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Nº 35 Nº 35 Nº 35
2017 2017 2017
Neste número
Andrey Rosenthal Schlee
Hermano Queiroz
Jurema Machado
Lia Calabre
Marcia Sant’anna
Márcia Chuva
Marcos Olender
Mário Chagas
Milton Guran
Zoy Anastassakis
Iphan 1937–2017
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional nº 35 / 2017
ISSN 0102-2571
Iphan 1937–2017
ORGANIZAÇÃO: Andrey Rosenthal Schlee
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO BRASIL
Michel Temer
DIRETORES DO IPHAN
Andrey Rosenthal Schlee
Hermano Queiroz
Marcelo Brito
Marcos José Silva Rego
Robson Antônio de Almeida
Jurema Machado
Feito em casa: o Iphan e a cooperação
internacional para o patrimônio 245
Marcos Olender
O afetivo efetivo. Sobre afetos,
movimentos sociais e preservação
do patrimônio 321
Não serei o poeta de um mundo caduco. Foi no dia 13 de janeiro de 1937 que o
Também não cantarei o mundo futuro. presidente Getúlio Vargas sancionou a Lei
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
nº 378. Dava prosseguimento ao projeto
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
de modernização do Estado brasileiro,
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
reorganizando o ainda jovem Ministério da
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Educação e Saúde e criando, entre outras
instituições, o Serviço do Patrimônio
Carlos Drummond de Andrade1
Histórico e Artístico Nacional, atual
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – Iphan.
de abertura dos XXXI Jogos Olímpicos, Rosenthal Schlee que organizasse uma
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mostrar a cultura do país anfitrião. E o que – foi Rodrigo Melo Franco de Andrade,
vimos ou ouvimos? Justamente aquilo que nosso primeiro presidente, que, ainda em
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o Iphan vem protegendo durante oitenta 1937, a concebeu como um veículo capaz de
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reafirmar que o Brasil, com a maior floresta fez Rodrigo Melo Franco de Andrade,
e a maior reserva de biodiversidade do especialistas das mais variadas áreas foram
planeta, chama a atenção do Mundo para a convidados para assinar artigos absolutamente
necessidade urgente de promover também autorais sobre temas afetos ao Iphan. Entre os
a paz com o planeta. Ou seja, a preservação textos, como ilustrações, apenas belas imagens
integrada dos valores culturais e naturais. E de bens culturais brasileiros, sem datação ou
8 não foi isso que o Iphan sempre fez? localização. Imagens captadas pelos fotógrafos
da Repartição, profissionais que atuaram na
O Instituto tem uma vocação
ou para a Instituição ao longo de anos e que,
genuinamente pública e republicana.
assim, serão homenageados.
Preservamos e salvaguardamos o patrimônio
cultural do Brasil para o usufruto de Todos, O primeiro número apresenta-se dividido
no presente e no futuro. Enfrentamos em duas partes. Uma destinada a revisitar a
inúmeras dificuldades e idiossincrasias, e história do Iphan, das ideias preservacionistas
nos apresentamos como uma Instituição de da década de 1920 ao início de minha
Estado. Acontece que, aos oitenta anos de administração, considerando os mandatos de
existência, o próprio Instituto do Patrimônio Rodrigo Melo Franco de Andrade, Renato
Histórico e Artístico Nacional tornou-se Soeiro e Aloisio Magalhães, bem como
um patrimônio. Cabe, portanto, à Nação os períodos de 1982 a 2002 e de 2002 a
Brasileira buscar os meios que garantam a sua 2016. São seis artigos dispostos em ordem
serena continuidade e plena atuação. cronológica e de responsabilidade de Maria
Lucia Bressan Pinheiro, Lia Calabre, Paulo
Iphan 1937–2017
Ormindo de Azevedo, Zoy Anastassakis,
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Márcia Chuva, Andrey Schlee e Hermano
Queiroz. A segunda parte explora grandes
temas ou desafios que a Instituição enfrentou
Kátia Bogéa
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ou continua a enfrentar: os museus, os
centros urbanos, as referências culturais, a
A
arqueologia, as inovações da Constituição
E
Federal de 1988, o patrimônio afro-brasileiro,
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o patrimônio indígena, a cooperação
internacional, o licenciamento ambiental e
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a participação cidadã. Ao todo, são mais dez
A T R I M Ô N I O
artigos, assinados por Mário Chagas, Márcia
Sant’Anna, Maria Cecília Londres Fonseca,
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Roberto Stanchi, Yussef Salomão de Campos,
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Milton Guran, Lucia van Velthem, Jurema
E V I S T A
Machado, Tania Andrade Lima e Marcos
Olender. A quem agradecemos.
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O segundo número não apresenta uma
lógica estrutural. Mas apenas uma provocação
de fundo: pensar o patrimônio no futuro.
patrimônio.
Vale
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
12
Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Mar ia Lucia Bressan Pinheiro
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T RAJETÓRIA DAS IDEIAS PRESERVACIONISTAS NO B RASIL :
1920 1930
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AS DÉCADAS DE E
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A
E
I S T Ó R I C O
H
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Para bem restaurar, é necessário amar e Não é tarefa fácil investigar os primeiros
entender o monumento, seja estátua, quadro ou indícios da emergência de uma sensibilidade
edifício, sobre o qual se trabalha (...) Ora, que preservacionista no Brasil, que se configuraria
P
séculos souberam amar e entender as belezas do
como a pré-história de nosso primeiro órgão
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passado? E nós, hoje, em que medida sabemos
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federal especificamente voltado à salvaguarda
amá-las e entendê-las?
do patrimônio brasileiro: o Iphan, cujos
(Boito, 2002:31).
R
oitenta anos de atividade são celebrados em
2017. Entre os vários enfoques possíveis, o
presente artigo, inspirado na exortação de
Camilo Boito na epígrafe acima, abordará o
tema a partir do mapeamento dos primeiros
e incipientes estudos sobre a arquitetura
brasileira, considerados aqui como as 13
primeiras demonstrações de interesse,
mesmo que tênue, por tais manifestações
do patrimônio cultural brasileiro. Tal
abordagem parece pertinente, também,
diante do viés arquitetônico, por assim dizer,
de que se revestiram as primeiras iniciativas
preservacionistas no Brasil, inclusive aquelas
protagonizadas no início das atividades
do Iphan – então denominado Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
Sphan.
Profeta Habacuc
A esse respeito, não seria ocioso lembrar Acervo: Copedoc/Iphan/
Marcel Gautherot.
que, nascido sob o signo da globalização, em
Grafismo Wajãpi
seu momento inicial – que podemos situar Acervo: Iphan.
na grande expansão ultramarina portuguesa no período; e dela é emblemático não só o
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
–, o Brasil acabou de completar cinco séculos descaso pelos vetustos edifícios coloniais,
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desde seu descobrimento. Entretanto, foi velharias a serem derrubadas pelas “picaretas
necessário o decurso de quase trezentos regeneradoras”, mas também a escassez
anos até a emergência das primeiras atitudes de estudos específicos sobre aqueles
N
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Inconfidência Mineira e Tiradentes, sua figura aqui, posição de destaque cabe ao engenheiro
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paradoxalmente sufocados pela franca paulista por matrimônio e pela sua ligação
abertura à cultura europeia em geral, e profissional com o arquiteto Ramos de
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francesa em particular, que caracterizou o Azevedo. Severo exerceu entre nós importante
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século XIX – inclusive com patrocínio oficial, papel no despertar de um interesse pela
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Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
entre Portugal e o Brasil permitiram que as alheia”.
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formas tradicionais portuguesas, decantadas Ao advogar a produção contemporânea de
de diversas correntes migratórias ao longo de uma arquitetura de base tradicional, Severo
séculos,
N
procurava afastar de sua exortação qualquer
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laivo de “saudosismo” romântico e retrógrado,
(...) aqui se estabelecessem com naturalidade,
enraizando-se e resistindo, como na velha afirmando que
A
metrópole, à invasão das influências cosmopolitas”.
E
(...) não se intima ao artista de hoje a postura
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inerte da esfinge, voltada em adoração estática para
A palestra foi ilustrada com fotografias
o passado, mas sim a atitude viva do caminhante
e desenhos de exemplares da arquitetura
que, olhando o futuro, tem de seguir um caminho
H
residencial brasileira, destacando seus
A T R I M Ô N I O
demarcado pela experiência e pelo estudo do
elementos construtivos tradicionais, como passado.
telhados, beirais, janelas, portas, rótulas etc. –
Em março de 1917, evidenciando o
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uma abordagem absolutamente fora do usual,
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naquele momento. Pouco usual era também sucesso de sua conferência de 1914, o
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a importância conferida por Severo ao casario engenheiro português foi convidado a
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das cidades, em detrimento dos edifícios Escola Politécnica de São Paulo (Severo,
excepcionais. Com efeito, revelando-se leitor 1917:394-424). Aproveitou a oportunidade
atento de A lâmpada da memória, uma das e propôs a utilização, para o estudo da
Sete lâmpadas da arquitetura, de John Ruskin, arquitetura brasileira, do método de
o engenheiro afirmou: “investigação direta”, próprio da etnografia
e da arqueologia, em oposição à pesquisa
(...) há que ponderar que o caráter de uma
documental, privilegiada pelos historiadores – 15
cidade não lhe é dado por seus monumentos,
justificando-se com as seguintes palavras:
colocados em pontos dominantes, grandes praças
ou lugares históricos. Ligam esses locais as ruas e A arqueologia não é apenas o estudo da
avenidas, marginadas por casas de variado destino; antiguidade, analisada como uma ossatura
e são estas que dão a característica arquitetônica morta, ou dissecada como um cadáver em
da cidade; com efeito, o monumento é uma laboratório de anatomia. Não se prende às coisas
exceção, a casa é a nota normal da vida quotidiana do passado, como petrificações imobilizadas na
do cidadão, é como uma lápide epigráfica de sua
rocha sedimentar que é seu eterno jazigo. Estuda
ascendência e de sua história. manifestações da vida da humanidade, fases de
civilização; analisa as criações do homem como
Numa referência à recém-iniciada
integrações da coletividade, em determinado meio
construção da nova catedral de São Paulo,
e tempo. (grifo nosso)
que viera substituir a antiga matriz colonial,
Ricardo Severo não se furtou a criticar o Reiterando sua visão da arte como
caráter importado do estilo adotado – o fenômeno coletivo, transmitido pela
neogótico –, ressaltando que “Melhor fora experiência, ressaltou que, para a arqueologia,
(...) as mais rústicas ruínas têm um valor Minas, como se fosse composição do mesmo
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
máximo e o mais modesto edifício tem uma arquiteto (o “Aleijadinho”) da segunda metade do
brilhante significação, pela natureza dos século XVIII.
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de exemplo, Severo apresentou um “grosseiro (...) uma legitimidade tão legal quanto o
dogma clássico das ordens arquitetônicas dos
esboço” da arquitetura religiosa brasileira,
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critério arqueológico da sua composição movimento que logo ficaria conhecido como
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Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
temas abordados pelo engenheiro português, contrário da ênfase de Ricardo Severo
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fazendo até mesmo pequenas retificações. É no caráter anônimo e coletivo das igrejas
fácil compreender seu entusiasmo: discorrer brasileiras, e sua filiação genética à arquitetura
sobre a arquitetura colonial brasileira,
N
portuguesa.
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identificando técnicas construtivas, motivos Citando textualmente alguns trechos
ornamentais recorrentes ou soluções de planta da conferência do engenheiro português,
A
inovadoras – por mais sumárias que fossem as Mário também endossou com entusiasmo sua
E
análises empreendidas, quase meras descrições
I S T Ó R I C O
hipótese relativa à originalidade das plantas
– era algo inédito até aquele momento. curvilíneas mineiras, reiterando que, em
É evidente, nos artigos, a preocupação Minas,
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A T R I M Ô N I O
de Mário com o que ele considerava a
(...) os elementos decorativos não residem só
decadência da arquitetura religiosa no início
na decoração posterior, mas também no risco e na
do século XX, diante da miscelânea de
projeção das fachadas, no perfil das colunas, na
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estilos empregados nas novas igrejas, com
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forma das naves.
predominância do Neogótico. Nesse sentido,
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Que divisar senão uma parva desorientação (...) assume a proporção dum verdadeiro estilo,
e um tresloucamento lamentável? (...) Há ainda equiparando-se, sob o ponto de vista histórico, ao
artistas cristãos, não há mais arte cristã, com Egípcio, ao Grego, ao Gótico. E é para nós motivo
normas exatas, com diretriz firme e determinada de orgulho bem-fundado que isso se tenha dado
(Andrade, 1920a:96). no Brasil (Andrade, 1920b:103).
do estilo a ser empregado nas novas igrejas. polonês Georg Przyrembel. O Neocolonial
Pouco depois dessa série de artigos, Mário assumia indiscutivelmente, assim, foros de
inaugurou a coluna “De São Paulo” na revista modernidade.
N
R T Í S T I C O
seu entusiasmo pela nova tendência pernambucano José Mariano Filho, cuja
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que nenhum ousara continuar. E Brecheret, cujas aos artistas e arquitetos do Rio de Janeiro,
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Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
jornal A Noite a respeito do projeto com costumava insistir era a falta generalizada
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que concorrera ao Prêmio Heitor de Mello, de conhecimento a respeito da arquitetura
promovido por José Mariano Filho em 1923, colonial brasileira que imperava então,
no qual alcançara o segundo lugar (Pinheiro,
N
gerando pastiches de mau gosto. Nesse
R T Í S T I C O
2013:58). sentido, considerava que
Os esforços de divulgação do Neocolonial
(...) o programa de ação desse movimento
A
realizados por Mário de Andrade e por
[Neocolonial] consiste, antes de tudo, no
E
José Mariano Filho muito se beneficiaram
I S T Ó R I C O
reconhecimento e seleção do vocabulário
das comemorações ligadas ao Primeiro característico do estilo tradicional brasileiro”
Centenário da Independência do Brasil, (Pinheiro, 2011:141).
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celebrado na grande Exposição Internacional
A T R I M Ô N I O
do Centenário da Independência, inaugurada A nosso ver, definiu claramente, assim, a
em setembro de 1922, na área resultante do principal contribuição do Neocolonial para a
cultura brasileira.
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desmonte do Morro do Castelo, o antigo
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centro histórico do Rio de Janeiro. Coerentemente, procurou suprir a
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carência de estudos e de repertório sobre a
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o deputado pernambucano Luiz Cedro
apresentou em 1923 um projeto de lei de bolsas de viagem a jovens arquitetos ou
criando a Inspetoria dos Monumentos estudantes de arquitetura às cidades mineiras
Históricos dos Estados Unidos do Brasil. do ciclo do ouro, patrocinadas pela Sociedade
Trata-se da primeira iniciativa inteiramente Brasileira de Belas Artes – SBBA, da qual era
voltada para a preservação do patrimônio diretor. Assim foram custeadas as viagens de
arquitetônico brasileiro, contemplando Nestor de Figueiredo a Ouro Preto; de Nereu
Sampaio a São João del-Rei e Congonhas 19
imóveis públicos ou particulares, que seriam
“classificados como monumentos nacionais”1. do Campo, e de Lucio Costa a Diamantina,
Todas as igrejas que mencionou em seu todas no ano de 1924.
discurso de encaminhamento do projeto Em São Paulo, também havia esforços no
à Câmara dos Deputados, em 3/12/1923, sentido de documentar a arquitetura colonial
haviam sido comentadas por Ricardo brasileira: Ricardo Severo financiava viagens
Severo na conferência de 1917, da qual de estudo ao pintor José Wasth Rodrigues, e o
Cedro extraiu inclusive citações textuais. O engenheiro e professor Alexandre Albuquerque
deputado mencionou também seu “amigo empreendia regularmente, entre 1921 e 1925,
o Dr. José Mariano Filho” (Pinheiro, excursões a cidades coloniais com seus alunos
2011:261), evidenciando, assim, sua da Escola Politécnica de São Paulo, com o
proximidade com os círculos neocoloniais. objetivo de suprir a carência de registros de
importantes exemplares arquitetônicos.
1. Em 1920, Alberto Childe, conservador do Museu Nacional, As cidades mineiras do ciclo do ouro
apresentara um anteprojeto de lei voltado à proteção de sítios
arqueológicos. eram o principal destino desses viajantes.
Em abril de 1924, estiveram em Minas Folgamos em ver realizado o sonho do grupo
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Gerais os estudantes cariocas bolsistas da de intelectuais paulistas que, o ano passado, fez
uma longa e proveitosa excursão às nossas cidades
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Oswald de Andrade e Dona Olívia Guedes com assuntos de arte nesse tempo de vida cara e
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conterrâneo do arquiteto Le Corbusier, que de lançar as bases de uma associação que tivesse
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Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
década de 1920, a questão patrimonial se Rosário, na Capela de S. João e na Matriz
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intensifica, sendo que, também em 1928, a do Pilar. Gustavo Barroso privilegiou as
cidade de Ouro Preto começa a aparecer no obras públicas, e não as suntuosas igrejas do
epicentro das atenções, bem como seu artista Aleijadinho, apesar das atenções que para ele
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maior, o Aleijadinho. Nesse ano, o poeta se voltavam naquele momento.
pernambucano Manuel Bandeira visitou a Reforços na estrutura da Casa dos Contos
A
cidade, registrando em inúmeras crônicas – onde então funcionava uma agência dos
E
a profunda impressão que lhe causara a Correios e Telégrafos – acabaram sendo
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arquitetura mineira e propondo a criação de incluídos no plano de obras de Barroso.
um órgão voltado à sua preservação. Também O trabalho foi dirigido pelo “jovem e
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dedicou um artigo ao Aleijadinho, no qual distinto engenheiro da Repartição Geral
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anunciou o bicentenário de nascimento do dos Telégrafos, Epaminondas de Macedo”,
genial artista mineiro que se aproximava, recebendo elogios do então diretor do MHN
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devendo ser comemorado em 29/8/1930. (Barroso, 1955:19).
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Entre 1928 e 1929, talvez inspirados por As obras realizadas por iniciativa de
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R
Costa dedicaram artigos ao Aleijadinho, de constituem, portanto, uma das poucas
pontos de vista bastante distintos. ocasiões em que os discursos preservacionistas
Quem também esteve em Ouro Preto em da década de 1920 se traduziram em ações
1928 foi Gustavo Barroso, diretor do Museu efetivas, a incidir na própria materialidade
Histórico Nacional – MHN, o primeiro de exemplares do patrimônio brasileiro.
museu brasileiro especificamente voltado à Registre-se, nelas, a colaboração de um
história do Brasil, criado em 1922. Barroso futuro integrante dos quadros do Iphan:
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procurou o então governador de Minas Epaminondas de Macedo.
Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, É difícil identificar as motivações dessa
com quem mantinha relações políticas, para precoce atuação de Barroso em Ouro Preto,
convencê-lo a promover reparos na cidade mas podemos formular algumas hipóteses.
– e foi bem-sucedido na empreitada. Ficou Além da sua posição como diretor do MHN,
acertado que Antônio Carlos destinaria à guardião máximo da memória nacional, é
prefeitura “a verba de 200 mil cruzeiros para bem possível que interesses políticos tenham
as obras urgentes de Ouro Preto”, ficando guiado sua ação, já que previsivelmente
Barroso encarregado “de inspecionar, como Antônio Carlos seria eleito presidente do Brasil
técnico, os trabalhos de restauro” (Barroso, nas eleições de 1930, conforme o acordo de
1955:5-6). alternância de poder então vigente entre Minas
Dessa forma, foram feitos reparos Gerais e São Paulo, conhecido como “política
emergenciais nos chafarizes da Glória, dos do café-com-leite”. Momento politicamente
Contos, do Largo de Dirceu, de Claudio oportuno para uma reaproximação com o
Manuel e do Alto da Cruz; também foram governador mineiro, portanto.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
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Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Luiz Santos.
Acervo: Iphan/
Ilha do Paty
Sambadeira,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
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de outro episódio inusitado que ocorreu um a importância que a cidade de Ouro Preto
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visita, já em plena crise desencadeada pelo Filho, que pronunciou a conferência Mestre
A T R I M Ô N I O
não ao mineiro Antônio Carlos, conforme Pois foi precisamente nesse dia que o
E V I S T A
acertado), João Batista Luzardo propôs à deputado José Wanderley de Araújo Pinho,
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Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
característica ímpar de locus da Inconfidência Decreto no 24.735, que reformulava o
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Mineira assegurava a Ouro Preto uma posição regulamento do Museu Histórico Nacional
de honra no panteão da simbologia nacional, – MHN, criando o Serviço de Inspeção
sobrepondo-se a interesses regionais – o que dos Monumentos Nacionais no âmbito da
N
R T Í S T I C O
também convinha a Vargas. instituição. Esse Serviço ficou conhecido
Emblemática dessa proeminência foi a como Inspetoria de Monumentos Nacionais,
A
elevação da cidade à condição de Monumento embora nunca tenha se constituído como
E
Nacional, efetivada em 12/7/1933. De certa órgão autônomo, permanecendo sempre
I S T Ó R I C O
forma, é como se Vargas decidisse aprovar a como uma divisão do MHN.
proposta de criação de uma Comissão para a E, dois dias depois da ampliação das
H
Preservação de Ouro Preto, apresentada em atribuições do MHN, em 16/7/1934, foi
A T R I M Ô N I O
1929 pelo deputado João Batista Luzardo. aprovada a Constituição de 1934, com a
Há referências de que teria sido o inclusão do famoso artigo 148, que dispunha
P
advogado Vicente Racioppi, entusiasta do sobre a proteção do patrimônio histórico
D O
legado físico e moral da ex-capital do estado e artístico do país. Essa coincidência quase
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R
criação do Instituto Histórico e Geográfico de reorganização do MHN e a Carta Magna
Ouro Preto – IHG-OP, em 29/8/1931, quem brasileira muito contribuiu para conferir
sugeriu a Vargas a elevação daquela cidade à legitimidade ao recém-criado Serviço de
condição de Monumento Nacional. A esse Inspeção dos Monumentos Nacionais – que,
respeito, Rodrigo Melo Franco de Andrade na verdade, tinha muito pouco amparo legal,
faz menção a uma “sugestão propícia” na como apontou Rodrigo Melo Franco.
origem desse decreto, “a primeira lei federal Ainda no mês de julho de 1934, apenas
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sobre a matéria”, o que parece corroborar dez dias depois da promulgação da nova
a participação de Racioppi na iniciativa Constituição, Gustavo Capanema assume a
(Andrade,1952:45-46). O advogado parece pasta da Educação e Saúde Pública – o que
ter gozado, de fato, de uma inusitada representou uma guinada decisiva quanto aos
familiaridade com Vargas, com quem teve rumos da cultura e da preservação no Brasil,
vários encontros pessoais, conforme registrado como se sabe.
no diário presidencial (Vargas, 1995). No final de 1934, poucos meses depois
Assim, apesar da naturalização do episódio de assumir o Ministério, eis que Capanema
nos estudos sobre a trajetória da preservação convida Mário de Andrade, durante “almoço
no Brasil, a patrimonialização de Ouro Preto no restaurante Albamar, Rio de Janeiro”, para
reveste-se de conotações políticas inequívocas, elaborar “um anteprojeto de lei de proteção à
a imprimir uma nova dinâmica ao processo. arte no Brasil” (Andrade, 1988:175).
De fato, quase exatamente um ano O inusitado convite nos remete ao já
depois da nova legislação, em 14 de julho de mencionado encontro de Mário de Andrade
1934 – agora por outra “sugestão propícia”, com os intelectuais mineiros do Grupo
Estrela, do qual Capanema fazia parte, nos – DC, criado provisoriamente em 1935
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
mesmo em mim uma confiança admirável de Sindicato Nacional de Engenheiros e do
generosidade. Eu fui muito combatido quando ele
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Instituto Central de Arquitetos, associações
falou o meu nome, e ele fincou o pé contra toda a
de classe que tinham reagido fortemente
argumentação poderosíssima da política. (Andrade,
N
1988:177-178).
contra o convite feito por Capanema ao
R T Í S T I C O
arquiteto italiano Marcello Piacentini para
Esse episódio evidencia que, a par de elaborar o projeto carioca.
A
suas atividades no Rio de Janeiro, Capanema Sua conhecida participação no projeto
E
acompanhava com interesse as atividades de
I S T Ó R I C O
para a sede do Mesp, por outro lado, deu-se
Mário de Andrade em São Paulo, à frente do por convite direto do ministro. Insatisfeito
DC. E, em 1935, estavam em andamento
com o resultado do concurso, concluído
H
duas importantes iniciativas do Mesp: o
A T R I M Ô N I O
em dezembro de 1935 com a vitória do
projeto para a Cidade Universitária da
projeto marajoara de Arquimedes Memória,
futura Universidade do Brasil e o concurso
Capanema desobrigou-se de realizá-lo,
P
para o projeto da nova sede do Ministério
D O
convidando Lucio Costa para elaborar uma
(Schwarzman,1984:97). Nesse momento
E V I S T A
alternativa para o edifício, em março de
R
permanecera alheio à esfera governamental
com a condição de que o projeto fosse
desde seu fugaz envolvimento com a reforma
desenvolvido por uma equipe composta por
do ensino universitário colocada em prática
Carlos Leão, Afonso Reidy, Jorge Moreira,
em 1931 pelo ministro Francisco Campos,
que o nomeou diretor da Enba2. Ernâni Vasconcellos e Oscar Niemeyer, sob a
A essa altura, Lucio já tinha abraçado supervisão de Lucio.
publicamente a causa modernista – mudança
27
que só começara a se tornar evidente a partir
de sua atuação na Enba, quando tomou
iniciativas como a contratação de Gregori
Warchavchik, Alexander Buddeus, Celso
Antônio e Leo Putz como professores da
Escola e, principalmente, a organização
integral do Salão de Belas Artes de 1931, para
a qual recorrera inclusive ao auxílio de Mário
de Andrade a fim de arregimentar os artistas
modernistas paulistas (Pinheiro, 2011).
Agora, em 1935, Costa participava da
comissão de desenvolvimento da Cidade
que Gustavo Capanema telefonou a Mário MHN. No entanto, enquanto estava sendo
A C I O N A L
semanas, Mário apresentou o projeto para se novamente para Ouro Preto, onde já
o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional colaborara ativamente com a administração
H
uma semana depois. Assim, a partir de abril Inspeção do MHN – oficializado até então.
D O
“em bases provisórias”, conforme as palavras se encarregar da direção material dos serviços
de Gustavo Capanema (Andrade, 1952:59). da Inspetoria de Monumentos”. O convite
Portanto, as tratativas iniciais para a foi aceito com entusiasmo por Macedo,
criação de um órgão federal de preservação que, para viabilizar a nova atividade, deu
do patrimônio ocorreram em paralelo à imediatamente início às providências para seu
decisão de Capanema de contratar Lucio afastamento do Departamento dos Correios
Costa para elaborar o novo projeto para a e Telégrafos (Barroso, 1955:23). Entretanto,
28
sede do Mesp; sendo que Lucio passou a seu processo de contratação foi bastante
integrar os quadros do novo órgão desde seu moroso, só se efetivando em 2/12/1935. Isso
início, juntamente com mais dois membros não o impediu de, entre junho e novembro
da equipe do projeto: Carlos Leão e Oscar de 1935, antes mesmo de sua efetivação junto
Niemeyer. Mário de Andrade, por sua vez, ao MHN, elaborar o Plano de Restaurações
assumiu a função de representante do Sphan em Ouro Preto que foi apresentado ao
em São Paulo. ministro Gustavo Capanema no final daquele
Configura-se, assim, de forma mais que ano (Barroso, 1955:43). O relatório compõe-
emblemática, a imbricação da arquitetura se da caracterização física e do estado de
modernista nas raízes da arquitetura conservação de várias pontes, chafarizes e
tradicional, sempre destacada. igrejas de Ouro Preto que a Inspetoria de
É digna de nota a ausência de qualquer Monumentos Nacionais pretendia restaurar,
menção, convite, ou proposta de colaboração além da descrição das intervenções propostas
entre o recém-criado Serviço e aquele outro, e respectivos orçamentos. Trata-se de um
criado apenas dois anos antes: o Serviço de documento precioso, por disponibilizar
grande quantidade de informação, Como se vê, concordemos ou não com
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
inclusive levantamentos métricos e registros as medidas e escolhas tomadas, o fato é que,
A C I O N A L
fotográficos, sobre o estado em que se entre 1935 e 1937, o Serviço de Inspeção
encontrava grande parte dos bens culturais de Monumentos Nacionais do MHN
de Ouro Preto naquele momento (Barroso, levou efetivamente a cabo um conjunto de
N
R T Í S T I C O
1955:34-127). intervenções visando preservar monumentos
Como já ocorrera em 1928, Barroso ouro-pretanos, todas precedidas de estudos
A
privilegiou logradouros, pontes e chafarizes, técnicos preliminares – um caso inédito até
E
isto é, os equipamentos urbanos, que então. Raras vezes mencionado, esse trabalho
I S T Ó R I C O
compunham o que ele chamou de “ambientes foi feito em paralelo à criação do Sphan e
históricos” – e que se encontravam então à sua progressiva institucionalização, que
H
bastante deteriorados. Trata-se de uma se deu, como vimos, entre abril de 1936 –
A T R I M Ô N I O
postura inovadora naquele momento, pois quando o anteprojeto de Mário de Andrade
o termo ultrapassa a noção convencional de foi autorizado por Vargas a ser submetido
P
monumento isolado, de caráter excepcional à Câmara dos Deputados – e novembro de
D O
(Barroso, 1955:35-43). 1937, quando foi aprovado o Decreto-lei no
E V I S T A
R
de Restaurações apresentado por Barroso novo órgão, possibilitou sua atuação efetiva.
foi elaborada por Epaminondas de Macedo, Tal seria, portanto, uma sucinta
que a iniciou até mesmo antes de sua con- apreciação do processo de emergência de
tratação, como vimos. Uma vez autorizado uma sensibilidade preservacionista no Brasil,
o Plano, o engenheiro deu início às obras a confluir na criação do Sphan – um tema
propriamente ditas, passando a apresentar ainda carente de pesquisas aprofundadas.
relatórios regulares, de periodicidade qua- Mapeando caminhos pouco explorados, o
29
se semanal, do andamento do trabalho, presente trabalho propôs uma abordagem
que cobrem o período de novembro de transversal e abrangente do período,
1935 a julho de 1937, quando o Sphan já privilegiando as conexões entre os temas
estava funcionando em bases provisórias. de investigação que iam se descortinando.
Os trabalhos consistiam geralmente no Recusando clivagens consagradas, recorreu a
conserto de telhados, caiação, recomposição uma abordagem inclusiva, voltada à busca das
de peças de cantaria e ornatos quebrados continuidades e dos intrincados percursos e
ou desaparecidos, limpeza e remoção de volteios dos processos de circulação de ideias.
camadas de pintura em retábulos e portadas. Do quadro delineado emerge uma noção
Em muitos casos foram colocadas placas plural da questão da identidade nacional – em
de pedra-sabão assinalando os serviços rea- que tradição e modernidade não constituem
lizados pelo MHN, como no Chafariz de uma dicotomia, mostrando-se, ao contrário,
Antônio Dias e na Ponte dos Contos – que fortemente entrelaçadas ao longo do período –
mais tarde foram “misteriosamente retiradas” o que constitui uma das observações de caráter
(Barroso, 1955:129-167). conclusivo possíveis de serem elencadas aqui.
De fato, a importância das ideias transformação em Ministério da Educação e
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Andrade e Lucio Costa, evidencia-se a partir transparece das muitas lacunas, silêncios e
da presença do Neocolonial na Semana omissões identificadas ao longo da singular
A
Ministério da Educação e Saúde Pública, após momentos. Peça essencial das tratativas em
D O
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
arquitetônico nacional. Rio de Janeiro, s.c.p., 1943.
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
32
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
Lia Calabre
A C I O N A L
O S ERVIÇO DO P ATRIMÔNIO A RTÍSTICO N ACIONAL
N
DENTRO DO CONTEXTO DA CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS
R T Í S T I C O
PÚBLICAS DE CULTURA NO B RASIL
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Em que momento as políticas públicas Em 1930, Getúlio Vargas criou o
de cultura no Brasil tiveram início? Para Ministério da Educação e Saúde Pública –
uma grande maioria dos estudiosos e Mesp, inicialmente sob a chefia de Francisco
P
especialistas da questão, nos anos 1930, no Campos, que, em 1934, foi substituído
D O
E V I S T A
governo do presidente Getúlio Vargas e, por Gustavo Capanema, tendo este último
mais especificamente, na segunda metade permanecido à frente do órgão até 1945.
R
dessa década. É partindo da perspectiva da Vários intelectuais foram colaboradores
construção das políticas públicas de cultura no do ministro Capanema, como: Carlos
país que o presente artigo pretende revisitar os Drummond de Andrade, Mário de Andrade,
primeiros tempos de existência do Instituto do Rodrigo Melo Franco de Andrade, Anísio
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Teixeira, Fernando Azevedo, Heitor Villa-
Nessa década, o país passou por Lobos, Manuel Bandeira, entre outros.
significativas mudanças em áreas diversas e, A gestão Capanema foi marcada por um 33
em especial, na de estruturação e elaboração processo de construção institucional do
de políticas públicas. A Revolução de 1930 campo da cultura, ainda que, segundo Cecília
marcou a ruptura da chamada política do Londres, essa não fosse uma das prioridades
café-com-leite, que, de maneira simplificada, do ministro, “que em seu discurso de posse
pode ser explicada como um pacto político deu destaque à educação nacional, à saúde
que garantia uma espécie de revezamento pública e à assistência social” (Londres,
no controle do poder federal, entre paulistas 2001:85). De uma maneira geral, naquele
e mineiros, ainda que contasse com apoio momento, a ideia de cultura estava muito
de grupos oligárquicos de outras regiões do vinculada à de educação, ao conhecimento
país. Foram anos de profundas mudanças, erudito e aos “hábitos culturais cultivados”,
marcados por um processo de urbanização tais como ler clássicos da literatura canônica,
crescente, pelo aumento da produção conhecer a dramaturgia universal (ocidental
Rodrigo Melo Franco
industrial e pela conquista e consolidação de e especialmente europeia), ouvir música de Andrade
Acervo: Copedoc/Iphan/
uma série de direitos trabalhistas. erudita, enfim, o projeto era o de aumentar Marcel Gautherot.
o nível “civilizatório” do país. Ainda que a criação do Departamento Administrativo
políticas públicas de cultura no Brasil
O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
realização de ações e a construção de políticas nas diferentes esferas da vida social e política
E
o ministro esteve à frente da pasta não houve reforma do Estado que, iniciada durante o governo
um setor que não tenha recebido atenção: institucional, tem seu ápice com a instauração do
regime autoritário (Diniz, 1999:26).
(...) desde a radiodifusão e o cinema ao
P
D O
decisivo apoio prestado à arquitetura e às artes O decreto que dispõe sobre os serviços
E V I S T A
Lia Calabre
A C I O N A L
– isso não significa dizer que grupos mais para a propagação e conhecimento do
conservadores ou de outras vertentes de patrimônio artístico nacional1.
O anteprojeto marioandradiano
N
pensamento não tivessem projetos para a área.
R T Í S T I C O
Havia uma disputa entre algumas correntes era ambicioso, alargando o conceito de
acerca do conceito de patrimônio que deveria patrimônio. O documento delimita as
A
ser operacionalizado pelo Estado. Segundo obras de arte patrimoniais a partir de oito
E
categorias: a arqueológica, a ameríndia, a
I S T Ó R I C O
Lúcia Lippi, as viagens dos modernistas
paulistas (como Mário de Andrade) e popular, a histórica, a erudita nacional, a
mineiros às cidades coloniais de Minas Gerais erudita estrangeira, as aplicadas nacionais e as
H
aplicadas estrangeiras. Na categoria popular,
A T R I M Ô N I O
desencadearam um processo de redescoberta
do Brasil; novos olhares eram lançados, por exemplo, estava previsto o tombamento
especialmente sobre o passado colonial. de objetos, monumentos, paisagens e
P
folclore; aqui estaria excluída a arte de origem
D O
O grupo de intelectuais modernistas e seus ameríndia. As obras tombadas deveriam ser
E V I S T A
pares mineiros, grupo composto por Gustavo
registradas em quatro Livros do Tombo. O
Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade,
Lia Calabre
projeto também previa a criação de quatro
Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, entre
museus onde seriam expostas as coleções
outros, teria papel fundamental na educação, na
definição da política de patrimônio, na construção de arte correspondentes a cada um desses
de uma identidade nacional para o país (Oliveira, livros. Ao Livro do Tombo Arqueológico e
2008:116-117). Etnográfico corresponderiam as categorias
de artes arqueológicas, ameríndias e
As mobilizações intensas em favor populares. O Livro do Tombo Histórico
do patrimônio contribuíram, em muito, 35
seria correspondente à arte histórica (com
para a criação de inspetorias estaduais de o respectivo museu histórico já existente).
monumentos históricos em Minas Gerais Ao Livro do Tombo das Belas Artes
(1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco corresponderia a criação da Galeria Nacional
(1928). de Belas Artes. E, ao Livro do Tombo das
Quando ainda estava no Departamento Artes Aplicadas corresponderia a criação
de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade de um museu de artes aplicadas e técnica
foi convidado, pelo ministro Gustavo industrial. Cada museu deveria ter, em seu
Capanema, para elaborar o anteprojeto da saguão de entrada, a cópia do Livro do
criação do Serviço do Patrimônio Histórico Tombo das artes a que ele correspondesse,
e Artístico Nacional – que foi entregue em para ser consultado pelos visitantes. Estava
24/3/1936. No documento projetado pelo ainda prevista a criação de uma revista do
modernista, caberia ao Serviço do Patrimônio
determinar e organizar o tombamento, 1. O documento pode ser encontrado no CPDOC/FGV, no arqui-
vo Gustavo Capanema. Ref. 36.03.24/2, ou publicado na Revista
sugerir a conservação e defesa, determinar a do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 30, de 2002.
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
36
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
Caio Reisewitz.
Acervo: Monumenta/Iphan/
Pintura de forro
Sphan e a publicação regular dos Livros do órgão (desde o período de funcionamento
A C I O N A L
museus, entre outros. mantendo-se no mesmo até 1967. Para a
O projeto era bastante abrangente. Em difícil tarefa de dar efetividade ao Sphan,
uma entrevista concedida em 2001, um dos inclusive com o necessário caráter nacional,
N
R T Í S T I C O
funcionários do grupo que trabalhou na Rodrigo contou com a contribuição de
implantação do Serviço do Patrimônio, o destacados profissionais das mais diversas
A
arquiteto, desenhista e pintor Alcides da Rocha áreas – arquitetos, juristas, engenheiros,
E
Miranda, declarou que o projeto de Mário historiadores, literatos, mestres de obras, entre
I S T Ó R I C O
outros. Atuaram na consultoria jurídica do
(...) era uma coisa imensa, tão grande, que era
difícil de fazer funcionar, porque não havia verbas
órgão, por exemplo, Afonso Arinos de Melo
H
Franco e Prudente de Morais Neto. Para
A T R I M Ô N I O
suficientes, não havia elementos humanos com
conhecimento e prática” para dar efetividade ao as ações em Pernambuco, Rodrigo contou
planejado (Miranda, 2002:247). com os serviços de Gilberto Freyre; para o
P
Rio Grande do Sul, com Augusto Meyer; e,
D O
Segundo Cecília Londres, além da
para a região amazônica, com Arthur Cezar
E V I S T A
extensão do projeto, que, sem dúvida,
Ferreira Reis. Mário de Andrade produziu
influíra na decisão da não implementação
Lia Calabre
estudos sobre São Paulo. Carlos Drummond
integral do mesmo, dois outros fatores foram
de Andrade foi o organizador do Arquivo e
determinantes. O primeiro deles era o aspecto
chefe da Seção de História e Lucio Costa,
jurídico, pelo qual Rodrigo tinha forte
chefe da Divisão de Estudos e Tombamento.
interesse,
Em suma, o Sphan contou com importantes
(...) seria praticamente inviável criar um intelectuais, seja coordenando trabalhos
instrumento de proteção legal aplicável não só aos regionais (Freyre e Meyer), seja produzindo
37
bens materiais como imateriais. estudos pontuais de interesse para a área
(Manuel Bandeira).
E o segundo era de aspecto político, a
Somente parte do anteprojeto entregue
pluralidade da cultura brasileira identificada
a Capanema foi efetivamente incorporado à
por Mário “ia de encontro ao projeto de
lei. Em correspondência trocada com Rodrigo
unidade nacional do governo” getulista,
Melo Franco de Andrade, em 29 de julho de
ou seja, não contribuía com o projeto de
1936, Mário de Andrade, após ler a versão do
construção de uma cultura nacional oficial
projeto de lei para o Serviço do Patrimônio,
(Londres, 2001:98).
respondia ao amigo:
Rodrigo Melo Franco de Andrade2 foi
o responsável pela organização do Serviço Li seu projeto de lei que achei, pelos
do Patrimônio, assumindo a direção do meus conhecimentos apenas, ótimo. Aliás,
preliminarmente é preciso que eu lhe diga
2. Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969). Formado em com toda a lealdade que dado o anteprojeto ao
direito, jornalista, escritor, por indicação de Mário de Andrade Capanema, eu bem sabia que tudo não passava
e Manuel Bandeira, foi convidado, em 1936, para organizar e
dirigir o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. de anteprojeto. Vocês ajudem com todas as
luzes possíveis a organização definitiva, façam e estudos necessários para o fim de dar início às
políticas públicas de cultura no Brasil
O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
tomou em conta muitas circunstâncias porque os quais se destacam os vestígios das construções
não as conhecia (Andrade, 1981:60). (grifo nosso) jesuíticas, em São Miguel. (Xavier, 2008:44).
N
R T Í S T I C O
Rodrigo manteve uma ativa rede de (...) uma luta insana, sobretudo contra a
A T R I M Ô N I O
Tribunal de Contas.
a título de exemplo), Rodrigo tanto trata
E V I S T A
Lia Calabre
patrimônio, quanto mantém ativa, e chega que fazem parte da natureza das ações
mesmo a ampliar, sua rede de sociabilidade públicas no Brasil, somadas ao campo da
intelectual, tratando de outros projetos novidade que seria o da criação de um órgão
intelectuais e de questões diversas.
efetivo de caráter nacional que deveria
No período que antecede a promulgação
cuidar do patrimônio, Rodrigo busca se
da lei do patrimônio, em intensa
munir de argumentos e informações legais
correspondência com Augusto Meyer,
38 para dar efetividade a uma nova política
em várias ocasiões Rodrigo expressa a
pública de preservação do patrimônio
necessidade de possuir inventários e relações
nacional. Deveriam ser tomadas medidas
de bens prontos para serem tombados após
de várias naturezas, como a apontada na
a publicação da lei. Em carta de março
correspondência abaixo:
de 1937, Rodrigo convidou Meyer para
colaborar com as tarefas do Serviço do A lei não tarda a ser sancionada e precisamos,
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, portanto, estar preparados para lhe dar
que estava ainda em fase de organização cumprimento. Daí a necessidade de apurarmos a
administrativa, apontando algumas das quem pertence e de que autoridades dependem
diretrizes e projetos do novo órgão: todas as edificações aí existentes com excepcional
valor histórico e artístico, a fim de notificarmos
O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico oportunamente os proprietários ou responsáveis
Nacional se empenhará por dilatar a sua ação até (Xavier, 2008:88).
o Rio Grande do Sul, no propósito de inventariar
os bens de valor histórico e artístico excepcional
3. Correspondência não publicada e disponível para consulta na
existentes no estado e bem assim proceder aos Fundação Gilberto Freyre.
Em 13 de janeiro de 1937, pela Lei nº Previa a existência de um Conselho
A C I O N A L
de novembro de 1937, foi respectivamente diretor do Sphan, os diretores dos museus
criado e organizado o Serviço do Patrimônio nacionais (históricos ou artísticos) e mais
dez membros nomeados pelo presidente da
N
Histórico e Artístico Nacional – Sphan. O
R T Í S T I C O
decreto foi o responsável pela organização República. Através da mesma lei, foi criado
do Serviço de Proteção do Patrimônio e o Museu Nacional de Belas Artes4, destinado
A
está vigente, com poucas alterações, até os a recolher, conservar e expor as obras de
E
dias de hoje. Segundo o mesmo, constitui artes pertencentes do patrimônio federal.
I S T Ó R I C O
patrimônio o Todos os museus federais existentes, ou que
viessem a ser criados, deveriam cooperar com
H
(...) conjunto dos bens móveis e imóveis
as atividades do Sphan. Ao Museu Histórico
A T R I M Ô N I O
existentes no país e cuja conservação seja de
Nacional foi assegurada a função de guardar,
interesse público, quer por sua vinculação a fatos
conservar e expor as relíquias referentes ao
memoráveis da história do Brasil, quer por seu
P
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, passado do país, ficando mantido o curso de
D O
bibliográfico ou artístico. museologia ali existente.
E V I S T A
O Decreto-lei nº 25 determinava a
Também ficaram sujeitos a tombamento
Lia Calabre
inscrição dos bens em quatro Livros do
monumentos naturais, sítios e paisagens que Tombo: o Arqueológico, Etnográfico e
sejam julgados merecedores de proteção. Paisagístico; o Histórico; o das Belas Artes;
O texto introdutório do decreto o e o das Artes Aplicadas. Prevendo ainda a
apresenta como a legislação que organiza a realização de acordos entre o governo federal
proteção ao patrimônio. O primeiro órgão e os estados na tentativa de uniformizar a
federal da área de proteção ao patrimônio legislação relativa à proteção do patrimônio.
foi a Inspetoria dos Monumentos 39
Em 1939, um balanço das atividades
Nacionais, criada em 1934, no Museu do Sphan, feito por Rodrigo Melo Franco
Histórico Nacional, por iniciativa de de Andrade, registrava que em todo o país
Gustavo Barroso. Com a criação do Sphan, haviam sido efetivamente tombados 261
a inspetoria foi desativada. monumentos, seis logradouros e nove
A Lei nº 378 tratava de uma conjuntos arquitetônicos e urbanísticos,
reestruturação maior do Ministério. No caso apesar de um número bem mais significativo
do patrimônio, o artigo 46 estabelecia a de bens inventariados. Ainda segundo
criação do Rodrigo, até aquele momento, o Serviço
ainda não havia conseguido realizar ações nos
(...) Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, com a finalidade de promover,
estados do Amazonas, Mato Grosso e Goiás
em todo o país e de modo permanente, o (Fonseca, 2005:111).
tombamento, a conservação, o enriquecimento
e o conhecimento do patrimônio histórico e 4. A lei prevê ainda a extinção do Conselho Nacional de Belas
Artes, cujas funções passam a ser exercidas pelo Museu Nacional
artístico nacional. de Belas Artes.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
40
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
Heitor Reali.
Acervo: Iphan/
Pintura corporal Wajãpi
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
41
Lia Calabre O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
políticas públicas de cultura no Brasil
OS Parece ocioso repetir aqui a existência de
políticas públicas de cultura no Brasil
O Ser viço do Patr imônio Ar tístico Nacional dentro do contexto da constr ução das
CAMPOS DA POLÍTICA
serviço público da natureza daquele a que vimos
aludindo. Recorre do reconhecimento por parte
A C I O N A L
mãos da iniciativa privada. Mesmo na esfera Em nossa terra, ainda persiste em muito
I S T Ó R I C O
autonomia sobre alterações, negociações ou progressista dessa natureza não faz, na maioria das
vezes, senão acobertas grandes ambições materiais.
mesmo venda do patrimônio edificado. Nesse
sentido, o trabalho com os inventários era A tarefa da construção de políticas públicas
P
Lia Calabre
A C I O N A L
para saber o que se passava, o mesmo declarou alterações de nomenclatura, mas nada
que “estando na iminência de ser substituído, que tenha alterado significativamente sua
não tomaria mais nenhuma iniciativa sobre o missão, o Instituto do Patrimônio Histórico
N
R T Í S T I C O
provimento de cargos de confiança” (Xavier, e Artístico Nacional é um raro exemplo de
2008:120). Rodrigo continua afirmando efetividade e continuidade de política pública,
A
que havia a possibilidade, caso o Capanema especialmente na área de cultura.
E
saísse, de ele próprio deixar o Serviço, mas
I S T Ó R I C O
que mesmo assim continuaria tomando as REFERÊNCIAS
providências necessárias para garantir os
H
trabalhos em curso, como os que já haviam ANDRADE, Mário. Mário de Andrade - cartas de
A T R I M Ô N I O
trabalho: correspondência com Rodrigo Melo Franco de
sido iniciados na região das Missões. Já em Andrade, 1936-1945. Brasília: Sphan/Fundação Pró-
final de janeiro o perigo da substituição parecia Memória, 1981.
P
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos
ter passado (Xavier, 2008:126).
D O
1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.
Em correspondência com Gilberto Freyre, DINIZ, Eli. “Engenharia institucional e políticas
E V I S T A
mais de um ano depois, a descontinuidade públicas: dos conselhos técnicos às câmaras setoriais”. In:
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo.
R
volta a assombrar o Ministério e o Serviço.
Lia Calabre
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.
Em sua carta Rodrigo informa: FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em
processo: trajetória da política federal de preservação no
Deixei para o fim o seguinte: anda por aqui Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Minc/Iphan, 2005.
uma campanha muito pérfida contra o Capanema. ______. “A invenção do patrimônio e a memória
Atribuem-lhe tendências esquerdistas e ligações nacional”. In: BOMENY, Helena (org.). Constelação
Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed.
com elementos comunistas, certamente com o
FGV; Bragança Paulista: Universidade de São Francisco,
objetivo de avançar no Ministério da Educação. 2001, p. 85-101. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br
43
Neste momento mesmo acabam de trançar uma Acesso em 20/1/2009.
rede de sacanagem junto ao ministro da Guerra MIRANDA, Alcides da Rocha. Entrevista. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 30, 2002.
para convencê-lo que o novo edifício do Ministério
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura e identidade nacional
da Educação tem a forma de um martelo para
no Brasil do século XX. In: GOMES, Ângela Castro et
significar o empenho do Capanema em perpetuar al. (coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
seu amor ao emblema da URSS (29/4/1939 – Fronteira/CPDOC, 2002.
_________. Cultura é patrimônio: um guia. Rio de
Arquivo Gilberto Freyre).
Janeiro: Ed. FGV, 2008.
RUBIM, Antônio Albino Canelas. “Políticas culturais no
Ao terminar o governo Vargas e a gestão
Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM et
Capanema, o Serviço do Patrimônio já se al. Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.
encontrava mais consolidado. O empenho TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo
da proteção ao material arqueológico e etnográfico
em garantir a presença do Serviço em todas as do Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
regiões do país, construída a partir das redes Artístico Nacional, nº 1, 1937.
pessoais de sociabilidade intelectual de Rodrigo XAVIER, Laura Regina. Patrimônio em prosa e verso: a
correspondência de Rodrigo Melo Franco de Andrade
Melo Franco de Andrade se mostrou uma para Augusto Meyer. (Dissertação de Mestrado). Rio de
estratégia acertada. Janeiro: CPDOC-FGV – 2008.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
44
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
Paulo Or mindo de Azevedo
a c i o n a l
p aTrimônio c ulTural e n aTural como faTor de
n
r t í s t i c o
r enaTo s oeiro , 1967-1979
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A mudança de guarda no Serviço do A preparação de Renato Soeiro para
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – assumir o cargo incluiu sua promoção, em
Sphan, em 1967, foi preparada por Rodrigo 1946, à chefia da Divisão de Conservação
P
Melo Franco de Andrade, seu fundador, com e Restauração da Diretoria do Patrimônio
d o
antecedência de vinte anos. Diante da recusa
e v i s t a
Histórico e Artístico Nacional – , DPHAN,
de Lucio Costa a se envolver com questões em que havia sido transformado o Sphan,
r
burocráticas, o escolhido foi o arquiteto naquele ano, no mesmo nível de Lucio Costa.
Renato de Azevedo Duarte Soeiro, um dos Durante 21 anos ele foi o braço direito de
pioneiros da arquitetura modernista brasileira Rodrigo Melo Franco de Andrade.
que colaboraram no projeto da estação de Mas não bastava isso, era preciso estar
hidroaviões do Rio de Janeiro. Ele era o a par do que acontecia nos organismos
profissional mais qualificado para gerir o internacionais. Entre outras missões que lhe
órgão cuja principal atribuição era preservar foram confiadas, ressaltamos a participação 45
monumentos e cidades históricas. A sucessão na reunião preparatória da Convenção
era tão tácita que a transmissão do cargo foi para a Proteção do Patrimônio Cultural em
feita num sábado pela manhã, sem a presença
Evento de Conflito Armado, Unesco 1952, o
de autoridades nem jornalistas, como
Simpósio de Preparação (1965) e a Reunião
assinalou Carlos Drummond de Andrade:
sobre a Conservação e a Utilização do
Sai sem ruído, entra sem ruído Renato Soeiro, Patrimônio e Lugares de Interesse Histórico e
antigo e impecável colaborador dessa obra delicada Artístico, que aprovou as Normas de Quito,
e áspera. Soeiro conhece na palma da mão os OEA, 1967. Em relatório desse evento,
problemas de seu ofício. E dono de uma energia
ele assinala a contribuição ao documento
mansa, tranquila, eficiente. O melhor, o mais certo
e a reivindicação de inclusão de Portugal
substituto de mestre Rodrigo, para garantia de
e criação de um Centro Interamericano
nossos bens de arte e história. Que o governo lhe
dê meios para cumprir a tarefa, pois engenho e arte de Investigação e Estudos, no Brasil, para
não lhe faltam, em sua nobre discrição (Andrade, ampliar a assistência que o Iphan já dava
Renato Soeiro
1969:32-33). à parte meridional do continente (Soeiro, Acervo: Iphan.
1967b). No mesmo ano de 1967, Soeiro outorgada uma nova Constituição e, um
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
foi eleito para o Conselho do Centro ano mais tarde, decretado o AI-5. No final
A C I O N A L
Belgique para a organização do Centro de dos setores mais reprimidos. Mas o governo
E
Os autores que mais têm estudado a patrimônio como fator de unidade nacional,
política patrimonial no país – Gonçalves como o fizera Vargas.
H
e Sant’Anna (2015) – vêm dando pouca patrimônio não podia continuar à margem
importância à interação do Iphan com os da dinâmica socioeconômica do país, como
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P
ampliação do conceito de patrimônio cultural governo Castelo Branco com o Plano de Ação
R
e natural, sua relação com o planejamento Econômica do Governo – Paeg, eram claros:
urbano e o aproveitamento turístico foram desenvolvimento econômico e combate
conquistas universais em que o Iphan teve um à inflação. A estratégia de Soeiro seria a
grande protagonismo. integração do patrimônio a esse processo
de desenvolvimento, cooptando para isso
O PA N O R A M A D A D É C A D A outras esferas de poder – federal, estadual e
DE 1960 municipal. Esses pontos já estavam delineados
46
em seu discurso de posse (Soeiro,1967a) e
O ambiente socioeconômico e cultural seriam desenvolvidos no Plano Estratégico de
brasileiro, no final da década de 1960, era Ação que analisaremos adiante.
inteiramente distinto dos trinta anos anteriores. Internamente a DPHAN enfrentava uma
A industrialização, deflagrada a partir da grave crise. Desde o término do Estado Novo,
década de 1950, e a consequente urbanização como assinalou Joaquim Falcão, o Sphan
haviam transformado o país. Aquele foi o vinha perdendo prestígio (Falcão, 1984:21-
período de maior urbanização do Brasil, 38). Rodrigo reconheceria depois que os
quando o mercado imobiliário se estruturou maiores problemas não eram com o setor
em bases capitalistas. O desafio do patrimônio privado, mas com o poder público (Andrade,
não era mais a afirmação, senão sua gestão, 1987:53). O isolamento da DPHAN dentro
frente às pressões urbanas e econômicas. do governo era crescente e a importância
A posse de Soeiro ocorreu no período do órgão se devia mais ao alto conceito
mais duro da ditadura militar instalada com intelectual e ético de seu fundador e diretor,
o golpe de 1964. Naquele ano de 1967, foi do que pelo trabalho realizado (Fonseca,
1997:138-141). Rodrigo não escondia seu (168) e Rio de Janeiro (152), refletindo a
A C I O N A L
historiador argentino Mario Buschiazzo, (Brasil, 1994). Rodrigo defendia o tratamento
ele desabafava: ”continuo preso ao posto privilegiado dado a Minas Gerais, dada a
de chefia da Dphan enleado nas mesmas originalidade do Barroco mineiro.
N
R T Í S T I C O
dificuldades de sempre, que me parecem
mais aflitivas na medida em que me sinto O PLANO DE R E N AT O S O E I R O
A
envelhecer” (Andrade, 1986:24).
E
Entre 1953 e 1967, o número de Para orientar sua administração, Soeiro
I S T Ó R I C O
tombamentos havia se multiplicado por elabora, em 1968, um Plano Estratégico de
cinco, enquanto as verbas para conservação e Ação, que seguiria à risca, embora nunca o
H
restauração, deflacionadas, haviam encolhido tivesse divulgado1. Esse documento prova
A T R I M Ô N I O
para um terço da dotação de 1953 (Soeiro, cabalmente que a expansão silenciosa do
1967c). O órgão resistia, sem fazer concessão patrimônio na década de 1970 foi planejada
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P
ao governo, como uma grande família por ele e não “apesar dele”. Em cinco
D O
amalgamada pelo carisma de seu diretor. A capítulos, ele define sua linha de ação. O
E V I S T A
identidade da instituição com a figura de primeiro é a “Filosofia” do órgão, que ele
R
seu fundador/diretor fazia com que ele fosse toma de empréstimo a Rodrigo, sinalizando a
conhecido como o “Sphan de Rodrigo” ou, no continuidade com a sua tradição:
dizer de Drummond, “o casal Rodrigo-Sphan”.
Somente a extensão territorial, com seus
Trinta e um anos depois de fundado,
acidentes e riquezas naturais, somada ao povo
o órgão não tinha regimento interno e que a habita, não configura de fato o Brasil, nem
mantinha praticamente o mesmo quadro de corresponde a sua realidade. Há que computar
funcionários. O próprio Rodrigo ocupava também (,,,) a produção material e espiritual
47
o cargo em comissão. Ao deixar o serviço duradoura ocorrida de norte a sul e de leste a
público, não tinha direito a aposentadoria, oeste do país, constituindo as edificações urbanas
tendo sido necessário que o presidente e rurais, a literatura, a música, assim como tudo
Castelo Branco baixasse um decreto mais que ficou em nossas paragens, como traços de
caráter nacional, do desenvolvimento histórico do
concedendo-lhe uma pensão.
povo brasileiro (Andrade, 1987b:56).
Uma das críticas mais frequentes ao
Sphan, no “período heroico”, especialmente O texto prioriza as ações a serem
a endereçada pelos nordestinos – incluindo adotadas, começando pela reestruturação
Gilberto Freyre, inspirador do conceito administrativa e financeira do órgão. Em
de patrimônio nacional, com sua casa- seguida, propõe uma ampla campanha de
grande, capela e sobrado urbano –,,era o conscientização cidadã do que representava
favorecimento a Minas Gerais e ao Rio o patrimônio como valor cultural, de
(Azevedo, 2016). Dos 745 tombamentos identidade e como gerador de riqueza.
realizados no período, 320, ou cerca de 43%,
estavam concentrados em Minas Gerais 1. Ver detalhes do mesmo em Azevedo, 2013.
O segundo capítulo é denominado de Casas de Cultura de iniciativa do egrégio Conselho
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
mudanças do país.
E
integração no plano nacional de turismo cultural, de objetos e obras de arte, à venda de ingressos,
E V I S T A
A C I O N A L
O primeiro curso nacional de especialização
isenções compensatórios dos ônus do tombamento
em restauração para arquitetos ocorreria em
(Soeiro, 1968).
1974, na USP. A seguir foram realizados
N
R T Í S T I C O
Esse capítulo se ocupa também da cursos em convênio com as Universidades
obrigatoriedade da educação patrimonial e Federais de Pernambuco (1976) e Minas
A
da formação de técnicos, de diferentes níveis, Gerais (1978). A partir da sua quarta edição,
E
realizada em 1981 em Salvador, decidiu-se
I S T Ó R I C O
para cuidar da preservação do patrimônio.
Até então, a formação dos técnicos da dar sede ao curso naquela cidade. Convênio
DPHAN se fazia nos canteiros de obra. semelhante foi celebrado com a Universidade
H
Federal de Minas Gerais para formação de
A T R I M Ô N I O
O Plano Estratégico de Ação seria
institucionalizado com os Compromissos de técnicos em conservação e restauração de bens
Brasília (Compromisso, 1970) e de Salvador, móveis, dando origem ao Cecor.
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
P
em 1971 (Brasil, 1973). Nele já estava
D O
prevista a criação do Ministério da Cultura, O I N Í C I O D A N O VA
E V I S T A
de um Fundo Nacional de Desenvolvimento ADMINISTRAÇÃO
R
da Cultura, como ocorreria em 1991 com
o Programa Nacional de Apoio à Cultura – Os dois primeiros anos da administração
Pronac, e de incentivos fiscais. Mas muitas de Soeiro foram de muito poucos recursos,
de suas propostas não avançaram devido reflexo da instabilidade do governo Costa e
ao receio, dentro da própria DPHAN, de Silva e da junta militar que o sucedeu. Mas a
fragilizar o Decreto-lei nº 25/1937. nova administração não ficaria imobilizada,
O Plano Nacional de Turismo, então aproveitaria esse recesso para reestruturar a
49
em discussão, deveria beneficiar os centros casa e buscar em instituições internacionais
históricos, monumentos e museus, mas os expertise para realizar os primeiros planos
lobbies do turismo não permitiram. Em diretores de patrimônio de cidades históricas.
compensação, negociações junto ao Tribunal A cooperação com a Unesco, que havia
de Contas da União resultaram na Resolução sido iniciada em 1952, teve um grande
nº 74/1970, que permitia destinar 5% reforço no final da administração de Rodrigo,
da cota-parte do Fundo de Participação por iniciativa do embaixador Carlos Chagas
dos Estados e Municípios a trabalhos de junto àquele órgão, e resultou na missão
preservação da cultura. A grande ampliação do arquiteto Michel Parent, entre 1966 e
dos recursos do órgão viria, porém, de 1968 (Leal, 2008). O título do relatório
convênios com outros ministérios, que era: Brésil, protection et mise en valeur du
analisaremos adiante. patrimoine culturel brésilien dans le cadre
Uma das recomendações do du développement touristique et économique,
Compromisso de Brasília dizia respeito que expressava a nova diretriz da Unesco.
à formação de arquitetos restauradores, No mesmo período, Soeiro participou da
50
elaboração das Normas de Quito, OEA, Passarinho para pedir apoio para o seu plano
A C I O N A L
impacto muito positivo junto aos tecnocratas de governadores para a defesa do patrimônio
do regime militar. (Sant’Anna, 2015:215).
Em abril de 1968, no início de seu
N
De outra parte, se processava, com a Carta
R T Í S T I C O
mandato, Soeiro vai a Roma para uma de Veneza de 1964, uma revisão do conceito
reunião do Iccrom. Dali segue para Paris, de patrimônio, que deixava de ser a expressão
A
onde acerta com a Unesco a volta de Michel da identidade nacional para se converter
E
Parent para uma missão no Pelourinho.
I S T Ó R I C O
em uma herança comum de todos os povos.
Como esse não pôde voltar, em seu lugar foi O monumento isolado perdia importância
acertada a vinda do arquiteto Jean-Bernard para os sítios urbanos e naturais. A Unesco
H
Perrin, especialista em legislação de cidades
A T R I M Ô N I O
promulgaria, em 1972, a Convenção para a
históricas (Brasil, 1980b). Consegue também Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural
a vinda dos urbanistas ingleses Graeme
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
e Natural, em cuja preparação Soeiro teve
P
Shankland e Dave Walton, para elaborar
papel importantíssimo. O Conselho da
D O
um plano de turismo para o Pelourinho, e
E V I S T A
Europa lançava em 1975 a Declaração de
do arquiteto português Viana de Lima, para
Amsterdam, que defendia o princípio da
R
os estudos do plano diretor de Ouro Preto
conservação integrada, ou seja, a preservação
e avaliação de São Luís do Maranhão e de
de conjuntos históricos feita através da
Alcântara como centros históricos. Para o
planificação urbana (Cartas patrimoniais).
ano seguinte, foi acordada a realização de
O Iphan estava inteiramente identificado
missões no Pelourinho e em Ouro Preto e
com esse aggiornamento do pensamento
a elaboração de um plano urbanístico para
preservacionista e seu diretor afirmaria, no
Parati, pelo urbanista Limburg-Stirum.
final de seu mandato: 51
Através da OEA viriam o mexicano Flores
Marine, e por organismos da ONU o Mais preocupado com o monumento
colombiano Guillermo Trimmiño e o isolado nos seus 30 primeiros anos – 1937/1967
holandês Sylvio Mutal. – e atuando quase sempre isoladamente,
Estávamos no final da década de 1960 e o desenvolvimento econômico do país vai
o desenvolvimento econômico era a solução impor-lhe novas obrigações, que se traduzem
na necessidade de organização de planos de
recomendada pelos organismos internacionais
conjuntos urbanísticos, visando a preservação
para superar a pobreza regional, em especial
e o desenvolvimento dos núcleos históricos
pela Comissão Econômica para a América
afetados pelas novas estradas, represas, complexos
Latina e o Caribe – Cepal. O turismo
industriais etc., providências essas que definem
cultural, promovido pela Unesco e OEA, era uma segunda fase de atividades para o órgão e para
apresentado como a tábua de salvação, não só a qual era indispensável o apoio dos governos dos
do patrimônio, como da própria economia estados e dos municípios, fase esta marcada pelos
dos países da região. É nesse momento que o Encontros de Brasília e Salvador, em que foi fixada Azulejos de Portinari
Acervo: Iphan/
diretor da DPHAN procura o ministro Jarbas a nova política para o Iphan (Soeiro, 1979a). Márcio Vianna.
Essa nova orientação não ficou no papel. b) Criação de mais cinco novos Distritos, com
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
Entre 1967 e 1979, os conjuntos paisagísticos sedes em Belém, São Luis, Rio de Janeiro, Brasília
e Porto Alegre.
A C I O N A L
para esses sítios, em vez de apenas tombá-los Essa proposta se transformaria no novo
E
A C I O N A L
Soeiro aponta, além das dificuldades
conscientes dos seus valores locais dentro da
conceituais, a insensibilidade da burocracia
cultura nacional (Soeiro, 1973).
N
do MEC para com a cultura, totalmente
R T Í S T I C O
absorvida pelas questões educacionais, e a O inventário seria um dos objetivos da
falta de recursos para cumprir sua missão. fundação a ser criada para tornar mais ágil a
A
Mas, mesmo assim, elabora e publica, em ação do Iphan, mas não chegou a ser realizado
E
1973, o Programa de Ação Cultural – PAC,
I S T Ó R I C O
diante da extensão da tarefa e pelo fato de
no qual demonstra igual preocupação com Soeiro ter deixado a direção do DAC para
a cultura do passado e do presente, do se dedicar integralmente ao Instituto. Deve-
H
A T R I M Ô N I O
patrimônio material e imaterial e com o se ressaltar que não existia, na época, uma
fomento da produção cultural. experiência internacional nesse campo, salvo
em uma cultura muito diversa da ocidental,
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
O Departamento de Assuntos Culturais, do
P
como a japonesa. A primeira manifestação da
D O
Ministério da Educação e Cultura, organizou
Unesco sobre o assunto seria a Recomendação
E V I S T A
o PAC, através do qual se propõe à execução e
a criação de novas condições para que o acervo sobre a salvaguarda da cultura tradicional e
R
brasileiro no campo artístico, histórico, literário, popular, de 1989.
arqueológico – e nas demais manifestações do As manifestações culturais imateriais e
pensamento – seja resguardado, ao tempo em que performáticas, além de registradas, deveriam
se intensifiquem e se multipliquem as atividades em ser incentivadas, amparadas e desenvolvidas.
todos os campos da cultura no país (Soeiro, 1973). Para isso foi criada, em 1975, no DAC, a
O principal programa do DAC era Fundação Nacional de Arte – Funarte, que
cultura como identidade era oficializado pelo que promulgaria as Normas de Quito (1967)
MEC. O país só iria ter um segundo Plano e a reunião para elaboração do anteprojeto
A
A C I O N A L
piauiense, da Secretaria de Planejamento da OEA.
e Coordenação Geral da Presidência da A primeira reunião do grupo foi realizada
República – Seplan-PR, Jarbas Passarinho,
N
na representação da Seplan-PR no Recife, em
R T Í S T I C O
acreano, ministro do MEC e, logo abaixo janeiro de 1973, e ali ficaria sediado o PCH.
dele, Renato Soeiro, paraense, diretor do Os recursos eram provenientes do fundo
A
Iphan e DAC, e Josué Montelo, maranhense, Plano de Ações Integradas da Seplan-PR, que
E
diretor do recém-criado Conselho Federal
I S T Ó R I C O
financiava 80% dos projetos apresentados
de Cultura. Eles e outras lideranças políticas por estados e municípios, e estes bancavam
e até militares viam no desenvolvimento
os 20% restantes. Os projetos deviam ser
H
daquelas regiões, mais que na repressão, a
A T R I M Ô N I O
previamente aprovados pelo Iphan. Com esse
solução para o problema2. Com a riqueza
programa milionário, o protagonismo da
patrimonial da região, experiência de
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
preservação do patrimônio se deslocou do Rio
P
planejamento de cidades históricas e as
D O
para o Recife.
recomendações da Unesco e da OEA, o
E V I S T A
Em 1975, em plena ascensão do PCH, o
diretor do Iphan sugeriria um programa de
brilhante Aloisio Magalhães, designer oficial
R
desenvolvimento do Nordeste com base no
do regime militar, mas sem antecedentes na
turismo cultural.
área do patrimônio, criou o Centro Nacional
O Iphan, com o novo estatuto, podia
firmar convênios com outros ministérios
e efetivamente firma um amplo convênio
com a SEPLAN-PR visando a preservação
do patrimônio cultural. O programa foi
55
criado pela Exposição de Motivos nº 076-B,
de 21/5/1972, e detalhado por um Grupo
de Trabalho Interministerial reunindo
representantes do MEC, Seplan-PR, Sudene
e Embratur. O representante do MEC era
o diretor do Iphan e DAC, articulador da
proposta. Chamava-se Programa Integrado
de Reconstrução das Cidades Históricas
do Nordeste com sua Utilização para Fins
Turísticos, nome depois reduzido para
Programa das Cidades Históricas, ou PCH.
A sua denominação original evidencia a
volta a arrebatar dois terços dos recursos do Em 1983, foi realizada a última dotação
A C I O N A L
retoma o ideário contido no projeto de proteção elitista (Demo, 1980:89-90).
aos bens culturais de autoria do escritor Mário de
N
Andrade, proposto em 1936, que valoriza melhor
R T Í S T I C O
Essa era uma reivindicação difusa de
a heterogeneidade e complexidade culturais
grupos marginalizados da sociedade brasileira
inerentes à formação social brasileira (Milet,
que buscavam o reconhecimento de sua
A
1988:192).
E
identidade étnica, como negros e índios. Esses
I S T Ó R I C O
O Gal. João Figueiredo toma posse grupos não tinham monumentos, mas uma
em março de 1979 e nomeia para o MEC cultura imaterial importante. A cooptação das
H
o pernambucano de formação Eduardo camadas populares fazia parte da estratégia de
A T R I M Ô N I O
Portella. Este, por sua vez, indica o sociólogo abertura política gradual e controlada, frente
e filósofo Pedro Demo como Subsecretário- ao fortalecimento de movimentos sociais,
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
Geral do MEC. Demo trabalhava no Ipea, do
P
como as Comunidades Eclesiais de Base e
D O
Ministério do Planejamento, desde 1970. O outros (Sabino, 2012:5)
E V I S T A
PCH era um projeto custoso e de resultados a Por outro lado, durante a década de
longo prazo, o que não atendia aos interesses 1970, a indústria imobiliária se fortaleceu
R
imediatistas do governo de transição do Gal. fundando a Associaçao de Dirigentes de
Figueiredo. Pedro Demo, orientado por Empresas do Mercado Imobiliário – Ademi
Portella, seria o principal formulador da nova em praticamente todos os estados. A nova
política cultural do país. É dele o texto que se política cultural desviava o foco dos sítios
segue, de 1979: urbanos e naturais para bens imateriais, sem
No quadro da política social, o cuidado valor de mercado, aliviando o orçamento
57
cultural aparece normalmente como secundário. do órgão e a tensão com o setor imobiliário,
Essa ótica desagrada os culturalistas, mas, uma que pressionava contra o tombamento
vez bem enfocada, pode ser recolocada na linha de conjuntos históricos, cidades e até
da sedimentação de traços culturais participativos,
municípios inteiros.
como pontos altos do processo educativo, bem
Além dessas duas forças, existia uma
como do processo cultural.
luta surda pelo controle de um órgão que
Dentro de um país com profundos possuía naquele momento muitos recursos
desequilíbrios regionais e sociais, a meta prioritária e prestígio junto a governadores e prefeitos.
da política social é a população de baixa renda, A disputa pelo Iphan não era apenas
que, além de muito pobre, é também maioria
conceitual, senão política e regionalista.
(...). Esse conteúdo cultural pode revelar alienação
Pode-se dizer que a mudança nos rumos do
acentuada, quando se perde na identificação de
Iphan em 1979 foi, além de uma tentativa
valores ligados à elite, como se o povo não tivesse
cultura. Por isso, insistem em que a identificação de cooptação de setores populares para a
se volte para o todo da sociedade, principalmente transição democrática gradual, a revanche
para o povo, podendo valorizar manifestações do Nordeste em razão do monopólio do
órgão por um grupo de intelectuais de antropólogos e filósofos que vieram do CNRC.
Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
A C I O N A L
Memória, que pretendeu historiar a trajetória
“referência” e os da “pedra e cal”, não foram
do Iphan (Brasil, 1980a), comenta:
superadas em uma proposta de trabalho comum.
N
A proposta do CNRC, apropriada e desenvolvida De acordo com a historiografia oficial
R T Í S T I C O
pela FNPM, encampada pela SEC e, em certa do Iphan, o “período heroico” da instituição
medida, inclusive pela Constituição Federal corresponde àquele que se estende desde a sua
A
de 1988, ficou conhecida praticamente apenas criação em 1937 até a morte de Rodrigo, em
E
I S T Ó R I C O
enquanto discurso (Fonseca, 1997:200-201). 1969. Um segundo período é identificado por
essa historiografia, de 1969 (sic) a 1979, tempo
Com a redemocratização e a criação do em que a direção esteve a cargo de Renato
H
Ministério da Cultura pelo presidente José Soeiro, próximo colaborador de Rodrigo, mas
A T R I M Ô N I O
Sarney, em 1985, o seu mais duradouro que não foi marcada por quaisquer mudanças
ministro, o cearense Celso Furtado, significativas em termos de política oficial de
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
patrimônio (Gonçalves, 1996:51).
P
entendendo que a disputa era regionalista,
D O
nomeia para a Fundação Pró-Memória o A ocultação da obra de Soeiro pelo
E V I S T A
pernambucano Joaquim Falcão, ligado à Sphan/Pró-Memória era fundamental para a
Fundação Joaquim Nabuco, e para a Sphan o
R
afirmação da nova política cultural e do grupo
professor Ângelo Oswaldo, mineiro. Mas essa emergente. Quem melhor resumiu o legado
divisão salomônica não resolveria a disputa. da administração de Renato Soeiro foi Marcia
Na onda neoliberal, Sarney, na tentativa Sant’Anna em sua imparcial história do Iphan
talvez de resolver a contenda, delega ao setor registrada no livro Da cidade-monumento à
privado a política cultural do país, com a cidade-documento.
lei de renúncia fiscal que levou seu nome.
A gestão de Renato Soeiro correspondeu ao 59
Diante das infindáveis brigas intestinas do
processo de modernização administrativa do Iphan
órgão, o presidente Collor de Mello dissolveu
e à democratização da questão do patrimônio.
o sistema Sphan/Pró-Memória , em 1990,
Foi nesse período que o patrimônio, apesar
e o substituiu pelo Instituto Brasileiro de das resistências, extrapolou o âmbito do órgão
Patrimônio Cultural – IBPC, de vida curta. criado por Rodrigo M. F. de Andrade e passou
Com o presidente Fernando Henrique a ser também assunto de governos estaduais e
Cardoso, o órgão voltaria a ser um instituto, municipais. Correspondeu ainda ao período em
em 1994, como havia concebido Renato que o Iphan contou com o maior volume de
Soeiro. recursos para investimento desde a sua criação, o
que, a nosso ver, põe por terra a afirmação de que
Soeiro havia favorecido o Nordeste com
Renato Soeiro não gozava de bom trânsito político
o PCH e valorizado o patrimônio imaterial
no governo. Bastaria também lembrar que ele foi
e popular com a Funarte, mas era o herdeiro o primeiro diretor do Departamento de Assuntos
institucional de Rodrigo e seu grupo, ainda Culturais do MEC, origem e embrião do futuro
que não fosse mineiro, nem carioca, e tivesse Ministério da Cultura (...). Não fossem suficientes
uma plataforma de ação muito distinta os fatos citados, a administração de Soeiro também
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
60
Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o Patr imônio Cultural e Natural como fator de desenvolvimento:
a revolução silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979
Maranhão
Acervo: Iphan.
Bumba meu boi,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
61
se formulou uma nova política de preservação de e natural como política regional e urbana”. In: Anais do
Museu Paulista, vol. 24, n.1. São Paulo: jan-abr. 2016.
A C I O N A L
de lutas no Iphan, fazer o desagravo numa revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma
trajetória. Brasília, 1980a.
nota jornalística sutilmente chamada de “A
______. Restauração e revitalização de núcleos históricos:
H
A C I O N A L
SABINO, Roberto. As disputas pela representação do Personalidades. SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte.
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SANT’ANNA, Marcia. Da cidade-monumento à cidade- Disponível em http://www.mast.br/hotsite_mast_30_
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SILVA, Vanderli M. da. A construção da política cultural
no regime militar: concepções, diretrizes e programas
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(1974-1978). (Dissertação de Mestrado em Sociologia).
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Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001, p. 211.
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Pa u l o O r m i n d o d e A z e ve d o
posse como Diretor do Patrimônio Histórico e Artístico
P
D O
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Noronha Santos, Sphan – Personalidades. SOEIRO,
E V I S T A
Renato de Azevedo Duarte. Pasta. 93.03.13.S). Não
paginado.
R
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Iphan/Copedoc, Rio de Janeiro, Personalidades.Soeiro,R,
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e artístico nacional”. Trabalho apresentado na 14ª
Sessão Plenária do Conselho Federal de Cultura, Rio de
Janeiro, 27 abr.1967c. Iphan/Copedoc. Rio de Janeiro,
Personalidades, Soeiro, R., IIA, p.422. Matriz da Lapa-PR
Acervo: Iphan/
Cyro Corrêa Lyra.
______. “Curriculum Vitae”. Rio de Janeiro, ca. 1967d.
(Arquivo Noronha Santos, Sphan – Personalidades. 63
SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte, pasta.
93.03.13.S). Não paginado.
______. “Plano Estratégico de Ação”. Rio de Janeiro,
14 set. 1968. (Arquivo Noronha Santos, Sphan –
Personalidades. SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte.
Pasta. 93.03.13.S). Documento datilografado sem título,
em papel timbrado do órgão, definindo a política a ser
seguida pelo órgão. Título atribuído pelo autor. Não
paginado.
______. O Programa de Ação Cultural, em 1973. Brasília:
MEC/DAC, 1973. Não paginado.
______. “Pronunciamento lido na sessão do Conselho
Consultivo do Iphan 13 mar.1979a”. Rio de Janeiro:
Arquivo Noronha Santos, Sphan – Personalidades.
SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte, Pasta. 93.03.13.S.
Não paginado.
______. “Discurso de transmissão do cargo”. Rio de
Janeiro, 27 mar.1979b. (Arquivo Noronha Santos. Sphan
– Personalidades. SOEIRO, Renato de Azevedo Duarte.
Pasta. 93.03.13.S). Não paginado.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
64
Zoy Anastassakis A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
Zoy Anastassakis
A C I O N A L
A CULTURA COMO PROJETO :
A LOISIO M AGALHÃES E SUAS I PHAN
N
IDEIAS PARA O
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO do Iphan1 no final da década de 1970 se
caracteriza como marco de uma substantiva
Para o Iphan, 1979 foi um ano de virada nas políticas públicas de patrimônio
P
cultural no Brasil, que, orientada segundo
D O
rupturas. Com a nomeação de Aloisio
E V I S T A
um “paradigma antropológico” (Anastassakis,
Magalhães para a sua presidência, se fundem
2014), opera uma significativa ampliação
ao Instituto o Programa das Cidades
R
semântica do conceito de patrimônio
Históricas PCH e o Centro Nacional
cultural, que a partir de então passa a
de Referência Cultural – CNRC. Logo
incorporar, progressivamente, os bens
em seguida, o órgão é reestruturado, culturais de natureza imaterial ou intangível
decompondo-se em duas entidades, a saber, a e, dentre esses, as manifestações da cultura
Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico popular.
Nacional – Sphan e a Fundação Nacional Assumindo a relevância da mudança 65
E SEU
P R O J E T O P O L Í T I C O PA R A O seu gabinete em Brasília com Aloisio (idem).
A C I O N A L
Zoy Anastassakis
(...) capaz de lhe abrir as portas de uma 2. O redesenho da área de patrimônio cultural ocorre em meio a
burocracia federal quase sempre desconfiada dos um processo mais amplo de “construção institucional” (Miceli,
1984:56) durante a gestão do ministro Ney Braga no governo
pleitos da cultura, sendo também interlocutor Geisel (1974-78).
nosso próprio modelo, que, segundo ele, diversas faces do mesmo cristal (apud Souza Leite,
A C I O N A L
nosso comportamento cultural, moldado
Aloísio propõe uma aproximação da
de forma heterogênea “no fazer do homem
nova Fundação com áreas do governo ligadas
brasileiro, na pequena dimensão muitas
N
mais diretamente às questões econômico-
R T Í S T I C O
vezes frágil de uma atividade pré-industrial”
produtivas, sugerindo que o patrimônio
(idem: 242), pois é a partir dele que se
cultural pode contribuir para o processo de
A
encontrariam os indicativos de um modelo
E
desenvolvimento nacional, na medida em que
de desenvolvimento autêntico da nação e da
I S T Ó R I C O
identidade nacional (idem). (...) uma cultura é feita dos elementos
É significativa desse posicionamento a fala compostos do passado que são vistos pelos
H
em que Aloisio evoca a metáfora do bodoque,
A T R I M Ô N I O
homens transitórios do presente e que desenham o
a fim de descrever a relação entre passado e caminhar projetivo (idem).
futuro, segundo sua perspectiva:
Segundo Falcão, com essas falas, Aloisio
P
D O
Zoy Anastassakis
(...) uma cultura é avaliada no tempo e se insere busca marcar um novo posicionamento
E V I S T A
no processo histórico não só pela diversidade dos
das políticas públicas de preservação do
elementos que a constituem, ou pela quantidade
patrimônio cultural, que estivesse mais
R
das representações que dela emergem, mas
sobretudo por sua continuidade. Essa continuidade
afinado ao clima geral de mudança que
comporta modificações e alterações num processo envolvia o fim do regime autoritário no país
aberto e flexível, de constante realimentação, (2003:248). Captando, sistematizando e
o que garante a uma cultura sua sobrevivência. tentando concretizar esse clima, Aloisio optou
Para seu desenvolvimento harmonioso pressupõe por atuar dentro das políticas de Estado
a consciência de um largo segmento de passado (idem:250), buscando articular cultura e
histórico. Pode-se mesmo dizer que a previsão 67
desenvolvimento (idem:252). Nesse sentido,
ou a antevisão da trajetória de uma cultura
para Falcão, ele foi tanto fruto quanto artesão
é diretamente proporcional à amplitude e
da abertura política que se insinuava de forma
profundidade de recuo no tempo, do conhecimento
e da consciência do passado histórico. Da mesma mais direta a partir daquele momento.
maneira como, por analogia, uma pedra vai mais Sua estratégia para “institucionalizar
longe na medida em que a borracha do bodoque é no Iphan uma continuidade revitalizadora
suficientemente forte e flexível para suportar uma consistia na incorporação de duas experiências
grande tensão, diametralmente oposta ao objetivo inovadoras na área patrimonial, que já
de sua direção. Pode-se mesmo afirmar que, no ocorriam no governo” (idem:254), o Centro
processo de evolução de uma cultura, nada existe
Nacional de Referência Cultural – CNRC e
propriamente de “novo”. O “novo” é apenas uma
o Programa das Cidades Históricas – PCH.
forma transformada do passado, enriquecida na
continuidade do processo, ou novamente revelada,
Na tentativa de ampliação democrática do
de um repertório latente. Na verdade, os elementos conceito de patrimônio (idem), Aloisio
são sempre os mesmos: apenas a visão pode ser propôs a absorção, dentro das políticas
enriquecida por novas incidências de luz nas públicas de preservação, das manifestações
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
68
Zoy Anastassakis A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
Maranhão
Edgard Graeff.
Acervo: Iphan/
Tambor de crioula,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
69
Zoy Anastassakis A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
culturais ligadas às matrizes africana e de patrimônio cultural delineada por Mário
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
colocações das comunidades habitantes das Sphan, documento datado de 1936. Segundo
cidades históricas contempladas por políticas Maurício Chagas, assim como Lina Bo Bardi
de preservação (idem). Assim, os órgãos de
N
Zoy Anastassakis
enfoque para o patrimônio no país, que se elaborar o famoso parecer que veio dar origem ao
E V I S T A
consolida em termos legais somente no ano Decreto-lei nº 25, de 1937, de criação do Sphan.
A novidade que se apresenta nessas duas propostas
R
A C I O N A L
homem simples” (Rubino, 2009:34), para traz o bem arquitetônico para o universo da
Aloisio, assim como para Lina Bo Bardi, de cultura escrita, tornando-se assim o sociólogo
quem trata Rubino, dos arquitetos” (idem: 305). Assim, a obra
N
R T Í S T I C O
de Freyre contribui para a legitimação,
(...) se o povo era arquiteto, capaz de construir
na perspectiva de trabalho adotada pelo
obras corretas com poucos recursos, era um
A
povo do presente, vivo nesse Brasil dos anos de Sphan, de “um lugar para o evento passado
E
se construir” (idem: 307). Desse modo, o
I S T Ó R I C O
redemocratização (idem).
passado tradicional, requalificado por Freyre
Assim, em Casa-grande e senzala, se insere em um
H
projeto intervencionista no presente (idem:
A T R I M Ô N I O
(...) se um “outro” no passado poderia
conduzir a uma forte política de preservação, esse 306), a saber, as ações de tombamento
“outro” presente levou à politização de seu discurso realizadas pelo Sphan, em grande parte
P
em pleno período de aposta na modernização lideradas por Costa.
D O
Zoy Anastassakis
do país. A noção de autenticidade era deslocada: Voltando às propostas de Aloisio para o
E V I S T A
autêntico era o povo (idem). Iphan: mesmo que formuladas em diferentes
R
instâncias e com abordagens distintas,
Em meio a esse debate, é fundamental
nelas são acionadas outras concepções de
comentar o que Rubino nomeia de “parceria
patrimônio cultural, orientadas segundo as
intelectual entre o antropólogo e sociólogo
questões que o levaram a discutir, logo antes,
Gilberto Freyre e o arquiteto Lucio Costa”
os limites e as possibilidades de atuação em
(2010:302), na medida em que parece
design. Então, assim como suas considerações
haver uma estreita ligação entre os dois,
sobre design (Anastassakis, 2014; Souza
notadamente no que tange à formulação 71
Leite, 2003), suas concepções de patrimônio
de uma vinculação da arquitetura moderna
cultural são similarmente guiadas por um
brasileira à história cultural do país3,
comprometimento com as questões culturais
formulação essa que permitira aos dois
no presente, visando desenvolvimentos
construírem, via arquitetura, um elo entre o
futuros. Nesse sentido, não deixam de estar
Movimento Moderno e a boa tradição (idem).
alinhados aos compromissos firmados durante
Valendo-se da apresentação de uma série
a Convenção para a Proteção do Patrimônio
de ocasiões em que um cita o outro, Silvana
Mundial, Cultural e
Rubino ilumina um processo de legitimação
Natural, organizada pela
recíproca, segundo o qual, “se a explicação
Unesco em 1972.
mais sociológica que Lucio Costa constrói
Trata-se, então, de
está visivelmente inspirada pelo sociólogo
uma visada sobre os
práticas culturais dos grupos que nele – ou uma visada projetiva do patrimônio cultural,
em torno dele – vivem. Nesse ponto é que ancorada na convicção de que é somente
Aloisio mais se reaproxima da concepção de através da consideração das especificidades
N
R T Í S T I C O
patrimônio cultural formulada por Mário culturais que se pode constituir um projeto
de Andrade, nos modos como intentam de desenvolvimento futuro.
A
aproximar arte erudita e arte popular; se Nessa medida, não se trata, segundo
E
implicam em uma negação de certos ideais políticas de patrimônio cultural per se, mas
universalistas; percebem valor no fato de de investimentos em ações políticas de
H
o Brasil ser um “país novo”, “emergente”; patrimônio cultural, com fins a um projeto
A T R I M Ô N I O
mapeamentos da produção cultural popular; como, uma década antes, o campo do design
D O
Zoy Anastassakis
incorporam os bens culturais de natureza representara para ele uma porta de acesso às
E V I S T A
produção cultural nacional (Freitas, 1999:76- contexto, é no âmbito das políticas públicas
79). de patrimônio cultural que se constitui, a seu
Além da aproximação conceitual com a ver, um domínio a partir do qual se torna
noção de patrimônio cultural, Freitas sinaliza possível ensaiar uma intervenção no “mundo
que, ao estabelecer, textualmente, vínculos real”. Desse modo, design e políticas culturais
entre suas propostas para o Iphan e as se configuram como áreas ou domínios a
formuladas por Mário de Andrade quarenta partir de onde, em distintos momentos de
72
anos antes, Aloisio Magalhães buscava sua trajetória profissional, Aloisio Magalhães
legitimar seu trabalho à frente do CNRC, logra viabilizar suas propostas de projeto para
bem como estabelecer uma base de diálogo o próprio país.
com o grupo de intelectuais remanescentes
da “fase heroica” (1999:89), que, em grande ALGUNS ANTECEDENTES DA
parte, resistiam às mudanças sugeridas pelo REESTRUTURAÇÃO POLÍTICO-
grupo do Centro, incorporado ao Instituto INSTITUCIONAL DE 1979
após a nomeação de Aloisio para a sua
presidência. Como já comentado acima, logo antes
Além da preocupação com o presente, de assumir a presidência do Iphan, Aloisio
essa visão do patrimônio cultural está atuava à frente do CNRC (Anastassakis,
engajada com o desenvolvimento de projetos 2007), considerado como o tubo de ensaio
de futuro, ou seja, nela a continuidade em que teriam sido experimentadas as ideias
dos processos culturais, seja em seus que informaram as propostas de políticas
aspectos materiais ou imateriais, depende públicas de preservação patrimonial a partir
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
A C I O N A L
N
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
P
D O
Zoy Anastassakis
E V I S T A
R
de 1979. Deve-se ressaltar, contudo, que, do Centro para a formulação da virada São Francisco do
Paraguaçu
diferentemente do Iphan, o CNRC não fazia nas políticas de patrimônio cultural que é Acervo: Iphan/
Nelson Kon.
parte da estrutura do Ministério de Educação articulada por Aloisio, não apenas porque 73
Zoy Anastassakis
E V I S T A
R
Acarajé de Iansã institucional, segue-se também uma políticas de preservação cultural durante os
Acervo: Iphan/
Francisco Moreira
da Costa.
reorganização das políticas de preservação do anos 1970, não apenas no Brasil, mas em
patrimônio cultural conduzidas pelo órgão. todo o mundo. Primeiramente, ela destaca
Ao propor toda essa reformulação política, algumas transformações percebidas nas
Aloisio Magalhães considerava também as disciplinas que fundamentavam a seleção de
mudanças que começavam a se ensaiar no país bens considerados dignos de preservação.
74 a partir do desgaste do modelo implementado Dentre elas, a história e a antropologia, que
pelo regime militar a partir de 1964 e da sofreram significativas revisões no que tange
remobilização da sociedade civil. Segundo a seus objetos e abordagens de pesquisa.
Joaquim Falcão, ele percebia que “novas Para essa autora, essas mudanças no campo
demandas sociais pressionavam por políticas acadêmico teriam acontecido em paralelo
governamentais diferentes” (2003:248). Para a uma difusão da democracia em outros
Falcão, o grande mérito de Aloisio foi ter tido campos. Corria pelo mundo o processo de
a sensibilidade de captar, antes dos demais, descolonização e o surgimento de novos
o clima de mudança para, a partir do que o Estados-nação. Era assim uma época de
momento demandava, formular um projeto reivindicações de direitos e identidades
político e institucional que permitisse a coletivas. Vinha à tona a consciência da
concretização das mudanças necessárias. dominação cultural das ex-colônias e dos
Para Maria Cecília Londres Fonseca grupos denominados “minoritários”.
(2005), vários fatores contribuíram para A cultura surgia, nesse contexto, como
as modificações ocorridas no campo das uma via possível de libertação da dominação
e de elaboração de novas identidades a aposentadoria de Rodrigo Melo Franco de
A C I O N A L
enfatiza que, a partir da década de 1960 e na autonomia do Instituto. Além disso, pesa
década seguinte, o Modernismo passar a ser sobre o Iphan o distanciamento de suas
contestado e revisto. No Brasil, é de destaque políticas face ao modelo de desenvolvimento
N
R T Í S T I C O
a consagração do modelo desenvolvimentista nacional firmado entre os anos 1950 e 1960,
e industrial, alavancado a partir do governo pois a ideologia de desenvolvimento a ele
A
de Juscelino Kubitschek, e a hegemonia da vinculada teria atrelado o nacionalismo
E
arquitetura modernista, consagrada pela a valores de modernização, em contraste
I S T Ó R I C O
construção de Brasília. Nos anos 1960, e a ideais preservacionistas, tais quais os
principalmente a partir do governo de João acionados pelo Iphan durante as primeiras
H
Goulart e do golpe militar que a ele se segue, décadas de sua existência, voltadas quase
A T R I M Ô N I O
cresce também a politização da atividade que exclusivamente para a preservação de
cultural e ampliam-se as manifestações da edificações de “valor histórico”.
P
sociedade através de movimentos populares, Para dissolver os impasses surgidos a partir
D O
Zoy Anastassakis
artísticos e estudantis. de então, o Iphan teria recorrido também
E V I S T A
Mas é apenas à Unesco, que o auxiliou a reformular a
R
sua atuação, compatibilizando-a com o
(...) com o início da ‘distensão’, no governo
novo modelo de desenvolvimento nacional
Geisel, que o Estado passa a atuar na área cultural,
(Fonseca, 2005). Segundo as diretrizes da
não apenas como repressor, mas também como
Unesco, o Iphan deveria se transformar
organizador da cultura (2005:134).
em um negociador e um conciliador de
Deve-se ressaltar que essa ”distensão” interesses, ou seja, um órgão que conseguisse
vinha acompanhada de uma crise econômica demonstrar à sociedade que é viável a
75
internacional, o que tornaria mais nítidas as compatibilização entre preservação e
contradições do modelo econômico adotado desenvolvimento, valores culturais e valores
pelo regime militar. A partir de todo esse econômicos. As novas diretrizes divulgadas
estado de crise, o regime teria passado a pela Unesco nas Normas de Quito (1967)
enfrentar também uma crise de legitimidade. contribuíram, indiretamente, para a criação
Assim como o regime de governo, o do PCH, em 1973, e o CNRC, em 1975.
modelo de preservação do patrimônio Fazendo parte de um movimento de
cultural adotado pelo Iphan desde 1937 descentralização ocorrido no campo das
passava por uma crise decorrente do desgaste políticas de patrimônio cultural nos anos
das políticas implementadas pelo órgão 1970, movimento esse que tem por objetivo
em sua ”fase heroica”. Dentre os fatores suprir as lacunas que a atuação do Iphan
constituintes desse desgaste, Fonseca destaca, vinha apresentando, pode-se considerar,
primeiramente, a dificuldade do Iphan em então, que, mesmo que sem tal intenção,
mobilizar a sociedade e o governo para a PCH e CNRC surgem como alternativas ao
causa da preservação. Em segundo lugar, com Iphan. Tais lacunas não seriam somente de
ordem operacional; em termos conceituais o 1936 redigiu o anteprojeto do Serviço de
A cultura como projeto: Aloísio Magalhães e suas ideias para o Iphan
períodos históricos, e elitista na seleção e no trato da cultura ele busca formular alternativas
I S T Ó R I C O
popular (2005:143).
vincular a questão da cultura a áreas
politicamente fortes do governo, explorando o
OUTRAS D I R E Ç Õ E S PA R A A S
P
P O L Í T I C A S D E PAT R I M Ô N I O
Zoy Anastassakis
A C I O N A L
futuro é que a cultura passa a ser percebida, MAGALHÃES, Aloisio. E Triunfo? A questão dos bens
naquele momento, como base de lançamento culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/
para ações que apontassem outras direções. Fundação Roberto Marinho, 1997 (1985).
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77
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moderno: universalidade e diversidade no movimento Praça da República-PA
Acervo: Iphan/
moderno em arquitetura e urbanismo no Brasil. Caio Reisewitz.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
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Márcia Chuva Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
Márcia Chuva
A C I O N A L
P OSSÍVEIS NARRATIVAS SOBRE DUAS DÉCADAS DE
N
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A T R I M Ô N I O
Escrever para a revista do Iphan nos seus se de uma narrativa comprometida com
oitenta anos é um desafio. Incumbiram-me percepções, pontos de vista, reflexões a partir
de tratar do período de 1982 a 2002, vinte de um lugar de fala construído na vivência
P
anos marcantes, registrados em diferentes desses anos.
D O
E V I S T A
impressões, camadas de sensibilidade e Buscamos dar inteligibilidade a esse
inteligibilidade. Pensar sobre a instituição recorte temporal como contexto e, nesse
R
é pensar sobre seus quadros, seus agentes e sentido, alguns momentos de inflexão nos
os sujeitos que nela se constituem, também pareceram significativos para explorar e
sobre seu multifacetado universo de ação arriscar uma compreensão mais ampla do
e sobre a amplitude de suas práticas. campo do patrimônio no período, a começar
Infelizmente, não teria condições de dar a pela morte de Aloisio Magalhães, em 1982,
devida dimensão a toda essa grandeza. Esses que dá início ao período recortado. Morte
vinte anos da ação institucional no campo vivida como trauma na instituição, em um 79
do patrimônio serão abordados aqui numa momento de grandes expectativas no Brasil.
perspectiva que inevitavelmente deixará A Fundação Nacional Pró-Memória estava
muitos aspectos de fora. Se não posso precisar dando uma nova feição ao setor cultural
a medida do que está ausente, posso apenas brasileiro, em especial às instituições a ela
me desculpar antecipadamente. Vale dizer vinculadas (Peregrino, 2012; Brito, 2014).
que as reflexões deste artigo são fruto de um Dava-se mais um importante passo para a
olhar afetivo sobre uma experiência1. Trata- retomada plena dos direitos civis, com a volta,
depois de suspensas por quase vinte anos, das
1. Ingressei na instituição em 1982, como estagiária da Fundação
Nacional Pró-Memória, no setor de Estudos de Tombamento eleições diretas para os governos dos estados e
coordenado pela arquiteta Dora Alcântara, na Diretoria de
Tombamento e Conservação – DTC, chefiada pelo arquiteto as prefeituras das capitais.
Augusto Carlos da Silva Telles, no oitavo andar do Palácio
Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Ao longo da década de
A segunda inflexão no âmbito do recorte
1980, descobri e me formei no mundo do patrimônio. A partir temporal proposto pode ser verificada com
de 1992 e nos dez anos seguintes, até 2002, integrei a equipe de
inventários de bens imóveis, coordenada pela arquiteta Lia Motta, os novos rumos dados à política brasileira Capela do Engenho Una
no Departamento de Identificação e Documentação, o DID, Acervo: Copedoc/Iphan/
dirigido por Célia Corsino. no início dos anos 1990, após as primeiras Marcel Gautherot.
eleições diretas para presidência da República, pareceram adequados para compreender a
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Os dois anos de seu governo trouxeram parte indissociável dos processos de formação
momentos difíceis para todo o setor cultural, do Estado, da esfera de poder público e do
com traços violentos como perseguições a cenário político-social em que se insere.
N
R T Í S T I C O
perdas, inclusive por meio do Programa camadas de leitura que se sobrepõem, como
E
no setor, sem qualquer ajuste salarial durante tendo em vista ser ela fruto de camadas
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Márcia Chuva
drasticamente com Fernando Collor teve afastam focos e visadas aqui intencionalmente
R
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cujos integrantes foram formados na esteira uma concepção da história como narrativa,
A C I O N A L
da École des Annales e dela sentiam-se tendo surgido estudos sobre uma diversidade
continuadores, herdeiros em terceira geração. de temas (abordagens, objetos e problemas),
como gênero, minorias étnicas e religiosas,
N
Publicada no Brasil logo em seguida, pela
R T Í S T I C O
Livraria Francisco Alves Editora, em 1976, hábitos e costumes. Para o campo do
com segunda edição em 1979, História: novos patrimônio, esse contexto historiográfico
A
problemas; novas abordagens; novos objetos foi expressivo, pois compartilhou a quebra
E
atingiu boa parte dos jovens que se formaram de paradigmas acerca de verdades históricas,
I S T Ó R I C O
nos anos 1970 e 80 nos cursos de História rupturas com uma história política tradicional
e de Ciências Sociais no Brasil que tinham ou com uma visão de cultura restrita às artes,
H
música ou literatura, para a uma definição
A T R I M Ô N I O
contato com a escola francesa, em anos de
ditadura militar e abertura política, ávidos mais ampla, como práticas, processos e
por revolucionar o pensamento, o Estado, a cotidiano (Burke, 1992).
P
vida cultural, as práticas sociais – o país. Os Teve também entrada no Brasil, o livro
D O
Márcia Chuva
efeitos no campo do patrimônio produzidos de Eric Hobsbawm e Terence Ranger The
E V I S T A
por essa historiografia francesa não serão invention of tradition, lançado originalmente
R
analisados neste artigo5, mas situar essa em 1983 e aqui publicado, em 1984, pela
obra no mesmo contexto pode iluminar em editora Paz e Terra. Os dois historiadores
certa medida as mudanças conceituais que ingleses de base teórica marxista também
verificamos no período aqui recortado. Pode incorporavam a perspectiva cultural em seus
também deixar pistas para aprofundamento estudos de história social, desconstruindo
e produção de novos estudos que percebam ícones e emblemas, dessacralizando
conexões entre as reflexões teóricas sobre o costumes e patrimônios. Era, sem dúvida,
81
campo do patrimônio no Brasil e o debate um contexto de viradas epistemológicas.
Essa virada cultural que atingia em cheio a
acadêmico no da história naquele momento,
história produzia os primeiros passos de uma
tal como se verificou na França (cf. Roiz e
aproximação da disciplina com a temática do
Santos, 2012).
patrimônio no Brasil.
Como apontou Peter Burke (2005),
Em obra posterior, tratando da história
nos anos 1970, aspectos culturais do
do capitalismo, Hobsbawm ([1993]1995)
comportamento humano se tornaram
fez uma leitura panorâmica do século XX
foco em estudos históricos na Europa (não
e apresentou os anos 1970 e 1980 como
somente na França) e foram estabelecidas
as “décadas de crise” do sistema, com
conexões entre história, antropologia e
predomínio da recessão e da estagnação da
literatura. Para o autor, nesse momento
economia mundial. Décadas marcadas por
afirmar que esse contexto deu margem República, depois de vinte e quatro anos de
A C I O N A L
perspectivas sobre uma identidade nacional. humanos e da tolerância, expressões que não
Essas identidades emergentes também podem ser esquecidas, nem cair no vazio,
A
trouxeram questões para os debates sobre serão sentidos a longo prazo, no campo do
E
E O CAMPO DO
como objeto de investigação. Bens e práticas PAT R I M Ô N I O : 1982-2002
culturais até então alheios a esse universo
P
Márcia Chuva
Márcia Chuva
RE V I S T A
dos subalternos e das minorias e, nem por e tradicional (1984) ou o dos Vestígios do Renda Irlandesa de
Divina Pastora,SE
Acervo: Iphan/
isso, menos significativo como referência de Quilombo dos Palmares, tombado no ano de Fabrícia de Oliveira Santos.
identidades e como fonte para a produção de 1986, em Alagoas, integrando novos sujeitos
conhecimento sobre a história do Brasil. à cena do patrimônio nacional. Também
O tombamento do Terreiro da Casa pode ser incluído nesse grupo o tombamento,
83
Branca, Ilê Axé Iyá Nassô Oká, de Salvador , em 1990, de 48 edificações na zona central
em 1984, tem sido recorrentemente apontado de Antônio Prado, no Rio Grande do Sul,
(Velho, 2006; Fonseca, 1997, entre outros) que, por sua vez, incorporou ao patrimônio
como emblemático das lutas para inclusão nacional uma expressão da colonização
de representações de grupos de identidade italiana. Essa proteção decorreu de demanda
diversificados na categoria de patrimônio advinda de técnicos, especialistas e setores
cultural brasileiro, por meio da demanda sociais, em busca de uma representação mais
de movimentos sociais que se apropriaram ampla e diversa da nação7.
dos instrumentos disponíveis, como o Em todos esses casos, os debates no
tombamento, em favor dos interesses das Conselho Consultivo, verificados por meio
minorias. Podem ser somados a esse contexto
tombamentos inovadores, como o da Fábrica 7. Esse tombamento não foi aceito de imediato pela população
de Vinho de Caju em João Pessoa, que incluiu local e foram realizados projetos de “educação patrimonial”, vista
então como meio para reduzir as tensões geradas pela ação insti-
as técnicas industriais utilizadas e, portanto, tucional. Sobre o assunto hoje, ver clipping do Ministério Público,
em 14/7/2009, em que foi instituído o tombamento voluntário:
uma expressão de modos de fazer popular https://www.mprs.mp.br/memorial/noticias/id18399.htm
das atas das reuniões, podem ser reveladores integrava um projeto mais amplo de
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trazendo à luz sujeitos que por diferentes linhas editoriais, as séries Revista do
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denominadas de “fase heroica” e “fase algo
A C I O N A L
moderna” e, por meio dessa estratégia
(...) múltiplo como as manifestações culturais
discursiva, os doze anos de gestão de Renato
que emergem das estruturas sociais formadoras do
Soeiro, de 1967 a 1979, foram colocados
N
povo brasileiro, em que as suas produções culturais
R T Í S T I C O
na sombra. Nessa versão, o Iphan estaria seriam tão valorizadas quanto o espaço em que elas
esvaziado e enfraquecido no momento ocorrem10.
A
em que Aloisio Magalhães o assumiu. Há
E
algumas evidências, contudo, que mostram Por sua vez, a seção de cartas do Boletim
I S T Ó R I C O
o importante papel de Renato Soeiro à permitia o conhecimento de demandas e
frente da instituição: ele tinha assento no opiniões de um público que até então se
H
Conselho Federal de Cultura e no Conselho manifestava apenas de forma dispersa, sem
A T R I M Ô N I O
Consultivo do PCH, além de ter dirigido o dispor de um canal próprio de comunicação
Departamento de Assuntos Culturais – DAC, ou apresentação de demandas. Era esse,
P
a autarquia que sediava os programas PAC portanto, um espaço para questionamentos
D O
Márcia Chuva
e PCH, até 1974 (Azevedo, 2013 e Chuva em relação às práticas institucionais.
E V I S T A
e Lavinas, 2016). É fato que ambos, Renato Tais publicações, como o livro Proteção e
R
Soeiro e Aloisio Magalhães, desfrutaram de revitalização do patrimônio histórico e artístico
boas relações com setores do governo durante no Brasil - uma trajetória ou a coleção do
o regime militar. Boletim, são fontes ricas para investigação
O Boletim Sphan/Pró-Memória, editado da história das políticas institucionais de
mensalmente de 1979 a 1989 ,,foi uma 9 preservação do patrimônio no Brasil. Suas
publicação de tiragem bastante expressiva. narrativas são datadas, mas ainda ecoam
Welbia Carla Dias descreveu diversas de suas no presente, tendo sido disseminadas por
85
características, capazes de defini-la como um diferentes canais e autores. Joaquim de
espaço comunicativo. Para ela, Arruda Falcão foi um deles, ao afirmar que a
política cultural durante o regime militar teria
(...) o Boletim serviu como um espaço para
tido início somente com a criação do CNRC
discussão e compreensão de um período do
órgão repleto de questionamentos em relação aos e que o Iphan teria permanecido no “atraso
conceitos e às práticas preservacionistas (Dias, conceitual e metodológico” até a nova direção
2012:123). de Aloisio Magalhães (Falcão, 1984)11.
A Revista do Patrimônio criada em 1937
Servia também para divulgar as ações
– Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
da instituição. No número zero do Boletim,
lançado em 1979, Aloisio Magalhães 10. Conforme analisado por Laís Lavinas, “a noção de cultura
apresentada no Boletim é (...) a cultura compreendida como um
‘processo global que não separa as condições do meio ambiente
9. No número 0/1979, o periódico chamou-se Boletim do Iphan. daquelas do fazer do homem’.”(Lavinas, 2014:157).
A partir do número 1, é denominado Boletim Sphan/Pró-Memória 11. Tais como Fonseca (1997), Gonçalves (2002). O debate
(da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da historiográfico mais recente conta com estudos sobre as políticas
Fundação Nacional Pró-Memória). Entre 1985 e 1987 o boletim culturais e de patrimônio dos anos 1970 (Lavinas, 2014, Pereira,
não foi publicado. Ver Dias (2012). 2009; Maia, 2010; Calabre, 2009).
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Convento
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
São Francisco
do Paraguaçu, BA
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Artístico Nacional – também nos dá elementos do Capacete, e a morte de Chico Mendes12,
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para compreendermos o contexto recortado eventos que não podem ser banalizados, para
A C I O N A L
neste artigo. O primeiro número publicado que não percamos de vista a intensidade das
no período entre 1982 e 2002 saiu em 1984. conquistas daquele momento, em diversas
frentes.
N
dos estudos sobre o patrimônio publicados Por isso mesmo, enfatizamos o fato de
na revista até 1978. Em novo formato, o 1988 ter sido, também, o ano da Assembleia
A
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variações. Nos 42 anos que separam a comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários,
A C I O N A L
Constituição Democrática de 1946 da
registros, vigilância, tombamento e desapropriação,
Constituição Cidadã de 1988, o campo
e de outras formas de acautelamento e preservação.
do patrimônio se ampliou, se tornou mais
N
§ 2º - Cabem à administração pública, na forma
R T Í S T I C O
complexo e o texto Constitucional de 1988 é
da lei, a gestão da documentação governamental
revelador desse percurso. Nele encontramos e as providências para franquear sua consulta a
A
traços desse tempo percorrido e das lutas quantos dela necessitem.
E
a ele coevas, nos extensos artigos 215 e
I S T Ó R I C O
§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção
216, bem como no artigo 68 do Ato das e o conhecimento de bens e valores culturais.
Disposições Constitucionais Transitórias – § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural
H
ADCT. Considerando nosso recorte temporal serão punidos, na forma da lei.
A T R I M Ô N I O
e a importância do assunto, optamos por § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os
sítios detentores de reminiscências históricas dos
reproduzi-los aqui. São eles, tal como
antigos quilombos.
P
promulgado em 1988:
D O
ADCT - Art. 68 - Aos remanescentes das
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E V I S T A
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno comunidades dos quilombos que estejam
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
R
da cultura nacional, e apoiará e incentivará a definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos
valorização e a difusão das manifestações culturais. respectivos.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, Através desses dispositivos, a Constituição
e de outros grupos participantes do processo Federal Brasileira consagrou a tese da
civilizatório nacional. diversidade cultural, ao considerar a
§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas importância da contribuição dos “diversos
comemorativas de alta significação para os grupos formadores da sociedade brasileira” e 89
diferentes segmentos étnicos nacionais. a necessidade de proteção e salvaguarda do
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural
patrimônio cultural de natureza material e
brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
imaterial pertencente a esses diferentes grupos.
tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à A noção de “grupos formadores” cumpriu
memória dos diferentes grupos formadores da um papel crucial em termos discursivos, no
sociedade brasileira, nos quais se incluem: sentido da inclusão e do reconhecimento da
I - as formas de expressão; diversidade cultural brasileira.
II - os modos de criar, fazer e viver; Refletindo sobre a eficácia da noção de
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
“grupo” após o transcurso de algumas décadas
IV - as obras, objetos, documentos, edificações
e das novas configurações do campo, alguns
e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais;
dos efeitos da sua apreensão como algo
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor permanente podem ser verificados na prática
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, de seleção de bens culturais como patrimônio:
paleontológico, ecológico e científico. se por um lado essas práticas ampliaram
significativamente o universo de bens modos de pertencimento a essa categoria.
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configuração de novos objetos passíveis de valor de patrimônio e não à natureza dos
A C I O N A L
se tornarem patrimônio, novos problemas bens tornados patrimônio. Desse modo,
a serem enfrentados e novas abordagens é possível afirmar que isso significou uma
sobre antigos objetos patrimoniais. Esses
N
importante inversão na lógica consagrada
R T Í S T I C O
elementos indicam que os paradigmas do dos processos de patrimonialização, fundada
campo do patrimônio estavam (e estão) sendo na ideia de que os objetos teriam valores
A
redesenhados (Chuva, 2014). intrínsecos. (Chuva, 2012).
E
Contudo, esse entendimento, tal
I S T Ó R I C O
NOVOS OBJETOS – A NOÇÃO como apresentado por Fonseca, não estava
D E R E F E R Ê N C I A C U LT U R A L plenamente desenhado na década de 1980 e,
H
A T R I M Ô N I O
quiçá, 1990. Em sua tese, Lia Motta (2017)
Essa noção, introduzida pelo Centro faz uma interessante revisão historiográfica
Nacional de Referência Cultural, teve papel e, com uma abordagem inovadora e farto
P
decisivo na virada que viabilizou a ampliação material empírico, percebe que a noção de
D O
Márcia Chuva
da noção de patrimônio cultural no Brasil e, referência cultural dos anos 1970 era mais
E V I S T A
com ela, a inclusão de novos objetos passíveis uma marca e bem menos um conceito. A
R
de serem reconhecidos como tal. Ela foi referência cultural era uma categoria em
também fundamental para a inclusão dos construção. São as lutas de representação em
grupos sociais como sujeitos no processo de torno da legitimidade do patrimônio e dos
seleção desse patrimônio. Formulada nos sujeitos de atribuição de valor, processadas
anos 1970, aparece no texto constitucional, ao longo daquelas duas décadas, que vão
através da noção de referência, que consta conferir sentido e encorpar os significados da
no caput do Art. 216, ao lado da definição de noção de referência cultural, até que se torne
91
patrimônio como “bens de natureza material uma categoria operacional, na metodologia
ou imaterial”. Ao indicar a necessidade de do Inventário Nacional de Referências
“colaboração da comunidade” nas ações Culturais – INRC, elaborada em 200015.
de promoção e proteção ao patrimônio, Sem dúvida, seus significados na atualidade
empreendidas pelo Estado, a Constituição dão consistência e operacionalidade à ideia
também inova por incluir outros agentes no dos novos sujeitos de atribuição de valor de
processo que, até então, era monopolizado na patrimônio. Isto é, os produtores, detentores
fala do Estado e de seus especialistas. e/ou agentes da cultura foram incluídos no
Os sentidos históricos dados à noção de
processo de reconhecimento e valorização da
referência cultural, principalmente a partir
prática cultural, transformando os processos
da implantação do Decreto no 3.551/2000,
estabeleceram uma associação quase que 15. O antropólogo Antonio Augusto Arantes coordenou a
exclusiva com o patrimônio imaterial, que equipe responsável pela concepção da metodologia do Inventário
Nacional de Referências Culturais, contratado pelo Iphan para
não estava prevista na Constituição. Para desenvolvimento do Projeto Piloto no Museu Aberto do Desco-
brimento, Porto Seguro, em 1999-2000. Foi presidente do Iphan
Maria Cecília Londres Fonseca (2003), a de 2004 a 2006.
de construção de legitimidade do patrimônio à cultura do imigrante, restritos ao sul do
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patrimônio cultural – como algo processual outro, isto é, do Centro Nacional do Folclore
R
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forma de um texto normativo, o Decreto n o
arqueológico, logo, sua gestão não envolvia
A C I O N A L
3.551/2000 pode ser visto como o fato síntese relações com sujeitos de identidade
que encerra esse período, com a criação do quilombola no presente. O debate
para a inclusão dessa temática no texto
N
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial.
R T Í S T I C O
Os seus efeitos se fizeram sentir a partir de constitucional envolveu diferentes setores
2002, ano do primeiro registro realizado . 18 da sociedade e foi relatado pelo referido
A
Novos objetos só poderiam ter surgido antropólogo, que, na época, era presidente
E
da Associação Brasileira de Antropologia –
I S T Ó R I C O
porque socialmente se configuraram novos
problemas e novas abordagens foram ABA. Termos como quilombo, remanescentes
propostas. Os dados produzidos por de quilombo, quilombolas, adotados na
H
Constituição, colocaram em debate o
A T R I M Ô N I O
Marins (idem) acima apresentados são, sem
dúvida, expressivos. Contudo, observar as reconhecimento da existência de grupos
políticas de patrimônio exclusivamente pelo detentores de modos de vida específicos
P
tombamento pode limitar o olhar sobre associados à vivência da territorialidade
D O
Márcia Chuva
e da diferenciação étnica, em oposição
uma realidade mais complexa. Buscaremos
E V I S T A
à perspectiva passadista e de abordagem
apontar, a seguir, outros aspectos das políticas
arqueológica que predominava entre
R
dos anos 1990 que são fruto das inovações
legisladores e também no Iphan.
conceituais e políticas forjadas nos anos 1980,
A concepção de quilombo
evidenciando também descontinuidades com
contemporâneo, que a ABA sistematizou em
o paradigma modernista.
um documento datado de 1994, subsidiou
os debates que levaram à regulamentação
NOVOS PROBLEMAS –
do Art. 68 da ADTC, quase uma década
A NOÇÃO DE QUILOMBO 93
depois, em 2003, como citado por Eliane
O’Dwyer:
Para a reflexão sobre os novos problemas,
voltamos ao texto constitucional, no que se Contemporaneamente, portanto,
refere aos quilombos e suas relações com o o termo Quilombo não se refere a
resíduos ou resquícios
campo do patrimônio. Segundo Antonio
arqueológicos
Augusto Arantes (2015), a concepção
de ocupação
predominante da categoria “quilombo” no temporal ou de
comprovação
17. A Comissão foi criada pela Portaria nº 37, de 4 de março de biológica.
1998, com a finalidade do estabelecimento de critérios, normas
e formas de acautelamento do patrimônio imaterial brasileiro e Também não se
o Grupo de Trabalho, cuja finalidade era dar assessoramento à
referida Comissão, foi criado pela Portaria nº 229, de 6 de julho
trata de grupos
de 1998, ambas assinadas pelo Ministro da Cultura Francisco isolados ou de
Weffort (Iphan, 2003). Sobre a composição dos dois grupos
citados, ver também Iphan, 2003. uma população
18. Em 2002, ocorreram os primeiros registros de patrimônio estritamente
cutural de natureza imaterial: o Ofício das Paneleiras de Goiabei-
ras, Vitória (ES) e a Arte Gráfica dos Índios Wajãpi, no Amapá. homogênea.
Baiana
Acervo: Iphan/
Da mesma forma nem sempre foram constituídos Convocado a posicionar-se nesse
Francisco Costa. a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados debate e responder às novas determinações
mas, sobretudo, consistem em grupos que constitucionais, em especial ao parágrafo 5º
94 desenvolveram práticas cotidianas de resistência na
do Art. 216, o Iphan apresentou, em 1998,
manutenção e reprodução de seus modos de vida
um parecer técnico que mantinha a posição
característicos e na consolidação de um território
institucional restrita às situações em que
próprio (Abant, 1994, apud O’Dwyer, 2002).
fossem encontrados vestígios materiais de
Em 1995, ano das comemorações dos existência dos antigos quilombos. A partir
trezentos anos da morte de Zumbi dos daí a instituição desenvolveu uma série de
Palmares, a temática quilombola conseguiu estudos e foram abertos onze processos de
entrar na pauta nacional, demarcando o tombamento, dos quais foi tombado somente
início de uma batalha jurídica e legislativa o bem relativo ao processo dos Remanescentes
que seria travada no Congresso brasileiro do Antigo Quilombo do Ambrósio. Nesse
(Arruti, 2008). Nesse mesmo ano, os caso, foram identificados restos arqueológicos,
conflitos fundiários tornaram-se manchete bem como marcos geográficos e referências
nacional com o massacre de Corumbiara, históricas da existência de quilombo
em Rondônia, e, em 1996, o massacre do constituído de negros fugidos do sistema
Eldorado dos Carajás, no Pará. escravista no local (Vaz, 2016).
Naquele momento, o Iphan eximia-se do representativa da comunidade, cabendo ao
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
debate sobre a questão fundiária, o direito à Instituto Nacional de Colonização e Reforma
A C I O N A L
terra por remanescentes de comunidades de Agrária –Incra a responsabilidade sobre a
quilombos no presente e, portanto, sobre o regularização fundiária das comunidades
quilombolas19. Desse modo, como apontou
N
próprio cerne do Art. 68, da ADTC, cujo
R T Í S T I C O
enfrentamento fervilhava no Congresso. José Maurício Arruti, a noção de “terra”
Em 2001, Fernando Henrique Cardoso ganhou a dimensão conceitual de território,
A
assinou o Decreto n 3.912, que acabou
o pois nela se incluem:
E
não tendo efetividade, porque foi julgado
I S T Ó R I C O
(...) não só a terra diretamente ocupada no
inconstitucional pelo Ministério Público, momento específico da titulação, mas todos os
por estabelecer um prazo excessivamente espaços que fazem parte de seus usos, costumes e
H
A T R I M Ô N I O
curto para apresentação de demandas de tradições e/ou que possuem os recursos ambientais
regularização fundiária quilombola e por necessários à sua manutenção e às reminiscências
exigir que as comunidades comprovassem históricas que permitam perpetuar sua memória
P
uma história de cem anos de “posse pacífica” (Arruti, 2008:23).
D O
Márcia Chuva
da terra, desde 13 de maio de 1888 até a data
E V I S T A
Especialmente com a implantação das
de promulgação da Constituição de 1988. políticas de patrimônio imaterial, essa questão
R
Essa batalha judicial que se arrastava há tornou-se central em diversas situações
mais de uma década só teria novo desfecho de registro e de inventário, passando a ser
em 2003, com a assinatura do Decreto compreendida e enfrentada também no
no 4.887 por Luiz Inácio Lula da Silva, Iphan por meio do conceito de quilombo
que regulamentou o procedimento para contemporâneo20.
identificação, reconhecimento, delimitação, Na rede de agências e agentes envolvidos
demarcação e titulação das terras ocupadas com a questão jurídico-legal quilombola, vale 95
por remanescentes das comunidades destacar a Fundação Cultural Palmares, que
dos quilombos. O decreto consagrou o se tornou responsável pela certificação das
significado de quilombo contemporâneo, em comunidades quilombolas que a reivindicam,
seu Art. 2º: antes que o Incra procedesse à regularização
da posse da terra para tais comunidades.
Consideram-se remanescentes das
A fundação é vinculada ao Ministério da
comunidades dos quilombos, para os fins deste
decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios Cultura, tal como o Iphan, sendo que as duas
de autoatribuição, com trajetória histórica própria, instituições puderam estreitar relações de
dotados de relações territoriais específicas, com parceria a partir da implantação do Decreto
presunção de ancestralidade negra relacionada com no 3.551/2000.
a resistência à opressão histórica sofrida.
19. Percebem-se nessa definição traços semelhantes àqueles que
O decreto prevê a possibilidade de serão definidos posteriormente no Decreto no 3.551/2000, para a
Salvaguarda do Patrimônio de Natureza Imaterial.
desapropriações e estabelece que a titulação 20. Esse foi o caso, por exemplo, do Jongo no Sudeste, que foi
inventariado em conformidade com a metodologia do INRC e foi
deva se efetuar em nome de entidade registrado no Livro de Registro das Formas de Expressão em 2005.
Haja vista os conflitos de interesses Os princípios que regem essa categoria
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
projetos de lei no Congresso Nacional com o 1995). A área urbana de valor patrimonial
intuito de derrubar o Decreto n 4.887/2003.
o
passava a ser concebida como documento
A
Essas tensões refletem a frágil legitimidade capaz de narrar a história da rede de cidades
E
patrimônio como direito e como instrumento valor histórico tornou-se crucial na seleção de
D O
Márcia Chuva
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
exemplares de arquitetura moderna, Flávia INBI-SU, ele próprio uma nova proposta de
A C I O N A L
Nascimento (2016) indica uma importante abordagem do bem patrimonializado.
inflexão nesse momento, tendo em vista que Veremos então, a seguir, como essa
os primeiros tombamentos desse tipo de bem nova abordagem metodológica levou à
N
R T Í S T I C O
se deram até 1967, ligados à escola carioca de compreensão da cidade histórica como um
arquitetura moderna, logo após terem sido bem em processo dinâmico, constituído
A
construídos. Nos tombamentos ocorridos pelos sujeitos que nela habitam. Deixava
E
nos anos 1980, segundo a autora, começa a de ser, portanto, um bem do passado – que
I S T Ó R I C O
haver uma percepção distinta desse tipo de deve ser protegido da destruição – para
bem, na qual a arquitetura moderna passa a tornar-se um bem apropriado pelos sujeitos
H
ser vista como história e não como partido do presente, devendo ser negociadas as
A T R I M Ô N I O
arquitetônico em disputa. formas dessa apropriação e preservação.
É também nos anos 1980 que a gestão Naquele contexto, os caminhos encontrados
P
do bem tombado consagra-se como um para tal foram os inventários.
D O
Márcia Chuva
problema incontornável a ser abordado,
E V I S T A
tendo em vista o enorme acervo de bens OS PA D R Õ E S N A C I O N A I S
DE INVENTÁRIO: NOVOS
R
tombados, as dificuldades para a fiscalização
da sua conservação e a evidência dos INSTRUMENTOS DE
processos de crescimento das cidades, P R E S E R VA Ç Ã O
inclusive aquelas tombadas. O estudo de
Lia Motta sobre Ouro Preto, publicado na O ano de 1989 foi decretado Ano
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Inventário, durante a gestão
Nacional n 22, de 1987, estabeleceu
o
de Ítalo Campofiorito como presidente do
97
parâmetros importantes para o debate Iphan. Esse evento anunciava as prioridades
sobre a gestão das cidades tombadas e da década seguinte.
servirá de ponte para refletirmos sobre os Após o desmonte do setor cultural
inventários. Embora o conceito de cidade- promovido pelo meteórico governo de
documento tenha sido inaugurado com os Fernando Collor de Mello, momento que
estudos de tombamento, como já vimos, ele apontamos como importante inflexão no
também foi utilizado nos inventários que campo do patrimônio, a sequência da década
se desenvolveram para subsidiar a gestão de 1990 foi marcada pelos oito anos de
do patrimônio tombado. Por isso, além dos governo neoliberal de Fernando Henrique
novos tombamentos de cidades, vale dizer Cardoso na presidência da República.
que as cidades com tombamentos anteriores, Marco Aurélio Santana (2003) afirma
cujos atributos apontados eram de ordem que ao mesmo tempo em que a mídia fazia a
estética, foram revisitadas sob a perspectiva defesa aberta do neoliberalismo, visto como
documental, especialmente, através da única alternativa para a crise econômica
metodologia do Inventário Nacional de global, o movimento sindical brasileiro sofria
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
98
Márcia Chuva Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
significativo refluxo, comparativamente ao regional em cada estado da federação
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
ressurgimento que teve no início dos anos (Motta: 2015).
A C I O N A L
1980. Vale dizer que no período surgiram Como vimos até aqui, ocorreram alterações
também as primeiras leis visando a indenização de ordem conceitual, que pretendiam romper
das famílias de opositores da ditadura militar a com as concepções hegemônicas civilizadoras.
NR T Í S T I C O
partir do reconhecimento de crimes de tortura Conhecer, identificar, documentar tornavam-
e morte cometidos contra eles pelo Estado. se ações tão importantes para a preservação
A
Foram emblemáticos os casos de Carlos do patrimônio quanto proteger e conservar.
E
Lamarca e Carlos Marighella (Prado, 2004). O inventário passava a ser um modo de
I S T Ó R I C O
Segundo Santana, “Fernando Henrique preservação do patrimônio cultural, segundo a
assumirá como insígnia de seu governo tese defendida por Paulo Ormindo de Azevedo,
H
‘o fim da era Vargas’ e de tudo o que ela ainda nos anos 1980 (Azevedo, 1987).
A T R I M Ô N I O
representava” (2003:302). Na economia, foi o Havia experiências de inventários de
início de um processo tanto de flexibilização varredura, em escala regional (Motta e
P
das leis trabalhistas e da Consolidação das Rezende, 1998), mas foi nos anos 1980 que
D O
Márcia Chuva
Leis do Trabalho – CLT, responsabilizada teve início o desenvolvimento de metodologias
E V I S T A
então por dificultar a geração de empregos, de inventário para aplicação em nível nacional,
com a preocupação voltada para subsidiar
R
por causa dos encargos patronais por ela
gerados, quanto de redução do Estado, nos a gestão do bem tombado, cada vez mais
moldes da cartilha neoliberal. atingido pelas pressões do crescimento urbano,
Nessa esteira, uma série de medidas buscando, ao mesmo tempo, dar transparência
atingiu a gestão de Francisco Weffort no às ações institucionais e assistir às demandas
Ministério da Cultura, que manteve um das populações atingidas.
pequeno quadro de funcionários, bem As metodologias que foram então
concebidas tiveram larga aplicação no período, 99
como uma estrutura institucional reduzida.
Nenhuma Superintendência Estadual do principalmente por constituírem a principal
Iphan surgiu após 1990, ano de criação da ação de fortalecimento institucional do
Superintendência do Paraná, até 2002, ano Programa Monumenta (Duarte, 2010). Foram
de criação da Superintendência do Distrito elas o Inventário Nacional de Bens Móveis
Federal. Esses dados tornam-se expressivos e Integrados – INBMI (com o objetivo de
se considerarmos a ampliação das atribuições controle do tráfico ilícito de bens culturais) e
institucionais que a Constituição Federal o Inventário Nacional de Bens Imóveis: Sítios
havia produzido. Significativos, também, Urbanos Tombados – INBI-SU (aplicado em Matriz de Tiradentes, MG
Acervo: Iphan/
Nelson Kon.
comparativamente, pois nos anos 1980 cidades tombadas)22.
haviam sido criadas as superintendências
22. O INBMI foi financiado por um convênio estabelecido com
do Ceará (1982), do Amazonas (1987) e a Fundação Vitae. O INBI-SU foi executado com recursos do
de Sergipe (1989) e, entre 2004 e 2009, Iphan e, posteriormente, com Recursos do Programa Monumen-
ta/BID, foi aplicado em inúmeras cidades tombadas. O manual
foram criadas mais onze superintendências, da metodologia e alguns resultados do INBI-SU foram parcial-
mente reproduzidos nas Publicações do Senado Federal (Rezende,
concluindo a meta de uma representação 2007, 2007a, 2007b, 2007c).
O INBI-SU adotava a noção de O
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
PAT R I M Ô N I O D E
cidade-documento. Compreendendo a DUAS DÉCADAS
A C I O N A L
histórica sobre a forma urbana, bem na sociedade civil nos anos 1980, como
E
I S T Ó R I C O
Márcia Chuva
Po s s í ve i s n a r r at i va s s o b re d u a s d é c a d a s d e p at r i m ô n i o : d e 1 9 8 2 a 2 0 0 2
vimos nas palavras de Gilberto Velho (1984).
A C I O N A L
As políticas de patrimônio, portanto, AGUIAR, Marco Alexandre. As décadas de 80 e
90: transição democrática e predomínio neoliberal.
não visam mais propriamente evitar a
Contemporâneos – Revista de Artes e Humanidades, nº 7,
destruição do passado, elas estão enraizadas
N
nov-abril, 2011.
R T Í S T I C O
na vida, no presente. Também não parece ARANTES, Antonio Augusto. “Sobre inventários e
possível falar em patrimônio cultural hoje outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio
cultural intangível: ensaio de antropologia pública”. In:
A
sem considerarmos sua natureza relacional, Anuário antropológico 2007-2008. Rio de Janeiro, 2009.
E
intersetorial e interdisciplinar, suas conexões
I S T Ó R I C O
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com áreas variadas e diversos agentes sociais Referências Culturais. Entrevista com Antonio Augusto
Arantes. Revista CPC, São Paulo, nº 20, dez. 2015 p.
envolvidos. A profissionalização e as tensões
221–260.
H
que se instalaram na área do patrimônio são
A T R I M Ô N I O
ARRUTI, José Maurício. “Quilombo”. In: PINHO,
aspectos que apenas se esboçavam nas décadas Osmundo (org.). Raça: perspectivas antropológicas.
Campinas: ABA/Ed. Unicamp/Edufba, 2008.
de 1980 e 1990.
AZEVEDO, Paulo Ormindo. Por um Inventário do
P
A perspectiva estética e civilizadora
D O
Patrimônio Cultural Brasileiro. Revista do Patrimônio
Márcia Chuva
que fundou as práticas de preservação do Histórico e Artístico Nacional, nº22, 1987.
E V I S T A
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R
AZEVEDO, Paulo Ormindo; CORRÊA, Elyane Lins
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análise buscou explorar a simultaneidade de
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
eventos, questões, problemas e pensamentos, constituicaocompilado.html>.
a fim de que o leitor estabelecesse suas BRITO, Diogo de Souza. “A invenção da
próprias conexões, levantando ele também patrimonialização das culturas populares no Brasil: a 101
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104
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z O jogo de olhares
Andrey Rosenthal Schlee e
Her mano Fabrício Oliveira Guanais e Queiroz
A C I O N A L
O
N
JOGO DE OLHARES
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO Estabeleceu, portanto, de forma unilateral
e discricionária, o que se entendia como
Este artigo analisa os oitenta anos de “patrimônio histórico e artístico nacional”
P
ou que, atualmente, se considera como parte
D O
atuação do Instituto do Patrimônio Histórico
E V I S T A
e Artístico Nacional no sentido de preservar do “patrimônio cultural brasileiro”.
e salvaguardar bens materiais e imateriais que Embora o Brasil tenha acompanhado
R
constituem o chamado Patrimônio Cultural a discussão internacional que levou à
Brasileiro1. Considerando a amplitude da ampliação da noção de Patrimônio – com
ação institucional, concentra a análise apenas importante repercussão na Constituição
na aplicação de três instrumentos legais (o Federal de 1988 –, o principal documento
Decreto-Lei nº 25 de 1937, a Lei nº 3.924 legal aplicado para a proteção de bens
de 1961 e o Decreto nº 3.551 de 2000) e materiais permanece sendo o Decreto-
explora a contribuição dos quatro últimos lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. 105
presidentes: Maria Elisa Costa, Antonio Foi ele que instituiu o tombamento, ato
Augusto Arantes Neto, Luiz Fernando de administrativo de inscrição ou tombo de
Almeida e Jurema de Sousa Machado. um bem em livro apropriado, e definiu seus
De janeiro de 1937 a janeiro de efeitos, as limitações ao exercício do direito
PA R A O
arqueológico para monumentos arqueológicos EXCEPCIONAL
A C I O N A L
singulares para bens seriados; da vizinhança Melo Franco de Andrade estabeleceu uma
E
vez mais, em áreas que conhece menos. E que Mário de Andrade em São Paulo, do
D O
O jogo de olhares
Iphan, desde o primeiro momento, atuou ministrados por não arquitetos, como os
A C I O N A L
na quase totalidade de seis cidades ditas de Hanna Levy, Heloisa Alberto Torres ou
“históricas”. Afonso Arinos de Melo Franco;
N
Cabe perceber que o Decreto-lei nº 25 III. A promoção de pesquisas em
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
organizou a proteção do patrimônio, baseado arquivos de todo o país, de maneira a
na existência dos quatro “Livros do Tombo” confirmar a narrativa histórica adotada,
A
e não na indicação das tipologias de bens que como as conduzidas por Dom Clemente
E
Silva Nigra, Judite Martins ou Manoel
I S T Ó R I C O
poderiam ser protegidas. Dessa maneira, um
determinado bem só é considerado acautelado José de Paiva Jr.;
quando identificado(s) o(s) seu(s) valor(es) e IV. A colaboração com historiadores
H
A T R I M Ô N I O
após a sua inscrição em pelo menos um dos internacionais que validaram o caminho
livros: do Tombo Arqueológico, Etnográfico e adotado, entre eles o americano Robert
Paisagístico; do Tombo Histórico; do Tombo Smith, o francês Germain Bazin, o inglês
P
das Belas Artes; ou do Tombo das Artes John Bury e o português Mário Chicó;
D O
Aplicadas. V. A divulgação dos resultados obtidos,
E V I S T A
Foi a opção pelo jogo dos livros que principalmente por meio da sua Revista
R
garantiu a longa permanência e a atualidade ou da coleção de publicações do Serviço
do Decreto-lei nº 25, mesmo frente ao do Patrimônio.
processo de ampliação dos conceitos ou Em linhas gerais, o Iphan “deveria
da incorporação de novos bens ao rol do tratar das coisas móveis e imóveis com valor
patrimônio protegido. excepcional”, o que não incluía
Considerando a amplitude e a diversidade
(...) uma vasta quantidade de bens
da produção cultural brasileira – e baseado 107
culturais cuja preservação, embora de manifesta
nos conceitos de “tradição” e “civilização”
conveniência pública, escapa à alçada do serviço
– Rodrigo estabeleceu recortes temáticos e
mantido pela União (Andrade, 1968).
temporais bastante claros que permitiram
uma atuação segura da “repartição”4. Para
Rodrigo chegou a citar algumas categorias
tanto, simultaneamente, lançou mão das
de bens que, na sua opinião, não deveriam
estratégias seguintes:
ser consideradas pelo Iphan: os documentos
I. A definição de uma narrativa
históricos; parcelas apreciáveis do espólio
histórica única e linear capaz de legitimar
de obras de arte antiga e de artesanato
as ações e escolhas do Iphan, elaborada
tradicional; sítios urbanos e rurais em que
pelo próprio Rodrigo e pelo arquiteto
predominam os traços de ancianidade,
Lucio Costa;
de pitoresco ou de beleza de paisagem;
II. A qualificação do quadro de
edificações que, conquanto não assumam a
importância de monumentos nacionais, são,
4. Maneira carinhosa como Rodrigo Melo Franco se referia ao
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. contudo, produções genuínas de arquitetura
brasileira, popular ou o seu tanto eruditas; valor estético (mas sempre excepcionais).
O jogo de olhares
em todo o Brasil, com destaque para Minas por solicitação externa para evitar sua
Gerais e para o que ficou conhecido como destruição devido à construção de uma usina
H
(capelas, matrizes e mosteiros), militares eram bastante sucintos, muitas vezes não
E V I S T A
O jogo de olhares
novos bens arqueológicos, que passaram a demonstrando maior interesse da sociedade.
A C I O N A L
ser geridos por outra lógica (a do resgate e da Tais processos levaram o Iphan a refletir sobre
interpretação), e os poucos processos abertos a sua capacidade de, isoladamente, continuar
foram indeferidos. Entretanto, a partir de a promover a preservação do patrimônio
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
1985 nota-se um ligeiro aumento do número cultural no país. Buscando enfrentar o novo
de processos abertos (a maioria arquivado), contexto, Soeiro reescreveu as estratégias de
A
sendo tombados o Parque Nacional da Serra Rodrigo em outros termos, propondo:
E
da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI), I. A manutenção da narrativa histórica
I S T Ó R I C O
e a Ilha do Campeche, em Florianópolis (SC), única e linear, admitindo a existência
além de uma coleção de artefatos, também de bens com importância estadual ou
H
em Florianópolis (SC). municipal e semeando a ideia de um
A T R I M Ô N I O
Por força da Lei nº 3.924, os sistema nacional de patrimônio;
monumentos arqueológicos ou pré-históricos II. A organização de cursos para a
P
de qualquer natureza existentes no território formação de técnicos aptos a atuar nos
D O
nacional e todos os elementos que neles se diferentes órgãos de patrimônio em todo
E V I S T A
encontram estão sob a guarda e proteção o país, como os cursos ofertados em São
R
do poder público. O Centro Nacional de Paulo, em 1974; Recife, em 1976; Minas
Arqueologia – CNA, ligado ao Iphan, é Gerais, em 1978; e Salvador, em 1980;
o responsável pela gestão do patrimônio III. A articulação do Iphan com
arqueológico, que atualmente conta com outros ministérios no sentido de
cerca de 24 mil sítios cadastrados, envolve construir políticas e programas voltados,
quatrocentas instituições de pesquisa e guarda principalmente, para a preservação dos
e acompanha, aproximadamente, 10 mil conjuntos monumentais e para o fomento
109
projetos de pesquisa autorizados. ao turismo;
Rodrigo manteve-se na presidência IV. A colaboração com consultores
do Iphan até 1967, sendo substituído internacionais indicados pela Unesco,
pelo arquiteto Renato de Azevedo Duarte como Graeme Shankland, Paul
Soeiro, que dirigiu a instituição por mais Coremans, Michel Parent, Frédéric
doze anos. Foi quando teve início uma Limburg de Stirum e Evandro Evangelista
primeira revisão ou redefinição da política Viana de Lima;
institucional. Em virtude da crescente V. A manutenção da Revista do
expansão urbana pela qual passava o país e Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
do consequente aumento da demanda por Em 1970 e 1971 o Ministério da
áreas urbanizadas – impactando fortemente Educação e Cultura promoveu dois
os conjuntos protegidos e a ambiência dos Encontros de Governadores, propondo aos
monumentos isolados –, observou-se uma estados e municípios o compartilhamento
forte preocupação com o entorno desses e a descentralização da responsabilidade
bens. Por outro lado, ocorreu um aumento pela preservação do patrimônio cultural.
Simultaneamente, em 1973, foi instituído o Entretanto, devido a um maior rigor técnico
O jogo de olhares
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
valores estéticos e eruditos, associados a uma Foi ele quem “substituiu o patrimônio
D O
elite política e às classes dominantes. Nesse histórico e artístico de Rodrigo pela noção
E V I S T A
sentido, as discussões capitaneadas pelos de bens culturais” (Porta, 2012). Se, até
folcloristas, das décadas de 1940 a 1960, os então, o Patrimônio trabalhava com os
R
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
P
D O
E V I S T A
R
da apresentação de candidaturas à lista do bens relacionados a minorias ou a grupos Caboclinho,
Pernambuco
Patrimônio Mundial: Ouro Preto (1980) até então não reconhecidos, tais como Acervo: Iphan/
Felipe Peres.
proteção das “manifestações das culturas ampliação das inscrições no Livro do Tombo
A C I O N A L
civilizatório nacional” . 7
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Osvaldo Cruz em 1981, do Hospital São dada aos templos religiosos a seus acervos
E
Enfermagem Ana Neri em 1986, todos no retroativos sobre 385 monumentos. Fato que,
Rio de Janeiro (RJ), bem como da Casa de por um lado, garantiu coerência à preservação
H
Tito Silva em 1984, como modelo de saberes documentação desse acervo. Problema ainda
D O
1985, no centro de Antônio Prado (RS); Os anos 1980 também foram marcados
R
O jogo de olhares
para novos servidores . Observou-se também
8
Serro e das Serras da Canastra e do Salitre; o
A C I O N A L
a ampliação efetiva dos instrumentos de Modo de Fazer Cuias do Baixo Amazonas;
acautelamento. o Modo de Fazer Viola de Cocho; o Modo
de Fazer Renda Irlandesa de Sergipe; o
N
Em 2000, durante o governo de Fernando
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Henrique Cardoso e com Carlos Heck Ofício das Baianas de Acarajé; o Ofício
na presidência do Iphan, foi constituído das Paneleiras de Goiabeiras; o Ofício dos
A
um Grupo de Trabalho do Patrimônio Mestres e a Roda de Capoeira; o Ofício
E
Imaterial com a finalidade de regulamentar de Sineiro e o Toque dos Sinos em Minas
I S T Ó R I C O
o instrumento legal do Registro, previsto no Gerais; a Produção Tradicional e Práticas
art. 216 da Constituição Federal de 1988, Socioculturais Associadas à Cajuína no Piauí;
H
os Saberes e Práticas Associados aos Modos
A T R I M Ô N I O
em consequência do célebre Seminário de
Fortaleza (1997). Após dois anos de estudo e de Fazer Bonecas Karajá; o Sistema Agrícola
discussão, foi publicado o Decreto nº 3.551, Tradicional do Rio Negro; o Círio de Nossa
P
que instituiu o Registro de Bens Culturais de Senhora de Nazaré; o Complexo Cultural
D O
Natureza Imaterial, concretizando finalmente do Bumba-meu-boi do Maranhão; a Festa
E V I S T A
as reivindicações já propostas por Mário de do Divino Espírito Santo de Paraty; a Festa
R
Andrade, pelos folcloristas e no âmbito do do Divino Espírito Santo de Pirenópolis; as
CNRC. O Registro foi, então, o instrumento Festividades do Glorioso São Sebastião na
adequado à preservação dos bens culturais Região do Marajó; a Festa do Pau da Bandeira
intangíveis. Adotando desenho semelhante ao de Santo Antônio em Barbalha; a Festa
proposto pelo Decreto-lei nº 25, o Decreto de Sant´Ana de Caicó; a Festa do Senhor
nº 3.551 também estabeleceu quatro livros, Bom Jesus do Bonfim; o Ritual Yaokwa do
mas definidos por tipologias de bens: a dos Povo Indígena Enawenê Nawê; a Romaria
113
Saberes, a das Celebrações, a das Formas de Carros de Bois da Festa do Divino Pai
Eterno de Trindade; a Arte Kusiwa – Pintura
de Expressão e a dos Lugares. Assim, um
Corporal e Arte Gráfica Wajãpi; o Carimbó;
determinado bem de natureza imaterial só é
o Cavalo-Marinho; o Fandango Caiçara; o
considerado acautelado quando, após passar
Frevo; o Jongo no Sudeste; os Caboclinhos;
pelo processo de identificação, fundamentado
o Maracatu Nação; o Maracatu de Baque
na mais ampla participação social, é inscrito
Solto; as Matrizes do Samba no Rio de
num dos quatro Livros de Registro.
Janeiro (Partido Alto, Samba de Terreiro e
Estabelecida a política institucional com
Samba-Enredo); Rtixòkò: Expressão Artística
base no Programa Nacional do Patrimônio
e Cosmológica do Povo Karajá; o Samba de
Imaterial, desde 2000, foram registrados os
Roda do Recôncavo Baiano; o Tambor de
seguintes bens imateriais: o Modo Artesanal
Crioula do Maranhão; o Teatro de Bonecos
está ameaçando sofrer um incêndio para intervenções cirúrgicas radicais num paciente
com a resistência já abalada, pode significar
depois de amanhã?” (Costa, 2004). Ou seja, o
destruir o que existe de positivo. A precariedade
retorno ao patrimônio de Rodrigo e de Lucio.
da situação do Iphan é notória, com carências 115
Novamente a “pedra e cal”. Na verdade,
de toda ordem – de recursos humanos,
um profundo carinho familiar fez com que materiais, financeiros, etc., etc., carências
Maria Elisa concentrasse esforços no resgate essas que geraram consequências negativas no
das tradições construídas e consolidadas próprio comportamento interno da Instituição,
pelo próprio Iphan, especialmente aquelas tais como a dificuldade de integração dentro
relacionadas com o patrimônio material. da área central, com problemas entre Rio e
PA R A F O R A
de forma inequívoca a necessidade de proceder
a uma reestruturação organizacional do Iphan
A C I O N A L
(Costa, 2004).
D O
Com a inesperada saída de Maria Elisa, não estão apenas vinculadas ao conceito de
o antropólogo Antonio Augusto Arantes excepcionalidade, mas principalmente ao exercício
assumiu a instituição. Além de uma sólida de cidadania. Além disso, elas passaram a
considerar a dimensão territorial desse patrimônio.
carreira acadêmica, o novo gestor já tinha
Por essa razão, sua integração às demais políticas
administrado o Conselho de Defesa do
públicas, em busca de uma relação sincrônica e
Patrimônio Histórico, Arqueológico, diacrônica com o desenvolvimento e o futuro, deve
116 Artístico e Turístico do Estado de São apontar para além do que tem sido nossa atuação
Paulo – Condephaat, entre 1983 e 1984, e histórica (Almeida, 2012).
produzido um conjunto de textos basilares
sobre o Patrimônio Cultural, especialmente Assim como fizeram os principais
sobre sua dimensão imaterial. Arantes presidentes que o antecederam, Luiz
concentrou-se em três desafios centrais: o do Fernando também estabeleceu estratégias para
fortalecimento da autarquia por meio da sua a atuação do órgão:
reorganização administrativa, o da realização I. A adoção de uma nova narrativa,
do denominado “primeiro concurso a do patrimônio como instrumento
público” e o da consolidação da política de construção de políticas nacionais:
de salvaguarda do patrimônio imaterial. Território + Sociedade = Política
Embora tenha obtido sucesso em todos, viu Patrimonial;
seu mandato subitamente reduzido frente a II. A reorganização institucional, com a
um embate interno com os superintendentes presença do Iphan, por meio de suas supe-
da Instituição. rintendências, em todos os estados e DF;
III. A articulação do Iphan com outros apostando na internalização dos avanços
O jogo de olhares
ministérios, principalmente com o da ocorridos no país e no próprio Iphan.
A C I O N A L
Educação e o das Cidades; Seu primeiro discurso como presidente,
IV. A institucionalização do Programa realizado na entrega do Prêmio Rodrigo Melo
N
Monumenta e criação do PAC- Cidades Franco, em 2012, demonstrou sua refinada
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Históricas; consciência do presente e seu combativo
V. A apresentação de candidaturas compromisso com a realidade institucional:
A
“polêmicas” à lista do Patrimônio
E
Refletindo sobre a trajetória do Iphan, quero
I S T Ó R I C O
Mundial: Rio de Janeiro (2012) e Cais do
Valongo (2017); revelar que a minha identidade com o projeto
em curso reside na crença em uma prática de
VI. A aposta no Sistema Nacional de
H
patrimônio radicalmente aderida ao presente. É o
A T R I M Ô N I O
Patrimônio Cultural.
que tento explicar melhor. O tempo, mais do que
Sobre a narrativa então adotada, explicou o passado e a memória, é a matéria do Iphan. Essa
Luiz Fernando: não é a única leitura possível, mas é, com certeza,
P
D O
uma das formas de se descrever os agora 75 anos
Acredito que o grande salto conceitual,
E V I S T A
dessa instituição. No projeto modernista de Mário
que aconteceu principalmente a partir dos anos de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade,
R
1980, foi entender que o conceito de patrimônio transparece a ideia de um tempo que descreve um
não estava mais somente vinculado a uma ideia percurso evolutivo, um traçado unificador ligando
de excepcionalidade, mas que estava ligado à o passado colonial ao Moderno. O projeto de
ideia de direito à cidadania e à de que, onde Aloisio Magalhaes talvez possa ser representado
houvesse território e onde houvesse pessoas, onde por um tempo não linear, que admite e valoriza a
houvesse gente e houvesse terra, haveria de existir simultaneidade do tempo lento da tradição com
uma política de patrimônio... Então, a ação da a instabilidade do contemporâneo. Sem medo de
instituição deixa de estar localizada em pontos personalismos, digo que o tempo do Iphan nesses 117
específicos do território e passa a abranger a sua anos em que foi dirigido pelo Luiz Fernando é o
globalidade. Deixa de fazer a gestão somente dos tempo presente. Aquele ao qual Drummond dizia
sítios históricos, por exemplo, e passa a ser uma estar irremediavelmente atado: “o tempo presente,
instituição que estimula a formação de políticas dos homens presentes, da vida presente”. No
de patrimônio nos estados, nos municípios, para entanto, o presente do patrimônio não é aquele
promover o fortalecimento da sociedade civil sob o domínio do efêmero e do imediato, mas o
(Almeida, 2012). que resulta do acúmulo e da experiência. É o que
nos permite reagir à angústia da obsolescência e
OLHAR PA R A D E N T R O desfrutar de registros da memória inseridos entre
nós como contrapontos que nos fazem olhar com
mais lucidez à nossa volta. Olhar e perguntar sobre
A arquiteta Jurema Machado exerceu a
a arquitetura, as cidades e os espaços públicos
direção do Iphan em um momento de difícil
que estamos produzindo; sobre como anda a
inflexão da vida nacional. Já não mais havia nossa capacidade de criar e inovar, ou para onde
a estabilidade e o vigor político-econômico caminham as nossas formas de sociabilidade e
dos tempos de Lula. Trabalhou, no entanto, a nossa relação com o ambiente. Estar atado ao
presente significa também buscar nossos ritos, colonial; o Paraná, com os tombamentos de
O jogo de olhares
línguas e conhecimentos tradicionais, não para olhar Antonina e Paranaguá, associados ao primeiro
para eles com complacência, mas entender o que
A C I O N A L
que elas traçam: diferenças de tempos, étnico-raciais, atualmente com nove bens protegidos.
E
I S T Ó R I C O
O jogo de olhares
reconhecidos como patrimônio cultural, 84
ALMEIDA, Luiz Fernando de. Patrimônio cultural e
A C I O N A L
correspondem a conjuntos urbanos, tais como
desenvolvimento sustentável. Brasília: Iphan, 2012.
Ouro Preto, Diamantina, Goiás e Brasília, ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Âmbito do
e alguns bens imateriais estão presentes em Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Revista
A n d r e y R o s e n t h a l S c h l e e e H e r m a n o Fa b r í c i o O l i v e i r a G u a n a i s e Q u e i r o z
R T Í S T I C O
Cultura, nº 7, Rio de Janeiro, p. 32-35, 1968.
todo o território nacional, a exemplo da Roda
COSTA, Maria Elisa. Ata da 39ª reunião do Conselho
de Capoeira. Consultivo do Patrimônio Cultural, 14/8/2003. Portal
Iphan. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/
A
Pensar no futuro do Iphan, ou mesmo
E
atasConselho>.
no futuro da noção de Patrimônio Nacional,
I S T Ó R I C O
COSTA, Maria Elisa. Entrevista a Antônio Agenor
implica em perceber que o acautelamento Barbosa. Portal Vitruvius, abr.2004. Disponível
de bens não pode significar um “fim em em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
H
entrevista/05.018>.
si mesmo”. Ao contrário, reconhecer a
A T R I M Ô N I O
FIGUEIREDO, Vanessa Gayego Bello. Da tutela dos
importância de um “monumento” (daqueles monumentos à gestão sustentável das paisagens culturais
complexas: inspirações à política de preservação cultural
bens que, independentemente de sua natureza
no Brasil. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-
P
material ou imaterial, são legitimamente Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP.
D O
escolhidos como representativos das São Paulo, 2014.
E V I S T A
MACHADO, Jurema. Discurso. Documento inédito,
referências culturais de uma comunidade)
2012.
exige diálogo com toda a sociedade, de
R
PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio
maneira que ela possa assumir – direta e cultural no Brasil. Diretrizes, linhas de ação e resultados:
2000/2010. Brasília: Iphan, 2012.
conscientemente – a sua real conservação e SCHLEE, Andrey Rosenthal. Brasil, 80 anos protegendo
salvaguarda. No mesmo sentido, o resultado um patrimônio. In: FÓRUM INTERNACIONAL DO
de oitenta anos de política de preservação PATRIMÓNIO ARQUITETÓNICO PORTUGAL/
BRASIL. Universidade de Aveiro. Aveiro, mai.2017.
no Brasil aponta para a construção de
um novo modelo da gestão de tamanho
acervo patrimonial. Uma gestão sistêmica, 119
120
Már io Chagas Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
Már io Chagas
A C I O N A L
M USEUS E PATRIMÔNIOS :
N
POR UMA POÉTICA E UMA POLÍTICA DECOLONIAL
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
(...) agora vejo que vós outros maírs sois INTRODUÇÃO
grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis
grandes incômodos, como dizeis quando aqui
O artigo que aqui se inicia está dividido
P
chegais, e trabalhais tanto para amontoar
D O
riquezas para vossos filhos ou para aqueles que em oito fragmentos, ao longo dos quais se
E V I S T A
vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu examina a política de cultura que esteve
suficiente para alimentá-los também? Temos pais, especialmente voltada para o campo dos
R
mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos museus e dos patrimônios nas décadas de
de que depois de nossa morte a terra que nos 1930 e 1940 e posteriormente durante os
nutriu também os nutrirá, por isso descansamos
primeiros dezesseis anos do século XXI. Num
sem maiores cuidados. (Fala atribuída a um velho
movimento pendular, com idas e vindas,
tupinambá registrada no livro Viagem à terra do
Brasil, de Jean de Léry). pretende-se reconhecer que essas políticas,
desde muito tempo, operam com recuos e
121
avanços e que todas elas estão atravessadas por
questões que dizem respeito à modernidade e
à colonialidade, bem como aos movimentos Ruína de São Miguel
das Missões
de decolonidade. Acervo: Iphan/
Leonid Streliaev.
Nesses oito fragmentos discute-se a A esse respeito, Luciana Ballestrin (2013)
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
modernidade dos museus e dos patrimônios esclarece que a opção pela palavra decolonial
A C I O N A L
decolonial.
D O
A C I O N A L
Esse é o caso dos trabalhos desenvolvidos
por Nise da Silveira (Museu de Imagens A cidade de Ouro Preto foi tombada
do Inconsciente), Darcy Ribeiro (Museu
N
como patrimônio brasileiro pelo Serviço do
R T Í S T I C O
do Índio) e Abdias do Nascimento (Museu Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
de Arte Negra). Mas, ainda assim, é – Sphan no dia 20 de abril de 1937, dois
A
importante ressaltar, por um lado, que essas dias após o primeiro aniversário da gestão de
E
são experiências desenvolvidas num tempo
I S T Ó R I C O
Rodrigo Melo Franco de Andrade à frente
em que a cidade do Rio de Janeiro era o
do órgão e um dia antes do 145º aniversário
Distrito Federal e, por outro, que a “história
de morte de Tiradentes. No final de 1938,
H
da museologia” carioca não está autorizada
A T R I M Ô N I O
o Museu da Inconfidência foi criado por
a traduzir e falar em nome da história da
lei, mas a sua instalação só viria a acontecer
museologia brasileira. Esse é um problema
seis anos depois, no antigo edifício da
Már io Chagas
P
sério e que tem graves repercussões na
D O
Casa de Câmara e Cadeia3 da cidade de
atualidade.
E V I S T A
Ouro Preto, no dia 11 de agosto de 1944,
Nos anos de 1980 e 1990, outras
quando se comemorava o bicentenário de
R
experiências inovadoras foram colocadas em
nascimento do poeta e inconfidente Tomás
movimento. Nesse contexto destacam-se o
Antônio Gonzaga. Todas essas datas estão
I Encontro Internacional de Ecomuseus,
carregadas de intencionalidade. Nelas não há
realizado em 1992 na cidade do Rio de
ingenuidade ou acaso; ao contrário, resultam
Janeiro (RJ), antes da ECO 92, e o Seminário
de escolhas precisas e amparam-se no desejo
Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas
de construção de outras memórias e histórias,
de Preservação, realizado em novembro
de ocupação política e poética do passado, do 123
de 1997 na cidade de Fortaleza (CE). Este
presente e do futuro.
último foi responsável pela elaboração da
A decisão tomada em 1936 pelo
Carta de Fortaleza, que teve papel decisivo
para a construção do dispositivo legal presidente Getúlio Vargas de transferir para o
conhecido como Decreto nº 3.551, de 4 de Brasil os restos mortais dos inconfidentes que
agosto de 2000, que instituiu o Registro de haviam sido degredados para a África pela
Bens Culturais de Natureza Imaterial que Coroa Portuguesa no final do século XVIII
Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro fazia parte dos movimentos políticos que
e criou o Programa Nacional do Patrimônio buscavam acionar memórias de resistência do
Imaterial. período colonial. Todos esses gestos políticos
Por fim, o artigo que quer ser lido destaca
2. Paráfrase dos dois primeiros versos da letra da música
algumas experiências de museus realizadas a Trastevere, de autoria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos,
partir de 2006 em sintonia com a chamada incluída no álbum Minas, de 1975.
3. Permanece como um desafio o estudo da relação entre poder,
Museologia Social. resistência, memória e esquecimento, particularmente no que
se refere aos museus instalados em antigos prédios de Câmara e
Cadeia.
e poéticos estavam vincados por interesses 2. O
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
PAT R I M Ô N I O TA M B É M
ancorados nas relações entre memória e É MODERNO
A C I O N A L
organização popular.
A T R I M Ô N I O
A C I O N A L
de museus. Concentrar a prática social dos missioneiro foram registrados em 1938 como
museus e patrimônios na Região Sudeste e patrimônio histórico e artístico nacional
nas capitais não contribuiria para a expansão no Livro do Tombo das Belas Artes. Nesse
N
R T Í S T I C O
da noção de patrimônio nacional e menos mesmo ano foi iniciada a construção do
ainda para a sua preservação. É possível singelo edifício do museu projetado por
A
imaginar que essa estratégia de política Lucio Costa. Dois anos depois, ou seja, em
E
cultural tenha dado ao Iphan o sentido de sua 1940, o museu foi juridicamente instituído e,
I S T Ó R I C O
existência. em 1942, aberto ao público.
Essa orientação estruturante foi Na região das Missões, que hoje se
H
evidenciada durante a inauguração do encontra nas fronteiras entre a Argentina, o
A T R I M Ô N I O
Museu da Inconfidência, em 1944, ocasião Brasil e o Paraguai, ao longo de 150 anos,
em que Rodrigo Melo Franco de Andrade entre os séculos XVII e XVIII, desenvolveu-
Már io Chagas
P
pronunciou um discurso que no campo se um projeto geral que articulava trinta
D O
dos patrimônios e museus ficou bastante povoados, com forte expressão cultural,
E V I S T A
célebre. Nesse discurso, além de desenhar religiosa, política e econômica e que
constituíam unidades urbanas distantes das
R
uma política para os museus e de sublinhar,
em nome do poder público, o desejo de cidades controladas pelas metrópoles.
interiorizá-los, dizia: Como indica Jean Baptista (2006:9):
tinha, por sua simplicidade arquitetônica e pela Museologia Social – que também pode
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museográfica, por sua abordagem temática ser considerada uma Museologia Insurgente,
e por sua proposta museológica, um aspecto nos termos de Boaventura de Souza Santos
inovador. Segundo Lucio Costa (1999:39): –, é romper com as camisas de força, com as
N
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muito lucrarão vistas assim em contato direto pela museologia colonialista que se estrutura
E
preferência, um dos extremos da antiga praça prática e que valoriza, de modo especial, a
para servir de ponto de referência e dar uma ideia
memória do poder.
melhor das suas dimensões.
Már io Chagas
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afetos políticos e afetos poéticos a favor quéchua); ao suma qamaña (em língua
da decolonização epistêmica, política, aymara) e ao tekó porã (em língua guarani).
N
econômica, social e cultural. Contra esses Talvez esse seja um desafio para os próximos
R T Í S T I C O
movimentos erguem-se sistematicamente vinte anos do Iphan.
os setores mais conservadores da sociedade Nesse sentido, a inscrição da Tava5 como
A
brasileira, utilizando como argumentos patrimônio imaterial, na categoria de Lugar
E
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a defesa da ordem e do progresso, do de Referência Cultural para o Povo Guarani,
patrimônio privado e do desenvolvimentismo. no Livro de Registro dos Lugares, é um forte
A decolonização do pensamento indicativo de que é possível pensar e trabalhar
H
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museológico, dos museus e dos patrimônios museus e patrimônios por outro caminho.
passa, em meu entendimento, pela atenção Na sociocosmogonia Guarani-Mbyá,
aos museus sociais e populares que no século os mais antigos, os mais velhos viveram
Már io Chagas
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XXI espalharam-se pelo Brasil, bem como na Tava e ali deixaram nas pedras as suas
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pela defesa da paisagem cultural, dos direitos marcas corporais. Na Tava, os ancestrais que
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da natureza e do patrimônio imaterial, com a se transformaram em imortais podem ser
R
consciência de que nada disso tem valor em si relembrados, assim como as “belas palavras”
e que tudo depende do uso que se faz desses do grande deus Nhanderu. Além disso, ela
conceitos e práticas sociais. (a Tava) também propicia a experiência do
Destaca-se aqui uma sugestão para futuras Bem Viver, do bom modo de viver e ser
investigações: como articular os conceitos de Guarani-Mbyá6.
museus e patrimônios em pegada decolonial
com as construções teóricas e práticas do 3. SINAIS POTENTES, 127
“bem viver”, nos termos sugeridos por SINGELOS E FRÁGEIS
Alberto Acosta (2016), especialmente em seu
livro O bem viver – uma oportunidade para A criação nos anos de 1940 do Museu
imaginar outros mundos? 4
das Missões e do Museu da Inconfidência,
O bem viver envolve as dimensões bem como a criação nos anos de 1950 do
filosófica, ética, poética, política, social e Museu de Imagens do Inconsciente7, do
econômica da vida em relação (mais ou
menos) harmônica com a natureza e com 5. Palavra formada pela junção de ita (pedra) e avá (homem,
mulher, ser humano, humanidade). Ver o parecer sobre o registro
os outros seres. O ponto de partida para a da Tava Miri São Miguel Arcanjo – Lugar de Referência Cultural
para os Guarani, assinado por Carla Maria Casara, datado de 3
construção de sua teoria e vivência são as de dezembro de 2014. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/
uploads/ckfinder/arquivos/Parecer%20Conselho_TAVA.pdf
sociocosmogonias e as visões de mundo dos (última consulta: 28 de abril de 2017).
6. Ver no Portal do Iphan a matéria “Tava, Lugar de Referência
denominados povos originários da América. para o Povo Guarani”. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/
pagina/detalhes/507/ (última consulta: 28 de abril de 2017).
7. Museu revolucionário criado em 1952, a partir do trabalho de
4. Ver o vídeo em https://www.youtube.com/ Nise da Silveira (1905-1999). O Museu ainda (r)existe, localizado no
watch?v=h4yK2ugTvWQ (última consulta: 28 de abril de 2017). bairro Engenho de Dentro, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.
Museu do Índio8 e do Museu de Arte Negra9 “O então diretor do Museu das Missões,
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
constituem sinais a favor da decolonização do Claudio Silva, permitiu aos Guarani vender
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Alguns museus criados pelo Sphan durante Ocuparam, inicialmente, uma casa em
o governo Vargas contribuíram, a princípio, ruínas, e, em seguida, foi construída uma casa de
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Már io Chagas
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“acervo jesuítico” e “barroco jesuítico”, 4. ALGUMA COISA Museu das Missões
Acervo: Copedoc/Iphan/
Silva Telles/Instituto
desconsiderando, assim, a força e a potência ESTÁ FORA DA ORDEM Moreira Salles.
Már io Chagas
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Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/
J.J.Steinmann.
do Diamante, em Diamantina (MG), 1950; Essa preocupação motivou a instalação de
o Museu das Bandeiras, em Vila Boa de instituições de cunho regional, como os
Goiás (GO), 1952; o Museu Victor Meirelles, museus regionais propriamente ditos, os
em Florianópolis (SC), 1952; o Museu museus temáticos de cunho local e os museus
Regional de São João del-Rei, em São João a céu aberto14.
del-Rei (MG), 1954; o Museu da Abolição, Uma definição explícita dessa categoria foi
130
no Recife (PE), 1957 e o Museu Casa da produzida durante a realização, entre os dias 7
Hera, em Vassouras (RJ), 1966, além dos e 30 de setembro de 1958, no Rio de Janeiro,
já citados Museu das Missões e Museu da do Seminário Regional da Unesco sobre o
Inconfidência . 13
Papel Educativo dos Museus15. No relatório
Por mais contemporâneo que fosse o final do Seminário16, há uma seção dedicada
pensamento do Iphan a respeito dos museus
regionais, essa não era uma categoria nativa; 14. Skansen, o primeiro museu a céu aberto, estruturado em
torno de uma coleção de casas trazidas de várias partes do interior
ao contrário, foi produzida fora do Brasil e do país, foi inaugurado em Estocolmo, em outubro de 1891,
por iniciativa de Arthur Hazelius. Ver a dissertação de Claudia
depois “antropofagizada”. Desde pelo menos Storino (2008).
15. Em 1952, em Nova York (EUA), foi realizado um Seminário
meados do século XIX já se manifestava, Internacional sobre o Papel Educativo dos Museus; em 1954,
em Atenas (Grécia), foi realizado outro Seminário Internacional
em diversos países, a preocupação com com o mesmo título. Em 1958, importa observar, foi realizado
na cidade do Rio de Janeiro (Brasil) o Seminário com o mesmo
a preservação de aspectos regionais da título, ainda que apelidado de Regional. Por que um Seminário
do ICOM e da UNESCO em Nova York é chamado de Interna-
cional e na cidade do Rio de Janeiro é chamado de Regional?
13. O critério para a citação desses museus é o período de gestão 16. Ver a íntegra do relatório de 1958, publicado em: http://
de Rodrigo Melo Franco de Andrade. unesdoc.unesco.org/images/0013/001338/133845so.pdf
aos museus regionais e nela se encontram, “turismo”, “desenvolvimento”, “museu”,
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museu, questões técnicas referentes aos seus naturalizado, mas, por trás do pano de
programas, sua organização, sua operação, boca há muita disputa de sentido, muita
seus métodos de trabalho e suas implicações disputa ideológica e um jogo de realidades e
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para o Conselho Internacional de Museus ilusões que exige do jogador atenção crítica
– Icom e para a América Latina. Nesse permanente. Há em relação a esse Seminário,
A
documento, o museu regional é conceituado que em 2018 completa sessenta anos, muitas
E
nos seguintes termos: histórias controversas, muitos não ditos que
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talvez precisem encontrar o caminho da
Um museu com um programa
topograficamente restrito pode ser considerado
dizibilidade.
H
De qualquer modo, é importante
A T R I M Ô N I O
”regional”, qualquer que seja sua localização, e um
museu distante de qualquer grande cidade pode registrar que os museus existentes no Brasil
também ser incluído nessa categoria, qualquer que até a década de 1980, de uma maneira
Már io Chagas
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seja seu programa; mas o genuíno museu regional, geral, reproduziam o modelo colonialista.
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o tipo mais bem qualificado para essa definição e A situação atual não é tão diferente, mas já
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que melhor adapta seus métodos para atender seu
apresenta exceções. O modelo colonialista de
objetivo particular é o museu situado a alguma
R
museu pode ser caracterizado pelos processos
distância de qualquer grande cidade, que cubra
administrativos hierarquizados, pela excessiva
assuntos de interesse tanto puramente regional
quanto universal. Esse tipo de museu atende valorização do patrimônio material, pelo
aos turistas, oferecendo-lhes um conhecimento baixo nível de participação, pelo preconceito
mais completo e sistemático da região que estão e discriminação em relação aos negros, aos
visitando, e também à comunidade local, para a indígenas, ao feminismo e ao movimento
qual ele é um recurso econômico como fator do LGBTQI e pela hipervalorização do “saber”
desenvolvimento do turismo e à qual ele serve, 131
do Icom, bem como do saber “acadêmico”,
ajudando-a a aprender mais sobre si mesma, bem
“teórico”, “técnico” e “científico”, em
como sobre o resto do mundo17.
detrimento de outros saberes.
A citação acima, ainda que longa, é
instigante e serviu de inspiração para reflexões 5 . M U S E U S E PAT R I M Ô N I O S
e práticas educacionais e comunitárias. Ainda (IN)DISCIPLINADOS
assim, é preciso reconhecer que nela há um
conjunto de problemas, entre os quais se Os museus públicos que foram vinculados
destacam os conceitos de: “grande cidade” ao Iphan e que hoje fazem parte do Ibram
(possivelmente algumas pequenas cidades – com raras e honrosas exceções – tendem a
nos anos de 1950, hoje, são grandes cidades. reproduzir a lógica da colonização, que, além
Brasília, que na ocasião estava em fase de de hierárquica, é autoritária e patrimonialista.
construção, é um bom exemplo), “região”, É possível estimular e contribuir para a
encarnação de processos museais fora dessa
17. Idem. lógica? Eu diria que sim. Mas, para isso é
preciso que existam outras forças, outras realizou-se a reunião internacional que
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
e luta, outras parcerias, outras lógicas [(in) Santiago do Chile. Os documentos gerados
disciplinares], outras formas de ser museu a partir dessa reunião são, ainda hoje, fontes
[(in)mundo] e de fazer e saber museologia de inspiração para muitas ações e projetos
N
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[(in)pura]; para isso é indispensável o diálogo que cuidam da função social dos museus.
com a contemporaneidade. Os museus A Recomendação sobre a Proteção e a
A
existem aqui e agora. O passado não está Promoção dos Museus e Coleções, de sua
E
do Nascimento enfrentaram, ao seu tempo Quae Sera Tamen (Liberdade ainda que
A T R I M Ô N I O
e ao seu modo, esse debate e deixaram tardia). É possível dizer que, 43 anos depois,
pistas, especialmente por intermédio dos os temas de fundo da Mesa Redonda de
Már io Chagas
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textos e das práticas em que se aplicaram. Santiago do Chile, bem como alguns temas
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As experiências por eles desenvolvidas foram do Movimento Internacional para uma Nova
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Varine-Bohan. Publicado em português,
A descolonização que se registrou mais tarde
espanhol e francês, com uma edição de foi política, mas não cultural; pode se dizer, por
N
grande tiragem e de caráter popular, o livro conseguinte, que o mundo dos museus, enquanto
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circulou e se espalhou com grande velocidade. instituição e enquanto método de conservação
O mundo dos museus, na ocasião, já havia e de comunicação do patrimônio cultural da
A
experimentado a crítica dos movimentos humanidade, é um fenômeno europeu que se
E
difundiu porque a Europa produziu a cultura
I S T Ó R I C O
sociais dos anos 1960 e 1970, incluindo aí o
dominante e os museus são uma das instituições
movimento estudantil, o movimento negro,
o movimento feminista e o movimento derivadas dessa cultura (1979:12-13).
H
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hippie, e também já havia passado pela Mesa A crítica de Varine-Bohan, como se vê, é
Redonda de Santiago do Chile (1972), pela contundente no que se refere à colonização
Revolução dos Cravos em Portugal (1974), cultural, mas é “polida” no que tange à
Már io Chagas
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pelas Lutas de Libertação Nacional dos países esfera política. Por isso mesmo, é preciso
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da África e pela guerra americana no Vietnã. aprimorar a sua crítica e reconhecer que,
Os jovens alinhados com a contracultura, mesmo em termos políticos e econômicos,
R
por todos os cantos e esquinas, manifestavam a descolonização, em muitos países, não
sua insatisfação com o sistema estabelecido e foi radical; não tocou nos problemas de
com as guerras; anunciavam uma “era de paz fundo, não enfrentou os latifundiários,
e amor” e produziam novos modos de vida e não combateu os preconceitos e continuou
novas formas de comportamento. A América submissa aos interesses políticos e econômicos
Latina vivia o drama das ditaduras militares, do grande capital com âncoras na Europa, nos
das torturas e das perseguições políticas e ao Estados Unidos e, posteriormente, na Ásia. 133
mesmo tempo dos movimentos de luta e de Waldisa Rússio, também em 1979,
resistência e, ainda assim, foi fortemente tocada durante um memorável encontro
pelos movimentos das juventudes rebeldes. denominado A Criança e o Museu, realizado
Na referida entrevista, Hugues de na cidade do Rio de Janeiro, no Museu do
Varine-Bohan considera que, a partir de Primeiro Reinado (Casa da Marquesa de
princípios do século XIX, o desenvolvimento Santos), apresentou-se com um expressivo
dos museus no mundo é um fenômeno conjunto de estudantes e cuidou para
puramente colonialista. Diz ele: que todos fossem protagonistas. O seu
pensamento museológico libertário, o seu
Foram os países europeus que impuseram aos
flerte anarquista com o anarquismo, as
não europeus seu método de análise do fenômeno e
patrimônio culturais; obrigaram as elites e os povos suas referências a Charles Chaplin e suas
destes países a ver sua própria cultura com olhos posições políticas decolonizadoras eram (e
europeus. Assim, os museus na maioria das nações continuam sendo) inspiradoras. Além disso,
são criações da etapa histórica colonialista (1979:12). num momento em que as posições políticas
majoritárias no campo da museologia, dos 5º) as suas referências, aulas e cursos que
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
sua obra aos textos que produziu e que apenas museologias e dos patrimônios é a recuperação
E
recentemente, ainda que em boa hora, foram da radicalidade criativa. Em outras palavras:
I S T Ó R I C O
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exerceu (e continua exercendo) um papel um conjunto notável de experiências
decolonial. museais fortemente ancoradas em saberes
O segundo documento, conhecido e fazeres que, durante muito tempo, foram
N
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como Carta de Salvador (2007), completa subalternizados e que passaram a assumir
na atualidade dez anos. Ele foi escrito e a produção e a escrita de suas próprias
A
produzido no âmbito das comemorações narrativas. Essas experiências rompem com
E
dos 35 anos da Mesa Redonda de Santiago os cânones estabelecidos, assumem os museus
I S T Ó R I C O
do Chile. Trata-se de um documento forte e os processos museais como ferramentas de
e radical e que merece atenção, mas a sua luta, reinventam poéticas e políticas museais
H
força e radicalidade não significam que ele e apontam na direção de uma museologia
A T R I M Ô N I O
tenha sido inteiramente aplicado. Em suma, libertária, comprometida com a vida.
é importante manter uma desconfiança A esse respeito o depoimento de Cícero
Már io Chagas
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sistemática dos documentos e fontes. Pereira, liderança indígena Kanindé, de
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De qualquer modo, em meu Aratuba (CE), é muito eloquente:
E V I S T A
entendimento, a Declaração de Fortaleza
O museu pros Kanindé é bisavô, é avô, é
(1997) e a Carta de Salvador (2007) são
R
pai e é mãe, porque é a história deles, a história
documentos que dialogam com o pensamento que tinha lá atrás, é o que a gente tem aqui. O
decolonizador e, por isso mesmo, é preciso museu pros Kanindé é vida. Nós gostamos do
visitá-los e é preciso fazer derivar deles museu o tanto que a gente gosta dos pais da gente,
contribuições para o fortalecimento dessa porque aí tem um pouco do retrato, da imagem
perspectiva. de tudo. Tem a imagem do peba, tem a imagem
do pote que foi feito antigamente. Tudo ali foi um
retrato dos nossos antepassados, retrato de quem
8. MUSEOLOGIA SOCIAL EM 135
construiu aquela história19.
MOVIMENTO (À GUISA DE
CONSIDERAÇÕES FINAIS) Por mais que alguns setores corporativos
e acadêmicos normativos tentem negar
Entre as experiências museais os saberes e os fazeres dessas e de outras
desenvolvidas nos anos de 1940 e as experiências, lançando mão de frágeis
experiências contemporâneas existem muitas argumentos de autoridade, pseudocientíficos
diferenças. Talvez o Iphan e o Ibram devessem e inteiramente descolados da empiria,
olhar com atenção para as iniciativas de a Museologia Social avança sem pedir
Museologia Social ou Sociomuseologia, permissão, produzindo novos saberes e fazeres
para os Pontos de Cultura, para os Pontos e afirmando cada vez mais a sua potência
de Memória e para as Casas do Patrimônio, como processo decolonial.
que trabalham com as noções de patrimônio,
memória social e processos museais em
19. Ver http://mkindio.blogspot.com.br/2014/06/objetos-e-me-
perspectiva decolonial. moria-kaninde.html
Há na atualidade um expressivo São Paulo (SP); Ponto de Memória Museu
Museus e patrimônios: por uma poética e uma política decolonial
Museologia Social do Rio de Janeiro22 e que poderiam ser citados são inspiradores de
I S T Ó R I C O
Rede dos Pontos de Memória e Iniciativas pesquisas, vídeos, palestras, artigos, cursos,
Comunitárias em Memória e Museologia exposições, manifestações artísticas, músicas,
H
Social do Rio Grande do Sul23. Esse também poesias, publicações e registros nas redes
A T R I M Ô N I O
território brasileiro. Aqui nomeio apenas Museologia Social e uma possível Museologia
D O
Favela (2008), Rio de Janeiro (RJ); Museu diálogo museus, patrimônios, museologias,
de Periferia (2009), comunidade popular artes, práticas, políticas e poéticas em
do Sítio Cercado, Curitiba (PR); Ponto de perspectiva decolonial. Oxalá, eu tenha tido
Memória de Terra Firme (2009), Belém algum êxito!
(PA); Ponto de Memória da Estrutural
(2009), Brasília (DF); Ponto de Memória
136 da Lomba do Pinheiro (2009), Porto
Alegre (RS); Ponto de Memória Museu
Comunitário da Grande São Pedro (2009),
Vitória (ES); Ponto de Memória Museu do
Taquaril (2009), Belo Horizonte (MG);
Museu Cultura Periférica (2009), Maceió
(AL); Museu Mangue do Coque (2009),
Recife (PE); Ponto de Memória do Grande
Bom Jardim (2009), Fortaleza (CE); Ponto
de Memória do Beiru (2009), Salvador
(BA); Museu Social da Brasilândia (2010),
A C I O N A L
ACOSTA, A. Bem viver – uma oportunidade para
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
138
Marcia Sant’Anna A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
Marcia Sant’Anna
A C I O N A L
A CIDADE - PATRIMÔNIO NO B RASIL :
N
LIÇÕES DO PASSADO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
R T Í S T I C O
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I S T Ó R I C O
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A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO com dados recentes colhidos entre 2014 e
20161. Essas pesquisas extrapolaram o âmbito
A questão da preservação e gestão do de minha prática profissional no Iphan, mas
P
se beneficiaram da minha vivência como
D O
patrimônio urbano, bem como a da sua
E V I S T A
conservação e utilização numa perspectiva servidora da instituição por 24 anos. Ao
do respeito à memória urbana, ao interesse longo desse período, tive a oportunidade
R
público e ao bem comum, me intriga e de participar de tarefas como a instrução de
ocupa boa parte do meu tempo como processos de tombamento de sítios urbanos, a
pesquisadora, desde o começo dos anos proposição de metodologias para a elaboração
1990. A despeito de ter passado os meus de normas e critérios de intervenção nessas
últimos anos envolvida com a implementação áreas, entre outras, que me deram acesso a
da política de salvaguarda do patrimônio documentos e procedimentos que foram
cultural imaterial, jamais a perdi de vista fundamentais para a construção do meu 139
uma espécie de síntese dos meus estudos, patrimônio e sua gestão naquele momento
A C I O N A L
dos seus oitenta anos, na esperança de que ideias iniciais e estabelecendo os contornos
possa contribuir para o enfrentamento fundamentais da prática. Contornos que,
A
não havia no mundo ocidental nenhuma institucional entre 1938 e os anos 1960,
E V I S T A
Marcia Sant’Anna
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“cidade-monumento”, então correntemente deveria ser notificado. Entendia-se, portanto,
utilizada pelos fundadores do Iphan. Essa que a gestão da cidade-patrimônio deveria ser
expressão vincula-se também à ideia de obra do município, mas a trajetória institucional
N
R T Í S T I C O
unitária que, para cumprir suas funções, logo mostrou a inviabilidade dessa ideia.
deve permanecer íntegra. Embora o seu Os anos 1930 constituíram um momento
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uso corrente tenha sido abandonado nos importante do processo de modernização do
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documentos do Iphan já nos anos 1950, a país na esfera pública e marcaram também a
I S T Ó R I C O
noção de cidade-monumento permaneceu ascensão e a progressiva hegemonia da noção
vigente, ainda que de modo não exclusivo, na de “moderno” como ideologia organizadora
H
prática de preservação até hoje em dia. do cenário social, cultural e artístico do
A T R I M Ô N I O
Mas o objeto de preservação – a período. Ser moderna era, assim, a obrigação
cidade – não funciona necessariamente de cada cidade e mesmo os fundadores
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em sintonia com o objeto idealizado – a do Iphan aceitavam essa ideia como um
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cidade-patrimônio. Desde cedo, o Iphan foi destino inexorável das grandes capitais e,
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Marcia Sant’Anna
obrigado a lidar com dinâmicas urbanas de por isso, nas primeiras décadas de atuação
R
crescimento e transformação, usando armas do Iphan, apenas edifícios isolados foram
legais e administrativas frágeis e inadequadas. aí protegidos. O tombamento de áreas
O instituto do tombamento, por exemplo, urbanas ficou, até o final dos anos 1950,
não explicita em seu texto nem um só efeito restrito a núcleos urbanos secundários e
direta ou claramente aplicável ao contexto que estavam mais ou menos à margem da
urbano. Rodrigo Melo Franco de Andrade vida socioeconômica e política da época.
sabia disso e, em correspondência enviada Nesses lugares, contudo, o desejo de ser
141
ao representante do Iphan em Diamantina , 3
moderno também imperava, o que levava
reconheceu o problema e explicitou o seu as prefeituras a rejeitar ou, no máximo,
entendimento do que seria um tombamento suportar os efeitos da patrimonialização.
dessa natureza. Nesse documento estão Além disso, a seleção de sítios urbanos para
explicitadas, pelo menos, duas concepções tombamento era completamente centralizada
iniciais importantes: a de que, no caso de e feita sem diálogo com as localidades, o que
extensos conjuntos urbanos, o objeto da afastava ainda mais as instâncias municipais
proteção é o que seria passível de apreensão e os habitantes da prática de preservação e,
pública, ou seja, os elementos físicos, naturais principalmente, do cumprimento de suas
e edilícios que compõem a paisagem urbana obrigações.
e lhe dão caráter; e que, como bem público O resultado, em geral, foi a crescente
pertencente a toda a cidade, a preservação da atuação do Iphan no lugar das instâncias
municipais, notadamente, nas tarefas de
3. Correspondência datada de 17/9/1941, que consta do processo licenciamento e fiscalização de intervenções.
de tombamento nº 64-T-38, da cidade de Diamantina, existente
no Arquivo Central do Iphan. Uma ação de gestão, portanto, muito
limitada, já que sem dispor das armas legais Estabeleceram-se, então, novas funções para as
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
revela na prática institucional, esse problema sua conservação. Esses novos papéis passaram
inaugural ainda caracteriza a gestão da a estruturar as iniciativas de planejamento e
A
maioria das áreas tombadas em nível federal. as intervenções nas cidades tombadas, bem
E
o avanço da industrialização do país nos anos O PCH pode ser considerado um marco
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1950 e com as novas dinâmicas urbanas que dessas mudanças, pois foi um importante
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Marcia Sant’Anna
Marcia Sant’Anna
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Em consonância com as diretrizes de ação, no começo dos anos 1980, quando a Forte São Marcelo,
Salvador
preconizadas pela Unesco nos anos 1960, o crise econômico-financeira fechou os fundos Acervo: Iphan/
Nilton Souza.
PCH se propunha a promover a conservação federais de fomento que supriam o PCH. Essa 143
sentido. Com a extinção desse banco público indeléveis deixadas pelo modo de conceber
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patrimônio, sem qualquer vínculo com a começo dos 1980 impactaram as operações
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Marcia Sant’Anna
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No que toca à gestão desse patrimônio, dos colonizadores portugueses, dos indígenas
para além do momento de integração e africanos, passaram a ser incluídos na
federal e estadual promovida pelo PCH, a
N
formação do Brasil os europeus e asiáticos
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incorporação das competências reguladoras, oriundos das levas de imigração dos séculos
licenciadoras e fiscalizadoras dos municípios XIX e XX. Os grupos sociais decorrentes
A
por parte do Iphan permaneceu sem dessa formação multicultural foram definidos,
E
alteração, exceto por algumas experiências no ainda, como sujeitos e intérpretes do
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Rio de Janeiro e em Recife, onde inciativas patrimônio, além de agentes fundamentais
pontuais de normatização de setores para sua conservação e gestão. Embora tenha
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protegidos em conjunto com organismos
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sido proferida fora do contexto de elaboração
municipais tiveram lugar nos anos 1950 e da nova Constituição, uma frase de Aloisio
19706. O problema inicial da articulação Magalhães, ideólogo e impulsionador da
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com os municípios permaneceu, contudo, retomada da noção ampla de patrimônio
D O
basicamente inalterado. proposta por Mário de Andrade nos anos
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Marcia Sant’Anna
1930 e da revolução conceitual operada no
UMA REVOLUÇÃO
R
campo da preservação, com a criação da
CONCEITUAL E POLÍTICA Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM8,
expressa bem o espírito da Carta Magna
Os anos 1980 foram marcados, no de dessacralização do patrimônio e de sua
Brasil, pelo fim de uma ditatura militar vinculação ao cotidiano e à vida das pessoas:
de quase vinte anos, pelas consequências “o melhor guardião de um bem cultural é o
da crise econômica e financeira dos anos seu dono” (Magalhães, 1985:186).
145
1970 e pelo processo de redemocratização Se é certo que essas novas concepções
do país. Na área da cultura esse processo
encontraram eco no discurso e espaço
configurou-se de forma intensa, culminando
nas ações e projetos da FNPM, pouco
na afirmação da cultura como um direito
repercutiram no Iphan daquela época. A
fundamental dos cidadãos brasileiros e no
forma centralizada e mesmo, por vezes,
estabelecimento de uma nova concepção de
autoritária de decidir o que tombar e como
patrimônio cultural na Constituição de 1988,
gerir o bem tombado se manteve na maioria
que, conceitualmente, pôs por terra àquela
dos casos, embora, no que toca ao patrimônio
praticada desde os anos 1930. O patrimônio
urbano, tenham ocorrido importantes
foi redefinido em múltiplas expressões e nas
avanços. No plano conceitual, cabe ressaltar
suas dimensões material e imaterial, e mesmo
7. Artigo 216 da Constituição Federal.
6. São exemplos, nesse sentido, as normas estabelecidas para o 8. Em 1979 criou-se o sistema Sphan/FNPM (extinto em 1990),
conjunto da Igreja e Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, e do no qual a antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Pátio de São Pedro, no centro de Recife, na década de 1950, bem Nacional conservava a natureza de unidade da administração
como as referetes aos morros da Urca, Pão de Açúcar, Babilônia e pública direta com poder de polícia, e a FNPM atuava como seu
Cara de Cão, nos anos 1970, no Rio de Janeiro. braço financeiro e executor.
a emergência de uma nova concepção de a manutenção das marcas deixadas pela
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
espaço urbano. Essa nova concepção, que, em como “anomalias” ou “falsas arquiteturas”
oposição à anterior, proponho denominar de (Costa, 1931), indignas, portanto, de
A
Marcia Sant’Anna
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da União e em jornais de circulação local. que se configurou já no começo dos anos
Com isso, perdeu-se definitivamente a ideia 1990, quando novos agentes públicos e
inicial de que o tombamento de cidades privados ganharam espaço na produção do
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deveria corresponder ao tombamento de patrimônio urbano no Brasil.
um bem público (e não ao tombamento de
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A
um conjunto de imóveis individualizados,
E
privados ou não). Em contrapartida,
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ampliou-se a possibilidade de alguma A reestruturação e descentralização das
participação social nesses processos, mesmo atividades produtivas após a crise do sistema
H
que a prática de patrimonializar cidades sem capitalista nos anos 1970, a mundialização
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a participação direta dos atores sociais tenha da economia, os avanços tecnológicos e
continuado a ser a norma. a crise do Estado de Bem-Estar Social
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Os avanços acima registrados, de todo atingiram os países centrais e muitas de
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modo, repercutiram pouco em âmbito suas cidades a partir daquela década,
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Marcia Sant’Anna
nacional, já que, no período, as portarias tendo como consequências imediatas sua
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para a regulamentação de intervenções desestruturação econômica, o aumento do
ficaram restritas ao Rio de Janeiro e a desemprego, a precarização do trabalho,
aplicação do INBI-SU limitada à experiência o esvaziamento de setores urbanos e o
realizada na cidade de Tiradentes. Apesar abandono de equipamentos, como portos,
desses parcos resultados e do baixo impacto setores fabris e outros. Diante do novo
na transformação da prática, a década papel de planejamento e criação de novos
de 1980 foi importante pela crítica ao produtos assumido por várias cidades
147
caráter autoritário do tombamento e pelo dos países centrais, outras funções foram
hiato que proporcionou no processo de atribuídas a esses vazios urbanos, vinculadas
exploração econômica do patrimônio à cultura, ao turismo e ao lazer, bem como à
urbano. A insolvência e a crise financeira do produção imobiliária para estratos sociais de
Estado, que refrearam os investimentos do renda mais elevada. Experiências inaugurais
setor público naquela década, reforçaram, em cidades como Baltimore, nos Estados
em contrapartida, as alegações de que Unidos, produziram um entendimento desses
o tombamento esvaziaria o conteúdo projetos urbanos como a produção de locais
econômico da propriedade, impulsionando destinados a promover uma nova imagem
a criação de programas de incentivos fiscais à para as cidades e a atrair investimentos. Um
ação privada de preservação. Mas o período urbanismo de fundo pragmático, e atrelado
foi, sobretudo, conceitualmente muito à ideologia neoliberal, começou, assim, a ser
rico, pois uma concepção de patrimônio praticado nas cidades e a se apoderar do seu
urbano mais abrangente e socialmente patrimônio (Hall, 1995:407-428; Arantes,
mais inclusiva foi afirmada com a noção 2000:24).
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
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Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/
Experiências como a de Baltimore, intervenção, que começaram a ser praticados
Monica Zarattini.
alimentaram, nos anos 1980, um conjunto no país, de modo mais sistemático, nos
de outras em países europeus, entre as quais anos 1990, tendo como foco inicial áreas
148
as implementadas em Barcelona e Bilbao são centrais deterioradas ou esvaziadas de
as mais comentadas. Com elas, difundiu- grandes metrópoles. Esses novos projetos
se mundialmente o discurso do chamado urbanos impulsionaram a reafirmação da
“planejamento urbano estratégico”, no qual função econômica do patrimônio urbano e
a “requalificação”, a “regeneração” ou a sua redefinição como recurso estratégico da
“revitalização” de setores urbanos deteriorados competição entre cidades por um lugar de
ou esvaziados são definidas como intervenções destaque nas redes da economia globalizada.
fundamentais para a dinamização de Essas novas concepções foram absorvidas no
economias urbanas e aproveitamento cenário da preservação como um caminho
do patrimônio construído. Essa prática para a conservação autossustentável desse
desenvolvida nos países capitalistas centrais, patrimônio, promovendo a renovação dos
logo, foi exportada para os periféricos. vínculos estabelecidos com o turismo e o
As principais cidades brasileiras lazer urbano. A criação de um shopping a céu
não ficaram imunes a esses modelos de aberto na área do Pelourinho, em Salvador,
inaugurou esse tipo de intervenção no país, No desenvolvimento dessa nova
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para várias outras cidades da região Nordeste. grande parte, a tentativas de realizar
O Rio de Janeiro, com ações de requalificação uma gentrificação à brasileira em centros
urbana no projeto Rio Cidade, juntamente históricos, o Estado desempenhou um papel
N
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com outras previstas no Projeto Porto do fundamental de promotor e financiador de
Rio; e São Paulo, com as Operações Urbanas intervenções que, contudo, não chegaram
A
Anhangabaú e Centro, enveredaram, com propriamente a alavancar os investimentos
E
suas próprias nuances e especificidades, pelo privados esperados. Elas se revelaram
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mesmo caminho. muito limitadas nesse sentido, devido ao
O Iphan, cuja situação de pauperização conjunto de fatores que distingue nossas
H
cidades daquelas dos países capitalistas
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institucional e financeira havia se agravado
ao longo dos anos 1990, foi, inicialmente, centrais. Um dos principais diz respeito
um espectador desses novos espetáculos à escassez do mercado consumidor, na
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urbanos. Foi também, por vezes, uma medida em que segmentos de renda mais
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pedra no caminho, ainda que sem força alta não têm interesse de viver e, raramente,
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Marcia Sant’Anna
para modificá-los. Os agentes públicos de consumir nas áreas centrais de grandes
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fundamentais desses processos foram cidades, tornado-as desinteressantes para
os governos estaduais e, sobretudo, as investimentos imobiliários ou comerciais.
prefeituras de grandes cidades, atuando Outro fator que contribui para lhes tirar
por meio de financiamentos concedidos força de atração é que as zonas centrais mais
por agências internacionais como o Banco antigas e consolidadas têm de competir com
Interamericano de Desenvolvimento – outras ainda em expansão e catalizadoras de
BID e o Banco Mundial. Essas agências investimentos. As intervenções que lograram
149
financeiras haviam, à época, redescoberto sair do papel – e o dito a seguir se verificou
o patrimônio dos países da América Latina principalmente no Nordeste – produziram,
como uma nova fronteira para investimentos no máximo, guetos turísticos insustentáveis,
públicos e privados10, passando a alimentar devido ao fluxo insuficiente de visitantes,
a formulação de programas nacionais além de desarticulados da dinâmica cotidiana
de preservação, entre os quais o mais das cidades. Tiveram também grande
importante, no Brasil, foi o Monumenta. importância, nesses malogrados processos de
Esse novo momento pode ser sintetizado na gentrificação, a inexistência de operadores
expressão “cidade-atração”. privados autônomos decididos a investir e
o alto custo das operações de reabilitação
10. Nos anos 1960 e 1970, essas agências internacionais de imobiliária no Brasil.
financiamento também atuaram na América Latina com projetos
de aproveitamento turístico do patrimônio urbano, na esteira do O fracasso desses projetos de
discurso das chamadas Normas de Quito, de 1967, documento transformação do perfil de uso e ocupação
resultante da Reunião sobre Conservação e Utilização de Monu-
mentos e Lugares de Interesse Histórico e Artístico, promovida popular do patrimônio de áreas urbanas
pelo Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos
Estados Americanos – OEA. centrais, nos anos 1990, abriu espaço, em
cidades como São Paulo, para o surgimento receberam o aval do Iphan. Com prazos de
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
e dos instrumentos de financiamento Embora essa ação tenha feito mais sentido
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Marcia Sant’Anna
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diferencial competitivo para a exploração ao consumo, todo um contingente
imobiliária e, por vezes, puramente populacional marginalizado. A exploração
financeira. Impulsionada pela integração dos de mercados consumidores emergentes por
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mercados financeiros, a produção do espaço meio da ampliação do crédito, voltado,
urbano, primeiramente nos países centrais notadamente, para aquisição de imóveis e
A
e, em seguida, nos periféricos, manteve-se, produção do espaço urbano, e a procura de
E
nas primeiras décadas do século XXI, como taxas adequadas de acumulação do capital
I S T Ó R I C O
uma das principais formas de absorção de por meio de investimentos financeiros têm
excedentes e de acumulação de capital, sido as saídas mais constantes para essa crise
H
mediante a implementação de projetos do sistema. Como consequência, “bolhas” de
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urbanos apoiados em sistemas de crédito capitais fictícios se formam constantemente
e abertos a investidores do mundo inteiro em diversos setores.
P
(Harvey, 2011:143). Sistemas de crédito que, No que toca ao ambiente construído,
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como aponta Rolnik (2015:143-155), têm essa forma especulativa de acumulação busca
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Marcia Sant’Anna
como principal finalidade a remuneração lucrar com a expectativa de transformação,
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dos capitais investidos, transformando mesmo que ela venha ou não a se realizar.
os processos de reestruturação urbana – O espaço construído torna-se, assim,
inclusive os que envolvem o patrimônio – em um mero conjunto de ativos passíveis de
fronteiras abertas para o capital financeiro. exploração ou de títulos negociáveis no
Isso explica o surgimento dos mesmos mercado financeiro, sem vínculos necessários
produtos imobiliários em áreas centrais, zonas com demandas reais de produção de novas
de expansão e em vazios urbanos das mais estruturas. Harvey (2011:137-147) observa
151
distintas cidades do mundo. que esses procedimentos caracterizam,
Na última década, diversos autores contemporaneamente, um verdadeiro
têm apontado que a descentralização “fenômeno global de urbanização”, que
e a flexibilização do setor produtivo, a se expressa também como processo de
precarização do trabalho e a concentração gentrificação.
de centros de decisão e planejamento nos Nos anos 1980 e 1990, os projetos
países capitalistas centrais permaneceram urbanos dessa natureza mantinham um
caracterizando o sistema capitalista a partir vínculo importante com o ambiente urbano
da sua reestruturação nos anos 1970, mas preexistente, mas o que se verifica agora é
que outros aspectos emergiram nos últimos uma relativa perda de importância desse
anos e se tornaram também essenciais para aspecto e a adoção de outras características.
a compreensão de sua configuração atual Apesar de a paisagem urbana histórica
(Harvey, 2011; Piketty, 2014; Jappe, 2015). permanecer produzindo diferenciais
Entre eles, cabe ressaltar o esgotamento da competitivos, além de legitimando a
capacidade de crescimento econômico e de necessidade dessas intervenções, observa-se
uma importância crescente da criação de financeiros, legais e urbanísticos destinados
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
pode ser apontada como um referencial intervenções propiciam especular não só com
desses desdobramentos no momento atual, títulos, mas também com imóveis e terrenos,
A
na medida em que disponibiliza cerca de 4 que são comprados, muitas vezes, mediante
E
nos anos 1990, de aumento da importância não se fazer nada com eles e porque, no Rio
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Marcia Sant’Anna
dos poderes executivos municipais nessas e em São Paulo, por exemplo, potenciais
intervenções, mas também o crescimento do
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A concepção de patrimônio urbano que Privados, que apostaram na possibilidade de
sustentou a noção de cidade-atração nos uma utilização socialmente mais significativa
anos 1990, que privilegiava as fachadas, do patrimônio urbano. Contudo, na
N
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a cenografia urbana e desconsiderava os presente década, a instituição tem oscilado
demais elementos materiais e imateriais que entre uma posição de mero espectador ou
A
o compõem, teve continuidade nas décadas de colaborador secundário desses novos e
E
seguintes. Mas também esses aspectos têm grandiosos espetáculos urbanos, por meio da
I S T Ó R I C O
sofrido, agora, um certo rebaixamento e articulação de suas ações ao PAC-CH. Assim,
uma relativa perda de importância, em favor embora esteja longe de ser o único, um
H
da criação de uma paisagem urbana onde dos maiores desafios do Iphan, atualmente,
A T R I M Ô N I O
arquiteturas caracterizadas pela ousadia é recuperar o seu lugar na condução das
formal ou pelo padrão internacional das políticas de preservação do patrimônio das
P
torres corporativas ganham destaque e cidades, mantendo o tradicional papel de
D O
superam o patrimônio como elemento de defensor do interesse público a ele associado.
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Marcia Sant’Anna
atração e consumo visual.
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Mas, se nos anos 1990 os movimentos D E S A F I O S A E N F R E N TA R
sociais de resistência, de reivindicação de
participação e de afirmação do direito à cidade Uma instituição como o Iphan
eram mais ou menos restritos à capital paulista, dificilmente conseguirá atuar no sentido da
a realidade agora é outra. Em várias cidades, afirmação de uma noção ampla e de uma
e de formas diversas, esses movimentos têm apropriação democrática de patrimônio
mobilizado habitantes, denunciado ilegalidades urbano, na contemporaneidade, sem
153
e afrontas ao interesse público, inclusive articular a política de preservação a outras
por meio da judicialização dos processos políticas públicas das áreas de planejamento,
de transformação do ambiente construído, desenvolvimento urbano e social, produção
notadamente nas áreas centrais de valor habitacional, provisão de infraestrutura e
patrimonial. Assim, aqueles que são afetados transportes, educação, saúde e mesmo de
negativamente por essas intervenções não são acesso mais amplo à cultura. A carência
mais espectadores passivos, mas sim, cada vez de articulações sistemáticas e duradouras
mais, atores fundamentais das conjunturas nas nesse sentido tem sido um dos principais
quais essas novas atrações/explorações urbanas problemas para uma atuação mais consistente
buscam se enraizar. da instituição em prol do patrimônio
A partir de meados da década de 2000, urbano, desde suas atividades inaugurais
o Iphan, através do Programa Monumenta, nos anos 1930. Assim, a constituição, pela
buscou empreender ações, como o programa via legislativa, de um sistema nacional de
habitacional de interesse social iniciado preservação do patrimônio que envolva outras
na 7ª Etapa do Programa de Recuperação áreas e esferas de governo, além da sociedade,
constitui, portanto, um dos desafios mais mais forte entre os setores patrimonializados e
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
importantes dos próximos anos. o restante das cidades. Para isso, a formulação
A C I O N A L
ainda dependerá da superação da ideologia dos problemas e carências que pontuam essa
D O
produzida nos anos 1970, que hierarquizou e trajetória e dos pesados desafios a enfrentar,
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156
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
Mar ia Cecília Londres Fonseca
A C I O N A L
A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
N
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Um dos maiores desafios que se selecionados passou da atribuição de valor
apresentam ao Instituto do Patrimônio “excepcional” – de acordo com o discurso
Histórico e Artístico Nacional - Iphan vigente nas primeiras décadas da instituição
P
desde sua criação, há oitenta anos, tem – à identificação de sua “relevância para
D O
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sido o de cumprir sua função institucional a memória, a identidade e a formação da
no que diz respeito a fundamentar, na sua sociedade brasileira” (art. 216 da CF de
R
atuação, a atribuição de caráter “nacional” 1988), considerada em sua diversidade –
ao patrimônio que vem sendo constituído conforme as concepções hegemônicas a
por meio de instrumentos a cada dia mais partir das últimas décadas do século XX, em
numerosos e diversificados – tombamento, que tem sido determinante a influência da
registro, inventário, chancela de paisagem antropologia e das ciências sociais. Essa nova
cultural, registro como sítio arqueológico etc. diretriz vem qualificar a trajetória do Iphan
É, portanto, com base nos critérios usados no sentido de acompanhar as transformações 157
para a atribuição de valores, tanto daqueles da sociedade brasileira, aproximando o
discriminados no Decreto-lei n 25, de 30
o
patrimônio titulado do modo como essa
de novembro de 1937 – histórico, artístico, sociedade se representa. Consequentemente
arqueológico, bibliográfico, etnográfico, – e também em decorrência do preceito
paisagístico –, quanto dos compatíveis constitucional de incluir a sociedade como
com a gama mais ampla e genérica de bens parceira do poder público na tarefa de
apresentada no artigo 216 da Constituição preservar o patrimônio (art. 216, par. 1º
Federal –CF de 1988, que o Iphan conquista da CF de 1988) –, na medida em que o
legitimidade junto aos outros entes do poder olhar da instituição se amplia, as leituras
público e à sociedade para preservar, por meio do território e de sua ocupação se fazem a
da aplicação dos institutos legais que definem partir de diferentes perspectivas e, sobretudo,
o escopo de sua atuação, os bens titulados. abrem-se espaços para acolher as múltiplas
Ao longo dos últimos oitenta anos, vozes das comunidades existentes nesta Bonecas Karajá
Acervo: Copedoc/Iphan/
a explicitação da importância dos bens imensa nação. Por esse motivo, os esforços Marcel Gautherot.
do Iphan têm contribuído, sobretudo nas – Sphan, a partir de sua criação, em 1937,
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
últimas décadas, para construir e divulgar, estruturou sua política visando proteger bens
A C I O N A L
passos dados pela instituição na formulação esse motivo, nas regiões em que a ocupação
e implementação de sua política pública em do colonizador deixou marcos reconhecidos,
H
seus oitenta anos de existência. Entretanto, tanto por serem testemunhos de “fatos
A T R I M Ô N I O
dada a proposta desta publicação e o fato de a memoráveis” de nossa história como por
história da instituição já ter sido apresentada serem considerados exemplares “autênticos”
P
texto será a construção da política federal processo de seleção tinha como bases uma
E V I S T A
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
partir dos Livros do Tombo nas primeiras a pedido do então ministro da Educação e
A C I O N A L
décadas do Sphan só passou a ser questionada Saúde, Gustavo Capanema, que a atuação
devido aos seus limites materiais e sobretudo do Iphan passou a ser questionada nos anos
simbólicos, a partir das últimas décadas do 1970-1980. Esse movimento teve grande
N
R T Í S T I C O
século XX. E isso na medida em que se expressão no Centro Nacional de Referência
constatavam lacunas quanto a testemunhos Cultural – CNRC, criado em 1975 sob a
A
fundamentais de nossa história, entendida direção do designer Aloisio Magalhães –, e
E
numa perspectiva mais ampla – ou seja, da integrado à Fundação Nacional Pró-Memória,
I S T Ó R I C O
presença dos indígenas, habitantes destas no âmbito do então Ministério de Educação
terras desde tempos imemoriais; das inúmeras e Cultura – MEC, em 1979. O objetivo do
H
revoltas contra o poder constituído desde CNRC era o desenvolvimento de experiências
A T R I M Ô N I O
a Colônia; das marcas do longo período da voltadas para o conhecimento e apoio das
escravidão; dos movimentos rumo à ocupação mais diversas manifestações culturais, com
P
do interior do país, etc. Do mesmo modo, especial atenção ao chamado “patrimônio não
D O
não havia meios legais para a inscrição, consagrado”, bem como para ações visando à
E V I S T A
nos Livros do Tombo, das memórias e das inclusão das comunidades envolvidas como
R
tradições de vários grupos étnicos e culturais parceiras.
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
que vivem no Brasil, como os grupos A opção pelo foco na noção de “referência
indígenas, os afrodescendentes, as populações cultural” abriu espaço e orientou projetos
rurais etc. Essas últimas manifestações são, inovadores no campo do patrimônio, que,
em sua grande maioria, produções coletivas inclusive, puderam recorrer aos recursos
de transmissão oral – fugindo, portanto, do das incipientes tecnologias da informação.
caráter de “bens móveis e imóveis”, passíveis Essas experiências foram importantes para a
159
de tombamento. Mas eram objeto de atenção elaboração dos capítulos relativos à cultura
dos folcloristas, que, num movimento na Constituição Federal de 1988, que, por
paralelo à política do órgão federal que sua vez, forneceram as bases jurídicas para a
tinha como atribuição legal a proteção formulação da política federal de patrimônio
do patrimônio nacional, pesquisavam, imaterial, iniciada no ano 2000. Delas resultou
documentavam e recolhiam peças, reunindo também, nesse período, a elaboração, pelo
importantes acervos das culturas populares. Iphan, da metodologia do Inventário Nacional
Esse trabalho foi, em nível nacional, assumido de Referências Culturais – INRC, instrumento
pela Comissão Nacional do Folclore, criada amplamente utilizado para a identificação de
em 1947 e, a partir de 1958, pela Campanha bens culturais a serem preservados com base na
de Defesa do Folclore Brasileiro – CDFB, no percepção e nos valores que lhes são atribuídos
âmbito do Ministério da Educação e Cultura. por seus detentores.
Foi, portanto, a partir de uma releitura Além disso, o processo de
do anteprojeto para a criação de um Serviço redemocratização em curso desde o início
do Patrimônio Artístico Nacional – Span, dos anos 1980, mobilizando a sociedade
civil para a reivindicação de direitos, trouxe identificar, promover, proteger e fomentar”
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
consagrado” pelo poder público, tanto em cultural brasileiro, cria o programa nacional do
E
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
o Centro Nacional de Folclore e Cultura mente a do DPI, com a salvaguarda
A C I O N A L
Popular – CNFCP, e, junto ao Conselho dos conhecimentos tradicionais de bens
Consultivo, em 2010, a Câmara Setorial do registrados no Livro dos Saberes tem
Patrimônio Imaterial. habilitado a participação da instituição,
N
R T Í S T I C O
No curso dos dezessete anos da edição do representando o Ministério da Cultura, no
Decreto n 3.551/2000, a política do Iphan
o
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
A
voltada para a salvaguarda do patrimônio – CGEN, no âmbito do Ministério do
E
imaterial foi se ampliando em várias direções, Meio Ambiente. Esse tipo de atuação está
I S T Ó R I C O
em função das demandas que o tema necessariamente relacionado à articulação
suscita e também dos processos de avaliação com outras áreas da administração pública,
H
realizados pelo próprio DPI, evidenciando e, não apenas a ambiental como as da
A T R I M Ô N I O
consequentemente, intensificando a relação agropecuária, do desenvolvimento, da justiça,
desse campo com os de outras políticas entre outras. No CGEN o representante do
P
públicas. MinC tem participado ativamente da Câmara
D O
Por exemplo, a partir do pedido de Temática de Conhecimento Tradicional
E V I S T A
registro de uma língua falada por imigrantes Associado. Em 2011 o Iphan foi credenciado
R
italianos do sul do país – o talian, que a participar também dos processos de
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
adquiriu aqui feição própria, diferenciando- autorização de pesquisa científica com foco
se do dialeto vêneto que lhe deu origem –, a em conhecimentos tradicionais associados
questão da diversidade linguística mereceu a recursos genéticos, uma vez que estava
um trabalho interinstitucional que levou à previsto no MP 2.186-16, de 2001, que criou
edição, em 2010, do Decreto da Presidência o CGEN, que esses conhecimentos “integram
da República n 7.387, de 9 de dezembro de
o
o patrimônio cultural brasileiro”, conforme
161
2010, que instituiu o Inventário Nacional especificado na Lei no 13.123/2015,
da Diversidade Linguística – INDL, conhecida como Lei da Biodiversidade.
instrumento julgado o mais apropriado para Embora não seja atribuição direta do
a documentação e valorização das diversas Iphan atuar na penalização da biopirataria,
línguas existentes no Brasil, desde as inúmeras ou da destruição do meio ambiente onde
línguas indígenas (a maioria ágrafas) até a vivem as comunidades que desenvolvem,
Língua Brasileira de Sinais – Libras. Essa perpetuam e utilizam os conhecimentos,
linha de atuação, sob a gestão do MinC, em geral essenciais à sua sobrevivência
envolve vários outros ministérios e tem e à sua identidade, é, sim, missão do
a participação fundamental do Instituto Iphan conscientizar esses grupos para a
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, importância cultural desses conhecimentos
que, desde então, vem reunindo informações e dar apoio em busca dos meios necessários
censitárias essenciais para as políticas voltadas à defesa de seus direitos, basicamente
para essa questão, em particular aquelas por meio da elaboração e participação no
relativas aos grupos indígenas. desenvolvimento de planos de salvaguarda.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
162
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
Acervo: Iphan.
São Benedito, PA
Mastro de
Um bom exemplo dessa situação é a elaboração da que veio a ser a Convenção
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
A C I O N A L
do Rio Negro-AM, bem registrado em Imaterial, aprovada em 2003, uma vez
2010 no Livro dos Saberes. Trata-se de um que era um dos poucos países que já
conjunto articulado de conhecimentos, dispunham então de instrumento legal
N
R T Í S T I C O
práticas, sentidos e valores em torno do voltado para essa finalidade, assim como de
cultivo, processamento e utilização de conhecimentos e experiências nesse campo
A
diferentes espécies de mandioca, muitas desenvolvidos em anos anteriores. Além de
E
delas desenvolvidas pela comunidade participar das reuniões intergovernamentais
I S T Ó R I C O
no exercício dessa atividade e a partir de para a elaboração do texto da Convenção
trocas codificadas entre os detentores. A (2002-2003), o Brasil integrou o Comitê
H
configuração desse bem registrado e o Intergovernamental por ela criado (2006-
A T R I M Ô N I O
processo de sua salvaguarda comprovam 2008; 2013-2016) e tem prestado assistência
observação de Barbara Kirshenblatt- internacional sempre que solicitado. O
P
Gimblett (2004, p. 53): Congresso Nacional do Brasil ratificou
D O
a Convenção em 2006, o que a converte
E V I S T A
(...) enquanto, à semelhança do patrimônio
em lei a ser respeitada no território
tangível, o patrimônio imaterial é cultura, à
R
brasileiro (Decreto Legislativo no 22/2006,
semelhança do patrimônio natural, é vivo (...).
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
promulgado pelo Decreto no 5.753/2006).
Requer, portanto, instrumentos de Em nível regional, o Brasil é um dos
preservação mais flexíveis e, sobretudo, membros fundadores do Centro Regional
participativos. para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
No nível internacional, e no campo da América Latina – Crespial e participa
específico do que veio a ser denominado da Comissão de Patrimônio Cultural do
163
patrimônio cultural imaterial, o Brasil Mercosul.
já vinha acompanhando os trabalhos, na Até o final de 2016 foram inscritos
Unesco, de questionamento dos limites nos Livros de Registro do Iphan quarenta
do alcance da Convenção do Patrimônio bens. Nas Listas criadas pela Convenção
Mundial, de 1972, particularmente em da Unesco de 2003, foram inscritos cinco
relação ao reconhecimento e à preservação bens na Lista Representativa do Patrimônio
de culturas autóctones e populares, tais Cultural Imaterial da Humanidade; um
como os conhecimentos tradicionais e as bem na Lista do Patrimônio Cultural
manifestações folclóricas. Esses trabalhos Imaterial que Requer Medidas Urgentes
resultaram na aprovação, em 1989, da de Salvaguarda; e dois bens na Lista de
Recomendação sobre a Salvaguarda da Programas, Projetos e Atividades que
Cultura Tradicional e Popular (Blake, melhor refletem os princípios e objetivos da
2001). No início de 2002, o Brasil sediou, Convenção.
no Rio de Janeiro, uma das reuniões
da Unesco preparatórias ao processo de
QUAIS parte, ao caráter necessariamente participativo
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
A S C O N Q U I S TA S
ALCANÇADAS E QUAIS OS da prática de preservação do patrimônio
A C I O N A L
dezesseis anos nos permite fazer algumas envolvimento da sociedade nessa missão.
considerações sobre os resultados alcançados, Exemplo esclarecedor nesse sentido é
A
até o momento, por essa política pública o tratamento que vem sendo dado pelo
E
desse patrimônio revelou-se uma estratégia destruída – ato cuja motivação tem sido
D O
abrir caminhos para a inclusão, no acervo materiais são igualmente escassos e pouco
R
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
indefinida, pois se sabia apenas que era materiais de um momento da história do
A C I O N A L
próxima ao Cais do Valongo. Brasil amplamente referido em memórias,
Ora, em 1996, os proprietários de obras de arte – particularmente na iconografia
residência na região encontraram, no material produzida por viajantes estrangeiros, como
N
R T Í S T I C O
retirado do solo em obras de reforma, Debret – e, claro, na historiografia, mas que,
restos de corpos humanos identificados por salvo nos tombamentos do Terreiro da Casa
A
arqueólogos como vestígios de negros vindos Branca (BA) e da Serra da Barriga (AL),
E
da África que ali haviam sido enterrados. ocorridos nos anos 1980, não tinha presença
I S T Ó R I C O
Visando à preservação e exposição de material marcante nos Livros do Tombo.
encontrado na região, tão importante para a Sem dúvida, a menção específica à pro-
H
memória das comunidades afro-brasileiras, o teção do direito à propriedade da terra aos
A T R I M Ô N I O
casal de proprietários criou, em 13 de maio quilombolas como obrigação do Estado no
de 2005, o Instituto de Pesquisa e Memória artigo 68 da Constituição Federal de 1988
P
Pretos Novos – IPN, organização privada constituiu um expressivo avanço no reconheci-
D O
sem fins lucrativos, e instalou na casa o mento do direito à memória das comunidades
E V I S T A
Memorial dos Pretos Novos, local de visitação afrodescendentes do Brasil . Mas, no caso da
R
de estudantes e turistas. Essas iniciativas cidade do Rio de Janeiro, a presença africana
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
integram o sítio arqueológico do Cais do só passou efetivamente a integrar o patrimônio
Valongo, sob proteção do Iphan desde 2012, reconhecido pelo Iphan com o registro em
e que, por sua importância para a história da 2005, no Livro das Formas de Expressão, do
humanidade, é candidato a inscrição na Lista Jongo, em quatro estados brasileiros (SP, RJ,
do Patrimônio Mundial da Unesco. ES e MG), e também, em 2007, das Matrizes
Esse caso merece destaque neste texto do Samba Carioca – manifestação que teve
165
por evidenciar a importância de uma origem na mesma região do Rio de Janeiro,
concepção integrada de patrimônio cultural, então denominada Pequena África, para onde
pois consideramos que a distinção entre haviam sido trazidos anteriormente milhares
“material” e “imaterial” funcionou como uma de africanos escravizados. Outra referência
estratégia oportuna para viabilizar a inclusão, importante da presença afro-brasileira na re-
no repertório de bens protegidos pelo poder gião é o prédio das antigas Docas D. Pedro II,
público, de manifestações culturais como, no projeto do engenheiro afrodescendente André
caso do Brasil, o riquíssimo e diversificado Rebouças, tombado pelo Iphan em 2016.
legado das culturas afrodescendentes já Atualmente, portanto, a tendência no
incorporadas pelos historiadores e cientistas Iphan é de abordar, da forma mais abrangente
sociais como signos de uma identidade e integrada possível, os bens apresentados para
brasileira. Ora, no caso apresentado, a serem reconhecidos como patrimônio cultural
importância dessa iniciativa se dá no sentido do Brasil, identificando-os em suas múltiplas
contrário ao do movimento que levou à dimensões e aplicando os instrumentos de
edição do Decreto no 3.551/2000, ou seja, proteção adequados.
Quanto aos desafios que se apresentam o seu registro e que são constitutivos
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
é preciso não esquecer que as propostas porque a identificação desses efeitos danosos
E
não são mero reflexo de uma realidade, é de difícil aferição –, mas de, sempre
I S T Ó R I C O
Patrimônio Cultural – que são fruto de um administrativos que possam contribuir para
D O
de análise – não coincidam exatamente com aos interesses dos detentores, com base no
R
o entendimento que alguns produtores e respeito aos seus direitos e na busca de formas
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
detentores têm de seus bens culturais. Por esse de reparação de danos a seu patrimônio.
motivo, é tão importante a participação de 3) Como foi dito antes, um decreto
todos os atores sociais envolvidos ao longo do como o que criou o registro não gera
processo, assim como o estabelecimento de nem normatiza o exercício de direitos
formas de permanente diálogo. e deveres específicos, mas, de acordo
2) Sem dúvida a concessão do título com interpretações recentes do texto
166
de Patrimônio Cultural do Brasil, em constitucional (Queiroz, 2016), seus
decorrência do registro, terá impactos na efeitos estão relacionados ao exercício dos
dinâmica do bem em questão. Se, por direitos culturais especificados no artigo
um lado, o reconhecimento, o apoio e a 215 da Constituição Federal de 1988, entre
divulgação de uma manifestação cultural eles o direito à memória, a que devem
podem trazer benefícios de toda ordem para ter acesso todos os cidadãos brasileiros. É
os detentores e as localidades onde ocorre, fato que algumas manifestações culturais
por outro lado deve haver atenção para que poderiam ser entendidas como
eventuais efeitos danosos de intervenções bens de caráter imaterial já dispõem de
externas, sobretudo no caso de comunidades instrumentos normatizados de proteção
tradicionais. A predominância do interesse legal, como as leis de direito autoral e de
pelo potencial do bem enquanto espetáculo, propriedade intelectual. Mas outras, como
por exemplo, assim como a ênfase em ações os conhecimentos tradicionais citados antes,
visando gerar lucros financeiros, pode vir em geral de caráter coletivo e de transmissão
a se sobrepor aos valores que justificaram oral entre as gerações, não apresentam
os requisitos para a aplicabilidade dos Wajãpi (AM), bem registrado em 2002 Cuias
Acervo: Iphan/
Francisco Costa.
instrumentos legais mencionados , embora e inscrito na Lista Representativa do 167
sejam muito vulneráveis à apropriação Patrimônio Imaterial da Unesco (Brayner,
indébita por parte de terceiros. Por esse 2012; Jaenisch, 2010; Queiroz, 2016 ).
motivo, a farta documentação produzida Assim, o DPI vem se dedicando a estruturar,
nos inventários e na instrução dos processos junto ao meio jurídico, formas de atuar em
de registro é fundamental para comprovar a defesa dos chamados direitos difusos desses
propriedade coletiva desses bens e assegurar grupos sociais.
a reparação de danos eventualmente 4) A noção de patrimônio cultural
causados por terceiros, assim como a justa imaterial enquanto objeto de política pública
repartição dos benefícios, de todo tipo, tem sido apropriada das mais diversas
gerados por seu uso. Um exemplo de maneiras, em parte devido à ambiguidade
iniciativa bem-sucedida nesse sentido foi que ainda cerca esse termo, de recente
a reação à tentativa de uso comercial, não incorporação às políticas culturais em todo
autorizado pelos detentores, dos padrões o mundo, mas também por sua capacidade
gráficos da Arte Kusiwa, da etnia indígena de mobilizar os mais diversos grupos sociais.
Ora, conforme estabelecido na Convenção exige um trabalho complexo de conceituação e
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
Federal de 1988. Nesse sentido, alguns à atuação do poder público visando à sua
critérios, além dos já citados anteriormente, proteção, no caso do PCI são, sem dúvida,
H
conhecimento que comprove, entre outros os fatores decisivos para a continuidade desse
D O
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
ou padrões de atuação, pois cada caso exige
BLAKE, Janet. Elaboration d’un nouvel instrument
A C I O N A L
a elaboração de propostas diferenciadas,
normatif pour la sauvegarde du patrimoine culturel
construídas em constante processo de diálogo, immatériel: eléments de réflexion. Paris: Unesco, 2001.
e permanentemente avaliadas quanto a seus
N
BORTOLOTTO, Chiara. “Le trouble du patrimoine
R T Í S T I C O
resultados (Sant’Anna, 2016). culturel immatériel”. In: ______ (org.). Le patrimoine
culturel immatériel: enjeux d’une nouvelle catégorie.
6) Finalmente, está cada vez mais Paris: Editions de la Maison des Sciences de l’Homme,
A
evidente que todos os desafios mencionados 2011. P. 22
E
exigem, tanto na proteção do patrimônio BRAYNER, Natália Guerra. Direitos culturais, afirmação
I S T Ó R I C O
identitária e patrimonialização: a salvaguarda das
material como na salvaguarda do imaterial,
expressões orais e gráficas dos Wajãpi. In: Colóquio
além da participação das comunidades e das Internacional La Transmisión de la Tradición para la
H
organizações da sociedade civil, articulação Salvaguardia y Conservación del Patrimonio Cultural,
A T R I M Ô N I O
2012, Campeche, México.
do Iphan com instituições públicas cujas
JAENISCH, Damiana Bregalda. Arte Kusiwa: pintura
políticas tenham interfaces com sua atuação corporal e arte gráfica wajãpi. Etnografia da Salvaguarda
P
e seus objetivos. Sem dúvida, trata-se de uma de um bem registrado como patrimônio cultural do
D O
Brasil. Brasília: Iphan, 2010.
tarefa difícil, inclusive em função de eventuais
E V I S T A
KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Intangible
instabilidades institucionais e interferência de
heritage as metacultural production. Museum
motivações sobretudo políticas, mas cabe ao
R
International, nº 221/222, Paris, Unesco, p. 53,
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
Iphan, em parceria com os atores envolvidos mai.2004.
nessa missão, administrar essas várias MEC/IPHAN. O registro do patrimônio imaterial: dossiê
final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
intercorrências, tendo sempre como objetivo do Patrimônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura/
o cumprimento de seus deveres institucionais Iphan, 2000.
junto à sociedade. QUEIROZ, Hermano Fabrício de Oliveira Guanais e. O
registro de bens culturais imateriais como instrumento
Concluindo, esses desafios, se não
constitucional garantidor de direitos
enfrentados em conformidade com as diretrizes 169
culturais. Salvador: Diretoria de
nacionais e internacionais dessa política Cultura/Ipac; Brasília:Iphan,
2016.
pública, podem se constituir em riscos, seja
SANT’ANNA, Márcia. A
devido às dificuldades na implementação noção de sustentabilidade
dessas diretrizes, seja por práticas que podem no âmbito da política
de salvaguarda do
levar à banalização dessa noção tão relevante
patrimônio cultural
para a identificação e valorização de nossa imaterial do Brasil.
riquíssima diversidade cultural, sempre no Aurora 463 – Revista
da Semana do
sentido de tornar cada vez mais nacional nosso
Patrimônio Cultural de
patrimônio. Por outro lado, é inegável que Pernambuco, nº 1, v. 1,
os esforços para desenvolver e divulgar essa Recife, Fundarpe, 2016.
170
Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Rober to Stanchi
A C I O N A L
O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO :
N
OITENTA ANOS DE DELEGAÇÕES
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Dos primeiros tombamentos de bens no Brasil, sobretudo aqueles que aspiravam
arqueológicos no Brasil – como a Coleção se tornar textos oficiais, para além da cen-
Balbino de Freitas do Museu Nacional ou a tralidade das discussões ligadas aos aspectos
P
Coleção Arqueológica e Etnográfica do Museu arquitetônicos, minimizaram, quando não
D O
E V I S T A
Emílio Goeldi – à inclusão do Sítio do Cais ignoraram completamente, a existência de
do Valongo na Lista do Patrimônio Mundial, instituições pioneiras que antecederam o pró-
R
oitenta anos de uma prática institucional vol- prio Iphan e que já desenvolviam ações rela-
tada para a preservação do patrimônio arqueo- cionadas ao patrimônio e a sua preservação.
lógico foi consolidada. Revisitar o modo como O discurso fundacional “oficial” presente na
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico literatura especializada aparece quase sempre
Nacional, o Iphan, ao longo de tantos anos alicerçado no episódio em que Gustavo Capa-
considerou e tratou a arqueologia, e se relacio- nema, então ministro da Educação e Saúde,
nou com os arqueólogos, não é tarefa das mais encomenda a Mário de Andrade o famoso 171
fáceis. Para tanto, optamos por acompanhar a anteprojeto:
trajetória da Repartição pontuando, ou identi-
ficando, quatro fases específicas (a de delegação Telefonei a Mário de Andrade, então Diretor
Diversos artigos e publicações que pre- Esse tipo de “esquecimento” não parece Calçoene-AP
Acervo: Iphan/
tenderam contar a história da preservação despropositado, ao contrário, parece Heitor Reali.
deliberado, sendo seguidas vezes reiterado, Na proposta de Mário de Andrade, o
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
ligados ao Iphan, como parte da estratégia onde se enumeram oito categorias de arte:
de legitimação do órgão; melhor dizendo, arqueológica, ameríndia, popular, histórica,
essas abordagens foram – e ainda são – erudita nacional, erudita estrangeira, aplicadas
N
R T Í S T I C O
Roberto Stanchi
até os dias atuais, o campo das práticas pretendia “catalogar” todas as manifestações
preservacionistas. Ao reiterar esse discurso, culturais do homem brasileiro.
P
seus agentes capital simbólico, cultural e entre outras coisas, dos interesses de alguns
social para uma formação discursiva como agentes e intelectuais de relevância, em que
instrumento de nomeação legítima da se destacavam as figuras de Gustavo Barroso
realidade. Walter Francisco Lowande (2012) (diretor do Museu Histórico Nacional) e de
destaca que o período de hegemonia de tal Heloisa Alberto Torres (diretora do Museu
formação discursiva teria correspondido Nacional).
ao que se convencionou denominar “fase No que diz respeito à estrutura de
172
heroica”, que somente cederia lugar, a funcionamento do futuro Serviço em relação
partir de meados da década de 1970, à nova ao patrimônio arqueológico, o anteprojeto
formação discursiva proposta pelo grupo previa a presença de dois arqueólogos
liderado por Aloisio Magalhães. compondo o Conselho Consultivo e um no
Na literatura sobre patrimônio cultural setor denominado Chefia de Tombamento.
brasileiro, o texto citado, em que Gustavo Além disso, cada Comissão Regional a ser
Capanema solicita a Mário de Andrade a criada nas capitais dos estados deveria ter um
elaboração de um anteprojeto de organização arqueólogo em seus quadros1. O anteprojeto
de um serviço nacional para a defesa do também propunha alterações na organização
patrimônio artístico brasileiro, aparece quase do Museu Nacional, que, ou se converteria
sempre como pedra fundamental, não apenas exclusivamente num museu de história natural
do que viria a ser o Iphan, mas como marco – retirando-lhe a arqueologia e a etnografia –
inicial da institucionalização da política
de patrimônio no país, aspecto que, sem 1. Até hoje, em 2016, mesmo após diversos concursos, o Iphan
ainda não conseguiu assegurar a presença mínima de um arqueó-
nenhuma dúvida, merece ser relativizado. logo em todas as suas superintendências estaduais no país.
ou em um museu arqueológico e etnográfico Contudo, temendo uma eventual
A C I O N A L
identificar elementos embrionários que irão, propostos por Mário de Andrade, Heloisa
de certa forma, moldar a maneira pela qual Alberto Torres propõe a Rodrigo Melo Franco
o patrimônio arqueológico será tratado pelo
N
de Andrade um rol de ações alternativas
R T Í S T I C O
Iphan: como uma temática secundária. Os (Lowande, 2013):
arranjos institucionais decorrentes dessa
A
característica, por sua vez, irão formatar o Penso que se poderia estabelecer uma
E
modo como os arqueólogos e a Sociedade colaboração estreita entre a Secção de Etnografia
I S T Ó R I C O
de Arqueologia Brasileira – SAB, principal do Museu Nacional e o “Serviço”, uma verdadeira
associação científica de arqueologia do país, articulação entre as duas entidades e da qual
H
poderia resultar benefício considerável para
Roberto Stanchi
irão se relacionar com os técnicos do Iphan.
A T R I M Ô N I O
este sem prejuízo dos trabalhos que aquela
Como resposta ante a possibilidade de
levasse a efeito. Todo o material de etnográfico
desmembramento de sua instituição, Heloisa
constaria do tombamento, os técnicos do Museu
P
Alberto Torres escreve, em carta datada de 9
D O
Nacional colaborariam no Conselho Consultivo
de maio de 1936, a Rodrigo de Melo Franco,
E V I S T A
da S.P.A.N.; organizariam relações de jazidas
rechaçando completamente a possibilidade etnográficas a serem tombadas, levariam mapas
R
de apoio ao projeto de Mário de Andrade com a distribuição geográfica dos monumentos
(Lowande, 2013): a serem protegidos, elaborariam monografias a
serem publicadas pela S.P.A.N. Por seu lado a
Admitamos que se pudesse remediar todos S.P.A.N. providenciaria melhores condições para
esses inconvenientes criando o “Serviço do ao desenvolvimento dos trabalhos da Secção de
Patrimônio Artístico, Histórico e Antropológico Etnografia do Museu Nacional.
Nacional” e instalando em edifício anexo ao ou
próximo do Museu de História Natural, ainda Na correspondência citada, alguns 173
surg[iriam] considerações muito ponderáveis.
aspectos saltam aos olhos. O primeiro
Uma, de natureza tradicionalista, não pode deixar
deles é a defesa da posição privilegiada do
de ser tomada em conta no momento em que
Museu Nacional, que deveria continuar
se pretende organizar a defesa do patrimônio
histórico do Brasil: é o golpe desferido a uma ocupando papel de destaque na formulação
instituição de 118 anos de existência e que, das primeiras políticas de preservação
malgrado incompreensão de suas finalidades, pela do patrimônio cultural brasileiro. Outra
maioria dos governos, tem conseguido levar e questão é a concepção ampla do conceito
manter em alto nível o nome do Brasil por todo de patrimônio, abrangendo as coleções
mundo, na divulgação do que a nossa terra tem de
arqueológicas e etnográficas. Por fim, o
mais belo: a natureza de sua gente. A organização
aspecto que parece ter sido determinante para
desse trabalho de defesa não pode ser iniciada pela
os rumos da arqueologia no Brasil: a proposta
mutilação de um instituto centenário e glorioso,
quando um dos primeiros monumentos nacionais de colaboração e articulação, palavras que,
a serem tombados pelo serviço projectado deveria do ponto de vista prático, significaram a
ser certamente o Museu Nacional. delegação das ações do Serviço voltadas para
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
174
Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Acervo: Iphan.
Alcântara, MA
o patrimônio arqueológico, inicialmente, me parece impraticável organizar um museu de
A C I O N A L
outro contexto, para uma rede de agentes. A
Nacional, tive de me conformar com a inclusão
argumentação de Heloisa Torres prevaleceu
apenas de um dispositivo do projeto prevendo para
e, de fato, embora o Museu Nacional não
N
o futuro a realização do empreendimento, a fim de
R T Í S T I C O
tenha sido a única instituição a colaborar
contar assim com a cooperação de Dona Heloisa,
com o Serviço, pode-se dizer que a atuação
quer para o tombamento do material reunido na
A
dessa instituição foi central no contexto de Quinta da Boa Vista, quer para o tombamento
E
delegação das práticas administrativas.
I S T Ó R I C O
geral. De resto, confesso a V. que fiquei intimidado
A lei de criação do Sphan (Lei nº 378) diante da responsabilidade de desmembrar do
já aponta que o trabalho a ser desenvolvido museu existente as coleções que nos interessavam.
Roberto Stanchi
deveria ser realizado com a cooperação Aquilo, tal como está organizado, tem sempre
A T R I M Ô N I O
dos museus nacionais de coisas históricas e produzido alguma coisa de apreciável. É uma
artísticas. Ainda segundo Walter Lowande instituição centenária que merece ser tratada com
uma consideração especial. Se a gente, insistindo
P
(2013), havia uma questão política que
D O
em reformá-la agora de acordo com o seu projeto,
fez com que a proposta fosse acatada em
E V I S T A
seria tido, por Dona Heloisa e pelos especialistas
detrimento da de Mário de Andrade: o
mais capazes de lá, como inimigo. Com que
R
grupo ligado ao Museu Nacional, assim elementos poderíamos contar para suprir o pacto
como os intelectuais mineiros e arquitetos de cooperação do pessoal melhor do Museu
modernos, dispunha de grande simpatia Nacional? Pelo menos, graças ao adiantamento
do governo autoritário de Vargas. Ainda da reforma, captamos a boa disposição da própria
segundo o autor, Mário de Andrade contava Dona Heloisa, cuja colaboração é preciosa. Mais
apenas com uma antiga filiação ao Partido para adiante, veremos o que será possível conseguir
Democrático Paulista e uma frágil situação naquele sentido (...).
175
junto ao Departamento de Cultura da
Cidade de São Paulo. Com a instauração do Estado Novo, o
Por fim, coube a Rodrigo Melo Franco Sphan é legalmente criado e, nesse sentido,
de Andrade expor suas justificativas ao colega fica claro que o texto do Decreto-lei nº 25
(Lowande, 2013): de 1937 contemplou a posição do Museu
Nacional. Por outro lado, sem dúvida
Achei procedente tudo quanto V. me escreveu que essas articulações iniciais, realizadas
a respeito da carta de Dona Heloisa. Sucedeu até pelos diferentes grupos que orbitavam em
que alguns dos seus argumentos já tinham sido torno de Capanema, foram decisivas para
indicados por mim, quando discuti com ela a
a naturalização da ideia de que seriam os
questão. Mas eu estava muito incapaz naquele
arquitetos os profissionais mais adequados ao
dia e oprimido por uma dificuldade de expressão
projeto de construção da nação, consagrando
maior ainda que a de costume. Fui reduzido com
facilidade, embora tivesse saído ainda convencido uma história que seria autenticada
das vantagens que resultaram da adoção do pela materialidade, conforme a prática
ponto de vista que V. sustentava. Como, porém, administrativa dos primeiros anos revelou,
de um patrimônio histórico arquitetônico redes de alianças que foram formadas para
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Porém, é interessante notar alguns aspectos penso ser mais profícuo para a compreensão
contidos na negativa do Museu Nacional ou, desse processo não apenas identificar o pouco
espaço para o tema dentro do Iphan, mas
N
constituição do Serviço.
No caso específico do patrimônio que, portanto, deve ser compreendido através
arqueológico, algumas articulações de suas práticas.
H
Roberto Stanchi
modelo de administração pública que estava o Iphan. Antes mesmo de se tornar diretor,
D O
sendo implantado era fortemente baseado o pesquisador possuía estreita relação com
E V I S T A
Márcia Chuva (2009), ao discorrer sido designado, por Heloisa Alberto Torres,
para auxiliar na elaboração das ações de
sobre esse momento do Iphan, destaca que
identificação e preservação do patrimônio
o órgão partilhava de uma das marcas da
arqueológico brasileiro. Maria Lucia Pardi
administração pública do Estado brasileiro:
(2002) afirma que Castro Faria chegou a
O exercício de diferentes poderes,
ficar responsável pela gestão da dotação
176
concomitantemente, se instituía tanto a partir orçamentária do Serviço destinada à execução
das relações de poder pessoais em jogo, quanto de pesquisas arqueológica no país, bem como
da busca de legitimação mediante excelência de por coordenar o cadastro de sítios e materiais
um saber técnico: Configurava-se, assim, como arqueológicos.
estratégia de administração, uma privatização do Tania Andrade Lima (2009) demonstrou
público (Chuva, 2009:282). como o pesquisador, formado na
concepção boasiana da antropologia, de
É preciso relativizar o discurso acerca atuação nos chamados four fields, realizou
da marginalização da arqueologia dentro importantíssimas pesquisas em sítios
do Iphan, cuja representatividade estaria, arqueológicos brasileiros, especialmente
desde sempre, prejudicada em função das nos sambaquis do Paraná e Santa Catarina.
configurações assumidas pelo órgão, mas A autora destaca a relevante mobilização
tentar analisar como se configuraram os
modelos de administração através de outra 2. Luiz de Castro Faria foi diretor da Divisão de Antropologia e
diretor substituto do Museu Nacional. Entre os anos de 1964 e
dimensão do poder estatal, personificada nas 1967, foi Diretor do Museu Nacional.
política de Castro Faria, que, junto a a exploração científica dos sítios, dentre
A C I O N A L
com a destruição dos sítios arqueológicos convênios, realizados por intermédio de Castro
brasileiros, lutou para o surgimento de Faria, o Iphan delegou ao Museu Nacional a
legislação especifica voltada à proteção dessa elaboração dos novos instrumentos de gestão
N
R T Í S T I C O
categoria de patrimônio. Além de ter sido que seriam necessários.
personagem principal dessa mobilização, Ainda segundo Luciene Simão (2009),
A
reputa-se ao próprio Castro Faria a há uma extensa documentação referente aos
E
elaboração da minuta daquilo que viria a se custos de trabalho das pesquisas arqueológicas
I S T Ó R I C O
tornar em 1961 a Lei da Arqueologia, ou Lei e de aplicação de verbas em serviços de
nº 3.924/61 (Lima, 2002 e 2009). inventário, documentação e registro de sítios
Roberto Stanchi
Luciene de Menezes Simão (2009) realizados pelo Museu Nacional, sobretudo
A T R I M Ô N I O
sustenta que a principal norma para a no estado de Santa Catarina, nos primeiros
proteção do patrimônio arqueológico foi anos de aplicação da lei.
P
“gerada fora da Instituição”, no caso, o Iphan. A participação de Heloisa Alberto Torres
D O
A partir do estudo de correspondência, a na forma como se daria a regulamentação da
E V I S T A
autora demonstra a estreita relação de Castro Lei nº 3.924/61 e, sobretudo, na ingerência
que tinha dentro do Iphan fica também
R
Faria com Rodrigo Melo Franco de Andrade
e sua presença nas reuniões do Conselho documentada na carta que Eduardo E. G.
Consultivo do Iphan. Galvão, presidente do Conselho Nacional
Contudo, a dimensão da participação de Pesquisas, encaminha à pesquisadora
de Castro Faria na fundamentação científica (Lowande, 2013):
e na elaboração da minuta da lei de 1961
ficou evidenciada, segundo a autora, após D. Heloisa, Recebi sua carta de 10/09,
encaminhando o anteprojeto de regulamentação 177
a consulta ao parecer do antropólogo para
da Lei 3.924, de 26 de julho de 1961. Agradeço
o tombamento do sítio Grutas da Lapa da
a atenção da consulta. Nada tenho a acrescentar
Cerca Grande3. Nesse parecer, Castro Faria
ao anteprojeto, que me parece responder muito
enfatizou a necessidade de uma legislação bem às necessidades de proteção dos monumentos
específica para o patrimônio arqueológico arqueológicos e pré-históricos. Como única
como forma de resolver o problema da sugestão, e esta já fora do anteprojeto, mas dentro
proteção desses sítios e, ao final, sugeriu uma das atribuições internas do Sphan, seria a de
minuta para o texto normativo. um zoneamento geográfico de instituições que
A Lei nº 3.924/61, quando sancionada, ficariam responsáveis pela fiscalização da pesquisa
e como depositárias do material. Refiro-me, por
deu ao Iphan a incumbência de cuidar do
exemplo, a áreas como a Amazônia, ou a do Brasil
cadastramento dos sítios arqueológicos, da
Central, em que órgãos como o Museu Goeldi, e a
concessão de autorizações de pesquisa para Universidade de Brasília, teriam maiores facilidades
de controle (por delegação). Essa atribuição de
3. Processo n° 491-T-53 – Grutas Lapa da Cerca Grande e Lapa responsabilidade e institutos regionais, acredito,
dos Poções. Arquivo Noronha Santos, Arquivo central do Iphan,
Rio de Janeiro. virá facilitar o trabalho do Sphan, ao mesmo
tempo que neles incutir e exigir maior atenção a preservação do patrimônio arqueológico
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
sobre o problema (...). (grifo nosso) desenvolvidas pelo Iphan isto fica ainda mais
A C I O N A L
Heloisa Alberto Torres mais à frente do inexistente, visto que, nos primeiros trinta
Museu Nacional, o Iphan implementa um anos, o Iphan entregou aos cuidados do
A
sistema de redes muito parecido com a irmão mais velho, o Museu Nacional, suas
E
Roberto Stanchi
A C I O N A L
criado o Programa Integrado de Reconstrução Nesse período, a delegação das atribuições
das Cidades Históricas do Nordeste com do Instituto em relação ao patrimônio
N
sua Utilização para Fins Turísticos, atual arqueológico atingiu o seu ápice. Não
R T Í S T I C O
Programa de Cidades Históricas – PCH, obstante, faz-se necessário aqui um parêntese
que visava criar uma infraestrutura adequada – pode-se dizer que, em certa medida,
A
ao desenvolvimento e suporte de atividades Soeiro foi responsável por colocar em
E
turísticas e ao uso de bens culturais como
I S T Ó R I C O
prática o sistema de cooperação sugerido por
fonte de renda para as regiões carentes do Eduardo Galvão a Heloisa Alberto Torres7
Nordeste (Fonseca, 2009:143). ainda na gestão de Rodrigo Melo Franco.
Roberto Stanchi
A T R I M Ô N I O
Em relação ao patrimônio arqueológico, Assim, foi criada a categoria dos chamados
com a regulação imposta pela aprovação da “representantes do Iphan para assuntos de
Lei nº 3.924/61 e a saída de Rodrigo Melo arqueologia”. Em sua maioria pertencentes
P
Franco de Andrade, a cooperação estabelecida aos quadros das universidades federais, eles
D O
com o Museu Nacional ficou menos efetiva6. atuavam em conformação com o disposto no
E V I S T A
Além disso, Soeiro convida o museólogo e parágrafo 2º do art. 11 da Lei nº 3.924/61,
R
bacharel em direito Alfredo Theodoro Russins então publicada há seis anos:
para assessorá-lo nas questões relacionadas
com o patrimônio arqueológico. As escavações devem ser realizadas de acordo
Dessa forma, passa a atuar como assistente com as condições estipuladas no instrumento
do diretor, cargo até então não existente. de permissão, não podendo o responsável,
sob nenhum pretexto, impedir a inspeção dos
Nessa função, estabelece estreitas relações
trabalhos por delegado especialmente designado
com os arqueólogos do país, participando 179
pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico
de diversos projetos, como a implantação
Nacional, quando for julgado conveniente.
do Museu Arqueológico do Sambaqui de
Joinville. Além disso, era responsável pelo
Representantes honoríficos do Iphan,
repasse de verbas destinadas a vistorias e
por delegação, atuavam em seu nome em
salvamentos aos arqueólogos, que, por sua
ações de vigilância, na análise das propostas
vez, transmitiam as informações das pesquisas
para a realização de pesquisas, realizando
realizadas ao Iphan (Silva, 1996; Lima, 2001
ainda salvamentos esporádicos com as
e Saladino, 2010).
verbas regulares repassadas por Russins. Não
Contudo, foi na gestão de Soeiro que o
obstante, cabia também a esses representantes
Iphan ampliou consideravelmente a rede de
atender a denúncias de destruição de sítios
cooperação com os arqueólogos brasileiros,
arqueológicos (Lima, 2001 e Saladino,
6. A cooperação com o Museu Nacional prosseguiu ainda por
muito anos, só que em outros termos, mas contando ainda com a 7. Ver carta na sessão anterior (fase de delegação institucionali-
participação de Luíz de Castro Faria, conforme demonstra LIMA zada). Todavia, não encontramos qualquer comprovação de que
(2009). Soeiro teria se baseado na sugestão de Eduardo Galvão.
2010). Ainda segundo Tania Andrade Lima coordenado por Mário F. Simões (Museu Paraense
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Mário Simões, na Amazônia Legal; Nássaro de Costa, 1983; Simões e Araújo Costa, 1987).
Souza Nasser, no Rio Grande do Norte; Marcos Através desses convênios, os empreendedores
N
Chmyz, no Paraná; Walter Piazza e, posteriormente, casos, a datação dos materiais e a publicação dos
E
Roberto Stanchi
A C I O N A L
associada a uma definição prévia de conceitos, arqueologia brasileira. Algo semelhante ao
diretrizes, regramentos ou protocolos que, processo descrito por Timothy Mitchell
(1999) ao demonstrar que os mecanismos
N
por sua vez, balizarão a atuação daquele
R T Í S T I C O
que exerce uma representação. Entretanto, institucionais nunca estão confinados dentro
ao analisarmos as ações desenvolvidas pelos dos limites do que se chama Estado: “a
A
representantes do Iphan para assuntos aparente fronteira do Estado não demarca os
E
limites dos processos de regulação, mas é um
I S T Ó R I C O
de arqueologia, percebemos, através das
atividades por eles desempenhadas, que produto desses mesmos processos” (Mitchell,
elas iam muito além de uma representação, 1999:84). Nesse sentido é que justifico que
Roberto Stanchi
eles atuavam mais como delegados do que
A T R I M Ô N I O
quer seja no sentido da defesa dos
interesses, quer seja no sentido simbólico de como representantes, uma vez que suas
representatividade. Constantemente essas decisões eram decisões do poder estatal.
P
pessoas exerciam o poder decisório acerca das De fato, se por um lado houve,
D O
ações que deveriam ser realizadas em relação conforme Regina Coeli Silva (1996:54),
E V I S T A
ao patrimônio arqueológico, muitas vezes um “acomodamento por parte do Iphan
R
sequer necessitando de consulta ao Iphan. para a resolução de assuntos pertinentes
Isso fica claro numa passagem ocorrida com à arqueologia”, podemos dizer que os
arqueólogos aceitaram assumir um
Luiz Castro Faria, conforme aponta Tania
protagonismo que não lhes competia. Dessa
Andrade Lima (2009):
forma, o discurso de colaboração, assumido
Em ofício encaminhado aos diretores do Centro por grande parte da historiografia, parece,
Brasileiro de Arqueologia em 22 de abril de 1969, em alguma medida, ocultar que o regime
181
respondendo a denúncia de escavações e coleta de reciprocidades era, ao mesmo tempo,
de materiais em sítio pesquisado pela instituição, um limitado mecanismo de administração
Soeiro, como presidente da DPHAN, afirmou que burocrática em implementação, mas que,
“só ele (Castro Faria) pode(ria) realizar pesquisas ao ser posto em prática, conferia recursos e
sem autorização expressa desta Diretoria do poder aos seus participantes.
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Embora Renato Soeiro tenha tentado
sensibilizar o então ministro da Educação
Portanto, por mais que, semanticamente, e Cultura, Ney Braga, para a necessidade
tenha se estabelecido a conotação de uma de contratação de pessoal especializado,
representação, esses pesquisadores não agiam conforme atestam algumas correspondências8,
em nome do Iphan, eles eram o Iphan. essa estratégia de delegação permite que se
Em tal contexto, fica difícil estabelecer os entenda a organização da agência estatizada
limites que separavam a ação estatal e os
arqueólogos. Essa dificuldade marcou não 8. Trechos das correspondências foram publicados em: “Compa-
tibilizando os instrumentos legais de preservação arqueológica no
apenas o processo de institucionalização Brasil” (Silva,1996).
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
182
Roberto Stanchi O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Roberto Stanchi
A C I O N A L
também, em relação aos arqueólogos que pesquisadores que, por força de Lei nº
recebiam autorização para a realização de 3.924/61, necessitavam submeter ao Iphan
pesquisa. Segundo o que relata Alejandra pedidos de autorização para a realização de
N
R T Í S T I C O
Saladino (2010:93), Regina Coeli Pinheiro da suas pesquisas.
Silva sugeriu ainda a Destacamos que a disparidade apontada
A
nesse primeiro levantamento só reforça
E
(...) independização da organização em relação a condição de delegação dada a esses
I S T Ó R I C O
ao apoio de cientistas do Museu Nacional e outros profissionais em detrimento da condição de
institutos de pesquisa e a criação de um setor de
meros representantes, haja vista a confirmada
H
arqueologia no Iphan
Roberto Stanchi
autonomia com que esses delegados tratavam
A T R I M Ô N I O
as questões em seus respectivos nichos de
Uma vez contratada, conseguiu montar
atuação. Não obstante, essa independência
um pequeno quadro de servidores e, ainda no
P
dos delegados do Iphan para assuntos de
D O
mesmo ano, foi criado10, dentro da estrutura
arqueologia parece-nos indicar, em certa
E V I S T A
do Iphan (na época Sphan/Fundação
medida, um recuo cronológico naquilo
Nacional Pró-Memória), um Núcleo de
R
que a historiografia assume como principal
Arqueologia.
característica do período posterior a esse, o
Em relação a essa primeira tentativa
momento em que o Iphan passa a ter em
de institucionalização, Alejandra Saladino
seus quadros sete arqueólogos atuando em
(2010) compreende que a demora na
suas regionais, cuja característica principal
estruturação de um setor específico para
do período é descrita como de excessiva
tratar do patrimônio arqueológico foi uma
autonomia, tendo criado, mais uma vez,
“consequência não intencional de uma 185
grande disparidade na atuação do órgão. Ou
escolha contingencial da organização” e,
seja, parece que a excessiva autonomia dos
possivelmente, resultado de influência do que
arqueólogos regionais do Iphan reproduziu
a autora chama de “fator extra-institucional:
uma dinâmica já ritualizada de práticas
a consolidação da área da própria arqueologia
administrativas que, uma vez rotinizadas,
no país” (Saladino, 2010:93-94). Há aspectos
constituíam valores que foram rapidamente
interessantes nos apontamentos realizados
introjetados no novo quadro técnico que se
pela pesquisadora que merecem algumas
formava.
considerações.
Embora Alejandra Saladino (2010)
O primeiro deles refere-se à constatação,
tenha entrelaçado adequadamente aspectos
por parte da primeira arqueóloga do
relevantes em sua análise, não nos parece
Iphan, de que os delegados atuavam
ser possível compreender o atraso da criação
de forma distinta, não apenas sobre o
de um setor de arqueologia do Iphan
como resultado “não intencional de uma
10. Existem divergências a respeito da formalização da criação
do Núcleo. escolha contingencial da organização”. Ao
contrário, nos parece que a delegação das institucional, é possível dizer que esse quadro
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
responsabilidades do Iphan em relação ao ainda não mudou por completo. Ainda hoje,
A C I O N A L
conjunto de agentes que assumiu o Iphan. arqueólogos lidam com as atribuições desses
Estes constituíram uma forma própria de técnicos.
A
Roberto Stanchi
rede de alianças capaz de definir os termos da remonta ao período em que delegava parte
proteção do patrimônio arqueológico. considerável de suas atribuições, o que,
P
Foi por esse motivo que, conforme aponta naturalmente, não irá ocorrer nos mesmos
D O
Tania Andrade Lima (2001), o fortalecimento termos dos períodos anteriores. Da mesma
E V I S T A
do Núcleo de Arqueologia não foi visto com forma, o movimento contrário, ou seja, de
R
A C I O N A L
subordinada à Presidência e, portanto, não investigações” (Lima, 2001:12).
mais vinculada à Divisão de Tombamento e
Conservação – DTC. Entretanto, somente O MOMENTO DE
N
R T Í S T I C O
na gestão do arquiteto Augusto Carlos da DESMANTELAMENTO
Silva Telles é que foi publicado o primeiro
A
instrumento legal interno para regulamentar Entretanto, as reformas administrativas
E
o processo de concessão de autorização de implementadas pelo governo Collor
I S T Ó R I C O
pesquisas arqueológicas: a Portaria Iphan nº (1990-1992), dentre outras, extinguiram o
07 de 1988. Ministério da Cultura e o Iphan12, criando
Roberto Stanchi
O novo documento normativo passou o Instituto Brasileiro do Patrimônio
A T R I M Ô N I O
então a orientar os pedidos de autorização de Cultural – IBPC. Por extensão, foi
pesquisa, estabelecendo critérios para obtê- extinta a Coordenadoria de Arqueologia.
P
la e prazos para entrega dos relatórios. Foi A estrutura do órgão passou a contar
D O
também um marco na limitação dos feudos: com o Departamento de Identificação e
E V I S T A
grandes áreas de pesquisa, que antes ficavam Documentação – DID, o Departamento
R
indefinidamente sob a responsabilidade de Proteção – Deprot, o Departamento de
de um único pesquisador, agora ficariam Promoção – Deprom e o Departamento de
disponíveis apenas pelo tempo limitado pela Planejamento e Administração – DPA.
portaria. Como resultado, ocorreu o
Além disso, reduziu consideravelmente desmantelamento das ações da
a subjetividade e a discricionariedade dos Coordenadoria, uma vez que os arqueólogos
técnicos no processo de concessão das do Iphan foram distribuídos por novas áreas
187
autorizações de pesquisa, regulamentando e superintendências. Dessa forma, ainda que
a forma como o poder público federal, por ressalvados os contextos, tivemos, novamente,
intermédio do órgão responsável, poderia a pulverização das práticas administrativas
decidir acerca da realização das pesquisas, relacionadas com o patrimônio arqueológico,
mediante a apresentação de um “plano de que, mais uma vez, ficaram fortemente
trabalho” (Portaria Iphan nº 07/88). personificadas. Contudo, não mais na antiga
Com isso, a necessidade do fortalecimento figura dos delegados, mas, agora, na dos
de um quadro técnico especializado, poucos arqueólogos que passaram a atuar
que pudesse analisar os aspectos técnico- diretamente nas superintendências estaduais.
científicos contidos nos projetos e relatórios Esses técnicos, gozando de grande
sujeitos à avaliação do Iphan, ficava ainda autonomia, sobretudo se comparados aos
mais reforçada. Porém, mais uma vez, houve técnicos de outras áreas do Iphan, passaram
forte mobilização dos arqueólogos contra a a atuar quase que livremente, repetindo
norma, na medida em que além de significar
maior controle do Iphan sobre as pesquisas 12. Nesse período ainda existia o sistema Sphan/FNPM.
assim, ainda que ressalvadas as especificidades Meio Ambiente – Conama. O novo arranjo
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
das ações voltadas à proteção do patrimônio cumprimento mais efetivo das legislações
E
alguns documentos oficiais, quase sempre anterior, os técnicos do Iphan passaram a ser
produzidos no âmbito da Sociedade de cada vez mais demandados a analisar estudos
H
Roberto Stanchi
Cartas de Goiânia13, esses documento são No início dos anos 2000, houve uma
elucidativos, no sentido de demonstrar a tímida tentativa institucional de enfrentar
P
A C I O N A L
portarias emitidas entre 1991 e 2017, 98% que demonstra algumas das ambiguidades14
tinham como objetivo a obtenção de licença nas práticas administrativas adotadas.
ambiental e apenas 2% correspondiam ao
N
De outra forma, o termo carrega consigo
R T Í S T I C O
desenvolvimento de pesquisas acadêmicas. a ideia de que, através dos consultores, o
Esse dado corrobora a forte influência da Iphan pudesse “enxergar” o patrimônio
A
legislação ambiental e das normas do Iphan arqueológico do país e, portanto, à medida
E
no mercado de trabalho dos arqueólogos, que o enxergava, o órgão criava também o seu
I S T Ó R I C O
que passaram a ser cada vez mais requisitados poder de atuação sobre os sítios existentes.
para a realização de estudos atrelados ao Esse contexto de inserção das
Roberto Stanchi
licenciamento de empreendimentos. Como
A T R I M Ô N I O
pesquisas nas avaliações ambientais alterou
assinalam Caldarelli e Santos (2000:64), consideravelmente a forma tradicional
“o grande marco gerador de trabalho para de financiamento das mesmas, agora não
P
a arqueologia de contrato foi criado pela dependente exclusivamente das agências de
D O
Política Ambiental implantada no país”. fomento governamentais.
E V I S T A
Não obstante, ao regulamentar a Por fim, durante a reestruturação de
R
compatibilização das pesquisas com 2004, e no intuito de atender às crescentes
os estudos ambientais, essa norma demandas oriundas da arqueologia preventiva,
institucionalizava uma modalidade de foi instituída a Gerência de Patrimônio
pesquisa vinculada a uma empresa, instituição Arqueológico e Natural – Gepan, que, embora
de pesquisa ou universidade, que era hierarquicamente inferior à Coordenadoria,
contratada diretamente pelos empreendedores conferiu à arqueologia um lugar próprio
ou por empresas de consultoria de meio dentro do Iphan. Entretanto, coube a um
189
ambiente para a realização de pesquisas economista, e não a um arqueólogo, assumir o
arqueológicas. cargo de gerente da Gepan.
O desenvolvimento de pesquisas
vinculadas ao licenciamento proporcionou A FASE DE INTERNALIZAÇÃO
a identificação de sítios arqueológicos em
grande quantidade, por todo o território Em maio de 2009, durante a gestão
nacional, e os técnicos do Instituto muitas do presidente Luiz Fernando de Almeida,
vezes se referiam a esses consultores como o Iphan teve a sua estrutura regimental
sendo “os olhos do Iphan” nas áreas dos
alterada pelo Decreto nº 6.844/09. O órgão
empreendimentos.
continuava sendo dirigido por uma Diretoria
A utilização dessa expressão aqui é pro-
posital, pois além de muito utilizada entre 14. A ambiguidade das práticas administrativas do Iphan em rela-
os técnicos, conforme explicitado, remete a ção ao patrimônio arqueológico denota uma estratégia deliberada
de exercício do poder estatal, ou ainda, uma “tática de governo”
uma forma de conceber a atuação desses pes- em função dessa “governamentalidade que é ao mesmo tempo
exterior e interior ao Estado” (Foucault, 2008b), que o Instituto
quisadores-consultores como uma espécie de exerceu para o controle sobre esse tipo específico de patrimônio.
colegiada composta pelo presidente e quatro ambiental passou a compor oficialmente a
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Museus, que deixou de existir em função da das coordenações criadas dentro do CNA era
criação do Instituto Brasileiro de Museus a Coordenação de Pesquisa e Licenciamento.
– Ibram, deu lugar ao Departamento de Isso reforçava a mensagem institucional,
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Roberto Stanchi
Roberto Stanchi
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II - elaborar, consolidar, gerenciar e monitorar os aplicação de penalidades e multas, nos termos da Pedra do Ingá, PB
Acervo: Iphan.
planos, programas e ações das atividades inerentes legislação pertinente; e
à sua área de atuação;
VII - subsidiar o CNA na avaliação e proposição
191
III - monitorar a execução orçamentária e de medidas mitigadoras e compensatórias pelo não
financeira dos recursos disponibilizados para os cumprimento das ações necessárias à proteção do
projetos de sua competência; patrimônio arqueológico.
pelo licenciamento ambiental, e não por não exigia como pré-requisito qualquer
uma valorização da área, como ao tempo de comprovação de habilitação profissional na
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foi não apenas a subordinação do Centro duras críticas dos arqueólogos brasileiros.
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As implicações do modelo
desenvolvimentista adotado pelo Estado patrimônio, desde sempre marginalizada
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de 661 17, mais que o dobro dos índices o memorando permitia que os diagnósticos
registrados em 2002, ano de publicação (avaliações exigidas pela Portaria Iphan
da Portaria Iphan nº 230/02. Porém, a nº 230/02) fossem realizados sem que
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obtenção das autorizações de pesquisa, as houvesse necessidade de intervenção em
anuências às licenças e, por decorrência, sub-superfície e, dessa forma, dispensava esse
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o crescimento exponencial da arqueologia tipo de estudo da análise e aprovação prévia
E
preventiva no Brasil esbarravam, quase do Iphan, diminuindo consideravelmente o
I S T Ó R I C O
sempre, na quantidade inexpressiva de número de documentos a serem analisados
técnicos do Instituto, composto basicamente pelos técnicos.
Roberto Stanchi
pelos antigos arqueólogos e pelos poucos Interessante destacar que avaliação desse
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“técnicos em gestão do patrimônio tipo poderia ser realizada para qualquer
arqueológico” recém-aprovados18, o que tipologia de empreendimento, dos mais
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resultava na notória morosidade das simples aos mais complexos, e, não obstante,
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avaliações realizadas pelo órgão. o texto do memorando, que estabelecia os
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Como resultado desse quadro, e de parâmetros de sua execução, trazia como
forma semelhante ao forte questionamento
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justificativa o fato de que “publicar todas as
realizado quando da criação do Núcleo de pesquisas de diagnóstico não interventivo
Arqueologia, ainda na década de 1980, os em Diário Oficial só seria mais oneroso”,
arqueólogos, mais uma vez, reincorporaram além de apresentar uma enorme confusão
ao seu discurso de críticas ao Iphan a retórica entre metodologia de pesquisa e fases do
da dúvida quanto à qualificação profissional e licenciamento ambiental:
acadêmica dos seus analistas, dessa vez tendo
como aliados inúmeros empreendedores, 193
É importante ressaltar que os diagnósticos
igualmente dependentes das manifestações arqueológicos não interventivos relativos
do Iphan para a construção dos seus a programas de arqueologia preventiva
empreendimentos. são produzidos no momento em que o
Foi nesse contexto, e na tentativa empreendimento ainda está elaborando seus
de reverter a enorme morosidade e estudos de viabilidade, sendo imprudente,
portanto, exigir que estudos prospectivos sejam
acelerar o processo de análise dos estudos
desde já realizados, afinal, as intervenções em sítios
arqueológicos no âmbito dos licenciamentos,
arqueológicos devem ser sempre minimizadas,
que o CNA estabeleceu, ainda em 2008,
buscando sempre a preservação dos mesmos em
por meio de um Memorando Circular19, os sua integridade caso exista essa possibilidade
(Memorando Circular Gepam/Depam nº
17. Dados do Centro Nacional de Arqueologia – CNA.
18. Termos utilizados no edital de seleção do concurso de 2005.
002/2008).
19. É de se destacar o fato, no mínimo sui generis, que um
memorando, documento administrativo cuja finalidade exclusiva
é a comunicação interna, tenha sido utilizado durante anos, sem A confusão conceitual fica evidente
questionamentos internos e externos, para estabelecer procedi-
mentos distintos da Portaria Iphan n° 230/02. sobretudo em dois aspectos: 1) é exatamente
pelo fato da avaliação ser realizada no controle. E curiosamente, no período em que
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Iphan, esse tipo de restrição; e 2) sem dúvida, hoje se reportam a essa época com grande
as intervenções em sítios arqueológicos devem saudosismo, sempre destacando as ótimas
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ser minimizadas, mas, na fase de diagnóstico, relações que mantinham com o economista
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os sítios ainda serão identificados, sendo que respondia pela Gerência de Arqueologia,
que, na maior parte das vezes, o processo de então responsável pelas decisões relacionadas
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sob responsabilidade do Ibama e, principal- maioria dos licenciamentos dos quais o Iphan
mente, indicar que qualquer sítio arqueo- participava.
lógico, existente na área de um empreendi- Entretanto, no início de 2013,
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mento, deveria dar lugar ao mesmo20. integrantes do alto escalão do governo
Além disso, pela primeira vez, um federal, mais especificamente, o ministro de
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documento normativo passava a exigir Minas e Energia, Edison Lobão, acusavam
E
a atuação do Iphan nos licenciamentos publicamente o Iphan e as questões ambientais
I S T Ó R I C O
ambientais, não apenas no âmbito do como os principais responsáveis pelos atrasos
patrimônio arqueológico, mas também em na concessão das licenças das obras que
Roberto Stanchi
relação aos demais bens culturais federais poderiam evitar a crise no sistema elétrico:
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acautelados, definidos conforme art. 2º inciso
I da PI n° 419/11: Questões ambientais já não são o único
entrave para o andamento das obras do setor
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Art. 2º. Para os fins desta Portaria, entende-se elétrico brasileiro. Um dos principais obstáculos
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por: aos empreendimentos de geração e transmissão de
II - Bens culturais acautelados: os bens energia atualmente é o Instituto de Patrimônio
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culturais protegidos pela Lei nº 3924, de 26 de Histórico e Artístico Nacional (Iphan), segundo
julho de 1961, os bens tombados nos termos do o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (O
Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 e Estado de S. Paulo, 3 de março de 2013)21.
os bens registrados nos termos do Decreto 3551,
de 4 de agosto de 2000, indicados no Anexo I. A partir da possibilidade de um novo
apagão no país, o Iphan passou a ser visto
Contudo, suas diretrizes restringiam-se como um problema pelo governo Dilma
195
aos empreendimentos licenciados pelo Ibama, Rousseff, uma vez que foi considerado,
que, embora sejam de grande magnitude e juntamente com outros órgãos da
complexidade, são a minoria dentre aqueles administração pública federal, sobretudo a
que tramitam no Iphan, quando comparados Fundação Nacional do Índio – Funai, como
aos que são licenciados pelos órgãos estaduais motivo de atraso das obras do setor elétrico
e municipais de meio ambiente. Dessa forma, que poderiam impedir uma crise no sistema.
os documentos normativos mais importantes Esse atraso decorreria, no entendimento
para os arqueólogos continuavam a ser a do Ministério de Minas e Energia – MME,
Portaria Iphan n° 230/02 e o Memorando da morosidade do Instituto em analisar os
Circular n° 002/2008, pois ambos relatórios de pesquisas arqueológicas que
compunham os estudos ambientais desses
20. Portaria Interministerial nº 419/11 - Art. 6º, inciso III: empreendimentos.
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
- Avaliação acerca da existência de bens acautelados identificados
na área de influência direta da atividade ou empreendimento,
bem como apreciação da adequação das propostas apresentadas 21. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-diz-que-
para o resgate. -iphan-atrasa-obras-de-energia-imp-,1003751.
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
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Pinturas Rupestres, Dessa forma, nesse mesmo ano, a Portaria Arqueologia Brasileira – SAB23.
Serra da Capivara, PI
Acervo: Iphan.
Iphan n° 230/02, publicada na década As modificações elaboradas pela nova
anterior, passou a ser objeto de revisão por Direção do CNA foram apresentadas, pela
196
parte da nova Direção do órgão, visando primeira vez, ainda em termos conceituais,
sua substituição por uma nova Instrução a um grande número de arqueólogos no
Normativa. Esse processo, por sua vez, foi principal congresso de arqueologia do país,
desencadeado um ano após ocorridas grande
evento organizado pela SAB, na cidade de
mudanças na Direção do CNA, com a
Aracaju, no ano de 2013. A presidente do
substituição de todos os coordenadores do
Iphan naquele período, Jurema Machado,
Centro, e também da sua diretora, causando
também esteve presente, algo inédito até então
assim uma enorme tensão no campo22
nos congressos da SAB.
da arqueologia, deflagrando uma série de
manifestações contrárias ao Iphan por parte Esse foi o primeiro grande evento onde
de seus representantes, incluindo, em alguns pude presenciar, como servidor do Iphan, o
momentos, a principal associação científica
23. Análise dos conflitos que ocorreram entre arqueólogos, SAB,
de arqueologia do país, a Sociedade de Ministério Público Federal – MPF e Iphan ao longo de todo o
processo que resultou na publicação da Instrução Normativa
Iphan nº 01 de 2015 está registrado em artigo de Saladino (2010)
22. Campo: aqui empregado na acepção de Bourdieu (1989). e tese de doutoramento de Stanchi (2017).
forte antagonismo dos arqueólogos, manifes- novos arqueólogos – corroborava minhas
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do Instituto. Na verdade, minhas principais conhecido como uma “casa de arquitetos”,
impressões decorrem, ainda hoje, do meu passaria a ter, em algumas superintendências,
estranhamento acerca das manifestações que mais arqueólogos, dessa vez com formação
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pareciam mais preocupadas em questionar específica na área, do que qualquer outra
a legitimidade de um órgão público em ela- categoria profissional; e, por fim, meu
A
borar uma normativa, do que, precisamente, entendimento era o de que a futura instrução
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discutir os aspectos técnicos ou as implicações normativa melhoraria, de forma significativa,
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daquilo que tinha acabado de ser apresen- os procedimentos para a realização das
tado. De uma forma geral, é possível dizer pesquisas arqueológicas no contexto dos
Roberto Stanchi
que as preocupações externadas durante o licenciamentos.
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evento não guardavam relação direta com o Durante a continuidade do longo
patrimônio arqueológico, mas com o fato processo de elaboração, discussão e
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das pessoas que ali estavam representando o aprimoramento da minuta que viria a se
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Iphan terem ou não capacidade de conceber tornar a Instrução Normativa Iphan n° 01,
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as propostas realizadas e, em especial, condu- pude participar de inúmeros seminários e
audiências públicas que se propuseram a
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zir o processo de mudanças. A partir dos em-
bates que foram travados após a apresentação discutir o documento. É interessante notar
da proposta, é possível dizer que, dessa reu- como a “cena participativa” dessas reuniões,
nião em diante, os discursos da diretoria da em especial a audiência pública ocorrida no
SAB em relação ao Iphan voltaram aos duros Rio de Janeiro, é organizada para atingir
termos da década de 1980. um fim específico, como demonstra Bronz
Confesso que o estranhamento era (2011). Esses eventos, caracterizados por
normas de condutas preestabelecidas acerca 197
duplo, pois enquanto arqueólogo do Iphan,
acostumado ao fato da arqueologia ter sido, de como devem ocorrer as discussões,
por décadas, relegada a um papel secundário deixavam evidente a utilização de um modelo
na Instituição, minha impressão naquele predeterminado de persuasão que começava
momento era totalmente diferente. No meu a transparecer na definição dos participantes,
caso, talvez fortemente influenciado pela escolhidos pelo próprio Ministério Público
minha “visão intramuros”, a arqueologia, por Federal, refletindo um desequilíbrio na defesa
força de uma conjuntura específica, estava das ideias que foram debatidas25.
assumindo um protagonismo crescente Após quase dois anos de intensas
dentro do órgão. O fato de toda a Direção do discussões e, sobretudo, do recebimento de
Instituto estar envolvida no fortalecimento
24. Concurso para servidores temporários realizado no ano
da área – solicitando formalmente ao seguinte (2015), que, ao contrário do concurso de 2005, exigia
Ministério do Planejamento e à Casa Civil da em seu edital formação específica na área de arqueologia.
25. Para discutir a Instrução Normativa do Iphan, o MPF con-
Presidência da República a realização de um vocou três procuradores federais, o promotor de justiça de Minas
Gerais, a diretoria da SAB e a presidente do Iphan, que nessa
concurso que previa a admissão de oitenta audiência foi representada por um diretor e um coordenador.
contribuições advindas dos mais variados específico de verificação do cumprimento
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
Roberto Stanchi
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período em que a nova instrução normativa que os órgãos de meio ambiente começaram
foi discutida. Assim como não surpreendeu a demandá-los, conforme os requisitos
que, naquele contexto, muitos arqueólogos previstos na Instrução Normativa, para a
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tenham desconsiderado o fato de que realização de pesquisas arqueológicas.
partiu do Iphan o movimento de levar ao Ou seja, a partir do novo documento
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conhecimento de todos os associados da normativo, o Iphan passou a participar, cada
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SAB, durante a realização do seu Congresso vez mais, dos processos de licenciamento
I S T Ó R I C O
Nacional, os princípios que norteavam a ambiental de inúmeras tipologias de
elaboração do documento, abrindo, desde o empreendimentos que antes não participava,
Roberto Stanchi
primeiro instante, um canal de comunicação e, por decorrência, solicitando um número
A T R I M Ô N I O
exclusivo para tratar do assunto. ainda maior de pesquisas arqueológicas,
Acredito que, em certa medida, toda essa algo só reconhecido pelos arqueólogos e,
P
tensão confirma a tese de que o modelo de em especial, pela SAB após um ano de sua
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delegação, adotado por mais de quarenta publicação.
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anos (1937-1967 e 1967-1979), deixou A forte reação de alguns segmentos
rastros, na medida em que, até os dias atuais,
R
empresariais, em especial aqueles que, sob
tenta-se negar ao Iphan as suas atribuições o regramento da Portaria Iphan 230/02,
e as de seu corpo técnico, mesmo neste estavam isentos da realização de pesquisas
caso onde, de maneira sem precedentes, arqueológicas, fez com que um deputado
a Instituição buscou uma construção federal do estado do Mato Grosso,
participativa desde o primeiro momento. Os representando o chamado agronegócio,
arqueólogos, por sua vez, souberam utilizar apresentasse ao Congresso Nacional o
199
a liberdade a eles conferida, legitimando Projeto de Decreto Legislativo n° 540, cujo
suas práticas sem praticamente qualquer principal objetivo era “sustar a aplicação da
ingerência estatal. Instrução Normativa n° 01 de 2015”, tendo
Entretanto, passados dois anos de como justificativa a excessiva burocratização,
sua publicação, ao contrário de algumas a morosidade e os “altíssimos custos
previsões pessimistas que chegaram a financeiros” que a norma estava acarretando
anunciar o “fim da arqueologia preventiva”28 ao setor empresarial do país.
no país, alguns setores empresarias, antes Assim, no final de 2016, através de
isentos de qualquer tipo de avaliação de novo comunicado publicado em setembro
impacto ao patrimônio arqueológico, de 2016, a SAB se posicionou contra essas
rapidamente passaram a ver como excessiva ações, apoiando o Iphan e reconhecendo
que sustar a instrução normativa significaria
28. Em carta endereçada aos arquelógos brasileiros e à presidente “fragilizar os principais mecanismos de
do Iphan, um promotor da República, fortemente envolvido
no processo de contestação da Instrução Normativa, referiu-se à proteção ao patrimônio arqueológico”,
norma como uma “aberração”, sentenciando o fim das pesquisas
arqueológicas preventivas no país. podendo “vir a comprometer também o
processo de licenciamento ambiental, pois a REFERÊNCIAS
O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações
regramentos que incidiam na forma com que Doutorado). UFRJ/PPGAS, Museu Nacional. Rio de
E
Janeiro, 2011.
I S T Ó R I C O
2009.
queológico, representantes de setores empre-
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cheque a preservação do patrimônio e a exis- Científica Brasileira, Centro de Memória do Conselho
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
202
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural
Yussef Daiber t Salomão de Campos
a c i o n a l
d esafios proposTos pela c onsTiTuição de 1988
n
ao paTrimônio culTural
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
inTrodução e Papuri; o Complexo Cultural do Bumba-
meu-boi do Maranhão; o Modo Artesanal de
A Constituição Federal de 1988 foi, sem Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro
P
e das serras da Canastra e do Salitre/Alto
d o
dúvida, uma ponte para a atual dimensão
e v i s t a
que hoje temos do patrimônio: deixa de Paranaíba; o Ritual Yaokwa do povo indígena
ser “histórico e artístico” para se tornar Enawenê Nawê; Ritxòkò: expressão artística
r
“cultural”, ao menos pela perspectiva jurídica, e cosmológica do povo Karajá; o Sistema
assim como a categoria imaterial e o registro Agrícola Tradicional do Rio Negro; o Toque dos
adentram o ordenamento jurídico pátrio. Ao Sinos em Minas Gerais tendo como referência
determinar, no caput de seu artigo 216, que São João del-Rei e as cidades de Ouro Preto,
“constituem patrimônio cultural brasileiro Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo,
os bens de natureza material e imaterial”; Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes1.
e, no §1º do mesmo artigo, que “o poder O desafio de atender à ampliação 203
que se legislasse, especificamente, sobre o 2010 etc.). Contudo, gostaria de aqui trazer
desafios ao Iphan na gestão do patrimônio Escravatura em 1988: “Eu acho que ‘jogaram
E
processo constituinte pátrio e o que a Carta ele denomina “mito das três raças” que
D O
Constitucional nascida dele oferece como construíram a nação. Subjugar essa cultura a
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parágrafo esquece que o tombamento é um processo Fundamental e Médio (Santos, 2005:33); intenso
jurídico-administrativo extremamente complexo, movimento pela aprovação do Projeto de Lei
N
que deve atender determinadas exigências, a das Cotas Raciais (PL 73/99). Amauri Mendes
R T Í S T I C O
primeira das quais é a precisa identificação de seu Pereira indica que a partir desse momento os
objeto. Um tombamento genérico como esse cria militantes negros afirmam a “necessidade de
A
expectativas, ao mesmo tempo que não atende a tornar a luta contra o racismo uma luta de toda a
E
I S T Ó R I C O
nenhuma; ele cria o direito e o dever de preservar sociedade brasileira” (Pereira, 2009:224). Um dos
uma categoria indefinida de bens6. pontos de pauta defendido por esse movimento
foi apresentado durante a preparação para o
H
processo Constituinte em 1987, na 1º Convenção
A T R I M Ô N I O
Em relação aos movimentos negros (como
Nacional do Negro pela Constituinte, realizado
o Movimento Negro Unificado – MNU),
em Brasília, nos dias 26 e 27 de agosto de 1986,
desde a década de 1970 podemos identificar
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s
convocado pelo Movimento Negro Unificado
P
mobilizações em torno da democratização
D O
(MNU). Estes apresentaram a proposta de uma
do país. Suas reivindicações encontrarão eco
E V I S T A
norma que garantisse os direitos das comunidades
não só na virada entre as décadas 1970 e negras rurais do Brasil. Os deputados
R
1980, embora dificultadas pelo viés militar da Constituintes ligados a esse movimento, como
política, como também marcarão presença na por exemplo, Carlos Alberto Caó (PDT/RJ) e
própria Constituinte, na atuação parlamentar, Benedita da Silva (PT/RJ), apresentaram essa
questão durante o processo Constituinte (1987-
por exemplo, da primeira congressista
1988). Após vários embates aprovou-se o art.
negra do país: Benedita da Silva. A respeito,
68 do Ato das Disposições Constitucionais
Cardoso e Gomes (2011) afirmam: Transitórias (ADCT) na Constituição de
1988 que determina que “aos remanescentes 205
Com o nomeado ”fervilhar dos anos de 1970”, das comunidades dos quilombos que estejam
o Movimento Negro Unificado (MNU) passa ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
tanto a denunciar, de modo mais sistemático, o definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
racismo como parte estruturante da sociedade respectivos (Cardoso e Gomes, 2011).
brasileira quanto exige políticas de ações
afirmativas para um amplo escopo de demandas.
Sobre os antecedentes da ANC, o
antropólogo Alfredo Wagner Berno de
Posso enumerar algumas exigências
Almeida indicou que “em 1986, ocorreu o I
que fariam parte da Constituinte que se
Encontro das Comunidades Negras Rurais
aproximava:
no Maranhão. Havia uma certa mobilização”,
Pode-se citar o exemplo da organização das
como contextualização do engajamento
mulheres negras, em especial no “combate às político em era de assembleia constituinte.
diversas manifestações de racismo, sexismo e Determinando a gênese das exigências sobre
os sítios quilombolas e da organização dos
6. Idem. grupos reivindicantes, enfatizou que
(...) o falar em ”terras de preto” pelos vê, são 20 anos... 25 anos. Mas o que é
Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural
organizativa. Uma já dialogava com a outra. aqueles que continuaram lá, continuam sendo
quilombolas? Onde se faz o corte temporal
N
negro das ”terras de preto” enquanto quilombos. quilombos é atribuição do Incra. O documento
A T R I M Ô N I O
Isso foi posterior. A ressemantização ocorreu ainda apresentado na Audiência Pública em nome
em 1988, mas posterior à Constituição (Berno da ABA refere-se ao direito à diferença e aos
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s
9. Idem.
7. Entrevista concedida ao autor, em 29 de abril de 2013, na cida- 10. Entrevista concedida ao autor, em 10 de abril de 2013, da
de de São Paulo, capital. cidade de Brasília, por telefone.
8. Idem. 11. Idem.
Tambor de Crioula
Acervo: Arquivo Iphan.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
207
Foram três anos de intensos debates, desde questões de direitos que ainda não estavam
o momento em que foi aprovado o processo definidos. E demandando como parte da sociedade
Constituinte. O movimento indígena, então mobilizada em torno destes novos direitos; (...)
A
DINÂMICA
P
Desde a aprovação da proposta de realização Art. 67. A União concluirá a demarcação das
de uma Assembleia Constituinte, em 1985, terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da
208 as organizações indígenas e de apoio à causa promulgação da Constituição.
indígena, além de juristas, movimentaram- Art. 68. Aos remanescentes das comunidades
se para debater a questão. Foram produzidas dos quilombos que estejam ocupando suas terras
propostas de estudos no campo do Direito é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
Internacional Comparado; inovação de leis; o Estado emitir-lhes os títulos respectivos
documento com propostas apresentado ao (Brasil, 1988).
governo brasileiro por meio do Ministro da
Justiça e ao Presidente da Comissão de Estudos Durante a constituinte, esses textos
Constitucionais, Afonso Arinos, nomeado na estavam alocados, originalmente, aos textos
época pelo Presidente da República. Documentos que se transformaram nos artigos 231, §
que sintetizavam as demandas das populações 1º, e 216, § 5º, que foram aprovados com a
indígenas também foram elaborados e enviados
seguinte redação (Brasil, 1988):
ao Congresso Nacional, além da promoção de
Art. 231, § 1º - São terras tradicionalmente
intensa discussão no âmbito da sociedade civil
ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
organizada em conjunto com o movimento
indígena, juristas, academia e mídia (Oliveira,
12. Entrevista concedida ao autor, em 3 de junho de 2013, em
2009:94-95). Belo Horizonte, Minas Gerais.
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades definam as áreas dos índios urgentemente.
A C I O N A L
e as necessárias à sua reprodução física e cultural, que trata dos direitos indígenas, talvez seja
segundo seus usos, costumes e tradições. desnecessário incluir aqui esta mesma questão
N
Art. 216, § 5º - Ficam tombados todos social. Não tenho uma posição formada, mas acho
R T Í S T I C O
os documentos e os sítios detentores de que os direitos das comunidades indígenas já estão
reminiscências históricas dos antigos quilombos. inseridos na Constituição. E temos de lutar para
A
preservá-los14. (grifo nosso)
E
I S T Ó R I C O
Durante a Assembleia Constituinte havia,
ao fim do que apresenta o parágrafo 1º do Como lutar para preservar aquilo
que se entende desnecessário? A reforma
H
artigo 231 acima referido, a expressão
A T R I M Ô N I O
que irá reconhecer a propriedade de terra
(...) segundo seus usos, costumes e tradições, de índios não será tratada em Comissão
competente? Encarar assim esse tema, como
Yu s s e f D a i b e r t S a l o m ã o d e C a m p o s
estando incluídas as áreas necessárias à preservação
P
do meio-ambiente e do seu patrimônio cultural . 13
fizeram Lobão e Oliveira, me faz buscar em
D O
Bourdieu (2007:11) uma ratificação de meu
E V I S T A
Logo, vejamos: a relação entre patrimônio posicionamento. Afirma ele que
R
e propriedade da terra estava previamente
estabelecida. Esses irmãos siameses – terra (...) as diferentes classes e frações de classes
e cultura – não poderiam ser desvinculados estão envolvidas numa luta propriamente
simbólica para imporem a definição de mundo
sem o risco de morte para ambos. Interesses
social mais conforme aos seus
de proprietários de terra e de latifundiários
interesses (...).
falaram mais alto. A comissão destinada à
Reforma Agrária, presidida por Edison Lobão 209
Claro
(Partido da Frente Liberal – PFL/MA), em
está qual
toda sua extensão de tratativas, nada debateu
foi a visão
sobre os quilombolas e, quanto aos indígenas,
vitoriosa nesse
foi limitada. Nos dizeres de Dante de
processo.
Oliveira, então Ministro da Reforma Agrária:
13. Anexo à Ata da 3ª Reunião da Subcomissão dos Negros, Po- 14. Anexo à Ata da décima terceira reunião ordinária da subcomis-
pulações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. 22 de abril de são da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, realizada
1987. em 6 de maio de 1987.
N O TA S REFERÊNCIAS
Desafios propostos pela Constituição de 1988 ao patrimônio cultural
FINAIS
A C I O N A L
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
212
Milton Guran Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
Milton Guran
A C I O N A L
S OBRE O LONGO PERCURSO DA MATRIZ AFRICANA
N
PELO SEU RECONHECIMENTO PATRIMONIAL COMO UMA
R T Í S T I C O
CONDIÇÃO PARA A PLENA CIDADANIA
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Quando o Serviço do Patrimônio consolidar a construção de uma memória
Histórico e Artístico Nacional, primeira social e histórica europeizada e para promover
versão do Iphan, foi criado, estávamos a sistemática desvalorização e mesmo o
P
distantes duas gerações apenas do término apagamento do aporte africano à construção
D O
E V I S T A
do maior e mais longevo regime escravagista da nacionalidade.
das Américas. Em mais de três séculos, o A institucionalização de um projeto
R
Brasil tinha absorvido cerca de 4 milhões, republicano de construção de memória
dos 10 milhões de cativos africanos, que, ganhou relevância a partir da década de
estima-se, tinham chegado vivos neste 1930, um momento em que se vivia uma
lado do Atlântico, vítimas do tráfico, hoje espécie de refundação do Estado brasileiro,
considerado crime contra a humanidade. quando tomou corpo o debate a respeito
Esse contingente de mão de obra forçada da composição da população brasileira
viabilizou o projeto colonial português e a e da construção da identidade nacional. 213
posterior consolidação da nação brasileira. Datam desse período as principais obras de
Salvador e Rio de Janeiro, sucessivas capitais Arthur Ramos e Gilberto Freyre, para citar
do país, chegaram a ter mais da metade da sua apenas dois dos autores mais polêmicos
população composta por africanos e crioulos que colocaram a questão racial em primeiro
escravizados ou libertos e por africanos livres plano nos debates sobre a identidade
que aqui viviam. nacional. Mário de Andrade, por sua vez,
Essa situação era incompatível com o organiza por essa época o Departamento
projeto colonial e civilizatório ocidental, de Cultura e Recreação da Prefeitura de
tendo sido, desde o Segundo Império, São Paulo e inicia seu ambicioso projeto de
objeto de todo tipo de ações de Estado para pesquisa sobre folclore e cultura popular, que
revertê-la. Às óbvias políticas de imigração iria levá-lo a fundar, em 1937, a Sociedade
visando ao branqueamento demográfico e à de Etnografia e Folclore.
substituição da mão de obra negra pela do Esse debate foi bem capitalizado pelo Lavagem simbólica
do Cais do Valongo.
imigrante europeu somaram-se medidas para governo Vargas, que acabara de enfrentar Foto: Milton Guran.
seu maior desafio com a Revolução escamoteada no discurso oficial, como se
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
de patrimônio cultural mais uma forma de e artístico nacional dada pelo art. 1º do citado
promover a unidade nacional. Tanto é que a decreto-lei:
Constituição de 1934 foi a primeira a tratar
N
R T Í S T I C O
o Império, tinham esbarrado sempre no memoráveis da história do Brasil, quer por seu
I S T Ó R I C O
da noção de nação.
A T R I M Ô N I O
de patrimônio – observa Lima (2012:37) de algo que merecesse ser preservado, ainda
que como uma parte específica da categoria
R
institucionalização do patrimônio.
Nesse sentido, o ministro da Educação materialidade à identidade nacional –, o
e Saúde Pública Gustavo Capanema lugar de destaque absoluto coube à arte e às
214 edificações ligadas diretamente à colonização
encarregou Mário de Andrade, reconhecido
por suas pesquisas sobre a cultura brasileira, portuguesa, já que o patrimônio cultural a ser
de elaborar o projeto do que viria a ser o preservado era entendido como patrimônio
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico material revestido de caráter monumental.
Nacional – Sphan. Esse projeto, após receber Como as matrizes indígena e africana não
contribuições de Rodrigo Melo Franco de apresentavam edificações que testemunhassem
Andrade, serviu de base para o Decreto-lei suas contribuições, justificava-se, aos olhos
nº 25, de 30 de novembro de 1937, que dos gestores, que o foco deveria estar nos
regulamentou a criação e o funcionamento do exemplares materiais da civilização e da arte
Sphan, o qual foi presidido por Rodrigo Melo europeias.
Franco de Andrade por trinta anos. Cabe lembrar que a salvaguarde e a
Embora a diversidade cultural brasileira preservação eram efetivadas através do
tenha sido um dos fatores que alavancaram tombamento e esse instituto, por definição,
a criação do Sphan, a contribuição africana é aplicável apenas à cultura material. Como
a essa diversidade foi, desde o início, reforça Lima (2012:39),
(...) a escassez de referências das matrizes Interessante notar que esse tombamento,
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
africanas e indígenas nesse momento inicial que não se enquadra nos princípios então
no campo da preservação poderia ser explicada
A C I O N A L
vigentes na Instituição, foi feito de forma
pela suposta ausência de testemunhos materiais
sumária, sem justificativa ou mesmo descrição
das populações e pela tendência em valorizar as
N
detalhada dos objetos, o que dificulta o
edificações representativas das formas estéticas
R T Í S T I C O
e arquitetônicas europeias. A existência de entendimento da sua razão de ser. Segundo
apenas um instrumento jurídico e o foco na Lima (2012:46),
A
monumentalidade do patrimônio material também
E
contribuíram para que eventuais vestígios materiais (...) a “preocupação” do Sphan que culminou
I S T Ó R I C O
vinculados ao universo cultural negro e indígena na preservação do Museu de Magia Negra não
não fossem valorizados a ponto de fazerem parte pode ser considerada um reconhecimento, nos
H
do conjunto de bens culturais. A maior parte moldes do que se pratica atualmente em relação às
A T R I M Ô N I O
da trajetória da política de preservação no Brasil comunidades quilombolas, terreiros de candomblé
esteve relacionada à manutenção de bens culturais ou mesmo às manifestações de natureza imaterial
representativos de uma elite cultural e social que constituintes do universo cultural afro-brasileiro.
P
construíram por meio dos discursos intelectual
D O
A lógica higienista e a literatura produzida sobre os
e técnico um retrato da nação a partir de um
E V I S T A
negros, no início da atuação do Sphan, indicavam
conjunto específico de bens culturais. uma percepção negativa de suas manifestações
R
culturais objetificada na criminalização de suas
Na prática, então, o órgão encarregado de práticas e na apreensão de seus objetos de culto.
zelar pela proteção do patrimônio histórico e
artístico surgia com a missão precípua de dar Em outras palavras, esse tombamento
Milton Guran
visibilidade, legitimar e garantir perenidade à servia como prova da ligação da cultura
matriz cultural europeia. de matriz africana com práticas então
Nesse quadro, causa estranheza o consideradas ilegais e associadas ao mal.
215
tombamento pelo Sphan, poucos meses Em suma, como analisa Alexandre Corrêa
depois da sua criação, do Acervo do Museu (2006:40, apud Lima, 2012:46), o bem
da Magia Negra, constituído pelas apreensões tombado constitui
da Seção de Toxicos e Mystificações (sic) da
Polícia do Distrito Federal, em cumprimento (...) uma coleção museológica que representa
do artigo 197 do Código Penal Republicano, os conflitos civilizacionais e culturais no campo
de 1890, que proibia “o espiritismo, a magia e religioso brasileiro, do ponto de vista de uma
seus sortilégios”. Inscrito no Livro do Tombo sociedade eurocêntrica, iconoclasta, positivista e
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, cientificista.
esse foi o primeiro tombamento de caráter
etnográfico do país. Segundo Conduru Por tudo isso, Lima (2012:47) sublinha
(2013:199), a solicitação de tombamento que seria equivocado interpretar esse
teria sido feita ao Sphan pelo delegado Silvio tombamento como um reconhecimento
Terra, que empresta seu nome à Acadepol, a de um bem cultural ligado à cultura afro-
Academia Estadual de Polícia Silvio Terra. brasileira, tendo em vista, além do já
exposto, o contexto adverso demonstrado Efetivamente, foram necessários 48 anos –
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
pelo discurso negativo dominante naquele mais da metade da existência do órgão – para
A C I O N A L
período sobre os afro-brasileiros e suas que outro bem de matriz africana figurasse na
práticas culturais. Contribui ainda para o Lista dos Bens Culturais Inscritos nos Livros
estranhamento, o fato de que o tombamento do Tombo, no caso, a Serra da Barriga (AL)
N
R T Í S T I C O
pelo Iphan até a publicação do livro sobre com apoio da Fundação Cultural Palmares
E
Museu de Magia Negra em 1938, um acervo que, noção de que a “pedra e cal” constitui a mais
dentre outras peças, se constituía de objetos de
R
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
decisivos debates em torno do tombamento sempre mantendo o mesmo entendimento de
A C I O N A L
da Serra da Barriga (tombada como que o patrimônio nacional a ser preservado e
Patrimônio Natural) e do Terreiro da Casa valorizado era aquele de caráter monumental
que remetia à matriz civilizatória europeia.
N
Branca, efetivados dois anos mais tarde. De
R T Í S T I C O
um lado estava a corrente representada por Em tempos de redemocratização, no final
Renato Soeiro, que assumiu o DPHAN em da década de 1970, a principal queixa ao
A
1967, com a aposentadoria de Rodrigo Melo trabalho do Iphan por vários setores do
E
governo e, sobretudo, da sociedade civil
I S T Ó R I C O
Franco de Andrade1, e de outro, a corrente
voltada para a diversidade cultural brasileira, era justamente a ausência de políticas
liderada por Aloisio Magalhães, criador do patrimoniais que contemplassem outros
H
elementos da cultura brasileira que não
A T R I M Ô N I O
Centro Nacional de Referência Cultural –
CNRC em 1975 e que viria a assumir o
2 fossem exclusivamente de origem europeia
cargo de Diretor-geral do Iphan após a saída (Sabino, 2012:6).
P
de Soeiro, em 1979. Já o CNRC nasceu com perspectiva
D O
Renato Soeiro é visto como alguém que mais abrangente, muito mais próxima,
E V I S T A
continuou a política implementada pelo inclusive, das orientações da Unesco na
R
criador do órgão e seu diretor por trinta anos. época, as quais propunham que o conceito
Essa política se construiu em sintonia com de patrimônio cultural se sobrepusesse ao
a ideologia da época e também em resposta de patrimônio histórico e artístico (Costa,
aos anseios do governo Vargas de consolidar 2012:29). Nesse sentido, além de propor
Milton Guran
a imagem do Brasil como nação, sendo a ampliação do conceito de patrimônio,
pondo em causa o foco exclusivo nos bens
que o patrimônio deveria funcionar como
de origem europeia, o Centro considerava
um instrumento para educar a população 217
fundamental valorizar a participação da
sobre a unidade e a permanência da nação.
comunidade na definição do bem a ser
Pouco tinha sido alterada até então. Soeiro,
preservado e cuidar para que esse bem
por sua vez, deu ênfase à necessidade de se
estivesse a serviço da comunidade. Como
combinar a preservação do patrimônio com
sublinha Sabino (2012:6):
o desenvolvimento econômico, fomentando
o potencial turístico e ao mesmo tempo
Uma das características mais caras ao
Centro era a participação da comunidade
1. Criado em 1937 como Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – Sphan, o atual Iphan passou a se chamar Di- ou grupo que estava diretamente ligado
retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – DPHAN ao objeto de estudo em questão. Em
em 1946 e se torou Instituto em 1970. Em 1979, se desdobra na
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan,, segundo lugar, o órgão estudava expressões
com funções normativas, e na Fundação Pró-Memória, com fun-
ções executivas. Ambas foram extintas em 1990, com a criação
culturais ditas ”populares” e que garantiam
do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural –IBPC, o qual , a sobrevivência de um percentual altíssimo
por sua vez, voltou a se denominar Iphan em 1994.
2. O CNRC funcionou primeiramente na Universidade de da população brasileira e que nunca haviam
Brasília. Em 1979, com a nomeação de Aloisio Magalhães para a sido, sequer, mencionadas pelo Iphan em suas
direção do Iphan, ele passou a integrar a recém-criada Fundação
Nacional Pró-Memória – FNPM. políticas de preservação.
O próprio termo referência cultural, que Constituem patrimônio cultural brasileiro os
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
– para a dinâmica de atribuição de sentidos e de ser, pela luta política e resistência cultural
A T R I M Ô N I O
compreendia várias fases: a identificação da Nassô Oká, que marcou o ponto de virada do
E V I S T A
de conselheiros não compareceu à reunião. Entre a decisão foi vista pelos setores mais engajados
esses sete ausentes certamente estavam vários
A C I O N A L
da sociedade civil3:
opositores à medida de tombamento.
fazer pesar, com a sua presença, a posição da Casa Branca impôs novos parâmetros à
Igreja católica, contrária ao tombamento. política de proteção e preservação do Iphan,
A votação final foi muito apertada, com expandindo o conceito de patrimônio, que
P
D O
três votos a favor do tombamento, um pelo seria ainda mais ampliado pela Constituição
E V I S T A
adiamento, duas abstenções e apenas um voto de 1988, ao reconhecer o bem imaterial como
contra. E conclui Gilberto Velho (2006): patrimônio e estender a ele a proteção do
R
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
tombamentos do Terreiro da Casa Branca e conscientizaram da importância da proteção
A C I O N A L
da Serra da Barriga, a atuação do Iphan, no ou não se organizaram a ponto de ocupar esse
que diz respeito aos bens afro-brasileiros, foi espaço institucional como frente de luta pelo
“limitada e descontínua” (Lima, 2012:55).
N
reconhecimento de seus direitos dentro de
R T Í S T I C O
Tanto que somente em 2000 um novo bem uma perspectiva mais ampla.
entrou na lista de tombamentos, no caso, o Já no que toca aos bens imateriais
A
Terreiro Axé Opô Afonjá, em Salvador (BA). registrados, a proporção é mais favorável,
E
De lá aos nossos dias, foram tombados mais uma vez que, de um total de quarenta bens
I S T Ó R I C O
sete terreiros, todos na Bahia, cobrindo as registrados, doze são vinculados à matriz
principais tradições de culto – jêje/fon, nagô/ africana. Em 2004, foi efetivado o primeiro
H
iorubá e banto/angola – e contemplando ainda
A T R I M Ô N I O
registro de um bem imaterial ligado à matriz
o reservado culto aos ancestrais – Egunguns. africana, o Samba de Roda do Recôncavo
O Iphan se organizou para fazer Baiano, hoje também reconhecido como
P
frente a esse desafio, criando inclusive Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade
D O
mecanismos específicos para contemplar a pela Unesco. Dentre os bens registrados
E V I S T A
matriz africana, como o Grupo de Trabalho nessa categoria, o processo de registro da
R
Interdepartamental e Interdisciplinar capoeira – também reconhecida pela Unesco
para procedimentos relacionados aos com patrimônio cultural – é exemplar e
remanescentes das comunidades de quilombo, merece destaque pelo rigor e cuidado com
em 2011, e, mais recentemente, o Grupo que o processo foi conduzido: para garantir
Milton Guran
Interdepartamental para Preservação do a perenidade da essência do bem, o registro
Patrimônio Cultural de Terreiros. O processo se deu em duas modalidades, estendendo a
de capacitação do órgão para responder às salvaguarda ao Ofício dos Mestres e à Roda de
221
demandas dessa mudança de paradigma – Capoeira. No seu parecer sobre a demanda de
desde a fiscalização até a análise de propostas registro da capoeira como Patrimônio Cultural
– está em andamento, dentro das limitações do Brasil, em fevereiro de 2008, a antropóloga
do momento político e econômico atual. Maria Paula Fernandes Adinolfi, lotada na 7ª
No entanto, ainda hoje, em um total
Superintendência Regional do Iphan4, ressalta
de 1.241 bens tombados, apenas treze são
a importância dessa nova postura do Estado
diretamente vinculados à matriz africana.
frente à cultura afro-brasileira, situando-a no
Uma análise dos processos de tombamento
contexto mais amplo do momento político do
(bens materiais) atualmente em avaliação
país na época:
nos traz outra informação relevante: dos
338 processos em exame, praticamente Este conjunto de ações constitui uma resposta
todos de iniciativa da sociedade civil, apenas do Estado brasileiro às demandas sociais por
33 são vinculados à matriz africana. Isso reconhecimento e valorização de práticas culturais
quer dizer que os principais interessados
– os afrodescendentes e suas organizações 4. Processo nº 01450.002863/2006-80. Parecer nº 031/08.
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
A C I O N A L
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R
de matriz africana e indígena, secularmente esfera pública, dentre elas várias universidades
Milton Guran
Capoeira.
Acervo: Iphan/
Carlos Café. excluídas das políticas públicas, que, por um federais e estaduais e o serviço diplomático; a
longo período, foram vistas como um estorvo criação da Lei 10.639/03, que institui o ensino
222 ao projeto civilizatório pautado na ideologia do de História e cultura africana e afro-brasileira
branqueamento da sociedade nacional. Apenas no ensino fundamental e médio; a criação da
recentemente, desde o início da década de Fundação Cultural Palmares e o reconhecimento
1990, em virtude da grande pressão exercida das comunidades remanescentes de quilombos;
por segmentos da sociedade civil organizada, o a assinatura de diversas convenções e resoluções
Estado tem assumido a tarefa urgente de reverter o internacionais em prol da igualdade racial e a
quadro da exclusão social de parcela expressiva da elaboração do Estatuto da Igualdade Racial.
população do país. Não se pretende aqui apresentar um quadro
As políticas públicas formuladas com tal completo dessas políticas; tenciona-se, apenas,
objetivo não se limitam ao âmbito da cultura, demonstrar a grande relevância do reconhecimento
mas se espraiam também pelas áreas de educação, do patrimônio cultural afro-brasileiro enquanto
saúde, emprego e renda. Podem ser mencionadas matriz formadora da nacionalidade e da identidade
aqui a criação, na esfera federal, e posteriormente brasileira e, portanto, a afinação da proposição do
seguida por diversos estados e municípios, da registro da capoeira com as diretrizes traçadas pelas
Secretaria Especial de Políticas de Promoção políticas públicas no Brasil de hoje, preocupadas
da Igualdade Racial (SEPPIR); a adoção de com o reconhecimento de nossa diversidade
políticas de ação afirmativa em diversas áreas da cultural e, ao mesmo tempo, buscando evitar que
tais diferenças culturais continuem a produzir em cena a salvaguarda dos bens imateriais
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
diferenciação no acesso a direitos de cidadania e – que o número de bens ligados à matriz
mesmo a direitos humanos elementares.
A C I O N A L
africana tombados como patrimônio cultural
se ampliou, embora ainda se mantendo
A verdade é que, nos últimos dez anos, em proporção muito desfavorável em
N
R T Í S T I C O
a situação política e social da população relação ao conjunto. Como já vimos, a lista
afro-brasileira mudou radicalmente. Vimos passou de singelos três itens – Acervo do
crescer a tomada de consciência e surgirem
A
Museu da Magia Negra, de 1938, Serra
E
novas formas de organização e articulação da Barriga e Terreiro da Casa Branca,
I S T Ó R I C O
dessa parcela da população, em grande ambos de 1986 – aos atuais 25, entre bens
parte favorecida pelas políticas públicas materiais e imateriais. Cabe destacar que
H
afirmativas implementadas no período, as a totalidade desses bens está localizada nas
A T R I M Ô N I O
quais contribuíram para a formação de uma regiões Sudeste e Nordeste e no estado do
massa crítica politicamente ativa como não Maranhão, embora haja remanescentes
tínhamos visto até então.
P
de quilombos de larga tradição e singular
D O
No censo de 2010, pela primeira vez, riqueza cultural por toda a Região Norte, no
E V I S T A
a maioria dos brasileiros se declarou negra Centro-Oeste e mesmo na Região Sul, sendo
(pretos e pardos), o que dá ao Brasil a segunda a cidade de Porto Alegre a que concentra,
R
população negra do mundo, logo depois da atualmente, o maior número de terreiros e
Nigéria, e a maior fora da África. A par do fato casas de culto de matriz africana no país.
de a taxa de fecundidade da mulher negra ter Se é verdade que o Brasil, ao criar
sido superior à da mulher branca – entre 2000 o órgão federal encarregado de definir,
Milton Guran
e 2010 o crescimento da população negra foi da salvaguardar e preservar o patrimônio cultural
ordem de 2,5% ao ano, enquanto o da branca da nação, escamoteou deliberadamente o
foi igual a zero –, o que fez realmente a diferença papel desempenhado pela matriz africana 223
nesses números foi o aumento significativo de na construção do país e da identidade social
pessoas que se declararam pardas. Esse quadro, e cultural do seu povo, também é verdade
vale insistir, sem dúvida se deve em grande parte que coube a esse mesmo órgão dar o mais
ao aumento da autoestima desse segmento significativo passo no plano internacional,
da população, fruto de uma conscientização para assumir, aos olhos do mundo e diante
progressiva retroalimentada pelas ações de si próprio, a matriz africana como
afirmativas que essa própria conscientização vem vertente legítima e fundamental em sua
impondo à agenda política. formação, tal como é hoje: a candidatura
É interessante notar que foi justamente do Sítio Arqueológico Cais do Valongo a
a partir de 2000 – quando, segundo os Patrimônio Mundial da Unesco. Trata-se do
dados do censo, a população negra deu a primeiro bem ligado à diáspora africana nas
sua arrancada rumo à posição de maioria Américas a ser proposto para integrar a Lista
e as políticas de ação afirmativa foram se do Patrimônio Mundial, o que testemunha a
concretizando, ao mesmo tempo que entrou excepcionalidade da atitude política do Brasil.
Foi na praia do Valongo, então da valorização da matriz africana da cidade do
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
ter passado até um milhão de cativos. Para africana fora do seu continente de origem,
E
termos uma ideia mais clara do que esse testemunho material irretorquível do tráfico
I S T Ó R I C O
escravagista levado a termo pelo poder público. Hiroshima, que precisam ser lembrados para
Primeiro o cais foi encoberto pela construção impedir que voltem a acontecer.
R
novo à luz, quando foram realizadas escavações circunstâncias que marcaram sua efetivação,
no local pela arqueóloga Tania Andrade Lima, o Iphan, em nome do Estado brasileiro,
224 do Museu Nacional (UFRJ), por conta das apresentou a sua candidatura a Patrimônio
obras do Porto Maravilha. Na ocasião, escapou Mundial e, desde 2014, em parceria com
de ser encoberto mais uma vez e conseguiu a administração municipal do período, se
guardar sua janela de observação arqueológica empenhou pela sua aprovação5.
aberta, graças à mobilização dos meios
acadêmicos e da sociedade civil, com forte 5. Para elaboração do dossiê de candidatura, foi constituído
participação das entidades representativas das um grupo de trabalho ad hoc composto por Milton Guran
(coordenador), pela arqueóloga Rosana Najjar, do Centro
raízes africanas. E, verdade seja dita, na ocasião a Nacional de Arqueologia, pela historiadora Monica Lima, pelo
arquiteto José Pessoa e por Til Pestana, do Centro Lucio Costa,
causa contou também com importantes aliados ao qual o grupo inicialmente esteve ligado. O GT contou
ainda com uma assessoria técnica composta por historiadores,
na administração municipal. Essa mobilização arqueólogos, arquitetos, um fotógrafo e representantes do
levou à criação do Circuito Histórico e IRPH, da Companhia de Desenvolvimento da Região do Porto
– CDURP e da Coordenadoria de Relações Internacionais
Arqueológico de Celebração da Herança da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, além de com um
Conselho Consultivo que reuniu órgãos públicos e personalidades
Africana, pelo Instituto Rio Patrimônio da do meio acadêmico e da sociedade civil. Os trabalhos de
elaboração do dossiê se iniciaram em novembro de 2014, sendo
Humanidade – IRPH, iniciativa que, embora que a sua versão final, já sob a direção do Departamento de
Articulação e Fomento – DAF, foi encaminhada à Unesco em
suscite ressalvas, significa um avanço no sentido fevereiro de 2017.
Vizinho ao Cais do Valongo se situa o nacional negra fora da África. O Iphan, nos
Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania
prédio Docas Pedro II, construído em 1871 seus oitenta anos de existência, ao se fazer
A C I O N A L
por André Rebouças, primeiro engenheiro porta-voz de uma demanda tão expressiva,
negro formado pela Escola Politécnica de certa forma se redime de desencontros
do Rio de Janeiro. Ao que se sabe, esse passados no que toca à matriz africana e se
N
R T Í S T I C O
armazém foi a primeira grande obra civil apresenta em perfeita sintonia com a nação.
construída na capital sem o emprego de mão
REFERÊNCIAS
A
de obra escrava. Então, da mesma forma
E
que o Cais do Valongo representa a tragédia
I S T Ó R I C O
CONDURU, Roberto. Pérolas Negras – primeiros fios:
da escravidão, o prédio Docas Pedro II experiências artísticas e culturais nos fluxos entre África e
representa simbolicamente a superação dessa Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013.
H
tragédia. Por tudo isso, o Iphan tombou CORRÊA, Alexandre Fernandes. A coleção do Museu de
A T R I M Ô N I O
Magia Negra do Rio de Janeiro: o primeiro patrimônio
definitivamente o prédio em novembro
etnográfico do Brasil. Mneme – Revista de Humanidades,
de 2016 e o destinou a abrigar o futuro v. 7, nº 18, UFRN, 2005.
P
Memorial da Diáspora Africana, equipamento COSTA, Amanda Gabrielle de Queiroz. Os projetos do
D O
cultural previsto no dossiê de candidatura do Centro Nacional de Referência Cultural: referenciamento
E V I S T A
da cultura brasileira. In: XI ENCONTRO ESTADUAL
sítio a Patrimônio Mundial. DE HISTÓRIA, Universidade Federal do Rio
O valor universal excepcional do
R
Grande do sul (FURG) de 23 a 27 de julho de 2012.
Disponível em www.eeh.anpuh-rs.org.br/resources/
Sítio Arqueológico Cais do Valongo foi
anais/18/1346437321_ARQUIVO_artigoANPUH.pdf.
oficialmente reconhecido por unanimidade Acesso em 9 de setembro de 2017.
pelo Comitê do Patrimônio Mundial da LIMA, Alessandra Rodrigues. Patrimônio cultural afro-
Unesco por ocasião da sua 41ª Reunião, brasileiro: as narrativas produzidas pelo Iphan a partir da
Milton Guran
ação patrimonial. (Dissertação de Mestrado). Curso de
ocorrida em Cracóvia, na Polônia, em julho Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio
de 2017, quando o incluiu na Lista do Cultural. Iphan, 2012.
Patrimônio Mundial. SABINO, Roberto. As disputas pela representação do 225
patrimônio nacional (1967-1984). In: III SEMINÁRIO
Neste momento em que se celebra a
INTERNACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS.
Década Internacional de Afrodescendentes Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2012, p.
(2015-2024), instituída pela Organização 1-10.Disponível em: culturadigital.br/politicacultural/
casaderuibarbosa/files/2012/09/Roberto.Sabino.pdf .
das Nações Unidas, esse reconhecimento
Acesso em 9 de setembro de 2017.
internacional coloca o Brasil em posição de VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito.
exercer um protagonismo mundial no trato In: Mana vol 12 nº 1, Rio de Janeiro, 2006.
dessa questão e das políticas de reparação que
lhe são inerentes.
Para nós, brasileiros, esse sítio
arqueológico é um patrimônio sem similar,
porque representa os milhões de africanos
escravizados que com seu trabalho e sua
cultura viabilizaram a construção da nação
brasileira e geraram a maior população
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
226
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m Patr imônios culturais indígenas
Lucia Hussak van Velthem
A C I O N A L
P ATRIMÔNIOS CULTURAIS INDÍGENAS
N
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A
E
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A T R I M Ô N I O
Na primeira metade do século XX, tradições diferenciadas, trouxe significativa
organiza-se no Brasil a proteção ao patrimônio mudança no quadro legal relativo aos povos
histórico e artístico nacional. Dispondo sobre ameríndios. A orientação multicultural
P
grupos patrimoniais de valores culturais, tais que permeia o texto constitucional está
D O
como os de história, de belas-artes, de artes expressa no artigo 215, quando afirma que
E V I S T A
aplicadas, incluí também as categorias da o Estado protegerá as referências culturais
R
“arte arqueológica, etnográfica, ameríndia de grupos sociais específicos – indígenas,
e popular”1. Essa organização, atenta à suas afrodescendentes, imigrantes, as classes
finalidades específicas, abre uma pequena populares em geral –, uma vez que todos
fresta aos patrimônios indígenas, porém participam do processo civilizatório nacional2.
redefinidos enquanto peças etnográficas de Manifesta, assim, o reconhecimento do papel
acervos museológicos. das expressões culturais dos diferentes grupos
Décadas depois, e no campo das políticas sociais na formação da identidade cultural
227
de Estado, observa-se que o Brasil é um dos brasileira e procura difundir a imagem de um
países das Américas que mais rapidamente Brasil cultural e linguisticamente diverso no
aderiu às recomendações da Unesco no contexto internacional. Em 2000, o Decreto
sentido de esboçar e garantir políticas de no 3.551 institui o Registro de Bens Culturais
proteção e promoção da diversidade de de Natureza Imaterial, o que abriu caminho
expressões das culturas locais, o que inclui as para a possibilidade de registro e salvaguarda
Ceramista Karajá
culturas indígenas. A Constituição Federal dos patrimônios culturais indígenas3. Acervo: Copedoc/Iphan/
Marcel Gautherot.
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
dos indígenas no Brasil cedeu lugar à uma concepção de mundo especificas, aspectos
constatação de sua recuperação demográfica, estreitamente vinculados ao território5.
da manutenção das diferenças socioculturais No Brasil contemporâneo, as culturas
P
de 180 línguas distintas4, estão representados e até mesmo através de desfiles carnavalescos.
em todas as regiões do Brasil, porém o
Apesar da visibilidade adquirida, as
contingente populacional mais expressivo
coletividades indígenas continuam sendo
está concentrado na Amazônia, em terras que
evocadas através de visões românticas
ficaram à margem da expansão da fronteira
como “bons selvagens” ou preconceituosas
econômica. No Nordeste, área de colonização
antiga, o crescimento populacional decorre – “primitivos dotados de tecnologia
228 também do surgimento de novas identidades rudimentar” –, que estão enraizadas no olhar
indígenas. Vários fatores, políticos e e no tratamento que recebem de muitos
econômicos, favorecem esse processo, setores da população brasileira6. O resultado
mas são também relevantes aqueles que dessa postura acarreta, quase sempre, a
decorrem da religião e de práticas rituais, pois exclusão e desvalorização das culturas e das
permitem a atualização de valores essenciais pessoas indígenas, pois não são reconhecidas e
a determinada coletividade. Nesse contexto valorizadas as suas escolhas e as reformulações
são reproduzidas, adaptadas ou importadas criativas de seus saberes ancestrais. Nas
diferentes manifestações culturais que atuam
comunidades indígenas, tais movimentos se
como “bandeiras étnicas e que garantem aos
efetuam de maneira dinâmica e articulada ao
povos que habitam o Nordeste sua condição
ambiente, à história, às redes de relações e,
indígena” (Pacheco de Oliveira, 1994:327).
também, ao mundo do homem branco e a
sua cultura, economia e política.
4. IBGE - Censo 2010. As línguas indígenas compreendem
41 famílias, dois troncos linguísticos e uma dezena de línguas 5. Cf. Pacheco de Oliveira, 1994; Luciano, 2006.
isoladas (Franchetto, 2005:19). 6. Cf. Gallois, 2006 e 2007; Oliveira, 2012.
DIVERSIDADE, concepções, práticas, discursos que são
A C I O N A L
serem dependentes de múltiplos contextos
A diversidade reflete a própria históricos, sociais e ambientais, encerram
dinâmicas entre as quais despontam a
N
constituição das sociedades indígenas, as
R T Í S T I C O
quais não podem ser compreendidas de identidade e a diferença.
forma homogênea. A mesma constatação Em sua identificação, os bens
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
se aplica ao campo do patrimônio, que patrimoniais de um povo indígena que
E
poderiam ser qualificados como imateriais
I S T Ó R I C O
se revela diferenciado, pois cada povo
indígena é dotado de um conjunto incluem diferentes saberes, normas,
patrimonial próprio que se distingue valores, práticas, criações, tais como música
H
instrumental, cantos, danças, narrativas
A T R I M Ô N I O
também de outros mais, de matriz europeia
e africana. Consequentemente, a expressão míticas, técnicas artesanais e elaborações
patrimônio indígena no singular não pode gráficas, culinária, lugares, saberes associados
P
ser considerada como meio de identificação à biodiversidade e ao território7. As línguas
D O
da diversidade cultural existente e, portanto, possuem um papel preponderante na vida
E V I S T A
o plural – patrimônios indígenas – se impõe indígena, pois, para além da comunicação,
R
em todos os contextos e formulações. veiculam a difusão de palavras, mitos, cantos,
Apreender a variedade e a complexidade dos discursos que são amiúde rotulados como
patrimônios indígenas constitui um desafio, tradições orais.
requer distanciamento dos reducionismos e Os patrimônios indígenas se expressam
das generalizações. A noção antropológica igualmente por coisas físicas, elementos
de cultura contribui para a compreensão e materiais e duráveis. A antropologia os
aprofundamento dessa temática, ao constituir considera enquanto componentes de cultura
229
uma formulação que possibilita a definição de material, categoria que abrange os utensílios
suas principais características. de uso cotidiano: cestos, esteiras, vasilhas
A vida cultural das coletividades indígenas cerâmicas, redes, arcos e flechas, canoas,
é fundamentada por saberes aplicados nos bancos, redes de dormir e outros mais. Inclui
contextos cotidiano e ritual. Abrangem também os artefatos empregados em rituais:
diferentes máscaras, instrumentos musicais, adornos
de plumas ou confeccionados com matérias-
(...) modos de perceber, de classificar, de
primas variadas. Inscrevem-se ainda nessa
relacionar seres e objetos no mundo, compondo
classificação as roças e as plantas cultivadas,
sistemas de conhecimentos muito diversificados,
os alimentos processados, as estruturas
transmitidos por pessoas comuns ou especialistas
(Gallois, 2006:26). habitacionais e paisagísticas que integram um
local de povoamento humano.
Em outros termos, os patrimônios
indígenas representam uma construção 7. Reportar-se ao conceito de patrimônio cultural imaterial
proposto pela Unesco (2003), para amplo detalhamento dessa
cultural que se inscreve em lógicas, categoria.
Para uso cotidiano ou ritual, a produção A articulação aludida se conecta ao fato
Patr imônios culturais indígenas
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
principiar um objeto, conformar seu corpo como do pai para o filho, da avó para a neta...
e arrematá-lo; a reprodução dos grafismos, Essa dinâmica, ao longo de milhares de anos,
H
A C I O N A L
de propriedade que se conecta tanto ao conhecimentos, refletindo-se na reprodução
indivíduo quanto ao coletivo. Em sua vida, e trajetória de seus patrimônios culturais. As
uma pessoa pode se apropriar de determinado
N
culturas indígenas seguem uma dinâmica de
R T Í S T I C O
elemento – um adorno, uma peneira, contínua transformação, induzida por fatores
uma caça abatida – em decorrência dos externos e internos e que acarreta experiências
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
conhecimentos que possui para concretizá-lo e atualizações.
E
ou, então, a apropriação decorre das dádivas As influências externas, em particular,
I S T Ó R I C O
que recebe de outras pessoas, o que se efetiva podem dar origem a vários processos
primeiramente por intermédio das redes de de reinvenção cultural, extremamente
H
relações familiares e comunitárias, mas se
A T R I M Ô N I O
criativos, que são desenvolvidos a partir dos
amplia para outros interlocutores e territórios. próprios recursos simbólicos das culturas
Direitos diferenciais e especializações indígenas envolvidas13. Dos antigos ou
P
individuais extrapolam assim as comunidades recentes encontros com o homem branco,
D O
para integrar uma ampla rede de intercâmbio os povos indígenas adotaram uma série de
E V I S T A
em espaços distanciados que incluem, implementos: facas, terçados, enxadas, que
R
ocasionalmente, os centros urbanos. Destaca- foram adotados, modificados e também
se que especializações artesanais distintivas de ressignificados linguisticamente. Nenhuma
coletividades indígenas, como as operantes mercadoria, contudo, suplantou as complexas
nas regiões pluriétnicas do alto rio Xingu e reelaborações simbólicas, mitológicas,
alto rio Negro, constituem o elemento que estéticas que foram destinadas aos espelhos
estrutura as redes de troca locais. Trata-se de e as miçangas vítreas, introduzidos pelos
bens patrimoniais que, ao serem permutados, europeus nas Américas desde o século XVI14.
231
compartilham de um mesmo regime de Uma fundamental característica dos
apreensão sobre o que é particular a cada patrimônios indígenas é que a propriedade
povo e assim o identifica . Nas sociedades
12
raramente se confunde com a autoria ou
indígenas, a especialização e o intercâmbio criação. Extrapolando as relações familiares
estão “a serviço da teia social e não o inverso: o e comunitárias, a aquisição de cantos,
valor da troca tendo precedência sobre o valor técnicas, artefatos, adornos, padrões gráficos
de troca” (Carneiro da Cunha, 2006:25). pode compreender outras formas de relação
Antigas e recentes redes de relações e apropriação15. Como resultado desses
com outros segmentos populacionais processos, muitos bens patrimoniais indígenas
estão conectadas à dinâmica do contato. representam incorporações de elementos
Submeteram no período colonial, assim
como submetem no presente, as sociedades 13. Ver em Albert (2002), uma acurada análise da cosmologia
do contato.
indígenas a transformações que, à 14. A respeito dos espelhos, ver Gallois (1984/5), e sobre as
miçangas, Lagrou, 2007; Velthem, 2008.
15. Como descrito em Velthem, 2003; Carneiro da Cunha, 2005;
12. Carneiro da Cunha, 2012. Gordon, 2006; Cesarino, 2014.
provenientes de outras coletividades ou compreenderiam, “um mundo de arte e
Patr imônios culturais indígenas
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
A C I O N A L
nas práticas sociais que os determinam,
nas relações que são estabelecidas por seu
N
intermédio, nos processos de produção que
R T Í S T I C O
os governam e nos efeitos que produzem19.
Devem ser compreendidos como produtos
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
de relações sociais e também como vetores
E
dessas mesmas relações, em que o sentido e
I S T Ó R I C O
o efeito de cantos, danças, adornos, pinturas
corporais, artefatos pode mudar, de acordo
H
A T R I M Ô N I O
com o contexto em que se apresenta.
Nas sociedades indígenas não ocorre
uma nítida separação das atividades e dos
P
campos de expressão. Entre outros aspectos
D O
relevantes, a intenção estética e conceitual
E V I S T A
não se refere exclusivamente aos artefatos
R
mais elaborados ou aparentemente mais
sistemas gráficos indígenas em que cada padrão Xingu
carregados de sentidos, como é o caso dos Acervo: Iphan/
pode exibir uma trilogia perceptiva complexa . 21 Mario Friedlander.
Assim sendo, tais artefatos não devem ser produzidas, grupos sociais são formados
R T Í S T I C O
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
certo aspecto, os objetos indígenas raramente diferentes classificações. Esse proceder está
E
quais podem ser estabelecidas relações com mas deve ser construída culturalmente, de
características similares àquelas que unem modo contínuo26. As sociedades indígenas
as pessoas no contexto social23. Destaca-se, desenvolvem práticas que objetivam facilitar
P
valorização, em registros que remetem tanto Através de técnicas variadas e complexas são
efetivadas amplas mudanças, algumas das
a uma ideia de opulência, ou “riqueza”,
quais relacionadas a uma elaboração estética,
quanto de ornamentação, “enfeite”. Para
geralmente rotulada como “decoração
determinados povos indígenas amazônicos24,
corporal”, o que inclui atavios de diferentes
a “riqueza” deriva da importância e valor de
materiais – naturais e industriais – e também
nomes e bens no contexto ritual e, sobretudo,
o corte de cabelo. Especial relevância social
234 dos direitos de transmissão. Para outros25,
é atribuída à superfície corporal, sobretudo
um bem cultural determinado não constitui,
a pele, que é pintada, perfurada, tatuada,
em si mesmo, um ornamento, mas “enfeita”
escarificada. Constituindo parte essencial do
outros elementos a ele associados – pessoas,
processo de transformação da pessoa, essas
casas, roças, aldeias – através de uma relação
técnicas comunicam diferentes intenções e
são específicas de cada povo indígena27.
23. A literatura antropológica oferece vários exemplos, entre os
quais destacam-se as máscaras rituais dos Waujá do alto Xingu que
retêm/reproduzem as vestimentas de seres-espíritos, permitindo
que se tornem presentes e viventes e, assim, dancem nos rituais
(Barcelos Neto (2002, 2008). São igualmente viventes os bancos
dos Galibi-Marworno do Amapá, que recebem em oferenda be-
bidas fermentadas e, por serem consideradas pessoas completas,
permitem o estabelecimento de relações sociais (Andrade, 2012).
24. Este é o caso dos conhecidos Kayapó (Mebêngôkre), ao sul do
Pará, que possuem tradicionalmente, além de nomes considerados
bonitos, um conjunto de objetos, adornos e prerrogativas cerimo- 26. Ver Seeger, Matta e Viveiros de Castro (1987); Vidal (1992);
niais de grande valor cultural (nêkrêjx) e que são descritos como Vilaça (2005), para referências importantes sobre o assunto.
“riqueza” (Gordon, 2006). 27. Ver Gallois (1992, 2002), a respeito da pintura corporal e da
25. Os Wayana, norte do Pará, concebem que os artefatos, as al- arte gráfica dos Wajãpi do Amapá. Trata-se de um bem registrado
deias, as roças e mesmo as pessoas, adornadas e penteadas, são qua- como patrimônio cultural imaterial em 2002 e reconhecido pela
lificados como imakhe e constituem “enfeites” (Velthem, 2003). Unesco como patrimônio da humanidade.
TERRITÓRIOS: PERCURSOS, O conhecimento do território está,
A C I O N A L
específicos, necessários para a exploração
As concepções culturais indígenas de dos recursos ambientais. Ademais, esse
conhecimento requer comportamentos
N
território28 envolvem percursos que nele
R T Í S T I C O
se inscrevem espacial e temporalmente: apropriados em relação a determinados
padrões de residência, redes de troca e lugares, que representam contextos espacial
A
e temporalmente importantes para os
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
de aliança, espaços de circulação e de
E
processos de sociabilidade. Conhecer um
I S T Ó R I C O
exploração dos recursos ambientais. Uma
lugar é “conhecer e relatar a sua história,
infinidade de fatores determina as conexões
o seu potencial, os elementos que o
dos povos indígenas com o território,
H
converteram em ponto de referência para
A T R I M Ô N I O
os quais envolvem, há séculos, apurados
ações presentes e experiências futuras”
conhecimentos sobre as técnicas de plantio
(Coelho de Souza, 2014: 201)30.
e o uso sustentável do território29. Nos dias
P
O conhecimento detalhado da toponímia
D O
atuais, a posse da terra constitui uma perene
de um rio – pedras, lajes, paranás, ilhas
E V I S T A
fonte de mobilização política e base de
– fornece um recurso de rememoração
elaboração étnica para os povos indígenas.
privilegiado para narrar a origem de vários
R
Os territórios indígenas são constituídos
povos indígenas, como ocorre no rio
por espaços distintos que encerram dimensões
Negro31: O surgimento de cada um desses
concêntricas de aproximação e afastamento
coletivos é tematizado na forma de sucessivos
do núcleo social representado pelas aldeias e
deslocamentos espaço-temporais no território,
comunidades que abrigam os seres humanos.
através do quais a memória social articula os
Tais espaços são circundados pelas roças onde
eventos da época da transformação mítica
se encontram as principais fontes de alimentos. 235
àqueles que já fazem parte de trajetórias
Mais além estão espaços – rios, florestas,
históricas particulares.
serras – onde é encontrada uma multiplicidade
Uma prática cultural importante, da
de recursos, plantas, animais, minerais, os
maioria das coletividades indígenas, está
quais constituem elementos essenciais para a relacionada ao sistema agrícola, em que
vida indígena: matérias-primas utilizadas na desponta a interdependência existente entre
confecção de objetos, presas de caça ou pesca, a diversidade cultural e a biológica e onde
fontes de recursos extrativos. se imbricam as dinâmicas de produção e
reprodução dos patrimônios agrícolas. A
agricultura praticada pelas comunidades
28. Os povos indígenas vivem em terras apresentadas como “tra-
dicionalmente ocupadas” no texto da Constituição de 1988 e indígenas na Amazônia se destaca pela
definidas, enquanto bens da União, como destinadas à posse per-
manente dos índios. As terras indígenas constituem o resultado de
processos conduzidos pelo Estado nacional e envolvem propostas 30. Cf. Giannini (1992), e especialmente Coelho de Souza
e interesses que “raramente expressam a representação do que as (2014), a respeito dos K sêdjê do alto Xingu e suas complexas
coletividades indígenas concebem como o próprio território” (Oli- relações com o território.
veira, 2012:371). 31. Trata-se dos Tukano, Desana, Tariano, Piratapuia. A esse res-
29. Cf. Silva (2002:132). peito, ver: Andrello (2005); Oliveira, Baptista e Andrello (2007).
Patr imônios culturais indígenas
A C I O N A L
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L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
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I S T Ó R I C O
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A T R I M Ô N I O
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Ritual Yaokwa do grande variedade de cultivos, a mandioca categorizados como etnográficos33. No Brasil,
Povo indígena
Enawene Nawe
Acervo: Iphan.
brava representando a planta estruturante32, objetos etnográficos foram recolhidos desde
236
pois constitui a base da alimentação, ao ser meados do século XIX, ao serem instituídos
processada sob a forma de farinhas e beijus. os museus de caráter enciclopédico, como
Há nessa região, e em outras mais, um o Museu Nacional e o Museu Paraense
marcante gosto pela coleção, voltado para as Emílio Goeldi. Nessas instituições, coleções
espécies plantadas e para as novas variedades, e objetos esparsos são reveladores da intensa
que são obtidas através de extensas redes de ação de coleta empreendida por cientistas,
relações que conectam grupos familiares, missionários, militares, governantes, desde
indivíduos e espaços. o século XIX, entre os povos indígenas
O “território” dos patrimônios indígenas em todas as regiões do país. Recolhidos
há longo tempo expandiu-se para os centros às reservas técnicas, foram numerados,
urbanos, para os museus, onde se conectaram
à categoria do colecionamento e aos acervos,
33. Acervos de bens culturais indígenas encontram-se em insti-
tuições no Brasil e também nos continentes americano e europeu.
Para amplo quadro referencial das coleções etnográficas brasileiras
32. Ver Emperaire (2014), para ampla explanação desse assunto e europeias, ver Dorta (1992); para as europeias, Petrucci (1983)
no rio Negro, Amazonas. e Damy (1986).
tombados, musealizados. Guardam em si uma estar de acordo com a lógica e os mecanismos
A C I O N A L
materiais, técnicos, estéticos e aguardam, cada povo indígena, esses museus apresentam
envoltos em esquecimento, que sejam enfim
(...) regimes de memória específicos e remetem
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resgatados e apropriados pelos descendentes
R T Í S T I C O
de seus produtores. a uma profunda relação entre a construção de
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
significativos espaços de atuação na garantia
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2012:12).
do direito à memória, implica um intrincado
I S T Ó R I C O
movimento pelo reconhecimento e pela
VALORIZAÇÃO C U LT U R A L E
visibilidade desses singulares patrimônios
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PAT R I M Ô N I O S I N D Í G E N A S
A T R I M Ô N I O
indígenas. Um multifacetado diálogo, ainda
não completamente consolidado, é travado
No Brasil contemporâneo, a grande
nas instituições museais e opõe, de um lado,
maioria das coletividades indígenas está
P
os interesses classificatórios e documentais dos
D O
empenhada em gerar atividades de produção
técnicos e, do outro, as políticas afirmativas
E V I S T A
e difusão cultural, articulando o tradicional
das sociedades indígenas. A complexidade
às novas apropriações. Despontam várias
R
desse diálogo e a dificuldade para solucionar
iniciativas, genericamente referidas como de
tal dilema acarretam, em determinados
“valorização cultural”, que se inserem em um
museus, a permanência de práticas marcadas
conjunto de ações para o registro escrito e
pelo distanciamento, pois constata-se que,
audiovisual de produções culturais, algumas
raramente, os povos indígenas possuem
das quais se concretizaram sob a forma de
o controle do discurso, assim como não
livros, catálogos, documentários, exposições36.
exercem, nas práticas curatoriais, seus 237
A criação de objetos culturais para o
conhecimentos especializados acerca dos
mercado deve contar com a participação
componentes dos acervos34.
direta das comunidades indígenas, sob o
Tornaram-se cada vez mais recorrentes
risco de se difundirem textos e imagens
os questionamentos dos povos indígenas a
descontextualizados e empobrecidos.
respeito da autoridade e da legitimidade de
Surgem, nesse caso, os discursos genéricos,
produções e discursos criados em seu nome por
permeados de lugares comuns, geralmente
não indígenas35. Essas interpelações repercutem
identificados como “cultura indígena” ou,
também no âmbito da museologia e, como
no caso específico dos mitos, como “lendas
fruto do crescente protagonismo dos povos
indígenas”37. Em contrapartida, determinados
indígenas no cenário brasileiro, estimularam
artefatos culturais podem ter um efeito
a criação dos “museus indígenas”. Procurando
positivo e, assim, permitem que povos
34. Para uma discussão mais detalhada, ver Cury e Vasconcellos
(2012); Fereira e Kukawka (2011); Gallois, (2011); Velthem 36. Ver a respeito: Galois (2002), Vidal (2007) e Müller (2009),
(2012). em catálogos de exposições no Museu do Índio.
35. Cf. Cesarino (2014:294). 37. Cf. Lopes da Silva (1995) e Cesarino (2014).
indígenas ganhem visibilidade e possam se de uma distribuição equitativa de seus
Patr imônios culturais indígenas
patrimônio cultural são múltiplas, dinâmicas de relações até então assimétricas, para
R T Í S T I C O
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
repertórios gráficos, com vistas ao registro iniciativas de difusão, assim como da possível
como patrimônio imaterial; no Nordeste um exploração comercial41.
coletivo indígena experimenta a construção Desde 2000, o registro de bens culturais
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biodiversidade.
L u c i a H u s s a k v a n Ve l t h e m
E
limites das partições em que se ancoram, sejam asseguradas bases mais participativas de
A T R I M Ô N I O
adotadas pelas políticas culturais44. Assim, diálogo entre os saberes tradicionais de suas
E V I S T A
imaterial não se coaduna com a própria visão diferentes contextos de formação. Ocorre
indígena acerca dos conceitos de cultura e assim a sua intensa participação na construção
de patrimônio cultural como apreendidos e execução de ações para a difusão interna
corriqueiramente. Esses conceitos seriam ou externa de aspectos de seu patrimônio
mesmo “inexistentes nos sistemas explicativos cultural, o que inclui o repasse dos saberes,
e na lógica dos saberes indígenas” (Gallois, a tomada de consciência das transformações
240 2011:6). Ademais, sabe-se que o registro culturais, entre as quais a passagem da
em si não assegura nem a sobrevivência oralidade para a escrita e também a captura
nem a continuidade de uma determinada de imagens. Não se trataria propriamente
prática cultural, apenas inaugura uma nova de iniciativas que visam recuperar saberes
etapa na sua trajetória, a ser atualizada pelas perdidos, mas do estabelecimento de uma
circunstâncias históricas45. Discussões e outros nova relação entre as gerações46. Esse profícuo
mecanismos de salvaguarda precisam ser diálogo permite que nas comunidades e
ativados paralelamente, tanto nas aldeias como aldeias indígenas, em todas as regiões do
nos centros urbanos, mas é imprescindível que país, pessoas de diferentes gerações reflitam
em conjunto sobre aspectos estratégicos de
suas culturas e patrimônios, permitindo
43. Concorrendo para os mesmos objetivos, o Museu do Índio
(Funai) instituiu em 2008 o Programa de Documentação de Cul- influenciar o presente e o futuro.
turas e Línguas Indígenas – ProgDoc, que abrange quatro proje-
tos, entre eles o Prodocult (de culturas) e o Prodoclin (de línguas
indígenas).
44. Cf. Lima e Coelho de Souza (2010).
45. Ver Gallois (2006) e Arantes (2012), para uma discussão
desses aspectos. 46. Cf. Gallois (2011:6).
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244
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Jurema Machado
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F EITO EM CASA : O I PHAN E A COOPERAÇÃO
N
INTERNACIONAL PARA O PATRIMÔNIO
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A T R I M Ô N I O
Poucas instituições valorizam, contam interesse difuso da preservação do patrimônio.
e recontam sua própria história como o Felizmente, essa veia de inconformismo
Iphan. Não raro a narrativa assume o tom de permanece e tem sido cotidianamente
P
uma saga familiar, por onde circulam com capaz de produzir contrapontos a uma certa
D O
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intimidade personagens chamados pelos seus “ordem das coisas” dada como inexorável.
prenomes: Rodrigo, Mário, Lucio, Renato, Oficialmente referida com parcimonioso
R
Lygia, Augusto, Aloisio, para lembrar apenas respeito, mas, na prática, muitas vezes taxada
alguns dos pioneiros e dos mais marcantes. de inconveniente ou simplesmente deixada
Uns mais reclusos, outros até mesmo de lado, a instituição sobreviveu, com muita
reanimados no Facebook , esses personagens
1
qualidade, a oitenta anos de um ambiente
produziram um arsenal de palavras que governamental que nunca foi dado à
continuam pairando na atmosfera do lugar, construção de políticas e de estratégias, quase
discretamente pousadas sobre as mesas. Como sempre cético em relação ao planejamento e 245
diria outro funcionário da casa, o Carlos, caracterizado por uma renitente omissão para
aguardam “em estado de dicionário” prontas 2
com a profissionalização do setor público.
para dar o bote e voltar à vida, instalando-se Afirmações que aparentam ser meramente
em um novo parecer, um novo estudo, uma opinativas podem parecer fora do lugar em
nova opinião. A instituição que criaram, um artigo que pretende tratar da presença do
conhecida como sisuda guardiã dos registros Iphan na cooperação cultural internacional.
do passado, foi, na sua juventude, capaz Nem tanto. Corroborando a percepção de
de atrevimentos impensáveis para um país uma instituição muito dedicada à sua própria
agrário e conservador, sobretudo ao interferir história, ao sistematizar informações que
no direito de propriedade em defesa do reconstituem sua trajetória nesse campo,
salta aos olhos, de um lado, uma considerável
1. Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade e Aloisio produção, tanto interna quanto externa, de Ruínas de São Miguel
Magalhães têm páginas no Facebook, criadas a partir de 2015 por das Missões
Tava - lugar de referência
funcionários do Iphan. teses e artigos sobre o tema e, de outro, o para o Povo Guarani
2. Expressão de Carlos Drummond de Andrade, no poema Acervo: Iphan/
“Procura da poesia”. quanto essa reflexão tende a ser endógena, Sylvia Braga.
do patrimônio para o patrimônio, ou seja, da vertente de nossa atuação diplomática (Ribeiro,
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
ambiente da cooperação internacional para o avaliação em abstração, que se faça como conjunto
patrimônio, sempre com o apoio qualificado de noções depreendidas da realidade prática
da diplomacia brasileira, mas tendo que anterior e destinada a uma prática subsequente,
P
buscar seus próprios caminhos. Muito colegiada, mais consequente e fecunda (Ribeiro,
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Jurema Machado
2011:18).
presente em alguns momentos, distante
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político; que a circulação de bens e serviços Furtado em entrevistas e textos publicados,
culturais tende a favorecer uma sensação tratando sobretudo da relação entre cultura
de familiaridade com outros produtos e e desenvolvimento. Além da maior ênfase
N
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serviços originários do país; e que projetos de desejada para a diplomacia cultural, ao
cooperação técnica tendem a produzir efeitos apontar proposições, procura rastreá-las nas
A
duradouros, se enraizados culturalmente. relações com o desenvolvimento e, nesse
E
Ao indagar sobre as razões da pouca contexto, ressalta a relevância dos mecanismos
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prioridade conferida à diplomacia cultural, de cooperação intelectual e cooperação
o autor aponta questões que seguem sendo técnica, pelo seu efeito multiplicador, desde
H
pertinentes e são perfeitamente identificáveis que baseados em “cuidadoso estudo das reais
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nas dificuldades enfrentadas pelo Iphan: a necessidades dos países-alvo, de modo a evitar
ausência de planejamento para lidar com um atitudes paternalistas e aprender a diferenciar
P
tema cujos processos e cujos resultados são, realidades que somente se assemelham na
D O
Jurema Machado
necessariamente, de longo prazo; a pouca aparência”. Em que pese a atuação do Iphan
E V I S T A
abrangência das ações da diplomacia cultural, na cooperação internacional ter sido, quase
R
muito limitadas à difusão de produtos sempre, uma construção muito autodidata,
culturais brasileiros e insuficientes para dar sem contar com o apoio de reflexões dos
conta de uma pluralidade e da diversidade setores especializados, a cooperação técnica,
cultural do país; e, para não fugir à regra, como se verá adiante, tem sido o foco em
a recorrente falta de recursos destinados ao que o Iphan apostou e do qual vem colhendo
setor. A respeito desta última dificuldade, os melhores frutos. Não apenas o foco na
acredita ser mais uma consequência do que cooperação técnica, mas em uma cooperação
247
uma causa das limitações, uma vez que a que reconheça as “reais necessidades dos
projetos culturais modestos “serão dedicadas países-alvo, de modo a evitar atitudes
modestas prioridades políticas e, em paternalistas” e não exporte programas
consequência, atribuídos limitados recursos, “simplesmente por estarem disponíveis”,
financeiros e humanos” (Ribeiro, 2011:121). exatamente como propõe Ribeiro (2011:112)
As ações praticadas com mais frequência A relação com a Unesco, por meio da
pela diplomacia cultural brasileira são, implementação de suas convenções, tem sido
segundo o autor, mostras de arte, participação o pano de fundo e um dos principais motores
em bienais, apresentações de teatro e de da opção feita pelo Iphan, ao privilegiar a
dança, difusão da televisão, divulgação e cooperação técnica. A Unesco não é objeto
comercialização da música popular e do do trabalho de Edgard Telles Ribeiro, mas
cinema brasileiro, esse último referido como comparece em outras teses apresentadas ao
“um caso de coordenação interna bem- Instituto Rio Branco. Várias delas tratam
sucedida (entre a área operativa do Itamaraty da relação entre o Brasil e a Unesco, mas
e a Embrafilme)”. O patrimônio não é sequer apenas duas têm como objeto o patrimônio
na diplomacia brasileira: o trabalho de João Se são raros os estudos brasileiros
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
dado incontornável, como se verá ao tratar da tem sido um mediador fundamental das
E
aplicação das convenções da Unesco no Brasil. relações entre as nações, seus governos e
I S T Ó R I C O
Mais recentemente, os estudos sobre a seu povo ao longo dos últimos 150 anos”.
diplomacia cultural vêm saindo do âmbito Esse autor defende que há espaço para uma
H
Instituto Rio Branco e ganhando espaço no distinta da “diplomacia cultural”, uma vez
ambiente acadêmico. Ainda assim, a omissão que, na diplomacia patrimonial, além da
P
Jurema Machado
A C I O N A L
da preservação ganha terreno e se criam ou influência francesa no ambiente cultural do
se estabelecem reequilíbrios e arranjos de Brasil, resultado de uma política sistemática
governança. No século XX, as duas grandes daquele país, centrada na difusão da língua,
N
R T Í S T I C O
guerras são claras delimitadoras das relações na criação dos organismos privados com
internacionais no campo da preservação. apoio público (como a Aliança Francesa) e no
A
O Brasil foi o único país da América do envio de missões de professores universitários.
E
Sul a participar da Primeira Grande Guerra Em 1920, o governo francês cria o Service
I S T Ó R I C O
(1914-1918), o que se deu efetivamente a des Oeuvres Françaises à l’Étranger – Sofe,
partir de dezembro de 1917 e possibilitou que passa a coordenar todas as iniciativas de
H
ao país fazer parte da Liga (ou Sociedade) difusão cultural e alimenta um circuito de
A T R I M Ô N I O
das Nações, criada em 1919. No campo da intelectuais externos ao corpo diplomático,
cultura, a Liga das Nações atuou por meio para atuar em um “misto de propaganda e
P
do Instituto Internacional para a Cooperação política cultural” (Suppo, 2000:340). É esse
D O
Jurema Machado
Internacional, tido como o precursor da o contexto da primeira missão de professores
E V I S T A
Unesco, que seria criada após a Segunda franceses para a Universidade de São Paulo, a
R
Guerra Mundial, em 1945 (UNESCO, USP, criada em janeiro de 1934, pela reunião
The Organization’s history). O Instituto se das faculdades de Direito, de Medicina, da
encarregava do secretariado do Escritório Escola Politécnica e da então recém-criada
Internacional de Museus, que existiu de Filosofia, Ciências e Letras, para onde irão
1926 a 1946 (quando foi sucedido pelo Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel e Roger
International Council of Museums – Icom) Bastide (Suppo, 2000:321-325), intelectuais
e foi o responsável pela organização do cuja produção terá vasta repercussão nas
249
congresso mundial de arquitetos de 1931, políticas de patrimônio no Brasil.
em Atenas, que deu origem ao documento Ao lado da influência francesa e
precursor da ideia da existência de um cronologicamente simultânea com os
“patrimônio comum da humanidade” a ser primeiros anos do Iphan, está a iniciativa
identificado e preservado (Cury, 2004:13-19). norte-americana chamada Política de
Para colaborar com o Instituto de Cooperação Boa Vizinhança (Good Neighbor Policy)
Internacional Intelectual, o governo brasileiro apresentada pelo presidente Franklin
estabeleceu, em 1925, uma Comissão Roosevelt na Conferência Pan-americana
Brasileira de Cooperação Intelectual e de Montevidéu, em dezembro de 1933.
nomeou Eliseu Montarroyos como delegado, A política, que se estendeu até 1945 e é
encarregado da interlocução entre esse sucedida pela Guerra Fria, produziu, no
organismo e o Itamaraty. Montarroyos, campo do patrimônio, o Tratado de Roerich
que atuou até 1946, reivindicava ser o “o (Nicholas Roerich Museum), assinado em
agente da propaganda brasileira na Europa” 1935 “entre os Estados Unidos da América
(Dumont; Fléchet, 2009:205). e as outras repúblicas americanas visando à
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
250
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Acervo: Iphan/
Marcio Vianna.
Ponte Barão de Mauá
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
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Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
proteção de instituições artísticas e científicas e desconhecia suas realizações no campo
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
tempo de perigo todos os monumentos de Filho (Reis Filho, 2012) para situar a vinda
propriedade nacional e privada que formam o de Robert Smith ao Brasil no contexto
A
tesouro cultural dos povos”, os quais deveriam chamado por Russell-Wood “um novo
E
em tempo de paz e de guerra. Assim como pelos Estados Unidos, para, entre outros,
na Convenção de Haia, o tratado estabelece atuar na promoção de estudos de história e
H
que, em caso de guerra, os países listem seus literatura dos demais países do continente
A T R I M Ô N I O
cria um símbolo visual para identificar os com tese sobre a arquitetura portuguesa,
D O
Jurema Machado
elementos protegidos. Oswaldo Aranha, tido veio ao Brasil pela primeira vez em 1937,
E V I S T A
Fléchet, 2009:207), assina o documento pelo Learned Societies, uma reunião de sociedades
Brasil, em nome do então Departamento de científicas, criada em 1919, no espírito da
Cooperação Intelectual do Itamaraty. cooperação cultural internacional. Nessa
Mais pragmático e com um claro projeto missão de estudos sobre a arte colonial,
de governo, em 1937, o ministro Gustavo esteve em várias cidades brasileiras e
Capanema institui o Serviço de Cooperação conheceu Rodrigo Melo Franco de Andrade,
Intelectual (um ano depois transformado em presidente do recém-criado Iphan. Sua
252
Divisão de Cooperação Intelectual) e propõe presença despertou o interesse de Rodrigo,
medidas ambiciosas, como a revisão dos especialmente pelo conhecimento da arte
livros de História e Geografia dos principais portuguesa. E, a partir daí, estabelece-se um
países do mundo para introduzir uma caminho de cooperação e diálogo que vai se
imagem completa e exata do Brasil; a criação estender até 1970, quando o Instituto já era
de bolsas para estudantes brasileiros no presidido por Renato Soeiro. Essa cooperação
exterior; a concessão de subvenções às revistas representava, da parte do Iphan, não apenas
e instituições que organizassem congressos a facilitação do acesso aos monumentos
científicos internacionais sobre a cultura e arquivos no Brasil, mas sobretudo uma
brasileira. Capanema estava convicto de que intensa troca de informações e proposições
o Brasil deveria “trazer uma contribuição de focos para a pesquisa, debate ricamente
original, um novo fôlego, ao patrimônio registrado na correspondência entre Smith
cultural e intelectual da humanidade”, de e Rodrigo (Pereira, 2014:95). Smith, por
forma a combater o imaginário que associava sua vez, retribuía não apenas com palestras
o país exclusivamente à natureza exuberante e cursos no Brasil, mas, como queria
Capanema, com publicações em revistas se dispersa em várias unidades de governo,
A C I O N A L
dos verbetes “Arquitetura no Brasil” e “Arte Gustavo Capanema. A segunda seria “um
brasileira” na Enciclopédia Britânica (Pereira, grande pragmatismo na compreensão dos
2014:93) e artigos na revista Handbook of assuntos e da escolha dos destinatários”,
N
R T Í S T I C O
Brazilian Studies, projeto coordenado por o que fica explícito nas prioridades de
William Berrien e por Rubens Borba de Capanema, já mencionadas, e também na
A
Moraes, com publicação em português em forma com que o Iphan inteligentemente
E
1949, sob o título de Manual Bibliográfico de se apropria da cooperação para objetivos
I S T Ó R I C O
Estudos Brasileiros. não apenas externos, mas também internos.
Se é claro o nexo da vinda de Robert Finalmente, mencionam “a dissociação entre
H
Smith com o contexto da Política de Boa o que se valorizava no plano interno e o que
A T R I M Ô N I O
Vizinhança e com a estratégia de Capanema se mostrava da cultura brasileira no cenário
de divulgação do Brasil, sob a ótica do Iphan, internacional”, referindo-se ao discurso de
P
essa era uma oportunidade para suprir a identidade nacional do Estado Novo, que
D O
Jurema Machado
lacuna de estudos de história da arte e da valorizava, no plano interno, os elementos
E V I S T A
arquitetura brasileiras, além de aproveitar os da cultura e do saber popular e buscava, na
R
benefícios do olhar estrangeiro como apoio política externa, mostrar a cultura erudita.
à legitimação do discurso da preservação do E para quem quer erudição, nada melhor
patrimônio dentro do país. O Iphan, bem do que a sutil sofisticação da Arquitetura
ao seu modo de inserir-se no contexto da Moderna, que acabou se tornando um
cooperação internacional, cultivou a relação dos carros-chefes da imagem externa do
com Robert Smith ao longo de mais de trinta Brasil desejada pela política cultural do
anos, de 1937 a 1970. Smith faleceu em governo, a começar pelo projeto da sede do
253
1975, pouco depois de sua última vinda ao Ministério da Educação e Saúde, que reúne
Brasil e, em 2012, o Instituto publicou uma jovens arquitetos modernistas brasileiros e a
coletânea de seus estudos organizada por contribuição do já célebre Le Corbusier.
Nestor Goulart Reis Filho. O Brasil, ambíguo com relação à
Para Dumont e Fléchet (2009), o Alemanha nazista, foi foco de prioritário
período entre guerras assinala “o surgimento da Feira Mundial de Nova York de 1939,
e o desenvolvimento da diplomacia que, com o tema “O Mundo de Amanhã”,
cultural no Brasil, nos limites do debate buscava promover as relações de vizinhança
sobre a identidade nacional e a definição dos Estados Unidos com a América Latina,
da política estrangeira”. Segundo as diante da ameaça iminente da guerra. Projeto
autoras, três características marcam esse de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, principais
período. A primeira delas seria uma “certa expoentes do Movimento Moderno no
desordem institucional associada ao peso de Brasil, foi o selecionado para a construção
personalidades marcantes”, referindo-se ao do pavilhão brasileiro. O conteúdo deveria
fato da cooperação internacional encontrar- estar à altura: Armando Vidal, organizador
da exposição, definiu como princípio No Iphan, não se registram cooperações e
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
representar “o Brasil como um todo – com intercâmbios relevantes nesses anos, mas no
A C I O N A L
oposição daqueles que ainda não adquiriram seu cotidiano, a considerar como indicador
a capacidade de se afastar de regionalismos o ciclo dos processos de tombamento,
personalistas” (Comas, 2010:71). Como a instituição não parecia dar sinais de
N
R T Í S T I C O
Builds: Architecture New and Old, 1652– pesquisadores como tendo se dado no
1942, organizada pelo arquiteto norte- contexto da Política de Boa Vizinhança,
P
americano Philip Goodwin. A exposição foi Rodrigo Melo Franco atuou junto a William
D O
Jurema Machado
por várias cidades dos Estados Unidos, Assistente da Fundação Rockefeller, para
viabilizar a formação do funcionário Edson
R
A C I O N A L
além dos Estados Nacionais, instituições
sinteressado, que é o de definir os traços peculiares
científicas, segmentos profissionais e
de cada povo do continente (Andrade, 1964).
organizações da sociedade civil. A primeira
N
R T Í S T I C O
delas, prevista no seu Ato Constitutivo,
O Iphan teve inserção política e é a rede de Comissões Nacionais, que
perspicácia para extrair o melhor do
A
corresponde a um arranjo entre governo
E
projeto de construção da imagem do e sociedade descrito como “Each Member
I S T Ó R I C O
país empreendido pelo governo Getúlio State shall make such arrangements as suit
Vargas. Nutriu-se, assim como a maioria its particular conditions for the purpose of
H
das instituições suas contemporâneas, das associating its principal bodies interested
A T R I M Ô N I O
criações desse período, já que o retorno da in educational, scientific and cultural
democracia, a partir de 1946, não representou matters with the work of the Organization,
P
nenhuma renovação ou reforço da política de preferably by the formation of a National
D O
Jurema Machado
cultura. No ambiente internacional, o grande Commission broadly representative of the
E V I S T A
marco do novo momento será a criação da government and such bodies”. Em 1946,
Unesco, em 16 de novembro de 1945, que
R
o Brasil criou sua Comissão Nacional,
passa a funcionar, direta ou indiretamente, operacionalizada por meio do Instituto
como o novo norte da cooperação Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura,
internacional no campo do patrimônio. o Ibecc. A Comissão Nacional do Brasil
sempre foi um tema mal equacionado
A CRIAÇÃO DA UNESCO E A na estrutura do Itamaraty, até que, em
C O O P E R A Ç Ã O C U LT U R A L N O 2009, o Ibecc foi extinto e, desde então, a
PÓS-GUERRA Comissão não foi reestabelecida (Rezende,
255
grandes correntes ideológicas que estiveram que favorecer o conhecimento mútuo entre
A C I O N A L
na criação da Unesco e que, sob diversas culturas seria um ponto de partida para o
formas, persistiram ao longo dos anos: uma respeito e a tolerância, princípio que está na
anglo-americana, originária da Conference base da enorme mobilização institucional
N
R T Í S T I C O
que a proposta francesa, com a qual se partir de 1978) e o Projeto principal para
D O
Jurema Machado
A C I O N A L
internacional a respeito da discriminação
Esta grande república tem uma civilização que
racial esteve entre as primeiras medidas da
foi desenvolvida pelas contribuições diretas de
N
ONU e da Unesco no pós-guerra. As tensões
diferentes raças e sofre menos do que outras nações
R T Í S T I C O
da Guerra Fria, expondo críticas ao racismo,
dos efeitos dos preconceitos que estão na raiz de
nos Estados Unidos e na África do Sul, e o tantas medidas vexatórias e cruéis em países de
A
movimento de descolonização agregaram composição étnica semelhante. Ainda estamos mal
E
ainda mais calor ao debate. Em resposta a
I S T Ó R I C O
informados sobre os fatores que levaram a esta
uma resolução do Conselho Econômico e situação, sob muitos aspectos, exemplar. Mas, no
Social da ONU, a Conferência Geral da estado atual das ciências sociais, as especulações
H
gerais já não são suficientes. Devemos ter
A T R I M Ô N I O
Unesco de 1949 adotou três resoluções sobre
o tema: “estudar e coletar materiais científicos especialistas, fazer pesquisas no campo. Devemos
aprender com eles exatamente por que e como
sobre questões de raça”, “dar ampla difusão
fatores sociais, psicológicos e econômicos têm
P
ao material científico recolhido” e “preparar
D O
contribuído em graus variados para tornar possível
Jurema Machado
uma campanha educacional com essas
E V I S T A
a harmonia que existe no Brasil (Unesco, 1950).
informações” (Unesco, 1950). Com base na
R
hipótese de que o Brasil havia construído um
A pesquisa intitulada Projeto de Relações
modelo peculiar de convívio social, exemplar
Raciais da Unesco, que no Brasil se tornou
e harmonioso, que deveria ser mais bem
conhecida como Projeto Unesco, foi prevista
conhecido, o país foi selecionado como objeto
inicialmente para se realizar apenas na Bahia,
das pesquisas sobre relações raciais. Segundo
um estado de economia tradicional e rural,
Maio (2000:125), para os Estados Unidos,
mas se estendeu para os centros em intenso
a escolha do Brasil interessava também pela
processo de urbanização – Rio e São Paulo – e 257
“possibilidade de usar um país capitalista
teve ramificações no Sul e em Pernambuco.
periférico na batalha ideológica internacional
(Maio, 2000). Como hoje se sabe muito
contra o comunismo”. Diz o documento
bem, seus resultados revelaram uma situação
The race question, de autoria dos professores
completamente diferente da idealizada:
Ernest Beaglehole (Nova Zelândia); Juan
distância social entre brancos e negros, pouca
Comas (México); Luiz Aguiar da Costa Pinto
mobilidade entre não brancos, classificações
(Brasil); Franklin Frazier (Estados Unidos);
raciais que combinavam definições fenotípicas
Morris Ginsberg (Reino Unido); Humayun
com atributos não biológicos, como classe,
Kabir (Índia); Claude Lévi-Strauss (França) e
status e educação, revelando-se um sistema
Ashley Montagu (Estados Unidos), reunidos
complexo de classificação racial. A partir
por convocação da Unesco em 1950:
desses resultados, o Projeto Unesco acabou se
Chegou o tempo de levarmos em consideração tornando um plano para analisar disparidades
as sociedades que, em grande medida, conseguiram sociais e as desigualdades raciais no Brasil.
resolver os antagonismos por diferenças raciais. Ainda segundo Maio, no artigo “Unesco’s
anti-racist agenda: research on race relations dos terreiros de candomblé. A política de
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
da Unesco, seus achados não negaram a – instituída pelo Decreto no 3.551, do ano
2000, e com a criação do Departamento
(...) importância do mito de uma democracia de Patrimônio Imaterial, em 2004 –, iria se
N
R T Í S T I C O
A C I O N A L
à sua origem judaica diante da ascensão do Unesco e o Iphan vai se dar especialmente
nazismo. É convidada por Rodrigo Melo a partir de 1966, quando é instalada a
Franco a ministrar cursos de história da arte Representação no Brasil e assinado o
N
R T Í S T I C O
para funcionários do Iphan e para outras acordo de cooperação internacional entre
colaborações, que se estendem até 1947. Suas a Organização e o governo brasileiro. A
A
aulas estão reunidas na publicação Hanna partir de então, a Unesco organiza, com
E
Levy no Sphan: história da arte e patrimônio, a cooperação do International Council of
I S T Ó R I C O
organizada por Adriana Sanajotti Nakamuta Museums – Icom e do International Council
(2010). Germain Bazin (1901-1990), of Monuments and Sites – Icomos, diversas
H
historiador da arte, museólogo e conservador missões de especialistas internacionais ao
A T R I M Ô N I O
do Museu do Louvre, nas suas viagens ao Brasil, cuja ênfase recaiu sobre várias cidades
Brasil entre 1945 e 1949, também estabeleceu que, anos mais tarde, passariam a integrar
P
relação de amizade e de trocas com Rodrigo a lista brasileira de sítios do Patrimônio
D O
Jurema Machado
Melo Franco de Andrade e com os diretores Mundial. A primeira missão foi a de Paul
E V I S T A
regionais do Iphan. Suas pesquisas resultaram Coremans, diretor do Real Instituto de
R
na publicação de Originalidade da arquitetura Estudo e Conservação do Patrimônio
barroca em Pernambuco (1945-1951), Artístico de Bruxelas, Bélgica, que visitou o
Arquitetura religiosa barroca no Brasil (1956), Rio de Janeiro, Sabará, Congonhas e Ouro
O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil Preto. Em duas missões, em 1966 e 1967,
(1963) e Aleijadinho (1963), além de palestras Michel Parent esteve em mais de 35 cidades;
na Europa, divulgando o Barroco brasileiro Frédéric Limburg de Stirum desenvolveu
com o estatuto de uma arte com expressão e um plano diretor para a cidade de Paraty,
259
representação próprias (Pereira, 2012). Um em 1967; Graeme Shankland esteve em
pouco mais tarde é a vez de Mário Chicó Salvador e em outras cidades da Bahia, em
(1905-1966), historiador da arte e museólogo 1968; Alfredo Viana de Lima trabalhou
português, que veio participar de congresso em um plano urbanístico para Ouro Preto,
em 1954, quando conheceu Rodrigo Melo entre 1968 e 1970, e, um pouco mais
Franco, e seguiu colaborando com o Iphan tarde, para cidades no Maranhão, Sergipe
até 1965 (Pereira, 2012). E também de e Alagoas; em 1979, Pierre Habib atuou
João Miguel dos Santos Simões (1907- na investigação sobre segurança estrutural
1972), engenheiro português, especialista nos edifícios de Olinda e Ouro Preto, após
em azulejaria, com várias missões ao Brasil chuvas torrenciais terem atingido as duas
entre 1959 e 1968 e publicações na Revista cidades (Leal, 2008). As visitas de Michel
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Parent foram consolidadas, em 1968, no
reconhecido por ter inspirado o trabalho relatório denominado Protection et mise
de Pedro e Dora Alcântara na preservação en valeur du patrimoine culturel brésilien
de azulejos nos monumentos brasileiros dans le cadre du développement touristique et
écononomique (Parent, 1968), cuja influência International Centre for the Study of the
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
o primeiro grande programa de preservação Veneza. Com menor relação com o Iphan,
I S T Ó R I C O
Mundial, seja pelas ameaças que podem advir Nature – IUCN, criada em 1948, também
de sua má gestão, seja pelos benefícios que sob os auspícios da Unesco. A IUCN detém
P
uma gestão sustentável pode representar. uma enorme rede mundial e, diferente das
D O
Jurema Machado
que começam a circular pelo Brasil por também aceita como membros instituições
R
A C I O N A L
ratificou a Convenção de Haia em 1958 Em dezembro de 1956, a Conferência
e o 2º Protocolo em 2005. Países que são Geral da Unesco, realizada em Nova Dehli,
potências bélicas ou que protagonizam alguns aprovou a Recomendação que define os
N
R T Í S T I C O
dos principais conflitos na atualidade não são princípios internacionais que deverão ser
signatários dessa convenção, como é o caso aplicados às escavações arqueológica (Cury,
A
dos Estados Unidos, de Israel, Inglaterra, 2004:69). Os principais elementos da
E
Rússia, Síria, Turquia, Iraque, entre Recomendação serão, menos de cinco anos
I S T Ó R I C O
outros. Em que pesem os grandes esforços mais tarde, incorporados pela legislação
diplomáticos, a efetividade da Unesco tem brasileira, mais especificamente pela Lei
H
sido mínima no momento dos conflitos. no 3.924, de julho de 1961, que “dispõe
A T R I M Ô N I O
Obtém maior sucesso a posteriori, na sobre os monumentos arqueológicos e
recupeção dos sítios atingidos, na prevenção pré-históricos”, baseando-se no princípio
P
do tráfico de objetos e na capacitação de redes constitucional de que a propriedade do
D O
Jurema Machado
de profissionais. A aplicação da Convenção subsolo pertence à União – tema também
E V I S T A
de Haia depende sobretudo da ação do Icom, arrolado na Recomendação de Nova Dehli.
R
com sua rede de museus e de museólogos, e Tornam-se então obrigatórias a prévia
do Comitê Internacional do Escudo Azul, autorização para explorações arqueológicas,
referindo-se ao símbolo usado para identificar a apresentação de relatórios do avanço
os locais culturais protegidos pela Convenção de pesquisas e a comunicação de achados
(International Committee of the Blue Shield fortuitos, sendo o Iphan a entidade
– ICBS). O Comitê Brasileiro do ICBS foi autorizadora e fiscalizadora. Para um país de
criado em 2006, por iniciativa das instituições tradição mineral e exportadora, a lei editada
261
de arquivos e bibliotecas, e tem participação pelo breve governo de Jânio Quadros é,
do Iphan, inclusive de suas unidades nos sob a ótica do embate entre preservação e
estados. desenvolvimento econômico, um marco
Sob a ótica dos instrumentos de proporção semelhante ao do Decreto-lei
internacionais – convenções, recomendações no 25, de 1937. Seu artigo 22 condiciona
e cartas originárias de entidades o “aproveitamento econômico das jazidas”
preservacionistas –, há uma linha direta que à conclusão de “sua exploração científica,
une a proteção em caso de conflito armado, o mediante parecer favorável da Diretoria do
tráfico ilícito de bens culturais, o patrimônio Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”,
arqueológico e os inventários. Embora a ainda que seu parágrafo único pondere sobre
Convenção de Haia praticamente não tenha a extensão da área a ser protegida, utilizando
tido presença na história do Iphan, todos os expressões como “sempre que possível ou
demais temas fazem parte da trajetória do conveniente, uma parte significativa, a ser
Instituto, tanto na cronologia de medidas protegida pelos meios convenientes, como
legais quanto nos seus conteúdos, sempre blocos testemunhos”. A propriedade dos
bens arqueológicos é também tratada pela a análise de milhares de bens em processo
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
com inequívoca clareza que “As jazidas um esforço gigantesco para uma filtragem
arqueológicas ou pré-históricas de qualquer muito reduzida, mas certamente com efeito
A
natureza, (...) são consideradas, para todos valioso por ser inibidor da circulação ilegal de
E
de bens, aspecto que aparece com menor Em 1970, o tráfico ilícito de bens
A T R I M Ô N I O
Jurema Machado
do país. A atenção para com a preservação (Unesco, 1970), instrumento que o Brasil
e difusão do conhecimento está também ratificou rapidamente, em 1973. Essa
presente na Recomendação e, na lei de Convenção busca, além de inibir a circulação
1961, está contemplada na obrigatoriedade internacional de bens, estimular os países a
de manutenção de um cadastro dos implantar medidas preventivas e coercitivas,
monumentos arqueológicos do Brasil. Outros assim como participar do intercâmbio
temas da Recomendação, como a educação internacional de informações de combate ao
262
e a gestão de coleções, embora não explícitos roubo. Complementarmente à Convenção,
na lei brasileira, seguiram sendo objeto de em 1978, a Unesco aprova a Recomendação
aprimoramento pela prática do Iphan ao sobre a proteção dos bens culturais móveis
longo dos anos. (Unesco, 1978), que define como bens
Ainda no contexto de coibir o comércio móveis todos os que “são a expressão ou
ilegal de bens considerados patrimônio o testemunho da criação humana ou da
nacional, em 1965, a Lei no 4.845 passa a evolução da natureza e que têm um valor
proibir a saída do país de “quaisquer obras arqueológico, histórico, artístico, científico
de artes e ofícios tradicionais, produzidas no ou técnico”. Segue-se uma lista de onze
Brasil até o fim do período monárquico”, tipologias de bens móveis, que inclui objetos
abrindo exceção para saída temporária para arqueológicos, elementos procedentes do
fins de intercâmbio cultural e mediante desmembramento de monumentos, bens de
autorização do Iphan. A partir de 1992, interesse artístico, documentos de arquivos,
quando a norma é regulamentada, passa a espécies de zoologia etc. Embora o tema dos
ser cotidianamente demandada do Instituto inventários no Brasil esteja presente desde
antes da política de preservação, não se pode à lavagem de dinheiro, tendo por base a
A C I O N A L
de que inicia-se, no país, a década mais fértil de obras de arte, já prevista desde a edição
da produção de inventários, especialmente do Decreto-lei no 25/1937. Essa tarefa, quase
de bens móveis, dinamizada pelos recursos inexequível até poucos anos atrás, vem sendo
N
R T Í S T I C O
da Fundação Nacional Pró-Memória e da fortalecida por regulamentação específica,
Fundação Vitae. Em 1985, o Conselho além de largamente facilitada pelo avanço da
A
Consultivo do Patrimônio Cultural, do internet.
E
Iphan, deliberou que o tombamento de
I S T Ó R I C O
edificações de culto religioso deveria incluir AS CONTRADIÇÕES DO
os bens móveis e integrados presentes no seu D E S E N V O LV I M E N T O , R E F E R Ê N C I A S
H
interior na data do tombamento, estendendo INTERNACIONAIS E A FORMAÇÃO
A T R I M Ô N I O
assim a proteção para um quase infindável PA R A O PAT R I M Ô N I O
– e até hoje não dimensionado – número de
P
bens móveis e integrados, o que somente será As décadas de 1960, 1970 e 1980, tanto
D O
Jurema Machado
solucionado mediante um novo esforço de internacionalmente como no Brasil, são de
E V I S T A
inventários. ideias fervendo. Se aqui faltava liberdade
R
Dez anos mais tarde, gestões da Unesco e as cidades cresciam fora de controle, o
levariam à aprovação da Convenção do ambiente internacional era pródigo na
Instituto Internacional para a Unificação produção de documentos de referência no
do Direito Privado – Unidroit sobre objetos campo da preservação, não só pela Unesco,
culturais roubados ou ilegalmente exportados mas sobretudo pelo Icomos, por congressos
(Unesco, 1970), que atua não mais sobre de arquitetos e outros fóruns multilaterais.
países, como os instrumentos da Unesco, mas Temas, à primeira vista, distantes do campo
263
sobre relações comerciais entre particulares, da preservação, ganham espaço e influência
ao estabelecer, além da obrigatoriedade de nos rumos do patrimônio, com os debates
devolução do bem roubado, a necessidade de na ONU sobre o meio ambiente e sobre o
que seu detentor prove ter tomado, quando conceito e os impactos do desenvolvimento.
da aquisição, todas as medidas disponíveis As estratégias das Nações Unidas para
para assegurar-se da sua origem. O Brasil o desenvolvimento até a década de 1960
ratificou essa Convenção em 1999, outros tiveram como foco a industrialização e a
37 países o fizeram até abril de 2017, mas institucionalização do sistema de cooperação
a lista de ratificações não inclui países ricos internacional para o desenvolvimento
e potencialmente “importadores”, como os (Banco Mundial e FMI). Se até então
Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Japão desenvolvimento significava, exclusivamente,
e Israel, dentre outros. crescimento econômico, a partir de
Mais recentemente, o tema dos 1960 as “Décadas do Desenvolvimento
bens móveis e do comércio de arte vem Internacional” da ONU começam a dar
aproximando o Iphan dos órgãos de combate sinais de preocupação com a eficácia das
políticas de desenvolvimento ao se constatar, cultural e politicamente muito diversos. Ficam,
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
em países como o Brasil, por exemplo, o por essa razão, frequentemente limitadas
A C I O N A L
Jurema Machado
ambiental (United Nations, 1987). A das suas cidades, com rápidas e desastrosas
R
evolução dessa posição iria levar à Agenda transformações nos centros históricos e na
21, que prevê a cooperação global para o paisagem, a Carta de Veneza traz conceitos
desenvolvimento sustentável, adotada na valiosos para sustentar a noção de ambiência,
Conferência das Nações Unidas sobre Meio ao entender o monumento como sendo
Ambiente e Desenvolvimento, no Rio, em “inseparável da história de que é testemunho
1992. e do meio em que se situa” e ao reconhecer
Esse rápido panorama de três décadas como “válidas as contribuições de todas as
264
é subjacente à formulação das referências, épocas”. Três anos mais tarde, em 1967,
muito importantes para o patrimônio, as Normas de Quito sobre conservação e
presentes na Convenção do Patrimônio utilização de monumentos e sítios de interesse
Mundial (1972) e naquelas a que, no histórico e artístico (Cury, 2004:105-122),
Brasil, se convencionou chamar de “cartas produzidas no âmbito da OEA, tratam
patrimoniais”. Essas cartas são as principais da necessidade de medidas urgentes para
representantes da efervescência do pensamento o patrimônio americano ameaçado pelo
sobre o patrimônio, mais frequentes e desenvolvimento. Reiteram a noção de que o
inovadoras nesses trinta anos do que nos que espaço é inseparável do momento e de que a
se sucederam. Longe de serem um receituário tutela do estado deve incidir sobre o contexto
acabado, ou um “manual de aplicação“ da onde se inserem os bens. Reconhecem
teoria da conservação, as cartas refletem, assim que o monumento cumpre função social e
como os instrumentos da Unesco, o consenso apontam o turismo como um dos possíveis
possível em um dado momento histórico, instrumentos de compatibilização da
consenso geralmente originário de coletivos preservação com o desenvolvimento.
Se, desde a sua criação, o Iphan se quais as políticas de patrimônio dependem
A C I O N A L
para compor os quadros da instituição, tratado como objeto de abordagem específica.
as novas referências internacionais e as Em suma, durante muitos anos, no que
se refere à formação especializada para
N
complexas pressões no contexto do país
R T Í S T I C O
colocam o tema da formação profissional a conservação e a gestão do patrimônio,
na ordem do dia. Como menciona Augusto somente se tinha acesso fora do Brasil: no
A
da Silva Telles, ao descrever as experiências México, nos Estados Unidos, França, Itália e
E
Inglaterra. Em 1965, o Brasil havia aderido
I S T Ó R I C O
de formação para o patrimônio no Boletim
Sphan 22: ao Iccrom que, por muitos anos, alimentou
a formação de técnicos brasileiros com seu
H
curso de conservação arquitetural baseado na
A T R I M Ô N I O
O crescimento do órgão processava-se de
forma lenta; assim novos técnicos que nele foram Carta Italiana de Restauro (Lyra, 2016:66).
ingressando ao correr desses anos iam recebendo Não alheia a esse quadro, desde os
P
treinamento a partir da própria experiência do dia anos 1960, a formação de especialistas
D O
Jurema Machado
a dia, nos canteiros de obras e na elaboração de na América Latina estava no foco da
E V I S T A
projetos, especificações e, igualmente, através do
Unesco, cuja ação mais marcante foi
debate sobre casos concretos – análise de acertos e
R
promover a criação do Centro Regional
enganos (Silva Telles, 1983:23).
Latinoamericano de Estudios para la
Conservación y Restauración de Bienes
A preocupação com a formação sempre
Culturales – Cerlacor, em 1967, no
esteve presente, traduzida em políticas México (Nascimento, 2016:222). O
institucionais desde pelo menos 1945, com a Centro passou por mudanças sucessivas até
criação da cátedra de Arquitetura no Brasil na que, no ano de 2000, transformou-se na
Faculdade Nacional de Arquitetura no Rio de 265
Coordinación Nacional de Conservación
Janeiro, atendendo a gestões de Rodrigo Melo del Patrimonio Cultural – CNCPC, que
Franco, depois seguida por outras na Bahia, corresponde atualmente à área normativa
Pernambuco e Minas Gerais (Nascimento, do Instituto Nacional de Antropología e
2016:213). Nas poucas escolas de arquitetura Historia – Inah em matéria de conservação
do país até a década de 1960 (Rio de Janeiro, de bens paleontológicos, arqueológicos e
São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, históricos. Como se verá adiante, no Brasil,
Bahia e Pernambuco), o tema da preservação as iniciativas de cursos de especialização,
era tratado pelas disciplinas de História da a partir da década de 1970, tiveram a
Arquitetura ou Arquitetura no Brasil, situação contribuição da Unesco para o aporte da
que prevaleceu até 1994, quando a disciplina perspectiva internacional, seja acionando as
se tornou obrigatória no currículo da redes que ajudou a criar e manter – Iccrom,
graduação. Da mesma forma, nas graduações Icomos e Icom –, seja facilitando a circulação
de cursos como História, Antropologia, de professores estrangeiros e a difusão e
Ciências Sociais – campos disciplinares dos participação de alunos latino-americanos.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
266
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
Brasília
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
267
Jurema Machado Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
No início dos anos 1970, o governo (Andrade, 2012:40). As ideias de Hugues de
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
1979 (Corrêa, 2012). Esse contexto explica recurso, deve servir à sociedade como um todo
E
cooperação com os estados, três cursos de Para os cursos, mais uma vez a Unesco
especialização em patrimônio, realizados nos articula a presença de Michel Parent e Alfre-
H
em São Paulo, Pernambuco e Minas Gerais. contratados para desenvolver trabalhos que
O perfil essencialmente prático dessas implicavam estender o escopo e o período de
P
especializações – discussão de casos concretos, suas missões ao Brasil. Esses consultores atuam
D O
Jurema Machado
A C I O N A L
S E U S M U I T O S R E T R AT O S
turismo e o patrimônio cultural brasileiro (Leal,
2016:113).
N
Tanto para a Unesco, quanto para o
R T Í S T I C O
Brasil, o grande marco da cooperação cultural
As observações da autora corroboram o
internacional é a Convenção para a Proteção
já mencionado em seções anteriores: para
A
do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural
E
o Iphan, a cooperação internacional, além
I S T Ó R I C O
da Humanidade (Unesco, 1972), conhecida
dos propósitos que lhe são inerentes, sempre
como Convenção do Patrimônio Mundial,
funcionou como estratégia para buscar apoio
aprovada em 1972 e ratificada pelo Brasil
H
político, recursos e meios para atuar dentro
A T R I M Ô N I O
em 1978. O evento que melhor expressa a
do próprio país.
necessidade de uma ação internacional de
A participação da Unesco nos cursos
proteção ao patrimônio cultural foi a ameaça
de formação foi formalizada em Projeto
P
de destruição dos templos de Abu Simbel e
D O
de Cooperação Técnica Internacional,
Jurema Machado
Philae, no alto rio Nilo, para a construção da
E V I S T A
objeto de acordo entre Iphan e Unesco,
barragem de Assuan. Embora esse seja um
coordenado, da parte da Unesco, pelo
R
caso exemplar de campanha internacional em
chefe da Seção de Operações e Formação, favor de um bem de valor inestimável para
Hector Arena (Corrêa, 2012:208). Além a humanidade, discussões sobre a proteção
do curso de São Paulo, realizaram-se internacional para sítios naturais associados
os cursos de Recife (1976) e de Belo a locais históricos já aconteciam nos Estados
Horizonte (1978). Um quarto curso Unidos desde 1965, quando, durante
ocorreu em 1981, em convênio com a conferência na Casa Branca, em Washington, é
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 269
criada uma Fundação do Patrimônio Mundial
da Universidade Federal da Bahia, sob para proteger sítios naturais e históricos (Bo,
o título de Curso de Especialização 2003). Em 1968, outra iniciativa, dessa vez da
em Restauração e Conservação de IUCN, propõe um processo de consulta para
Monumentos e Conjuntos Históricos – o estabelecimento de acordo internacional
Cecre. O Cecre se realizou continuamente de proteção de bens naturais. Em 1970, a
desde então e foi transformado em Conferência Geral da Unesco decide pela
mestrado profissional a partir de 2009. preparação de um projeto de convenção
Em Minas Gerais, a experiência também e de uma declaração sobre a proteção dos
se desdobrou na criação, em 1980, do “monumentos e lugares de interesse universal”.
Centro de Conservação e Restauração de Em 1972, durante a Conferência das Nações
Bens Culturais Móveis – Cecor, atualmente Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
a principal referência de formação para em Estocolmo, após análise dos anteprojetos
a conservação de bens móveis no Brasil da Unesco, relativos aos bens culturais, e
(Corrêa, 2012:208). da IUCN, relativo ao patrimônio natural,
decidiu-se pela convergência para um único permitiriam a apreensão da síntese da evolução
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Jurema Machado
teóricas para conduzir ao conceito de “valor Para escapar a essa “arte política” e
E V I S T A
A C I O N A L
equilíbrio adequado, uma vez que não é nada Em 1988, a realização, em Brasília, do mais
desprezível o melhor dos seus efeitos, que é importante evento do calendário anual, a
a ampliação do compromisso dos estados- reunião do Comitê do Patrimônio Mundial,
N
R T Í S T I C O
membros para com a preservação. Exigências fecha esse ciclo virtuoso. Nessa fase, o Brasil
da Unesco implicam contrapartidas dos se empenha em inscrever seus sítios mais
A
países – não apenas em investimentos, mas consagrados: a lista se inicia por Ouro Preto
E
sobretudo em melhorias na gestão –, que (1980), seguida de Olinda (1982), Missões
I S T Ó R I C O
se mobilizam quando instados a defender Jesuíticas Guaranis (1983), Salvador e o
valores da nacionalidade frente a um coletivo Santuário do Bom Jesus de Congonhas
H
internacional. Outro efeito muito benéfico, (1985), inequívocos marcos do período
A T R I M Ô N I O
claramente presente na experiência brasileira, colonial, numa varredura que oferece um
é o fato de que a Convenção empoderou pequeno retrato da diversidade presente no
P
as comunidades locais e os movimentos território. Em 1986, é inscrito o primeiro
D O
Jurema Machado
preservacionistas, que dela se valem para bem natural, o Parque Nacional do Iguaçu,
E V I S T A
pressionar os governos contra negligências ou iniciativa que não envolve o Iphan, e, em
R
pelo aprimoramento de medidas de proteção 1987, Brasília, o primeiro representante
do patrimônio. do Movimento Moderno a integrar a
No que se refere aos bens culturais, a lista mundial, um marco na história da
aplicação da Convenção do Patrimônio própria Convenção. Esse tema merece um
Mundial no Brasil é diretamente dependente destaque adicional, mas antes é importante
da ação do Iphan, seja porque cabe ao registrar o papel de Augusto da Silva Telles
Instituto a garantia da preservação dos sítios na trajetória de cooperação internacional
271
em nível nacional, seja como propositor do Iphan, desde a década de 1960 até sua
ou legitimador das candidaturas à lista. De aposentadoria, em 1991.
1983 a 1999, quando não havia restrições Embora sem uma denominação oficial de
à reeleição, o Brasil foi ininterruptamente “assessoria internacional” ou algo equivalente,
membro do Comitê do Patrimônio Mundial, Silva Telles respondeu pela presença do
numa longa sequência de três mandatos Iphan nos fóruns multilaterais, não apenas
– 1980/1987, 1987/1993 e 1993/1999. na Unesco, e trouxe para a instituição o
Interrompeu sua participação por oito anos debate sobre os instrumentos internacionais,
e teve novo mandato de 2007 a 2011. Ainda a começar pela Carta de Veneza, objeto das
assim, não se pode afirmar que essa presença ações de capacitação empreendidas pelo
tenha sido, por todo o tempo, vigorosa, Iphan sob sua liderança. Como ele próprio
muito menos homogênea. relata em entrevista a Analucia Thompson,
Uma primeira fase, de marcante atuação estimulado por um diretor da Unesco
do Iphan, vai da ratificação da Convenção quando em viagem a Paris, em 1978, criou o
pelo Brasil, em 1978, até 1988. Nesse Comitê do Icomos no Brasil e o presidiu até
1982 (Thompson, 2010). O site do Icomos pela primeira vez, uma situação em que a
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
internacional menciona que Silva Telles serviu iniciativa da candidatura tem origem fora
A C I O N A L
ao seu Comitê Executivo de 1984 até 1987, do Iphan. Pela fragilidade operacional, mas
exercendo um mandato como vice-presidente também por dúvidas de natureza conceitual,
e foi nomeado membro honorário do Icomos o Iphan ainda não havia sequer protegido
N
R T Í S T I C O
em 1988, em Brasília. A atuação do Brasil edifícios, decide dar um passo além e propor
A T R I M Ô N I O
nessa primeira fase se deve muito à liderança a inscrição de Brasília na lista da Unesco. O
política e estratégica de Aloisio Magalhães Iphan participa do processo com os aportes
P
Jurema Machado
Aloisio e pela redução das viagens e depois mas a opção pela inscrição, diferente do
R
A C I O N A L
Fundação, dirigida pela arqueóloga Niède no corpo técnico, embora ausente dos
Guidon, havia sido criada a partir de registros oficiais.
missão científica franco-brasileira, cujos Assim como no caso de Brasília, a
N
R T Í S T I C O
surpreendentes resultados de pesquisas proposta de inscrição de São Luís resulta de
arqueológicas, associados aos atributos iniciativa do governo estadual, considerada
A
naturais, haviam motivado a criação do vital como uma ação de coroamento de
E
parque nacional pelo Ibama. O dossiê extenso programa de obras de conservação
I S T Ó R I C O
concentra-se nos valores do sítio como do centro histórico, iniciadas em mandato
patrimônio arqueológico, mas o Iphan, anterior e concluídas no governo de então.
H
àquela altura às voltas com tumultuado O dossiê foi elaborado pela equipe do
A T R I M Ô N I O
processo interno que colocava em risco a governo estadual, contou com orientações
própria existência da instituição, não tem fundamentais de Jean- Pierre Halévy e
P
protagonismo na candidatura. com aporte de técnicos do Iphan, mas a
D O
Jurema Machado
Dez anos separam a inscrição de Brasília candidatura foi oficialmente processada à
E V I S T A
da inscrição do sítio urbano seguinte a margem do Iphan. O processo foi conduzido
integrar a lista da Unesco, o centro histórico
R
com divulgação restrita às áreas técnicas.
de São Luís do Maranhão. É a esse momento A ausência de participação social nas fases
que se refere Jean-Pierre Halévy, historiador de preparação dos dossiês era a prática das
francês com forte vínculo com o patrimônio candidaturas no Brasil até aquele momento.
brasileiro e orientador de várias candidaturas O centro histórico de Diamantina,
a partir de então, ao dizer: exemplar peculiar e bem preservado das
vilas mineradoras do século XVIII, inscrito
Precisamos ouvir a voz do Brasil, comentava- 273
em 1999, corresponde ao primeiro caso,
se nos corredores do Comitê do Patrimônio no Brasil, em que a participação social é o
Mundial em 1997. Em pouco mais de dez anos,
ponto de partida de uma candidatura. Outra
ela só se fez ouvir uma vez, em 1991, com a
particularidade foi ter tido, também pela
inscrição de Capivara (...). Nos anos precedentes,
o Brasil não só propôs a inscrição de seis
primeira vez, um governo municipal como
bens culturais (...) como provocou discussões protagonista do processo de reconhecimento.
apaixonadas dentro do Comitê, contribuindo A participação social era desejo do
para a ampliação e o aprofundamento dos município e, a essa altura, o procedimento
critérios de inscrição (Bicca, 2000). já era estimulado pela Unesco como um
demonstrativo de sustentabilidade da gestão
Halévy se refere à fase pós-1988, quando, futura dos sítios. Com a economia local
mesmo considerando a inscrição da Serra muito debilitada pela definitiva extinção da
da Capivara, o Iphan perde o protagonismo mineração, a prefeitura buscava, na expansão
na condução de candidaturas, seja pelas da universidade e no turismo, alternativas
suas limitações de pessoal, por pressões econômicas para o município, polo de uma
região muito pobre de Minas Gerais. Criou- das comunidades afetadas. No entanto,
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
da cidade, que foram critério de destaque que analisam esse período da diplomacia
na argumentação que levou à inscrição. O brasileira, contribui especialmente com o
A
da Serra dos Cristais do entorno do sítio, de Bruno Novais (Novais, 2013). O trabalho
I S T Ó R I C O
candidatura no Brasil. O Iphan, que possuía dados quantitativos muito objetivos, obtidos
A T R I M Ô N I O
Jurema Machado
Goiás, cuja inscrição se deu em 2001, tem Cultura e Ministério da Educação” e registra
o mesmo padrão de Diamantina: iniciativa inovações e ampliações em todas as direções:
local, busca de alternativa econômica para regiões e fóruns trabalhados; quantidade e
a cidade, participação social, elaboração de diversidade de ações; quantidade e diversidade
Plano Diretor e instrumentos de proteção de atores; criação de espaços bilaterais. Foi
da Serra Dourada, no entorno. O Iphan, nesse contexto, de afirmação internacional
da mesma forma, não teve a iniciativa, mas do país, que o Iphan retornou, em 2007, ao
274
participou da mobilização e selecionou Comitê do Patrimônio Mundial disposto a
consultor externo para elaboração do dossiê, não se restringir à reprodução dos conceitos
produzido em tempo recorde e com custos e práticas consolidados pela Convenção, mas
arcados pelo movimento comunitário. a interferir efetivamente no debate sobre o
A posição de distanciamento do Iphan instrumento, seus critérios de aplicação e seus
em relação às candidaturas irá mudar resultados. O Brasil volta à cena, mas dessa
substancialmente a partir de então. De vez como um aluno bem menos comportado
um lado, esse quadro de desprestígio da do que se esperava.
instituição, demonstrado sobretudo por A primeira medida dessa nova fase
baixíssimos salários, falta de pessoal e foi a aceitação, pelo Iphan, da proposta
orçamento aquém do mínimo, apresenta apresentada pelo Centro do Patrimônio
melhoras crescentes a partir de 2006. Por Mundial de criar um Centro de Categoria
outro, a prática de participação social II, voltado para a gestão do patrimônio. A
amadurecia e já não fazia mais sentido criação de centros de formação é estimulada
produzir dossiês em gabinetes, à revelia pela Unesco, para servirem como braços
para a implementação de temas do seu bem seriado – Conventos franciscanos
A C I O N A L
Centro, hoje chamado Lucio Costa e expressividade, mas a candidatura evoluiu
instalado no Rio de Janeiro, mas com um tratando apenas da praça como um bem
formato diferente do esperado pelo Centro
N
isolado, de mais difícil sustentação. O Iphan
R T Í S T I C O
do Patrimônio Mundial: opção por países optou por não frustrar as expectativas locais,
de interesse do Brasil para a cooperação valiosas para Sergipe e para o país, e se valer
A
cultural, mas não coincidentes com as regiões de uma retórica capaz de conformar os valores
E
geográficas da Unesco (no caso, foco em do bem a um marco teórico um tanto vago,
I S T Ó R I C O
América do Sul e países africanos de língua como é o da Convenção.
portuguesa e espanhola); abordagem de Muito mais do que no Brasil, onde
H
todas as convenções, não exclusivamente
A T R I M Ô N I O
pouca gente acompanhou esse movimento,
da Convenção do Patrimônio Mundial e no ambiente da Unesco e dos órgãos
vínculo administrativo com o Iphan, e não assessores, a movimentação política do país,
P
uma instituição independente como queria em articulação com países que vinham, há
D O
Jurema Machado
a Unesco. A posição do Brasil foi acatada, muito, questionando a supremacia exagerada
E V I S T A
mas a prática vem mostrando dificuldades dos órgãos assessores (Icomos e IUCN), não
R
relacionadas a essas opções, as quais, somadas passou desapercebida. O episódio, assim
a problemas sistêmicos da instituição, têm como outros análogos, sobretudo em que
alongado o processo de consolidação do países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia,
Centro, que, só a partir de 2015, adquire China e, mais tarde, África do Sul) reagem
uma estrutura de governança que inclui contra decisões dos órgãos assessores, é
formalmente os países-membros do Centro. objeto de vários trabalhos acadêmicos, um
A demanda seguinte da Unesco ao deles sob um título que vai além da ironia
275
Brasil foi que o país recebesse a reunião inteligente, para escancarar o preconceito
anual do Comitê do Patrimônio Mundial, contra os países eternamente condenados
encontro que adquiriu escala monumental, a neófitos no ambiente da Convenção:
pela quantidade de países envolvidos, The new kids on the block: BRICs in the
número de dias de trabalho, complexidade World Heritage Committee, (Claudi, 2011),
da infraestrutura e da logística exigidas. A apresentado ao Departamento de Ciência
reunião realizou-se em Brasília em julho de Política da Universidade de Oslo, em 2011.
2010, cumprindo exemplarmente todos os O preâmbulo do trabalho, que sugere ser
requisitos de qualidade esperados. Nessa
metodologicamente consistente, diz
reunião entra em pauta a inscrição da
quase tudo:
Praça de São Francisco em São Cristóvão,
Sergipe, candidatura também oriunda de O Comitê do Patrimônio Mundial é
uma mobilização local, ocorrida a partir de um ambiente para discutir a preservação e a
2004. A proposta que constava originalmente conservação do patrimônio cultural e natural
da Lista Indicativa do Brasil era de um do mundo, mas também serve como arena onde
ideias são desenvolvidas e construídas e onde a Já o artigo Multilateralism and Unesco
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
uma poderosa estratégia política que os BRICs estados-membros, fato que os autores
A T R I M Ô N I O
Jurema Machado
A C I O N A L
Parque Nacional da Tijuca e suas florestas instituições de urbanismo, patrimônio e meio
replantadas e c) a Paisagem associativa, ambiente, dos três níveis de governo, situação
elementos que receberam a mão do homem impensável sem um fator aglutinador,
N
R T Í S T I C O
e cujas imagens projetam a cidade e sua como é a condição de Patrimônio Mundial.
cultura no Brasil e no mundo: Corcovado, Experiências como essa fazem refletir sobre os
A
Pão de Açúcar, com o Cristo Redentor e o reais benefícios da aplicação da Convenção e
E
bondinho, a entrada da Baía de Guanabara de como vários de seus mecanismos poderiam
I S T Ó R I C O
e suas fortalezas, o paisagismo do Parque do ser replicados para a política nacional,
Flamengo e da Praia de Copacabana (Iphan, independente dos bens serem candidatos
H
2011). Dessa vez o Iphan, mesmo contando ou fazerem parte da lista do Patrimônio
A T R I M Ô N I O
com contratação de consultoria externa para Mundial.
elaboração do dossiê, teve completo domínio Em 2016, foi inscrito o Conjunto
P
do processo, ao qual também se associou uma Moderno da Pampulha, em Belo Horizonte,
D O
Jurema Machado
estratégia de mobilização social, ainda que talvez o processo mais objetivo e eficaz de
E V I S T A
com características diferentes das ocorridas todos os já experimentados pelo Iphan.
R
nas pequenas cidades: maior presença de Vários fatores contribuíram para isso: o
setores empresariais e da grande imprensa. objeto é claramente delimitado e reconhecido
A aprovação da candidatura, assim como na história da arquitetura mundial; Belo
no caso de Brasília, representa um marco na Horizonte mobilizou uma equipe técnica de
história da Convenção. Pela primeira vez, alta qualidade, com muito conhecimento
uma paisagem cultural urbana é inscrita na acumulado sobre a área, em todos os seus
Lista do Patrimônio Mundial. A essa altura, aspectos; a prefeitura não apenas propôs
277
a Unesco vinha de uma sequência de fortes a preparação do dossiê, como assumiu
pressões por intervenções radicais, previstas compromissos vitais para que a candidatura
ou em andamento, em sítios urbanos fosse aprovada. No entanto, o registro
inscritos na Lista, como foi caso de Londres, mais relevante quando se trata de analisar
Dresden (retirada da Lista), Sevilha, Viena. a trajetória do Iphan é o da maturidade
Nesses conflitos, teve origem a produção da alcançada por sua assessoria internacional,
Recomendação sobre a Paisagem Histórica que percorreu o passo a passo da candidatura
Urbana, de 2011 (Unesco, 2011), contendo com tal método e rigor, que distinguiu essa
orientações sobre esse que permanece sendo experiência das frequentes tentativas e erros
um dos mais conflituosos temas da gestão do que caracterizaram as demais.
patrimônio cultural, especialmente para o Em 2016, o Iphan apresenta nova
caso do Brasil. candidatura à Unesco, dessa vez atendendo à
Os mecanismos de gestão da enorme área proposição da Prefeitura do Rio de Janeiro,
integrante da paisagem do Rio de Janeiro em sintonia com movimentos sociais que
são, seguramente, o ganho mais perene e se fortaleceram ao longo do processo de
transformação pelo qual vem passando Convenção estimula são material suficiente
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
escravos africanos traficados para as Américas. que tem, sob sua responsabilidade, sítios
Materialmente modesto, o local é superlativo distribuídos por todo o território, além de
A
africanas, vivas até o presente. A fragilidade períodos em que essas atividades não eram
do sítio e a complexidade da gestão do seu assumidas com regularidade, esse não foi o
H
Jurema Machado
que pretende a diversificação dos bens fazer parte do seu cotidiano. Hoje, inovar a
E V I S T A
inscritos, além de um tributo a essa que talvez partir da Convenção corresponderia a refletir
R
seja a representação mais eloquente do crime sobre como reproduzir, em âmbito interno,
contra a humanidade, que é a escravidão. algumas das boas práticas concebidas por
Contando com um consistente grupo de esse instrumento, assim como aprofundar
consultores externos e participação do o debate conceitual que esteve por trás dos
município, o Iphan conduziu todo o processo conflitos com os órgãos assessores entre 2007
de produção do dossiê, dessa vez envolvendo e 2011, para voltar a fazer parte do Comitê
diretamente seu Centro Lucio Costa. Uma com respostas sólidas às questões levantadas.
278
experiência que, alcançando ou não o título, É importante registrar a intensidade e
a regularidade da participação do Iphan no
já é de grande valor para a instituição3
Mercosul, não apenas em se tratando do
Não só de candidaturas vive a
Patrimônio Mundial, mas de toda a pauta do
Convenção do Patrimônio Mundial! O
patrimônio nesses últimos quinze anos. Essa
monitoramento dos sítios, seja o regular, seja
atuação teve, entre outros, o mérito de focar
aquele provocado por denúncias ou riscos
em projetos e programas concretos, vários
iminentes; as atividades de capacitação;
em curso. Como essa agenda não pode ser
a realização de reuniões temáticas para
dissociada da política internacional adotada
atualizar ou produzir normas; a atualização e
pelo Brasil nesse mesmo período, a mudança
implementação da Lista Indicativa; as muitas
de posição do país em relação ao bloco impõe
cooperações bilaterais ou regionais que a
uma interrogação. Espera-se que a estratégia
A C I O N A L
Todas as transformações sem precedentes sistemas de valores, tradições e crenças”, e
que se materializaram ou se intensificaram o desenvolvimento, “processo complexo,
holístico e multidimensional, que vai além
N
a partir dos anos 1990 – a globalização da
R T Í S T I C O
economia, novos ciclos migratórios, conflitos do crescimento econômico e integra todas
étnicos e inter-religiosos, a comunicação e as energias da comunidade (...) deve estar
A
as redes virtuais – repercutiram diretamente fundado no desejo de cada sociedade e
E
expressar sua profunda identidade”
I S T Ó R I C O
na agenda internacional para o patrimônio,
que reagiu com instrumentos dedicados (Unesco, 1982).
à salvaguarda do patrimônio imaterial, às Em 1989, a Unesco aprova a
H
Recomendação sobre a Salvaguarda da
A T R I M Ô N I O
línguas em risco, aos povos indígenas, à
diversidade cultural. São pautas cuja origem Cultura Tradicional e Popular, abordando a
antecede a esse momento, mas que nele cultura tradicional como cultura viva, fonte
P
se tornaram inadiáveis, como se constata de criatividade e de autonomia, merecedora
D O
Jurema Machado
pela sequência de convenções, acordos e da atenção das sociedades e dos estados.
E V I S T A
programas, não só da Unesco, mas do sistema A recomendação atenta para a questão da
R
das Nações Unidas. A intervenção nas propriedade intelectual, tema complexo que
relações entre Cultura e Desenvolvimento, não foi posteriormente incorporado pela
vital para que se possa ir além de colecionar Convenção de 2003, mas que contribuiu
inventários de bens e de práticas agonizantes, como referência para princípios que
embora sempre na pauta da Unesco, tem sido permeiam todo o programa de patrimônio
apenas simbólica, quando muito refletida em imaterial no Brasil, especialmente a anuência
um artesanato de microprojetos, que não são prévia e a participação dos envolvidos quando
279
mais que alguns bons exemplos circunscritos dos processos de registro, assim como critérios
a pequenos universos. adotados na etapa de salvaguarda. As línguas
A relação com o desenvolvimento, também são tratadas pela Recomendação
sempre subjacente, recebeu, da Conferência e, por decisão do grupo de trabalho que
Mundial de Cultura do México, conhecida preparou o Decreto no 3.551/2000, que
como Mondiacult, em 1982, um dos estabelece a política do patrimônio imaterial
documentos mais influentes para as políticas no Brasil, não foram, naquele momento,
culturais a partir de então, claramente incorporadas às categorias de bens imateriais,
perceptível no tratamento dado à cultura mas tornaram-se, mais tarde, objeto de
e ao patrimônio pela Constituição Federal programa interministerial – o Inventário
brasileira de 1988. No documento do Nacional da Diversidade Linguística –
Mondiacult, cultura e desenvolvimento são conduzido pelo Iphan. Especialmente a
fenômenos imbricados e indissociáveis: a partir de 2002, quando se realiza no Rio de
cultura, “características espirituais e materiais, Janeiro uma das reuniões preparatórias do
intelectuais e emocionais que definem texto da Convenção, o Brasil, que, àquela
altura, já possuía um instrumento jurídico da Convenção, um total de 365 bens, valor
Feito em casa: o Iphan e a cooperação inter nacional para o patr imônio
Hoje é possível afirmar, sem risco de errar, países que, internamente, não demonstram
I S T Ó R I C O
Jurema Machado
A cooperação na esfera regional foi também ponderar entre o esforço a ser dedicado a
E V I S T A
A C I O N A L
internacional para o patrimônio, que é a a matéria do Iphan. Do espaço das cidades ao
Unesco – “patrimônio comum”, “diálogo”, das línguas, ao das festas. Não enxergo o lugar
“diversidade” –, começam a requerer um
N
deles nas políticas públicas (ou na ausência
R T Í S T I C O
especialista em línguas mortas para decifrá- delas) do Brasil de hoje. É verdade que esses
las... A organização dedicada ao que Paul oitenta anos mostram que o Iphan se ancorou
A
Valéry chamou de “coisas vagas” – os fortemente nas “coisas vagas”, que são a
E
ideais do espírito, os projetos de futuro – essência da sua missão, e soube habilmente
I S T Ó R I C O
parece ter destino incerto, a considerar as encontrar apoio e reverberação na cooperação
muitas fragilidades internas e as reações internacional para sustentá-las. A hora pede
H
extremadas que se somam sempre que se
A T R I M Ô N I O
novas estratégias, novas alianças.
espera que um lado conviva com os valores
do outro. Assim foi quando da aprovação REFERÊNCIAS
P
da Convenção da Diversidade Cultural de
D O
Jurema Machado
2005 e do reconhecimento da Palestina ALCÂNTARA, Dora Monteiro e Silva de; BRITO, Stella
E V I S T A
Regina Soares de; SANJAD, Thais Alessandra Bastos
como estado-membro. Assim tem sido com
Caminha. Azulejaria em Belém do Pará: inventário – ar-
R
a total insensibilidade aos apelos da Unesco quitetura civil e religiosa – século XVIII ao XX. Brasília:
para evitar ataques como os ocorridos aos Iphan, 2016.
Budas de Bamiyan, no Afeganistão, como ANDRADE, Carlos Drummond de. “Na rua com os ho-
mens”. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
os saques ao Museu do Iraque, ou o crime
Citado por TOTA, Antônio Pedro. Americanização no
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Palmira, na Síria. Teme-se pelo que pode Ciências Sociais, v. 16, São Paulo, Unesp, p. 191-212,
1993.
acontecer quando memórias incômodas são
ANDRADE, Paula Rodrigues de. O patrimônio da ci- 281
apresentadas como candidatas ao registro no dade: arquitetura e ambiente urbano nos inventários de
Programa Memória do Mundo, um dia visto São Paulo da década de 1970. (Dissertação de Mestrado).
como um generoso protetor de documentos FAU/USP. São Paulo, 2012.
BICCA, Briane (org.). Patrimônio mundial no Brasil.
que interessam à humanidade. Assim foi
Brasília: Caixa Econômica Federal/ Unesco, 2000.
com o dossiê chinês sobre o massacre de
BERRIEN, William; MORAES, Rubens Borba de. Ma-
Nanquim ou pode ser com o coreano sobre nual Bibliográfico de Estudos Brasileiros. Portal O Senado,
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feitas escravas sexuais durante a guerra
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contra o Japão. Ainda que se possa dizer que
Unesco: ações e significados. Brasília: Unesco, 2003.
o mundo foi sempre assim, seria legítimo BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil colonial. Orga-
pensar que todo esse esforço civilizatório nização: Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Brasília,
deveria ter servido para que ele fosse Iphan/Monumenta, 2006.
deixando, aos poucos, de ser. E não esquecer CARRILHO, Marcos. Brazil Builds – 55 anos da Expo-
sição. Revista Pini Web, abr.1998. Disponível em: http://
que a Unesco foi criada justamente para piniweb.pini.com.br/construcao/noticias/brazil-builds-
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Jurema Machado
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Jurema Machado
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
284
Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
Tania Andrade Lima
A C I O N A L
O LICENCIAMENTO AMBIENTAL NO I PHAN :
N
O SOCIOAMBIENTE EM QUESTÃO
R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO Impacto Ambiental, um modelo que viria
a ser reproduzido mundo afora. E que foi
Em 31 de agosto de 1981, no governo finalmente adotado no Brasil, em decorrência
P
de pressões externas exercidas por instituições
D O
militar de João Baptista Figueiredo, foi
E V I S T A
sancionada a Lei nº 6.938, que implantou financeiras internacionais, investindo em
no país a Política Nacional de Meio empreendimentos de infraestrutura no país.
R
Ambiente, com o objetivo de compatibilizar O texto original da Lei nº 6.938/81 –
o desenvolvimento econômico-social com a que sofreria modificações posteriormente,
preservação da qualidade do meio ambiente mas mantendo suas linhas mestras – criou
e do equilíbrio ecológico, tal como disposto o Sistema Nacional do Meio Ambiente
em seu art. 4º. Essa iniciativa, que viria a – Sisnama, integrado, entre outros, pelo
se tornar uma política de Estado, visava Conselho Nacional do Meio Ambiente
assegurar, em seu art. 2º, condições ao – Conama, com função consultiva e 285
tendo sido contemplado, além deles, o meio populações ribeirinhas, pescadores artesanais,
socioeconômico, no reconhecimento de comunidades extrativistas, entre outros. Sua
N
que não apenas o ambiente, mas também morte, consequência de uma luta sem tréguas
R T Í S T I C O
indissociabilidade. Em seu art. 6º, inciso I, da Amazônia, violadores dos direitos mais
E
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
ribeirinhas, minorias destituídas de poder, são antagonismos e os embates.
seguidamente agredidas por um desrespeito Contudo, não obstante a evidente
contínuo aos seus territórios, tradições,
N
assimetria de poder entre os envolvidos, as
R T Í S T I C O
formas de sobrevivência e modos de vida, reações desses grupos desfavorecidos vêm
configurando pesadas situações de injustiça paulatinamente se tornando cada vez mais
A
ambiental e racismo ambiental3. audíveis através de movimentos organizados5,
E
Não obstante a Constituição Cidadã ter atos de resistência, manifestações de repúdio
I S T Ó R I C O
procurado assumir a dívida histórica que a coletivas, já que as audiências públicas,
nação tem, não apenas com a descendência mecanismo de consulta previsto na Legislação
H
dos primeiros povoadores que ocuparam
A T R I M Ô N I O
Ambiental para que as comunidades atingidas
originalmente nosso território, há muitos participem das tomadas de decisão, vêm
milênios, e que, mesmo na condição de se mostrando francamente insatisfatórias,
Ta n i a A n d r a d e L i m a
seus legítimos senhores, vêm sendo, desde porquanto pouco transparente. Embora a
D O
a conquista europeia, crescentemente transparência seja “um componente essencial
E V I S T A
privados de suas terras, como também para promover equidade e justiça no processo
com os descendentes dos africanos trazidos
R
decisório ambiental, (...) já que os indivíduos
compulsoriamente do seu continente de impactados pelas ações de terceiros têm
origem para trabalhos forçados no Brasil, é o direito de saber a qual risco eles estão
no quadro dos chamados empreendimentos expostos” (Empinotti et al., 2016), ela está
“desenvolvimentistas” que as violações mais
longe de ser a norma. Na maioria dos casos
se têm feito sentir. Sucedem-se os conflitos
mal informadas – dispondo apenas de dados
socioambientais4, apesar da legislação que
de qualidade questionável, divulgados sem a 287
rege o campo. Eles decorrem sobretudo,
necessária antecedência, sem conhecimento
como assinalaram Laschefski et al. (2012),
aprofundado dos projetos –, as comunidades
das diferentes formas de representação da
afetadas acabam alijadas das discussões nas
natureza pelos grupos hegemônicos, que
audiências públicas e sua participação fica
impõem a sua percepção sobre grupos sociais
praticamente anulada (Zhouri, 2008). No
que concebem e se apropriam simbólica e
caso mais especifico dos povos indígenas,
materialmente do meio ambiente de modo
os princípios básicos da consulta e da
distinto, em contraponto às sociedades
participação que regem a Convenção nº 169
urbano-industriais (Zhouri e Laschefski,
da OIT, de 1989, tampouco são respeitados.
2010). De tal forma que se sobrepõem,
Daí terem surgido outras formas de
em um mesmo espaço, projetos distintos
engajamento, em que as comunidades
3. Para a questão da justiça ambiental, ver Herculano, 2002;
Acselrad et al. 2008. Sobre o racismo ambiental, ver Herculano, 5. Como o Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento
2008. dos Pescadores Artesanais, a Rede Cerrado, o Grupo de Trabalho
4. Para o conceito de conflito ambiental, ver Carvalho e Scotto, de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, a Rede
1995; Acselrad, 2004. Deserto Verde, entre outros.
atingidas vêm expressando seu pequenas vitórias alcançadas só fazem
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
sustentáveis e não predatórias ao que lhes é socioambiente por parte dos que detêm,
imposto sempre como um fato consumado direta ou indiretamente, o controle
e inexorável, contra o qual não há recurso técnico, financeiro e político do processo
N
R T Í S T I C O
conferiu Stavenhagen (1984, apud Azanha, em várias frentes – moral, ética, política,
E
detém o controle sobre suas próprias terras, seus ambiental. De tal modo e com tal ímpeto e
A T R I M Ô N I O
recursos, sua organização social e sua cultura, e é intensidade, que a sorte está lançada.
livre para negociar com o Estado o estabelecimento
de relações segundo seus interesses.
P
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A REPERCUSSÃO DO
D O
L I C E N C I A M E N T O A M B I E N TA L
E V I S T A
A C I O N A L
de 1961, que dispõe sobre os monumentos tenha havido de fato uma resistência a essa
arqueológicos e pré-históricos. Essa lei integração, o que parece explicar a posição
resultou de um eficiente e consequente de distanciamento em relação à legislação
N
R T Í S T I C O
trabalho de articulação política, em diferentes ambiental adotada pela Coordenadoria de
níveis, feito na década de 1950 (Lima, Arqueologia existente à época.
A
2009). Graças a ela, a destruição de sítios Até então, a arqueologia era exercida
E
arqueológicos passou a ser considerada, pelo tão somente em âmbito acadêmico, tendo
I S T Ó R I C O
seu art. 5º, crime contra o “Patrimônio sido precursores os chamados salvamentos
Nacional”, punível de acordo com o disposto arqueológicos, realizados, por força da Lei
H
nas leis penais. nº 3.924, nas grandes usinas hidrelétricas
A T R I M Ô N I O
Mesmo assim, a repercussão da Resolução construídas nas décadas de 1950 e 1960,
Conama nº 01/86 sobre o patrimônio como Salto Grande e Xavantes, e de 1970
Ta n i a A n d r a d e L i m a
arqueológico não foi imediata. Houve um e 1980, a exemplo das de Samuel (RO),
D O
hiato entre a nova determinação legal e a Sobradinho (BA), Balbina (AM), Ilha Solteira
E V I S T A
produção de efeitos, no caso, a incorporação (SP) e Itaipu Binacional, previamente à
R
de arqueólogos ao processo de licenciamento implantação da Política Nacional do Meio
ambiental. Em virtude deste ser ainda um Ambiente. Ao longo da década de 1980,
período mal compreendido, uma ênfase tinha crescido consideravelmente o número
maior será dada a ele neste artigo, visando de profissionais em arqueologia, em virtude
esclarecer os primórdios desse processo. do surgimento de um curso de graduação
A participação da arqueologia no específico na área e sobretudo de outros
licenciamento ambiental só viria a ocorrer em nível de pós-graduação, viabilizando a
289
efetivamente dois anos mais tarde, no formação de recursos humanos especializados,
emblemático ano de 1988. Uma das agora em maior número. Como consequência
possíveis razões para esse descompasso direta, começaram a aumentar os pedidos
parece ter sido, à época, a falta de integração de autorização/permissão de pesquisa ao
entre a então Sphan/Fundação Nacional Iphan, órgão normatizador e fiscalizador das
Pró-Memória e os orgãos ambientais, restrita investigações arqueológicas desenvolvidas no
tão somente aos poucos que trabalhavam país, nos termos do art. 8º da Lei nº 3.924.
na Coordenação de Patrimônio Natural, A esse tempo, a concessão de autorizações/
criada em 1985, graças a um grupo técnico permissões era feita através de ofício ao
oriundo do Jardim Botânico que cuidava pesquisador interessado, com base nas
de jardins históricos. Sobretudo porque era disposições da Lei nº 3.924, declarando-se
receio de alguns arqueólogos da instituição simplesmente que a Sphan autorizava ou
que a inserção dos sítios arqueológicos na permitia (nos termos da Lei, conforme o
legislação ambiental acabasse resultando caso), a realização do projeto submetido,
em uma indesejável subordinação da mencionando seu coordenador e instituição,
bem como o período da concessão. Com o insinuava a necessidade de articulação com
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
aumento da demanda nas então diretorias “outras entidades que atuam em áreas e níveis
A C I O N A L
visando unificar procedimentos. Em (...) em vias de ser assinada, pelo Sr. Secretário
correspondência encaminhada pela 8ª do Iphan, a portaria (...) que dirime qualquer
dúvida sobre a solicitação e emissão de autorização
P
Ta n i a A n d r a d e L i m a
de pesquisa arqueológica.
Arqueologia, em 20 de maio de 1988, foram
E V I S T A
solicitadas enfaticamente:
Efetivamente, em 1º de dezembro, foi
R
A C I O N A L
estabelecido pelo Conama começassem a elas permaneceram por um bom tempo
ganhar terreno. desconhecidas de grande parte dos meios
Para a elaboração da nova portaria, o arqueológicos, alheios ao que se passava
N
R T Í S T I C O
presidente da Sphan/Pró-Memória à época, na área ambiental. Testemunho disso foi
Augusto Carlos da Silva Telles, solicitou o Seminário sobre Política de Preservação
A
uma colaboração informal a Ulpiano Toledo Arqueológica, realizado na Pontifícia
E
Bezerra de Meneses, da Universidade de Universidade Católica do Rio de Janeiro,
I S T Ó R I C O
São Paulo, reconhecido por suas reflexões e entre os dias 22 e 24 de novembro de 1988,
proposições sobre patrimônio arqueológico que resultou basicamente de inquietações
H
(Meneses, 1984, 1987). Trabalhando com a defasagem da Lei nº 3.924/61, face
A T R I M Ô N I O
conjuntamente com a Coordenadoria ao crescimento e à complexificação da
de Arqueologia, Bezerra de Meneses sem arqueologia 25 anos depois da sua entrada
Ta n i a A n d r a d e L i m a
dúvida imprimiu sua marca pessoal à minuta em vigor, e com os problemas já àquela altura
D O
da Portaria nº 07, de cunho fortemente detectados na então chamada “arqueologia
E V I S T A
acadêmico. Submetida à Assessoria Jurídica de salvamento”, iniciados na construção de
R
da instituição em 1987, recebeu os ajustes grandes hidrelétricas pelos governos militares
necessários até a sua publicação, em 1º de e continuados com outras que se seguiram a
dezembro de 1988. elas, além de empreendimentos mineradores
Essa é uma questão que mais uma vez (ver Lima, 2012).
merece detalhamento, embora já apontada Realizado em parceria e com o apoio da
anteriormente (Lima, 2001), em razão da Coordenadoria de Arqueologia da Sphan/
disseminação da ideia equivocada, inclusive Pró-Memória e sob nossa coordenação,
291
por arqueólogos do próprio Iphan, de contando também com a presença expressiva
que a Portaria nº 07/88 foi resultado das da comunidade arqueológica, do seminário
disposições da Resolução Conama nº resultou um consenso de que a Lei nº
01/86, com base tão somente na sequência 3.924/61, apesar de defasada, não deveria
cronológica dos dois documentos. O texto da ser alterada, mas sim complementada por
Portaria fala por si: sua natureza estritamente outros dispositivos, onde se fizesse necessário.
acadêmica e sem qualquer conexão com as E, quanto à preocupante “arqueologia de
ordenações do licenciamento ambiental, salvamento” em larga escala, foi produzido e
deixa evidente esse equívoco. Tanto que ela apresentado na ocasião um texto memorável
permanece até hoje em vigor para pesquisas de autoria de Ulpiano Bezerra de Meneses,
acadêmicas. que coordenou a sessão sobre o assunto,
Além da necessidade de regulamentar intitulada “Arqueologia de salvamento
as autorizações/permissões, outras questões no Brasil: uma avaliação crítica”. Esse
preocupavam a Coordenadoria de artigo, nunca publicado, foi reproduzido
Arqueologia àquela altura, que nem de longe intensamente como literatura cinzenta por
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
292
Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
Acervo: Copedoc/Iphan.
Serra do Navio
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
293
uma evidência de que a Portaria nº 07/88, sobre os sítios arqueológicos existentes nas
E
publicada uma semana após o encerramento áreas previstas para a construção das Usinas
I S T Ó R I C O
Ta n i a A n d r a d e L i m a
ao ano anterior, de 198710, as atividades rea- início de 1988, não há qualquer menção
lizadas disseram respeito predominantemente às determinações da Resolução Conama nº
às rotinas de proteção e fiscalização, como 01, publicada dois anos antes, atendo-se a
vistorias, acompanhamentos, interdições de Coordenadoria de Arqueologia apenas ao
obras, cadastramento de sítios, catalogações, âmbito da Lei nº 3.924.
pequenos salvamentos pontuais, aprovação de Ao longo de 1988, também segundo o
pequenos projetos, avaliações de trabalhos de relatório de atividades da Coordenadoria
294
campo concluídos, destacando-se os “estudos de Arqueologia referente àquele ano, o
para a elaboração de portaria para a regu- panorama mudou substancialmente, mais
lamentação dos pedidos de autorização de que triplicando os pedidos de autorização/
pesquisa no país”. Há menção a apenas três permissão submetidos à Sphan, totalizando,
autorizações/permissões para realização de em meio a pesquisas acadêmicas, a análise
projetos de salvamento arqueológico, sendo de onze projetos de levantamento ou
duas na área de construção das usinas hidre- avaliação de potencial arqueológico em
létricas de Xingó (Sergipe) e Manso (Mato áreas de construção de hidrelétricas nas
Grosso) e uma para a Ferrovia Norte-Sul, o bacias dos rios Tapajós, Araguaia, Paranã
que sugere a presença de arqueólogos, em (Goiás), Uruguai (Santa Catarina e Rio
obediência à Lei nº 3.924, tão somente
nesses empreendimentos. 11. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Arqueolo-
gia 140, Subsérie Administração, Caixa 22. Of. nº 005/88/Arq.,
de 11 de janeiro de 1988.
10. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Ar- 12. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro, Série Arqueolo-
queologia 137, Subsérie Administração, Caixa 19. Relatório da gia, Subsérie Administração, Caixa 22. AHE 2272/87, de 20 de
Coordenadoria de Arqueologia 1987 e 1988. novembro de 1987.
Grande do Sul) e na bacia do Pantanal (Mato no Brasil, voltadas para o atendimento das
A C I O N A L
finalmente a incorporação de arqueólogos de licenciamento ambiental. Os pedidos
ao licenciamento ambiental, atendendo às de autorização de pesquisa começaram
disposições da Resolução Conama nº 01. a aumentar significativamente nos anos
N
R T Í S T I C O
Aparentemente, ao que tudo indica, a subsequentes, produzindo uma demanda
Coordenadoria de Arqueologia – embora inesperada que a Sphan nem de longe estava
A
dispondo dos números – não se deu preparada para atender.
E
conta, nos primeiros anos da legislação Em julho de 1989, foi criado no Iphan
I S T Ó R I C O
ambiental, de que tinha sido disparado um um grupo de trabalho pela Coordenação
processo que transformaria radicalmente a de Estudos e Pesquisas – Cogep/Rio, com
H
prática da arqueologia no país. Tampouco participação de membros das Coordenadorias
A T R I M Ô N I O
a comunidade arqueológica o percebeu, de Proteção, Patrimônio Natural, Arqueologia
o que pode ter decorrido do perfil e de Estudos e Pesquisas, com a incumbência
Ta n i a A n d r a d e L i m a
acentuadamente acadêmico, não só dos de formular
D O
profissionais especializados, como também
E V I S T A
do próprio corpo técnico da Coordenadoria (...) uma proposta de ação institucional, tendo
em vista a preservação do patrimônio cultural e
R
de Arqueologia, com formação específica na
natural, em face do impacto ambiental provocado
área em sua totalidade nessa época. O fato
por intervenções humanas no meio ambiente,
de terem como modelo a pesquisa pura pode
decorrentes de obras de grande porte13.
ter turvado a percepção, o entendimento e as
implicações da nova conjuntura que surgia.
Tendo trabalhado ao longo de dois
Não obstante, alguns arqueólogos enxergaram
meses, esse grupo, capitaneado pelo arquiteto
mais longe, perceberam as possibilidades
Pedro Alcântara, propôs uma segunda etapa, 295
que se abriam e se lançaram corajosamente
para um maior aprofundamento das questões
em busca de adequações metodológicas
e um “avanço no sentido da formulação
e técnicas para enfrentar um terreno até
de uma política da Sphan para enfrentar o
então inexplorado na arqueologia brasileira,
problema”, mas infelizmente não foi dada
aplicando seus conhecimentos e colocando-
continuidade a essa iniciativa.
se a serviço de grandes empreendimentos
No documento dela resultante, datado
(Caldarelli e Santos, 2000, Monticelli, 2010).
de quase trinta anos atrás, chamam a
De 1988 em diante, profissionais de
atenção tanto a perspectiva humanista, a
arqueologia começaram a se envolver
sensibilidade social em relação a questões
progressivamente com a produção de
que sequer diziam respeito diretamente às
EIAs/Rimas, avaliações de potencial e
atribuições do Iphan, mas que impactavam a
levantamentos arqueológicos, bem como
com prospecções e resgates em obras de 13. Arquivo Central do Iphan no Rio de Janeiro. Série Arqueolo-
infraestrutura. Datam do final da década de gia 119, Subsérie Administração, Caixa 01. Patrimônio cultural
e Obras de Grande Porte - uma proposta de ação institucional -
1980 as primeiras empresas de arqueologia GT/COGEP/Rio julho 1989.
sociedade e seu patrimônio cultural, quanto indiretamente, eles ameaçam os bens que estão sob
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
citados abaixo.
E
(...) Em áreas de grandes dimensões, é quase cultural nacional desconheça, protele ou transfira
impossível que inexistam nessas áreas núcleos sua responsabilidade legal a outros órgãos que não
H
Ta n i a A n d r a d e L i m a
D O
A C I O N A L
Deprom. O crescimento dos pedidos de sorte de ruídos, tornou-se imperioso o
autorização/permissão fez com que, em 1991, restabelecimento de uma área central capaz
de aglutinar as questões relacionadas ao
N
a direção do Deprot, seguindo orientação
R T Í S T I C O
da Procuradoria Jurídica da instituição, patrimônio arqueológico na circunstância
entendesse que, em lugar dos antigos ofícios, do crescimento da arqueologia nos
A
as autorizações/permissões deveriam ser licenciamentos ambientais.
E
I S T Ó R I C O
emitidas, no quadro do licenciamento
ambiental, através de portarias publicadas no A INTENSIFICAÇÃO
Diário Oficial da União, inaugurando um
H
A partir da segunda metade dos anos
A T R I M Ô N I O
procedimento mais rigoroso, que passou a
permitir maior controle sobre as pesquisas em 1990, intensificaram-se as pressões por
andamento no país. parte dos arqueólogos, cobrando uma
Ta n i a A n d r a d e L i m a
Ao longo daquela década, o maior agilidade do Iphan nas concessões
D O
desmantelamento da Coordenadoria da de autorizações/permissões de pesquisa,
E V I S T A
Arqueologia e a dispersão dos seus técnicos bem como uniformidade na interpretação
R
foram extremamente danosos para a área. Com das disposições da Lei nº 3.924 e Portaria
a arqueologia exercida nos meios empresariais, nº 07/88, entre outros pontos. As
inaugurou-se um período de fortes tensões sucessivas e cada vez mais contudentes
manifestações nesse sentido por parte do
entre o agora IBPC e os arqueólogos14, grande
Fórum Interdisciplinar para o Avanço da
parte delas decorrentes da morosidade do
Arqueologia (1995-1997), da Sociedade
Instituto em responder às novas demandas.
de Arqueologia Brasileira e da própria
A necessidade de atendimento dos prazos 297
comunidade aparentemente caíam no vazio,
do licenciamento ambiental, sob pena de
sem que o Iphan conseguisse agilizar seus
atrasos nos cronogramas das obras, prejuízos
procedimentos, não obstante alguns esforços
financeiros, danos socioeconômicos, entre
nessa direção.
outros, produzia pressões contínuas sobre
Em 1994, havia sido retomada a de-
os arqueólogos, que as repassavam ao órgão.
nominação de Instituto do Patrimônio
Inutilmente, contudo, face à dificuldade do
Histórico e Artístico Nacional – Iphan, mas
Instituto de acompanhar o novo ritmo que se
mantida a mesma estrutura departamental
impunha, em uma contraposição de forças que
tripartida do IBPC. Em 23 de novembro do
só se retroalimentavam, agravando ainda mais
ano seguinte, dez arqueólogos de diferentes
as tensões.
unidades da federação foram convidados a se
Com os arqueólogos da Administração
reunir durante três dias no Deprot, no Rio
Central e das Superintendências Regionais
de Janeiro, para debates e intercâmbio de
ideias, e solicitaram em abaixo-assinado as
14. Para uma análise sobre as tensões desse período, ver Lima,
2001. seguintes medidas: a) a elaboração de uma
política de atuação para a área de arqueolo- Delphim, um dos poucos na instituição
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
nais, limitando-se no entanto sua atuação ficou a reboque do patrimônio natural tão
I S T Ó R I C O
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
ano – foi feita nova cobrança, nos seguintes solicitando que fosse discutida, na reunião
termos: “definição, urgente, de uma política do Colegiado, a “Avaliação dos Estudos e
Relatórios de Impacto Ambiental – EIA/
N
do Iphan em relação à arqueologia (...)
R T Í S T I C O
definindo e agilizando os procedimentos Rima nos aspectos relativos ao patrimônio
internos” . Na Administração Central,
17 cultural pelo Iphan”. Nesse documento, o
A
contudo, aparentemente não houve fôlego pedido foi justificado pela necessidade de que
E
para atender ao apelo para a criação de uma a instituição respondesse
I S T Ó R I C O
política para a área.
Nesse cenário, e face ao vulto que (...) de forma adequada e uniforme à crescente
H
demanda por parte do Ibama de participação
A T R I M Ô N I O
assumia a arqueologia nos licenciamentos
na análise dos EIA/Rima, mas também de
ambientais, o Fórum, sob nossa
estender essa participação a todo o processo de
coordenação, tomou a iniciativa de
licenciamento ambiental de empreendimentos
Ta n i a A n d r a d e L i m a
promover o simpósio Política Nacional de
D O
impactantes ao patrimônio cultural.
Meio Ambiente e Patrimônio Cultural,
E V I S T A
em dezembro de 1996, confiando sua Isso, no entanto, dependia do traçado
R
organização e coordenação a Solange de critérios e diretrizes explícitas. A esse
Caldarelli. Realizado na Universidade documento foram anexados o Boletim do
Católica de Goiás com apoio e participação Fórum nº 4, informando os resultados
do Iphan, teve como objetivo promover do simpósio Política Nacional do Meio
uma avaliação das repercussões dos dez Ambiente e Patrimônio Cultural, e a proposta
anos da Resolução Conama nº 01/86 sobre intitulada “Diretrizes aos responsáveis pelo
a pesquisa e a gestão dos recursos culturais licenciamento de empreendimentos...”, 299
no Brasil (Caldarelli, 1997). Dele resultou antes mencionada. Esse último documento
um documento síntese, em que foram propunha as atividades a serem desenvolvidas
feitas recomendações que reverberaram pela arqueologia em cada fase de obtenção,
no Iphan. Algumas delas compuseram o respectivamente, das licenças Prévia (LP), de
documento “Diretrizes aos responsáveis Implantação (LI) e de Operação (LO).
pelo licenciamento de empreendimentos Em resposta, no mês seguinte, em 20 de
potencialmente causadores de danos maio, de fato entrou na pauta da 42ª Reunião
materiais ao patrimônio arqueológico”, do Colegiado, convocada pelo presidente
que passou a ser ampla e informalmente do Iphan, a solicitação encaminhada pela
divulgado na instituição e adotado nos Direção do DID. Como decisão final, no
Termos de Referência. encontro, foram defendidos:
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
culturais tradicionais das populações
salvamento e o acompanhamento daí decorrente.
existentes nas áreas de influência direta
Assim, a proposta de Portaria/Iphan objetiva não
N
e indireta do projeto, tais como saberes
apenas normatizar a forma pela qual o Órgão
R T Í S T I C O
e modos de fazer, celebrações, formas de deve intervir nesses assuntos, mas também
expressão, espaços simbólicos, entre outras, ampliar o âmbito de atuação institucional nos
A
além dos bens imóveis urbanos ou rurais, trabalhos de preservação do patrimônio cultural
E
I S T Ó R I C O
públicos e privados, de relevância histórica como um todo22.
ou cultural. Essa minuta nunca chegou a
ser publicada, mas teve ampla distribuição Tempos depois, esse desinteresse seria
H
A T R I M Ô N I O
interna. Nela, o foco principal não era novamente assinalado por outro técnico. Ao
o patrimônio arqueológico, que deveria emitir parecer sobre Termo de Referência
ser objeto de documento específico em para elaboração de EIA e posterior Rima, foi
Ta n i a A n d r a d e L i m a
razão de suas peculiaridades. De fato, nos constatado que
D O
processos de licenciamento ambiental no
E V I S T A
âmbito do Iphan, o protagonismo foi sempre (...) afora a Área de Arqueologia, nenhuma
R
da arqueologia, decerto por força da Lei outra tem demonstrado grande interesse em
Federal no 3.924 e da proteção legal que ela definir com maior amplitude o que deve ser
avaliado como benéfico ou maléfico na avaliação
proporciona aos sítios arqueológicos. As
de impactos ambientais, no que se refere
demais áreas envolvidas parecem ter ficado
especificamente ao patrimônio cultural23.
por muito tempo à margem, aparentemente
por desinteresse, sobretudo, das unidades
Se eventualmente algumas
descentralizadas. Não por outra razão, a 301
superintendências regionais realizaram
Carta de Fortaleza recomendava que
bons trabalhos nessa linha, não foi o que
ocorreu em grande parte delas. Quase
(...) relativamente aos Estudos de Impacto
sempre conduzidas por arquitetos com
Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto
Ambiental (Rima) o Iphan encaminh[asse] ao foco sobretudo no patrimônio edificado,
Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) nelas era comum o entendimento de que
proposta de regulamentação do item relativo ao licenciamentos ambientais não eram da sua
patrimônio cultural de modo a contemplá-lo em competência. A Superintendência Regional
toda a sua amplitude. (grifo nosso) de São Paulo, por exemplo, em resposta a
solicitação de manifestação sobre EIA/Rima,
Corroborando esse ponto de vista, em 11 assim se pronunciou em 1997:
de agosto de 1998, em parecer encaminhado
por um dos técnicos do Deprot a sua Chefia 22. Arquivo Central do Iphan em Brasilia, Arquivo Deprot,
Caixa 005. Memo nº 518/98/Deprot/Iphan.
sobre a minuta de portaria acima referida, foi 23. Arquivo Central do Iphan em Brasília, Depam, Caixa 19/22
(145). Memo nº 01/2005, de 27 de jullho de 2005 dirigido à
dito que GEPROT/CFMD.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
302
Ta n i a A n d r a d e L i m a O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
Acervo: Iphan.
Floresta fóssil
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
303
tombados.
da arqueologia nas obras de infraestrutura26.
A T R I M Ô N I O
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
e 14ª SR; 10ª, 11ª e 12ª SR; e 13ª SR. Essa um compromisso no sentido de prevenir a
medida, que introduziu mais sobrecarga ainda destruição de um patrimônio arqueológico,
no minguado corpo técnico da instituição, em lugar apenas de recolher o que dele restou
N
R T Í S T I C O
sinalizava a necessidade cada vez mais urgente ou do que ainda é possível fazer face a uma
de se estruturar devidamente a área de destruição iminente. Segundo o Institut
A
arqueologia. National de Recherches Archéologiques
E
A Portaria nº 07/88 não dava conta dos Préventives – Inrap, ele implica detectar,
I S T Ó R I C O
problemas que se intensificavam cada vez identificar, pesquisar, interpretar, salvaguardar
mais com a arqueologia praticada a serviço de ou conservar patrimônios afetados ou
H
empresas, sobretudo por conta de mais um passíveis de serem afetados por obras públicas
A T R I M Ô N I O
salto quantitativo ocorrido entre 2000 e 2001 ou privadas, bem como difundir os resultados
(ver Fig. 1), no segundo governo Fernando obtidos com esses estudos.
Ta n i a A n d r a d e L i m a
Henrique Cardoso (2000-2003), quando Em reunião da Diretoria Colegiada do
D O
duplicaram as autorizações/permissões de Iphan em 3 de maio de 200129, a então
E V I S T A
pesquisa concedidas. Essa expansão foi chefe da Procuradoria Jurídica, já utilizando
R
decorrente do Plano Plurianual 2000-2003, o termo, destacou pontos que no seu
designado como Avança Brasil (Cardoso, entendimento causavam questionamentos,
1998), cujas bases foram preparadas na insatisfações e insurgimentos por parte da
gestão anterior, com o Brasil em Ação. O comunidade arqueológica e frisou que a
novo plano apresentou entre suas diretrizes Portaria nº 07/88 atendia apenas à “pesquisa
básicas a ênfase na infraestrutura, com arqueológica acadêmica, não se prestando
investimentos (ainda que ao final bem mais à arqueologia preventiva”, decorrente dos
305
tímidos que os anunciados) na expansão das empreendimentos que dependiam de EIA/
redes de distribuição de energia, transporte, Rima para a sua implantação. Segundo ela,
saneamento, comunicações, entre outros, 80% dos problemas seriam solucionados com
como bem demonstra o relatório do DID uma regulamentação específica e, naquele
referente a esse período . 28
momento, estava sendo concluída a análise
A antiga expressão “arqueologia de jurídica da minuta elaborada pelo grupo
salvamento”, fortemente criticada em virtude constituído pela Portaria Iphan nº 17, de
do termo sugerir trabalhos feitos às pressas, a 1999. Contudo, essa minuta, após análise, foi
posteriori de um fato consumado ou em vias definitivamente arquivada.
de se consumar em curto prazo, foi dando Em novembro daquele mesmo ano,
lugar a uma outra designação, arqueologia foi criada no Deprot, mais uma vez
preventiva, adotada na França. Mais informalmente, fora do Regimento Interno,
28. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração 29. Arquivo Central do Iphan em Brasília, DID, Administração
Geral (1-1), Caixa 14. Relatório de Atividades do DID de 2000 Geral (1-2), Caixa 17. Ata da reunião da Diretoria Colegiada do
e 2001. Iphan em 03 de maio de 2001.
a Coordenação de Arqueologia – Corda, Em análise detalhada dessa Portaria,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
visando centralizar as questões da área. No ano Penin (2010) destacou suas virtudes, mas
A C I O N A L
seguinte, 2002, a extrema dificuldade de se também suas falhas. Entre essas últimas, a
criar um regramento, cada vez mais necessário inclusão dos termos EIA/Rima na fase de
obtenção da Licença Prévia, o que permitia
N
Ta n i a A n d r a d e L i m a
que integralmente esse texto, que serviu de seu alcance. Mais recentemente, Stanchi
E V I S T A
base para a elaboração da Portaria nº 230, (2017:128) chamou a atenção para outra
R
A C I O N A L
Nesse mesmo ano, 2002, com a criação da Regimento Interno, expressão absoluta do seu
Coordenação de Arqueologia e a mudança da pouco prestígio até então na casa.
Em 2009, na gestão de Juca Ferreira à
N
direção do DID, os assuntos da área voltaram
R T Í S T I C O
a ser centralizados no Deprot30, agora por frente do Ministério da Cultura, foi feito
sua própria reivindicação, no entendimento um grande reordenamento no Iphan: foram
A
de que o tema era de sua competência retirados da sua alçada os museus federais,
E
transferidos para uma nova autarquia
I S T Ó R I C O
exclusiva31. Entretanto, essa Coordenação
também vinculada ao MinC, o Instituto
teve vida breve e foi substituída em 2003,
Brasileiro de Museus – Ibram; e uma nova
sempre na informalidade, pela Gerência
H
estrutura substituiu a anterior, através do
A T R I M Ô N I O
de Patrimônio Arqueológico e Natural –
Decreto nº 6.844/2009, destacando-se a
Gepan. Foi nesse período que teve início
criação, finalmente, do Centro Nacional de
o primeiro governo de Luís Inácio Lula da
Ta n i a A n d r a d e L i m a
Arqueologia – CNA, como unidade gestora
D O
Silva (2003-2006) e, paralelamente, constata-
e unidade especial descentralizada do agora
E V I S T A
se um aumento progressivo dos pedidos de
Departamento de Patrimônio Material e
autorização de pesquisa, em decorrência do
R
Fiscalização – Depam.
seu programa de retomada de crescimento do
Esse foi um avanço significativo, na
país. Aumentaram as obras de infraestrutura
medida em que tirou a arqueologia da
e, com elas, os licenciamentos ambientais,
informalidade na qual foi colocada ao
que seguiram em escalada vertiginosa e sem
longo de quase vinte anos, graças ao vulto
precedentes no segundo governo Lula (2007-
que ela alcançava agora na instituição por
2010). As portarias publicadas dobraram
conta do licenciamento ambiental. Mesmo
de volume nesse período (ver Fig. 1), em assim, o novo Centro não conseguiu
307
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
2011) e teria se mantido em 2012, quando favorecimento ostensivo ao agronegócio e a
houve um acentuado recuo, não fosse a interesses da bancada ruralista, base do governo
mudança da direção e de parte da equipe no Congresso Nacional, somado às violências
N
R T Í S T I C O
do CNA. Em decorrência de alterações na contra os povos indígenas foram o preço pago
metodologia de trabalho, especialmente na para a realização das obras de infraestrutura do
A
Coordenação de Pesquisa e Licenciamento, PAC 2.
E
muitos projetos caíram em exigências, O temor de mais um colapso de energia
I S T Ó R I C O
resultando em um represamento temporário após sucessivos blecautes – no Sudeste, em
das autorizações/permissões de pesquisa até 2005 e 2007; em 18 unidades da federação,
H
que elas fossem atendidas. Como resultado, em 2009; e no Nordeste, em 2011,
A T R I M Ô N I O
o seu total dobrou compensatoriamente culminando com vários apagões no último
em 2013, atingindo 1.453 concessões, quartel de 2012 – levou o governo federal
Ta n i a A n d r a d e L i m a
praticamente mantidas em 2014, com 1.429 a instituir, em 2013, reuniões regulares
D O
projetos aprovados, este sim, o número onde eram cobradas responsabilidades das
E V I S T A
recorde, já que o anterior embutiu processos autarquias envolvidas nos licenciamentos
R
pendentes de 2012 (Fig. 1). do setor elétrico. No caso, Ibama, ICMBio,
Esses números demonstram o caráter Iphan, Funai e FCP, visando acelerar os
prioritário das obras do PAC no governo processos relativos aos empreendimentos
Dilma Rousseff. Contudo, igualmente do PAC e assim evitar uma crise ainda
recordes foram as violências, abusos e violações maior no abastecimento de energia. Essas
aos direitos humanos cometidos sobretudo Reuniões de Governo, que contavam com
contra os povos indígenas em muitos desses a presença dos ministros da Casa Civil, do
309
empreendimentos feitos a qualquer custo, Meio Ambiente, de Minas e Energia e do
o que motivou denúncias à Subsecretaria Planejamento, introduziram uma rotina
Geral para Assuntos Humanitários da ONU de monitoramento das obras, cobrando
pelo Conselho Indigenista Missionário – prazos para a manifestação de cada um dos
Cimi, solicitando sua intervenção. Segundo envolvidos. As pressões eram muito fortes
a entidade, o índice dessas violências em para que os cronogramas fossem cumpridos,
2012 cresceu 237% em relação ao ano de tal forma que os atrasos sistemáticos dos
anterior (Cruz, 2013). No que diz respeito órgãos intervenientes, aí incluído o Iphan,
ao meio ambiente, aí compreendido diminuíram consideravelmente (Stanchi,
também o socioambiente, indissociado 2017). Contudo, em outros setores que não
da questão indígena, esse foi um período o elétrico as queixas sobre a morosidade
de graves retrocessos, diante da aceleração dos procedimentos continuavam. Fora
dos licenciamentos ambientais à custa do da Administração Central, se muitas das
atropelamento das suas normas. O aumento unidades descentralizadas cumpriam os
exponencial do desmatamento e da degradação prazos legais, outras se permitiam ultrapassá-
los, desobedecendo-os sob pretextos anterior ao próprio processo de licenciamento
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
fúteis, o que gerava profunda revolta entre ambiental”, além de ampliá-lo efetivamente
A C I O N A L
a mais aguda era o sistema elétrico. Com Instituto deveriam ser previamente discutidas
E
públicas do setor elétrico, representantes ser editada, foi debatida intensa, exaustiva e
de todas as autarquias federais envolvidas acaloradamente em várias instâncias, com o
P
Ta n i a A n d r a d e L i m a
Segundo Stanchi (2017), desses encontros foi discutido no XVII Congresso da Socieda-
R
brasileiro que devem ser protegidas, foram No período referente à segunda diretoria
relegadas à própria sorte. Publicada em 25 do CNA, entre 2012 e 2016, foi “gestada,
A
Ta n i a A n d r a d e L i m a
419/11 foi substituída pela de nº 60, em 24 Além das três coordenações regimentais acima
E V I S T A
edição da IN, alterando-se a disposição que foram criadas duas áreas, a Área de Registro
implicava resgates arqueológicos automáticos, e Cadastro e a Área de Conservação. Uma
pela “apreciação de medidas de controle importante iniciativa desse período foi a
e de mitigação” dos impactos decorrentes atenção dispensada às coleções e instituições
das atividades ou empreendimentos. Por de guarda, sabidamente uma questão
acordo, houve uma concomitância na edição problemática, desordenada e descontrolada
das novas normas pelas autarquias federais no contexto dos licenciamentos ambientais.
312
envolvidas no processo de licenciamento, Até então sem qualquer regramento, recebeu
no caso, Iphan, Funai e Fundação Palmares, finalmente a merecida atenção, através de
visando evitar descompassos. ações de fiscalização e da criação de normas
No cumprimento do que foi acordado, infralegais específicas, além de um Cadastro
além de concursos públicos realizados em Nacional de Instituições de Guarda.
2014 e 2015, destinando oitenta vagas por
tempo determinado para a arqueologia, A RECESSÃO
“devido ao aumento transitório do volume
de trabalho no âmbito do licenciamento No novo cenário estabelecido a partir
ambiental”, foi criada a Coordenação Técnica de março de 2015, a curva ascencional
Nacional de Licenciamento, diretamente das portarias concedidas para pesquisas
ligada ao Gabinete da Presidência do Iphan, arqueológicas desde o início da década de
através da Portaria nº 199/16. Por força das 1990 deu seu primeiro sinal de reversão.
circunstâncias, mais uma vez à margem do Provavelmente em decorrência das
Regimento Interno, a ela foi atribuída determinações da Instrução Normativa nº
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
A C I O N A L
N
R T Í S T I C O
A
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I S T Ó R I C O
H
A T R I M Ô N I O
Fig. 1. Número de portarias emitidas pelo Iphan entre julho/1991 e março/2017. Fonte: CNA/Iphan.
Ta n i a A n d r a d e L i m a
01/15, que expandiu as pesquisas em algumas vulneráveis, hipossuficientes e dos grupos
D O
frentes mas limitou em outras, e também étnicos minoritários atingidos pelas grandes
E V I S T A
em virtude dos primeiros abalos políticos obras de engenharia, esses últimos de alçada
R
e econômicos do governo Dilma Rousseff, da Funai e da Fundação Palmares, sua parcela
houve um decréscimo de cerca de 25% nas de responsabilidade recai na sobrevivência
concessões de portarias em 2015. não propriamente física, mas cultural desses
Após lenta agonia ao longo de 2016, a grupos. Desterritorializados, com seus meios
então presidente teve seu mandato cassado de subsistência desestruturados, seus modos
em 31 de agosto, com o país mergulhado na de vida desarticulados, a memória individual
mais forte recessão desde a Grande Depressão e coletiva privada da herança cultural dos
313
de 1930-1931, após uma década de seus antepassados, cabe ao menos registrar o
crescimento, com paralisação de vários setores que restou do seu passado, remoto e recente;
da economia e redução drástica de atividades a história dos espaços por eles ocupados, os
e empreendimentos. As autorizações/ usos e significados de suas terras, patrimônio
permissões de pesquisa concedidas pelo Iphan das famílias e da comunidade; suas
diminuíram cerca de 40% em 2016, voltando práticas, tanto religiosas quanto profanas,
a um patamar pouco inferior ao de seis anos sua vida cotidiana, onde materialidade
antes, de 2010, com forte tendência de queda e imaterialidade se fundem, porquanto
até abril de 2017, quando foi feita a última absolutamente indissociáveis. Esse registro
medição apresentada no gráfico (Fig. 1). pode ser um suporte poderoso no esforço de
reconstrução de suas identidades esfaceladas.
O FUTURO INCERTO Trata-se, no caso, de preservar a diversidade
cultural brasileira, nosso patrimônio maior,
Embora não seja da competência do viabilizando a sobrevivência cultural dos
Iphan a proteção e defesa das populações povos tradicionais.
O processo de licenciamento ambiental, 2013, Edison Lobão, ministro de Minas e
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
em lugar de ser uma ferramenta para Energia do governo Dilma Rousseff, afirmou
A C I O N A L
detrimento dos deslocados, que arcam com elétrico brasileiro (Warth e Andrade, 2013).
E
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
Executiva do Conama – e a entidades substitutivo do PL que golpeia duramente o
interessadas uma proposta para o que licenciamento ambiental no Brasil, afetando,
entende como aperfeiçoamento e melhoria
N
entre outros, áreas protegidas, patrimônios
R T Í S T I C O
do Licenciamento Ambiental no país. arqueológicos e históricos, remanescentes
Elaborada a partir de discussões coletivas de quilombos e terras indígenas. Entre as
A
com as entidades estaduais de meio ambiente justificativas estão os custos socioambientais,
E
das 27 unidades da Federação, órgãos de que representam 12% do valor das obras
I S T Ó R I C O
governo, entidades privadas e organizações de construção de usinas hidrelétricas
não governamentais, e tendo ouvido os (número fornecido pelo Relatório do Banco
H
setores demandantes, os principais clientes
A T R I M Ô N I O
Mundial, 2008:56), citando como exemplo
e os setores organizados da sociedade a UHE de Belo Monte, que despendeu
civil, a Associação encaminhou, naquele 5 bilhões de reais para o atendimento de
Ta n i a A n d r a d e L i m a
ano, sugestões para revisar e aperfeiçoar os condicionantes socioambientais, equivalentes
D O
mecanismos legais e infralegais que regem o aproximadamente a 20% do valor da obra.
E V I S T A
Licenciamento Ambiental. E ainda insegurança jurídica gerada por
R
No documento, ao se pronunciar sobre normas infralegais editadas por órgãos da
as interveniências, que na verdade considera Administração Pública (decretos, portarias,
intervenções, a Abema entende que os órgãos resoluções e instruções normativas), expondo
envolvidos criaram “instâncias decisórias empreendedores privados e agentes públicos a
paralelas e um quadro de esquizofrenia um ambiente de instabilidade regulatória.
institucional que estão tornando o A partir de sua própria análise e de
licenciamento inadministrável, com múltiplas diferentes proposições legislativas anteriores
315
licenças e regras próprias” (Carvalho, defendendo um licenciamento simplificado32,
2013:53). Para sanar o problema, propõe o parlamentar encaminhou um substitutivo
desvincular as anuências das instituições ao Projeto de Lei nº 3.729/2004, que institui
intervenientes que não tratam de assuntos a Lei Geral de Licenciamento Ambiental,
relacionados diretamente ao licenciamento o qual vem tramitando com prioridade e
ambiental. Isto significa, na prática, a em regime de urgência. Ele é apoiado pela
supressão das avaliações dos impactos Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA, a
sobre populações indígenas, quilombolas e Confederação Nacional da Indústria – CNI,
tradicionais, bem como sobre patrimônio
a Confederação Nacional da Agricultura e
cultural material e imaterial, aí incluído o
Pecuária do Brasil – CNA, a Federação das
arqueológico.
Em 2004, a bancada de deputados 32. Entre as principais propostas para flexibilizar o licenciamento
do PT encaminhou o Projeto de Lei nº ambiental além do PL 3.729/2004, alinham-se, entre outros:
Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 65/2012, de
3.729, dispondo sobre o licenciamento autoria de dezenas de senadores; Projeto de Lei do Senado – PLS
nº 654/2015, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR);
ambiental. O relator da Comissão de alterações nas Resoluções do Conama nº 01/86 e 237/97.
Indústrias de São Paulo – Fiesp), entre muitos o conturbado momento político, econômico,
O licenciamento ambiental no Iphan: o socioambiente em questão
outros. Na outra ponta, o Ministério Público social e jurídico vivido pelo país.
A C I O N A L
Ta n i a A n d r a d e L i m a
para que estados e municípios façam seus como os estudos arqueológicos e outros
D O
a autorização automática caso os prazos das Nacional sustar atos do Poder Executivo
agências envolvidas não sejam cumpridos, “que exorbitem do poder regulamentar ou
a suspensão de condicionantes ambientais dos limites da delegação legislativa”, cabe a
pelo empreendedor, de tal forma que está iniciativa, em seu ponto de vista.
sendo proposto o desmantelamento do O mesmo parlamentar vem investindo
licenciamento ambiental adotado hoje contra comunidades indígenas, tendo
no país. apresentado, em abril de 2017, o projeto
316
A determinação para a sua simplificação de Decreto Legislativo da Câmara (PDC-
vem sendo uma política de governo, 636-2017), que susta a aplicação de
iniciada lá atrás, com os Programas de decreto anterior, de 2013, homologando a
Aceleração do Crescimento, e intensificada demarcação administrativa da Terra Indígena
nos últimos anos. Conta com expressivo Kayabi, localizada nos municípios de Apiacás,
apoio parlamentar, em especial da base em Mato Grosso, e Jacareacanga, no Pará.
de apoio do governo, que dispõe de Segundo matéria publicada por Pollyana
maioria no Congresso Nacional, além Araújo no Portal G1, em 22 de abril de 2017,
de poderosos grupos de interesse que se o deputado é investigado pelo Ministério
sentem prejudicados, em seus lucros, pela Público Federal por suspeita de favorecimento
morosidade dos processos decisórios e pelos a posseiros e contra os índios no processo de
gastos com o socioambiente, pressionando retomada da Terra Indígena Maraiwatséde,
os parlamentares a mudar as regras do jogo. em Alto Boa Vista. Ele nega o envolvimento.
Não é difícil prever que novas normas serão Trata-se do mesmo parlamentar que preside
aprovadas em futuro próximo, não obstante a comissão especial que analisa a Proposta
de Emenda Constitucional – PEC nº Gente é sempre um problema, gente
A C I O N A L
Ministério da Justiça, a competência para a fácil com a sua eliminação, simplesmente.
demarcação de terras indígenas, territórios Afinal, para quem mesmo são os benefícios?
Monitorando desde 2010 os casos de
N
quilombolas e unidades de conservação
R T Í S T I C O
no Brasil, transferindo-a para o Congresso violência contra os que defendem o meio
Nacional, o que vem sendo motivo de ambiente, a organização não governamental
A
vigorosos protestos dos índios e de seus inglesa Global Witness apontou o Brasil,
E
aliados, entre muitos outros, a Associação em junho de 2016, como o país mais
I S T Ó R I C O
Brasileira de Antropologia e a Sociedade de perigoso do mundo para ativistas ambientais.
Arqueologia Brasileira. O relator da Comissão Entre 2010 e até meados de 2016 foram
H
contabilizadas 207 mortes no país (Sacks,
A T R I M Ô N I O
Especial dessa PEC, que encaminhou um
substitutivo onde fica implícito o fim das 2016) relacionadas a conflitos decorrentes
novas demarcações de terras indígenas, foi de atividades de mineração, agronegócio,
Ta n i a A n d r a d e L i m a
o deputado da bancada ruralista Osmar exploração madeireira e projetos de energia
D O
Serraglio, do PMDB-PR, atual ministro elétrica. Só em 2015 foram assassinadas
E V I S T A
da Justiça. No momento, encontra-se cinquenta pessoas, por defenderem suas
R
precisamente à frente do órgão responsável terras, florestas e rios, sendo que cerca de
pela defesa dos direitos dos índios quem atua 40% dessas vítimas eram indígenas (Diniz,
frontalmente contra eles. 2016). Via de regra, os crimes não são
Assim, considerados cada vez mais como apurados e ficam impunes.
impedimentos ao crescimento econômico e Em documento de 2015, a Organization
ao lucro – a recuperação do passado remoto for Economic Cooperation and
e recente da nação, seus povos nativos, os Development, entidade que reúne 35 países
317
que foram por ela escravizados ao longo sediada em Paris, ao promover mais uma de
de séculos para sustentar sua economia, suas avaliações, agora sobre o Brasil, destacou
os que mantêm modos tradicionais de o papel cada vez mais ativo que o Ministério
sobrevivência, bem como a cultura tangível Público Federal vem desempenhando
e intangível produzida por eles e por outros na fiscalização das infrações à legislação
segmentos da sociedade –, todos devem ambiental (OCDE, 2016). Os segmentos
ser eliminados do licenciamento ambiental da sociedade brasileira e da comunidade
DE
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
CALDARELLI, Solange Bezerra (org.). Atas do Simpósio
A C I O N A L
A Catarina Eleonora Ferreira da Silva, sobre Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio
arqueóloga sucessivamente da Coordenadoria de Cultural. Universidade Católica de Goiás, 9 a 12
Arqueologia da Sphan/FNPM; da 8ª Diretoria dez.1996. Goiânia, 1997.
N
R T Í S T I C O
– Copedoc, no Rio de Janeiro, pela inestimável PREVE, Daniel Ribeiro; SOUZA, Ismael Francisco de
I S T Ó R I C O
colaboração no acesso à documentação do Arquivo (orgs.). Patrimônio cultural, direito e meio ambiente. Um
Central do Iphan no Rio de Janeiro e em Brasília, debate sobre globalização, cidadania e sustentabilidade.
Curitiba, Multidéia Editora, 2015, p. 229-254.
que tão bem conhece.
H
Ta n i a A n d r a d e L i m a
A C I O N A L
produção teórica, breve acervo de casos e a criação da multiplicação dos projetos de arqueologia preventiva no
rede brasileira de justiça ambiental. In: Desenvolvimento e âmbito do licenciamento ambiental. In: VI OFICINA
Meio Ambiente, v. 5, Curitiba, p. 143-149, jan-jun.2002. DE PESQUISA DO IPHAN: PATRIMÔNIO E
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LEGISLAÇÃO, Rio de Janeiro, 31 de março a 4 de abril
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JÁCOME, Camila. Arqueologia e desenvolvimentismo
de 2014. Cópia digitada.
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universidades. Investimentos e Direitos na Amazônia, MONTICELLI, Gislene. Deixe estar. Patrimônio,
arqueologia e licenciamentos ambientais. Porto Alegre:
A
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Edipucrs, 2010.
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arqueologia-e-desenvolvimentismo-na-amazonia-dilemas- OCDE – Avaliações de desempenho ambiental. Brasil
para-dentro-e-fora-das-universidades/ Último acesso em 2015. Traduzido de OECD Environmental Performance
22 de fevereiro de 2017. Reviews: Brazil 2015. Nações Unidas, Comissão
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LASCHEFSKI, Klemens Augustinus; DUTRA, Carina; Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal,
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DOULA, Sheila Maria. A legislação ambiental como 2016.
foco de conflitos: uma análise a partir das representações PENIN, André. Academia, contrato e patrimônio. Visões
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R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
320
Marcos Olender O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
Marcos Olender
a c i o n a l
o afeTivo efeTivo . s oBre afeTos , movimenTos
n
sociais e preservação do paTrimônio
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
Lá onde os pés fincaram alma à guisa de inTrodução:
Lá onde os deuses quiseram morar
Lá o desejo f aT o s d e a f e T o , d e
Lá nossa casa lá m e m ó r i a , d e p r e s e r va ç ã o . . .
P
Péri1
d o
e v i s t a
Este texto parte de uma necessidade e de
um espanto.
r
Necessidade de se precisar, e de se
ressaltar, a efetiva importância do valor
afetivo na identificação daquilo que deve ser
preservado e, mesmo, no modo de fazê-lo.
Espanto de se constatar que essa importân-
cia reconhecida, no Brasil, pela política pública
de preservação do patrimônio histórico e cultu- 321
legais que o poder público federal, estadual e da casa de Chico Mendes e de seu acervo foi
municipal dispõe para preservar a memória
A C I O N A L
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
ele (IPHAN, 2008:40-41), em seu relatório a sua importância histórica (residência do
A C I O N A L
favorável ao tombamento e aprovado por proprietário do terreno do qual se originou
unanimidade pelos conselheiros presentes: o loteamento e, posteriormente, o bairro),
N
arquitetônica (um dos poucos exemplares do
R T Í S T I C O
A memória social (que não se confunde com estilo Neocolonial ainda existentes na cidade)
a História, processo cognitivo), não é uma simples
e, também, a relação afetiva dos moradores da
rememoração coletiva de fatos passados, mas uma
A
região com a edificação.
E
seleção das representações de fatos passados,
Mesmo que, nas instruções do processo
I S T Ó R I C O
compartilhados de maneira a estabelecer vínculos
afetivos de pertencimento e solidariedade. de tombamento e no parecer do relator
Não se trata, para nós, de identificar um culto que orientaram o parecer do Conselho
H
A T R I M Ô N I O
ao herói – embora Chico Mendes mereça, com de Preservação local2 pelo tombamento
toda a justiça, a qualificação de herói –, mas de do imóvel, em sessão de maio de 2010,
verificar se sua figura e trajetória, suas ações, tenham sido ressaltadas a importância
P
seus efeitos e seus rumos e, sobretudo, se as
histórica e arquitetônica do bem, o seu
D O
transformações eventualmente produzidas na vida
valor afetivo foi destacado, tanto no ofício
E V I S T A
de uma comunidade, de um segmento social e,
encaminhado ao órgão quanto no citado
mais largamente, de uma sociedade (ainda que
Marcos Olender
R
fragmentária e heterogeneamente), constituem parecer, sendo decisivo para a deliberação
uma referência que possa estabelecer os aludidos do então prefeito (visto ter o citado
vínculos. A meu ver, as relações de memória Conselho caráter apenas consultivo). No
que Chico Mendes tem suscitado preenchem documento expedido como justificativa da
facilmente tais requisitos. (grifos meus). sua decisão (PJF, 2009:291), lê-se
a legislação específica só fosse aprovada em afetivo este que considero como o principal
E
63). O estado de Minas Gerais é pioneiro cultural de um bem para a sua comunidade.
tanto na criação como no desenvolvimento
H
324
Castelinho do Bairu
Acervo: Marcos Olender.
Este imóvel (...) é um dos pontos de (!) pelo austríaco Alois Riegl, em sua obra
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
referência mais importantes do Bairro, e um O culto moderno dos monumentos e outros
marco fortíssimo no imaginário e na vida
A C I O N A L
ensaios estéticos. Tal texto é a primeira
de várias gerações que nasceram, cresceram,
parte do projeto para a reorganização
envelheceram, saíram ou permaneceram no
administrativa da tutela dos monumentos
N
bairro Bairu. Além destas, muitas outras gerações
R T Í S T I C O
na Áustria, elaborado em conjunto por
continuam nascendo ou se instalando no bairro
e se apropriando do “Castelinho” como a sua Riegl e Maximilian Bauer, em 1903
A
referência concreta e afetiva. (Fernández, 2007:41). A primeira parte,
E
redigida por Riegl, então presidente da
I S T Ó R I C O
Bastariam os aspectos paisagísticos e afetivos,
para justificar o pedido de Tombamento do Comissão Central Imperial e Real de
imóvel. No entanto, existem outros (...). Monumentos Históricos e Artísticos da
H
(grifos meus) Áustria, constituía-se como um prólogo
A T R I M Ô N I O
teórico do citado projeto, ou, como resume
O ofício passa então a enumerar o que Rosario Camacho Martínez (Fernández,
P
seriam os aspectos históricos e arquitetônicos 2007:9), um
D O
que reforçariam tal justificativa. Mas
E V I S T A
nos interessa aqui, exatamente, o que é (...) conjunto de reflexões críticas que trata
Marcos Olender
explicitado no trecho acima, ou seja, a de definir a índole dos monumentos, o processo
R
antiguidade do imóvel, testemunhada de valorização dos mesmos, a controvérsia entre
por várias gerações de habitantes e esses valores, a atitude que deve reger nas tarefas
de conhecimento e proteção deste legado
frequentadores do bairro. Antiguidade essa
patrimonial. (grifos meus)
que o torna “referência afetiva”. Que se
caracteriza como o “aspecto afetivo” que,
Em seu texto, a afetividade assume
junto com os outros aspectos, justificaria o
grande relevo, no que concerne propriamente 325
tombamento. E que, efetivamente, assume
à formulação da legislação e das políticas
uma relevância na solicitação.
públicas de preservação do patrimônio.
Tal trecho nos remete ao relatório de
Isso pode ser percebido já na sua
Ulpiano Bezerra de Meneses, de 2008,
introdução, quando Riegl discorre sobre
em relação ao tombamento da casa de
as definições e tipos de monumentos. O
Chico Mendes, citado anteriormente,
primeiro conjunto de monumentos, para
quando afirma que o estabelecimento dos
ele, são aqueles intencionais que foram feitos
“vínculos afetivos de pertencimento e
pelos que queriam
solidariedade” é característica fundamental
da memória social e deve ser valorizada
(...) satisfazer com essas obras (...) sobretudo
como constituinte do patrimônio cultural,
certas necessidades estritamente práticas ou
segundo explicitado no próprio art. 216 da necessidades ideais que lhes eram específicas a
Constituição Federal de 1988. si próprios, aos seus contemporâneos e, quando
Mas nos remete, também, a muito, aos seus herdeiros mais próximos” (Riegl,
considerações feitas há mais de um século 2013:14).
Porém, há um tipo de monumento Esse efeito afetivo é mais abrangente
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
contido no grupo dos monumentos não porque não pressupõe nenhum conhecimento
A C I O N A L
intencionais, ou seja, aqueles que o processo histórico ou, de forma mais ampla, científico
histórico alçou a esse nível porque, segundo para a sua realização, estendendo-se “às
N
costumamos dar a estas obras pode, apesar de Nesta pretensão à validade universal, que
E
tudo, ser entendida não em sentido objetivo, mas tem em comum com os valores do sentimento
I S T Ó R I C O
próprias obras em virtude da sua determinação por enquanto, deste novo valor de memória (de
A T R I M Ô N I O
originária, mas somos nós, modernos [e com monumento) que será designado no que se segue
a nossa compreensão ...] quem lhos atribui. como “valor de antiguidade” (Riegl, 2013:16).
Em ambos os casos – tanto nos monumentos
P
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
bem exemplificada em um dos diversos desqualificar citado valor. Cabe ressaltar,
A C I O N A L
depoimentos dos moradores do bairro porém, já realizando uma primeira ponte
Bairu, em Juiz de Fora, que são anexados à possível entre esses dois tipos diferenciados
de bens, que, como acontece com as
N
solicitação de tombamento do Castelinho.
R T Í S T I C O
José Augusto Teixeira Miranda, que se roupas, podemos dizer que “nós vestimos a
identifica como músico e empresário, arquitetura das cidades e elas nos vestem”.
A
informava, na época (2009), morar há 39 No seu inspirado livro O casaco de Marx,
E
o historiador inglês Peter Stallybrass aborda
I S T Ó R I C O
anos no local. E disse:
a trajetória do casaco do filósofo alemão,
Desde a minha infância e pela maior parte da também dado por Marx como o primeiro
H
minha vida ao ir para casa, sempre escolhia um exemplo, em O capital, de forma celular da
A T R I M Ô N I O
caminho que pudesse avistar aquele grande casarão economia. Stallybrass narra as idas e vindas
no meio de tantas árvores na esquina próxima à do casaco de Marx para a loja de penhores,
Praça da Baleia. Por quase todos os caminhos que
P
para assim possibilitar que ele – sempre
D O
passava, podia ver de ângulos diferentes aquela
em precária situação econômica – pudesse
E V I S T A
beleza rara se integrando à beleza da praça, das
escrever sua obra.
esquinas, às casas, e à memória de cada família e
Marcos Olender
R
Diz também o inglês que, em O capital,
de cada morador do bairro.
(...) o “Castelinho do Bairu” (...) Tornou-se o “casaco faz sua primeira aparição não como
[...] parte importante do cenário de lembranças um objeto que é fabricado e vestido, mas
que cada um guarda como um tesouro e se algum como uma mercadoria que é trocada”, ou
dia desaparecer será como arrancar um pedaço das seja, “o que define o casaco como mercadoria
nossas vidas e com certeza sofreremos mais uma para Marx é que, como tal, ele não pode ser
grande perda na identidade da nossa cidade (PJF, vestido como tampouco pode aquecer”. Essa
2009:5). (grifos meus) 327
contradição definiria “o caráter contraditório
do próprio capitalismo: a sociedade mais
MEMÓRIAS DE COISAS E abstrata que jamais existiu” (Stallybrass,
DE LUGARES 2012:39). Uma sociedade na qual “uma
mercadoria torna-se uma mercadoria não
Sem perder de vista a questão da como uma coisa, mas como um valor de
importância do valor afetivo para a troca” (Stallybrass, 2012: 40). Na verdade,
indicação, valorização e preservação de uma afirma Stallybrass, dizemos que a nossa
edificação ou território como patrimônio sociedade é materialista, criticamos “o
histórico e cultural, será em outro grupo materialismo da vida moderna”, mas nela “a
dos denominados bens culturais materiais, atenção ao material é precisamente aquilo
o das roupas, que encontraremos um que está ausente” (Stallybrass, 2012:15). Em
forte argumento no que concerne a essa nenhuma outra sociedade a coisa teve em si
importância e, também, onde poderemos tão pouca importância quanto na nossa. Cabe
perceber com mais clareza, por outro lembrar, como faz o antropólogo francês
Marcel Mauss, citado por Stallybrass, que, dignidade (...) são os sinais de um grande e
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
em si, mas a sua marca e o seu preço. É no carinho para durar mais que uma geração,
D O
mercado, no circuito da moda, da oferta e da para marcar a vida e a história de uma família
E V I S T A
procura que ela se realiza e que, assim, nos (e, por extensão, de uma comunidade),
Marcos Olender
R
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
com a loja de penhores deve ser ressaltada cotidiana com esse bem, diretamente
A C I O N A L
aqui porque pode ser estendida, conforme a proporcional à sua importância para a
analogia feita anteriormente, também, para o construção da própria memória coletiva da
comunidade onde se insere (ou se encontra)?
N
território urbano, para as edificações e para a
R T Í S T I C O
cidade. Diz Stallybrass (2012:65): Agindo assim estamos, efetivamente,
penhorando esses bens.
A
Mas as relações com o dono da loja de Por outro lado, ao relevar-lhe o valor
E
penhores eram estruturalmente conflitivas. Pois afetivo estamos necessariamente deslocando
I S T Ó R I C O
era na loja de penhores que a vida dupla das coisas do Estado para os “diferentes grupos
aparecia em sua forma mais contraditória. As formadores da sociedade brasileira” (Iphan,
H
coisas a serem penhoradas podiam ser necessidades
2008:40), o poder de instituir a valorização
A T R I M Ô N I O
domésticas e símbolos de realização e sucesso, mas
cultural e, consequentemente, a indicação
elas eram também, com frequência, o repositório
daquilo que deve ser preservado como, aliás,
da memória. Mas penhorar um objeto é desnudá-
P
lo de memória. Pois somente se um objeto é preconiza a Constituição Brasileira de 1988.
D O
desnudado de sua particularidade histórica, ele Desqualificar esse valor é render-se, no
E V I S T A
pode novamente se tornar uma mercadoria e um que concerne ao patrimônio arquitetônico e
Marcos Olender
R
valor de troca. Da perspectiva da loja de penhores, urbano, à perversa lógica desmaterializante
qualquer valor que não seja valor de troca é um do mercado imobiliário; é, efetivamente,
valor [p. 87] sentimental, um valor que deve ser despojar a edificação ou o sítio urbano de sua
removido do objeto para poder ser ”livremente” memória, que é a mais forte justificativa para
trocado no mercado. (grifos meus) a sua preservação.
Essa percepção é, desde meados da
A desqualificação de uma coisa no circuito década de 1970, cada vez mais comum,
do mercado da sociedade capitalista (embora o 329
inclusive entre os movimentos sociais que
próprio dono da casa de penhores não seja, em reivindicam a proteção de algum bem ou
si, um “agente privilegiado” desse capitalismo) território inserido na cidade. Com a retomada
é, portanto, a sua contaminação pelo dito e desenvolvimento das mobilizações, no
“valor sentimental” que, na verdade, aponta período de redemocratização do país, uma
Stallybrass, constitui-se em sua “particularidade parcela significativa delas elege a denominada
histórica”, em sua “memória” acumulada. “especulação imobiliária” como principal
Frente a isso, pergunto: ao recusarmos ao ameaça à preservação do patrimônio histórico
valor afetivo uma importância fundamental e cultural.
na seleção daqueles bens históricos e culturais Tal ameaça foi um dos motivos explícitos
que devem ser preservados, não estamos pelos quais se promoveu o tombamento do
assumindo, de modo perverso, essa mesma Terreiro da Casa Branca, em Salvador, Bahia.
desqualificação e nos esquecendo que a O antropólogo indigenista Olympio Serra,
afetividade (em sua dimensão social, coletiva) em palestra realizada em 1983 (publicada
constitui-se em um indício socialmente e em livro organizado por Antonio Augusto
Arantes), ao relatar suas experiências, uma parcela do mesmo, onde se localiza “um
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
Eu comecei a falar de índios não por uma teve importante participação no processo
I S T Ó R I C O
ordem histórica, mas apenas porque eles me que culminou com a preservação do terreiro:
fizeram olhar certos problemas da sociedade “Em 1981, já era claro que os planos do
H
brasileira, como o caso dos negros, com olhos proprietário implicavam irremediável
A T R I M Ô N I O
identidade cultural, havia uma identidade étnica terreiro é descrita em um trecho do romance
Marcos Olender
abade do Mosteiro de São Bento, Timóteo pena transcrever trecho da Ata de Sessão
Amoroso Anastácio, diversos intelectuais realizada na Sede da Sociedade Beneficente
A
e artistas, como Carybé, Capinam, Pierre e Recreativa São Jorge do Engenho Velho,
E
autoridades religiosas, como mãe Stella de dia 30 de março de 1984, que contou
Oxóssi e mãe Menininha do Gantois, entre com a presença de técnicos do Iphan e do
H
expressar suas demandas” (Gohn, 2011:335), Casas de Santo, os monumentos, os santuários dos
podemos afirmar, como o antropólogo orixás, tudo está sempre sofrendo transformação;
Gilberto Velho, relator do processo de inclusive pode um orixá manifestar-se baixando
tombamento no Conselho Consultivo do na cabeça de uma filha de santo e dar ordem
para que uma casa de santo seja trocada, mudada
Iphan, que tratou-se
de lugar, pintada de outra cor, remodelada
inteiramente”. Dito isso, pediu-se “à Ialorixá e
(...) de um verdadeiro movimento social com
332 todas as sacerdotisas, ogans e equedes presentes”
base em Salvador, reunindo artistas, intelectuais,
que se pronunciassem. “Diante da pergunta, uma
jornalistas, políticos e lideranças religiosas que
parte da Assembléia manifestou-se com risadas,
se empenharam a fundo na campanha pelo
considerando um grande disparate a afirmação do
reconhecimento do patrimônio afro-baiano
tal especialista (...) Outros ficaram indignados à
(Velho, 2006:239). referida afirmativa, dizendo que o candomblé não
é uma coisa sem lógica, que mude assim à tôa,
O ineditismo da solicitação surpreendeu nem os santos costumam inventar moda, nem
os técnicos do Iphan, pois, em quase meio agem por capricho. Com a palavra, Juliana da Silva
século de existência, o órgão não havia Baraúna (mãe Teté) respondeu com toda energia
que isto não existe, que é loucura... Finalmente o
lidado com tombamentos de terreiros ou
Presidente da Sociedade (...) reiterou que a Casa
de outras expressões religiosas e culturais
Branca tem participado de todas as propostas de
de afrodescendentes. Foram levantadas intervenção para preservar o Terreiro e entende
questões que poderiam inviabilizar, segundo de que se trata e tem consciência do que está
a ótica de alguns desses técnicos, a aplicação querendo. Estas palavras foram aplaudidas por
do tombamento, como o “dinamismo” todos” (Serra, 2005:176, nota 12).
Apesar da clareza e da convicção que A mobilização social com o processo de
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
norteava a demanda dos representantes redemocratização do Brasil, principalmente
A C I O N A L
do templo e daqueles que a apoiavam, as a partir dos fins da década de 1970, também
inseguranças e discordâncias manifestadas deu mais visibilidade a outros espaços
pelos técnicos do Iphan se estenderam,
N
urbanos que retomaram e/ou reforçaram a
R T Í S T I C O
também, para os membros do próprio sua função de reunião e congraçamento: as
Conselho Consultivo do órgão, que, praças públicas.
A
com o apoio decisivo do seu presidente Foi o que aconteceu, por exemplo, com a
E
Marcos Vilaça e do relator do processo,
I S T Ó R I C O
Praça Rui Barbosa, conhecida popularmente
Gilberto Velho, acabou aprovando o como Praça da Estação, em Belo Horizonte,
tombamento, mas por uma margem que, no início da década de 1980, teve a
H
extremamente pequena – “três votos a
A T R I M Ô N I O
integridade do seu espaço ameaçada pela
favor do tombamento, um pelo adiamento, possibilidade da instalação de uma estação
duas abstenções e um voto contra” (Velho, do metrô, que estava sendo proposto como
P
2006:239) – e com a ausência de sete dos solução de transporte da capital mineira. Essa
D O
seus membros. intervenção, secundada pela implantação de
E V I S T A
Tal tombamento abriu o caminho
diversos terminais de ônibus de integração na
Marcos Olender
para a preservação de outros terreiros: em
R
área, ameaçava a integridade não só da praça,
2001, o Ilê Axé Opô Afonjá foi tombado
mas também do seu entorno. Na defesa
pela unanimidade dos membros do citado
dessa integridade, o departamento de Minas
Conselho, depois houve os tombamentos do
Gerais do Instituto de Arquitetos do Brasil
Terreiro do Gantois, do Terreiro do Bate-
– IAB-MG ressaltava que era: “(...) um local
Folha e do Terreiro do Alaketo (Ilê Maroiá
estratégico, central, com prédios públicos
Láji). E, as questões levantadas então também
significativos, um dos poucos conjuntos 333
contribuíram para o estabelecimento de um
que resistiram à demolição da especulação
novo campo da preservação no Brasil, o dos
imobiliária” (Miranda, 2007:14), como
bens imateriais. Cabe aqui, porém, reforçar
afirma Maurício Andrés Ribeiro, presidente
a advertência feita por Odete Dourado em
da organização entre 1982 e 1983.
artigo sobre o tombamento do Ilê Axé Iyá
O depoimento do arquiteto José Abílio
Nassô Oká:
Belo Pereira, diretor do IAB-MG na gestão
[...] o que existe é uma relação absolutamente 1980/1981, coletado por André de Sousa
indissociável e dinâmica entre o que é imaterial e Miranda, reforça o caráter simbólico da praça:
material, semelhante, aliás, é bom lembrar, àquela
existente entre o orum (o invisível) e o ayê (o (...) Era a porta de entrada da cidade, esse era
mundo visível) que, embora distintos, coexistem e o grande motivo. O marco inicial da cidade. O
se interpenetram. A questão estende-se e interessa, ponto simbólico. Um patrimônio arquitetônico
naturalmente, a todos os bens patrimoniais, sejam interessante. É um lugar, pode-se dizer, de onde
eles edifícios, conjuntos históricos, esculturas, eu chego e saio da cidade: a porta (Miranda,
pinturas etc. (Dourado, 2011:17). 2007:142).
(...) Acho que a Praça da Estação foi um um poema sobre a questão, intitulado de
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
evento importante aqui em Belo Horizonte. Foi “A Praça da Estação de Belo Horizonte”, no
um momento importante e carregado. Por isso
A C I O N A L
Antônio Carlos
de significados. Eu diria que a Praça da Estação tem
São feios? São belos?
mais significado simbólico para Belo Horizonte que
São linhas de um rosto, marcas da vida.
a Praça Sete. Praça Sete tenha talvez como elemento
P
poderes públicos,
da cidade de Belo Horizonte, Praça da Estação
Conta pra gente uma história pioneira.
Marcos Olender
R
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
compunham a sua paisagem urbana. Porém, até então, coadjuvava o Iphan na proteção
A C I O N A L
a tramitação do processo aponta, segundo preferencial das manifestações artísticas,
o depoimento do arquiteto Ricardo Lanna, arquitetônicas e urbanísticas do período
diretor do IAB-MG na época, para possíveis
N
colonial. E possibilitou, malgrado todos os
R T Í S T I C O
pressões do mercado imobiliário, prejudicando percalços, a preservação de um importante
a manutenção da integridade do conjunto conjunto urbano, permeado por edificações
A
originalmente proposto: que contam a história de Belo Horizonte, mas
E
I S T Ó R I C O
que apresenta como principal força simbólica
(...) Se você for lá hoje eu acho que sobraram um espaço “vazio”, congregador e congraçador
duas casas. Porque quando foi para o Iepha tombar
de encontros e movimentos sociais.
H
ele tirou isso daqui [referindo-se aos imóveis
A T R I M Ô N I O
Mais recentemente, em Juiz de Fora,
hachurados no mapa, na rua Célio de Castro. E,
a partir de 2009, a luta pela preservação
quando sumiram com o processo, é tão escandaloso
que o processo saiu do Iepha para ir pro Palácio do Castelinho do Bairu também tem a
P
especulação imobiliária como uma das
D O
da Liberdade para o governador Hélio Garcia
principais ameaças a serem combatidas. Na
E V I S T A
homologar e o processo sumiu. Passou três anos
desaparecido. E olha bem como são as coisas: sabe carta convite feita para um evento que foi
Marcos Olender
R
como o processo apareceu? Eu achei o processo lá realizado no dia 8 de abril de 2010 pelo
no Plambel. Aí comuniquei ao Iepha: “O processo movimento dos moradores para defender sua
está aqui. Eu só não posso falar. Mas ele está aqui
preservação, o chamado Movimento Memória
e aí tinha havido muita perda”. Porque enquanto
Bairro, na parte intitulada de “Risco para a
eles ficaram com o processo eles demoliram. Aí
eu fiz outra proposta de tombamento da Praça. qualidade de vida do bairro”, consta o alerta:
Como Plambel. [)..) Aí o Iepha tirou esta parte de
cá. [referindo-se ao conjunto de imóveis ecléticos Além da importância da preservação do imóvel 335
situados na Rua Célio de Castro] Manteve o Viaduto para a memória de Juiz de Fora, por ocupar grande
de Santa Tereza que não estava incluído no primeiro parte do quarteirão (...) a possibilidade de que ele
tombamento, aí eu incluí no segundo. (...) Tirou a venha a dar lugar a um grande empreendimento
Rua Célio de Castro e detonaram com ela rapidinho. imobiliário também preocupa os moradores por
Não ficou nada. Era pra ter ficado uma coisa muito representar um risco para a qualidade de vida do
interessante ali. Um pedaço extremamente expressivo, bairro, que provavelmente não conta com uma
muito bem caracterizado (Miranda, 2007:182). infraestrutura para isso (PJF, 2009:178)
Meu chão, meu poste, meu muro, de que o Castelinho, integrado “à memória
I S T Ó R I C O
Mário Quintana3
um pedaço das nossas vidas” (PJF, 2009:5).
A T R I M Ô N I O
cidade” (Migliano, 2013:44), conforme era dela por direito, né? (...) e essa coisa da praia
E
relata uma das participantes do encontro. pegou, né? Porque era uma ocupação efetiva do
I S T Ó R I C O
Nesse encontro foi decidido que seria criado espaço público que legalmente estava proibido de
um blog específico para que todos pudessem ser ocupado. E foi ocupado de uma forma lúdica,
H
postar suas ideias e propostas e logo surgiu, através de uma intervenção urbana, de forma
A T R I M Ô N I O
menos, trezentas pessoas, e foi descrita assim: ferramentas na internet e no boca a boca, claro, e
Marcos Olender
R
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
sexo do baixo centro, além dos movimentos Halbwachs, a memória é construída
A C I O N A L
“pela igualdade e liberdade de gênero, dos coletivamente, a partir do compartilhamento
moradores e meninos de rua, dos vendedores de situações e expressões materiais e
ambulantes, pipoqueiros e fotógrafos lambe- intelectuais vivenciadas por um determinado
N
R T Í S T I C O
lambe”, e de situações afins como “dos grupo, criando, como afirma Meneses,
artesãos da Praça Sete e dos artesãos da Feira “vínculos afetivos de pertencimento e
A
Hippie”. Conforme afirma Oliveira: solidariedade” entre as pessoas, as coisas e
E
seus lugares. A própria seleção daquilo que
I S T Ó R I C O
A festa, o lúdico, o êxtase, os encontros será compartilhado parte de uma relação
e a interação, o ocupar o espaço público, afetiva positiva, ou mesmo negativa, com
H
a contestação, a rebeldia, o protesto, a determinada situação ou expressão.
A T R I M Ô N I O
desobediência, a afirmação do poder fazer,
Os afetos podem ser individuais ou
dentre outras expressões, conformaram uma
coletivos, mas, mesmo aqueles considerados
trama e compuseram um agenciamento coletivo
P
mosaico, fluido, amorfo, polissêmico de difícil individuais são afetos por ou para alguém ou
D O
apreensão e conceituação. Os participantes da alguma coisa. Envolvem certa experiência
E V I S T A
Praia da Estação trouxeram à tona, de maneira que se realiza, de alguma forma, em uma
Marcos Olender
crítica, contestatória, poética, desejante e afetiva, dimensão coletiva. Inspirado no filósofo
R
a questão da cidade, do viver na cidade, do ser e Baruch de Spinoza, posso dizer que os
estar na cidade (Oliveira, 2012:196-197). maus encontros entre pessoas, coisas e
lugares nos deprimem, nos enfraquecem,
A Praça da Estação retomava a sua nos desestruturam, nos deixam tristes,
pulsação e reafirmava, e renovava, a sua nos tornam passivos, entregando o nosso
histórica e memorável vocação congregadora destino a forças exteriores a nós ou nos
e congraçadora. desesperando, fazendo-nos agir pautados no 339
Marcos Olender
R
Procissão Quando as cidades são transformadas (...) a cidade é comum quando os cidadãos
do Fogaréu
Acervo: Iphan/
Paulo Rezende.
abruptamente a partir de uma política exterior se sentem parte da mesma e quando as mudanças
à organização dos cidadãos enquanto sociedade, urbanas não distanciam os indivíduos do sentido
340
cerceando-os da participação das decisões, os da sua própria cidade (Bertini, 2015:14).
sujeitos podem não mais se assemelhar com
os espaços da cidade. O cidadão pode não Ao remover-se, perversamente, o valor
reconhecer historicamente o espaço urbano,
afetivo das orientações, planejamentos e
tornando-se alheio ao mesmo. Os espaços
decisões a serem tomadas na vida de uma
da cidade se tornam estranhos, quando não
cidade, e mais especificamente naquilo que
correspondem à dinâmica histórico-política ou
interessa mais de perto a este artigo, no que
à dimensão afetiva das pessoas na vivência do
espaço urbano ou na situação do “esquecimento” concerne à eleição e à preservação dos bens
das políticas públicas dos espaços históricos (não que constituirão o patrimônio histórico e
cuidam, não preservam), devido à orientação cultural de uma cidade ou território, estamos
adotada de uma lógica da racionalidade técnico- efetivamente afastando os seus cidadãos (ou
científica ou econômica, externa à realidade dos parte significativa deles), desqualificando-os e
cidadãos (Bertini, 2015:14) com isso deslegitimando a própria cidadania,
fundamentada no direito à cidade e, por
Por outro lado, afirma ainda a autora: extensão, no direito à sua memória.
REFERÊNCIAS cultural. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Gra-
O a f e t i vo e f e t i vo. S o b r e a f e t o s , m ov i m e n t o s s o c i a i s e p r e s e r v a ç ã o d o p a t r i m ô n i o
duação em Memória Social, Universidade Federal
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N O TA S B I O G R Á F I C A S
Notas biográficas
Notas biográficas
MARCOS OLENDER
1987 e 2011 foi servidora do Instituto do Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo
A C I O N A L
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
– Iphan, onde exerceu vários cargos, entre (1985), mestrado em História Social pela
os quais o de Coordenadora Regional nos
N
UFRJ (1992) e doutorado em Arquitetura e
R T Í S T I C O
estados do Ceará e Rio Grande do Norte, Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia
Diretora do antigo Departamento de (2007). Atualmente é professor associado da
A
Proteção e, entre 2004 e 2011, Diretora do Universidade Federal de Juiz de Fora, onde
E
Departamento do Patrimônio Imaterial.
I S T Ó R I C O
ministra disciplinas no Curso de História e nas
A partir de abril de 2011 é professora da pós-graduações de História e Ambiente Cons-
Faculdade de Arquitetura da Universidade truído. É diretor do Centro de Conservação
H
Federal da Bahia e do Programa de Pós-
A T R I M Ô N I O
da Memória – Cecom, da UFJF. Atua princi-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da palmente nos seguintes temas: constituição do
mesma universidade. É também professora pensamento preservacionista, teorias da preser-
P
colaboradora do Mestrado em Preservação vação e do restauro, instrumentos de proteção
D O
do Patrimônio Cultural do Iphan. do patrimônio, gestão em patrimônio cultural,
E V I S T A
Lidera o Grupo de Pesquisa Arquitetura história da preservação do patrimônio cultural,
R
Popular: Espaços e Saberes, é membro do história da arquitetura moderna e contempo-
Grupo de Pesquisa História da Cidade rânea, exposições universais e internacionais e
e do Urbanismo e publica regularmente história da modernidade.
trabalhos sobre preservação do patrimônio
urbano, política de preservação do MARIA CECÍLIA LONDRES FONSECA
patrimônio cultural e arquitetura popular. Licenciada em Letras, mestre em Teoria
A partir de setembro de 2016 é membro da Literatura e doutora em Sociologia.
343
titular do Conselho Consultivo do Foi pesquisadora do Centro Nacional de
Patrimônio Cultural. Referência Cultural – CNRC, Coordenadora
de projetos da Fundação Nacional Pró-
M Á R C I A R E G I N A R O M E I R O C H U VA Memória, Coordenadora de Políticas da
Bacharel em História, com doutorado em Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes
História. Professora do Departamento de Plásticas do MinC, Membro do Grupo
História e do Programa de Pós-Graduação de Trabalho do Patrimônio Imaterial e
em História, da Universidade Federal do representante do Brasil nas reuniões de
Estado do Rio de Janeiro, e do Mestrado peritos internacionais, na Unesco, para a
Profissional em Patrimônio Cultural elaboração da Convenção para a Salvaguarda
do Iphan. Autora de Os arquitetos da do Patrimônio Cultural Imaterial. Autora
Memória (2009) e organizadora da Revista do de The Registry of Intangible Heritage: the
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº brazilian experience (2004) e Patrimônio
34 – História e Patrimônio (2011). em processo (2005). Membro do Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan.
MARIA LUCIA BRESSAN M I LT O N G U R A N
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
Arqueólogo, mestre e doutor em CAMPOS
Professor Adjunto-A da Faculdade de His-
A C I O N A L
Arqueologia. Coordenador Nacional
de Licenciamento Ambiental do Iphan. tória e dos Programas de Pós-Graduação em
Autor de Modernidade, mas nem tanto: as História e em Projeto e Cidade (Arquitetura
N
R T Í S T I C O
vilas operárias da Fábrica Confiança, Rio e Urbanismo), da Universidade Federal de
de Janeiro, séculos XIX e XX (2008) e A Goiás. Doutor em História (UFJF); Mestre
em Memória Social e Patrimônio Cultural
A
proteção do patrimônio arqueológico a partir
E
das práticas administrativas do Iphan: das pela UFPel. Graduado em Direito pela UFJF;
I S T Ó R I C O
delegações às consultorias (2017). Especialista em Gestão do Patrimônio Cultural
(Granbery e Permear, Juiz de Fora-MG). Pes-
H
quisa o patrimônio cultural a partir da relação
A T R I M Ô N I O
TA N I A A N D R A D E L I M A
entre História, Memória e Identidade, além
Tania Andrade Lima, Doutora em
de suas nuances jurídicas. Participou, como
Ciências pela USP com pós-doutorado
bolsista Capes, do projeto Perspectivas Teóricas
P
em História Social, também pela USP, é
D O
sobre el Patrimonio Material e Inmaterial en
professora do Programa de Pós-Graduação
E V I S T A
Sudamerica – Brasil y Argentina (CAFP/BA –
R
Antropologia do Museu Nacional/
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do Conselho Nacional de Z O Y A N A S TA S S A K I S
Desenvolvimento Científico e Tecnológico Professora adjunta da Escola Superior de
– CNPq, desenvolve pesquisas em Desenho Industrial, Universidade do Estado
Arqueologia Histórica (Arqueologia do do Rio de Janeiro. Graduada em Design pela
Capitalismo e Arqueologia da Diáspora mesma instituição, é Mestre e Doutora em
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Africana), Arqueologia Pré-Histórica Antropologia pelo Programa de Pós-graduação
(pescadores/coletores litorâneos, ceramistas em Antropologia Social, Museu Nacional,
tupi-guarani) e reflexões sobre Teoria Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coor-
Arqueológica e Preservação do Patrimônio dena o Laboratório de Design e Antropologia,
Arqueológico. grupo de pesquisa certificado pelo CNPq. É
autora de artigos em publicações nas áreas de
Design e Antropologia, dentre elas Antropolo-
gia e patrimônio cultural: trajetórias e conceitos
(Associação Brasileira de Antropologia, 2012)
e Design e/é patrimônio (Centro Carioca de De-
sign, 2012). Com apoio da Faperj e do Prêmio
Design, do Museu da Casa Brasileira, publicou
o livro Triunfos e impasses: Lina Bo Bardi, Aloi-
sio Magalhães e o design no Brasil (Lamparina
Editora, 2014).
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
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Maria Lucia Bressan Pinheiro Tr a j e t ó r i a d a s i d e i a s p r e s e r v a c i o n i s t a s n o B r a s i l : a s d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
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