdf .
das Nações Unidas, esse reconhecimento
Acesso em 9 de setembro de 2017.
internacional coloca o Brasil em posição de VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito.
exercer um protagonismo mundial no trato In: Mana vol 12 nº 1, Rio de Janeiro, 2006.
dessa questão e das políticas de reparação que
lhe são inerentes.
Para nós, brasileiros, esse sítio
arqueológico é um patrimônio sem similar,
porque representa os milhões de africanos
escravizados que com seu trabalho e sua
cultura viabilizaram a construção da nação
brasileira e geraram a maior população
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

226
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m Patr imônios culturais indígenas
Lucia Hussak van Velthem

A C I O N A L
P ATRIMÔNIOS CULTURAIS INDÍGENAS

N
R T Í S T I C O
A
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A T R I M Ô N I O
Na primeira metade do século XX, tradições diferenciadas, trouxe significativa
organiza-se no Brasil a proteção ao patrimônio mudança no quadro legal relativo aos povos
histórico e artístico nacional. Dispondo sobre ameríndios. A orientação multicultural

P
grupos patrimoniais de valores culturais, tais que permeia o texto constitucional está

D O
como os de história, de belas-artes, de artes expressa no artigo 215, quando afirma que

E V I S T A
aplicadas, incluí também as categorias da o Estado protegerá as referências culturais

R
“arte arqueológica, etnográfica, ameríndia de grupos sociais específicos – indígenas,
e popular”1. Essa organização, atenta à suas afrodescendentes, imigrantes, as classes
finalidades específicas, abre uma pequena populares em geral –, uma vez que todos
fresta aos patrimônios indígenas, porém participam do processo civilizatório nacional2.
redefinidos enquanto peças etnográficas de Manifesta, assim, o reconhecimento do papel
acervos museológicos. das expressões culturais dos diferentes grupos
Décadas depois, e no campo das políticas sociais na formação da identidade cultural
227
de Estado, observa-se que o Brasil é um dos brasileira e procura difundir a imagem de um
países das Américas que mais rapidamente Brasil cultural e linguisticamente diverso no
aderiu às recomendações da Unesco no contexto internacional. Em 2000, o Decreto
sentido de esboçar e garantir políticas de no 3.551 institui o Registro de Bens Culturais
proteção e promoção da diversidade de de Natureza Imaterial, o que abriu caminho
expressões das culturas locais, o que inclui as para a possibilidade de registro e salvaguarda
Ceramista Karajá
culturas indígenas. A Constituição Federal dos patrimônios culturais indígenas3. Acervo: Copedoc/Iphan/
Marcel Gautherot.

de 1988, em seu capítulo VIII, ao reconhecer


o direito às formas de organização próprias, 2. Cf. Santilli, 2007; Fonseca, 2012.
assim como aos costumes, línguas, crenças e 3. Como resultado dessa política, até o presente foram registra-
dos: Arte Kusiwa – Pintura corporal e arte gráfica Wajãpi’ (2002
– Livro das Formas de Expressão); Cachoeira de Iauaretê: lugar
sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri (2006 –
Livro dos Lugares); Sistema Agrícola Tradicional do rio Negro
1. As referências sobre o assunto (Decreto-lei nº 25/1937) são múlti- – Amazonas (2010 – Livro dos Saberes); Ritual Yaokwa do povo
plas. Ver especialmente Girão (2001), que menciona o fato dos acer- indígena Enawenê Nawê (2010 – Livro das Celebrações); Ritxòkò
vos do Museu Paraense Emílio Goeldi, do Museu da Escola Normal – expressão artística e cosmológica do povo Karajá (2012 – Livro
de Fortaleza, do Museu Paulista terem sido, em 1938, registrados no das Formas de Expressão) e Saberes e práticas associados ao modo
Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. de fazer Bonecas Karajá (2012 – Livro dos Saberes).
A chegada dos europeus às Américas teve Os critérios de afirmação identitária in-
Patr imônios culturais indígenas

um efeito devastador entre as populações dígena estão relacionados com a memória


indígenas no Brasil, pois o “encontro” de
A C I O N A L

e com o reconhecimento de uma conexão


sociedades do Antigo e do Novo Mundo histórica com sociedades pré-coloniais. Não
provocou intensa mortandade, como
N

menos importante é o fato de se “identificarem


R T Í S T I C O

resultado de guerras, epidemias, fome. Os


como indígenas e se considerarem diferentes
séculos seguintes revelaram uma trajetória
da sociedade nacional” (Luciano, 2006:27).
marcada pela ocupação civil e militar, a
A

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m

Outros sinais distintivos são as variadas e com-


expropriação territorial, a escravização
E
I S T Ó R I C O

plexas formas de organização social, política,


econômica, a violação ideológica. Desde
os anos 1980, contudo, as previsões do econômica, o uso de uma língua diferenciada,
desaparecimento ou assimilação generalizada a elaboração de um sistema de crenças e de
H
A T R I M Ô N I O

dos indígenas no Brasil cedeu lugar à uma concepção de mundo especificas, aspectos
constatação de sua recuperação demográfica, estreitamente vinculados ao território5.
da manutenção das diferenças socioculturais No Brasil contemporâneo, as culturas
P

e da emergência de lideranças na cena indígenas vêm sendo “descobertas” e


D O

política brasileira. absorvidas em contextos urbanos por meio


E V I S T A

Os cerca de 230 povos indígenas, falantes de exposições, de publicações especializadas


R

de 180 línguas distintas4, estão representados e até mesmo através de desfiles carnavalescos.
em todas as regiões do Brasil, porém o
Apesar da visibilidade adquirida, as
contingente populacional mais expressivo
coletividades indígenas continuam sendo
está concentrado na Amazônia, em terras que
evocadas através de visões românticas
ficaram à margem da expansão da fronteira
como “bons selvagens” ou preconceituosas
econômica. No Nordeste, área de colonização
antiga, o crescimento populacional decorre – “primitivos dotados de tecnologia
228 também do surgimento de novas identidades rudimentar” –, que estão enraizadas no olhar
indígenas. Vários fatores, políticos e e no tratamento que recebem de muitos
econômicos, favorecem esse processo, setores da população brasileira6. O resultado
mas são também relevantes aqueles que dessa postura acarreta, quase sempre, a
decorrem da religião e de práticas rituais, pois exclusão e desvalorização das culturas e das
permitem a atualização de valores essenciais pessoas indígenas, pois não são reconhecidas e
a determinada coletividade. Nesse contexto valorizadas as suas escolhas e as reformulações
são reproduzidas, adaptadas ou importadas criativas de seus saberes ancestrais. Nas
diferentes manifestações culturais que atuam
comunidades indígenas, tais movimentos se
como “bandeiras étnicas e que garantem aos
efetuam de maneira dinâmica e articulada ao
povos que habitam o Nordeste sua condição
ambiente, à história, às redes de relações e,
indígena” (Pacheco de Oliveira, 1994:327).
também, ao mundo do homem branco e a
sua cultura, economia e política.
4. IBGE - Censo 2010. As línguas indígenas compreendem
41 famílias, dois troncos linguísticos e uma dezena de línguas 5. Cf. Pacheco de Oliveira, 1994; Luciano, 2006.
isoladas (Franchetto, 2005:19). 6. Cf. Gallois, 2006 e 2007; Oliveira, 2012.
DIVERSIDADE, concepções, práticas, discursos que são

Patr imônios culturais indígenas


CONHECIMENTO, PROPRIEDADE particulares e específicos a cada povo e, por

A C I O N A L
serem dependentes de múltiplos contextos
A diversidade reflete a própria históricos, sociais e ambientais, encerram
dinâmicas entre as quais despontam a

N
constituição das sociedades indígenas, as

R T Í S T I C O
quais não podem ser compreendidas de identidade e a diferença.
forma homogênea. A mesma constatação Em sua identificação, os bens

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
se aplica ao campo do patrimônio, que patrimoniais de um povo indígena que

E
poderiam ser qualificados como imateriais

I S T Ó R I C O
se revela diferenciado, pois cada povo
indígena é dotado de um conjunto incluem diferentes saberes, normas,
patrimonial próprio que se distingue valores, práticas, criações, tais como música

H
instrumental, cantos, danças, narrativas

A T R I M Ô N I O
também de outros mais, de matriz europeia
e africana. Consequentemente, a expressão míticas, técnicas artesanais e elaborações
patrimônio indígena no singular não pode gráficas, culinária, lugares, saberes associados

P
ser considerada como meio de identificação à biodiversidade e ao território7. As línguas

D O
da diversidade cultural existente e, portanto, possuem um papel preponderante na vida

E V I S T A
o plural – patrimônios indígenas – se impõe indígena, pois, para além da comunicação,

R
em todos os contextos e formulações. veiculam a difusão de palavras, mitos, cantos,
Apreender a variedade e a complexidade dos discursos que são amiúde rotulados como
patrimônios indígenas constitui um desafio, tradições orais.
requer distanciamento dos reducionismos e Os patrimônios indígenas se expressam
das generalizações. A noção antropológica igualmente por coisas físicas, elementos
de cultura contribui para a compreensão e materiais e duráveis. A antropologia os
aprofundamento dessa temática, ao constituir considera enquanto componentes de cultura
229
uma formulação que possibilita a definição de material, categoria que abrange os utensílios
suas principais características. de uso cotidiano: cestos, esteiras, vasilhas
A vida cultural das coletividades indígenas cerâmicas, redes, arcos e flechas, canoas,
é fundamentada por saberes aplicados nos bancos, redes de dormir e outros mais. Inclui
contextos cotidiano e ritual. Abrangem também os artefatos empregados em rituais:
diferentes máscaras, instrumentos musicais, adornos
de plumas ou confeccionados com matérias-
(...) modos de perceber, de classificar, de
primas variadas. Inscrevem-se ainda nessa
relacionar seres e objetos no mundo, compondo
classificação as roças e as plantas cultivadas,
sistemas de conhecimentos muito diversificados,
os alimentos processados, as estruturas
transmitidos por pessoas comuns ou especialistas
(Gallois, 2006:26). habitacionais e paisagísticas que integram um
local de povoamento humano.
Em outros termos, os patrimônios
indígenas representam uma construção 7. Reportar-se ao conceito de patrimônio cultural imaterial
proposto pela Unesco (2003), para amplo detalhamento dessa
cultural que se inscreve em lógicas, categoria.
Para uso cotidiano ou ritual, a produção A articulação aludida se conecta ao fato
Patr imônios culturais indígenas

de um artefato requer sofisticados e diversos de que em muitas sociedades indígenas,


A C I O N A L

conhecimentos: ambientais, técnicos, éticos, o conhecimento é pensado como estando


estéticos. Compreende, portanto, as matérias- alojado no próprio corpo de uma pessoa e,
portanto, não há conhecimento que esteja
N

primas utilizadas e os locais onde podem ser


R T Í S T I C O

colhidas; o modo de processá-las para serem dissociado de seu conhecedor10. A transmissão


utilizadas; os locais adequados para o trabalho de saberes está relacionada a essa noção
A

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m

e as normas que o regem; as habilidades e envolve vínculos que são estabelecidos


E

técnicas de manufatura, tais como formas de preferencialmente entre pessoas aparentadas,


I S T Ó R I C O

principiar um objeto, conformar seu corpo como do pai para o filho, da avó para a neta...
e arrematá-lo; a reprodução dos grafismos, Essa dinâmica, ao longo de milhares de anos,
H

permitiu às sociedades indígenas perpetuar


A T R I M Ô N I O

aplicados ou entretecidos, sua origem mítica e


o simbolismo agregado; os usos e funções do entre as gerações, através da transmissão oral
artefato, o que inclui as redes de intercâmbio e da convivência cotidiana em uma mesma
P

existentes e, ainda, outros propósitos, entre os localidade, os saberes necessários para a


D O

quais a comercialização8. continuidade da vida em sociedade e para


E V I S T A

Segundo as concepções indígenas, o criar relações não predatórias com o território.


R

acesso e a aquisição dos conhecimentos Na vida comunitária das aldeias, a dinâmica


constituem o resultado de uma da coletivização corresponde a um agregado
experimentação, a qual possui um caráter de competências variadas, que se traduz em
legitimador que permite a sua constituição prerrogativas segundo as quais o conhecimento
e transmissão. Tal experimentação é concentra-se em certos indivíduos ou famílias.
engendrada sobretudo por um conjunto O regime coletivo está, portanto, sujeito a
de percepções sensoriais – odores, ruídos, uma rede de direitos diferencias, atribuídos
230
texturas, luzes –, com destaque para a visão. por acordos, transmissões pessoais, relações
A articulação existente entre visibilidade de parentesco e de gênero11. Neste último
caso, a oposição e complementaridade dos
e conhecimento constitui um aspecto
conhecimentos masculinos e femininos é
significativo para vários povos indígenas
uma das mais significativas, inclusive porque
amazônicos, a sede do conhecimento
dela decorre uma série de prescrições que
residindo nos olhos, o que é representado
são fundamentais para a vida em sociedade.
pela pequena pessoa que neles se reflete9.
As relações de parentesco, como aludido,
Segundo essa concepção, os olhos se unem
possuem papel preponderante na transmissão
às mãos e assim estabelecem o intercâmbio
de conhecimentos, de nomes, de mitos, de
que permite a execução de cestarias e de
cantos, de adornos cerimoniais e de outros
outras manufaturas.
bens culturais.
8. Cf. Velthem, 2000; Gallois, 2011.
9. Esta compreensão pode ser encontrada entre povos de língua 10. Cf. Carneiro da Cunha, 2012 e 2014; Lagrou, 2007.
karib do norte do Pará, como os Wayana (Velthem, 2003) e os 11. Como mencionado por Coelho de Souza, 2014:196; Carnei-
Waiwai (Oliveira, 2012). ro da Cunha, 2005:21.
O campo do patrimônio manifesta, primeira vista, impactariam as condições

Patr imônios culturais indígenas


nas sociedades indígenas, uma relação de significação cultural e o repasse dos

A C I O N A L
de propriedade que se conecta tanto ao conhecimentos, refletindo-se na reprodução
indivíduo quanto ao coletivo. Em sua vida, e trajetória de seus patrimônios culturais. As
uma pessoa pode se apropriar de determinado

N
culturas indígenas seguem uma dinâmica de

R T Í S T I C O
elemento – um adorno, uma peneira, contínua transformação, induzida por fatores
uma caça abatida – em decorrência dos externos e internos e que acarreta experiências

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
conhecimentos que possui para concretizá-lo e atualizações.

E
ou, então, a apropriação decorre das dádivas As influências externas, em particular,

I S T Ó R I C O
que recebe de outras pessoas, o que se efetiva podem dar origem a vários processos
primeiramente por intermédio das redes de de reinvenção cultural, extremamente

H
relações familiares e comunitárias, mas se

A T R I M Ô N I O
criativos, que são desenvolvidos a partir dos
amplia para outros interlocutores e territórios. próprios recursos simbólicos das culturas
Direitos diferenciais e especializações indígenas envolvidas13. Dos antigos ou

P
individuais extrapolam assim as comunidades recentes encontros com o homem branco,

D O
para integrar uma ampla rede de intercâmbio os povos indígenas adotaram uma série de

E V I S T A
em espaços distanciados que incluem, implementos: facas, terçados, enxadas, que

R
ocasionalmente, os centros urbanos. Destaca- foram adotados, modificados e também
se que especializações artesanais distintivas de ressignificados linguisticamente. Nenhuma
coletividades indígenas, como as operantes mercadoria, contudo, suplantou as complexas
nas regiões pluriétnicas do alto rio Xingu e reelaborações simbólicas, mitológicas,
alto rio Negro, constituem o elemento que estéticas que foram destinadas aos espelhos
estrutura as redes de troca locais. Trata-se de e as miçangas vítreas, introduzidos pelos
bens patrimoniais que, ao serem permutados, europeus nas Américas desde o século XVI14.
231
compartilham de um mesmo regime de Uma fundamental característica dos
apreensão sobre o que é particular a cada patrimônios indígenas é que a propriedade
povo e assim o identifica . Nas sociedades
12
raramente se confunde com a autoria ou
indígenas, a especialização e o intercâmbio criação. Extrapolando as relações familiares
estão “a serviço da teia social e não o inverso: o e comunitárias, a aquisição de cantos,
valor da troca tendo precedência sobre o valor técnicas, artefatos, adornos, padrões gráficos
de troca” (Carneiro da Cunha, 2006:25). pode compreender outras formas de relação
Antigas e recentes redes de relações e apropriação15. Como resultado desses
com outros segmentos populacionais processos, muitos bens patrimoniais indígenas
estão conectadas à dinâmica do contato. representam incorporações de elementos
Submeteram no período colonial, assim
como submetem no presente, as sociedades 13. Ver em Albert (2002), uma acurada análise da cosmologia
do contato.
indígenas a transformações que, à 14. A respeito dos espelhos, ver Gallois (1984/5), e sobre as
miçangas, Lagrou, 2007; Velthem, 2008.
15. Como descrito em Velthem, 2003; Carneiro da Cunha, 2005;
12. Carneiro da Cunha, 2012. Gordon, 2006; Cesarino, 2014.
provenientes de outras coletividades ou compreenderiam, “um mundo de arte e
Patr imônios culturais indígenas

de seres diferenciados que povoam o de símbolos” (Dibie, 2005:32). O poder


A C I O N A L

universo e que representam os verdadeiros de encantamento dos adornos plumários é


proprietários . Tais elementos foram, assim,
16
inconteste e perene: admirados como “objetos
N

arrebatados de inimigos, durante embates de curiosidade” foram intensivamente


R T Í S T I C O

guerreiros, ou então visualizados e subtraídos, coletados desde os primeiros tempos da


em tempos pretéritos, de seres não humanos: colonização das Américas. Nos dias atuais,
A

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m

animais, espíritos, sobrenaturais, como esse fascínio permanece através de múltiplas


E
I S T Ó R I C O

descrevem as narrativas míticas. Também exposições que privilegiam e exaltam a


são transmitidos, ainda nos dias atuais, pelos “arte da pluma”, ou a “arte plumária”18, em
xamãs, através de suas performances. detrimento de outras categorias artesanais.
H
A T R I M Ô N I O

Elemento significativo dos patrimônios Essa identificação é tão difundida que, no


indígenas, o mito compreende um enunciado Brasil, o senso comum admite que o “portar
que expressa a vivência e o conhecimento penas” constitui o atributo principal de
P

de cada pessoa . As narrativas míticas


17 uma identidade indígena. Nos espaços de
D O

estão em constante atualização e situam-se atuação política, a ornamentação plumária


E V I S T A

no “tempo das origens, mas referidas ao se alia a outros elementos de visibilidade, na


R

presente, encerrando perspectivas de futuro construção estética das identidades indígenas,


e carregando experiências do passado” para, assim, marcar diferenças estratégicas.
(Lopes da Silva, 1995:75). A temática dos Nas aldeias e comunidades indígenas,
mitos remete a diferentes concepções sobre a adornos plumários, panelas de cerâmica,
formação do mundo, a definição de lugares e cuias, cestos, arcos, flechas, instrumentos
a transformação ou a criação da humanidade. musicais, máscaras, bancos e muitos outros
232 artefatos possuem uma vida intensa, pois
SOBRE COISAS, BELEZA E estão encerrados em uma complexa rede
RIQUEZA de propósitos, de práticas e evocam sempre
alguma coisa que está além de sua função e
Os bens patrimoniais indígenas, aspecto formal. Propiciam o estabelecimento
expressos nas categorias artesanais da de múltiplas conexões, tais como as das
plumária, cestaria e cerâmica – que alguns pessoas entre si, na vida cotidiana, e também
destacam como as mais significativas –, com os seres que povoam a floresta, os rios,
as serras e mais além, em mundos distantes,
16. Os exemplos de apropriações de grafismos na Amazônia indí- o que ocorre sobretudo nos rituais e nas
gena são inúmeros, mas indica-se que para os Huni Kui do Acre os
grafismos da pintura corporal e da tecelagem foram transmitidos cerimônias xamanísticas.
por Yube, a jiboia mulher, e tornaram-se um elemento fundamen-
tal do conhecimento feminino (Lagrou, 2007). Para os povos de Sublinha-se que os sentidos, os
língua karib, os grafismos foram copiados de uma “cobra-grande”
sobrenatural e, assim, no caso dos Kaxuyan, norte do Pará, foram significados e os valores não estão
reproduzidos da pele de Marmaruimë, episódio que se confunde
com as suas próprias origens enquanto povo e que é narrado em
longo mito (Grupioni, 2009:38). 18. A esse respeito, consultar os catálogos dedicados ao tema:
17. Cf. Gallois, 2002. Brasil (1980); Schoepf (1985); Porter (2001).
propriamente nos objetos materiais e nos

Patr imônios culturais indígenas


possíveis grafismos que exibem, mas, sim,

A C I O N A L
nas práticas sociais que os determinam,
nas relações que são estabelecidas por seu

N
intermédio, nos processos de produção que

R T Í S T I C O
os governam e nos efeitos que produzem19.
Devem ser compreendidos como produtos

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
de relações sociais e também como vetores

E
dessas mesmas relações, em que o sentido e

I S T Ó R I C O
o efeito de cantos, danças, adornos, pinturas
corporais, artefatos pode mudar, de acordo

H
A T R I M Ô N I O
com o contexto em que se apresenta.
Nas sociedades indígenas não ocorre
uma nítida separação das atividades e dos

P
campos de expressão. Entre outros aspectos

D O
relevantes, a intenção estética e conceitual

E V I S T A
não se refere exclusivamente aos artefatos

R
mais elaborados ou aparentemente mais
sistemas gráficos indígenas em que cada padrão Xingu
carregados de sentidos, como é o caso dos Acervo: Iphan/
pode exibir uma trilogia perceptiva complexa . 21 Mario Friedlander.

objetos rituais. Esse é um dos motivos porque


Tal percepção corresponde, assim, ao traço
artefatos utilizados no cotidiano podem se
do desenho, o qual permite figurar um ser
apresentar formalmente mais embelezados
determinado e unidos – desenho e figura
do que o necessário para o cumprimento
– remetem à imagem daquilo que se deseja
de suas funções. A valorização segue uma
representar. A noção de imagem ocupa um 233
lógica própria em que a eficácia de cantos,
lugar central em muitas sociedades indígenas,
coreografias, artefatos, pinturas corporais20
que conhecem não apenas a expressão gráfica
suplanta outras considerações. reproduzida na pintura corporal e em artefatos,
Diversos povos indígenas concebem seus especialmente em cestaria e cerâmica, como
artefatos em um quadro de modelos estéticos também a figurativa, que se concretiza através
culturalmente reconhecidos e apreciados. O das máscaras e outros objetos, tais como
domínio da expressão estética engloba várias bancos e panelas22.
esferas e atributos que aguçam a percepção
e induzem a produção e a transmissão mais
ampla de sentidos de ordem cosmológica. 21. Para os Wayana do Pará, o desenho do bico de uma ave cons-
titui o elemento que permite figurar a garça morena. Unidos, a
Esse aspecto está particularmente evidente nos garça e seu bico em posição vigilante constituem a imagem de um
poder predatório específico, associado a essa ave e a outras aves
de bico longo e às cobras, escorpiões, vespas e também às flechas
19. Cf. Meneses: 2012:31; Perrone-Moisés, 2005. (Velthem, 2003:321).
20. Entre os Kaxinauá do Acre, uma pintura facial eficaz é aquela 22. Este é um tema bastante explorado pelos estudos de antro-
que permite uma permeabilidade maior da pele à ação ritual pologia da arte e pode ser conferido em Müller (2009); Vidal
(Lagrou, 2009:29). (1992); Barcelos Neto (2002); Velthem (2003); Lagrou (2007).
Características fundamentais dos bens socialmente apropriada e, portanto, desejável.
Patr imônios culturais indígenas

patrimoniais indígenas estão conectadas às A antropologia amazônica tem


A C I O N A L

formas de apreensão e definição dos artefatos demonstrado a centralidade do corpo


produzidos nas aldeias e comunidades. nas sociedades indígenas. As pessoas são
N

Assim sendo, tais artefatos não devem ser produzidas, grupos sociais são formados
R T Í S T I C O

caracterizados enquanto simples coisas, e as diferenças são criadas através do


definidas como “inertes e sem vida”. Sob corpo e este atua enquanto metáfora para
A

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m

certo aspecto, os objetos indígenas raramente diferentes classificações. Esse proceder está
E

vinculado a um sistema de relações entre


I S T Ó R I C O

são apenas objetos, pois se constituem em


formas dotadas de intencionalidades próprias. corpos, bem como ao pensamento de que
Correspondem, antes, a “seres vivos” com os a humanidade de um corpo não é inata,
H
A T R I M Ô N I O

quais podem ser estabelecidas relações com mas deve ser construída culturalmente, de
características similares àquelas que unem modo contínuo26. As sociedades indígenas
as pessoas no contexto social23. Destaca-se, desenvolvem práticas que objetivam facilitar
P

a transformação de um corpo para dotá-lo


D O

também, que a apreensão do sistema de


das qualidades sociais requeridas, assim como
E V I S T A

objetos pode estar atrelada, nas coletividades


indígenas, às noções de propriedade e de para modificar a sua natureza e aspecto.
R

valorização, em registros que remetem tanto Através de técnicas variadas e complexas são
efetivadas amplas mudanças, algumas das
a uma ideia de opulência, ou “riqueza”,
quais relacionadas a uma elaboração estética,
quanto de ornamentação, “enfeite”. Para
geralmente rotulada como “decoração
determinados povos indígenas amazônicos24,
corporal”, o que inclui atavios de diferentes
a “riqueza” deriva da importância e valor de
materiais – naturais e industriais – e também
nomes e bens no contexto ritual e, sobretudo,
o corte de cabelo. Especial relevância social
234 dos direitos de transmissão. Para outros25,
é atribuída à superfície corporal, sobretudo
um bem cultural determinado não constitui,
a pele, que é pintada, perfurada, tatuada,
em si mesmo, um ornamento, mas “enfeita”
escarificada. Constituindo parte essencial do
outros elementos a ele associados – pessoas,
processo de transformação da pessoa, essas
casas, roças, aldeias – através de uma relação
técnicas comunicam diferentes intenções e
são específicas de cada povo indígena27.
23. A literatura antropológica oferece vários exemplos, entre os
quais destacam-se as máscaras rituais dos Waujá do alto Xingu que
retêm/reproduzem as vestimentas de seres-espíritos, permitindo
que se tornem presentes e viventes e, assim, dancem nos rituais
(Barcelos Neto (2002, 2008). São igualmente viventes os bancos
dos Galibi-Marworno do Amapá, que recebem em oferenda be-
bidas fermentadas e, por serem consideradas pessoas completas,
permitem o estabelecimento de relações sociais (Andrade, 2012).
24. Este é o caso dos conhecidos Kayapó (Mebêngôkre), ao sul do
Pará, que possuem tradicionalmente, além de nomes considerados
bonitos, um conjunto de objetos, adornos e prerrogativas cerimo- 26. Ver Seeger, Matta e Viveiros de Castro (1987); Vidal (1992);
niais de grande valor cultural (nêkrêjx) e que são descritos como Vilaça (2005), para referências importantes sobre o assunto.
“riqueza” (Gordon, 2006). 27. Ver Gallois (1992, 2002), a respeito da pintura corporal e da
25. Os Wayana, norte do Pará, concebem que os artefatos, as al- arte gráfica dos Wajãpi do Amapá. Trata-se de um bem registrado
deias, as roças e mesmo as pessoas, adornadas e penteadas, são qua- como patrimônio cultural imaterial em 2002 e reconhecido pela
lificados como imakhe e constituem “enfeites” (Velthem, 2003). Unesco como patrimônio da humanidade.
TERRITÓRIOS: PERCURSOS, O conhecimento do território está,

Patr imônios culturais indígenas


LUGARES, MUSEUS portanto, associado a técnicas e saberes

A C I O N A L
específicos, necessários para a exploração
As concepções culturais indígenas de dos recursos ambientais. Ademais, esse
conhecimento requer comportamentos

N
território28 envolvem percursos que nele

R T Í S T I C O
se inscrevem espacial e temporalmente: apropriados em relação a determinados
padrões de residência, redes de troca e lugares, que representam contextos espacial

A
e temporalmente importantes para os

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
de aliança, espaços de circulação e de

E
processos de sociabilidade. Conhecer um

I S T Ó R I C O
exploração dos recursos ambientais. Uma
lugar é “conhecer e relatar a sua história,
infinidade de fatores determina as conexões
o seu potencial, os elementos que o
dos povos indígenas com o território,

H
converteram em ponto de referência para

A T R I M Ô N I O
os quais envolvem, há séculos, apurados
ações presentes e experiências futuras”
conhecimentos sobre as técnicas de plantio
(Coelho de Souza, 2014: 201)30.
e o uso sustentável do território29. Nos dias

P
O conhecimento detalhado da toponímia

D O
atuais, a posse da terra constitui uma perene
de um rio – pedras, lajes, paranás, ilhas

E V I S T A
fonte de mobilização política e base de
– fornece um recurso de rememoração
elaboração étnica para os povos indígenas.
privilegiado para narrar a origem de vários

R
Os territórios indígenas são constituídos
povos indígenas, como ocorre no rio
por espaços distintos que encerram dimensões
Negro31: O surgimento de cada um desses
concêntricas de aproximação e afastamento
coletivos é tematizado na forma de sucessivos
do núcleo social representado pelas aldeias e
deslocamentos espaço-temporais no território,
comunidades que abrigam os seres humanos.
através do quais a memória social articula os
Tais espaços são circundados pelas roças onde
eventos da época da transformação mítica
se encontram as principais fontes de alimentos. 235
àqueles que já fazem parte de trajetórias
Mais além estão espaços – rios, florestas,
históricas particulares.
serras – onde é encontrada uma multiplicidade
Uma prática cultural importante, da
de recursos, plantas, animais, minerais, os
maioria das coletividades indígenas, está
quais constituem elementos essenciais para a relacionada ao sistema agrícola, em que
vida indígena: matérias-primas utilizadas na desponta a interdependência existente entre
confecção de objetos, presas de caça ou pesca, a diversidade cultural e a biológica e onde
fontes de recursos extrativos. se imbricam as dinâmicas de produção e
reprodução dos patrimônios agrícolas. A
agricultura praticada pelas comunidades
28. Os povos indígenas vivem em terras apresentadas como “tra-
dicionalmente ocupadas” no texto da Constituição de 1988 e indígenas na Amazônia se destaca pela
definidas, enquanto bens da União, como destinadas à posse per-
manente dos índios. As terras indígenas constituem o resultado de
processos conduzidos pelo Estado nacional e envolvem propostas 30. Cf. Giannini (1992), e especialmente Coelho de Souza
e interesses que “raramente expressam a representação do que as (2014), a respeito dos K sêdjê do alto Xingu e suas complexas
coletividades indígenas concebem como o próprio território” (Oli- relações com o território.
veira, 2012:371). 31. Trata-se dos Tukano, Desana, Tariano, Piratapuia. A esse res-
29. Cf. Silva (2002:132). peito, ver: Andrello (2005); Oliveira, Baptista e Andrello (2007).
Patr imônios culturais indígenas
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Ritual Yaokwa do grande variedade de cultivos, a mandioca categorizados como etnográficos33. No Brasil,
Povo indígena
Enawene Nawe
Acervo: Iphan.
brava representando a planta estruturante32, objetos etnográficos foram recolhidos desde
236
pois constitui a base da alimentação, ao ser meados do século XIX, ao serem instituídos
processada sob a forma de farinhas e beijus. os museus de caráter enciclopédico, como
Há nessa região, e em outras mais, um o Museu Nacional e o Museu Paraense
marcante gosto pela coleção, voltado para as Emílio Goeldi. Nessas instituições, coleções
espécies plantadas e para as novas variedades, e objetos esparsos são reveladores da intensa
que são obtidas através de extensas redes de ação de coleta empreendida por cientistas,
relações que conectam grupos familiares, missionários, militares, governantes, desde
indivíduos e espaços. o século XIX, entre os povos indígenas
O “território” dos patrimônios indígenas em todas as regiões do país. Recolhidos
há longo tempo expandiu-se para os centros às reservas técnicas, foram numerados,
urbanos, para os museus, onde se conectaram
à categoria do colecionamento e aos acervos,
33. Acervos de bens culturais indígenas encontram-se em insti-
tuições no Brasil e também nos continentes americano e europeu.
Para amplo quadro referencial das coleções etnográficas brasileiras
32. Ver Emperaire (2014), para ampla explanação desse assunto e europeias, ver Dorta (1992); para as europeias, Petrucci (1983)
no rio Negro, Amazonas. e Damy (1986).
tombados, musealizados. Guardam em si uma estar de acordo com a lógica e os mecanismos

Patr imônios culturais indígenas


infinidade de referentes culturais, históricos, de controle e de gestão patrimonial, próprio a

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materiais, técnicos, estéticos e aguardam, cada povo indígena, esses museus apresentam
envoltos em esquecimento, que sejam enfim
(...) regimes de memória específicos e remetem

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resgatados e apropriados pelos descendentes

R T Í S T I C O
de seus produtores. a uma profunda relação entre a construção de

A consideração dos museus, enquanto representações sobre si e as formas de organização


e mobilização das populações ameríndias (Gomes,

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
significativos espaços de atuação na garantia

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2012:12).
do direito à memória, implica um intrincado

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movimento pelo reconhecimento e pela
VALORIZAÇÃO C U LT U R A L E
visibilidade desses singulares patrimônios

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PAT R I M Ô N I O S I N D Í G E N A S

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indígenas. Um multifacetado diálogo, ainda
não completamente consolidado, é travado
No Brasil contemporâneo, a grande
nas instituições museais e opõe, de um lado,
maioria das coletividades indígenas está

P
os interesses classificatórios e documentais dos

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empenhada em gerar atividades de produção
técnicos e, do outro, as políticas afirmativas

E V I S T A
e difusão cultural, articulando o tradicional
das sociedades indígenas. A complexidade
às novas apropriações. Despontam várias

R
desse diálogo e a dificuldade para solucionar
iniciativas, genericamente referidas como de
tal dilema acarretam, em determinados
“valorização cultural”, que se inserem em um
museus, a permanência de práticas marcadas
conjunto de ações para o registro escrito e
pelo distanciamento, pois constata-se que,
audiovisual de produções culturais, algumas
raramente, os povos indígenas possuem
das quais se concretizaram sob a forma de
o controle do discurso, assim como não
livros, catálogos, documentários, exposições36.
exercem, nas práticas curatoriais, seus 237
A criação de objetos culturais para o
conhecimentos especializados acerca dos
mercado deve contar com a participação
componentes dos acervos34.
direta das comunidades indígenas, sob o
Tornaram-se cada vez mais recorrentes
risco de se difundirem textos e imagens
os questionamentos dos povos indígenas a
descontextualizados e empobrecidos.
respeito da autoridade e da legitimidade de
Surgem, nesse caso, os discursos genéricos,
produções e discursos criados em seu nome por
permeados de lugares comuns, geralmente
não indígenas35. Essas interpelações repercutem
identificados como “cultura indígena” ou,
também no âmbito da museologia e, como
no caso específico dos mitos, como “lendas
fruto do crescente protagonismo dos povos
indígenas”37. Em contrapartida, determinados
indígenas no cenário brasileiro, estimularam
artefatos culturais podem ter um efeito
a criação dos “museus indígenas”. Procurando
positivo e, assim, permitem que povos
34. Para uma discussão mais detalhada, ver Cury e Vasconcellos
(2012); Fereira e Kukawka (2011); Gallois, (2011); Velthem 36. Ver a respeito: Galois (2002), Vidal (2007) e Müller (2009),
(2012). em catálogos de exposições no Museu do Índio.
35. Cf. Cesarino (2014:294). 37. Cf. Lopes da Silva (1995) e Cesarino (2014).
indígenas ganhem visibilidade e possam se de uma distribuição equitativa de seus
Patr imônios culturais indígenas

posicionar em espaços urbanos da Amazônia benefícios40. Um dos aspectos da politização


A C I O N A L

e capitais do Centro-Sul do país. da cultura considera que o patrimônio pode


As iniciativas indígenas relacionadas ao atuar como um instrumento de requalificação
N

patrimônio cultural são múltiplas, dinâmicas de relações até então assimétricas, para
R T Í S T I C O

e amplamente disseminadas. Desse modo, bases que considerariam e respeitariam as


para alguns povos amazônicos são importantes singularidades e a diversidade dos povos
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os registros de histórias e cantos, a retomada indígenas. Entre os desafios a serem vencidos


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de antigos rituais e também a valorização da está a garantia de uma participação ativa


música; para outros, os interesses principais das coletividades indígenas nos programas
estão voltados para a documentação dos de valorização cultural e no controle das
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repertórios gráficos, com vistas ao registro iniciativas de difusão, assim como da possível
como patrimônio imaterial; no Nordeste um exploração comercial41.
coletivo indígena experimenta a construção Desde 2000, o registro de bens culturais
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de uma língua própria a partir de fragmentos de natureza imaterial, encabeçado pelo


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lexicais encontrados em documentos


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Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


históricos . Muitas dessas experiências
38
Nacional – Iphan e efetivado através do
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refletem a busca por emblemas distintivos, os Programa Nacional de Patrimônio Imaterial


quais são apresentados como essenciais para – PNPI,, tem se oferecido aos povos
assinalar uma “identidade indígena” no quadro indígenas como uma possibilidade para
das mobilizações étnicas dos movimentos a continuidade e o aprofundamento dos
indígenas em suas reivindicações por direitos
39
processos de valorização de suas culturas
territoriais, sociais e políticos no Brasil. e para a busca de um reconhecimento
238 Reflexo desse engajamento, a gestão formal de alguns aspectos específicos42. Tal
das identidades indígenas está cada vez reconhecimento pode representar, em alguns
mais politizada e marcada pelo direito casos, um primeiro passo ou uma sinalização
à diferença. Um recurso vital utilizado
nessa arena conecta-se ao patrimônio, pois 40. Gallois (2005, 2011); Carneiro da Cunha ( 2012).
41. Ver a respeito Gallois, (2007, 2011) e Lima et al. (2014).
que desempenha importante papel nas 42. Os editais de 2005 a 2015 (Alencar, 2016) aprovaram
projetos desenvolvidos entre os povos indígenas, cujas ações de
demandas pelas políticas da diferença e do salvaguarda envolviam, sobretudo: “pesquisas, mapeamentos,
constituição e disponibilização de acervos, inventários participa-
reconhecimento e, também, no sentido tivos, transmissão de saberes e ações educativas”. Foram contem-
plados em 2005: Asurini do Pará; Tiriyó e Kachuyana do Pará;
Kaiabi do Mato Grosso; Kaxinawá do Acre. Em 2007: Tukano,
38. As primeiras iniciativas ocorrem no alto rio Negro e, particu- Baniwa, Baré e Nadöb do rio Negro, Amazonas; Kaxinawá do
larmente, entre os Baniwa; o registro do sistema gráfico está sendo Acre; Guarani de São Paulo; Kaingang de Santa Catarina e Rio
proposto pelos Huni Ku, no Acre, e pelos Wayana e Aparai, no Grande do Sul; Mbyá Guarani do Rio Grande do Sul. O edital de
norte do Pará; os Pataxó, na Bahia, estão voltados para a recons- 2008 apoiou o “Inventário nacional da diversidade linguística”,
trução linguística. Ver a esse respeito: Andrello (2005); Montardo que selecionou as línguas assurini e yudjá como projetos-piloto.
(2013); Lima et al. (2014); Franchetto (2005:197). Em 2009: Timbira do Maranhão e Tocantins; Kuikuro, Kaiabi,
39. Entre outras associações, podemos citar: Coordenação das Yudja, Kisêdje e Panara do alto Xingu, Mato Grosso; Paiter Surui
Organizações Indígenas da Amazônia – Coiab; Articulação dos de Rondônia. Em 2010: Huni Kuin do Amazonas; Kaingang de
Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e São Paulo e Rio Grande do Sul. Em 2012: Wajãpi do Amapá;
Espírito Santo – Apoinme; Federação das Organizações Indígenas Pankararu de Pernambuco; Tuyuka do Amazonas; Ikpeng do
do Rio Negro – Foirn. Mato Grosso.
Acervo: Iphan/
Laércio Miranda.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

Arte plumária Rikbaktsa


239

L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m Patr imônios culturais indígenas


importante e positiva43, sobretudo quando
Patr imônios culturais indígenas

se considera as ameaças constantes aos


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patrimônios indígenas, em especial aos bens


que são passíveis de se converter em fontes
e elementos cobiçados pelo mercado, caso
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dos padrões gráficos, dos artefatos plumários


e dos conhecimentos relacionados com a
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biodiversidade.
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As propostas de registro do patrimônio


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imaterial são passíveis, entretanto, de


questionamento, uma vez que revelam os
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limites das partições em que se ancoram, sejam asseguradas bases mais participativas de
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pois é saliente o fato de que determinados atuação dos povos indígenas.


regimes de conhecimento e de criatividade Nesse panorama despontam os jovens
indígenas, que promovem, nos dias atuais, o
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indígenas não se pautam pelas caracterizações


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adotadas pelas políticas culturais44. Assim, diálogo entre os saberes tradicionais de suas
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nesses processos, a possível ressonância comunidades com as capacitações – escolares,


da política de salvaguarda do patrimônio técnicas ou acadêmicas – adquiridas em
R

imaterial não se coaduna com a própria visão diferentes contextos de formação. Ocorre
indígena acerca dos conceitos de cultura e assim a sua intensa participação na construção
de patrimônio cultural como apreendidos e execução de ações para a difusão interna
corriqueiramente. Esses conceitos seriam ou externa de aspectos de seu patrimônio
mesmo “inexistentes nos sistemas explicativos cultural, o que inclui o repasse dos saberes,
e na lógica dos saberes indígenas” (Gallois, a tomada de consciência das transformações
240 2011:6). Ademais, sabe-se que o registro culturais, entre as quais a passagem da
em si não assegura nem a sobrevivência oralidade para a escrita e também a captura
nem a continuidade de uma determinada de imagens. Não se trataria propriamente
prática cultural, apenas inaugura uma nova de iniciativas que visam recuperar saberes
etapa na sua trajetória, a ser atualizada pelas perdidos, mas do estabelecimento de uma
circunstâncias históricas45. Discussões e outros nova relação entre as gerações46. Esse profícuo
mecanismos de salvaguarda precisam ser diálogo permite que nas comunidades e
ativados paralelamente, tanto nas aldeias como aldeias indígenas, em todas as regiões do
nos centros urbanos, mas é imprescindível que país, pessoas de diferentes gerações reflitam
em conjunto sobre aspectos estratégicos de
suas culturas e patrimônios, permitindo
43. Concorrendo para os mesmos objetivos, o Museu do Índio
(Funai) instituiu em 2008 o Programa de Documentação de Cul- influenciar o presente e o futuro.
turas e Línguas Indígenas – ProgDoc, que abrange quatro proje-
tos, entre eles o Prodocult (de culturas) e o Prodoclin (de línguas
indígenas).
44. Cf. Lima e Coelho de Souza (2010).
45. Ver Gallois (2006) e Arantes (2012), para uma discussão
desses aspectos. 46. Cf. Gallois (2011:6).
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244
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Jurema Machado

A C I O N A L
F EITO EM CASA : O I PHAN E A COOPERAÇÃO

N
INTERNACIONAL PARA O PATRIMÔNIO

A
HR T Í S T I C O
E
I S T Ó R I C O
A T R I M Ô N I O
Poucas instituições valorizam, contam interesse difuso da preservação do patrimônio.
e recontam sua própria história como o Felizmente, essa veia de inconformismo
Iphan. Não raro a narrativa assume o tom de permanece e tem sido cotidianamente

P
uma saga familiar, por onde circulam com capaz de produzir contrapontos a uma certa

D O
E V I S T A
intimidade personagens chamados pelos seus “ordem das coisas” dada como inexorável.
prenomes: Rodrigo, Mário, Lucio, Renato, Oficialmente referida com parcimonioso

R
Lygia, Augusto, Aloisio, para lembrar apenas respeito, mas, na prática, muitas vezes taxada
alguns dos pioneiros e dos mais marcantes. de inconveniente ou simplesmente deixada
Uns mais reclusos, outros até mesmo de lado, a instituição sobreviveu, com muita
reanimados no Facebook , esses personagens
1
qualidade, a oitenta anos de um ambiente
produziram um arsenal de palavras que governamental que nunca foi dado à
continuam pairando na atmosfera do lugar, construção de políticas e de estratégias, quase
discretamente pousadas sobre as mesas. Como sempre cético em relação ao planejamento e 245
diria outro funcionário da casa, o Carlos, caracterizado por uma renitente omissão para
aguardam “em estado de dicionário” prontas 2
com a profissionalização do setor público.
para dar o bote e voltar à vida, instalando-se Afirmações que aparentam ser meramente
em um novo parecer, um novo estudo, uma opinativas podem parecer fora do lugar em
nova opinião. A instituição que criaram, um artigo que pretende tratar da presença do
conhecida como sisuda guardiã dos registros Iphan na cooperação cultural internacional.
do passado, foi, na sua juventude, capaz Nem tanto. Corroborando a percepção de
de atrevimentos impensáveis para um país uma instituição muito dedicada à sua própria
agrário e conservador, sobretudo ao interferir história, ao sistematizar informações que
no direito de propriedade em defesa do reconstituem sua trajetória nesse campo,
salta aos olhos, de um lado, uma considerável
1. Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade e Aloisio produção, tanto interna quanto externa, de Ruínas de São Miguel
Magalhães têm páginas no Facebook, criadas a partir de 2015 por das Missões
Tava - lugar de referência
funcionários do Iphan. teses e artigos sobre o tema e, de outro, o para o Povo Guarani
2. Expressão de Carlos Drummond de Andrade, no poema Acervo: Iphan/
“Procura da poesia”. quanto essa reflexão tende a ser endógena, Sylvia Braga.
do patrimônio para o patrimônio, ou seja, da vertente de nossa atuação diplomática (Ribeiro,
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

instituição sobre si mesma e sobre os atores 2011:12).


A C I O N A L

internacionais mais diretamente envolvidos.


Antônio Houaiss, ex-Ministro da Cultura,
Pouco se detecta a existência de estratégias do
filólogo e também diplomata, ao prefaciar a
N

país para a cooperação cultural que tenham


tese mencionada, refere-se a uma “peregrina
R T Í S T I C O

tido um olhar específico para o patrimônio,


pobreza bibliográfica” sobre o assunto, o que
a ponto de funcionar como marco de
o leva a considerar que:
A

referência ou como sustentação político-


E

institucional para a atuação do Iphan. Em


I S T Ó R I C O

Em verdade, as relações culturais vêm sendo


outras palavras, ao longo de todos esses anos, antes matéria de prática real do que de teorização
o Iphan respondeu pela presença do Brasil no ou mesmo avaliação, sobretudo quando se trate de
H
A T R I M Ô N I O

ambiente da cooperação internacional para o avaliação em abstração, que se faça como conjunto
patrimônio, sempre com o apoio qualificado de noções depreendidas da realidade prática
da diplomacia brasileira, mas tendo que anterior e destinada a uma prática subsequente,
P

buscar seus próprios caminhos. Muito colegiada, mais consequente e fecunda (Ribeiro,
D O

Jurema Machado

2011:18).
presente em alguns momentos, distante
E V I S T A

em outros; reconhecido pelos acertos, mas


Mesmo considerando as ressalvas do
R

arcando com os riscos da descontinuidade e


dos momentos de fragilidade. autor quanto aos mais de vinte anos de
intensas transformações, transcorridos entre
DIPLOMACIA C U LT U R A L E
a produção do trabalho e o lançamento
D I P L O M A C I A D O PAT R I M Ô N I O
do livro, a essência das questões apontadas
permanece válida. A primeira parte tem
Ao buscar insumos sobre a diplomacia caráter mais instrumental, descrevendo
246 conceitos e a evolução do pensamento sobre a
cultural praticada pelo Brasil – não
especificamente sobre a presença do diplomacia cultural, essenciais à compreensão
patrimônio na diplomacia cultural –, a das proposições do autor. Em seguida,
dificuldade permanece. Um dos trabalhos ao tratar da prática das relações culturais
pioneiros sobre o tema é a tese do diplomata no contexto das relações internacionais,
Edgard Telles Ribeiro, finalizada em 1989, defende, em síntese, a revalorização da
parcialmente atualizada para ser publicada diplomacia cultural dentro do Ministério
em livro em 2011. O texto se inicia das Relações Exteriores, colocando-a a
mencionando quão escassa é a literatura serviço dos “mais altos interesses externos
sobre a diplomacia cultural dentro do Brasil e do país” e favorecendo a “consecução de
também fora, ao firmar que objetivos nacionais de natureza não somente
cultural, mas também política, comercial
(...) até em nosso meio inexistiam estudos ou ou econômica” (Ribeiro, 2011:33). Ou seja,
ensaios de inspiração acadêmica que de alguma acredita que a diplomacia cultural, como
forma tentassem comprovar a relevância dessa é da sua natureza, terá efeitos no médio e
longo prazo, na construção de uma atmosfera mencionado, a não ser indiretamente, a partir

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


favorável ao entendimento no campo de citações de Aloisio Magalhães e de Celso

A C I O N A L
político; que a circulação de bens e serviços Furtado em entrevistas e textos publicados,
culturais tende a favorecer uma sensação tratando sobretudo da relação entre cultura
de familiaridade com outros produtos e e desenvolvimento. Além da maior ênfase

N
R T Í S T I C O
serviços originários do país; e que projetos de desejada para a diplomacia cultural, ao
cooperação técnica tendem a produzir efeitos apontar proposições, procura rastreá-las nas

A
duradouros, se enraizados culturalmente. relações com o desenvolvimento e, nesse

E
Ao indagar sobre as razões da pouca contexto, ressalta a relevância dos mecanismos

I S T Ó R I C O
prioridade conferida à diplomacia cultural, de cooperação intelectual e cooperação
o autor aponta questões que seguem sendo técnica, pelo seu efeito multiplicador, desde

H
pertinentes e são perfeitamente identificáveis que baseados em “cuidadoso estudo das reais

A T R I M Ô N I O
nas dificuldades enfrentadas pelo Iphan: a necessidades dos países-alvo, de modo a evitar
ausência de planejamento para lidar com um atitudes paternalistas e aprender a diferenciar

P
tema cujos processos e cujos resultados são, realidades que somente se assemelham na

D O

Jurema Machado
necessariamente, de longo prazo; a pouca aparência”. Em que pese a atuação do Iphan

E V I S T A
abrangência das ações da diplomacia cultural, na cooperação internacional ter sido, quase

R
muito limitadas à difusão de produtos sempre, uma construção muito autodidata,
culturais brasileiros e insuficientes para dar sem contar com o apoio de reflexões dos
conta de uma pluralidade e da diversidade setores especializados, a cooperação técnica,
cultural do país; e, para não fugir à regra, como se verá adiante, tem sido o foco em
a recorrente falta de recursos destinados ao que o Iphan apostou e do qual vem colhendo
setor. A respeito desta última dificuldade, os melhores frutos. Não apenas o foco na
acredita ser mais uma consequência do que cooperação técnica, mas em uma cooperação
247
uma causa das limitações, uma vez que a que reconheça as “reais necessidades dos
projetos culturais modestos “serão dedicadas países-alvo, de modo a evitar atitudes
modestas prioridades políticas e, em paternalistas” e não exporte programas
consequência, atribuídos limitados recursos, “simplesmente por estarem disponíveis”,
financeiros e humanos” (Ribeiro, 2011:121). exatamente como propõe Ribeiro (2011:112)
As ações praticadas com mais frequência A relação com a Unesco, por meio da
pela diplomacia cultural brasileira são, implementação de suas convenções, tem sido
segundo o autor, mostras de arte, participação o pano de fundo e um dos principais motores
em bienais, apresentações de teatro e de da opção feita pelo Iphan, ao privilegiar a
dança, difusão da televisão, divulgação e cooperação técnica. A Unesco não é objeto
comercialização da música popular e do do trabalho de Edgard Telles Ribeiro, mas
cinema brasileiro, esse último referido como comparece em outras teses apresentadas ao
“um caso de coordenação interna bem- Instituto Rio Branco. Várias delas tratam
sucedida (entre a área operativa do Itamaraty da relação entre o Brasil e a Unesco, mas
e a Embrafilme)”. O patrimônio não é sequer apenas duas têm como objeto o patrimônio
na diplomacia brasileira: o trabalho de João Se são raros os estudos brasileiros
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

Batista Lanari Bo, denominado A proteção sobre uma “diplomacia do patrimônio”, o


A C I O N A L

do patrimônio no âmbito da Unesco: ações tema comparece, com a complexidade que


e significados para o Brasil, e o de Antônio merece, em revistas internacionais dedicadas
Otávio Sá Ricarte, denominado O futuro às ciências sociais, aos estudos culturais e
N
R T Í S T I C O

da Convenção do Patrimônio Mundial. Em estudos do patrimônio. Segundo Winter


ambos os casos, a atuação do Iphan é um (2015), “o passado material e sua conservação
A

dado incontornável, como se verá ao tratar da tem sido um mediador fundamental das
E

aplicação das convenções da Unesco no Brasil. relações entre as nações, seus governos e
I S T Ó R I C O

Mais recentemente, os estudos sobre a seu povo ao longo dos últimos 150 anos”.
diplomacia cultural vêm saindo do âmbito Esse autor defende que há espaço para uma
H

exclusivo do Centro de Altos Estudos do “diplomacia patrimonial”, conceitualmente


A T R I M Ô N I O

Instituto Rio Branco e ganhando espaço no distinta da “diplomacia cultural”, uma vez
ambiente acadêmico. Ainda assim, a omissão que, na diplomacia patrimonial, além da
P

quanto ao patrimônio permanece, ou é difusão de uma determinada expressão


D O

Jurema Machado

detectada secundariamente e sempre associada cultural, cabem também fluxos e intercâmbios


E V I S T A

à relação com a Unesco. Ou seja, o patrimônio culturais bidirecionais e multidirecionais,


R

em si mesmo, enquanto um ativo da cultura fazendo com que se estabeleça um campo de


brasileira para as relações internacionais, governança que envolve governos e sociedades
não comparece nas análises dos especialistas. em torno de temas, tais como a conservação
Esse fato certamente explica, de um lado, a arquitetônica, o desenvolvimento social,
performance muito endógena do Iphan – do cidadania, heranças culturais imateriais,
patrimônio para o patrimônio – e, de outro, sustentabilidade, mudanças climáticas, a
a existência de um fio condutor que confere reconstrução pós-desastre ou a luta contra
248
nexo e consistência ao trabalho, mesmo os extremismos violentos. Reconhecer o
na ausência de um marco de referências patrimônio como uma forma de governança
oferecido pelo país. Esse raio orientador, ainda espacial e social favorece, em muitos
que originário do ambiente Unesco, tem casos, a cooperação internacional para o
reflexos que vão além, alcançando também desenvolvimento, para a reconstrução ou para
a cooperação bilateral e fóruns multilaterais, a solução de reivindicações sobre o território.
sem falar na realimentação das próprias
políticas de preservação em nível nacional. P AT R I M Ô N I O E RELAÇÕES
Esse último aspecto é por vezes secundarizado INTERNACIONAIS ENTRE GUERRAS
pelos que reputam os instrumentos da Unesco
como pouco efetivos e distantes da realidade Situações de ruptura são traço comum
do país, mas é detectável, com clareza, aos momentos inaugurais das políticas de
quando se percorre o caminho evolutivo do patrimônio, nas diferentes culturas e em
pensamento sobre o patrimônio e as políticas diferentes momentos históricos: revoluções,
correspondentes. guerras, conflitos, impactos do crescimento
econômico. Transformações abruptas são O período que vai do pós-guerra até pelo

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


sempre inflexões, a partir das quais o sentido menos o final dos anos 1930 é de intensa

A C I O N A L
da preservação ganha terreno e se criam ou influência francesa no ambiente cultural do
se estabelecem reequilíbrios e arranjos de Brasil, resultado de uma política sistemática
governança. No século XX, as duas grandes daquele país, centrada na difusão da língua,

N
R T Í S T I C O
guerras são claras delimitadoras das relações na criação dos organismos privados com
internacionais no campo da preservação. apoio público (como a Aliança Francesa) e no

A
O Brasil foi o único país da América do envio de missões de professores universitários.

E
Sul a participar da Primeira Grande Guerra Em 1920, o governo francês cria o Service

I S T Ó R I C O
(1914-1918), o que se deu efetivamente a des Oeuvres Françaises à l’Étranger – Sofe,
partir de dezembro de 1917 e possibilitou que passa a coordenar todas as iniciativas de

H
ao país fazer parte da Liga (ou Sociedade) difusão cultural e alimenta um circuito de

A T R I M Ô N I O
das Nações, criada em 1919. No campo da intelectuais externos ao corpo diplomático,
cultura, a Liga das Nações atuou por meio para atuar em um “misto de propaganda e

P
do Instituto Internacional para a Cooperação política cultural” (Suppo, 2000:340). É esse

D O

Jurema Machado
Internacional, tido como o precursor da o contexto da primeira missão de professores

E V I S T A
Unesco, que seria criada após a Segunda franceses para a Universidade de São Paulo, a

R
Guerra Mundial, em 1945 (UNESCO, USP, criada em janeiro de 1934, pela reunião
The Organization’s history). O Instituto se das faculdades de Direito, de Medicina, da
encarregava do secretariado do Escritório Escola Politécnica e da então recém-criada
Internacional de Museus, que existiu de Filosofia, Ciências e Letras, para onde irão
1926 a 1946 (quando foi sucedido pelo Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel e Roger
International Council of Museums – Icom) Bastide (Suppo, 2000:321-325), intelectuais
e foi o responsável pela organização do cuja produção terá vasta repercussão nas
249
congresso mundial de arquitetos de 1931, políticas de patrimônio no Brasil.
em Atenas, que deu origem ao documento Ao lado da influência francesa e
precursor da ideia da existência de um cronologicamente simultânea com os
“patrimônio comum da humanidade” a ser primeiros anos do Iphan, está a iniciativa
identificado e preservado (Cury, 2004:13-19). norte-americana chamada Política de
Para colaborar com o Instituto de Cooperação Boa Vizinhança (Good Neighbor Policy)
Internacional Intelectual, o governo brasileiro apresentada pelo presidente Franklin
estabeleceu, em 1925, uma Comissão Roosevelt na Conferência Pan-americana
Brasileira de Cooperação Intelectual e de Montevidéu, em dezembro de 1933.
nomeou Eliseu Montarroyos como delegado, A política, que se estendeu até 1945 e é
encarregado da interlocução entre esse sucedida pela Guerra Fria, produziu, no
organismo e o Itamaraty. Montarroyos, campo do patrimônio, o Tratado de Roerich
que atuou até 1946, reivindicava ser o “o (Nicholas Roerich Museum), assinado em
agente da propaganda brasileira na Europa” 1935 “entre os Estados Unidos da América
(Dumont; Fléchet, 2009:205). e as outras repúblicas americanas visando à
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

250
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Acervo: Iphan/
Marcio Vianna.
Ponte Barão de Mauá
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
251

Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
proteção de instituições artísticas e científicas e desconhecia suas realizações no campo
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

e monumentos históricos”. Embora pouco da cultura, das artes e do desenvolvimento


A C I O N A L

conhecido, o tratado foi uma espécie de (Dumont; Fléchet, 2009:210).


Convenção de Haia (Unesco, 1954) avant O brasilianista Anthony John Russell-
la lettre e trata de “preservar em qualquer Wood é citado por Nestor Goulart Reis
N
R T Í S T I C O

tempo de perigo todos os monumentos de Filho (Reis Filho, 2012) para situar a vinda
propriedade nacional e privada que formam o de Robert Smith ao Brasil no contexto
A

tesouro cultural dos povos”, os quais deveriam chamado por Russell-Wood “um novo
E

ser considerados como neutros e respeitados surto de pan-americanismo” promovido


I S T Ó R I C O

em tempo de paz e de guerra. Assim como pelos Estados Unidos, para, entre outros,
na Convenção de Haia, o tratado estabelece atuar na promoção de estudos de história e
H

que, em caso de guerra, os países listem seus literatura dos demais países do continente
A T R I M Ô N I O

monumentos (o instituto do tombamento nas universidades norte-americanas. Robert


no Brasil ainda não existia) e também Smith, doutor pela universidade de Harvard
P

cria um símbolo visual para identificar os com tese sobre a arquitetura portuguesa,
D O

Jurema Machado

elementos protegidos. Oswaldo Aranha, tido veio ao Brasil pela primeira vez em 1937,
E V I S T A

como um “americanista notório” (Dumont; sob os auspícios do American Council of


R

Fléchet, 2009:207), assina o documento pelo Learned Societies, uma reunião de sociedades
Brasil, em nome do então Departamento de científicas, criada em 1919, no espírito da
Cooperação Intelectual do Itamaraty. cooperação cultural internacional. Nessa
Mais pragmático e com um claro projeto missão de estudos sobre a arte colonial,
de governo, em 1937, o ministro Gustavo esteve em várias cidades brasileiras e
Capanema institui o Serviço de Cooperação conheceu Rodrigo Melo Franco de Andrade,
Intelectual (um ano depois transformado em presidente do recém-criado Iphan. Sua
252
Divisão de Cooperação Intelectual) e propõe presença despertou o interesse de Rodrigo,
medidas ambiciosas, como a revisão dos especialmente pelo conhecimento da arte
livros de História e Geografia dos principais portuguesa. E, a partir daí, estabelece-se um
países do mundo para introduzir uma caminho de cooperação e diálogo que vai se
imagem completa e exata do Brasil; a criação estender até 1970, quando o Instituto já era
de bolsas para estudantes brasileiros no presidido por Renato Soeiro. Essa cooperação
exterior; a concessão de subvenções às revistas representava, da parte do Iphan, não apenas
e instituições que organizassem congressos a facilitação do acesso aos monumentos
científicos internacionais sobre a cultura e arquivos no Brasil, mas sobretudo uma
brasileira. Capanema estava convicto de que intensa troca de informações e proposições
o Brasil deveria “trazer uma contribuição de focos para a pesquisa, debate ricamente
original, um novo fôlego, ao patrimônio registrado na correspondência entre Smith
cultural e intelectual da humanidade”, de e Rodrigo (Pereira, 2014:95). Smith, por
forma a combater o imaginário que associava sua vez, retribuía não apenas com palestras
o país exclusivamente à natureza exuberante e cursos no Brasil, mas, como queria
Capanema, com publicações em revistas se dispersa em várias unidades de governo,

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


científicas norte-americanas, com a inserção além do Itamaraty, e à forte ingerência de

A C I O N A L
dos verbetes “Arquitetura no Brasil” e “Arte Gustavo Capanema. A segunda seria “um
brasileira” na Enciclopédia Britânica (Pereira, grande pragmatismo na compreensão dos
2014:93) e artigos na revista Handbook of assuntos e da escolha dos destinatários”,

N
R T Í S T I C O
Brazilian Studies, projeto coordenado por o que fica explícito nas prioridades de
William Berrien e por Rubens Borba de Capanema, já mencionadas, e também na

A
Moraes, com publicação em português em forma com que o Iphan inteligentemente

E
1949, sob o título de Manual Bibliográfico de se apropria da cooperação para objetivos

I S T Ó R I C O
Estudos Brasileiros. não apenas externos, mas também internos.
Se é claro o nexo da vinda de Robert Finalmente, mencionam “a dissociação entre

H
Smith com o contexto da Política de Boa o que se valorizava no plano interno e o que

A T R I M Ô N I O
Vizinhança e com a estratégia de Capanema se mostrava da cultura brasileira no cenário
de divulgação do Brasil, sob a ótica do Iphan, internacional”, referindo-se ao discurso de

P
essa era uma oportunidade para suprir a identidade nacional do Estado Novo, que

D O

Jurema Machado
lacuna de estudos de história da arte e da valorizava, no plano interno, os elementos

E V I S T A
arquitetura brasileiras, além de aproveitar os da cultura e do saber popular e buscava, na

R
benefícios do olhar estrangeiro como apoio política externa, mostrar a cultura erudita.
à legitimação do discurso da preservação do E para quem quer erudição, nada melhor
patrimônio dentro do país. O Iphan, bem do que a sutil sofisticação da Arquitetura
ao seu modo de inserir-se no contexto da Moderna, que acabou se tornando um
cooperação internacional, cultivou a relação dos carros-chefes da imagem externa do
com Robert Smith ao longo de mais de trinta Brasil desejada pela política cultural do
anos, de 1937 a 1970. Smith faleceu em governo, a começar pelo projeto da sede do
253
1975, pouco depois de sua última vinda ao Ministério da Educação e Saúde, que reúne
Brasil e, em 2012, o Instituto publicou uma jovens arquitetos modernistas brasileiros e a
coletânea de seus estudos organizada por contribuição do já célebre Le Corbusier.
Nestor Goulart Reis Filho. O Brasil, ambíguo com relação à
Para Dumont e Fléchet (2009), o Alemanha nazista, foi foco de prioritário
período entre guerras assinala “o surgimento da Feira Mundial de Nova York de 1939,
e o desenvolvimento da diplomacia que, com o tema “O Mundo de Amanhã”,
cultural no Brasil, nos limites do debate buscava promover as relações de vizinhança
sobre a identidade nacional e a definição dos Estados Unidos com a América Latina,
da política estrangeira”. Segundo as diante da ameaça iminente da guerra. Projeto
autoras, três características marcam esse de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, principais
período. A primeira delas seria uma “certa expoentes do Movimento Moderno no
desordem institucional associada ao peso de Brasil, foi o selecionado para a construção
personalidades marcantes”, referindo-se ao do pavilhão brasileiro. O conteúdo deveria
fato da cooperação internacional encontrar- estar à altura: Armando Vidal, organizador
da exposição, definiu como princípio No Iphan, não se registram cooperações e
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

representar “o Brasil como um todo – com intercâmbios relevantes nesses anos, mas no
A C I O N A L

oposição daqueles que ainda não adquiriram seu cotidiano, a considerar como indicador
a capacidade de se afastar de regionalismos o ciclo dos processos de tombamento,
personalistas” (Comas, 2010:71). Como a instituição não parecia dar sinais de
N
R T Í S T I C O

convém a um país moderno, os temas paralisação. Pelo contrário. Segundo os


da exposição iam de recursos naturais e controles do atual Departamento de
A

produção agrícola até o parque industrial, Patrimônio Material do Iphan, de 1939 a


E

o turismo, a administração pública e a 1945 são abertos 175 novos processos de


I S T Ó R I C O

legislação trabalhista. tombamento e 177 bens são efetivamente


Em 1943, ainda no contexto da Boa tombados nesse mesmo intervalo.
H

Vizinhança, acontece a exposição Brazil Em 1945, numa ação referida por


A T R I M Ô N I O

Builds: Architecture New and Old, 1652– pesquisadores como tendo se dado no
1942, organizada pelo arquiteto norte- contexto da Política de Boa Vizinhança,
P

americano Philip Goodwin. A exposição foi Rodrigo Melo Franco atuou junto a William
D O

Jurema Machado

aberta no MoMA, em Nova York, e circulou Berrien, professor em Harvard e Diretor


E V I S T A

por várias cidades dos Estados Unidos, Assistente da Fundação Rockefeller, para
viabilizar a formação do funcionário Edson
R

acompanhada de palestras do próprio Robert


Smith, e depois pelo Brasil, com palestras Motta na área de museus e de restauração de
de Oscar Niemeyer e Henrique Mindlin. bens móveis nos Estados Unidos (Uribarren,
A presença do Iphan, particularmente de 2013). Depois de pouco mais de um ano
Rodrigo Melo Franco, está registrada e é naquele país, Edson Motta estabeleceu uma
perceptível, desde a seleção das obras até os extensa rede de contatos e ministrou cursos
conhecidos juízos de valor sobre o ecletismo, em países latino-americanos até a década de
254
característicos do Iphan naquela época 1970, além do valioso e referencial trabalho
(Carrilho,1998). Publicada em livro em que seguiu prestando no Iphan.
1943, a Brazil Builds tornou-se definitiva A passagem de Berrien não escapa a
para a historiografia da arquitetura, brasileira Drummond, que a registra na crônica “O
e mundial, e um marco da política cultural simpático William Berrien”, tratando com
do ministro Capanema, ao vincular a simplicidade possíveis teorias conspiratórias:
arquitetura tradicional ao Movimento
Moderno no Brasil. (...) qualquer concepção das relações culturais
A exposição e o livro acontecem em baseada na inoculação de uma cultura mais débil
por outra mais poderosa, ou melhor provida de
meio à Segunda Guerra Mundial, iniciada
elementos de expressão, seria uma concepção im-
em setembro de 1939. O governo Vargas
perialista a serviço de fins econômicos e políticos
havia adiado, ao máximo, a entrada do indesculpáveis. Não pude encontrar vestígios dessa
país na guerra, mas, cedendo a pressões tendência em William Berrien. Ele é sem dúvida um
diversas, assumiu dela participar ao lado das cidadão americano. Mas seu interesse pelo Brasil...
forças aliadas, a partir de agosto de 1942. me parece antes de tudo um interesse intelectual e
humano. O trabalho que resulta do impulso dessa Desde sua criação, a Unesco buscou

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


natureza pode servir a fins políticos de momento, construir redes de cooperação envolvendo,
desde que esses fins coincidam com seu objetivo de-

A C I O N A L
além dos Estados Nacionais, instituições
sinteressado, que é o de definir os traços peculiares
científicas, segmentos profissionais e
de cada povo do continente (Andrade, 1964).
organizações da sociedade civil. A primeira

N
R T Í S T I C O
delas, prevista no seu Ato Constitutivo,
O Iphan teve inserção política e é a rede de Comissões Nacionais, que
perspicácia para extrair o melhor do

A
corresponde a um arranjo entre governo

E
projeto de construção da imagem do e sociedade descrito como “Each Member

I S T Ó R I C O
país empreendido pelo governo Getúlio State shall make such arrangements as suit
Vargas. Nutriu-se, assim como a maioria its particular conditions for the purpose of

H
das instituições suas contemporâneas, das associating its principal bodies interested

A T R I M Ô N I O
criações desse período, já que o retorno da in educational, scientific and cultural
democracia, a partir de 1946, não representou matters with the work of the Organization,

P
nenhuma renovação ou reforço da política de preferably by the formation of a National

D O

Jurema Machado
cultura. No ambiente internacional, o grande Commission broadly representative of the

E V I S T A
marco do novo momento será a criação da government and such bodies”. Em 1946,
Unesco, em 16 de novembro de 1945, que

R
o Brasil criou sua Comissão Nacional,
passa a funcionar, direta ou indiretamente, operacionalizada por meio do Instituto
como o novo norte da cooperação Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura,
internacional no campo do patrimônio. o Ibecc. A Comissão Nacional do Brasil
sempre foi um tema mal equacionado
A CRIAÇÃO DA UNESCO E A na estrutura do Itamaraty, até que, em
C O O P E R A Ç Ã O C U LT U R A L N O 2009, o Ibecc foi extinto e, desde então, a
PÓS-GUERRA Comissão não foi reestabelecida (Rezende,
255

2014). Na relação com o Iphan, vale


O Brasil participou diretamente da registrar que uma das primeiras ações do
concepção do Ato Constitutivo e da criação Ibecc foi, em 1947, criar, por orientação
da Unesco, em 1945, e foi o 18º país a da Unesco, a Comissão Nacional do
ratificá-lo, possibilitando alcançar o número Folclore. Em 1958, é lançada a Campanha
mínimo de dezenove Estados signatários para de Defesa do Folclore Brasileiro, sob a
que a constituição da organização entrasse forma de atividade permanente, vinculada
em vigor a partir de 1946. Nos episódios ao Ministério da Educação e Cultura.
de criação, é marcante a participação do Dez anos mais tarde, Edison Carneiro,
delegado do Brasil, embaixador Paulo Berredo então diretor da campanha, cria o Museu
Carneiro, cuja relação com a Unesco iria do Folclore, que hoje tem o nome de seu
prosseguir pelos 37 anos seguintes, atuando fundador e integra o Centro Nacional de
como membro do Conselho Executivo e Folclore e Cultura Popular, fazendo parte
delegado do Brasil junto à Unesco. da estrutura do Iphan (Iphan, 2012).
É conhecida a disputa entre as duas A Unesco passa a apostar na ideia de
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

grandes correntes ideológicas que estiveram que favorecer o conhecimento mútuo entre
A C I O N A L

na criação da Unesco e que, sob diversas culturas seria um ponto de partida para o
formas, persistiram ao longo dos anos: uma respeito e a tolerância, princípio que está na
anglo-americana, originária da Conference base da enorme mobilização institucional
N
R T Í S T I C O

of Allied Ministers of Education – para a produção das “histórias gerais”. As


Came, e uma francesa, que defendia a histórias gerais deram origem a vastas redes de
A

continuidade das atividades do mencionado historiadores, mobilizados segundo regiões do


E

Instituto Internacional de Cooperação mundo, e tendo como princípio promover a


I S T Ó R I C O

Intelectual da Liga das Nações. A posição diversidade de enfoques e favorecer as visões


britânica era favorável a um organismo a partir das regiões abordadas. Assim foi
H

essencialmente intergovernamental, com a História do desenvolvimento científico


A T R I M Ô N I O

em que representantes dos governos da humanidade (iniciada desde a instalação


conduziriam todos os trabalhos, enquanto da Unesco, concluída em 1963 e revista a
P

que a proposta francesa, com a qual se partir de 1978) e o Projeto principal para
D O

Jurema Machado

alinhava o Brasil, defendia a participação apreciação mútua dos valores culturais do


E V I S T A

de setores organizados da sociedade civil Oriente e do Ocidente (1955-1965). Outras


R

representativos das áreas de atuação histórias gerais foram iniciadas, sobretudo


da Unesco. Esse conflito influenciou entre as décadas de 19701980, parte delas
diretamente a escolha do primeiro diretor- concluída, como a História das civilizações
geral, que acabou sendo Julian Huxley, um da Ásia Central, a História geral da América
inglês de ideias liberais, que assumiu com Latina, Os diferentes aspectos da cultura
o compromisso de um mandato encurtado islâmica e a História geral do Caribe. De todos
de apenas dois anos (Rezende, 2014). esses trabalhos, o de maior impacto para o
256
Esse ambiente conturbado será ainda Brasil é a História geral da África, iniciada
mais tensionado pela Guerra Fria, cujos em 1964 e concluída em oito volumes. Entre
conflitos vão rapidamente se materializar na 2007 e 2011, essa coleção monumental foi
Unesco: embates sobre a aceitação ou não traduzida para o português, resultado de
da adesão da Alemanha e do Japão, a recusa cooperação entre o Ministério da Educação e
de aceitação da China, a posterior entrada a Unesco, e tornou-se amplamente divulgada
da União Soviética, em 1954 (Rezende, no Brasil, inclusive em meio eletrônico e
2014). O debate político vai se estender com material didático associado, para dar
sem trégua com a onda de descolonização suporte às políticas de educação e de combate
dos países africanos e asiáticos, que irá à discriminação racial. Em 2013, o Brasil
trazer, para as instâncias de governança da formalizou acordo com a Unesco para apoiar
Unesco, todas as disputas regionais e até a produção do nono volume, agora tratando
infranacionais, escancarando os vínculos da diáspora africana, o tema mais diretamente
entre cultura, direitos humanos, política e relacionado à história cultural do país. Essa
democracia (Unesco, 2004). iniciativa está em curso.
Como a questão racial foi um dos pilares Assim, a Conferência Geral da Unesco em

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


de sustentação do nazismo, uma agenda Florença recomendou para o programa de
1951 um estudo das relações raciais no Brasil.

A C I O N A L
internacional a respeito da discriminação
Esta grande república tem uma civilização que
racial esteve entre as primeiras medidas da
foi desenvolvida pelas contribuições diretas de

N
ONU e da Unesco no pós-guerra. As tensões
diferentes raças e sofre menos do que outras nações

R T Í S T I C O
da Guerra Fria, expondo críticas ao racismo,
dos efeitos dos preconceitos que estão na raiz de
nos Estados Unidos e na África do Sul, e o tantas medidas vexatórias e cruéis em países de

A
movimento de descolonização agregaram composição étnica semelhante. Ainda estamos mal

E
ainda mais calor ao debate. Em resposta a

I S T Ó R I C O
informados sobre os fatores que levaram a esta
uma resolução do Conselho Econômico e situação, sob muitos aspectos, exemplar. Mas, no
Social da ONU, a Conferência Geral da estado atual das ciências sociais, as especulações

H
gerais já não são suficientes. Devemos ter

A T R I M Ô N I O
Unesco de 1949 adotou três resoluções sobre
o tema: “estudar e coletar materiais científicos especialistas, fazer pesquisas no campo. Devemos
aprender com eles exatamente por que e como
sobre questões de raça”, “dar ampla difusão
fatores sociais, psicológicos e econômicos têm

P
ao material científico recolhido” e “preparar

D O
contribuído em graus variados para tornar possível

Jurema Machado
uma campanha educacional com essas

E V I S T A
a harmonia que existe no Brasil (Unesco, 1950).
informações” (Unesco, 1950). Com base na

R
hipótese de que o Brasil havia construído um
A pesquisa intitulada Projeto de Relações
modelo peculiar de convívio social, exemplar
Raciais da Unesco, que no Brasil se tornou
e harmonioso, que deveria ser mais bem
conhecida como Projeto Unesco, foi prevista
conhecido, o país foi selecionado como objeto
inicialmente para se realizar apenas na Bahia,
das pesquisas sobre relações raciais. Segundo
um estado de economia tradicional e rural,
Maio (2000:125), para os Estados Unidos,
mas se estendeu para os centros em intenso
a escolha do Brasil interessava também pela
processo de urbanização – Rio e São Paulo – e 257
“possibilidade de usar um país capitalista
teve ramificações no Sul e em Pernambuco.
periférico na batalha ideológica internacional
(Maio, 2000). Como hoje se sabe muito
contra o comunismo”. Diz o documento
bem, seus resultados revelaram uma situação
The race question, de autoria dos professores
completamente diferente da idealizada:
Ernest Beaglehole (Nova Zelândia); Juan
distância social entre brancos e negros, pouca
Comas (México); Luiz Aguiar da Costa Pinto
mobilidade entre não brancos, classificações
(Brasil); Franklin Frazier (Estados Unidos);
raciais que combinavam definições fenotípicas
Morris Ginsberg (Reino Unido); Humayun
com atributos não biológicos, como classe,
Kabir (Índia); Claude Lévi-Strauss (França) e
status e educação, revelando-se um sistema
Ashley Montagu (Estados Unidos), reunidos
complexo de classificação racial. A partir
por convocação da Unesco em 1950:
desses resultados, o Projeto Unesco acabou se
Chegou o tempo de levarmos em consideração tornando um plano para analisar disparidades
as sociedades que, em grande medida, conseguiram sociais e as desigualdades raciais no Brasil.
resolver os antagonismos por diferenças raciais. Ainda segundo Maio, no artigo “Unesco’s
anti-racist agenda: research on race relations dos terreiros de candomblé. A política de
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

in Brazil in the 1950s”, publicado no portal salvaguarda do patrimônio cultural imaterial


A C I O N A L

da Unesco, seus achados não negaram a – instituída pelo Decreto no 3.551, do ano
2000, e com a criação do Departamento
(...) importância do mito de uma democracia de Patrimônio Imaterial, em 2004 –, iria se
N
R T Í S T I C O

racial paradigmática, mas revelaram as tensões afirmar justamente no momento em que o


entre o mito e o estilo brasileiro de racismo, uma país melhor se aparelhou para enfrentar o
tensão que já havia sido discutida por intelectuais e
A

combate à discriminação e para rediscutir a


E

ativistas negros e brancos no Brasil.


tese da “democracia racial”.
I S T Ó R I C O

O pesquisador chama ainda atenção


A REDE ANTES DAS REDES
H

para outro resultado importante, que foi


A T R I M Ô N I O

a valorização e a projeção internacional de


Nesses primeiros anos da Unesco, ainda
carreiras de cientistas sociais brasileiros. não se percebem reflexos do novo organismo
Além de Costa Pinto, que liderou o grupo
P

na ação do Iphan. Prossegue, no entanto, a


D O

da Bahia e mais tarde tornou-se diretor


Jurema Machado

interlocução com pesquisadores estrangeiros,


E V I S T A

do Centro Latino-Americano de Pesquisas por razões nem sempre vinculadas a uma


em Ciências Sociais – Clapcs, vinculado à
R

estratégia de cooperação internacional,


Unesco, a equipe contava com Roger Bastide mas sempre profícua para o Instituto . Essa
(um dos mais prestigiados, com publicações interlocução, longeva e bem documentada,
internacionais sobre relações raciais), Thales segue resultando, até a atualidade, em
de Azevedo e Florestan Fernandes, que pesquisas e publicações. É o caso de John
passava a atuar como assistente de Bastide; Bury, pesquisador inglês independente,
Fernando Henrique Cardoso e Octavio que esteve no Brasil entre 1947 e 1948 e
258 Ianni, que desenvolviam pesquisa na região produziu uma obra notável, fora do contexto
de Florianópolis, agregada depois ao projeto; da cooperação internacional. Segundo
Oracy Nogueira, Ruy Coelho e René Ribeiro, Myriam Andrade Ribeiro do Oliveira (Bury,
que coordenou o trabalho da Fundação 2006), Bury era considerado um outsider
Joaquim Nabuco, além de pesquisadores por sua pouca interlocução com o Iphan e
estrangeiros que atuaram sobretudo no núcleo por uma percepção da arquitetura brasileira
da Bahia (Maio, 2007). referenciada ao contexto internacional,
Embora não diretamente relacionado ao distante da interpretação nacionalista dada
Iphan, o registro do Projeto Unesco vale por pelos modernistas. Em 1991, com reedição
ter descortinado um tema que só viria a ser em 2006, o Iphan publicou vasta coletânea de
enfrentado pela política de patrimônio muitos seus textos sob o título Arquitetura e arte no
anos mais tarde. Um olhar mais diverso e Brasil colonial.
abrangente sobre o patrimônio brasileiro é Hanna Levy (1912-1984), historiadora
produto, sobretudo, das reflexões ocorridas da arte alemã, também se relaciona com
nos anos 1980, tendo como marco a proteção o Iphan fora do contexto da cooperação
internacional, vinda em 1937 por razões (Alcântara; Brito; Sanjad, 2016).

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


pessoais, muito provavelmente relacionadas A aproximação mais efetiva entre a

A C I O N A L
à sua origem judaica diante da ascensão do Unesco e o Iphan vai se dar especialmente
nazismo. É convidada por Rodrigo Melo a partir de 1966, quando é instalada a
Franco a ministrar cursos de história da arte Representação no Brasil e assinado o

N
R T Í S T I C O
para funcionários do Iphan e para outras acordo de cooperação internacional entre
colaborações, que se estendem até 1947. Suas a Organização e o governo brasileiro. A

A
aulas estão reunidas na publicação Hanna partir de então, a Unesco organiza, com

E
Levy no Sphan: história da arte e patrimônio, a cooperação do International Council of

I S T Ó R I C O
organizada por Adriana Sanajotti Nakamuta Museums – Icom e do International Council
(2010). Germain Bazin (1901-1990), of Monuments and Sites – Icomos, diversas

H
historiador da arte, museólogo e conservador missões de especialistas internacionais ao

A T R I M Ô N I O
do Museu do Louvre, nas suas viagens ao Brasil, cuja ênfase recaiu sobre várias cidades
Brasil entre 1945 e 1949, também estabeleceu que, anos mais tarde, passariam a integrar

P
relação de amizade e de trocas com Rodrigo a lista brasileira de sítios do Patrimônio

D O

Jurema Machado
Melo Franco de Andrade e com os diretores Mundial. A primeira missão foi a de Paul

E V I S T A
regionais do Iphan. Suas pesquisas resultaram Coremans, diretor do Real Instituto de

R
na publicação de Originalidade da arquitetura Estudo e Conservação do Patrimônio
barroca em Pernambuco (1945-1951), Artístico de Bruxelas, Bélgica, que visitou o
Arquitetura religiosa barroca no Brasil (1956), Rio de Janeiro, Sabará, Congonhas e Ouro
O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil Preto. Em duas missões, em 1966 e 1967,
(1963) e Aleijadinho (1963), além de palestras Michel Parent esteve em mais de 35 cidades;
na Europa, divulgando o Barroco brasileiro Frédéric Limburg de Stirum desenvolveu
com o estatuto de uma arte com expressão e um plano diretor para a cidade de Paraty,
259
representação próprias (Pereira, 2012). Um em 1967; Graeme Shankland esteve em
pouco mais tarde é a vez de Mário Chicó Salvador e em outras cidades da Bahia, em
(1905-1966), historiador da arte e museólogo 1968; Alfredo Viana de Lima trabalhou
português, que veio participar de congresso em um plano urbanístico para Ouro Preto,
em 1954, quando conheceu Rodrigo Melo entre 1968 e 1970, e, um pouco mais
Franco, e seguiu colaborando com o Iphan tarde, para cidades no Maranhão, Sergipe
até 1965 (Pereira, 2012). E também de e Alagoas; em 1979, Pierre Habib atuou
João Miguel dos Santos Simões (1907- na investigação sobre segurança estrutural
1972), engenheiro português, especialista nos edifícios de Olinda e Ouro Preto, após
em azulejaria, com várias missões ao Brasil chuvas torrenciais terem atingido as duas
entre 1959 e 1968 e publicações na Revista cidades (Leal, 2008). As visitas de Michel
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Parent foram consolidadas, em 1968, no
reconhecido por ter inspirado o trabalho relatório denominado Protection et mise
de Pedro e Dora Alcântara na preservação en valeur du patrimoine culturel brésilien
de azulejos nos monumentos brasileiros dans le cadre du développement touristique et
écononomique (Parent, 1968), cuja influência International Centre for the Study of the
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

sobre políticas e programas adotados Preservation and Restoration of Cultural


A C I O N A L

posteriormente no Brasil é objeto de grande Property – Iccrom, criado em 1956; ou o


interesse dos pesquisadores. A ênfase na International Council of Monuments and
relação entre patrimônio e desenvolvimento Sites – Icomos, criado por recomendação da
N
R T Í S T I C O

e, em particular, entre patrimônio e turismo, Unesco em 1964, durante o II Congresso


vai estar presente pouco depois, em 1973, Internacional de Arquitetos, o mesmo
A

no Programa de Cidades Históricas, o PCH, congresso que produziu a Carta de


E

o primeiro grande programa de preservação Veneza. Com menor relação com o Iphan,
I S T Ó R I C O

conduzido pelo Iphan. E a relação entre mas fundamental na implementação da


patrimônio e turismo é também pano Convenção do Patrimônio Mundial, está a
H

de fundo da Convenção do Patrimônio International Union for the Conservation of


A T R I M Ô N I O

Mundial, seja pelas ameaças que podem advir Nature – IUCN, criada em 1948, também
de sua má gestão, seja pelos benefícios que sob os auspícios da Unesco. A IUCN detém
P

uma gestão sustentável pode representar. uma enorme rede mundial e, diferente das
D O

Jurema Machado

As redes de especialistas internacionais demais, além de profissionais e ONGs,


E V I S T A

que começam a circular pelo Brasil por também aceita como membros instituições
R

iniciativa da Unesco são sobretudo redes de governamentais – Estados, agências,


organizações não governamentais, criadas sob organizações políticas ou de integração
seus auspícios, para se fazer presente em todo regional.
o mundo e buscar canais com a sociedade
civil e os meios acadêmicos. Essa foi uma AINDA OS EFEITOS
estratégia adotada pela Unesco desde seus DAS GUERRAS E SEUS
primórdios, uma hábil “versão analógica” do DESDOBRAMENTOS
260
mundo das redes em que vivemos hoje. Sem
registrar e considerar essa estratégia, torna-se A primeira convenção da Unesco na área
difícil compreender as ações e, sobretudo, do patrimônio cultural foi a Convenção para
a evolução das ideias que resultarão em Proteção da Propriedade Cultural em Caso de
cartas internacionais e, principalmente, Conflito Armado (Unesco, 1954), conhecida
nos instrumentos normativos da Unesco, como Convenção de Haia, aprovada em
todos com impactos muito concretos na 1954, seguida de dois protocolos, um de
atuação do Iphan. Na área da cultura e do 1954 e outro de 1999. A Convenção de Haia
patrimônio, a Unesco estimulou a criação, visa proteger os bens culturais em caso de
participa da manutenção e realiza atividades guerra, prevenir a exportação ilegal desses
de cooperação com o International Council bens e comprometer os países envolvidos a
of Museums – Icom, criado em 1946; com preservar qualquer bem cultural apreendido
o International Council of Archives –ICA, até o final do conflito. As situações de
criado em 1948 sob influência da Unesco conflito armado, além da destruição de bens,
e à semelhança da criação do Icom; com o dão origem a saques e apropriações ilegítimas,
as quais devem ser combatidas, mesmo pelos muito próximos aos formulados no ambiente

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


países não diretamente envolvidos. O Brasil internacional.

A C I O N A L
ratificou a Convenção de Haia em 1958 Em dezembro de 1956, a Conferência
e o 2º Protocolo em 2005. Países que são Geral da Unesco, realizada em Nova Dehli,
potências bélicas ou que protagonizam alguns aprovou a Recomendação que define os

N
R T Í S T I C O
dos principais conflitos na atualidade não são princípios internacionais que deverão ser
signatários dessa convenção, como é o caso aplicados às escavações arqueológica (Cury,

A
dos Estados Unidos, de Israel, Inglaterra, 2004:69). Os principais elementos da

E
Rússia, Síria, Turquia, Iraque, entre Recomendação serão, menos de cinco anos

I S T Ó R I C O
outros. Em que pesem os grandes esforços mais tarde, incorporados pela legislação
diplomáticos, a efetividade da Unesco tem brasileira, mais especificamente pela Lei

H
sido mínima no momento dos conflitos. no 3.924, de julho de 1961, que “dispõe

A T R I M Ô N I O
Obtém maior sucesso a posteriori, na sobre os monumentos arqueológicos e
recupeção dos sítios atingidos, na prevenção pré-históricos”, baseando-se no princípio

P
do tráfico de objetos e na capacitação de redes constitucional de que a propriedade do

D O

Jurema Machado
de profissionais. A aplicação da Convenção subsolo pertence à União – tema também

E V I S T A
de Haia depende sobretudo da ação do Icom, arrolado na Recomendação de Nova Dehli.

R
com sua rede de museus e de museólogos, e Tornam-se então obrigatórias a prévia
do Comitê Internacional do Escudo Azul, autorização para explorações arqueológicas,
referindo-se ao símbolo usado para identificar a apresentação de relatórios do avanço
os locais culturais protegidos pela Convenção de pesquisas e a comunicação de achados
(International Committee of the Blue Shield fortuitos, sendo o Iphan a entidade
– ICBS). O Comitê Brasileiro do ICBS foi autorizadora e fiscalizadora. Para um país de
criado em 2006, por iniciativa das instituições tradição mineral e exportadora, a lei editada
261
de arquivos e bibliotecas, e tem participação pelo breve governo de Jânio Quadros é,
do Iphan, inclusive de suas unidades nos sob a ótica do embate entre preservação e
estados. desenvolvimento econômico, um marco
Sob a ótica dos instrumentos de proporção semelhante ao do Decreto-lei
internacionais – convenções, recomendações no 25, de 1937. Seu artigo 22 condiciona
e cartas originárias de entidades o “aproveitamento econômico das jazidas”
preservacionistas –, há uma linha direta que à conclusão de “sua exploração científica,
une a proteção em caso de conflito armado, o mediante parecer favorável da Diretoria do
tráfico ilícito de bens culturais, o patrimônio Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”,
arqueológico e os inventários. Embora a ainda que seu parágrafo único pondere sobre
Convenção de Haia praticamente não tenha a extensão da área a ser protegida, utilizando
tido presença na história do Iphan, todos os expressões como “sempre que possível ou
demais temas fazem parte da trajetória do conveniente, uma parte significativa, a ser
Instituto, tanto na cronologia de medidas protegida pelos meios convenientes, como
legais quanto nos seus conteúdos, sempre blocos testemunhos”. A propriedade dos
bens arqueológicos é também tratada pela a análise de milhares de bens em processo
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

Recomendação, visando garantir o acesso de saída do país, na sua grande maioria,


A C I O N A L

público ao patrimônio, mas de forma mudanças de residência de particulares para


mais geral e menos assertiva do que na lei o exterior, cujos objetos raramente estão
brasileira, que, no seu artigo 7º, estabelece entre os restringidos pela lei. Trata-se de
N
R T Í S T I C O

com inequívoca clareza que “As jazidas um esforço gigantesco para uma filtragem
arqueológicas ou pré-históricas de qualquer muito reduzida, mas certamente com efeito
A

natureza, (...) são consideradas, para todos valioso por ser inibidor da circulação ilegal de
E

os efeitos, bens patrimoniais da União”. bens e da evasão do patrimônio, não apenas


I S T Ó R I C O

A Recomendação dá ênfase à proibição brasileiro, mas todo e qualquer bem que


de escavações ilegais e do comércio ilícito tenha origem ilícita.
H

de bens, aspecto que aparece com menor Em 1970, o tráfico ilícito de bens
A T R I M Ô N I O

ênfase na lei brasileira, pelas características culturais torna-se objeto da Convenção


de país pouco relevante no mercado da Unesco sobre as medidas que devem
P

internacional de bens roubados, aspecto ser adotadas para impedir e proibir a


D O

Jurema Machado

refletido apenas por meio da previsão de importação, a exportação e a transferência


E V I S T A

controle da saída de materiais arqueológicos de propriedades ilícitas de bens culturais


R

do país. A atenção para com a preservação (Unesco, 1970), instrumento que o Brasil
e difusão do conhecimento está também ratificou rapidamente, em 1973. Essa
presente na Recomendação e, na lei de Convenção busca, além de inibir a circulação
1961, está contemplada na obrigatoriedade internacional de bens, estimular os países a
de manutenção de um cadastro dos implantar medidas preventivas e coercitivas,
monumentos arqueológicos do Brasil. Outros assim como participar do intercâmbio
temas da Recomendação, como a educação internacional de informações de combate ao
262
e a gestão de coleções, embora não explícitos roubo. Complementarmente à Convenção,
na lei brasileira, seguiram sendo objeto de em 1978, a Unesco aprova a Recomendação
aprimoramento pela prática do Iphan ao sobre a proteção dos bens culturais móveis
longo dos anos. (Unesco, 1978), que define como bens
Ainda no contexto de coibir o comércio móveis todos os que “são a expressão ou
ilegal de bens considerados patrimônio o testemunho da criação humana ou da
nacional, em 1965, a Lei no 4.845 passa a evolução da natureza e que têm um valor
proibir a saída do país de “quaisquer obras arqueológico, histórico, artístico, científico
de artes e ofícios tradicionais, produzidas no ou técnico”. Segue-se uma lista de onze
Brasil até o fim do período monárquico”, tipologias de bens móveis, que inclui objetos
abrindo exceção para saída temporária para arqueológicos, elementos procedentes do
fins de intercâmbio cultural e mediante desmembramento de monumentos, bens de
autorização do Iphan. A partir de 1992, interesse artístico, documentos de arquivos,
quando a norma é regulamentada, passa a espécies de zoologia etc. Embora o tema dos
ser cotidianamente demandada do Instituto inventários no Brasil esteja presente desde
antes da política de preservação, não se pode à lavagem de dinheiro, tendo por base a

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


dissociar do movimento internacional o fato obrigatoriedade do cadastro de comerciantes

A C I O N A L
de que inicia-se, no país, a década mais fértil de obras de arte, já prevista desde a edição
da produção de inventários, especialmente do Decreto-lei no 25/1937. Essa tarefa, quase
de bens móveis, dinamizada pelos recursos inexequível até poucos anos atrás, vem sendo

N
R T Í S T I C O
da Fundação Nacional Pró-Memória e da fortalecida por regulamentação específica,
Fundação Vitae. Em 1985, o Conselho além de largamente facilitada pelo avanço da

A
Consultivo do Patrimônio Cultural, do internet.

E
Iphan, deliberou que o tombamento de

I S T Ó R I C O
edificações de culto religioso deveria incluir AS CONTRADIÇÕES DO
os bens móveis e integrados presentes no seu D E S E N V O LV I M E N T O , R E F E R Ê N C I A S

H
interior na data do tombamento, estendendo INTERNACIONAIS E A FORMAÇÃO

A T R I M Ô N I O
assim a proteção para um quase infindável PA R A O PAT R I M Ô N I O
– e até hoje não dimensionado – número de

P
bens móveis e integrados, o que somente será As décadas de 1960, 1970 e 1980, tanto

D O

Jurema Machado
solucionado mediante um novo esforço de internacionalmente como no Brasil, são de

E V I S T A
inventários. ideias fervendo. Se aqui faltava liberdade

R
Dez anos mais tarde, gestões da Unesco e as cidades cresciam fora de controle, o
levariam à aprovação da Convenção do ambiente internacional era pródigo na
Instituto Internacional para a Unificação produção de documentos de referência no
do Direito Privado – Unidroit sobre objetos campo da preservação, não só pela Unesco,
culturais roubados ou ilegalmente exportados mas sobretudo pelo Icomos, por congressos
(Unesco, 1970), que atua não mais sobre de arquitetos e outros fóruns multilaterais.
países, como os instrumentos da Unesco, mas Temas, à primeira vista, distantes do campo
263
sobre relações comerciais entre particulares, da preservação, ganham espaço e influência
ao estabelecer, além da obrigatoriedade de nos rumos do patrimônio, com os debates
devolução do bem roubado, a necessidade de na ONU sobre o meio ambiente e sobre o
que seu detentor prove ter tomado, quando conceito e os impactos do desenvolvimento.
da aquisição, todas as medidas disponíveis As estratégias das Nações Unidas para
para assegurar-se da sua origem. O Brasil o desenvolvimento até a década de 1960
ratificou essa Convenção em 1999, outros tiveram como foco a industrialização e a
37 países o fizeram até abril de 2017, mas institucionalização do sistema de cooperação
a lista de ratificações não inclui países ricos internacional para o desenvolvimento
e potencialmente “importadores”, como os (Banco Mundial e FMI). Se até então
Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Japão desenvolvimento significava, exclusivamente,
e Israel, dentre outros. crescimento econômico, a partir de
Mais recentemente, o tema dos 1960 as “Décadas do Desenvolvimento
bens móveis e do comércio de arte vem Internacional” da ONU começam a dar
aproximando o Iphan dos órgãos de combate sinais de preocupação com a eficácia das
políticas de desenvolvimento ao se constatar, cultural e politicamente muito diversos. Ficam,
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

em países como o Brasil, por exemplo, o por essa razão, frequentemente limitadas
A C I O N A L

aumento da desigualdade e de carências a questões gerais, vindo muitas vezes a se


sociais de todo tipo (United Nations, desdobrar em cartas regionais ou nacionais,
International decades). Aqui, como nos demais como há vários exemplos de cartas latino-
N
R T Í S T I C O

países em desenvolvimento, essa situação americanas ou brasileiras.


se agrava ainda mais nos anos 1980, com Em 1964, sob os auspícios da Unesco,
A

a crise da dívida dos países do Sul frente acontece em Veneza o II Congresso


E

ao Fundo Monetário Internacional. Em Internacional de Arquitetos e Técnicos


I S T Ó R I C O

1987, o relatório da World Comission on dos Monumentos Históricos. Ali se decide


Environment and Development, conhecido pela criação do Icomos e é produzido o
H

como Relatório Brundtland, introduz documento basilar do próprio Icomos e da


A T R I M Ô N I O

oficialmente os temas ambientais e sociais prática da conservação a partir de então, que


na pauta do desenvolvimento internacional, é a Carta de Veneza (Cury, 2004:91-95).
P

reconhecendo a pobreza e desigualdade como Para o Brasil, que experimentava o período


D O

Jurema Machado

uma das principais causas da degradação de maior expansão demográfica e territorial


E V I S T A

ambiental (United Nations, 1987). A das suas cidades, com rápidas e desastrosas
R

evolução dessa posição iria levar à Agenda transformações nos centros históricos e na
21, que prevê a cooperação global para o paisagem, a Carta de Veneza traz conceitos
desenvolvimento sustentável, adotada na valiosos para sustentar a noção de ambiência,
Conferência das Nações Unidas sobre Meio ao entender o monumento como sendo
Ambiente e Desenvolvimento, no Rio, em “inseparável da história de que é testemunho
1992. e do meio em que se situa” e ao reconhecer
Esse rápido panorama de três décadas como “válidas as contribuições de todas as
264
é subjacente à formulação das referências, épocas”. Três anos mais tarde, em 1967,
muito importantes para o patrimônio, as Normas de Quito sobre conservação e
presentes na Convenção do Patrimônio utilização de monumentos e sítios de interesse
Mundial (1972) e naquelas a que, no histórico e artístico (Cury, 2004:105-122),
Brasil, se convencionou chamar de “cartas produzidas no âmbito da OEA, tratam
patrimoniais”. Essas cartas são as principais da necessidade de medidas urgentes para
representantes da efervescência do pensamento o patrimônio americano ameaçado pelo
sobre o patrimônio, mais frequentes e desenvolvimento. Reiteram a noção de que o
inovadoras nesses trinta anos do que nos que espaço é inseparável do momento e de que a
se sucederam. Longe de serem um receituário tutela do estado deve incidir sobre o contexto
acabado, ou um “manual de aplicação“ da onde se inserem os bens. Reconhecem
teoria da conservação, as cartas refletem, assim que o monumento cumpre função social e
como os instrumentos da Unesco, o consenso apontam o turismo como um dos possíveis
possível em um dado momento histórico, instrumentos de compatibilização da
consenso geralmente originário de coletivos preservação com o desenvolvimento.
Se, desde a sua criação, o Iphan se quais as políticas de patrimônio dependem

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


ressentia da ausência de pessoal especializado cada vez mais –, o tema não chega a ser

A C I O N A L
para compor os quadros da instituição, tratado como objeto de abordagem específica.
as novas referências internacionais e as Em suma, durante muitos anos, no que
se refere à formação especializada para

N
complexas pressões no contexto do país

R T Í S T I C O
colocam o tema da formação profissional a conservação e a gestão do patrimônio,
na ordem do dia. Como menciona Augusto somente se tinha acesso fora do Brasil: no

A
da Silva Telles, ao descrever as experiências México, nos Estados Unidos, França, Itália e

E
Inglaterra. Em 1965, o Brasil havia aderido

I S T Ó R I C O
de formação para o patrimônio no Boletim
Sphan 22: ao Iccrom que, por muitos anos, alimentou
a formação de técnicos brasileiros com seu

H
curso de conservação arquitetural baseado na

A T R I M Ô N I O
O crescimento do órgão processava-se de
forma lenta; assim novos técnicos que nele foram Carta Italiana de Restauro (Lyra, 2016:66).
ingressando ao correr desses anos iam recebendo Não alheia a esse quadro, desde os

P
treinamento a partir da própria experiência do dia anos 1960, a formação de especialistas

D O

Jurema Machado
a dia, nos canteiros de obras e na elaboração de na América Latina estava no foco da

E V I S T A
projetos, especificações e, igualmente, através do
Unesco, cuja ação mais marcante foi
debate sobre casos concretos – análise de acertos e

R
promover a criação do Centro Regional
enganos (Silva Telles, 1983:23).
Latinoamericano de Estudios para la
Conservación y Restauración de Bienes
A preocupação com a formação sempre
Culturales – Cerlacor, em 1967, no
esteve presente, traduzida em políticas México (Nascimento, 2016:222). O
institucionais desde pelo menos 1945, com a Centro passou por mudanças sucessivas até
criação da cátedra de Arquitetura no Brasil na que, no ano de 2000, transformou-se na
Faculdade Nacional de Arquitetura no Rio de 265
Coordinación Nacional de Conservación
Janeiro, atendendo a gestões de Rodrigo Melo del Patrimonio Cultural – CNCPC, que
Franco, depois seguida por outras na Bahia, corresponde atualmente à área normativa
Pernambuco e Minas Gerais (Nascimento, do Instituto Nacional de Antropología e
2016:213). Nas poucas escolas de arquitetura Historia – Inah em matéria de conservação
do país até a década de 1960 (Rio de Janeiro, de bens paleontológicos, arqueológicos e
São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, históricos. Como se verá adiante, no Brasil,
Bahia e Pernambuco), o tema da preservação as iniciativas de cursos de especialização,
era tratado pelas disciplinas de História da a partir da década de 1970, tiveram a
Arquitetura ou Arquitetura no Brasil, situação contribuição da Unesco para o aporte da
que prevaleceu até 1994, quando a disciplina perspectiva internacional, seja acionando as
se tornou obrigatória no currículo da redes que ajudou a criar e manter – Iccrom,
graduação. Da mesma forma, nas graduações Icomos e Icom –, seja facilitando a circulação
de cursos como História, Antropologia, de professores estrangeiros e a difusão e
Ciências Sociais – campos disciplinares dos participação de alunos latino-americanos.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

266
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
Brasília
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
267

Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
No início dos anos 1970, o governo (Andrade, 2012:40). As ideias de Hugues de
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

federal concebe um binômio estratégico que Varine, registradas em bibliografia posterior,


A C I O N A L

associa a busca do engajamento de estados e são de crítica aos critérios acadêmicos e


municípios na política de preservação com um estéticos para a seleção do que deve ser
abrangente programa de apoio à conservação considerado patrimônio, não levando em
N
R T Í S T I C O

de conjuntos urbanos, o Programa de Cidades conta seus significados para as comunidades,


Históricas – PCH, executado entre 1973 e nem a noção de que o patrimônio, enquanto
A

1979 (Corrêa, 2012). Esse contexto explica recurso, deve servir à sociedade como um todo
E

o empenho do Iphan em promover, em (De Varine, 2012).


I S T Ó R I C O

cooperação com os estados, três cursos de Para os cursos, mais uma vez a Unesco
especialização em patrimônio, realizados nos articula a presença de Michel Parent e Alfre-
H

anos de 1974, 1976 e 1978, respectivamente do Viana de Lima, já conhecidos e inclusive


A T R I M Ô N I O

em São Paulo, Pernambuco e Minas Gerais. contratados para desenvolver trabalhos que
O perfil essencialmente prático dessas implicavam estender o escopo e o período de
P

especializações – discussão de casos concretos, suas missões ao Brasil. Esses consultores atuam
D O

Jurema Machado

visitas de campo, professores de longa prática em consonância com os preceitos da Carta


E V I S T A

de intervenções – deixava em segundo plano, de Veneza, enfatizando sobretudo a relação


R

a princípio, o debate teórico e a experiência entre o planejamento urbano e o patrimônio,


internacional. Mas, segundo depoimento e funcionam como interlocutores da Unesco
de Antônio Luís Dias de Andrade, aluno da na divulgação de programas e assistência téc-
edição de 1974, todos os dilemas do cotidiano nica oferecidos por esse organismo aos países
que antes pareciam estar resolvidos “não em desenvolvimento, privilegiando questões
estavam resolvidos coisa nenhuma” (Andrade, referentes ao patrimônio cultural e ao turismo
2012:40). Temas como a Carta de Veneza (Leal, 2016). Segundo Leal, os relatórios e
268
e as Normas de Quito, ou o conceito de recomendações desses consultores, além de ofe-
documento-monumento, proposto pela Nova recer sugestões ao corpo técnico, serviam para
História francesa, constavam dos programas
de curso e serviram, inclusive, para suscitar (...) promover a valorização das iniciativas da
discussões conceituais sobre o Decreto-lei nº diretoria [DPHAN] junto ao governo brasileiro
e pleitear o incremento dos recursos disponíveis
25, de 1937 (Nascimento, 2016:217). Nessa
junto aos órgãos cabíveis (Leal, 2016:109).
mesma edição de 1974, Ulpiano Bezerra
de Meneses, coorganizador e professor do
E ainda: “o peso dado à atividade turística
curso, convidou a dar aulas o museólogo e
pela Unesco parece ser superior àquele atribu-
historiador da arte Hugues de Varine-Bohan,
ído a tal atividade pela DPHAN”, já que:
referido por todos os participantes como a
grande contribuição para a atualização da Os documentos sugerem maior interesse,
noção de patrimônio, ao atuar como uma por parte dessa diretoria, pela assistência
espécie de desestabilizador do “pensamento financeira e técnica envolvida no plano de
único” do Iphan no ambiente de formação incentivo e que poderia ser utilizada em prol
da conservação e recuperação de monumentos A CONVENÇÃO DO

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


e proteção da natureza, do que propriamente P AT R I M Ô N I O M U N D I A L E
pela criação de relações mais próximas entre o

A C I O N A L
S E U S M U I T O S R E T R AT O S
turismo e o patrimônio cultural brasileiro (Leal,
2016:113).

N
Tanto para a Unesco, quanto para o

R T Í S T I C O
Brasil, o grande marco da cooperação cultural
As observações da autora corroboram o
internacional é a Convenção para a Proteção
já mencionado em seções anteriores: para

A
do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural

E
o Iphan, a cooperação internacional, além

I S T Ó R I C O
da Humanidade (Unesco, 1972), conhecida
dos propósitos que lhe são inerentes, sempre
como Convenção do Patrimônio Mundial,
funcionou como estratégia para buscar apoio
aprovada em 1972 e ratificada pelo Brasil

H
político, recursos e meios para atuar dentro

A T R I M Ô N I O
em 1978. O evento que melhor expressa a
do próprio país.
necessidade de uma ação internacional de
A participação da Unesco nos cursos
proteção ao patrimônio cultural foi a ameaça
de formação foi formalizada em Projeto

P
de destruição dos templos de Abu Simbel e

D O
de Cooperação Técnica Internacional,

Jurema Machado
Philae, no alto rio Nilo, para a construção da

E V I S T A
objeto de acordo entre Iphan e Unesco,
barragem de Assuan. Embora esse seja um
coordenado, da parte da Unesco, pelo

R
caso exemplar de campanha internacional em
chefe da Seção de Operações e Formação, favor de um bem de valor inestimável para
Hector Arena (Corrêa, 2012:208). Além a humanidade, discussões sobre a proteção
do curso de São Paulo, realizaram-se internacional para sítios naturais associados
os cursos de Recife (1976) e de Belo a locais históricos já aconteciam nos Estados
Horizonte (1978). Um quarto curso Unidos desde 1965, quando, durante
ocorreu em 1981, em convênio com a conferência na Casa Branca, em Washington, é
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 269
criada uma Fundação do Patrimônio Mundial
da Universidade Federal da Bahia, sob para proteger sítios naturais e históricos (Bo,
o título de Curso de Especialização 2003). Em 1968, outra iniciativa, dessa vez da
em Restauração e Conservação de IUCN, propõe um processo de consulta para
Monumentos e Conjuntos Históricos – o estabelecimento de acordo internacional
Cecre. O Cecre se realizou continuamente de proteção de bens naturais. Em 1970, a
desde então e foi transformado em Conferência Geral da Unesco decide pela
mestrado profissional a partir de 2009. preparação de um projeto de convenção
Em Minas Gerais, a experiência também e de uma declaração sobre a proteção dos
se desdobrou na criação, em 1980, do “monumentos e lugares de interesse universal”.
Centro de Conservação e Restauração de Em 1972, durante a Conferência das Nações
Bens Culturais Móveis – Cecor, atualmente Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
a principal referência de formação para em Estocolmo, após análise dos anteprojetos
a conservação de bens móveis no Brasil da Unesco, relativos aos bens culturais, e
(Corrêa, 2012:208). da IUCN, relativo ao patrimônio natural,
decidiu-se pela convergência para um único permitiriam a apreensão da síntese da evolução
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

texto sob a forma de uma convenção da estética do patrimônio mundial.


A C I O N A L

Unesco (Ricarte, 2010).


Esse instrumento normativo, que, Sobre os complexos princípios de
diferente das cartas patrimoniais, implica classificação dos bens quando das inscrições,
N
R T Í S T I C O

em responsabilidades legais para os estados considera-os:


signatários, é dotado de tal inteligência
(...) puros efeitos de agenciamentos
A

que, mesmo apoiado em conceitos cada


E

conseguidos durante a negociação (não só


vez mais discutíveis, como a ideia de “valor
I S T Ó R I C O

entre nações, mas também, entre instâncias de


universal”, desenvolveu grande capacidade
autoridades, entidades, competências culturais
adaptativa para seguir sendo mobilizador e etc.), e, desse modo, a constituição de um
H
A T R I M Ô N I O

capaz de produzir efeitos interessantes, seja inventário universal, se torna dependente,


como plataforma de cooperação, seja no essencialmente, da arte política (Falguières,
ambiente interno aos países. Essa inteligência 1997:297-304)
P

diz respeito sobretudo a usar as referências


D O

Jurema Machado

teóricas para conduzir ao conceito de “valor Para escapar a essa “arte política” e
E V I S T A

universal excepcional”, capaz de mobilizar, conferir credibilidade ao instrumento,


R

muito mais do que a preocupação com o a Convenção prevê rígida estratégia de


“universal’, os sentimentos de nacionalidade governança – Conferência das Partes, Comitê
e o desejo de cada país de ver seu patrimônio do Patrimônio Mundial e pareceres técnicos
reconhecido no contexto internacional. No de órgãos assessores independentes, no
entanto, no ambiente acadêmico, não faltam caso, Icomos e IUCN –, além de critérios
críticas ao conceito de “valor universal” e à permanentemente atualizados por meio de
sua difícil operacionalização. É o que afirma polpudas “diretrizes operacionais” (Unesco
270
a pesquisadora Patricia Falguières, citada por – World Heritage Centre, 2012). Ainda que
Bo (2003:108), segundo a qual, conceitualmente problemática, a Convenção
tem seu sucesso atestado pela adesão da quase
(...) os idealizadores da Convenção, ao totalidade dos países-membros da Unesco,
proporem-se à incomensurável tarefa de elaboração pelo crescente número de bens inscritos –
dos critérios científicos de inscrição na lista, 1.052 até 2016 – e pela mobilização que
terminaram produzindo um tipo de improvisação o instrumento segue sendo capaz de gerar
conceitual que prejudicaria a própria legitimidade nas comunidades e nos governos. Todo esse
da ação de proteção (...) avaliar sítios com vistas
arcabouço normativo nutrido para submeter
a criar uma série de valor universal baseada na
o ímpeto político dos estados ao império da
autenticidade e no caráter exemplar desses sítios
técnica e da meritocracia tornou-se complexo
revelou-se um desejo equivocado de coerência
estética (...) a excessiva e arbitrária justaposição e de difícil apreensão. A convenção “apolítica”
de critérios heterogêneos veio a estabelecer uma suscita os mais politizados debates na Unesco,
lista do patrimônio semelhante a um inventário caminho muito semelhante ao que vem
casuístico e sem classificações cruzadas que percorrendo a Convenção para a Salvaguarda
do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003 período, são aprovadas sete candidaturas

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


(Unesco, 2003). O desafio é encontrar o brasileiras, seis bens culturais e um natural.

A C I O N A L
equilíbrio adequado, uma vez que não é nada Em 1988, a realização, em Brasília, do mais
desprezível o melhor dos seus efeitos, que é importante evento do calendário anual, a
a ampliação do compromisso dos estados- reunião do Comitê do Patrimônio Mundial,

N
R T Í S T I C O
membros para com a preservação. Exigências fecha esse ciclo virtuoso. Nessa fase, o Brasil
da Unesco implicam contrapartidas dos se empenha em inscrever seus sítios mais

A
países – não apenas em investimentos, mas consagrados: a lista se inicia por Ouro Preto

E
sobretudo em melhorias na gestão –, que (1980), seguida de Olinda (1982), Missões

I S T Ó R I C O
se mobilizam quando instados a defender Jesuíticas Guaranis (1983), Salvador e o
valores da nacionalidade frente a um coletivo Santuário do Bom Jesus de Congonhas

H
internacional. Outro efeito muito benéfico, (1985), inequívocos marcos do período

A T R I M Ô N I O
claramente presente na experiência brasileira, colonial, numa varredura que oferece um
é o fato de que a Convenção empoderou pequeno retrato da diversidade presente no

P
as comunidades locais e os movimentos território. Em 1986, é inscrito o primeiro

D O

Jurema Machado
preservacionistas, que dela se valem para bem natural, o Parque Nacional do Iguaçu,

E V I S T A
pressionar os governos contra negligências ou iniciativa que não envolve o Iphan, e, em

R
pelo aprimoramento de medidas de proteção 1987, Brasília, o primeiro representante
do patrimônio. do Movimento Moderno a integrar a
No que se refere aos bens culturais, a lista mundial, um marco na história da
aplicação da Convenção do Patrimônio própria Convenção. Esse tema merece um
Mundial no Brasil é diretamente dependente destaque adicional, mas antes é importante
da ação do Iphan, seja porque cabe ao registrar o papel de Augusto da Silva Telles
Instituto a garantia da preservação dos sítios na trajetória de cooperação internacional
271
em nível nacional, seja como propositor do Iphan, desde a década de 1960 até sua
ou legitimador das candidaturas à lista. De aposentadoria, em 1991.
1983 a 1999, quando não havia restrições Embora sem uma denominação oficial de
à reeleição, o Brasil foi ininterruptamente “assessoria internacional” ou algo equivalente,
membro do Comitê do Patrimônio Mundial, Silva Telles respondeu pela presença do
numa longa sequência de três mandatos Iphan nos fóruns multilaterais, não apenas
– 1980/1987, 1987/1993 e 1993/1999. na Unesco, e trouxe para a instituição o
Interrompeu sua participação por oito anos debate sobre os instrumentos internacionais,
e teve novo mandato de 2007 a 2011. Ainda a começar pela Carta de Veneza, objeto das
assim, não se pode afirmar que essa presença ações de capacitação empreendidas pelo
tenha sido, por todo o tempo, vigorosa, Iphan sob sua liderança. Como ele próprio
muito menos homogênea. relata em entrevista a Analucia Thompson,
Uma primeira fase, de marcante atuação estimulado por um diretor da Unesco
do Iphan, vai da ratificação da Convenção quando em viagem a Paris, em 1978, criou o
pelo Brasil, em 1978, até 1988. Nesse Comitê do Icomos no Brasil e o presidiu até
1982 (Thompson, 2010). O site do Icomos pela primeira vez, uma situação em que a
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

internacional menciona que Silva Telles serviu iniciativa da candidatura tem origem fora
A C I O N A L

ao seu Comitê Executivo de 1984 até 1987, do Iphan. Pela fragilidade operacional, mas
exercendo um mandato como vice-presidente também por dúvidas de natureza conceitual,
e foi nomeado membro honorário do Icomos o Iphan ainda não havia sequer protegido
N
R T Í S T I C O

em 1999. Fluente em francês, publicou Brasília pelo tombamento federal, quando


artigos em várias revistas internacionais o governador do Distrito Federal, José
A

e ambientou-se nos fóruns e reuniões, Aparecido de Oliveira, temeroso do processo


E

assumindo, inclusive, o papel de relator de de emancipação política do DF e inspirado


I S T Ó R I C O

sessões do Bureau e presidindo a reunião do pelo desejo do próprio Juscelino Kubitschek


Comitê do Patrimônio Mundial realizada e dos autores do projeto da cidade e de seus
H

em 1988, em Brasília. A atuação do Brasil edifícios, decide dar um passo além e propor
A T R I M Ô N I O

nessa primeira fase se deve muito à liderança a inscrição de Brasília na lista da Unesco. O
política e estratégica de Aloisio Magalhães Iphan participa do processo com os aportes
P

e à atuação profissional de Silva Telles. A de um Grupo de Trabalho criado ainda na


D O

Jurema Machado

ausência de ambos – pelo falecimento de gestão de Aloisio Magalhães, o GT Brasília,


E V I S T A

Aloisio e pela redução das viagens e depois mas a opção pela inscrição, diferente do
R

aposentadoria de Silva Telles – explica, em foco do GT, se concentra exclusivamente


parte, um longo “silêncio do Brasil” que será, na área projetada por Lucio Costa (Ribeiro,
como se verá adiante, claramente percebido 2005). Todo o procedimento é conduzido
no ambiente internacional. Por mais que as pela equipe do governo distrital. Até mesmo
instituições busquem despersonalizar suas a garantia legal da preservação em âmbito
políticas e torná-las sistêmicas, a dependência nacional, exigida pela Unesco, é oferecida
de fortes personagens ainda é um traço da por meio de um decreto distrital, e não pelo
272
história de muitas delas, em especial a do tombamento federal, até então inexistente.
Iphan. Como referido nas sessões iniciais José Aparecido de Oliveira, novamente
deste artigo, a ausência de marcos gerais da nomeado por Sarney como Ministro da
política externa brasileira para a cooperação Cultura (1988-1990), é quem solicita ao
cultural deixou ao Iphan a tarefa de escolher Iphan o tombamento de Brasília, processo
o seu caminho e dar sustentação às suas rapidamente concluído em 1990, com
escolhas. Quando a instituição se fragiliza a inscrição do sítio no Livro do Tombo
drasticamente a partir de 1989, durante o Histórico. A Portaria no 4, de 1990 (depois
governo Collor, e enfrenta, ao longo de toda Portaria no 314, de 1992), irá regulamentar
a década de 1990, baixos salários e o processo as intervenções na área tombada, espelhando,
de redução da máquina estatal, a cooperação por sua vez, o Decreto Distrital de 1987 e o
internacional praticamente desaparece das memorial de Lucio Costa (Ribeiro, 2005).
prioridades do Iphan. Em seguida, a inscrição do Parque
Um pouco antes, mas não dissociado Nacional da Serra da Capivara resulta
desse quadro, o caso de Brasília registra, também de iniciativa externa ao Iphan, dessa
vez de uma organização não governamental, do cotidiano ou mesmo por considerar o

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


a Fundação do Homem Americano. A instrumento inconsistente, opinião frequente

A C I O N A L
Fundação, dirigida pela arqueóloga Niède no corpo técnico, embora ausente dos
Guidon, havia sido criada a partir de registros oficiais.
missão científica franco-brasileira, cujos Assim como no caso de Brasília, a

N
R T Í S T I C O
surpreendentes resultados de pesquisas proposta de inscrição de São Luís resulta de
arqueológicas, associados aos atributos iniciativa do governo estadual, considerada

A
naturais, haviam motivado a criação do vital como uma ação de coroamento de

E
parque nacional pelo Ibama. O dossiê extenso programa de obras de conservação

I S T Ó R I C O
concentra-se nos valores do sítio como do centro histórico, iniciadas em mandato
patrimônio arqueológico, mas o Iphan, anterior e concluídas no governo de então.

H
àquela altura às voltas com tumultuado O dossiê foi elaborado pela equipe do

A T R I M Ô N I O
processo interno que colocava em risco a governo estadual, contou com orientações
própria existência da instituição, não tem fundamentais de Jean- Pierre Halévy e

P
protagonismo na candidatura. com aporte de técnicos do Iphan, mas a

D O

Jurema Machado
Dez anos separam a inscrição de Brasília candidatura foi oficialmente processada à

E V I S T A
da inscrição do sítio urbano seguinte a margem do Iphan. O processo foi conduzido
integrar a lista da Unesco, o centro histórico

R
com divulgação restrita às áreas técnicas.
de São Luís do Maranhão. É a esse momento A ausência de participação social nas fases
que se refere Jean-Pierre Halévy, historiador de preparação dos dossiês era a prática das
francês com forte vínculo com o patrimônio candidaturas no Brasil até aquele momento.
brasileiro e orientador de várias candidaturas O centro histórico de Diamantina,
a partir de então, ao dizer: exemplar peculiar e bem preservado das
vilas mineradoras do século XVIII, inscrito
Precisamos ouvir a voz do Brasil, comentava- 273
em 1999, corresponde ao primeiro caso,
se nos corredores do Comitê do Patrimônio no Brasil, em que a participação social é o
Mundial em 1997. Em pouco mais de dez anos,
ponto de partida de uma candidatura. Outra
ela só se fez ouvir uma vez, em 1991, com a
particularidade foi ter tido, também pela
inscrição de Capivara (...). Nos anos precedentes,
o Brasil não só propôs a inscrição de seis
primeira vez, um governo municipal como
bens culturais (...) como provocou discussões protagonista do processo de reconhecimento.
apaixonadas dentro do Comitê, contribuindo A participação social era desejo do
para a ampliação e o aprofundamento dos município e, a essa altura, o procedimento
critérios de inscrição (Bicca, 2000). já era estimulado pela Unesco como um
demonstrativo de sustentabilidade da gestão
Halévy se refere à fase pós-1988, quando, futura dos sítios. Com a economia local
mesmo considerando a inscrição da Serra muito debilitada pela definitiva extinção da
da Capivara, o Iphan perde o protagonismo mineração, a prefeitura buscava, na expansão
na condução de candidaturas, seja pelas da universidade e no turismo, alternativas
suas limitações de pessoal, por pressões econômicas para o município, polo de uma
região muito pobre de Minas Gerais. Criou- das comunidades afetadas. No entanto,
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

se uma campanha de comunicação com fator decisivo para explicar as alterações na


A C I O N A L

discurso focado no turismo e na redenção relação entre o Iphan e a Convenção a partir


econômica, mas legitimamente apoiado nos dali é a política internacional do Brasil a
fortes laços comunitários e nas tradições vivas partir de 2003. Das várias teses acadêmicas
N
R T Í S T I C O

da cidade, que foram critério de destaque que analisam esse período da diplomacia
na argumentação que levou à inscrição. O brasileira, contribui especialmente com o
A

Plano Diretor e os mecanismos de proteção tema em questão a dissertação de mestrado


E

da Serra dos Cristais do entorno do sítio, de Bruno Novais (Novais, 2013). O trabalho
I S T Ó R I C O

com a extensão proposta, foram também é elucidativo por focar especificamente a


experiências inovadoras para os processos de diplomacia cultural e basear-se em registros e
H

candidatura no Brasil. O Iphan, que possuía dados quantitativos muito objetivos, obtidos
A T R I M Ô N I O

um escritório técnico na cidade, participou nos ministérios das Relações Exteriores, da


da elaboração do dossiê, que contou com Cultura e da Educação. Com base neles, o
P

consultores externos e financiamento autor afirma que “é possível sim falar em


D O

Jurema Machado

levantado pela campanha. diplomacia cultural brasileira entre 2003 e


E V I S T A

O caso do centro histórico da cidade de 2010 trabalhada pelo Itamaraty, Ministério da


R

Goiás, cuja inscrição se deu em 2001, tem Cultura e Ministério da Educação” e registra
o mesmo padrão de Diamantina: iniciativa inovações e ampliações em todas as direções:
local, busca de alternativa econômica para regiões e fóruns trabalhados; quantidade e
a cidade, participação social, elaboração de diversidade de ações; quantidade e diversidade
Plano Diretor e instrumentos de proteção de atores; criação de espaços bilaterais. Foi
da Serra Dourada, no entorno. O Iphan, nesse contexto, de afirmação internacional
da mesma forma, não teve a iniciativa, mas do país, que o Iphan retornou, em 2007, ao
274
participou da mobilização e selecionou Comitê do Patrimônio Mundial disposto a
consultor externo para elaboração do dossiê, não se restringir à reprodução dos conceitos
produzido em tempo recorde e com custos e práticas consolidados pela Convenção, mas
arcados pelo movimento comunitário. a interferir efetivamente no debate sobre o
A posição de distanciamento do Iphan instrumento, seus critérios de aplicação e seus
em relação às candidaturas irá mudar resultados. O Brasil volta à cena, mas dessa
substancialmente a partir de então. De vez como um aluno bem menos comportado
um lado, esse quadro de desprestígio da do que se esperava.
instituição, demonstrado sobretudo por A primeira medida dessa nova fase
baixíssimos salários, falta de pessoal e foi a aceitação, pelo Iphan, da proposta
orçamento aquém do mínimo, apresenta apresentada pelo Centro do Patrimônio
melhoras crescentes a partir de 2006. Por Mundial de criar um Centro de Categoria
outro, a prática de participação social II, voltado para a gestão do patrimônio. A
amadurecia e já não fazia mais sentido criação de centros de formação é estimulada
produzir dossiês em gabinetes, à revelia pela Unesco, para servirem como braços
para a implementação de temas do seu bem seriado – Conventos franciscanos

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


mandato. O Iphan se dispôs a criar o do Nordeste – objeto de muito maior

A C I O N A L
Centro, hoje chamado Lucio Costa e expressividade, mas a candidatura evoluiu
instalado no Rio de Janeiro, mas com um tratando apenas da praça como um bem
formato diferente do esperado pelo Centro

N
isolado, de mais difícil sustentação. O Iphan

R T Í S T I C O
do Patrimônio Mundial: opção por países optou por não frustrar as expectativas locais,
de interesse do Brasil para a cooperação valiosas para Sergipe e para o país, e se valer

A
cultural, mas não coincidentes com as regiões de uma retórica capaz de conformar os valores

E
geográficas da Unesco (no caso, foco em do bem a um marco teórico um tanto vago,

I S T Ó R I C O
América do Sul e países africanos de língua como é o da Convenção.
portuguesa e espanhola); abordagem de Muito mais do que no Brasil, onde

H
todas as convenções, não exclusivamente

A T R I M Ô N I O
pouca gente acompanhou esse movimento,
da Convenção do Patrimônio Mundial e no ambiente da Unesco e dos órgãos
vínculo administrativo com o Iphan, e não assessores, a movimentação política do país,

P
uma instituição independente como queria em articulação com países que vinham, há

D O

Jurema Machado
a Unesco. A posição do Brasil foi acatada, muito, questionando a supremacia exagerada

E V I S T A
mas a prática vem mostrando dificuldades dos órgãos assessores (Icomos e IUCN), não

R
relacionadas a essas opções, as quais, somadas passou desapercebida. O episódio, assim
a problemas sistêmicos da instituição, têm como outros análogos, sobretudo em que
alongado o processo de consolidação do países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia,
Centro, que, só a partir de 2015, adquire China e, mais tarde, África do Sul) reagem
uma estrutura de governança que inclui contra decisões dos órgãos assessores, é
formalmente os países-membros do Centro. objeto de vários trabalhos acadêmicos, um
A demanda seguinte da Unesco ao deles sob um título que vai além da ironia
275
Brasil foi que o país recebesse a reunião inteligente, para escancarar o preconceito
anual do Comitê do Patrimônio Mundial, contra os países eternamente condenados
encontro que adquiriu escala monumental, a neófitos no ambiente da Convenção:
pela quantidade de países envolvidos, The new kids on the block: BRICs in the
número de dias de trabalho, complexidade World Heritage Committee, (Claudi, 2011),
da infraestrutura e da logística exigidas. A apresentado ao Departamento de Ciência
reunião realizou-se em Brasília em julho de Política da Universidade de Oslo, em 2011.
2010, cumprindo exemplarmente todos os O preâmbulo do trabalho, que sugere ser
requisitos de qualidade esperados. Nessa
metodologicamente consistente, diz
reunião entra em pauta a inscrição da
quase tudo:
Praça de São Francisco em São Cristóvão,
Sergipe, candidatura também oriunda de O Comitê do Patrimônio Mundial é
uma mobilização local, ocorrida a partir de um ambiente para discutir a preservação e a
2004. A proposta que constava originalmente conservação do patrimônio cultural e natural
da Lista Indicativa do Brasil era de um do mundo, mas também serve como arena onde
ideias são desenvolvidas e construídas e onde a Já o artigo Multilateralism and Unesco
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

influência ideológica e cultural pode afetar os World Heritage: decision-making, States


estados e suas percepções de problemas, práticas
A C I O N A L

Parties and political processes (Meskell et al,


e a realidade social. Baseando-se nas premissas
2014) ressalta que, na reunião do Comitê
de Finnemore e Sikkink, que afirmam que a
em Brasília, as delegações que iniciaram seu
N

emergência e o estabelecimento de normas têm


R T Í S T I C O

mandato – Brasil, China e Egito – passaram


uma influência significativa no comportamento
a dominar excessivamente o número de
do Estado em organizações internacionais,
A

pode-se supor que na construção de normas intervenções durante as sessões. Menciona


E

número do The Economist que, descrevendo


I S T Ó R I C O

reside muito poder político. Portanto, ser um


empreendedor de normas em uma organização a mesma reunião, diz que a Unesco estava
geradora de normas, como a Unesco, pode ser cedendo em suas regras por pressão de
H

uma poderosa estratégia política que os BRICs estados-membros, fato que os autores
A T R I M Ô N I O

buscam endossar. Assim, o poder de influenciar as corroboram, demonstrando com o grande


“mentes dos homens” pode ser o que incentiva os número de decisões dos órgãos assessores que
BRICs a reforçarem a cooperação em matéria de
P

foram modificadas pelos delegados dos países


D O

Jurema Machado

cultura (Claudi, 2011:7). que compunham o Comitê.


E V I S T A

Aprovada em 2012, a candidatura


A afirmação da autora soa como
R

nomeada Rio de Janeiro, Paisagens Cariocas


uma verdade incômoda em um terreno entre o Mar e a Montanha, conceitualmente
onde sempre predominaram visões de complexa e inovadora, transitou com maior
mundo e valores essencialmente europeus, facilidade, mas não sem antes ter recebido
reproduzidos, inclusive, pela nossa formação orientações muito precisas de uma pequena
cultural e profissional. O trabalho evolui delegação de especialistas que o próprio
utilizando métodos de análise da ciência Centro do Patrimônio Mundial sugeriu que
276 política para aferir o grau de politização o Iphan convidasse para, informalmente,
do ambiente da Convenção e conclui auxiliar na conceituação. Michael Turner
conjecturando que: (Israel), Patricia O`Donnell (Estados Unidos)
e Katri Lisitzin (Suécia), especialistas com
Embora minha pesquisa sugira que os BRICs muito trânsito e experiência em avaliações
estejam insatisfeitos com algumas das práticas para o Patrimônio Mundial, deram, em
da organização, não se pode inferir que desejem
uma única missão ao Rio, uma contribuição
retaliar pela dominância da visão ocidental.
generosa e decisiva ao sugerir a focalização
As boas relações diplomáticas que os BRICs
do dossiê em torno de uma narrativa
historicamente mantiveram com os EUA e o
Ocidente sugerem pensar além disso. Existem
estruturante, apontando “locais-síntese”
muitas razões para acompanhar a evolução dos das diversas dimensões da paisagem, o
BRICs, mas poucas razões para acreditar que que resultou em uma sequência de áreas
os “garotos novatos na vizinhança” estejam, de descontínuas, opção até então não cogitada
fato, tentando se ver livres da antiga vizinhança pelo Iphan. São elas: a) a Paisagem desenhada
(Claudi, 2011:71). intencionalmente: Jardim Botânico, Passeio
Público, Parque do Flamengo e Orla de valioso da candidatura: a criação de um

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


Copacabana; b) a Paisagem em evolução: Comitê Gestor aproximou um cipoal de

A C I O N A L
Parque Nacional da Tijuca e suas florestas instituições de urbanismo, patrimônio e meio
replantadas e c) a Paisagem associativa, ambiente, dos três níveis de governo, situação
elementos que receberam a mão do homem impensável sem um fator aglutinador,

N
R T Í S T I C O
e cujas imagens projetam a cidade e sua como é a condição de Patrimônio Mundial.
cultura no Brasil e no mundo: Corcovado, Experiências como essa fazem refletir sobre os

A
Pão de Açúcar, com o Cristo Redentor e o reais benefícios da aplicação da Convenção e

E
bondinho, a entrada da Baía de Guanabara de como vários de seus mecanismos poderiam

I S T Ó R I C O
e suas fortalezas, o paisagismo do Parque do ser replicados para a política nacional,
Flamengo e da Praia de Copacabana (Iphan, independente dos bens serem candidatos

H
2011). Dessa vez o Iphan, mesmo contando ou fazerem parte da lista do Patrimônio

A T R I M Ô N I O
com contratação de consultoria externa para Mundial.
elaboração do dossiê, teve completo domínio Em 2016, foi inscrito o Conjunto

P
do processo, ao qual também se associou uma Moderno da Pampulha, em Belo Horizonte,

D O

Jurema Machado
estratégia de mobilização social, ainda que talvez o processo mais objetivo e eficaz de

E V I S T A
com características diferentes das ocorridas todos os já experimentados pelo Iphan.

R
nas pequenas cidades: maior presença de Vários fatores contribuíram para isso: o
setores empresariais e da grande imprensa. objeto é claramente delimitado e reconhecido
A aprovação da candidatura, assim como na história da arquitetura mundial; Belo
no caso de Brasília, representa um marco na Horizonte mobilizou uma equipe técnica de
história da Convenção. Pela primeira vez, alta qualidade, com muito conhecimento
uma paisagem cultural urbana é inscrita na acumulado sobre a área, em todos os seus
Lista do Patrimônio Mundial. A essa altura, aspectos; a prefeitura não apenas propôs
277
a Unesco vinha de uma sequência de fortes a preparação do dossiê, como assumiu
pressões por intervenções radicais, previstas compromissos vitais para que a candidatura
ou em andamento, em sítios urbanos fosse aprovada. No entanto, o registro
inscritos na Lista, como foi caso de Londres, mais relevante quando se trata de analisar
Dresden (retirada da Lista), Sevilha, Viena. a trajetória do Iphan é o da maturidade
Nesses conflitos, teve origem a produção da alcançada por sua assessoria internacional,
Recomendação sobre a Paisagem Histórica que percorreu o passo a passo da candidatura
Urbana, de 2011 (Unesco, 2011), contendo com tal método e rigor, que distinguiu essa
orientações sobre esse que permanece sendo experiência das frequentes tentativas e erros
um dos mais conflituosos temas da gestão do que caracterizaram as demais.
patrimônio cultural, especialmente para o Em 2016, o Iphan apresenta nova
caso do Brasil. candidatura à Unesco, dessa vez atendendo à
Os mecanismos de gestão da enorme área proposição da Prefeitura do Rio de Janeiro,
integrante da paisagem do Rio de Janeiro em sintonia com movimentos sociais que
são, seguramente, o ganho mais perene e se fortaleceram ao longo do processo de
transformação pelo qual vem passando Convenção estimula são material suficiente
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

a região portuária da cidade. Trata-se do para movimentar toda a engrenagem de


A C I O N A L

Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, uma assessoria internacional, além de


um conjunto de remanescentes do cais disseminar compromissos para todas as áreas
técnicas de uma instituição como o Iphan,
N

por onde chegou o maior contingente de


R T Í S T I C O

escravos africanos traficados para as Américas. que tem, sob sua responsabilidade, sítios
Materialmente modesto, o local é superlativo distribuídos por todo o território, além de
A

em carga simbólica, que se desloca para responder conceitualmente pela política de


E

uma extensa vizinhança, rica em tradições patrimônio do país. Se o Brasil experimentou


I S T Ó R I C O

africanas, vivas até o presente. A fragilidade períodos em que essas atividades não eram
do sítio e a complexidade da gestão do seu assumidas com regularidade, esse não foi o
H

caso da última década, quando essa agenda


A T R I M Ô N I O

entorno fazem dessa candidatura, ainda em


curso, um desafio considerável, tanto para o foi integralmente tratada e os reflexos da
Brasil, quanto para a Unesco. Mas um desafio aplicação da Convenção estiveram presentes
P

em linha com as diretrizes da própria Unesco, em todas as unidades do Iphan, passando a


D O

Jurema Machado

que pretende a diversificação dos bens fazer parte do seu cotidiano. Hoje, inovar a
E V I S T A

inscritos, além de um tributo a essa que talvez partir da Convenção corresponderia a refletir
R

seja a representação mais eloquente do crime sobre como reproduzir, em âmbito interno,
contra a humanidade, que é a escravidão. algumas das boas práticas concebidas por
Contando com um consistente grupo de esse instrumento, assim como aprofundar
consultores externos e participação do o debate conceitual que esteve por trás dos
município, o Iphan conduziu todo o processo conflitos com os órgãos assessores entre 2007
de produção do dossiê, dessa vez envolvendo e 2011, para voltar a fazer parte do Comitê
diretamente seu Centro Lucio Costa. Uma com respostas sólidas às questões levantadas.
278
experiência que, alcançando ou não o título, É importante registrar a intensidade e
a regularidade da participação do Iphan no
já é de grande valor para a instituição3
Mercosul, não apenas em se tratando do
Não só de candidaturas vive a
Patrimônio Mundial, mas de toda a pauta do
Convenção do Patrimônio Mundial! O
patrimônio nesses últimos quinze anos. Essa
monitoramento dos sítios, seja o regular, seja
atuação teve, entre outros, o mérito de focar
aquele provocado por denúncias ou riscos
em projetos e programas concretos, vários
iminentes; as atividades de capacitação;
em curso. Como essa agenda não pode ser
a realização de reuniões temáticas para
dissociada da política internacional adotada
atualizar ou produzir normas; a atualização e
pelo Brasil nesse mesmo período, a mudança
implementação da Lista Indicativa; as muitas
de posição do país em relação ao bloco impõe
cooperações bilaterais ou regionais que a
uma interrogação. Espera-se que a estratégia

3. N. do E.: A inscrição do Cais do Valongo na Lista do


de ancoragem da cooperação em projetos
Patrimônio Mundial foi aprovada na reunião do Comitê do seja o diferencial que permitirá ao Iphan não
Patrimônio Mundial da Unesco em 9 de julho de 2017, em
Cracóvia, Polônia. dissipar esse acúmulo de esforços.
P AT R I M Ô N I O um grupo social. (...) engloba modos de

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


E DIVERSIDADE
vida, os direitos fundamentais da pessoa,

A C I O N A L
Todas as transformações sem precedentes sistemas de valores, tradições e crenças”, e
que se materializaram ou se intensificaram o desenvolvimento, “processo complexo,
holístico e multidimensional, que vai além

N
a partir dos anos 1990 – a globalização da

R T Í S T I C O
economia, novos ciclos migratórios, conflitos do crescimento econômico e integra todas
étnicos e inter-religiosos, a comunicação e as energias da comunidade (...) deve estar

A
as redes virtuais – repercutiram diretamente fundado no desejo de cada sociedade e

E
expressar sua profunda identidade”

I S T Ó R I C O
na agenda internacional para o patrimônio,
que reagiu com instrumentos dedicados (Unesco, 1982).
à salvaguarda do patrimônio imaterial, às Em 1989, a Unesco aprova a

H
Recomendação sobre a Salvaguarda da

A T R I M Ô N I O
línguas em risco, aos povos indígenas, à
diversidade cultural. São pautas cuja origem Cultura Tradicional e Popular, abordando a
antecede a esse momento, mas que nele cultura tradicional como cultura viva, fonte

P
se tornaram inadiáveis, como se constata de criatividade e de autonomia, merecedora

D O

Jurema Machado
pela sequência de convenções, acordos e da atenção das sociedades e dos estados.

E V I S T A
programas, não só da Unesco, mas do sistema A recomendação atenta para a questão da

R
das Nações Unidas. A intervenção nas propriedade intelectual, tema complexo que
relações entre Cultura e Desenvolvimento, não foi posteriormente incorporado pela
vital para que se possa ir além de colecionar Convenção de 2003, mas que contribuiu
inventários de bens e de práticas agonizantes, como referência para princípios que
embora sempre na pauta da Unesco, tem sido permeiam todo o programa de patrimônio
apenas simbólica, quando muito refletida em imaterial no Brasil, especialmente a anuência
um artesanato de microprojetos, que não são prévia e a participação dos envolvidos quando
279
mais que alguns bons exemplos circunscritos dos processos de registro, assim como critérios
a pequenos universos. adotados na etapa de salvaguarda. As línguas
A relação com o desenvolvimento, também são tratadas pela Recomendação
sempre subjacente, recebeu, da Conferência e, por decisão do grupo de trabalho que
Mundial de Cultura do México, conhecida preparou o Decreto no 3.551/2000, que
como Mondiacult, em 1982, um dos estabelece a política do patrimônio imaterial
documentos mais influentes para as políticas no Brasil, não foram, naquele momento,
culturais a partir de então, claramente incorporadas às categorias de bens imateriais,
perceptível no tratamento dado à cultura mas tornaram-se, mais tarde, objeto de
e ao patrimônio pela Constituição Federal programa interministerial – o Inventário
brasileira de 1988. No documento do Nacional da Diversidade Linguística –
Mondiacult, cultura e desenvolvimento são conduzido pelo Iphan. Especialmente a
fenômenos imbricados e indissociáveis: a partir de 2002, quando se realiza no Rio de
cultura, “características espirituais e materiais, Janeiro uma das reuniões preparatórias do
intelectuais e emocionais que definem texto da Convenção, o Brasil, que, àquela
altura, já possuía um instrumento jurídico da Convenção, um total de 365 bens, valor
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio

alinhado conceitualmente com a discussão proporcionalmente maior do que os 1.052


A C I O N A L

internacional, contribuiu substancialmente. da Lista do Patrimônio Mundial em mais


Após aprovação e ratificação, foram de quarenta anos. Os esforços de uma
rapidamente inscritos bens brasileiros na organização crescentemente debilitada em
N
R T Í S T I C O

Lista Representativa do Patrimônio Cultural matéria de recursos humanos e financeiros


Imaterial da Humanidade e nas demais listas vêm sendo seriamente consumidos pelos
A

que compõem a estratégia dessa Convenção. trâmites das candidaturas, inclusive de


E

Hoje é possível afirmar, sem risco de errar, países que, internamente, não demonstram
I S T Ó R I C O

que o programa do Brasil é considerado sequer ter compromissos com a essência do


referencial. Essa posição de maior maturidade programa. Por essa razão, é ainda mais valioso
H

e consistência permitiu ao país integrar o o contraponto oferecido pelo Brasil por


A T R I M Ô N I O

Comitê Intergovernamental da Convenção meio do Iphan. De forma análoga, refletindo


do Patrimônio Imaterial da Unesco de 2006 sobre o cenário interno, passados quinze
P

a 2008 e, posteriormente, de 2012 a 2015. anos do decreto e da política, valeria também


D O

Jurema Machado

A cooperação na esfera regional foi também ponderar entre o esforço a ser dedicado a
E V I S T A

favorecida, realizada no âmbito do Mercosul novos reconhecimentos e a importância e


R

e, especialmente, do Centro Regional para complexidade das ações de salvaguarda.


a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da
América Latina – Crespial, no Peru, um O FUTURO JÁ NÃO É MAIS
Centro de Categoria II da Unesco que o O QUE ERA4
Brasil ajudou a criar e contribui para gerir por
meio do Iphan. O cenário em que se completam os
Embora tenha se espelhado em muitos oitenta anos do Iphan não poderia ser
280
dos mecanismos e estratégias da Convenção mais avesso a prognósticos. Aqui como no
do Patrimônio Mundial, a Convenção resto do mundo, as incertezas cunharam
para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural palavras novas ou deram um sentido
Imaterial buscou se distinguir mais como assustador a palavras velhas, todas diferentes
um instrumento de estímulo à construção de daquelas que, por muito tempo, estiveram
políticas consistentes nos estados-membros, pousadas sobre a mesa da “repartição”. O
e menos como produtor de uma “lista” de que antes era “identidade”, “construção da
bens imateriais excepcionais. Ou seja, a nacionalidade”, “autenticidade”, hoje pode
intenção era reduzir a lista ao que ela deve ser: ser “fragmentação”, “distopia”, “pós-verdade”.
nada mais que uma estratégia de difusão da Nenhuma certeza, ou, o que é pior, certezas
importância da salvaguarda. Na prática, não absolutas que duram menos que os quinze
é o que vem acontecendo. Por pressão dos minutos de Andy Wahrol.
países, a Lista Representativa do Patrimônio
Cultural Imaterial da Humanidade já atingiu, 4. Expressão de Paul Valéry, utilizada por Adauto Novaes
como subtítulo de uma série de dez ciclos de debates filosóficos
apenas dez anos após a entrada em operação denominada Mutações, realizada entre 2006 e 2016.
As palavras do dicionário do mais O espaço público, em todos os sentidos

Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio


importante fórum de cooperação que a expressão possa ter, está em risco. Essa é

A C I O N A L
internacional para o patrimônio, que é a a matéria do Iphan. Do espaço das cidades ao
Unesco – “patrimônio comum”, “diálogo”, das línguas, ao das festas. Não enxergo o lugar
“diversidade” –, começam a requerer um

N
deles nas políticas públicas (ou na ausência

R T Í S T I C O
especialista em línguas mortas para decifrá- delas) do Brasil de hoje. É verdade que esses
las... A organização dedicada ao que Paul oitenta anos mostram que o Iphan se ancorou

A
Valéry chamou de “coisas vagas” – os fortemente nas “coisas vagas”, que são a

E
ideais do espírito, os projetos de futuro – essência da sua missão, e soube habilmente

I S T Ó R I C O
parece ter destino incerto, a considerar as encontrar apoio e reverberação na cooperação
muitas fragilidades internas e as reações internacional para sustentá-las. A hora pede

H
extremadas que se somam sempre que se

A T R I M Ô N I O
novas estratégias, novas alianças.
espera que um lado conviva com os valores
do outro. Assim foi quando da aprovação REFERÊNCIAS

P
da Convenção da Diversidade Cultural de

D O

Jurema Machado
2005 e do reconhecimento da Palestina ALCÂNTARA, Dora Monteiro e Silva de; BRITO, Stella

E V I S T A
Regina Soares de; SANJAD, Thais Alessandra Bastos
como estado-membro. Assim tem sido com
Caminha. Azulejaria em Belém do Pará: inventário – ar-

R
a total insensibilidade aos apelos da Unesco quitetura civil e religiosa – século XVIII ao XX. Brasília:
para evitar ataques como os ocorridos aos Iphan, 2016.

Budas de Bamiyan, no Afeganistão, como ANDRADE, Carlos Drummond de. “Na rua com os ho-
mens”. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
os saques ao Museu do Iraque, ou o crime
Citado por TOTA, Antônio Pedro. Americanização no
de guerra representado pela destruição de condicional: Brasil nos anos 40. Perspectivas – Revista de
Palmira, na Síria. Teme-se pelo que pode Ciências Sociais, v. 16, São Paulo, Unesp, p. 191-212,
1993.
acontecer quando memórias incômodas são
ANDRADE, Paula Rodrigues de. O patrimônio da ci- 281
apresentadas como candidatas ao registro no dade: arquitetura e ambiente urbano nos inventários de
Programa Memória do Mundo, um dia visto São Paulo da década de 1970. (Dissertação de Mestrado).
como um generoso protetor de documentos FAU/USP. São Paulo, 2012.
BICCA, Briane (org.). Patrimônio mundial no Brasil.
que interessam à humanidade. Assim foi
Brasília: Caixa Econômica Federal/ Unesco, 2000.
com o dossiê chinês sobre o massacre de
BERRIEN, William; MORAES, Rubens Borba de. Ma-
Nanquim ou pode ser com o coreano sobre nual Bibliográfico de Estudos Brasileiros. Portal O Senado,
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contra o Japão. Ainda que se possa dizer que
Unesco: ações e significados. Brasília: Unesco, 2003.
o mundo foi sempre assim, seria legítimo BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil colonial. Orga-
pensar que todo esse esforço civilizatório nização: Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Brasília,
deveria ter servido para que ele fosse Iphan/Monumenta, 2006.

deixando, aos poucos, de ser. E não esquecer CARRILHO, Marcos. Brazil Builds – 55 anos da Expo-
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

284
Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
Tania Andrade Lima

A C I O N A L
O LICENCIAMENTO AMBIENTAL NO I PHAN :

N
O SOCIOAMBIENTE EM QUESTÃO

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO Impacto Ambiental, um modelo que viria
a ser reproduzido mundo afora. E que foi
Em 31 de agosto de 1981, no governo finalmente adotado no Brasil, em decorrência

P
de pressões externas exercidas por instituições

D O
militar de João Baptista Figueiredo, foi

E V I S T A
sancionada a Lei nº 6.938, que implantou financeiras internacionais, investindo em
no país a Política Nacional de Meio empreendimentos de infraestrutura no país.

R
Ambiente, com o objetivo de compatibilizar O texto original da Lei nº 6.938/81 –
o desenvolvimento econômico-social com a que sofreria modificações posteriormente,
preservação da qualidade do meio ambiente mas mantendo suas linhas mestras – criou
e do equilíbrio ecológico, tal como disposto o Sistema Nacional do Meio Ambiente
em seu art. 4º. Essa iniciativa, que viria a – Sisnama, integrado, entre outros, pelo
se tornar uma política de Estado, visava Conselho Nacional do Meio Ambiente
assegurar, em seu art. 2º, condições ao – Conama, com função consultiva e 285

desenvolvimento socioeconômico, aos deliberativa. Como instrumentos da


interesses da segurança nacional (fundamento Política Nacional do Meio Ambiente foram
da ditadura militar) e à proteção da dignidade instituídos, também entre outros, a Avaliação
da vida humana. de Impactos Ambientais – AIA e o processo
O surgimento desse diploma legal no de licenciamento de empreendimentos
Brasil foi decorrente de um movimento efetiva ou potencialmente poluidores ou
internacional mais amplo, que Egler, em degradadores do meio ambiente1.
2001, apontou ter se disseminado a partir Em 23 de janeiro de 1986, o Conama
da National Environmental Policy Act – emitiu sua primeira Resolução, dispondo
Nepa, lei aprovada pelo Congresso dos sobre os critérios básicos e as diretrizes São Francisco
Acervo: Copedoc/Iphan/
Estados Unidos em 1969 (Bronz, 2011). Ela gerais para a AIA. Entre elas, a realização de Marcel Gautherot.

estabeleceu não apenas as disposições gerais


da política norte-americana para o meio 1. O aparato legal da legislação ambiental é composto por dife-
rentes diplomas, que serão limitados, neste artigo, aos que são de
ambiente, como instituiu as Avaliações de seu interesse mais direto.
Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental ferrenho defensor dos povos da floresta
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

(EIAs/Rimas) sobre os meios físico e biótico, – aí entendidos indígenas, quilombolas,


A C I O N A L

tendo sido contemplado, além deles, o meio populações ribeirinhas, pescadores artesanais,
socioeconômico, no reconhecimento de comunidades extrativistas, entre outros. Sua
N

que não apenas o ambiente, mas também morte, consequência de uma luta sem tréguas
R T Í S T I C O

as populações são profundamente afetadas em favor do desenvolvimento sustentável e


pelos empreendimentos, tendo em vista sua contra os interesses dos grandes fazendeiros
A

indissociabilidade. Em seu art. 6º, inciso I, da Amazônia, violadores dos direitos mais
E

alínea c, considera como incluídos no meio fundamentais dessas populações tradicionais,


I S T Ó R I C O

socioeconômico: foi um duro golpe. Com ela ficou claro


que, no mesmo momento em que o país
H
A T R I M Ô N I O

(...) o uso e ocupação do solo, os usos da finalmente implantava um regramento


água e a socioeconomia, destacando os sítios e para os empreendimentos agressivos, não
monumentos arqueológicos, históricos e culturais
apenas ao meio ambiente, mas também
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

da comunidade, as relações de dependência entre


aos segmentos sociais por eles atingidos,
D O

a sociedade local, os recursos ambientais e a


com respaldo do novo texto constitucional,
E V I S T A

potencial utilização futura desses recursos.


forças comprometidas primordialmente com
R

o capital de tudo fariam para ultrapassá-


Em outubro de 1988, ano emblemático
lo, e, tanto quando possível, eliminá-lo.
para o meio ambiente, entrou em vigor a
Antecipando o que estava por vir, essa
nova Constituição Federal, como resultado
foi a grande lição de 1988 para os anos
dos trabalhos da Assembleia Nacional
subsequentes: a proteção ambiental não seria
Constituinte, convocada desde fevereiro de
pacífica.
1987. Uma vitória da resistência democrática
286
Tal tensão entre os que pretendem
aos anos de chumbo, o texto da nova Carta
explorar economicamente recursos ambientais
teve como um dos seus objetivos principais
e as comunidades direta ou indiretamente
a garantia dos direitos fundamentais dos
envolvidas com esses recursos ou deles
cidadãos, por tantos anos suprimidos pelo
dependentes para a sua sobrevivência –
regime militar. Cognominada pelo presidente
exatamente as mais vulneráveis2 e que mais
da Assembleia Constituinte, Ulysses
necessitam da proteção do Estado – se tornou
Guimarães, de Constituição Cidadã, ela
contínua. Essa exploração, feita não raro nas
valorizou a diversidade étnica e cultural do
fímbrias dos dispositivos legais, tem vencido
povo brasileiro e assegurou direitos de suas
grande parte dos cabos de guerra, já que a
minorias, em especial seus direitos sociais,
corda arrebenta invariavelmente do lado mais
assim como a proteção e defesa cerrada do
fraco. Não obstante seu direito assegurado
meio ambiente, reiteradas em diferentes
capítulos e artigos do texto constitucional.
2. O termo vulnerável é utilizado aqui em referência àqueles que
Dois meses depois, foi assassinado no Acre são vítimas de uma proteção desigual e não como destituídos da
capacidade de se defender, segundo a perspectiva do Movimento
o seringueiro ambientalista Chico Mendes, de Justiça Ambiental dos EUA (Acselrad, 2006).
à terra e à preservação da sua cultura, de apropriação e utilização do território e

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


comunidades indígenas, quilombolas e dos seus recursos, tornando inevitáveis os

A C I O N A L
ribeirinhas, minorias destituídas de poder, são antagonismos e os embates.
seguidamente agredidas por um desrespeito Contudo, não obstante a evidente
contínuo aos seus territórios, tradições,

N
assimetria de poder entre os envolvidos, as

R T Í S T I C O
formas de sobrevivência e modos de vida, reações desses grupos desfavorecidos vêm
configurando pesadas situações de injustiça paulatinamente se tornando cada vez mais

A
ambiental e racismo ambiental3. audíveis através de movimentos organizados5,

E
Não obstante a Constituição Cidadã ter atos de resistência, manifestações de repúdio

I S T Ó R I C O
procurado assumir a dívida histórica que a coletivas, já que as audiências públicas,
nação tem, não apenas com a descendência mecanismo de consulta previsto na Legislação

H
dos primeiros povoadores que ocuparam

A T R I M Ô N I O
Ambiental para que as comunidades atingidas
originalmente nosso território, há muitos participem das tomadas de decisão, vêm
milênios, e que, mesmo na condição de se mostrando francamente insatisfatórias,

Ta n i a A n d r a d e L i m a
seus legítimos senhores, vêm sendo, desde porquanto pouco transparente. Embora a

D O
a conquista europeia, crescentemente transparência seja “um componente essencial

E V I S T A
privados de suas terras, como também para promover equidade e justiça no processo
com os descendentes dos africanos trazidos

R
decisório ambiental, (...) já que os indivíduos
compulsoriamente do seu continente de impactados pelas ações de terceiros têm
origem para trabalhos forçados no Brasil, é o direito de saber a qual risco eles estão
no quadro dos chamados empreendimentos expostos” (Empinotti et al., 2016), ela está
“desenvolvimentistas” que as violações mais
longe de ser a norma. Na maioria dos casos
se têm feito sentir. Sucedem-se os conflitos
mal informadas – dispondo apenas de dados
socioambientais4, apesar da legislação que
de qualidade questionável, divulgados sem a 287
rege o campo. Eles decorrem sobretudo,
necessária antecedência, sem conhecimento
como assinalaram Laschefski et al. (2012),
aprofundado dos projetos –, as comunidades
das diferentes formas de representação da
afetadas acabam alijadas das discussões nas
natureza pelos grupos hegemônicos, que
audiências públicas e sua participação fica
impõem a sua percepção sobre grupos sociais
praticamente anulada (Zhouri, 2008). No
que concebem e se apropriam simbólica e
caso mais especifico dos povos indígenas,
materialmente do meio ambiente de modo
os princípios básicos da consulta e da
distinto, em contraponto às sociedades
participação que regem a Convenção nº 169
urbano-industriais (Zhouri e Laschefski,
da OIT, de 1989, tampouco são respeitados.
2010). De tal forma que se sobrepõem,
Daí terem surgido outras formas de
em um mesmo espaço, projetos distintos
engajamento, em que as comunidades
3. Para a questão da justiça ambiental, ver Herculano, 2002;
Acselrad et al. 2008. Sobre o racismo ambiental, ver Herculano, 5. Como o Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento
2008. dos Pescadores Artesanais, a Rede Cerrado, o Grupo de Trabalho
4. Para o conceito de conflito ambiental, ver Carvalho e Scotto, de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, a Rede
1995; Acselrad, 2004. Deserto Verde, entre outros.
atingidas vêm expressando seu pequenas vitórias alcançadas só fazem
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

inconformismo e apresentando alternativas provocar irritação crescente contra o


A C I O N A L

sustentáveis e não predatórias ao que lhes é socioambiente por parte dos que detêm,
imposto sempre como um fato consumado direta ou indiretamente, o controle
e inexorável, contra o qual não há recurso técnico, financeiro e político do processo
N
R T Í S T I C O

possível. Entre elas, a perspectiva do do licenciamento. No presente momento,


etnodesenvolvimento, no sentido que lhe valendo-se de uma conjuntura de crise
A

conferiu Stavenhagen (1984, apud Azanha, em várias frentes – moral, ética, política,
E

2002:31), como aquele em que econômica –, diferentes forças estão se


I S T Ó R I C O

somando e se articulando para banir em


(...) uma etnia, autóctone, tribal ou outra, definitivo as questões sociais do licenciamento
H

detém o controle sobre suas próprias terras, seus ambiental. De tal modo e com tal ímpeto e
A T R I M Ô N I O

recursos, sua organização social e sua cultura, e é intensidade, que a sorte está lançada.
livre para negociar com o Estado o estabelecimento
de relações segundo seus interesses.
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

A REPERCUSSÃO DO
D O

L I C E N C I A M E N T O A M B I E N TA L
E V I S T A

Um dos seus principais objetivos é “a


NO IPHAN
satisfação de necessidades básicas do maior
R

número de pessoas, em vez de priorizar o


A inserção do meio socioeconômico
crescimento econômico”. O Ecologismo
na Resolução Conama nº 01/86, que o
Social, ou ecologismo dos movimentos sociais
reconheceu como passível de ser impactado
no Brasil,
pelas grandes obras de engenharia, passou
a envolver diretamente, no licenciamento
(...) que luta por manter o acesso aos recursos
ambiental, os órgãos da administração pública
288 naturais de seus territórios, valoriza o extrativismo
relacionados ao patrimônio arqueológico,
e os sistemas de produção baseados em tecnologias
histórico e cultural (Iphan), aos povos
alternativas” (Diegues 2000:21).
indígenas (Fundação Nacional do Indio –
Funai) e aos remanescentes de quilombos
Ou ainda a Etnoconservação, que defende
(Fundação Cultural Palmares – FCP).
(...) uma nova aliança entre homem e natureza, No caso específico do Iphan, que tem
baseada, entre outros pontos, na importância por finalidade institucional “proteger,
das comunidades tradicionais indígenas e não fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o
indígenas na conservação das matas e outros patrimônio cultural brasileiro, nos termos
ecossistemas presentes nos territórios em que do art. 216 da Constituição Federal”6,
habitam (op. cit.:41). a inclusão do patrimônio arqueológico
resultou do fato de que sítios arqueológicos,
Não obstante todas essas frentes de à luz do texto constitucional, são bens da
resistência e de luta, os ganhos têm sido
parcos face ao montante das perdas e as 6. Decreto nº 6.844, de 7 de maio de 2009, Anexo I, art. 2º.
União. E, adicionalmente, estão protegidos cultura ao meio ambiente, enfraquecendo

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


pela Lei Federal nº 3.924, de 26 de julho seu protagonismo. Mais que receio, talvez

A C I O N A L
de 1961, que dispõe sobre os monumentos tenha havido de fato uma resistência a essa
arqueológicos e pré-históricos. Essa lei integração, o que parece explicar a posição
resultou de um eficiente e consequente de distanciamento em relação à legislação

N
R T Í S T I C O
trabalho de articulação política, em diferentes ambiental adotada pela Coordenadoria de
níveis, feito na década de 1950 (Lima, Arqueologia existente à época.

A
2009). Graças a ela, a destruição de sítios Até então, a arqueologia era exercida

E
arqueológicos passou a ser considerada, pelo tão somente em âmbito acadêmico, tendo

I S T Ó R I C O
seu art. 5º, crime contra o “Patrimônio sido precursores os chamados salvamentos
Nacional”, punível de acordo com o disposto arqueológicos, realizados, por força da Lei

H
nas leis penais. nº 3.924, nas grandes usinas hidrelétricas

A T R I M Ô N I O
Mesmo assim, a repercussão da Resolução construídas nas décadas de 1950 e 1960,
Conama nº 01/86 sobre o patrimônio como Salto Grande e Xavantes, e de 1970

Ta n i a A n d r a d e L i m a
arqueológico não foi imediata. Houve um e 1980, a exemplo das de Samuel (RO),

D O
hiato entre a nova determinação legal e a Sobradinho (BA), Balbina (AM), Ilha Solteira

E V I S T A
produção de efeitos, no caso, a incorporação (SP) e Itaipu Binacional, previamente à

R
de arqueólogos ao processo de licenciamento implantação da Política Nacional do Meio
ambiental. Em virtude deste ser ainda um Ambiente. Ao longo da década de 1980,
período mal compreendido, uma ênfase tinha crescido consideravelmente o número
maior será dada a ele neste artigo, visando de profissionais em arqueologia, em virtude
esclarecer os primórdios desse processo. do surgimento de um curso de graduação
A participação da arqueologia no específico na área e sobretudo de outros
licenciamento ambiental só viria a ocorrer em nível de pós-graduação, viabilizando a
289
efetivamente dois anos mais tarde, no formação de recursos humanos especializados,
emblemático ano de 1988. Uma das agora em maior número. Como consequência
possíveis razões para esse descompasso direta, começaram a aumentar os pedidos
parece ter sido, à época, a falta de integração de autorização/permissão de pesquisa ao
entre a então Sphan/Fundação Nacional Iphan, órgão normatizador e fiscalizador das
Pró-Memória e os orgãos ambientais, restrita investigações arqueológicas desenvolvidas no
tão somente aos poucos que trabalhavam país, nos termos do art. 8º da Lei nº 3.924.
na Coordenação de Patrimônio Natural, A esse tempo, a concessão de autorizações/
criada em 1985, graças a um grupo técnico permissões era feita através de ofício ao
oriundo do Jardim Botânico que cuidava pesquisador interessado, com base nas
de jardins históricos. Sobretudo porque era disposições da Lei nº 3.924, declarando-se
receio de alguns arqueólogos da instituição simplesmente que a Sphan autorizava ou
que a inserção dos sítios arqueológicos na permitia (nos termos da Lei, conforme o
legislação ambiental acabasse resultando caso), a realização do projeto submetido,
em uma indesejável subordinação da mencionando seu coordenador e instituição,
bem como o período da concessão. Com o insinuava a necessidade de articulação com
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

aumento da demanda nas então diretorias “outras entidades que atuam em áreas e níveis
A C I O N A L

regionais (atuais superintendências) e coincidentes”, permitindo supor que a pressão


escritórios técnicos, começou a ser sentida mencionada àquela altura, em 1988, já fosse
a necessidade de se estabelecerem critérios decorrente do licenciamento ambiental.
N
R T Í S T I C O

uniformizados para aprovação de projetos. As


unidades descentralizadas do Brasil Central, OS PRIMEIROS MOVIMENTOS
A

já então pressionadas, enviaram comunicação


E

interna em 5 de abril de 1988 à Coordenadoria Em resposta dada em 16 de junho


I S T Ó R I C O

de Arqueologia , propondo critérios básicos


7
seguinte9, a Coordenadoria de Arqueologia
para aprovação de projetos e informando informou que estava
H

que os estavam adotando extraoficialmente,


A T R I M Ô N I O

visando unificar procedimentos. Em (...) em vias de ser assinada, pelo Sr. Secretário
correspondência encaminhada pela 8ª do Iphan, a portaria (...) que dirime qualquer
dúvida sobre a solicitação e emissão de autorização
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

Diretoria Regional à Coordenadoria de


D O

de pesquisa arqueológica.
Arqueologia, em 20 de maio de 1988, foram
E V I S T A

solicitadas enfaticamente:
Efetivamente, em 1º de dezembro, foi
R

(...) diretrizes, normas e procedimentos


publicada a Portaria nº 07/88, em vigor até
para a concessão de autorização de pesquisa hoje, com o objetivo de
arqueológica. (...) [Essa] medida nos parece
fundamental e emergencial para que possamos (...) estabelecer os procedimentos
continuar exercendo nossas funções legais num necessários à comunicação prévia, às permissões
programa de trabalho que, além de prever ações e às autorizações para pesquisas e escavações
preventivas e conjugadas com outras entidades arqueológicas em sítios arqueológicos previstas na
290
que atuam em áreas e níveis coincidentes, Lei nº 3.924.
deverá considerar o incremento dos trabalhos de
salvamento arqueológico, ligado às grandes obras Se essas tensões relativas ao
de engenharia (hidrelétricas, estradas, ferrovias Licenciamento Ambiental começavam a ser
etc.) e a constante pressão à qual estamos sendo
sentidas nas pontas, como exposto acima,
submetidos no sentido de fornecer os documentos
na Administração Central, ou seja, na
nos quais estão respaldadas as nossas ações legais
relativas ao cumprimento da Lei 3.924/61 8.
Coordenadoria de Arqueologia, a inquietação
era com a necessidade premente de se regular
Embora sem referência explícita ao a concessão das autorizações/permissões de
Ibama e à Resolução Conama nº 01, o texto pesquisa, pensada sobretudo no cenário ainda
predominantemente acadêmico no país.
7. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro, Série Arqueolo- Lá, o impacto do licenciamento ambiental
gia, Subsérie Administração, Caixa 22. CI 43/88/ET/MT, de 5
de abril de 1988.
8. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Arqueolo- 9. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Arqueolo-
gia, Subsérie Administração, Caixa 22. C.I. 068/88/8ª DR, de gia, Subsérie Administração, Caixa 22. Of. 077/88/Arq., de 16
20 de maio de 1988. de junho 1988.
ainda estava longe de se fazer sentir, embora passavam pelas determinações da Resolução

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


intervenções atreladas ao regramento Conama nº 01. Na verdade, indo mais além,

A C I O N A L
estabelecido pelo Conama começassem a elas permaneceram por um bom tempo
ganhar terreno. desconhecidas de grande parte dos meios
Para a elaboração da nova portaria, o arqueológicos, alheios ao que se passava

N
R T Í S T I C O
presidente da Sphan/Pró-Memória à época, na área ambiental. Testemunho disso foi
Augusto Carlos da Silva Telles, solicitou o Seminário sobre Política de Preservação

A
uma colaboração informal a Ulpiano Toledo Arqueológica, realizado na Pontifícia

E
Bezerra de Meneses, da Universidade de Universidade Católica do Rio de Janeiro,

I S T Ó R I C O
São Paulo, reconhecido por suas reflexões e entre os dias 22 e 24 de novembro de 1988,
proposições sobre patrimônio arqueológico que resultou basicamente de inquietações

H
(Meneses, 1984, 1987). Trabalhando com a defasagem da Lei nº 3.924/61, face

A T R I M Ô N I O
conjuntamente com a Coordenadoria ao crescimento e à complexificação da
de Arqueologia, Bezerra de Meneses sem arqueologia 25 anos depois da sua entrada

Ta n i a A n d r a d e L i m a
dúvida imprimiu sua marca pessoal à minuta em vigor, e com os problemas já àquela altura

D O
da Portaria nº 07, de cunho fortemente detectados na então chamada “arqueologia

E V I S T A
acadêmico. Submetida à Assessoria Jurídica de salvamento”, iniciados na construção de

R
da instituição em 1987, recebeu os ajustes grandes hidrelétricas pelos governos militares
necessários até a sua publicação, em 1º de e continuados com outras que se seguiram a
dezembro de 1988. elas, além de empreendimentos mineradores
Essa é uma questão que mais uma vez (ver Lima, 2012).
merece detalhamento, embora já apontada Realizado em parceria e com o apoio da
anteriormente (Lima, 2001), em razão da Coordenadoria de Arqueologia da Sphan/
disseminação da ideia equivocada, inclusive Pró-Memória e sob nossa coordenação,
291
por arqueólogos do próprio Iphan, de contando também com a presença expressiva
que a Portaria nº 07/88 foi resultado das da comunidade arqueológica, do seminário
disposições da Resolução Conama nº resultou um consenso de que a Lei nº
01/86, com base tão somente na sequência 3.924/61, apesar de defasada, não deveria
cronológica dos dois documentos. O texto da ser alterada, mas sim complementada por
Portaria fala por si: sua natureza estritamente outros dispositivos, onde se fizesse necessário.
acadêmica e sem qualquer conexão com as E, quanto à preocupante “arqueologia de
ordenações do licenciamento ambiental, salvamento” em larga escala, foi produzido e
deixa evidente esse equívoco. Tanto que ela apresentado na ocasião um texto memorável
permanece até hoje em vigor para pesquisas de autoria de Ulpiano Bezerra de Meneses,
acadêmicas. que coordenou a sessão sobre o assunto,
Além da necessidade de regulamentar intitulada “Arqueologia de salvamento
as autorizações/permissões, outras questões no Brasil: uma avaliação crítica”. Esse
preocupavam a Coordenadoria de artigo, nunca publicado, foi reproduzido
Arqueologia àquela altura, que nem de longe intensamente como literatura cinzenta por
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l

292
Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

Acervo: Copedoc/Iphan.
Serra do Navio
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
293

Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


mais de vinte anos, constituindo um dos Reforçando a ideia de que era
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

textos mais fotocopiados da arqueologia considerada indesejável a suposta


A C I O N A L

brasileira. Ao longo dos três dias de subordinação da cultura à legislação


discussões, a legislação ambiental, implantada ambiental, em ofício datado de 11 de
dois anos antes, passou ao largo delas, assim
N

janeiro de 198811, a Coordenadoria de


R T Í S T I C O

como suas implicações para a arqueologia na Arqueologia, respondendo à consulta da


circunstância das obras de infraestrutura, mais Internacional de Engenharia S.A – Iesa
A

uma evidência de que a Portaria nº 07/88, sobre os sítios arqueológicos existentes nas
E

publicada uma semana após o encerramento áreas previstas para a construção das Usinas
I S T Ó R I C O

do seminário, em nenhuma hipótese resultou Hidrelétricas Serra da Mesa e Cana Brava,


das disposições da Resolução Conama nº na bacia do rio Tocantins12, comunicou
H

01. Se não de todo desconhecida, com


A T R I M Ô N I O

que “as pesquisas arqueológicas [na região]


certeza ignorada tanto pela Coordenadoria são de extrema necessidade, uma vez
de Arqueologia, como também pela quase observada a legislação que rege a matéria –
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

totalidade da comunidade acadêmica. Lei 3.924/61”. Ou seja, em atendimento


D O

É interessante observar que, no relatório a uma consulta sobre a construção de


E V I S T A

da Coordenadoria de Arqueologia referente hidrelétricas feita em 1987 e respondida no


R

ao ano anterior, de 198710, as atividades rea- início de 1988, não há qualquer menção
lizadas disseram respeito predominantemente às determinações da Resolução Conama nº
às rotinas de proteção e fiscalização, como 01, publicada dois anos antes, atendo-se a
vistorias, acompanhamentos, interdições de Coordenadoria de Arqueologia apenas ao
obras, cadastramento de sítios, catalogações, âmbito da Lei nº 3.924.
pequenos salvamentos pontuais, aprovação de Ao longo de 1988, também segundo o
pequenos projetos, avaliações de trabalhos de relatório de atividades da Coordenadoria
294
campo concluídos, destacando-se os “estudos de Arqueologia referente àquele ano, o
para a elaboração de portaria para a regu- panorama mudou substancialmente, mais
lamentação dos pedidos de autorização de que triplicando os pedidos de autorização/
pesquisa no país”. Há menção a apenas três permissão submetidos à Sphan, totalizando,
autorizações/permissões para realização de em meio a pesquisas acadêmicas, a análise
projetos de salvamento arqueológico, sendo de onze projetos de levantamento ou
duas na área de construção das usinas hidre- avaliação de potencial arqueológico em
létricas de Xingó (Sergipe) e Manso (Mato áreas de construção de hidrelétricas nas
Grosso) e uma para a Ferrovia Norte-Sul, o bacias dos rios Tapajós, Araguaia, Paranã
que sugere a presença de arqueólogos, em (Goiás), Uruguai (Santa Catarina e Rio
obediência à Lei nº 3.924, tão somente
nesses empreendimentos. 11. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Arqueolo-
gia 140, Subsérie Administração, Caixa 22. Of. nº 005/88/Arq.,
de 11 de janeiro de 1988.
10. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Ar- 12. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro, Série Arqueolo-
queologia 137, Subsérie Administração, Caixa 19. Relatório da gia, Subsérie Administração, Caixa 22. AHE 2272/87, de 20 de
Coordenadoria de Arqueologia 1987 e 1988. novembro de 1987.
Grande do Sul) e na bacia do Pantanal (Mato no Brasil, voltadas para o atendimento das

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


Grosso). Esse volume triplicado sugere crescentes solicitações resultantes do processo

A C I O N A L
finalmente a incorporação de arqueólogos de licenciamento ambiental. Os pedidos
ao licenciamento ambiental, atendendo às de autorização de pesquisa começaram
disposições da Resolução Conama nº 01. a aumentar significativamente nos anos

N
R T Í S T I C O
Aparentemente, ao que tudo indica, a subsequentes, produzindo uma demanda
Coordenadoria de Arqueologia – embora inesperada que a Sphan nem de longe estava

A
dispondo dos números – não se deu preparada para atender.

E
conta, nos primeiros anos da legislação Em julho de 1989, foi criado no Iphan

I S T Ó R I C O
ambiental, de que tinha sido disparado um um grupo de trabalho pela Coordenação
processo que transformaria radicalmente a de Estudos e Pesquisas – Cogep/Rio, com

H
prática da arqueologia no país. Tampouco participação de membros das Coordenadorias

A T R I M Ô N I O
a comunidade arqueológica o percebeu, de Proteção, Patrimônio Natural, Arqueologia
o que pode ter decorrido do perfil e de Estudos e Pesquisas, com a incumbência

Ta n i a A n d r a d e L i m a
acentuadamente acadêmico, não só dos de formular

D O
profissionais especializados, como também

E V I S T A
do próprio corpo técnico da Coordenadoria (...) uma proposta de ação institucional, tendo
em vista a preservação do patrimônio cultural e

R
de Arqueologia, com formação específica na
natural, em face do impacto ambiental provocado
área em sua totalidade nessa época. O fato
por intervenções humanas no meio ambiente,
de terem como modelo a pesquisa pura pode
decorrentes de obras de grande porte13.
ter turvado a percepção, o entendimento e as
implicações da nova conjuntura que surgia.
Tendo trabalhado ao longo de dois
Não obstante, alguns arqueólogos enxergaram
meses, esse grupo, capitaneado pelo arquiteto
mais longe, perceberam as possibilidades
Pedro Alcântara, propôs uma segunda etapa, 295
que se abriam e se lançaram corajosamente
para um maior aprofundamento das questões
em busca de adequações metodológicas
e um “avanço no sentido da formulação
e técnicas para enfrentar um terreno até
de uma política da Sphan para enfrentar o
então inexplorado na arqueologia brasileira,
problema”, mas infelizmente não foi dada
aplicando seus conhecimentos e colocando-
continuidade a essa iniciativa.
se a serviço de grandes empreendimentos
No documento dela resultante, datado
(Caldarelli e Santos, 2000, Monticelli, 2010).
de quase trinta anos atrás, chamam a
De 1988 em diante, profissionais de
atenção tanto a perspectiva humanista, a
arqueologia começaram a se envolver
sensibilidade social em relação a questões
progressivamente com a produção de
que sequer diziam respeito diretamente às
EIAs/Rimas, avaliações de potencial e
atribuições do Iphan, mas que impactavam a
levantamentos arqueológicos, bem como
com prospecções e resgates em obras de 13. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Arqueolo-
infraestrutura. Datam do final da década de gia 119, Subsérie Administração, Caixa 01. Patrimônio cultural
e Obras de Grande Porte - uma proposta de ação institucional -
1980 as primeiras empresas de arqueologia GT/COGEP/Rio julho 1989.
sociedade e seu patrimônio cultural, quanto indiretamente, eles ameaçam os bens que estão sob
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

à consciência no que diz respeito à proporção a sua tutela.


A C I O N A L

que tomariam futuramente os licenciamentos


ambientais no Iphan, aos problemas que eles Em suas conclusões, constatou-se que a
necessariamente acarretariam e à necessidade Sphan necessitava estabelecer uma política
N
R T Í S T I C O

de preparar a instituição para o que estava de atuação nos licenciamentos ambientais.


por vir. Alguns trechos desse documento são Inadmissível que a instituição,
A

citados abaixo.
E

(...) encarregada da preservação do patrimônio


I S T Ó R I C O

(...) Em áreas de grandes dimensões, é quase cultural nacional desconheça, protele ou transfira
impossível que inexistam nessas áreas núcleos sua responsabilidade legal a outros órgãos que não
H

urbanos ou outros assentamentos humanos, possuem, como atribuição, essa atividade.


A T R I M Ô N I O

sítios arqueológicos e outros bens patrimoniais


merecedores da atenção da sociedade e dos Poderes Foi sugerida uma portaria normatizando a
Públicos. Populações rurais e grupos tribais ação da Sphan e recomendado
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a
D O

foram erradicados do ambiente natural em que


E V I S T A

estavam integrados, onde exerciam atividades (...) o aparelhamento da instituição com


de subsistência que não ofereciam risco para o recursos materiais e humanos, criando as
R

equilíbrio do ecossistema. Essa transferência se deu condições necessárias ao atendimento das


muitas vezes para lugares de condições adversas, demandas, que tendem a crescer em virtude de sua
levando a um processo de desenraizamento e responsabilidade frente aos problemas expostos.
depopulação desses grupos, uma vez que o meio
físico mantém uma relação direta com sua unidade
Foi defendida, também, a democratização
política e cultural; este aspecto é especialmente
dos processos decisórios. É de se lamentar
marcante no caso dos grupos indígenas. (...) Não
que não tenha sido dada a devida importância
296 se deve ignorar, ainda, que esses projetos provocam
fluxos migratórios internos para servirem de mão a esse texto, e que sua capacidade preditiva
de obra, que após o término do empreendimento não tenha sido considerada, o que teria
se fixam nesses novos lugares, sofrendo difícil, evitado grandes problemas e desgastes
ou mesmo impossível, processo de readaptação. desnessários nos tempos que se seguiram,
É importante sublinhar que o universo cultural no que diz respeito aos licenciamentos
é abrangente e que, portanto, estabelece uma ambientais.
relação de dependência com o meio natural. Em 1990, com o desmantelamento
Quando um grupo social sofre um impacto
da instituição promovido pelo governo
transformador de sua cultura, há o reflexo no
Collor e sua substituição pelo Instituto
todo, não atingindo apenas a população humana.
Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC,
A degradação ou destruição do patrimônio
foi extinta a Coordenadoria de Arqueologia,
natural de uma sociedade implica na perda de
referências da cultura, no comprometimento da tendo seu exíguo quadro técnico sido
qualidade de vida e na desestruturação de sua alocado em diferentes Superintendências
identidade.(...) Embora alguns problemas pareçam Regionais e na Administração Central, agora
distantes da responsabilidade da Sphan, direta ou estruturada em três departamentos: o de
Proteção Legal, Deprot; o de Identificação apoiando-se em diferentes interpretações

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


e Documentação, DID; e o de Promoção, das disposições legais, o que gerava toda

A C I O N A L
Deprom. O crescimento dos pedidos de sorte de ruídos, tornou-se imperioso o
autorização/permissão fez com que, em 1991, restabelecimento de uma área central capaz
de aglutinar as questões relacionadas ao

N
a direção do Deprot, seguindo orientação

R T Í S T I C O
da Procuradoria Jurídica da instituição, patrimônio arqueológico na circunstância
entendesse que, em lugar dos antigos ofícios, do crescimento da arqueologia nos

A
as autorizações/permissões deveriam ser licenciamentos ambientais.

E
I S T Ó R I C O
emitidas, no quadro do licenciamento
ambiental, através de portarias publicadas no A INTENSIFICAÇÃO
Diário Oficial da União, inaugurando um

H
A partir da segunda metade dos anos

A T R I M Ô N I O
procedimento mais rigoroso, que passou a
permitir maior controle sobre as pesquisas em 1990, intensificaram-se as pressões por
andamento no país. parte dos arqueólogos, cobrando uma

Ta n i a A n d r a d e L i m a
Ao longo daquela década, o maior agilidade do Iphan nas concessões

D O
desmantelamento da Coordenadoria da de autorizações/permissões de pesquisa,

E V I S T A
Arqueologia e a dispersão dos seus técnicos bem como uniformidade na interpretação

R
foram extremamente danosos para a área. Com das disposições da Lei nº 3.924 e Portaria
a arqueologia exercida nos meios empresariais, nº 07/88, entre outros pontos. As
inaugurou-se um período de fortes tensões sucessivas e cada vez mais contudentes
manifestações nesse sentido por parte do
entre o agora IBPC e os arqueólogos14, grande
Fórum Interdisciplinar para o Avanço da
parte delas decorrentes da morosidade do
Arqueologia (1995-1997), da Sociedade
Instituto em responder às novas demandas.
de Arqueologia Brasileira e da própria
A necessidade de atendimento dos prazos 297
comunidade aparentemente caíam no vazio,
do licenciamento ambiental, sob pena de
sem que o Iphan conseguisse agilizar seus
atrasos nos cronogramas das obras, prejuízos
procedimentos, não obstante alguns esforços
financeiros, danos socioeconômicos, entre
nessa direção.
outros, produzia pressões contínuas sobre
Em 1994, havia sido retomada a de-
os arqueólogos, que as repassavam ao órgão.
nominação de Instituto do Patrimônio
Inutilmente, contudo, face à dificuldade do
Histórico e Artístico Nacional – Iphan, mas
Instituto de acompanhar o novo ritmo que se
mantida a mesma estrutura departamental
impunha, em uma contraposição de forças que
tripartida do IBPC. Em 23 de novembro do
só se retroalimentavam, agravando ainda mais
ano seguinte, dez arqueólogos de diferentes
as tensões.
unidades da federação foram convidados a se
Com os arqueólogos da Administração
reunir durante três dias no Deprot, no Rio
Central e das Superintendências Regionais
de Janeiro, para debates e intercâmbio de
ideias, e solicitaram em abaixo-assinado as
14. Para uma análise sobre as tensões desse período, ver Lima,
2001. seguintes medidas: a) a elaboração de uma
política de atuação para a área de arqueolo- Delphim, um dos poucos na instituição
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

gia clara e consistente, capaz de assegurar a que conheciam em detalhe a legislação


A C I O N A L

efetiva preservação do patrimônio arqueoló- ambiental, ocupou de início o assento no


gico nacional; b) a criação de um espaço, na Conama, na qualidade de conselheiro suplente
estrutura do Iphan, no âmbito da Adminis- e, posteriormente como titular, o que foi
N
R T Í S T I C O

tração Central, destinado à implementação entendido à época como uma qualificação


dessa política; c) a manutenção do esquema para lidar com a espinhosa questão dos
A

de descentralização nas coordenações regio- licenciamentos. Na verdade, a arqueologia


E

nais, limitando-se no entanto sua atuação ficou a reboque do patrimônio natural tão
I S T Ó R I C O

apenas à esfera administrativa, de modo a somente na designação dada à Coordenadoria,


garantir plenamente a execução de uma polí- já que de fato ocorreu o inverso. A arqueologia
H

tica única por seu corpo técnico . 15


ocupava, com suas demandas, quase todo o
A T R I M Ô N I O

Em 1996, em um esforço para tentar espaço e praticamente todo o tempo dessa


resolver os problemas e dificuldades que nova instância.
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

se avolumavam na arqueologia, a direção O insistente rogo dos arqueólogos por


D O

do Deprot criou extraoficialmente, fora do uma política para a área de arqueologia


E V I S T A

Regimento Interno da Instituição, a Área encontrou eco apenas nas unidades


R

de Patrimônio Natural e Arqueológico, descentralizadas. Em reunião dos então


colocando a sua frente um arquiteto do coordenadores regionais realizada em 19
grupo originário do Jardim Botânico, com de abril de 1996, no Primeiro Encontro de
larga experiência em patrimônio paisagístico, Dirigentes do Iphan, constavam entre suas
Carlos Fernando de Moura Delphim. diversas reivindicações:
Essa escolha não foi descabida nem
aleatória. Por ocasião da criação do Conama, (...) no que diz respeito à arqueologia, o
298
foi destinado ao Iphan um assento no estabelecimento, pelo Deprot, de uma política
Conselho, em reconhecimento ao papel de atuação do Iphan em relação à preservação
pioneiro do Instituto na proteção do dos sítios arqueológicos (...) bem como estudar
a possibilidade de conceder às Coordenações
patrimônio natural, quando, em 1937, ao se
Regionais que possuem arqueólogos em seus
organizar a proteção do patrimônio histórico
quadros, autonomia para a emissão de autorização/
e artístico nacional através do Decreto-lei nº
permissão para pesquisas arqueológicas16.
25, foram declarados como

Supunha-se que essa última medida


(...) também sujeitos a tombamento os
monumentos naturais, bem como os sítios e
poderia imprimir maior agilidade aos
paisagens que importa conservar e proteger pela processos, uma reivindicação recorrente
feição notável com que tenham sido dotados pela dos arqueólogos. Na reunião seguinte – o
natureza ou agendados pela indústria humana.
16. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Unidade Produtora
DID, Caixa 17. Expediente dos coordenadores regionais ao Pre-
15. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Unidade Produtora sidente do Iphan, em 19 de abril de 1996, no Primeiro Encontro
DID, Caixa 17. Expediente em 23 de novembro de 1995. de Dirigentes do Iphan.
Segundo Encontro dos Dirigentes do Iphan, Em abril de 1997, a Direção do DID

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


realizado em 07 de novembro do mesmo enviou memorando ao presidente do órgão18

A C I O N A L
ano – foi feita nova cobrança, nos seguintes solicitando que fosse discutida, na reunião
termos: “definição, urgente, de uma política do Colegiado, a “Avaliação dos Estudos e
Relatórios de Impacto Ambiental – EIA/

N
do Iphan em relação à arqueologia (...)

R T Í S T I C O
definindo e agilizando os procedimentos Rima nos aspectos relativos ao patrimônio
internos” . Na Administração Central,
17 cultural pelo Iphan”. Nesse documento, o

A
contudo, aparentemente não houve fôlego pedido foi justificado pela necessidade de que

E
para atender ao apelo para a criação de uma a instituição respondesse

I S T Ó R I C O
política para a área.
Nesse cenário, e face ao vulto que (...) de forma adequada e uniforme à crescente

H
demanda por parte do Ibama de participação

A T R I M Ô N I O
assumia a arqueologia nos licenciamentos
na análise dos EIA/Rima, mas também de
ambientais, o Fórum, sob nossa
estender essa participação a todo o processo de
coordenação, tomou a iniciativa de
licenciamento ambiental de empreendimentos

Ta n i a A n d r a d e L i m a
promover o simpósio Política Nacional de

D O
impactantes ao patrimônio cultural.
Meio Ambiente e Patrimônio Cultural,

E V I S T A
em dezembro de 1996, confiando sua Isso, no entanto, dependia do traçado

R
organização e coordenação a Solange de critérios e diretrizes explícitas. A esse
Caldarelli. Realizado na Universidade documento foram anexados o Boletim do
Católica de Goiás com apoio e participação Fórum nº 4, informando os resultados
do Iphan, teve como objetivo promover do simpósio Política Nacional do Meio
uma avaliação das repercussões dos dez Ambiente e Patrimônio Cultural, e a proposta
anos da Resolução Conama nº 01/86 sobre intitulada “Diretrizes aos responsáveis pelo
a pesquisa e a gestão dos recursos culturais licenciamento de empreendimentos...”, 299
no Brasil (Caldarelli, 1997). Dele resultou antes mencionada. Esse último documento
um documento síntese, em que foram propunha as atividades a serem desenvolvidas
feitas recomendações que reverberaram pela arqueologia em cada fase de obtenção,
no Iphan. Algumas delas compuseram o respectivamente, das licenças Prévia (LP), de
documento “Diretrizes aos responsáveis Implantação (LI) e de Operação (LO).
pelo licenciamento de empreendimentos Em resposta, no mês seguinte, em 20 de
potencialmente causadores de danos maio, de fato entrou na pauta da 42ª Reunião
materiais ao patrimônio arqueológico”, do Colegiado, convocada pelo presidente
que passou a ser ampla e informalmente do Iphan, a solicitação encaminhada pela
divulgado na instituição e adotado nos Direção do DID. Como decisão final, no
Termos de Referência. encontro, foram defendidos:

17. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Unidade Produtora


DID, Caixa 17. Expediente dos coordenadores regionais ao
Presidente do Iphan, em 7 de novembro de 1996, no Segundo 18. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Unidade Produtora:
Encontro dos Dirigentes do Iphan. DID, Caixa 145. Memo nº 280/97/GAB/DID.
(...) a ação interdepartamental nas questões transmissão, rodovias, portos, hidrovias,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

de arqueologia, com atuação dos Departamentos análise de relatórios, vistorias e inspeções,


dentro das suas especificidades; a definição, pelos
A C I O N A L

reuniões no Ibama, pareceres para PBAs, a


Departamentos, de uma política cultural em
par da análise, acompanhamento e avaliação
relação à área de arqueologia; o estabelecimento,
N

de relatórios de pesquisas acadêmicas. Por seu


pelos Departamentos, de normas e procedimentos
R T Í S T I C O

visando uniformidade de atuação, em nível


lado, a necessidade do patrimônio cultural (e
nacional; a descentralização, às Coordenações não apenas o arqueológico) ser contemplado
A

Regionais, das autorizações de pesquisas pelo Iphan nos licenciamentos ambientais


E
I S T Ó R I C O

arqueológicas; a adequação da Portaria nº 07 passou a ser em parte atendida pelo DID, na


à visão atual da arqueologia; a regulamentação sua contínua interlocução com o Ibama.
interna da questão “Patrimônio Cultural” com Mas foi somente em 21 de novembro
H

definição dos pontos a serem analisados na área de


A T R I M Ô N I O

daquele ano, 1997, que o presidente do


arqueologia; e a elaboração, pelos Departamentos e
Iphan – considerando a Política Nacional de
Projur, de Portaria de Salvamento Arqueológico19.
Meio Ambiente, as resoluções do Conama,
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

e as recomendações da Carta de Fortaleza


D O

Por outro lado, foi retirada do Deprot


definidas no seminário Patrimônio Imaterial:
E V I S T A

(a quem os coordenadores regionais haviam


Estratégias e Formas de Proteção, realizado
anteriormente encaminhado suas solicitações)
R

poucos dias antes pelo Iphan, entre 10


a centralização das ações de arqueologia, com
e 14 do mesmo mês – criou comissão
a sua anuência. Elas foram distribuídas pelas
interdepartamental para estabelecer os
três divisões, em clara tentativa de, repartindo
critérios e diretrizes reivindicados pela
os encargos, dar maior agilidade às questões
Direção do DID para avaliação de EIA/Rima
que se apresentavam.
no que se refere ao patrimônio cultural21.
De fato, seus três departamentos –
300 Citado Seminário pavimentou o caminho
Deprot, DID e Depam –, todos contando
para a edição do Decreto nº 3.551, dois anos
com pelo menos um arqueólogo em seus
depois, em 2000, que instituiu o registro
quadros, passaram a tratar de assuntos
de bens culturais de natureza imaterial que
relacionados à arqueologia. À guisa de
constituem patrimônio cultural brasileiro
exemplo, no relatório de atividades do
(Sant’Anna, 2006).
DID de 2000 e 200120 constam dezenas de
Com dois representantes de cada um dos
processos referentes à elaboração de termos
três departamentos, essa comissão concluiu,
de referência e de projetos básicos ambientais,
em 23 de junho de 1998, uma minuta
os PBAs, análises de projetos para emissão
de portaria dispondo sobre preservação
de autorizações/permissões de pesquisa em
do patrimônio cultural no âmbito do
hidrelétricas, áreas de mineração, linhas de
licenciamento ambiental, contemplando
19. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Unidade Produtora: o histórico da ocupação da região afetada,
DID, Caixa 17. Ata da 42º Reunião de Colegiado, 1997.
20. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração
Geral (1-1), Caixa 14. Relatório de Atividades do DID de 2000 21. Portaria nº 202, de 21/11/97. Boletim Administrativo do
e 2001. Iphan, nº 11/97 p. 51.
seu contexto etno-histórico e arqueológico a participação do Iphan nesses assuntos [do

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


regional, bem como as manifestações Licenciamento Ambiental] tem-se restringido, até
então, a autorizar as pesquisas arqueológicas de

A C I O N A L
culturais tradicionais das populações
salvamento e o acompanhamento daí decorrente.
existentes nas áreas de influência direta
Assim, a proposta de Portaria/Iphan objetiva não

N
e indireta do projeto, tais como saberes
apenas normatizar a forma pela qual o Órgão

R T Í S T I C O
e modos de fazer, celebrações, formas de deve intervir nesses assuntos, mas também
expressão, espaços simbólicos, entre outras, ampliar o âmbito de atuação institucional nos

A
além dos bens imóveis urbanos ou rurais, trabalhos de preservação do patrimônio cultural

E
I S T Ó R I C O
públicos e privados, de relevância histórica como um todo22.
ou cultural. Essa minuta nunca chegou a
ser publicada, mas teve ampla distribuição Tempos depois, esse desinteresse seria

H
A T R I M Ô N I O
interna. Nela, o foco principal não era novamente assinalado por outro técnico. Ao
o patrimônio arqueológico, que deveria emitir parecer sobre Termo de Referência
ser objeto de documento específico em para elaboração de EIA e posterior Rima, foi

Ta n i a A n d r a d e L i m a
razão de suas peculiaridades. De fato, nos constatado que

D O
processos de licenciamento ambiental no

E V I S T A
âmbito do Iphan, o protagonismo foi sempre (...) afora a Área de Arqueologia, nenhuma

R
da arqueologia, decerto por força da Lei outra tem demonstrado grande interesse em

Federal no 3.924 e da proteção legal que ela definir com maior amplitude o que deve ser
avaliado como benéfico ou maléfico na avaliação
proporciona aos sítios arqueológicos. As
de impactos ambientais, no que se refere
demais áreas envolvidas parecem ter ficado
especificamente ao patrimônio cultural23.
por muito tempo à margem, aparentemente
por desinteresse, sobretudo, das unidades
Se eventualmente algumas
descentralizadas. Não por outra razão, a 301
superintendências regionais realizaram
Carta de Fortaleza recomendava que
bons trabalhos nessa linha, não foi o que
ocorreu em grande parte delas. Quase
(...) relativamente aos Estudos de Impacto
sempre conduzidas por arquitetos com
Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto
Ambiental (Rima) o Iphan encaminh[asse] ao foco sobretudo no patrimônio edificado,
Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) nelas era comum o entendimento de que
proposta de regulamentação do item relativo ao licenciamentos ambientais não eram da sua
patrimônio cultural de modo a contemplá-lo em competência. A Superintendência Regional
toda a sua amplitude. (grifo nosso) de São Paulo, por exemplo, em resposta a
solicitação de manifestação sobre EIA/Rima,
Corroborando esse ponto de vista, em 11 assim se pronunciou em 1997:
de agosto de 1998, em parecer encaminhado
por um dos técnicos do Deprot a sua Chefia 22. Arquivo Central do Iphan em Brasilia, Arquivo Deprot,
Caixa 005. Memo nº 518/98/Deprot/Iphan.
sobre a minuta de portaria acima referida, foi 23. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Depam, Caixa 19/22
(145). Memo nº 01/2005, de 27 de jullho de 2005 dirigido à
dito que GEPROT/CFMD.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

302
Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
Acervo: Iphan.
Floresta fóssil
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
303

Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


(...) se vamos começar a avaliar relatórios de decorrência do Programa Brasil em Ação,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

impacto também no item patrimônio cultural, é no primeiro governo de Fernando Henrique


preciso discutir desde a formação de equipe à qual o
A C I O N A L

Cardoso, deu-se início a uma série de ações


interessado deve solicitar a elaboração desse relatório
e obras que determinaram o primeiro salto
até critérios e diretrizes comuns que orientem a
no número de autorizações/permissões
N

elaboração do mesmo e sua posterior avaliação,


R T Í S T I C O

concedidas em 1997 e, em seguida, em


delimitando bem o campo desse trabalho24.
1999 (Fig. 1).
A

Naquele ano, foi criado um grupo de


Por outro lado, na Administração Central,
E

trabalho para desenvolver estudos com o


I S T Ó R I C O

alguns setores quando muito limitavam o


objetivo de propor formas de regulamentação
patrimônio histórico e cultural aos bens
da Lei nº 3.924, tratando especificamente
H

tombados.
da arqueologia nas obras de infraestrutura26.
A T R I M Ô N I O

Em 19 de dezembro de 1997, a edição da


Àquela altura, a regulamentação da lei foi
Resolução Conama nº 237, dispondo sobre a
cogitada pelo Iphan como uma possível
revisão e complementação dos procedimentos
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

solução para resolver os problemas


D O

e critérios utilizados para o licenciamento


decorrentes da falta de amparo legal na
E V I S T A

ambiental, agravou a situação. Em seu


circunstância dos licenciamentos ambientais e
art. 4º, § 1º, resolveu que só procederia
o trabalho foi iniciado.
R

ao licenciamento após considerar, quando


Em fevereiro de 2000, em reunião da
coubesse, o parecer dos demais órgãos
presidência com a Diretoria Colegiada e
envolvidos no licenciamento. Com isso, o
os sete arqueólogos do quadro funcional
Ibama passou a solicitar sistematicamente ao
da época, foi traçada uma estratégia com
Iphan pareceres sobre PBAs e a elaboração
adoção de medidas emergenciais para o
de Termos de Referência para EIAs/
atendimento das crescentes demandas na área
304 Rimas já concluídos. Na Administração
de arqueologia, “enquanto não se defin[iam]
Central, o DID, desde essa época e até o
as diretrizes de reestruturação organizacional
início dos anos 2000, respondeu de forma
do Instituto”27. Uma delas estabeleceu que
bastante positiva à exigência, passando a
as superintendências regionais que não
contemplar efetivamente o patrimônio
contassem com arqueólogos em seus quadros
cultural e não apenas o arqueológico na
poderiam dispor da colaboração dos sete
sua interlocução com o Ibama, como pode
técnicos da casa, que, “sem prejuízo de suas
ser visto no documento mencionado acima
responsabilidades em seu local de lotação”,
sobre a intensa tramitação dos processos
se dividiriam pelas demais regionais uma
de licenciamento naquele departamento25,
vez solicitados. As então quatorze SRs foram
referente ao período de 1997-1999. Em
agrupadas em sete conjuntos, cabendo cada
24. Arquivo Central do Iphan em Brasilia, Unidade Produtora
DID, Caixa 145. Of. nº181/97/ 9a. SR/Iphan/SP, de 10 de abril 26. Portaria nº 017 de 28/01/99. Boletim Administrativo do
de 1997. Iphan, nº 01/99 p. 135.
25. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração 27. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Iphan, Arqueologia,
Geral (1-1), Caixa 14. Relatório de Atividades do DID de 2000 Caixa 2/30. Memorando circular nº 002/00, de 20 de março de
e 2001. 2000.
conjunto a um dos arqueólogos, a saber: 1ª e apropriada ao espírito da disciplina e àquilo

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


2ª SR; 3ª e 4ª SR; 5ª e 8ª SR; 6ª e 7ª SR; 9ª que se espera dela, este outro termo exprime

A C I O N A L
e 14ª SR; 10ª, 11ª e 12ª SR; e 13ª SR. Essa um compromisso no sentido de prevenir a
medida, que introduziu mais sobrecarga ainda destruição de um patrimônio arqueológico,
no minguado corpo técnico da instituição, em lugar apenas de recolher o que dele restou

N
R T Í S T I C O
sinalizava a necessidade cada vez mais urgente ou do que ainda é possível fazer face a uma
de se estruturar devidamente a área de destruição iminente. Segundo o Institut

A
arqueologia. National de Recherches Archéologiques

E
A Portaria nº 07/88 não dava conta dos Préventives – Inrap, ele implica detectar,

I S T Ó R I C O
problemas que se intensificavam cada vez identificar, pesquisar, interpretar, salvaguardar
mais com a arqueologia praticada a serviço de ou conservar patrimônios afetados ou

H
empresas, sobretudo por conta de mais um passíveis de serem afetados por obras públicas

A T R I M Ô N I O
salto quantitativo ocorrido entre 2000 e 2001 ou privadas, bem como difundir os resultados
(ver Fig. 1), no segundo governo Fernando obtidos com esses estudos.

Ta n i a A n d r a d e L i m a
Henrique Cardoso (2000-2003), quando Em reunião da Diretoria Colegiada do

D O
duplicaram as autorizações/permissões de Iphan em 3 de maio de 200129, a então

E V I S T A
pesquisa concedidas. Essa expansão foi chefe da Procuradoria Jurídica, já utilizando

R
decorrente do Plano Plurianual 2000-2003, o termo, destacou pontos que no seu
designado como Avança Brasil (Cardoso, entendimento causavam questionamentos,
1998), cujas bases foram preparadas na insatisfações e insurgimentos por parte da
gestão anterior, com o Brasil em Ação. O comunidade arqueológica e frisou que a
novo plano apresentou entre suas diretrizes Portaria nº 07/88 atendia apenas à “pesquisa
básicas a ênfase na infraestrutura, com arqueológica acadêmica, não se prestando
investimentos (ainda que ao final bem mais à arqueologia preventiva”, decorrente dos
305
tímidos que os anunciados) na expansão das empreendimentos que dependiam de EIA/
redes de distribuição de energia, transporte, Rima para a sua implantação. Segundo ela,
saneamento, comunicações, entre outros, 80% dos problemas seriam solucionados com
como bem demonstra o relatório do DID uma regulamentação específica e, naquele
referente a esse período . 28
momento, estava sendo concluída a análise
A antiga expressão “arqueologia de jurídica da minuta elaborada pelo grupo
salvamento”, fortemente criticada em virtude constituído pela Portaria Iphan nº 17, de
do termo sugerir trabalhos feitos às pressas, a 1999. Contudo, essa minuta, após análise, foi
posteriori de um fato consumado ou em vias definitivamente arquivada.
de se consumar em curto prazo, foi dando Em novembro daquele mesmo ano,
lugar a uma outra designação, arqueologia foi criada no Deprot, mais uma vez
preventiva, adotada na França. Mais informalmente, fora do Regimento Interno,

28. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração 29. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração
Geral (1-1), Caixa 14. Relatório de Atividades do DID de 2000 Geral (1-2), Caixa 17. Ata da reunião da Diretoria Colegiada do
e 2001. Iphan em 03 de maio de 2001.
a Coordenação de Arqueologia – Corda, Em análise detalhada dessa Portaria,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

visando centralizar as questões da área. No ano Penin (2010) destacou suas virtudes, mas
A C I O N A L

seguinte, 2002, a extrema dificuldade de se também suas falhas. Entre essas últimas, a
criar um regramento, cada vez mais necessário inclusão dos termos EIA/Rima na fase de
obtenção da Licença Prévia, o que permitia
N

para a especificidade da pesquisa realizada nas


R T Í S T I C O

obras de larga escala, foi, finalmente, superada. supor a obrigatoriedade do licenciamento


O documento “Diretrizes aos responsáveis apenas no caso dos empreendimentos
A

pelo licenciamento de empreendimentos...” , para os quais era feita essa exigência,


E

ou seja, os de maior porte, deixando de


I S T Ó R I C O

produzido a partir de resoluções do simpósio


Política Nacional do Meio Ambiente e fora, por certo equivocadamente, todos
Patrimônio Cultural, de 1997, como exposto os demais. Migliacio e Ferreira da Silva
H

(2014), da mesma forma analisando seus


A T R I M Ô N I O

anteriormente, vinha sendo desde então


adotado informalmente na instituição. pontos fortes e fracos, apontaram também,
Para resolver o problema da ausência de entre outros aspectos, que vários tipos
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

regulamentação, optou-se por aproveitar quase de empreendimentos ficaram fora do


D O

que integralmente esse texto, que serviu de seu alcance. Mais recentemente, Stanchi
E V I S T A

base para a elaboração da Portaria nº 230, (2017:128) chamou a atenção para outra
R

de 17 de dezembro de 2002. Essa Portaria falha, que designou como “a premissa do


estabeleceu fato consumado”. Ou seja, está subjacente
no texto “o pressuposto de que os sítios
(...) os procedimentos necessários para não serão preservados, independentemente
compatibilizar as fases de obtenção de licenças da sua relevância, cabendo apenas sua
ambientais com os estudos preventivos de identificação e resgate”, sem que tenha
arqueologia, objetivando o licenciamento de sido cogitada, em nenhum momento, sua
306 empreendimentos potencialmente capazes de afetar proteção in situ. Uma premissa que em geral
o patrimônio arqueológico. é partilhada igualmente, com raras exceções,
pelos profissionais da área.
Ao texto original, construído a partir A Portaria nº 230/02, não obstante
do modelo trifásico (LP, LI, LO), foram algumas ambiguidades, imprecisões e
feitas duas complementações: foi incluída omissões na sua redação, teve o mérito
a exigência de Programa de Educação de regulamentar o que estava à deriva
Patrimonial e a criação, ampliação ou e de dar mais segurança quanto aos
modernização de reservas técnicas para a procedimentos a serem seguidos em cada
guarda do material resultante das pesquisas. etapa do licenciamento. Contudo, o fato
No mais, o texto foi transcrito do documento de colocar no mesmo patamar de igualdade
de origem (embora introduzindo incorreções empreendimentos de naturezas e portes
formais), o que finalmente possibilitou muito diversos, somado a inúmeras brechas
estabelecer uma normativa no Iphan para a que possibilitavam interpretações distintas,
arqueologia em obras de infraestrutura. deixou a porta aberta para futuras mudanças.
A instituição a partir de 1990, sempre em

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


EXPLOSÃO
áreas e coordenações criadas à margem do

A C I O N A L
Nesse mesmo ano, 2002, com a criação da Regimento Interno, expressão absoluta do seu
Coordenação de Arqueologia e a mudança da pouco prestígio até então na casa.
Em 2009, na gestão de Juca Ferreira à

N
direção do DID, os assuntos da área voltaram

R T Í S T I C O
a ser centralizados no Deprot30, agora por frente do Ministério da Cultura, foi feito
sua própria reivindicação, no entendimento um grande reordenamento no Iphan: foram

A
de que o tema era de sua competência retirados da sua alçada os museus federais,

E
transferidos para uma nova autarquia

I S T Ó R I C O
exclusiva31. Entretanto, essa Coordenação
também vinculada ao MinC, o Instituto
teve vida breve e foi substituída em 2003,
Brasileiro de Museus – Ibram; e uma nova
sempre na informalidade, pela Gerência

H
estrutura substituiu a anterior, através do

A T R I M Ô N I O
de Patrimônio Arqueológico e Natural –
Decreto nº 6.844/2009, destacando-se a
Gepan. Foi nesse período que teve início
criação, finalmente, do Centro Nacional de
o primeiro governo de Luís Inácio Lula da

Ta n i a A n d r a d e L i m a
Arqueologia – CNA, como unidade gestora

D O
Silva (2003-2006) e, paralelamente, constata-
e unidade especial descentralizada do agora

E V I S T A
se um aumento progressivo dos pedidos de
Departamento de Patrimônio Material e
autorização de pesquisa, em decorrência do

R
Fiscalização – Depam.
seu programa de retomada de crescimento do
Esse foi um avanço significativo, na
país. Aumentaram as obras de infraestrutura
medida em que tirou a arqueologia da
e, com elas, os licenciamentos ambientais,
informalidade na qual foi colocada ao
que seguiram em escalada vertiginosa e sem
longo de quase vinte anos, graças ao vulto
precedentes no segundo governo Lula (2007-
que ela alcançava agora na instituição por
2010). As portarias publicadas dobraram
conta do licenciamento ambiental. Mesmo
de volume nesse período (ver Fig. 1), em assim, o novo Centro não conseguiu
307

decorrência do lançamento do Programa de ocupar uma posição equivalente à da


Aceleração do Crescimento – PAC, planejado antiga Coordenadoria de Arqueologia, à
para os quatro anos da sua gestão. época diretamente ligada à Presidência do
Com uma tal explosão de pedidos de Iphan e com dotação orçamentária própria,
autorização/permissão de pesquisa (Zanettini, tendo ficado subordinado ao Depam.
2011) e face à dimensão que a arqueologia Ampliando sua esfera de atuação, até então
assumiu no Instituto, ficou impossível praticamente limitada às autorizações/
continuar tentando organizá-la através dos permissões de pesquisa por conta da forte
sucessivos arranjos informais e improvisados demanda, ele foi estruturado com uma
que caracterizaram sua trajetória na direção e três coordenações – Coordenação
de Normas e Acautelamento, Coordenação
30. Arquivo Central do Iphan em Brasilia, DID, Administração de Socialização do Patrimônio Arqueológico
Geral (1-1) Caixa 74. Of. nº 138/02/GAB/DID/Iphan.
31. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração e Coordenação de Pesquisa e Licenciamento
Geral (1-2), Caixa 17. Ata da reunião da Diretoria Colegiada do
Iphan em 3 de maio de 2001. –, cabendo a esta última concentrar todas
as demandas do licenciamento ambiental, para a Portaria Iphan nº 230/02”. Ou seja,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

tendo absorvido as atribuições e o corpo a norma existente não estava conseguindo


A C I O N A L

técnico da antiga Gepan. dar conta da diversidade de situações que se


No ano seguinte à sua criação, em 2010, apresentavam no licenciamento ambiental,
a Direção do CNA apresentou um plano para de tal forma que já se cogitava, àquela altura,
N
R T Í S T I C O

a gestão do patrimônio arqueológico, que uma nova regra.


classificou como “intermediário”, passo inicial No ano seguinte, em 26 de outubro
A

para a elaboração, posteriormente, de um de 2011, foi editada conjuntamente pelos


E

Plano Diretor Estratégico, o qual, no entanto, ministérios do Meio Ambiente, Justiça,


I S T Ó R I C O

nunca chegou a ser implantado. Como Cultura e da Saúde a Portaria nº 419,


primeiro ponto desse documento, figura em regulamentando a atuação da Funai,
H

destaque no texto “a definição de uma política FCP, Iphan e Ministério da Saúde no


A T R I M Ô N I O

nacional para o patrimônio arqueológico, licenciamento ambiental. No caso do


em todos os seus aspectos: identificação, Iphan, contemplou os bens culturais de
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

pesquisa, proteção, promoção e socialização”. natureza material e imaterial, ao determinar


D O

Cumpre destacar que, desde os anos 1980 a produção de inventário do patrimônio


E V I S T A

(Lima, 2001), sempre foi uma insistente histórico-cultural (movimentos culturais,


R

reivindicação da comunidade arqueológica a festas tradicionais, festejos, cultos, rituais


criação dessa política. Ao longo de mais duas etc.) existente na área de influência
décadas, entretanto, nunca houve retorno direta dos empreendimentos, bem como
da instituição a esse pedido, apesar da sua programas de proteção, prospecção e resgate
reiteração constante, inclusive por segmentos arqueológico, com exigência de prazos mais
do próprio Iphan, como os superintendentes curtos para as manifestações dos órgãos e
regionais já apontados . entidades envolvidos. O Centro Nacional
308
Não obstante prioritária no plano de Arqueologia passou a solicitar a inclusão
intermediário do CNA, tal meta do patrimônio imaterial nos projetos de
lamentavelmente não chegou a ser alcançada, arqueologia submetidos à agência, cujos
embora o documento possa ser considerado resultados eram analisados por essa mesma
como um embrião dessa política, na verdade, instância, embora não fossem da sua
o primeiro, consistente e louvável esforço competência.
feito de fato nessa direção. Pudesse essa Nesse ano de 2011, com a substituição de
proposta inicial ter sido amadurecida e Luis Inácio Lula da Silva por Dilma Rousseff
aprofundada, ela teria finalmente suprido na Presidência da República, foi retomado o
o que há tanto tempo se espera. No tópico Programa de Aceleração do Crescimento do
intitulado Acautelamento e Instrumentos qual ela havia sido a gerente, como chefe da
Normativos, consta, da mesma forma em Casa Civil. Agora em sua segunda etapa, o
primeiro lugar, o objetivo de elaborar uma PAC 2 foi lançado com duração igualmente
“portaria para a arqueologia preventiva, com prevista para os quatro anos da nova gestão
especial atenção às adequações necessárias (2011-2014).
A curva ascendente das portarias ambiental que culminou com a aprovação

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


concedidas se manteve em 2011 (Zanettini, do novo Código Florestal, em 2012, além do

A C I O N A L
2011) e teria se mantido em 2012, quando favorecimento ostensivo ao agronegócio e a
houve um acentuado recuo, não fosse a interesses da bancada ruralista, base do governo
mudança da direção e de parte da equipe no Congresso Nacional, somado às violências

N
R T Í S T I C O
do CNA. Em decorrência de alterações na contra os povos indígenas foram o preço pago
metodologia de trabalho, especialmente na para a realização das obras de infraestrutura do

A
Coordenação de Pesquisa e Licenciamento, PAC 2.

E
muitos projetos caíram em exigências, O temor de mais um colapso de energia

I S T Ó R I C O
resultando em um represamento temporário após sucessivos blecautes – no Sudeste, em
das autorizações/permissões de pesquisa até 2005 e 2007; em 18 unidades da federação,

H
que elas fossem atendidas. Como resultado, em 2009; e no Nordeste, em 2011,

A T R I M Ô N I O
o seu total dobrou compensatoriamente culminando com vários apagões no último
em 2013, atingindo 1.453 concessões, quartel de 2012 – levou o governo federal

Ta n i a A n d r a d e L i m a
praticamente mantidas em 2014, com 1.429 a instituir, em 2013, reuniões regulares

D O
projetos aprovados, este sim, o número onde eram cobradas responsabilidades das

E V I S T A
recorde, já que o anterior embutiu processos autarquias envolvidas nos licenciamentos

R
pendentes de 2012 (Fig. 1). do setor elétrico. No caso, Ibama, ICMBio,
Esses números demonstram o caráter Iphan, Funai e FCP, visando acelerar os
prioritário das obras do PAC no governo processos relativos aos empreendimentos
Dilma Rousseff. Contudo, igualmente do PAC e assim evitar uma crise ainda
recordes foram as violências, abusos e violações maior no abastecimento de energia. Essas
aos direitos humanos cometidos sobretudo Reuniões de Governo, que contavam com
contra os povos indígenas em muitos desses a presença dos ministros da Casa Civil, do
309
empreendimentos feitos a qualquer custo, Meio Ambiente, de Minas e Energia e do
o que motivou denúncias à Subsecretaria Planejamento, introduziram uma rotina
Geral para Assuntos Humanitários da ONU de monitoramento das obras, cobrando
pelo Conselho Indigenista Missionário – prazos para a manifestação de cada um dos
Cimi, solicitando sua intervenção. Segundo envolvidos. As pressões eram muito fortes
a entidade, o índice dessas violências em para que os cronogramas fossem cumpridos,
2012 cresceu 237% em relação ao ano de tal forma que os atrasos sistemáticos dos
anterior (Cruz, 2013). No que diz respeito órgãos intervenientes, aí incluído o Iphan,
ao meio ambiente, aí compreendido diminuíram consideravelmente (Stanchi,
também o socioambiente, indissociado 2017). Contudo, em outros setores que não
da questão indígena, esse foi um período o elétrico as queixas sobre a morosidade
de graves retrocessos, diante da aceleração dos procedimentos continuavam. Fora
dos licenciamentos ambientais à custa do da Administração Central, se muitas das
atropelamento das suas normas. O aumento unidades descentralizadas cumpriam os
exponencial do desmatamento e da degradação prazos legais, outras se permitiam ultrapassá-
los, desobedecendo-os sob pretextos anterior ao próprio processo de licenciamento
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

fúteis, o que gerava profunda revolta entre ambiental”, além de ampliá-lo efetivamente
A C I O N A L

empreendedores e profissionais da área. para a proteção de todos os bens culturais, e


Além dessas Reuniões de Governo, não apenas os arqueológicos.
a Sala de Situação funcionava da mesma Em face de reivindicações históricas, por
N
R T Í S T I C O

forma como um centro de monitoramento parte dos arqueólogos, no sentido de que


de questões críticas. E, naquele momento, novas regulamentações a serem baixadas pelo
A

a mais aguda era o sistema elétrico. Com Instituto deveriam ser previamente discutidas
E

forte poder de pressão, tinha periodicidade com a comunidade interessada, em lugar de


I S T Ó R I C O

trimestral e dela participavam representantes serem impostas de forma sumária, vertical e


dos ministérios de Minas e Energia e da autoritária, como apontado acima em relação
H

Saúde, diretores e presidentes de empresas à década de 1990, a nova norma, antes de


A T R I M Ô N I O

públicas do setor elétrico, representantes ser editada, foi debatida intensa, exaustiva e
de todas as autarquias federais envolvidas acaloradamente em várias instâncias, com o
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

no licenciamento ambiental e ainda a Iphan ouvindo e apenas eventualmente incor-


D O

Empresa de Pesquisa Energética – EPE. porando críticas e sugestões. O documento


E V I S T A

Segundo Stanchi (2017), desses encontros foi discutido no XVII Congresso da Socieda-
R

resultou o convencimento do grupo, pelo de de Arqueologia Brasileira, em 2013; em


Iphan, de que era preciso fazer alterações na Audiência Pública realizada no Rio de Janeiro
Portaria Interministerial nº 419/11, revisar pelo Ministério Público Federal em 13 de
a Portaria nº 230/02 e, sobretudo, ampliar outubro de 2014, tendo resultado no encami-
o quadro técnico do Instituto em face da nhamento, por parte do órgão, de recomen-
sua precariedade, visando acelerar a análise dações, comentários e considerações para que
de projetos e relatórios, além de criar uma fossem feitas alterações no texto da minuta
310
estrutura interna para atuar especificamente em discussão; em reuniões regionais da Socie-
no licenciamento ambiental. dade de Arqueologia Brasileira; em institui-
Assim, foi iniciada em 2013 a elaboração ções país afora e através das redes sociais.
de um novo regramento, sob a forma de Houve fortes reações, sobretudo quanto
Instrução Normativa, para substituir a à classificação dos empreendimentos nos
Portaria nº 230/02. Nela foi abandonado quatro níveis definidos pela IN, e também
o modelo trifásico anterior, que dava quanto à redução dos procedimentos
cobertura apenas a algumas tipologias, por mitigatórios, limitados apenas aos “bens
outro de caráter mais amplo, que, levando culturais acautelados em âmbito federal”,
em conta diferentes variáveis, passou a no caso, os tombados pelo Decreto-lei nº
alcançar um espectro mais abrangente 25/37, os protegidos pela Lei nº 3.924/61,
de empreendimentos. O novo modelo, os registrados pelo Decreto nº 3.551/00,
concluído em 2015, teve como um de seus e os valorados pela Lei nº 11.483/07, em
objetivos “antecipar a tomada de decisão lugar da proteção ao patrimônio cultural
acerca de requisição de estudos para uma fase na sua expressão mais ampla. Caldarelli e
Seringueiro
Acervo: Iphan/
Dhárcules Pinheiro.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
311

Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


Caldarelli (20l5) apontaram o impacto (...) uma ação institucional coordenada, com
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

dessa determinação sobre os “saberes, articulação interna e externa, interministerial e


intersetorial para a priorização, consolidação e
A C I O N A L

fazeres, celebrações, formas de expressão e


produção de suas manifestações oficiais no âmbito
lugares” não acautelados, que, não obstante
do licenciamento ambiental.
serem manifestações culturais do povo
N
R T Í S T I C O

brasileiro que devem ser protegidas, foram No período referente à segunda diretoria
relegadas à própria sorte. Publicada em 25 do CNA, entre 2012 e 2016, foi “gestada,
A

de março de 2015, a Instrução Normativa testada e implantada” pelo Centro, tal


E

nº 01 provocou e continua provocando


I S T Ó R I C O

como consta no site da instituição, a assim


fortes reações em diferentes frentes. Em designada Política Nacional de Preservação do
especial por parte dos empreendedores, Patrimônio Arqueológico – PNPPA. Trata-
H

que se consideram prejudicados pelas novas


A T R I M Ô N I O

se de documento que apresenta premissas,


determinações, e dos seus representantes no conceitos, ferramentas de gestão, normas
Congresso Nacional. legais e infralegais que regem a proteção desse
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

Por sua vez, a Portaria Interministerial nº patrimônio e constituem seus fundamentos.


D O

419/11 foi substituída pela de nº 60, em 24 Além das três coordenações regimentais acima
E V I S T A

de março de 2015, quase simultaneamente à referidas, onde são desenvolvidos programas,


R

edição da IN, alterando-se a disposição que foram criadas duas áreas, a Área de Registro
implicava resgates arqueológicos automáticos, e Cadastro e a Área de Conservação. Uma
pela “apreciação de medidas de controle importante iniciativa desse período foi a
e de mitigação” dos impactos decorrentes atenção dispensada às coleções e instituições
das atividades ou empreendimentos. Por de guarda, sabidamente uma questão
acordo, houve uma concomitância na edição problemática, desordenada e descontrolada
das novas normas pelas autarquias federais no contexto dos licenciamentos ambientais.
312
envolvidas no processo de licenciamento, Até então sem qualquer regramento, recebeu
no caso, Iphan, Funai e Fundação Palmares, finalmente a merecida atenção, através de
visando evitar descompassos. ações de fiscalização e da criação de normas
No cumprimento do que foi acordado, infralegais específicas, além de um Cadastro
além de concursos públicos realizados em Nacional de Instituições de Guarda.
2014 e 2015, destinando oitenta vagas por
tempo determinado para a arqueologia, A RECESSÃO
“devido ao aumento transitório do volume
de trabalho no âmbito do licenciamento No novo cenário estabelecido a partir
ambiental”, foi criada a Coordenação Técnica de março de 2015, a curva ascencional
Nacional de Licenciamento, diretamente das portarias concedidas para pesquisas
ligada ao Gabinete da Presidência do Iphan, arqueológicas desde o início da década de
através da Portaria nº 199/16. Por força das 1990 deu seu primeiro sinal de reversão.
circunstâncias, mais uma vez à margem do Provavelmente em decorrência das
Regimento Interno, a ela foi atribuída determinações da Instrução Normativa nº
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
A C I O N A L
N
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Fig. 1. Número de portarias emitidas pelo Iphan entre julho/1991 e março/2017. Fonte: CNA/Iphan.

Ta n i a A n d r a d e L i m a
01/15, que expandiu as pesquisas em algumas vulneráveis, hipossuficientes e dos grupos

D O
frentes mas limitou em outras, e também étnicos minoritários atingidos pelas grandes

E V I S T A
em virtude dos primeiros abalos políticos obras de engenharia, esses últimos de alçada

R
e econômicos do governo Dilma Rousseff, da Funai e da Fundação Palmares, sua parcela
houve um decréscimo de cerca de 25% nas de responsabilidade recai na sobrevivência
concessões de portarias em 2015. não propriamente física, mas cultural desses
Após lenta agonia ao longo de 2016, a grupos. Desterritorializados, com seus meios
então presidente teve seu mandato cassado de subsistência desestruturados, seus modos
em 31 de agosto, com o país mergulhado na de vida desarticulados, a memória individual
mais forte recessão desde a Grande Depressão e coletiva privada da herança cultural dos
313
de 1930-1931, após uma década de seus antepassados, cabe ao menos registrar o
crescimento, com paralisação de vários setores que restou do seu passado, remoto e recente;
da economia e redução drástica de atividades a história dos espaços por eles ocupados, os
e empreendimentos. As autorizações/ usos e significados de suas terras, patrimônio
permissões de pesquisa concedidas pelo Iphan das famílias e da comunidade; suas
diminuíram cerca de 40% em 2016, voltando práticas, tanto religiosas quanto profanas,
a um patamar pouco inferior ao de seis anos sua vida cotidiana, onde materialidade
antes, de 2010, com forte tendência de queda e imaterialidade se fundem, porquanto
até abril de 2017, quando foi feita a última absolutamente indissociáveis. Esse registro
medição apresentada no gráfico (Fig. 1). pode ser um suporte poderoso no esforço de
reconstrução de suas identidades esfaceladas.
O FUTURO INCERTO Trata-se, no caso, de preservar a diversidade
cultural brasileira, nosso patrimônio maior,
Embora não seja da competência do viabilizando a sobrevivência cultural dos
Iphan a proteção e defesa das populações povos tradicionais.
O processo de licenciamento ambiental, 2013, Edison Lobão, ministro de Minas e
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

em lugar de ser uma ferramenta para Energia do governo Dilma Rousseff, afirmou
A C I O N A L

assegurar a vida e a sustentabilidade que o Iphan era o maior responsável pelo


socioambiental nas obras de larga escala, atraso no cronograma de obras de geração
vem sendo reduzido a um instrumento e transmissão de energia, de tal forma que
N
R T Í S T I C O

para garantir a exploração econômica questões ambientais já não eram o único


de recursos por grupos dominantes, em entrave para o andamento das obras do setor
A

detrimento dos deslocados, que arcam com elétrico brasileiro (Warth e Andrade, 2013).
E

os ônus mas não partilham os bônus dos Na abertura do I Encontro do Fórum de


I S T Ó R I C O

projetos de infraestrutura. Isto porque, Meio Ambiente do Setor Elétrico – FMASE,


desde que foi instituído, o licenciamento realizado em Brasília em 17 de outubro de
H

passou a ser considerado um obstáculo ao 2013, a então ministra do Meio Ambiente


A T R I M Ô N I O

“desenvolvimento”. Há quase uma década no governo Dilma Rousseff, Izabella


atrás, o Banco Mundial, em seu conhecido Teixeira, afirmou que os maiores entraves à
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

Relatório sobre Licenciamento Ambiental de liberação de licenças para a construção de


D O

Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil, já empreendimentos de infraestrutura não são


E V I S T A

denunciava que “ o licenciamento ambiental os problemas ligados estritamente às áreas


de preservação. “Oitenta por cento dos
R

é considerado um entrave ao desenvolvimento


de atividades econômicas” (Banco Mundial, problemas para concessão de licenças são
2008:11). Não apenas por conta das socioambientais” (Mainenti, 2013).
dificuldades na obtenção das licenças, já que A Associação Brasileira de Entidades
via de regra os agentes envolvidos excediam Estaduais de Meio Ambiente – Abema,
e excedem, e muito, os prazos legalmente entendendo que há necessidade de correção
determinados, mas também pelos aspectos das distorções do atual procedimento do
314 licenciamento ambiental, defende, desde
sociais, que envolvem remanejamento de
populações, compensações aos deslocados, 2013, que a
apoio às comunidades e aos municípios
atingidos e resgate do patrimônio cultural, aí (...) adoção de um novo marco regulatório
incluída a herança cultural dos afetados, e do é estabelecer normas e parâmetros nacionais
balizadores da atuação das unidades federadas,
patrimônio arqueológico.
visando a unidade nacional da Política de
Desde a edição da Resolução Conama
Meio Ambiente, a segurança jurídica, a
nº 01/86, a oposição à inclusão do
desburocratização dos procedimentos, a
socioambiente no licenciamento ambiental transparência, a celeridade dos processos e a
só faz crescer e se torna a cada dia mais forte. eficiência do instrumento para assegurar a proteção
Nos últimos tempos, críticas, mobilizações e do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável
iniciativas contrárias vêm de todos os lados, brasileiro (Carvalho, 2013:88).
começando por ministros de Estado no
exercício do cargo. Em entrevista ao jornal No documento Novas propostas para
O Estado de S. Paulo, em 3 de março de o Licenciamento Ambiental no Brasil
(Carvalho, 2013), a Abema encaminhou Finanças e Tributação, o deputado ruralista

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


ao poder público - em especial à Secretaria Mauro Pereira (PMDB-RS), elaborou um

A C I O N A L
Executiva do Conama – e a entidades substitutivo do PL que golpeia duramente o
interessadas uma proposta para o que licenciamento ambiental no Brasil, afetando,
entende como aperfeiçoamento e melhoria

N
entre outros, áreas protegidas, patrimônios

R T Í S T I C O
do Licenciamento Ambiental no país. arqueológicos e históricos, remanescentes
Elaborada a partir de discussões coletivas de quilombos e terras indígenas. Entre as

A
com as entidades estaduais de meio ambiente justificativas estão os custos socioambientais,

E
das 27 unidades da Federação, órgãos de que representam 12% do valor das obras

I S T Ó R I C O
governo, entidades privadas e organizações de construção de usinas hidrelétricas
não governamentais, e tendo ouvido os (número fornecido pelo Relatório do Banco

H
setores demandantes, os principais clientes

A T R I M Ô N I O
Mundial, 2008:56), citando como exemplo
e os setores organizados da sociedade a UHE de Belo Monte, que despendeu
civil, a Associação encaminhou, naquele 5 bilhões de reais para o atendimento de

Ta n i a A n d r a d e L i m a
ano, sugestões para revisar e aperfeiçoar os condicionantes socioambientais, equivalentes

D O
mecanismos legais e infralegais que regem o aproximadamente a 20% do valor da obra.

E V I S T A
Licenciamento Ambiental. E ainda insegurança jurídica gerada por

R
No documento, ao se pronunciar sobre normas infralegais editadas por órgãos da
as interveniências, que na verdade considera Administração Pública (decretos, portarias,
intervenções, a Abema entende que os órgãos resoluções e instruções normativas), expondo
envolvidos criaram “instâncias decisórias empreendedores privados e agentes públicos a
paralelas e um quadro de esquizofrenia um ambiente de instabilidade regulatória.
institucional que estão tornando o A partir de sua própria análise e de
licenciamento inadministrável, com múltiplas diferentes proposições legislativas anteriores
315
licenças e regras próprias” (Carvalho, defendendo um licenciamento simplificado32,
2013:53). Para sanar o problema, propõe o parlamentar encaminhou um substitutivo
desvincular as anuências das instituições ao Projeto de Lei nº 3.729/2004, que institui
intervenientes que não tratam de assuntos a Lei Geral de Licenciamento Ambiental,
relacionados diretamente ao licenciamento o qual vem tramitando com prioridade e
ambiental. Isto significa, na prática, a em regime de urgência. Ele é apoiado pela
supressão das avaliações dos impactos Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA, a
sobre populações indígenas, quilombolas e Confederação Nacional da Indústria – CNI,
tradicionais, bem como sobre patrimônio
a Confederação Nacional da Agricultura e
cultural material e imaterial, aí incluído o
Pecuária do Brasil – CNA, a Federação das
arqueológico.
Em 2004, a bancada de deputados 32. Entre as principais propostas para flexibilizar o licenciamento
do PT encaminhou o Projeto de Lei nº ambiental além do PL 3.729/2004, alinham-se, entre outros:
Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 65/2012, de
3.729, dispondo sobre o licenciamento autoria de dezenas de senadores; Projeto de Lei do Senado – PLS
nº 654/2015, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR);
ambiental. O relator da Comissão de alterações nas Resoluções do Conama nº 01/86 e 237/97.
Indústrias de São Paulo – Fiesp), entre muitos o conturbado momento político, econômico,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

outros. Na outra ponta, o Ministério Público social e jurídico vivido pelo país.
A C I O N A L

Federal considerou o substitutivo um grave Soma-se ao substitutivo da Lei Geral


retrocesso na gestão e proteção ambiental. do Licenciamento Ambiental o projeto de
Através da Câmara de Meio Ambiente e Decreto Legislativo de autoria do deputado
N
R T Í S T I C O

Patrimônio Cultural, ele encaminhou ao Nilson Leitão, do PSDB-MT e presidente


Congresso Nacional, em dezembro de 2016, da bancada ruralista, que susta a aplicação
A

uma nota técnica contrária ao substitutivo, da Instrução Normativa nº 1, de 25 de


E

apontando sérias falhas e prejuízos ao março de 2015, do Iphan. Sua justificativa


I S T Ó R I C O

patrimônio ambiental do país, caso venha a é a excessiva burocratização e o aumento da


ser aprovado. Entre muitos outros pontos, são morosidade no processo do licenciamento.
H

destacadas a eliminação da responsabilidade Segundo ele, os prazos para a manifestação


A T R I M Ô N I O

socioambiental, a dispensa de licenciamento do Instituto não estão sendo cumpridos,


para determinadas atividades, a flexibilização há demandas que extrapolam o razoável,
P

Ta n i a A n d r a d e L i m a

para que estados e municípios façam seus como os estudos arqueológicos e outros
D O

próprios licenciamentos a partir de critérios procedimentos que acarretam altíssimo custo


E V I S T A

próprios (outra das reivindicações da Abema), financeiro. Como compete ao Congresso


R

a autorização automática caso os prazos das Nacional sustar atos do Poder Executivo
agências envolvidas não sejam cumpridos, “que exorbitem do poder regulamentar ou
a suspensão de condicionantes ambientais dos limites da delegação legislativa”, cabe a
pelo empreendedor, de tal forma que está iniciativa, em seu ponto de vista.
sendo proposto o desmantelamento do O mesmo parlamentar vem investindo
licenciamento ambiental adotado hoje contra comunidades indígenas, tendo
no país. apresentado, em abril de 2017, o projeto
316
A determinação para a sua simplificação de Decreto Legislativo da Câmara (PDC-
vem sendo uma política de governo, 636-2017), que susta a aplicação de
iniciada lá atrás, com os Programas de decreto anterior, de 2013, homologando a
Aceleração do Crescimento, e intensificada demarcação administrativa da Terra Indígena
nos últimos anos. Conta com expressivo Kayabi, localizada nos municípios de Apiacás,
apoio parlamentar, em especial da base em Mato Grosso, e Jacareacanga, no Pará.
de apoio do governo, que dispõe de Segundo matéria publicada por Pollyana
maioria no Congresso Nacional, além Araújo no Portal G1, em 22 de abril de 2017,
de poderosos grupos de interesse que se o deputado é investigado pelo Ministério
sentem prejudicados, em seus lucros, pela Público Federal por suspeita de favorecimento
morosidade dos processos decisórios e pelos a posseiros e contra os índios no processo de
gastos com o socioambiente, pressionando retomada da Terra Indígena Maraiwatséde,
os parlamentares a mudar as regras do jogo. em Alto Boa Vista. Ele nega o envolvimento.
Não é difícil prever que novas normas serão Trata-se do mesmo parlamentar que preside
aprovadas em futuro próximo, não obstante a comissão especial que analisa a Proposta
de Emenda Constitucional – PEC nº Gente é sempre um problema, gente

O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão


215, retirando do Executivo, no caso, do incomoda, gente custa caro e tudo fica mais

A C I O N A L
Ministério da Justiça, a competência para a fácil com a sua eliminação, simplesmente.
demarcação de terras indígenas, territórios Afinal, para quem mesmo são os benefícios?
Monitorando desde 2010 os casos de

N
quilombolas e unidades de conservação

R T Í S T I C O
no Brasil, transferindo-a para o Congresso violência contra os que defendem o meio
Nacional, o que vem sendo motivo de ambiente, a organização não governamental

A
vigorosos protestos dos índios e de seus inglesa Global Witness apontou o Brasil,

E
aliados, entre muitos outros, a Associação em junho de 2016, como o país mais

I S T Ó R I C O
Brasileira de Antropologia e a Sociedade de perigoso do mundo para ativistas ambientais.
Arqueologia Brasileira. O relator da Comissão Entre 2010 e até meados de 2016 foram

H
contabilizadas 207 mortes no país (Sacks,

A T R I M Ô N I O
Especial dessa PEC, que encaminhou um
substitutivo onde fica implícito o fim das 2016) relacionadas a conflitos decorrentes
novas demarcações de terras indígenas, foi de atividades de mineração, agronegócio,

Ta n i a A n d r a d e L i m a
o deputado da bancada ruralista Osmar exploração madeireira e projetos de energia

D O
Serraglio, do PMDB-PR, atual ministro elétrica. Só em 2015 foram assassinadas

E V I S T A
da Justiça. No momento, encontra-se cinquenta pessoas, por defenderem suas

R
precisamente à frente do órgão responsável terras, florestas e rios, sendo que cerca de
pela defesa dos direitos dos índios quem atua 40% dessas vítimas eram indígenas (Diniz,
frontalmente contra eles. 2016). Via de regra, os crimes não são
Assim, considerados cada vez mais como apurados e ficam impunes.
impedimentos ao crescimento econômico e Em documento de 2015, a Organization
ao lucro – a recuperação do passado remoto for Economic Cooperation and
e recente da nação, seus povos nativos, os Development, entidade que reúne 35 países
317
que foram por ela escravizados ao longo sediada em Paris, ao promover mais uma de
de séculos para sustentar sua economia, suas avaliações, agora sobre o Brasil, destacou
os que mantêm modos tradicionais de o papel cada vez mais ativo que o Ministério
sobrevivência, bem como a cultura tangível Público Federal vem desempenhando
e intangível produzida por eles e por outros na fiscalização das infrações à legislação
segmentos da sociedade –, todos devem ambiental (OCDE, 2016). Os segmentos
ser eliminados do licenciamento ambiental da sociedade brasileira e da comunidade

em nome do ”progresso”. Como assinalou internacional sensíveis à preservação


contam, atentos, com a sua proatividade e
Jácome (2016),
vigilância sobre as tentativas de supressão
(...) esse modelo de desenvolvimento do socioambiente dos dispositivos legais que
econômico que explora recursos primários em devem protegê-lo. E, em última instância,
benefício de grandes indústrias e consórcios com alguns dos ministros do Supremo
de empresas existe como retroalimentação dele Tribunal Federal, guardião da Constituição
próprio. do Brasil.
N O TA AGRADECIMENTO Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão

DE
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
CALDARELLI, Solange Bezerra (org.). Atas do Simpósio
A C I O N A L

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N
R T Í S T I C O

Regional do Iphan; do Departamento de CALDARELLI, Carlos Eduardo; CALDARELLI,


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A

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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

320
Marcos Olender O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
Marcos Olender

a c i o n a l
o afeTivo efeTivo . s oBre afeTos , movimenTos

n
sociais e preservação do paTrimônio

r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
Lá onde os pés fincaram alma à guisa de inTrodução:
Lá onde os deuses quiseram morar
Lá o desejo f aT o s d e a f e T o , d e
Lá nossa casa lá m e m ó r i a , d e p r e s e r va ç ã o . . .

P
Péri1

d o
e v i s t a
Este texto parte de uma necessidade e de
um espanto.

r
Necessidade de se precisar, e de se
ressaltar, a efetiva importância do valor
afetivo na identificação daquilo que deve ser
preservado e, mesmo, no modo de fazê-lo.
Espanto de se constatar que essa importân-
cia reconhecida, no Brasil, pela política pública
de preservação do patrimônio histórico e cultu- 321

ral em âmbito federal, ainda encontra resistên-


cias e preconceitos em outras instâncias gestoras.
Tal reconhecimento nacional pode ser
encontrado no próprio site do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
Iphan. Se alguém que tenha, por exemplo,
alguma dúvida sobre os instrumentos utili-
zados para a proteção do nosso patrimônio,
acessar esse site, mais especificamente no link
“perguntas frequentes”, e procurar sobre “o que
é tombamento” encontrará na resposta sobre
aquele que é o instrumento de proteção legal
“mais conhecido e mais utilizado” no Brasil o Igapós
Acervo: Iphan/
1. Trecho da letra de sua música “Lá”. seguinte trecho: Marcel Gautherot.
(...) o tombamento é um dos dispositivos O relatório a respeito do tombamento
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

legais que o poder público federal, estadual e da casa de Chico Mendes e de seu acervo foi
municipal dispõe para preservar a memória
A C I O N A L

apresentado pelo conselheiro Ulpiano Bezerra


nacional. Também pode ser definido como o ato
de Meneses, na 56ª reunião do Conselho
administrativo que tem por finalidade proteger
N

Consultivo do Patrimônio Cultural, do


– por intermédio da aplicação de leis específicas
R T Í S T I C O

– bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, Iphan, ocorrida em 15 de maio de 2008.


ambiental e também de valor afetivo para Nele, a importância desse valor afetivo
A

a população, impedindo que venham a ser encontra-se esquematicamente explicitada.


E

Primeiramente, ele cita a definição de


I S T Ó R I C O

destruídos ou descaracterizados. (grifos meus)


patrimônio cultural dada pela Constituição
O valor afetivo encontra-se, portanto, Federal de 1988, em seu art. 216:
H
A T R I M Ô N I O

incorporado e, mesmo, ressaltado, entre os


que devem ser levados em conta quando da (...) constituem patrimônio cultural brasileiro
eleição daqueles bens que mereçam a proteção os bens de natureza material e imaterial, tomados
P

em alguma das esferas do poder público individualmente ou em conjunto, portadores


D O

(federal, estadual e municipal). de referência à identidade, à ação, à memória


E V I S T A

dos diferentes grupos formadores da sociedade


A relevância desse valor é encontrada, por
brasileira (Iphan, 2008:39).
Marcos Olender
R

exemplo, no processo do tombamento, pelo


Conselho Consultivo do Iphan, da singela
moradia do líder seringueiro Chico Mendes, Em seguida, Meneses aponta como essa
no Acre, local onde ele foi assassinado, em definição provoca, no que concerne à eleição
1988. desse patrimônio, “uma inflexão de 180º” ao
Em sua tese de doutorado, cujo objeto de deslocar, “do poder público para a sociedade,
estudo é justamente esse processo, Antônio o papel instituinte do valor cultural”,
322 demarcando para o poder público “o papel
José Aguilera Montalvo – responsável
pelo parecer técnico do Departamento declaratório no reconhecimento dos valores
de Patrimônio Material do citado órgão gerados pelos diversos grupos formadores
(Depam/Iphan), que instruiu o relator da sociedade brasileira” (Iphan, 2008:39-
do citado Conselho para o tombamento 40). É a esses grupos que cabe apropriar-se
em questão –, desenvolve um arrazoado “culturalmente de certos bens, mobilizando-
mostrando a sua importância. Após ressaltar os como portadores de um potencial capaz
a trajetória fundamental das lutas de Chico de alimentar a memória social, a ação e a
Mendes que levaram diversos grupos sociais identidade” (Iphan, 2008:40). E arremata
a se mobilizar pela preservação da edificação o autor: “Em suma, abriu-se caminho para
desde a sua morte, culminando nos seus conceituar e operar (estado e sociedade
tombamentos estadual e federal, conclui: conjugados) o campo do patrimônio como
“o imóvel nada mais é que o lugar onde se fato social” (Iphan, 2008:40).
aglutina todo esse emaranhado de valores e Dos três aspectos elencados acima, nos
afetos” (Montalvo, 2012:122). deteremos na memória social, o primeiro
a ser ressaltado pelo historiador. Continua preservação, como a sua citada antiguidade,

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
ele (IPHAN, 2008:40-41), em seu relatório a sua importância histórica (residência do

A C I O N A L
favorável ao tombamento e aprovado por proprietário do terreno do qual se originou
unanimidade pelos conselheiros presentes: o loteamento e, posteriormente, o bairro),

N
arquitetônica (um dos poucos exemplares do

R T Í S T I C O
A memória social (que não se confunde com estilo Neocolonial ainda existentes na cidade)
a História, processo cognitivo), não é uma simples
e, também, a relação afetiva dos moradores da
rememoração coletiva de fatos passados, mas uma

A
região com a edificação.

E
seleção das representações de fatos passados,
Mesmo que, nas instruções do processo

I S T Ó R I C O
compartilhados de maneira a estabelecer vínculos
afetivos de pertencimento e solidariedade. de tombamento e no parecer do relator
Não se trata, para nós, de identificar um culto que orientaram o parecer do Conselho

H
A T R I M Ô N I O
ao herói – embora Chico Mendes mereça, com de Preservação local2 pelo tombamento
toda a justiça, a qualificação de herói –, mas de do imóvel, em sessão de maio de 2010,
verificar se sua figura e trajetória, suas ações, tenham sido ressaltadas a importância

P
seus efeitos e seus rumos e, sobretudo, se as
histórica e arquitetônica do bem, o seu

D O
transformações eventualmente produzidas na vida
valor afetivo foi destacado, tanto no ofício

E V I S T A
de uma comunidade, de um segmento social e,
encaminhado ao órgão quanto no citado
mais largamente, de uma sociedade (ainda que

Marcos Olender
R
fragmentária e heterogeneamente), constituem parecer, sendo decisivo para a deliberação
uma referência que possa estabelecer os aludidos do então prefeito (visto ter o citado
vínculos. A meu ver, as relações de memória Conselho caráter apenas consultivo). No
que Chico Mendes tem suscitado preenchem documento expedido como justificativa da
facilmente tais requisitos. (grifos meus). sua decisão (PJF, 2009:291), lê-se

Mas, infelizmente, a relevância do valor No vertente caso, vê-se que as questões


323
afetivo, fundamental promotor e indicador da afetivas sobrepõem-se às objetivas, o que não
importância de um bem na memória de um é válido, como já dito, para fundamentar uma
grupo social, muitas vezes não é considerada decisão tão grave como a de tombamento. (...)
e, pior, serve, equivocadamente, para a Compulsando os autos, mormente a proposta
desqualificação desse bem pelo poder público. inicial apresentada pelos moradores do Bairu e
Manoel Honório e o estudo técnico, vê-se que, de
É o que, por exemplo, aconteceu no
um lado, sobram pontos de ordem afetiva, mas,
município de Juiz de Fora, no estado de
de outro, faltam pontos técnicos, objetivos.
Minas Gerais, quando, representados pela
(grifos meus)
sua Associação de Moradores, habitantes
do bairro Bairu requereram, através de um
Cabe ressaltar que Juiz de Fora é um
abaixo-assinado, em 2009, o tombamento
dos primeiros municípios a implantar uma
de sua edificação mais antiga, o imóvel
política pública de preservação do patrimônio
conhecido como “Castelinho do Bairu”.
Nesse documento foram ressaltadas diversas
2. Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de
características do bem para justificar a sua Juiz de Fora (Comppac- JF)
histórico e cultural em Minas Gerais, desde afetivo encontra-se efetivamente difundida
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

1978, com a criação do órgão municipal e consolidada em nosso país, enquanto


A C I O N A L

destinado a implementar a política cultural, um dos parâmetros a serem observados


a Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage no que concerne à elaboração e posterior
– Funalfa, que elaborou uma relação de implementação das políticas públicas de
N
R T Í S T I C O

32 edificações e cinco conjuntos urbanos preservação nos diversos âmbitos (tanto


recomendados para serem tombados, embora federal, quanto estadual ou municipal). Valor
A

a legislação específica só fosse aprovada em afetivo este que considero como o principal
E

13 de janeiro de 1982 (Almeida, 2015:61- indicador social da relevância histórico-


I S T Ó R I C O

63). O estado de Minas Gerais é pioneiro cultural de um bem para a sua comunidade.
tanto na criação como no desenvolvimento
H

e consolidação de uma política pública “ M U I TA S OUTRAS


A T R I M Ô N I O

concernente à preservação, sendo que, em G E R A Ç Õ E S ” : VA L O R A F E T I V O


decorrência dessa política, principalmente E N Q U A N T O VA L O R D E
P

a partir da implantação da denominada Lei ANTIGUIDADE


D O

Robin Hood, em 1996, dos 858 municípios


E V I S T A

existentes, pelo menos 746 (segundo os dados A solicitação de tombamento do


Marcos Olender

de 2016) têm, também, políticas municipais Castelinho encaminhada pela Associação de


R

de preservação implementadas. Moradores dos Bairros Manoel Honório e


A questão que se coloca, a partir da Bairu de Juiz de Fora, aponta, em primeiro
situação relatada referente ao “Castelinho lugar, a sua importância paisagística (PJF,
do Bairu”, é se a importância do valor 2009:9). Logo a seguir ressalta:

324

Castelinho do Bairu
Acervo: Marcos Olender.
Este imóvel (...) é um dos pontos de (!) pelo austríaco Alois Riegl, em sua obra

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
referência mais importantes do Bairro, e um O culto moderno dos monumentos e outros
marco fortíssimo no imaginário e na vida

A C I O N A L
ensaios estéticos. Tal texto é a primeira
de várias gerações que nasceram, cresceram,
parte do projeto para a reorganização
envelheceram, saíram ou permaneceram no
administrativa da tutela dos monumentos

N
bairro Bairu. Além destas, muitas outras gerações

R T Í S T I C O
na Áustria, elaborado em conjunto por
continuam nascendo ou se instalando no bairro
e se apropriando do “Castelinho” como a sua Riegl e Maximilian Bauer, em 1903

A
referência concreta e afetiva. (Fernández, 2007:41). A primeira parte,

E
redigida por Riegl, então presidente da

I S T Ó R I C O
Bastariam os aspectos paisagísticos e afetivos,
para justificar o pedido de Tombamento do Comissão Central Imperial e Real de
imóvel. No entanto, existem outros (...). Monumentos Históricos e Artísticos da

H
(grifos meus) Áustria, constituía-se como um prólogo

A T R I M Ô N I O
teórico do citado projeto, ou, como resume
O ofício passa então a enumerar o que Rosario Camacho Martínez (Fernández,

P
seriam os aspectos históricos e arquitetônicos 2007:9), um

D O
que reforçariam tal justificativa. Mas

E V I S T A
nos interessa aqui, exatamente, o que é (...) conjunto de reflexões críticas que trata

Marcos Olender
explicitado no trecho acima, ou seja, a de definir a índole dos monumentos, o processo

R
antiguidade do imóvel, testemunhada de valorização dos mesmos, a controvérsia entre
por várias gerações de habitantes e esses valores, a atitude que deve reger nas tarefas
de conhecimento e proteção deste legado
frequentadores do bairro. Antiguidade essa
patrimonial. (grifos meus)
que o torna “referência afetiva”. Que se
caracteriza como o “aspecto afetivo” que,
Em seu texto, a afetividade assume
junto com os outros aspectos, justificaria o
grande relevo, no que concerne propriamente 325
tombamento. E que, efetivamente, assume
à formulação da legislação e das políticas
uma relevância na solicitação.
públicas de preservação do patrimônio.
Tal trecho nos remete ao relatório de
Isso pode ser percebido já na sua
Ulpiano Bezerra de Meneses, de 2008,
introdução, quando Riegl discorre sobre
em relação ao tombamento da casa de
as definições e tipos de monumentos. O
Chico Mendes, citado anteriormente,
primeiro conjunto de monumentos, para
quando afirma que o estabelecimento dos
ele, são aqueles intencionais que foram feitos
“vínculos afetivos de pertencimento e
pelos que queriam
solidariedade” é característica fundamental
da memória social e deve ser valorizada
(...) satisfazer com essas obras (...) sobretudo
como constituinte do patrimônio cultural,
certas necessidades estritamente práticas ou
segundo explicitado no próprio art. 216 da necessidades ideais que lhes eram específicas a
Constituição Federal de 1988. si próprios, aos seus contemporâneos e, quando
Mas nos remete, também, a muito, aos seus herdeiros mais próximos” (Riegl,
considerações feitas há mais de um século 2013:14).
Porém, há um tipo de monumento Esse efeito afetivo é mais abrangente
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

contido no grupo dos monumentos não porque não pressupõe nenhum conhecimento
A C I O N A L

intencionais, ou seja, aqueles que o processo histórico ou, de forma mais ampla, científico
histórico alçou a esse nível porque, segundo para a sua realização, estendendo-se “às
N

ele, massas, a todos os homens sem distinção de


R T Í S T I C O

educação intelectual”. Conclui Riegl:


(...) a designação “monumentos” que
A

costumamos dar a estas obras pode, apesar de Nesta pretensão à validade universal, que
E

tudo, ser entendida não em sentido objetivo, mas tem em comum com os valores do sentimento
I S T Ó R I C O

meramente em sentido subjectivo: o sentido e religioso, assenta o profundo significado, cujas


a importância dos monumentos não cabem às consequências ainda não podem se vislumbrar
H

próprias obras em virtude da sua determinação por enquanto, deste novo valor de memória (de
A T R I M Ô N I O

originária, mas somos nós, modernos [e com monumento) que será designado no que se segue
a nossa compreensão ...] quem lhos atribui. como “valor de antiguidade” (Riegl, 2013:16).
Em ambos os casos – tanto nos monumentos
P

intencionais como nos não intencionais – trata-


D O

No momento seguinte de sua digressão,


se de um valor de memória e, por isso, falamos
E V I S T A

Riegl nos apresenta os dois tipos possíveis


tanto num caso como no outro de “monumentos”
de valores relacionados aos monumentos:
Marcos Olender
R

(...) mas, no primeiro caso, o valor de memória é


os valores de memória (ou rememoração)
conferido por outros (os autores de outrora), no
último, é determinado por nós próprios (Riegl, e os valores de atualidade. O primeiro
2013:14-15). valor de memória a ser abordado, e aquele
que durante todo o texto será priorizado
Mas há um terceiro conjunto que é maior na relação com os demais, é justamente
e que contém os outros dois, pelo menos esse “valor de antiguidade”, porque, para
326
desde o fim do século XIX, que é o dos Riegl, “não somente (...) é o mais moderno
“monumentos de antiguidade”, no qual: e reclama para si o futuro, mas sobretudo
porque apresenta proporcionalmente o maior
(...) o valor de memória não se prende aí número de monumentos” (Riegl, 2013:27),
à obra no estado original em que nasceu, mas pois, para reconhecer esse valor que fala
sim à representação do tempo decorrido desde a diretamente “às massas”:
sua gênese, que se trai de modo perceptível aos
sentidos nas marcas da idade. (...) nesta terceira (...) os critérios (...) são, por via de regra, tão
classe de monumentos (...) O monumento torna-se simples, que podem ser apreciados por pessoas
apenas mais um substrato sensível imprescindível, cujo cuidado constante pelo bem-estar físico e
a fim de produzir no seu espectador aquele efeito pela produção material de bens reclama todo o
afectivo que a representação da órbita regular do seu intelecto (...) o valor de antiguidade se revela
nascer e perecer, do irromper do particular a partir ao espectador imediatamente, por meio da mais
do universal e o seu reentrar gradual naquele, superficial percepção sensível (óptica) e, por isso,
obedecendo a uma necessidade natural, suscita no consegue falar diretamente ao coração (Riegl,
homem moderno (Riegl, 2013:16). (grifos meus) 2013:37).
Essa afirmação de Riegl é muito lado, porque há constantes tentativas de

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
bem exemplificada em um dos diversos desqualificar citado valor. Cabe ressaltar,

A C I O N A L
depoimentos dos moradores do bairro porém, já realizando uma primeira ponte
Bairu, em Juiz de Fora, que são anexados à possível entre esses dois tipos diferenciados
de bens, que, como acontece com as

N
solicitação de tombamento do Castelinho.

R T Í S T I C O
José Augusto Teixeira Miranda, que se roupas, podemos dizer que “nós vestimos a
identifica como músico e empresário, arquitetura das cidades e elas nos vestem”.

A
informava, na época (2009), morar há 39 No seu inspirado livro O casaco de Marx,

E
o historiador inglês Peter Stallybrass aborda

I S T Ó R I C O
anos no local. E disse:
a trajetória do casaco do filósofo alemão,
Desde a minha infância e pela maior parte da também dado por Marx como o primeiro

H
minha vida ao ir para casa, sempre escolhia um exemplo, em O capital, de forma celular da

A T R I M Ô N I O
caminho que pudesse avistar aquele grande casarão economia. Stallybrass narra as idas e vindas
no meio de tantas árvores na esquina próxima à do casaco de Marx para a loja de penhores,
Praça da Baleia. Por quase todos os caminhos que

P
para assim possibilitar que ele – sempre

D O
passava, podia ver de ângulos diferentes aquela
em precária situação econômica – pudesse

E V I S T A
beleza rara se integrando à beleza da praça, das
escrever sua obra.
esquinas, às casas, e à memória de cada família e

Marcos Olender
R
Diz também o inglês que, em O capital,
de cada morador do bairro.
(...) o “Castelinho do Bairu” (...) Tornou-se o “casaco faz sua primeira aparição não como
[...] parte importante do cenário de lembranças um objeto que é fabricado e vestido, mas
que cada um guarda como um tesouro e se algum como uma mercadoria que é trocada”, ou
dia desaparecer será como arrancar um pedaço das seja, “o que define o casaco como mercadoria
nossas vidas e com certeza sofreremos mais uma para Marx é que, como tal, ele não pode ser
grande perda na identidade da nossa cidade (PJF, vestido como tampouco pode aquecer”. Essa
2009:5). (grifos meus) 327
contradição definiria “o caráter contraditório
do próprio capitalismo: a sociedade mais
MEMÓRIAS DE COISAS E abstrata que jamais existiu” (Stallybrass,
DE LUGARES 2012:39). Uma sociedade na qual “uma
mercadoria torna-se uma mercadoria não
Sem perder de vista a questão da como uma coisa, mas como um valor de
importância do valor afetivo para a troca” (Stallybrass, 2012: 40). Na verdade,
indicação, valorização e preservação de uma afirma Stallybrass, dizemos que a nossa
edificação ou território como patrimônio sociedade é materialista, criticamos “o
histórico e cultural, será em outro grupo materialismo da vida moderna”, mas nela “a
dos denominados bens culturais materiais, atenção ao material é precisamente aquilo
o das roupas, que encontraremos um que está ausente” (Stallybrass, 2012:15). Em
forte argumento no que concerne a essa nenhuma outra sociedade a coisa teve em si
importância e, também, onde poderemos tão pouca importância quanto na nossa. Cabe
perceber com mais clareza, por outro lembrar, como faz o antropólogo francês
Marcel Mauss, citado por Stallybrass, que, dignidade (...) são os sinais de um grande e
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

em certas sociedades pré-capitalistas as coisas, crescente espírito de descontentamento popular;


(...) indicam um tempo em que a aspiração de cada
A C I O N A L

quando trocadas, se apresentam como:


homem é estar em qualquer esfera mais elevada do
(...) “seres personificados que falam e que aquela que lhe é natural, e que a vida passada
N

de cada homem é seu objeto de desprezo habitual;


R T Í S T I C O

participam do contrato. Eles afirmam seu desejo


de serem doados”. As coisas como presentes não quando os homens constroem na esperança de
são “coisas indiferentes”; elas têm “um nome, abandonar os lugares que construíram, e vivem
A

uma personalidade, um passado”. A oposição na esperança de esquecer os anos que viveram;


E
I S T Ó R I C O

radicalmente desmaterializada entre o “indivíduo” quando o conforto, a paz, a religião do lar


e suas “posses” (entre sujeito e objeto) é uma cessaram de ser sentidos. (Ruskin, 2008:57-58).
das oposições ideológicas centrais das sociedades
H
A T R I M Ô N I O

capitalistas (Stallybrass, 2012:43). Vivemos numa época (já dizia Ruskin


em meados do século XIX!) na qual a casa
Na nossa sociedade não interessa a coisa não é mais um templo, construído com
P

em si, mas a sua marca e o seu preço. É no carinho para durar mais que uma geração,
D O

mercado, no circuito da moda, da oferta e da para marcar a vida e a história de uma família
E V I S T A

procura que ela se realiza e que, assim, nos (e, por extensão, de uma comunidade),
Marcos Olender
R

realiza. mas onde ela passa a ser vista simplesmente


Stallybrass conclui de forma brilhante o como mercadoria, assim como a terra onde
seu ensaio: foi erguida. Tempos nos quais a casa em si
não é mais um lugar, mas um meio para
Tornou-se um clichê dizer que nós não
se atingir algum objetivo, geralmente de
devemos tratar as pessoas como coisas. Mas trata-se
ascensão econômica e social e onde ela
de um clichê equivocado. O que fizemos com as
328 coisas para devotar-lhes um tal desprezo? E quem será um instrumento efêmero, descartável.
pode se permitir ter esse desprezo? Por que os Conclui Ruskin, que tratava essas coisas que
prisioneiros são despojados de suas roupas a não são as casas com o respeito que se deve tratar
ser para que se despojem de si mesmos? Marx, também as pessoas:
tendo um controle precário sobre os materiais
da autoconstrução, sabia qual era o valor de seu Esse não é um mal insignificante, sem
próprio casaco (Stallybrass, 2012:80). consequências; é ameaçador, infeccioso e fértil em
outros erros e infortúnios. Quando os homens não
O que Stallybrass fala sobre as roupas amam seus lares [e podemos dizer, por extensão, as
pode, aqui, ser estendido para as edificações. suas outras coisas], nem reverenciam a soleira de
John Ruskin, em texto de meados do século suas portas, é um sinal que desonraram a ambos
XIX, A lâmpada da memória, nos alerta para (Ruskin, 2008:58).
o mal que assola a sociedade industrial em
relação ao morar. Mas voltemos a Stallybrass e suas roupas
e, em especial, a um certo casaco cujo dono
(...) essas habitações sem conforto e sem o levava e o trazia da loja de penhores para
poder sobreviver e produzir. Essa relação historicamente construído na nossa relação

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
com a loja de penhores deve ser ressaltada cotidiana com esse bem, diretamente

A C I O N A L
aqui porque pode ser estendida, conforme a proporcional à sua importância para a
analogia feita anteriormente, também, para o construção da própria memória coletiva da
comunidade onde se insere (ou se encontra)?

N
território urbano, para as edificações e para a

R T Í S T I C O
cidade. Diz Stallybrass (2012:65): Agindo assim estamos, efetivamente,
penhorando esses bens.

A
Mas as relações com o dono da loja de Por outro lado, ao relevar-lhe o valor

E
penhores eram estruturalmente conflitivas. Pois afetivo estamos necessariamente deslocando

I S T Ó R I C O
era na loja de penhores que a vida dupla das coisas do Estado para os “diferentes grupos
aparecia em sua forma mais contraditória. As formadores da sociedade brasileira” (Iphan,

H
coisas a serem penhoradas podiam ser necessidades
2008:40), o poder de instituir a valorização

A T R I M Ô N I O
domésticas e símbolos de realização e sucesso, mas
cultural e, consequentemente, a indicação
elas eram também, com frequência, o repositório
daquilo que deve ser preservado como, aliás,
da memória. Mas penhorar um objeto é desnudá-

P
lo de memória. Pois somente se um objeto é preconiza a Constituição Brasileira de 1988.

D O
desnudado de sua particularidade histórica, ele Desqualificar esse valor é render-se, no

E V I S T A
pode novamente se tornar uma mercadoria e um que concerne ao patrimônio arquitetônico e

Marcos Olender
R
valor de troca. Da perspectiva da loja de penhores, urbano, à perversa lógica desmaterializante
qualquer valor que não seja valor de troca é um do mercado imobiliário; é, efetivamente,
valor [p. 87] sentimental, um valor que deve ser despojar a edificação ou o sítio urbano de sua
removido do objeto para poder ser ”livremente” memória, que é a mais forte justificativa para
trocado no mercado. (grifos meus) a sua preservação.
Essa percepção é, desde meados da
A desqualificação de uma coisa no circuito década de 1970, cada vez mais comum,
do mercado da sociedade capitalista (embora o 329
inclusive entre os movimentos sociais que
próprio dono da casa de penhores não seja, em reivindicam a proteção de algum bem ou
si, um “agente privilegiado” desse capitalismo) território inserido na cidade. Com a retomada
é, portanto, a sua contaminação pelo dito e desenvolvimento das mobilizações, no
“valor sentimental” que, na verdade, aponta período de redemocratização do país, uma
Stallybrass, constitui-se em sua “particularidade parcela significativa delas elege a denominada
histórica”, em sua “memória” acumulada. “especulação imobiliária” como principal
Frente a isso, pergunto: ao recusarmos ao ameaça à preservação do patrimônio histórico
valor afetivo uma importância fundamental e cultural.
na seleção daqueles bens históricos e culturais Tal ameaça foi um dos motivos explícitos
que devem ser preservados, não estamos pelos quais se promoveu o tombamento do
assumindo, de modo perverso, essa mesma Terreiro da Casa Branca, em Salvador, Bahia.
desqualificação e nos esquecendo que a O antropólogo indigenista Olympio Serra,
afetividade (em sua dimensão social, coletiva) em palestra realizada em 1983 (publicada
constitui-se em um indício socialmente e em livro organizado por Antonio Augusto
Arantes), ao relatar suas experiências, uma parcela do mesmo, onde se localiza “um
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

como funcionário do Centro Nacional de monumento que é único na América – o


A C I O N A L

Referência Cultural – CNRC e, depois, Ocóiluaiê – que se chama popularmente, ou


da Fundação Nacional Pró-Memória, com brasileiramente, o Barco de Oxum” (Serra,
povos indígenas e comunidades religiosas de 1984:104) e onde foi instalado um posto de
N
R T Í S T I C O

afrodescendentes, afirma a importância do gasolina. E ele ameaçava ainda mais. Como


território para a sobrevivência cultural: informa Ordep Serra, irmão de Olympio,
A

também antropólogo, que, como veremos,


E

Eu comecei a falar de índios não por uma teve importante participação no processo
I S T Ó R I C O

ordem histórica, mas apenas porque eles me que culminou com a preservação do terreiro:
fizeram olhar certos problemas da sociedade “Em 1981, já era claro que os planos do
H

brasileira, como o caso dos negros, com olhos proprietário implicavam irremediável
A T R I M Ô N I O

muito indígenas, digamos assim. A minha


mutilação do terreiro: envolviam a
experiência de indigenismo fez com que
implantação de edifícios residenciais” (Serra,
começássemos a provocar o nosso grupo para
P

2005:176). Essa intenção, bem como a


D O

determinadas situações extremamente parecidas


com a indígena, porque ali, além de uma
reação que suscitou e acabou por salvar o
E V I S T A

identidade cultural, havia uma identidade étnica terreiro é descrita em um trecho do romance
Marcos Olender

de Jorge Amado, O sumiço da santa, a


R

em jogo e também esses problemas muito sérios de


espaço, de solo para que essas culturas pudessem partir da perspectiva de “um personagem
obter as condições de produção e reprodução da reacionário, o padre José Antonio,
sua cultura (Serra, 1984:100) caracterizado como falangista, representante
da direita” (Serra, 2005:194):
Como os outros terreiros, o Ilê Axé Iyá
Nassô Oká, conhecido como Terreiro da Na altura dos desmandos de Manela e
330 Miro, o evangelizador se empenhava em outra
Casa Branca do Engenho Velho, constituía
batalha igualmente feroz e oportuna. Planejava
sítio onde se encontravam edificações
extinguir, arrasar o Candomblé do Engenho
dedicadas aos cultos, residências dos
Velho, o Ilê Iyá Nassô, o mais antigo e venerável
sacerdotes e iniciados, árvores e arbustos
templo fetichista da Bahia – estudiosos dataram-
sagrados e demais monumentos religiosos. no de 1830, mas há quem lhe dê trezentos anos
Apesar de estar implantado ali há mais de vida ou mais ainda, de certeza ninguém
de um século e meio, a posse daquele sabe. Padre José Antonio apelou para os brios e
terreno havia sido formalizada por um a cobiça dos donos dos terrenos e dos capitães
representante das tradicionais famílias da da indústria imobiliária: no alto da colina o
Terreiro, a Casa Branca, embaixo, na Avenida
elite soteropolitana que, além de cobrar pelo
Vasco da Gama, o Barco de Oxum com a
arrendamento à associação mantenedora do
carga mágica dos fundamentos e axés. Tanto
templo, desmembrava e vendia ou arrendava
dinheiro se perdendo, tanto espaço desperdiçado
parcelamentos, ameaçando a existência do quando nele se podia construir uma boa dúzia
culto. Esse “pretenso proprietário”, narra de arranha-céus. (...) Logo se viu surgir diante
Olympio Serra, chegou ao ponto de vender do Barco de Oxum, ocultando-o da vista dos
passantes, um posto de gasolina, e já se falava Efetivamente, com o auxílio dos Praia da Estação,
Belo Horizonte
em lotear o resto do terreiro, derrubar o terreiro integrantes do Projeto de Mapeamento de Acervo: Marcos Olender.

de candomblé e as casas dos encantados, Sítios e Monumentos Religiosos Negros da


inclusive a de Oxalá e a de Exu. Alertados, 331
Bahia – Mamnba, elaborado por Ordep Serra
os intelectuais, agentes mal dissimulados do
e pelo arquiteto Orlando Ribeiro de Oliveira
demônio e do Kremlin, puseram mais uma vez
a boca no mundo e, não contentes de sustar
e iniciado em 1981, a partir de um convênio
a operação em curso, atreviam-se a propor ao entre a Fundação Nacional Pró-Memória
Patrimônio Histórico e Cultural o tombamento e a Prefeitura de Salvador, a comunidade
de toda aquela área, casas, barracão, terreiro, religiosa obteve o tombamento municipal do
o Barco de Oxum: espaço sagrado, prenhe de terreiro, ação singular, visto que o município
história, símbolo da luta dos negros contra a não contava, então, com legislação própria
escravidão. Não se vira jamais desfaçatez igual,
de preservação. Tal tombamento, porém,
assombrava-se o Padre José Antonio: como se
possibilitou uma grande articulação pela
o terreiro de candomblé fosse a Igreja de São
proteção do templo e pelo seu tombamento
Francisco, o Convento do Carmo ou a Catedral
Basílica. Contra tal indignidade, Padre José em nível federal. Entre aqueles que se
Antonio Hernandez escrevia cartas aos jornais, mobilizaram em defesa do terreiro, e que
dirigia-se às autoridades civis e militares, foram chamados pelo reacionário personagem
clamava nos sermões (apud Serra, 2005:195). de “agentes mal dissimulados do demônio
e do Kremlim”, figuravam dois deputados do candomblé e a simplicidade das
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

comunistas, Fernando Santana e Haroldo expressões materiais do culto, por exemplo.


A C I O N A L

Lima, além de um escritor que professava a Para todas, porém, os representantes do


mesma ideologia, o próprio Jorge Amado (os terreiro contrapunham posições bastante
firmes e conscientes. Sobre isso vale a
N

tais “agentes do Kremlim”); mas, também, o


R T Í S T I C O

abade do Mosteiro de São Bento, Timóteo pena transcrever trecho da Ata de Sessão
Amoroso Anastácio, diversos intelectuais realizada na Sede da Sociedade Beneficente
A

e artistas, como Carybé, Capinam, Pierre e Recreativa São Jorge do Engenho Velho,
E

Verger, além de outras significativas Comunidade Terreiro Casa Branca, no


I S T Ó R I C O

autoridades religiosas, como mãe Stella de dia 30 de março de 1984, que contou
Oxóssi e mãe Menininha do Gantois, entre com a presença de técnicos do Iphan e do
H

Mamnba, apresentada por Ordep Serra:


A T R I M Ô N I O

outros cidadãos e cidadãs de diferentes


ocupações e credos. Se entendemos, como
Informou-se à assembléia que, de acordo
Maria da Glória Gohn, os movimentos
P

com um especialista consultado pelo Iphan, “não


sociais enquanto “ações sociais coletivas de
D O

convém a Casa Branca ser tombada porque o


caráter sociopolítico e cultural que viabilizam
E V I S T A

candomblé tem uma dinâmica especial e tudo


formas distintas de a população se organizar e pode ser mudado de uma hora para a outra: as
Marcos Olender
R

expressar suas demandas” (Gohn, 2011:335), Casas de Santo, os monumentos, os santuários dos
podemos afirmar, como o antropólogo orixás, tudo está sempre sofrendo transformação;
Gilberto Velho, relator do processo de inclusive pode um orixá manifestar-se baixando
tombamento no Conselho Consultivo do na cabeça de uma filha de santo e dar ordem
para que uma casa de santo seja trocada, mudada
Iphan, que tratou-se
de lugar, pintada de outra cor, remodelada
inteiramente”. Dito isso, pediu-se “à Ialorixá e
(...) de um verdadeiro movimento social com
332 todas as sacerdotisas, ogans e equedes presentes”
base em Salvador, reunindo artistas, intelectuais,
que se pronunciassem. “Diante da pergunta, uma
jornalistas, políticos e lideranças religiosas que
parte da Assembléia manifestou-se com risadas,
se empenharam a fundo na campanha pelo
considerando um grande disparate a afirmação do
reconhecimento do patrimônio afro-baiano
tal especialista (...) Outros ficaram indignados à
(Velho, 2006:239). referida afirmativa, dizendo que o candomblé não
é uma coisa sem lógica, que mude assim à tôa,
O ineditismo da solicitação surpreendeu nem os santos costumam inventar moda, nem
os técnicos do Iphan, pois, em quase meio agem por capricho. Com a palavra, Juliana da Silva
século de existência, o órgão não havia Baraúna (mãe Teté) respondeu com toda energia
que isto não existe, que é loucura... Finalmente o
lidado com tombamentos de terreiros ou
Presidente da Sociedade (...) reiterou que a Casa
de outras expressões religiosas e culturais
Branca tem participado de todas as propostas de
de afrodescendentes. Foram levantadas intervenção para preservar o Terreiro e entende
questões que poderiam inviabilizar, segundo de que se trata e tem consciência do que está
a ótica de alguns desses técnicos, a aplicação querendo. Estas palavras foram aplaudidas por
do tombamento, como o “dinamismo” todos” (Serra, 2005:176, nota 12).
Apesar da clareza e da convicção que A mobilização social com o processo de

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
norteava a demanda dos representantes redemocratização do Brasil, principalmente

A C I O N A L
do templo e daqueles que a apoiavam, as a partir dos fins da década de 1970, também
inseguranças e discordâncias manifestadas deu mais visibilidade a outros espaços
pelos técnicos do Iphan se estenderam,

N
urbanos que retomaram e/ou reforçaram a

R T Í S T I C O
também, para os membros do próprio sua função de reunião e congraçamento: as
Conselho Consultivo do órgão, que, praças públicas.

A
com o apoio decisivo do seu presidente Foi o que aconteceu, por exemplo, com a

E
Marcos Vilaça e do relator do processo,

I S T Ó R I C O
Praça Rui Barbosa, conhecida popularmente
Gilberto Velho, acabou aprovando o como Praça da Estação, em Belo Horizonte,
tombamento, mas por uma margem que, no início da década de 1980, teve a

H
extremamente pequena – “três votos a

A T R I M Ô N I O
integridade do seu espaço ameaçada pela
favor do tombamento, um pelo adiamento, possibilidade da instalação de uma estação
duas abstenções e um voto contra” (Velho, do metrô, que estava sendo proposto como

P
2006:239) – e com a ausência de sete dos solução de transporte da capital mineira. Essa

D O
seus membros. intervenção, secundada pela implantação de

E V I S T A
Tal tombamento abriu o caminho
diversos terminais de ônibus de integração na

Marcos Olender
para a preservação de outros terreiros: em

R
área, ameaçava a integridade não só da praça,
2001, o Ilê Axé Opô Afonjá foi tombado
mas também do seu entorno. Na defesa
pela unanimidade dos membros do citado
dessa integridade, o departamento de Minas
Conselho, depois houve os tombamentos do
Gerais do Instituto de Arquitetos do Brasil
Terreiro do Gantois, do Terreiro do Bate-
– IAB-MG ressaltava que era: “(...) um local
Folha e do Terreiro do Alaketo (Ilê Maroiá
estratégico, central, com prédios públicos
Láji). E, as questões levantadas então também
significativos, um dos poucos conjuntos 333
contribuíram para o estabelecimento de um
que resistiram à demolição da especulação
novo campo da preservação no Brasil, o dos
imobiliária” (Miranda, 2007:14), como
bens imateriais. Cabe aqui, porém, reforçar
afirma Maurício Andrés Ribeiro, presidente
a advertência feita por Odete Dourado em
da organização entre 1982 e 1983.
artigo sobre o tombamento do Ilê Axé Iyá
O depoimento do arquiteto José Abílio
Nassô Oká:
Belo Pereira, diretor do IAB-MG na gestão
[...] o que existe é uma relação absolutamente 1980/1981, coletado por André de Sousa
indissociável e dinâmica entre o que é imaterial e Miranda, reforça o caráter simbólico da praça:
material, semelhante, aliás, é bom lembrar, àquela
existente entre o orum (o invisível) e o ayê (o (...) Era a porta de entrada da cidade, esse era
mundo visível) que, embora distintos, coexistem e o grande motivo. O marco inicial da cidade. O
se interpenetram. A questão estende-se e interessa, ponto simbólico. Um patrimônio arquitetônico
naturalmente, a todos os bens patrimoniais, sejam interessante. É um lugar, pode-se dizer, de onde
eles edifícios, conjuntos históricos, esculturas, eu chego e saio da cidade: a porta (Miranda,
pinturas etc. (Dourado, 2011:17). 2007:142).
(...) Acho que a Praça da Estação foi um um poema sobre a questão, intitulado de
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

evento importante aqui em Belo Horizonte. Foi “A Praça da Estação de Belo Horizonte”, no
um momento importante e carregado. Por isso
A C I O N A L

qual os valores afetivos são reforçados como


que tem determinadas coisas que parece que na
justificativa para a preservação:
gênese delas elas carregam aquela potencialidade de
N

se transformar em símbolos. E a Praça da Estação


R T Í S T I C O

Duas vezes a conheci: antes e depois das rosas.


carrega esta potencialidade o tempo inteiro. Foi lá
Era a mesma praça, com a mesma dignidade,
que se deu os primeiros desembarques. Foi lá que
O mesmo recado para os forasteiros:
A

as pessoas chegaram na cidade. Ali que tinha um


E

esta cidade é uma


prédio bonito e fizeram outro muito interessante
I S T Ó R I C O

promessa de conhecimento, talvez de amor.


também. É a grande praça. O grande lugar de
A segunda Estação, inaugurada por Epitácio,
encontro. O Monumento à Terra Mineira. Quer
O monumento de Starace, encomendado por
H

dizer: é um dos lugares que vão ficando preenchidos


A T R I M Ô N I O

Antônio Carlos
de significados. Eu diria que a Praça da Estação tem
São feios? São belos?
mais significado simbólico para Belo Horizonte que
São linhas de um rosto, marcas da vida.
a Praça Sete. Praça Sete tenha talvez como elemento
P

A praça da entrada de Belo Horizonte,


D O

geométrico, como referência geométrica, simbólica.


Mesmo esquecida, mesmo abandonada pelos
De centro, de lugar central. Mas enquanto vida
E V I S T A

poderes públicos,
da cidade de Belo Horizonte, Praça da Estação
Conta pra gente uma história pioneira.
Marcos Olender
R

tem mais importância. Ela é mais preenchida de


De homens antigos criando realidades novas.
conteúdo e acontecimentos (Miranda, 2007:152) É uma praça – forma de permanência no tempo.
E merece respeito.
Note-se a relevância dada à antiguidade Agora querem levar para lá o metrô de superfície.
da praça, “marco inicial da cidade”, e, Querem mascarar a memória urbana,
reforçando a sua importância simbólica, a alma da cidade
sua consolidação como “porta de entrada” e Num de seus pontos sensíveis e visíveis.
334 Esvoaça crocitante sobre a praça da Estação
como “lugar de encontro”, “preenchida de
O Metrobel decibel a granel sem quartel
conteúdo e acontecimentos”. Afirmações
Planejadores oficiais insistem em fazer de Belo
plenas de afetividade.
Horizonte
A mobilização em torno da preservação Linda, linda, linda de embalar saudade
da praça, liderada e coordenada pelo IAB- Mais uma triste anticidade
MG, teve como seu ápice o I Encontro pela (Andrade, apud Miranda, 2007:165).
Revitalização da Praça da Estação, secundado
por exposições fotográficas e projeções A mobilização gerou a abertura do
cinematográficas. Contou com o apoio de processo de tombamento estadual do
parte da imprensa, como os jornais Estado de Conjunto Paisagístico e Arquitetônico da Praça
Minas e Jornal do Brasil, nos quais, com suas Rui Barbosa, contribuindo para ampliar a
crônicas, o escritor Carlos Drummond de abrangência dos tombamentos realizados pelo
Andrade participou do movimento desde o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e
seu início. Drummond, inclusive, publicou, Artístico de Minas Gerais – Iepha-MG. Foi
no Estado de Minas de 3 de janeiro de 1982, delimitado, para preservação, um perímetro
que abrangia a praça e várias edificações que da política de preservação do Iepha-MG, que,

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
compunham a sua paisagem urbana. Porém, até então, coadjuvava o Iphan na proteção

A C I O N A L
a tramitação do processo aponta, segundo preferencial das manifestações artísticas,
o depoimento do arquiteto Ricardo Lanna, arquitetônicas e urbanísticas do período
diretor do IAB-MG na época, para possíveis

N
colonial. E possibilitou, malgrado todos os

R T Í S T I C O
pressões do mercado imobiliário, prejudicando percalços, a preservação de um importante
a manutenção da integridade do conjunto conjunto urbano, permeado por edificações

A
originalmente proposto: que contam a história de Belo Horizonte, mas

E
I S T Ó R I C O
que apresenta como principal força simbólica
(...) Se você for lá hoje eu acho que sobraram um espaço “vazio”, congregador e congraçador
duas casas. Porque quando foi para o Iepha tombar
de encontros e movimentos sociais.

H
ele tirou isso daqui [referindo-se aos imóveis

A T R I M Ô N I O
Mais recentemente, em Juiz de Fora,
hachurados no mapa, na rua Célio de Castro. E,
a partir de 2009, a luta pela preservação
quando sumiram com o processo, é tão escandaloso
que o processo saiu do Iepha para ir pro Palácio do Castelinho do Bairu também tem a

P
especulação imobiliária como uma das

D O
da Liberdade para o governador Hélio Garcia
principais ameaças a serem combatidas. Na

E V I S T A
homologar e o processo sumiu. Passou três anos
desaparecido. E olha bem como são as coisas: sabe carta convite feita para um evento que foi

Marcos Olender
R
como o processo apareceu? Eu achei o processo lá realizado no dia 8 de abril de 2010 pelo
no Plambel. Aí comuniquei ao Iepha: “O processo movimento dos moradores para defender sua
está aqui. Eu só não posso falar. Mas ele está aqui
preservação, o chamado Movimento Memória
e aí tinha havido muita perda”. Porque enquanto
Bairro, na parte intitulada de “Risco para a
eles ficaram com o processo eles demoliram. Aí
eu fiz outra proposta de tombamento da Praça. qualidade de vida do bairro”, consta o alerta:
Como Plambel. [)..) Aí o Iepha tirou esta parte de
cá. [referindo-se ao conjunto de imóveis ecléticos Além da importância da preservação do imóvel 335
situados na Rua Célio de Castro] Manteve o Viaduto para a memória de Juiz de Fora, por ocupar grande
de Santa Tereza que não estava incluído no primeiro parte do quarteirão (...) a possibilidade de que ele
tombamento, aí eu incluí no segundo. (...) Tirou a venha a dar lugar a um grande empreendimento
Rua Célio de Castro e detonaram com ela rapidinho. imobiliário também preocupa os moradores por
Não ficou nada. Era pra ter ficado uma coisa muito representar um risco para a qualidade de vida do
interessante ali. Um pedaço extremamente expressivo, bairro, que provavelmente não conta com uma
muito bem caracterizado (Miranda, 2007:182). infraestrutura para isso (PJF, 2009:178)

Iniciado em 1981, formalizado pelo Tal preocupação repercutiu com destaque


Iepha-MG em 1984, só em 15 de março nas diversas matérias feitas pela imprensa
de 1988 (pelo Decreto Estadual n 27.927)o local que cobriu o evento. Uma delas, veicula-
foi homologado o tombamento estadual do da pela Tribuna de Minas, teve o significativo
Conjunto Paisagístico e Arquitetônico da título de “Arquitetura afetiva: comunidade
Praça Rui Barbosa. Tal processo teve como organiza mobilização pelo tombamento do
um dos seus méritos ampliar a abrangência Castelinho do Bairu” (PJF, 2009:177).
“TUDO BEM NO SEU A modificação ou, mais radicalmente,
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

LUGAR”: MEMÓRIAS, a eliminação dessas coisas (sejam casas,


A C I O N A L

LUGARES, AFETOS, ruas, passagens) dos seus lugares abalará os


MOVIMENTOS E ENCONTROS membros dos grupos sociais que convivem
e compartilham desses lugares. Podemos
N
R T Í S T I C O

entender, assim, o medo do músico José


Ó banho de luz, tão puro Augusto Teixeira Miranda, morador do bairro
A

Na paisagem familiar: Bairu, em Juiz de Fora, com a possibilidade


E

Meu chão, meu poste, meu muro, de que o Castelinho, integrado “à memória
I S T Ó R I C O

Meu telhado e a minha nuvem de cada família e de cada morador do bairro”,


Tudo bem no seu lugar,
fosse demolido, pois isso seria como “arrancar
H

Mário Quintana3
um pedaço das nossas vidas” (PJF, 2009:5).
A T R I M Ô N I O

Vale notar que ele aborda o sentimento de


A construção social e afetiva da memória
forma coletiva, no plural.
está no cerne da formulação do conceito de
P

Mas preservar as coisas em seus lugares


D O

memória coletiva formulado por Maurice


não é o suficiente, pois se “quando um grupo
E V I S T A

Halbwachs. Ele inicia seu texto “A memória


está inserido numa parte do espaço, ele a
coletiva e o espaço”, parte dos seus últimos
Marcos Olender

transforma à sua imagem, ao mesmo tempo


R

esboços publicados sob o título de A memória


em que se sujeita e se adapta às coisas materiais
coletiva, se detendo exatamente na relação
que a ele resistem”, consequentemente, “o
entre as pessoas, os grupos sociais, suas coisas
lugar recebe a marca do grupo e vice-versa”
e seus espaços. Sobre isso diz:
(Halbwachs, 2004:139), essa constitui a
construção coletiva de uma estabilidade
Se entre as casas, as ruas, e os grupos dos
necessária a toda a memória.
seus habitantes, não houvesse apenas uma
336 A memória, ressalta Pierre Nora, “é
relação inteiramente acidental e efêmera, os
homens poderiam destruir suas casas, seu afetiva”, “é um fenômeno sempre atual, um
quarteirão, sua cidade, reconstruir sobre elo vivido no eterno presente (...) se enraíza
o mesmo lugar uma outra, segundo um no concreto, no espaço, no gesto, na imagem,
plano diferente; mas se as pedras se deixam no objeto” (Nora, 1993:9). Existem vezes que
transportar, não é tão fácil modificar as os usos mudam, os espaços são reapropriados
relações que são estabelecidas entre as pedras para que, ao menos, mantendo-se a presença
e os homens. Quando um homem vive muito
das coisas, suas imagens sobrevivam e possam
tempo em lugar adaptado a seus hábitos, não
continuar a auxiliar a sustentar a própria
somente os seus movimentos, mas também
vivência do grupo, participando, de algum
seus pensamentos se regulam pela sucessão
das imagens que lhe representam os objetos modo, ainda, da sua memória coletiva,
exteriores (Halbwachs, 2004:143). conformando movimentos e pensamentos
dos habitantes daquele lugar, como afirma
Halbwachs no trecho acima citado. Mas
3. Trecho do seu poema “Canção do primeiro ano”.
muitas vezes, também, os próprios usos
são preservados, conservam-se os gestos,
os hábitos e as situações que preenchem
os lugares, quase ritualmente, “enraizados”
naquele espaço.
Foi o caso da Praça da Estação, em Belo
Horizonte, “o grande lugar de encontro”
como ressaltou em seu depoimento o
arquiteto José Abílio Belo Pereira, diretor
do IAB-MG no início da década de 1980,
quando da realização do movimento que
ajudou a preservá-la. Durante aquela década,
no decorrer do processo que culminaria
no seu tombamento, mesmo mal cuidada,
voltou “a ser palco (...) de manifestações
políticas, comícios, passeatas, tornando-se
espaço de interlocução entre sociedade civil
e governo, revivendo, sob este aspecto, seu
período áureo”, além de “ser utilizada pelo
poder público como espaço de promoção de
festas populares e shows musicais” (Rangel e
Oliveira, 2013). E esses usos se mantiveram
até a virada do século, quando a ameaça
da sua eliminação, a partir de posturas
equivocadas de gestão da preservação,
provocou a ação de grupos sociais.
O conjunto urbano da Praça da Estação
(tombado pelo estado em 1988) passa, a
partir de meados da década de 1990, por 2006. Praticamente quatro anos depois, em Festa de Santa Bárbara
Acervo: Iphan/
intervenções de reabilitação promovidas pela Francisco Moreira da Costa.
9 de dezembro de 2009, utilizando como
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
pretexto a ameaça à preservação dos bens
Essas ações são reforçadas pela iniciativa, a
requalificados do lugar, o prefeito publica um
partir de 2000, de uma fundação privada,
decreto que proíbe a realização de “eventos de
o Instituto Cultural Flávio Gutierrez, de
qualquer natureza” na praça. Sua publicação
implantar um Museu de Artes e Ofícios na
sede da antiga Estação Ferroviária Central, provoca uma reação imediata. Quatro dias
com o apoio do Ministério da Cultura e depois, inicia-se a convocação, pelas redes
da Companhia Brasileira de Trens Urbanos sociais, para uma manifestação “em prol da
– CBTU), proprietária da edificação, que cultura na Praça da Estação” no dia 7 de
foi aberto ao público em 10 de janeiro de janeiro de 2010. Nesse dia, respondendo
ao chamado, aproximadamente cinquenta [...] a praça serviria como esse espaço de
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o

pessoas se reuniram na praça para debater convivência, de manifestação, de circulação, de


encontro, então, a praça era nossa praia e o que o
A C I O N A L

questões referentes, principalmente, à ameaça


decreto estava fazendo era justamente isso, estava
de gentrificação do centro de Belo Horizonte,
cerceando o direito dos cidadãos, das pessoas da
em um processo de “espetacularização
N

cidade, desse encontro, da livre manifestação, da


R T Í S T I C O

urbana tendo a especulação imobiliária


livre circulação, da livre experimentação, enfim,
como meta diretriz do planejamento da tirando das mãos da população um espaço que
A

cidade” (Migliano, 2013:44), conforme era dela por direito, né? (...) e essa coisa da praia
E

relata uma das participantes do encontro. pegou, né? Porque era uma ocupação efetiva do
I S T Ó R I C O

Nesse encontro foi decidido que seria criado espaço público que legalmente estava proibido de
um blog específico para que todos pudessem ser ocupado. E foi ocupado de uma forma lúdica,
H

postar suas ideias e propostas e logo surgiu, através de uma intervenção urbana, de forma
A T R I M Ô N I O

artística e pacífica de alguma maneira,e com todo


também com ampla difusão nas redes sociais,
esse caráter simbólico, político em torno, é... aí
a proposta da “Praia da Estação”.
aconteceu que pegou, pegou, no dia da primeira
P

A primeira praia ocorreu no dia 16 de


D O

praia se esperava a movimentação, a convocação


janeiro de 2010, com a participação de, pelo aconteceu basicamente através de e-mail, dessas
E V I S T A

menos, trezentas pessoas, e foi descrita assim: ferramentas na internet e no boca a boca, claro, e
Marcos Olender
R

apareceu um número expressivo de pessoas nessa


Ao chegar na Praça, os banhistas, como se primeira praia (apud Oliveira, 2012:97)
autointitulam os manifestantes, espalharam suas
cangas, tiraram as roupas e exibiram os corpos Aquela praça, que era considerada
no centro da cidade como se estivéssemos em
“o marco zero”, “a porta de entrada” da
um balneário. Alguns jogavam frescobol, outros
cidade, ameaçada de ser “gentrificada” como
passavam protetor solar, outros soltavam os
aconteceu com vários espaços urbanos
338 cachorros para correrem com crianças. Logo
chegaram os vendedores de picolés, cerveja, água preservados, foi reapropriada por um coletivo,
e refrigerante. Um pouco depois, os jornalistas, na maioria jovens estudantes, criando-se um
fazendo a cobertura daquele protesto inusitado movimento social através de uma convocação
(Migliano, 2013:45-46). e de uma articulação, cada vez mais comum
no nosso século, pelas redes sociais. Além
Seguiram-se outras praias aos sábados, dos desdobramentos diretos do movimento,
até junho de 2010 e, a partir daí, pelo como a mobilização contra o prefeito que
menos durante os verões de 2011 e 2012. assinou o decreto (o movimento “Fora
Há notícias de outras “praias” até 2014. O Lacerda”) e o bloco de carnaval, outros grupos
movimento se identificava como coletivo, sociais e seus respectivos movimentos não
horizontal, sem lideranças individualizadas. só receberam o incentivo e a solidariedade
Tinha como objetivo reivindicar o direito dos praieiros, mas, inclusive, “passaram a
ao uso da cidade, a afirmação, portanto, da integrar as reivindicações da praia” como
própria cidadania, como relata um dos seus aquelas concernentes aos personagens que
participantes, o antropólogo Rafael de Barros: estavam sendo vítimas dessa “gentrificação”,
tais como as mobilizações das profissionais do afirmação identitária. Como já apontava

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
sexo do baixo centro, além dos movimentos Halbwachs, a memória é construída

A C I O N A L
“pela igualdade e liberdade de gênero, dos coletivamente, a partir do compartilhamento
moradores e meninos de rua, dos vendedores de situações e expressões materiais e
ambulantes, pipoqueiros e fotógrafos lambe- intelectuais vivenciadas por um determinado

N
R T Í S T I C O
lambe”, e de situações afins como “dos grupo, criando, como afirma Meneses,
artesãos da Praça Sete e dos artesãos da Feira “vínculos afetivos de pertencimento e

A
Hippie”. Conforme afirma Oliveira: solidariedade” entre as pessoas, as coisas e

E
seus lugares. A própria seleção daquilo que

I S T Ó R I C O
A festa, o lúdico, o êxtase, os encontros será compartilhado parte de uma relação
e a interação, o ocupar o espaço público, afetiva positiva, ou mesmo negativa, com

H
a contestação, a rebeldia, o protesto, a determinada situação ou expressão.

A T R I M Ô N I O
desobediência, a afirmação do poder fazer,
Os afetos podem ser individuais ou
dentre outras expressões, conformaram uma
coletivos, mas, mesmo aqueles considerados
trama e compuseram um agenciamento coletivo

P
mosaico, fluido, amorfo, polissêmico de difícil individuais são afetos por ou para alguém ou

D O
apreensão e conceituação. Os participantes da alguma coisa. Envolvem certa experiência

E V I S T A
Praia da Estação trouxeram à tona, de maneira que se realiza, de alguma forma, em uma

Marcos Olender
crítica, contestatória, poética, desejante e afetiva, dimensão coletiva. Inspirado no filósofo

R
a questão da cidade, do viver na cidade, do ser e Baruch de Spinoza, posso dizer que os
estar na cidade (Oliveira, 2012:196-197). maus encontros entre pessoas, coisas e
lugares nos deprimem, nos enfraquecem,
A Praça da Estação retomava a sua nos desestruturam, nos deixam tristes,
pulsação e reafirmava, e renovava, a sua nos tornam passivos, entregando o nosso
histórica e memorável vocação congregadora destino a forças exteriores a nós ou nos
e congraçadora. desesperando, fazendo-nos agir pautados no 339

ódio. Já, por outro lado, os bons encontros


À GUISA DE CONCLUSÃO: nos motivam, ficamos alegres, mais
MEMÓRIAS, AFETOS E fortes, dispostos ao compartilhamento, à
CIDADANIA solidariedade e às ações afirmativas realizadas
coletivamente.
No percurso assumido por este texto, Em seu artigo “Afetos em Espinosa e a
passamos por experiências de movimentos cidade como civitas”, Fátima Maria Araújo
sociais criados a partir da necessidade da Bertini aponta que o afeto da alegria nos
preservação de algum bem que era caro encaminha para a autonomia e o da tristeza,
àqueles grupos, os quais, articulando-se, para a servidão. A partir daí apresenta
os promoveram. Edificações e territórios duas possibilidades de vida urbana.
importantes na constituição e na Primeiramente em uma sociedade em que
estruturação da memória coletiva desses somos instados a agir de forma passiva, sem
grupos, consequentemente da sua própria participar das decisões:
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
A C I O N A L
N
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
P
D O
E V I S T A

Marcos Olender
R

Procissão Quando as cidades são transformadas (...) a cidade é comum quando os cidadãos
do Fogaréu
Acervo: Iphan/
Paulo Rezende.
abruptamente a partir de uma política exterior se sentem parte da mesma e quando as mudanças
à organização dos cidadãos enquanto sociedade, urbanas não distanciam os indivíduos do sentido
340
cerceando-os da participação das decisões, os da sua própria cidade (Bertini, 2015:14).
sujeitos podem não mais se assemelhar com
os espaços da cidade. O cidadão pode não Ao remover-se, perversamente, o valor
reconhecer historicamente o espaço urbano,
afetivo das orientações, planejamentos e
tornando-se alheio ao mesmo. Os espaços
decisões a serem tomadas na vida de uma
da cidade se tornam estranhos, quando não
cidade, e mais especificamente naquilo que
correspondem à dinâmica histórico-política ou
interessa mais de perto a este artigo, no que
à dimensão afetiva das pessoas na vivência do
espaço urbano ou na situação do “esquecimento” concerne à eleição e à preservação dos bens
das políticas públicas dos espaços históricos (não que constituirão o patrimônio histórico e
cuidam, não preservam), devido à orientação cultural de uma cidade ou território, estamos
adotada de uma lógica da racionalidade técnico- efetivamente afastando os seus cidadãos (ou
científica ou econômica, externa à realidade dos parte significativa deles), desqualificando-os e
cidadãos (Bertini, 2015:14) com isso deslegitimando a própria cidadania,
fundamentada no direito à cidade e, por
Por outro lado, afirma ainda a autora: extensão, no direito à sua memória.
REFERÊNCIAS cultural. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Gra-

O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
duação em Memória Social, Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012.
ALMEIDA, Fabiana Aparecida de. Narrativas preserva-

A C I O N A L
Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/
cionistas na cidade: a trajetória da defesa do patrimônio
documentos/Teses/Tese14.pdf. Último acesso em 7 de
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lares. Juiz de Fora: Funalfa, 2015. abril de 2017.

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NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemá-

R T Í S T I C O
BERTINI, Fátima Maria de Araújo. Afetos em Espi-
nosa e a cidade como civitas. Revista Conatus – Filosofia tica dos lugares. Projeto História, v. 10, PUC/SP, São
de Spinoza, v. 9, nº 18, Fortaleza, p. 11-18, dez.2015. Paulo, p. 9, 1993.

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tus&page=article&op=view&path%5B%5D=2089. Alterosas, uma “antena parabólica” ativista: configurações

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H
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br/risco/article/view/45501. Último acesso em 7 de PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. Processo de Tom-

P
abril de 2017. bamento do imóvel à rua Irmão Martinho, nº 40, próxi-

D O
FERNÁNDEZ, Aurora Arjones. Alois Riegl: El culto mo à Praça da Baleia – Bairu. Processo 3700/2009. Juiz

E V I S T A
moderno de los monumentos, su carácter y sus orígenes. de Fora: PJF/Dipac, 2009.
Sevilha: Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico/ RANGEL, Carlos Henrique; OLIVEIRA, Lílian. O

Marcos Olender
R
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GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na Estação): portal do tempo. Blog Proteus Educação
contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, v. Patrimonial, mar.2013. Disponível em: http://proteu-
16, nº 47, p. 333-513, mai-ago.2011. Disponível em: seducacaopatrimonial.blogspot.com.br/2013/03/o-con-
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v16n47/v16n47a05.pdf junto-arquitetonico-da-praca-da.html
. Último acesso em 7 de abril de 2017. RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos e outros
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São ensaios estéticos. Lisboa: Edições 70, 2013.
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de Mestrado). Escola de Arquitetura da UFMG. Belo
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Horizonte, 2007.
abril de 2017.
MONTALVO, Antonio José Aguilera. A imponderável
fronteira – do material e o do intangível no patrimônio
N O TA S B I O G R Á F I C A S
Notas biográficas

LIA CALABRE DE AZEVEDO


Doutora em História (UFF), pesquisadora
A C I O N A L

ANDREY ROSENTHAL SCHLEE adjunta da Fundação Casa de Rui Barbosa e


Arquiteto e urbanista, mestre e doutor em atual chefe do Setor de Estudos de Política
N

Arquitetura. Diretor do Departamento de Cultural. Professora do PPG Memória e


R T Í S T I C O

Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan. Acervos – FCRB e de políticas culturais dos


Professor titular da Faculdade de Arquitetura MBAs de Gestão Cultural da Universidade
A

e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação Cândido Mendes e da Fundação Getúlio


E
I S T Ó R I C O

em Arquitetura da Universidade de Brasília. Vargas – FGV/RJ. Coordenadora da


Coautor de 100 imagens da arquitetura Cátedra FCRB-Unesco de Políticas
pelotense (1998 e 2003), Guia de obras de Culturais e Gestão. Foi presidente da
H
A T R I M Ô N I O

Oscar Niemeyer (2010) e Registro arquitetônico FCRB (2015-2106). Membro do Centro


da Universidade de Brasília (2014). Membro de Estudos Multidisciplinares em Cultura
do Conselho Consultivo do Patrimônio – Cult/UFBA. Autora de Políticas Culturais
P

Museológico do Ibram. no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI


D O
E V I S T A

(Ed. FGV, 2009), organizadora de livros


HERMANO FABRÍCIO OLIVEIRA e autora de diversos artigos sobre política
R

GUANAIS E QUEIROZ cultural.


Bacharel em Direito, pós-graduado em Direito e
em Preservação do Patrimônio Cultural. Diretor L U C I A H U S S A K VA N V E LT H E M
do Departamento de Patrimônio Imaterial Museóloga, mestre e doutora em
do Iphan. Atuou na Procuradoria Jurídica e Antropologia Social. Pesquisadora titular do
foi Diretor de Projeto, Obras e Restauro do MCTI, vinculada ao Museu Paraense Emílio
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural Goeldi. Dedica-se à área de Antropologia,
342
da Bahia. Autor de O registro de bens culturais com ênfase em Etnologia Indígena. Autora
imateriais como instrumento constitucional de Serpentes de arumã. Fabricação e estética
garantidor de direitos culturais (2016). entre os Wayana (Wajana) na Amazônia
Oriental (2014); As artes indígenas: o
JUREMA DE SOUSA MACHADO cotidiano na ordem cósmica (2012); Artes
Arquiteta e urbanista pela UFMG, foi indígenas: notas sobre a lógica dos corpos e
presidente do Iphan de 2012 a 2016 e dos artefatos (2010). Membro do Conselho
coordenadora do Setor de Cultura da Consultivo do Patrimônio Cultural do
Representação da Unesco no Brasil de 2002 Iphan.
até setembro de 2012. Foi presidente do
Iepha-MG de 1995 a 1998, além de ter MARCIA SANT’ANNA
atuado na etapa de formulação do Programa Marcia Sant’Anna é graduada em
Monumenta de 1999 a 2001, bem como nas Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
áreas de planejamento e controle urbano dos de Brasília (1980), Mestre e Doutora em
municípios de Ouro Preto e Belo Horizonte. Arquitetura e Urbanismo (1995 e 2004)
pela Universidade Federal da Bahia. Entre

Notas biográficas
MARCOS OLENDER
1987 e 2011 foi servidora do Instituto do Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo

A C I O N A L
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
– Iphan, onde exerceu vários cargos, entre (1985), mestrado em História Social pela
os quais o de Coordenadora Regional nos

N
UFRJ (1992) e doutorado em Arquitetura e

R T Í S T I C O
estados do Ceará e Rio Grande do Norte, Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia
Diretora do antigo Departamento de (2007). Atualmente é professor associado da

A
Proteção e, entre 2004 e 2011, Diretora do Universidade Federal de Juiz de Fora, onde

E
Departamento do Patrimônio Imaterial.

I S T Ó R I C O
ministra disciplinas no Curso de História e nas
A partir de abril de 2011 é professora da pós-graduações de História e Ambiente Cons-
Faculdade de Arquitetura da Universidade truído. É diretor do Centro de Conservação

H
Federal da Bahia e do Programa de Pós-

A T R I M Ô N I O
da Memória – Cecom, da UFJF. Atua princi-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da palmente nos seguintes temas: constituição do
mesma universidade. É também professora pensamento preservacionista, teorias da preser-

P
colaboradora do Mestrado em Preservação vação e do restauro, instrumentos de proteção

D O
do Patrimônio Cultural do Iphan. do patrimônio, gestão em patrimônio cultural,

E V I S T A
Lidera o Grupo de Pesquisa Arquitetura história da preservação do patrimônio cultural,

R
Popular: Espaços e Saberes, é membro do história da arquitetura moderna e contempo-
Grupo de Pesquisa História da Cidade rânea, exposições universais e internacionais e
e do Urbanismo e publica regularmente história da modernidade.
trabalhos sobre preservação do patrimônio
urbano, política de preservação do MARIA CECÍLIA LONDRES FONSECA
patrimônio cultural e arquitetura popular. Licenciada em Letras, mestre em Teoria
A partir de setembro de 2016 é membro da Literatura e doutora em Sociologia.
343
titular do Conselho Consultivo do Foi pesquisadora do Centro Nacional de
Patrimônio Cultural. Referência Cultural – CNRC, Coordenadora
de projetos da Fundação Nacional Pró-
M Á R C I A R E G I N A R O M E I R O C H U VA Memória, Coordenadora de Políticas da
Bacharel em História, com doutorado em Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes
História. Professora do Departamento de Plásticas do MinC, Membro do Grupo
História e do Programa de Pós-Graduação de Trabalho do Patrimônio Imaterial e
em História, da Universidade Federal do representante do Brasil nas reuniões de
Estado do Rio de Janeiro, e do Mestrado peritos internacionais, na Unesco, para a
Profissional em Patrimônio Cultural elaboração da Convenção para a Salvaguarda
do Iphan. Autora de Os arquitetos da do Patrimônio Cultural Imaterial. Autora
Memória (2009) e organizadora da Revista do de The Registry of Intangible Heritage: the
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº brazilian experience (2004) e Patrimônio
34 – História e Patrimônio (2011). em processo (2005). Membro do Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan.
MARIA LUCIA BRESSAN M I LT O N G U R A N
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0

PINHEIRO Fotógrafo, mestre em Comunicação Social


Professora livre-docente do Departamento
A C I O N A L

e doutor em Antropologia. Pesquisador


de História da Arquitetura da Faculdade de associado ao Laboratório de História
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Oral e Imagem da Universidade Federal
N
R T Í S T I C O

de São Paulo, onde se graduou e obteve Fluminense e membro do Comitê Científico


o título de Doutor (1997). Atuou no Internacional do Projeto Rota do Escravo,
Conselho de Defesa do Patrimônio
A

da Unesco. Autor de Agudás: os “brasileiros”


E

Histórico, Arqueológico e Turístico do do Benin (2000) e Linguagem Fotográfica e


I S T Ó R I C O

Estado de São Paulo – Condephaat de 1982 Informação (2000). Coordenou o Grupo


a 1993, período em que realizou estágio de Trabalho responsável pela elaboração do
H

junto à Landmarks Commission de Nova dossiê de candidatura do Sítio Arqueológico


A T R I M Ô N I O

Iorque, EUA, com bolsa Capes/Fulbright/ Cais do Valongo a Patrimônio Mundial.


Laspau (1986). Foi diretora do Centro
P

de Preservação Cultural – CPC da USP PA U L O O R M I N D O D E A Z E V E D O


D O

de junho/2006 a abril/2010 e tem Bolsa Paulo Ormindo de Azevedo é arquiteto,


E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro

Produtividade CNPq. Ministra disciplinas Doutor em Conservação de Monumentos


e desenvolve pesquisas ligadas à História
R

e Sítios pela Universidade de Roma, La


e Preservação da Arquitetura Brasileira. Sapienza, Consultor da Unesco com missões
Coordena o projeto Plano de Conservação na América Latina, Caribe e África Luso-
para o Edifício Vilanova Artigas, fone, professor titular da UFBA aposentado e
patrocinado pela Fundação Getty. membro da Academia de Letras da Bahia. Foi
colaborador do Iphan na Bahia, entre 1959
MÁRIO DE SOUZA CHAGAS e 1969, coordenou o Inventário de Proteção
344
Poeta, museólogo e doutor e Ciências do Acervo Cultural da Bahia, obra em sete
Sociais. Ex-coordenador técnico do volumes, e presidiu o Departamento da Bahia
Departamento de Museus e Centros do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB.
Culturais do Iphan. Professor adjunto Ex-membro do Conselho Nacional de Política
da Escola de Museologia e do Programa Cultural, do Conselho Consultivo do Iphan,
de Pós-graduação em Memória Social da do Conselho de Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal do Rio de Janeiro. do Brasil – CAU/BR, do Conselho Superior
Autor de Há uma gota de sangue em cada do IAB-BA e do Conselho de Cultura da
Museu (1998) e organizador da Revista do Bahia. Atualmente é conselheiro do Comitê
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº Científico da Rede de Patrimônio Histórico
31 – Museus: antropofagia da memória e do Ibero-americano, do CAU/BA e do IAB-BA.
patrimônio (2005). Membro do Conselho O arquiteto recebeu o Prêmio Rodrigo Melo
Consultivo do Patrimônio Museológico do Franco de Andrade, do Iphan, e é autor de
Ibram. livros, artigos e projetos de restauração e
arquitetura.
R O B E R T O S TA N C H I YUSSEF DAIBERT SALOMÃO DE

Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Arqueólogo, mestre e doutor em CAMPOS
Professor Adjunto-A da Faculdade de His-

A C I O N A L
Arqueologia. Coordenador Nacional
de Licenciamento Ambiental do Iphan. tória e dos Programas de Pós-Graduação em
Autor de Modernidade, mas nem tanto: as História e em Projeto e Cidade (Arquitetura

N
R T Í S T I C O
vilas operárias da Fábrica Confiança, Rio e Urbanismo), da Universidade Federal de
de Janeiro, séculos XIX e XX (2008) e A Goiás. Doutor em História (UFJF); Mestre
em Memória Social e Patrimônio Cultural

A
proteção do patrimônio arqueológico a partir

E
das práticas administrativas do Iphan: das pela UFPel. Graduado em Direito pela UFJF;

I S T Ó R I C O
delegações às consultorias (2017). Especialista em Gestão do Patrimônio Cultural
(Granbery e Permear, Juiz de Fora-MG). Pes-

H
quisa o patrimônio cultural a partir da relação

A T R I M Ô N I O
TA N I A A N D R A D E L I M A
entre História, Memória e Identidade, além
Tania Andrade Lima, Doutora em
de suas nuances jurídicas. Participou, como
Ciências pela USP com pós-doutorado
bolsista Capes, do projeto Perspectivas Teóricas

P
em História Social, também pela USP, é

D O
sobre el Patrimonio Material e Inmaterial en
professora do Programa de Pós-Graduação

E V I S T A
Sudamerica – Brasil y Argentina (CAFP/BA –

Maria Lucia Bressan Pinheiro


em Arqueologia do Departamento de
UFPel/UBA). É membro do Icomos-Brasil.

R
Antropologia do Museu Nacional/
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do Conselho Nacional de Z O Y A N A S TA S S A K I S
Desenvolvimento Científico e Tecnológico Professora adjunta da Escola Superior de
– CNPq, desenvolve pesquisas em Desenho Industrial, Universidade do Estado
Arqueologia Histórica (Arqueologia do do Rio de Janeiro. Graduada em Design pela
Capitalismo e Arqueologia da Diáspora mesma instituição, é Mestre e Doutora em
345
Africana), Arqueologia Pré-Histórica Antropologia pelo Programa de Pós-graduação
(pescadores/coletores litorâneos, ceramistas em Antropologia Social, Museu Nacional,
tupi-guarani) e reflexões sobre Teoria Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coor-
Arqueológica e Preservação do Patrimônio dena o Laboratório de Design e Antropologia,
Arqueológico. grupo de pesquisa certificado pelo CNPq. É
autora de artigos em publicações nas áreas de
Design e Antropologia, dentre elas Antropolo-
gia e patrimônio cultural: trajetórias e conceitos
(Associação Brasileira de Antropologia, 2012)
e Design e/é patrimônio (Centro Carioca de De-
sign, 2012). Com apoio da Faperj e do Prêmio
Design, do Museu da Casa Brasileira, publicou
o livro Triunfos e impasses: Lina Bo Bardi, Aloi-
sio Magalhães e o design no Brasil (Lamparina
Editora, 2014).
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

346
Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
347

Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0


Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
A C I O N A L
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R T Í S T I C O
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I S T Ó R I C O
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E V I S T A

Maria Lucia Bressan Pinheiro


R

348

A publicação da Revista do Patrimônio não seria possível sem a inestimável


colaboração das instituições representadas por seus dirigentes e servidores que,
com dedicação e profissionalismo, nos permitem acessar seus acervos e utilizar
documentos e imagens para o enriquecimento das matérias veiculadas. Queremos
agradecer a esses profissionais que lidam diretamente com os acervos.

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