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O conceito de arranjo tem uma natureza essen- versão e de interpretação. Aqui tomo a canção-solo
cialmente aspectual, revelando a concepção parti- “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa, em sua
cular que o arranjador tem do material preexisten- versão pessoal original, anterior ao arranjo de 1951,
te (melodia, tema, peça vocal e/ou instrumental), como versão de referência, conforme o conceito de
constituindo-se em comparação com outras con- mito de referência na formulação clássica de Clau-
cepções desse mesmo material. O arranjador e/ou de Lévi-Strauss.1
os músicos executantes, na realidade, salientam, Como tão bem mostra Aragão (2001),2 as de-
revelam ou inventam aspectos de determinada can- finições de arranjo na música popular brasileira
ção, melodia ou tema. Neste texto, analiso o con- sofrem de indefinição conceptual. No caso que ele
ceito de arranjo em conjunto com conceitos pró- estuda – arranjos de Pixinguinha de 1929 a 1935 –,
ximos a ele, entre os quais são fundamentais os de as definições transformam-se de acordo com o con-
texto histórico e o campo de seu emprego. O autor
* Agradeço a Silvia de Oliveira Beraldo pela ideia de
que a canção popular somente é conhecida através não busca uma compreensão analítica do conceito, o
dos arranjos; a Luís Fernando H. Coelho, pela ajuda que se confirma em sua contribuição posterior, parte
no aplicativo usado na transcrição musical; por fim, a da coletânea que acompanha a coleção de arranjos
Kaio D. Hoffmann, pela leitura e pelas sugestões. Sou
o único responsável pelo artigo. Uma versão anterior de Pixinguinha, de 1940-1950 (ver Leme, 2010).
deste texto saiu em Ilha – Revista de Antropologia. Bessa (2010), em contrapartida, analisa os ar-
ranjos de Pixinguinha, de 1920 a 1930, a partir
Artigo recebido em 22/01/2013 de outro ângulo. Baseando-se em Szendy (2001),
Aprovado em 07/02/2014 equaciona sua conceituação de arranjo com a noção
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de escuta: “o arranjo musical tem como principal cita questões interpretativas, especialmente estilís-
característica ‘fazer escutar como’ e, dessa forma, ticas, que envolvem o primeiro arranjo (de 1951),
tornar pública uma percepção particular, única, cantado por Adoniran (1912-1982),6 e a versão dos
qual seja: a do arranjador” (Szendy, 2001, p. 188, Demônios da Garoa (de 1955).
grifo meu). O autor, portanto, minimiza a contri- Segundo o Dicionário Houaiss 7 arranjo é
buição dos músicos, uma vez que o que marca o “adaptação de uma melodia ou composição a outra
arranjo, para ele, é a percepção do arranjador. estrutura de harmonia, de textura ou de timbre”.
No âmbito da música erudita, Boyd (2006) O dicionário indica então o verbete “orquestração”:
conceitua arranjo como “qualquer peça de música
baseada em ou que incorpore material preexisten- Rubrica: música: ato ou efeito de orquestrar;
te”. Esta definição é problemática, pois implica uma modo pelo qual as partes de uma orquestra es-
oposição não elaborada entre arranjo e composição. tão combinadas, equilibradas, arranjadas entre
Schuller (2006), por sua vez, ao analisar as si. Obs.: cf. arranjo.
composições jazzísticas, parte de uma visão opos- Rubrica: música: arte de compor para cada ins-
ta, mas que também acaba por restringir o concei- trumento da orquestra; adaptação de uma me-
to. Se, para Boyd, arranjo seria aquilo que não é lodia ou composição a uma estrutura orquestral.
considerado obra autoral, para Schuller, o conceito
implica justamente um domínio muito maior: “até Essa definição dá conta da relação entre compo-
certo ponto, toda performance de jazz constitui sição e arranjo na música popular: o compositor (na
uma forma de arranjo, na medida em que é im- maioria das vezes o cancionista) cria canções em par-
provisada e constantemente renovada; quer dizer, ceria ou não com outros compositores e/ou letristas,
os performers rearranjam o material básico a cada originalmente acompanhadas por um instrumento
nova variação e forma”. Aqui a ênfase recai sobre os harmônico (violão, piano, acordeom). São essas can-
músicos que, na maioria das vezes, são ignorados ções que constituem o material básico dos arranjos.
quando se quer definir arranjo. Diferentemente do que faz Szendy – que ela-
Em meu texto sobre a canção “Feitio de ora- bora sua concepção baseando-se no papel do ar-
ção” – música de Vadico3 e letra de Noel Rosa4 –, ranjador e no que ele pretensamente escuta –, pro-
mostrei que a identidade da canção é dada pela curarei abranger na análise aqui empreendida os
música: sua letra pode ser mudada, esquecida pelo músicos (incluindo o cantor) e a audiência. A meu
cantor, pode ser simplesmente substituída por um ver, trata-se de uma abordagem mais adequada,
arranjo instrumental, um assovio ou solfejo do tipo pois tematiza as maneiras de cantar e tocar, tema
“nã-nã-nã”, ou não compreendida pelo ouvinte e caro à antropologia da música ou etnomusicologia
mesmo pelo cantor, caso das letras em línguas es- (Herzog, 1928, 1936), e também porque um enfo-
trangeiras (Menezes Bastos, 1996). Mas isso não que que procura compreender a dialética dos pla-
significa que a letra não tem importância, “já que o nos de produção e consumo da música se encontra
esquecido ou o incompreendido são tão fundantes mais próximo das formulações de Marx, conforme
quanto o lembrado ou o entendido”. A hierarquia sua discussão com Stuart Mill, nos Grundrisse.
entre música e letra aparece, nesse caso, no plano Os dois arranjos de “Saudosa maloca” que ana-
da identidade da canção. Creio que “uma canção é lisarei adiante têm características diversas.8 O pri-
já em sua substancialidade, e mesmo que feita por meiro, de Nelson Miranda – diretor do conjunto
uma só pessoa, um diálogo”, no sentido de Bakhtin que tem seu nome e executa o arranjo9 –, envolve
(1986),5 “estranho diálogo este, que já de começo cantor (Adoniran) e clarinetista solistas, um naipe
rompe com a unidade autoral, desenhando-se na de cordas dedilhadas, outro de percussão (violão de
polifonia mais congênita” (Idem, p. 164). Se na seis cordas, cavaquinho, pandeiro, tam-tam) e um
análise de “Feitio de oração” não tomei o arranjo coro misto feminino em uníssono.10 O segun-
como objeto de estudo, aqui caberia uma reflexão do, dos Demônios da Garoa em sua formação de
a esse respeito, uma vez que “Saudosa maloca” sus- 1955, inclui coro de seus cinco integrantes – em
ENSAIO SOBRE ADONIRAN 27
uníssono e também com abertura de vozes – e os no Livro guinness dos recordes. Houve muitas forma-
instrumentos – violão, violão tenor, tam-tam, afo- ções desde suas origens, mas em 1955 era formado
xé e pandeiro.11 Iniciando seus trabalhos nos anos por Arnaldo Rosa (afoxé e voz), Antônio Gomes
de 1940 como Grupo do Luar, os Demônios são Neto (vulgo Toninho, violão tenor), Francisco Pau-
considerados o grupo voco-instrumental de música lo Galo (percussão, tam-tam), Arthur Bernardo
popular mais antigo do mundo, conforme registro (violão) e Cláudio Rosa (pandeiro).
O sentimento que marca a intervenção do nóis passemo”, e “dias feliz de nossa vida”. Na parte
clarinete é a tristeza, o que evoca imediatamente musical, o refrão abre e fecha a canção e o regio-
o universo de tópicas da época de ouro da música nal mantém a mesma levada e o mesmo tônus já
popular brasileira (Piedade, 2001, 2012a, 2012b e anunciados na introdução. Esse aspecto neutro do
s/d; Bastos, 2008). Ou seja, período entre o final refrão, a seção da canção que o ancora, contrastam
dos anos de 1920 e final da década de 1940, em com a introdução e a conclusão instrumentais e a
que floresceram grandes nomes do samba como parte do canto solo, ambas muito diversificadas.
Noel Rosa, Ary Barroso, Ataulfo Alves e Carmen O canto de Adoniran é a segunda parte mais
Miranda e a primeira geração de arranjadores (Ra- longa do arranjo, ocupando 68 compassos, mais da
damés Gnattali, Pixinguinha, Gaó, Lyrio Panicali metade de sua extensão. Ele só não é mais longo que
e Leo Peracchi).23 Era comum, então, o uso de flo- a intervenção do clarinete. Trata-se de um canto eco-
reios melódicos, como apojaturas, grupetos e ou- nômico e elaborado expressivamente, o que é conse-
tros ornamentos, e de certos padrões – incluindo quência da produção de determinadas inflexões na
aproximações cromáticas ou por grau conjunto – e voz feitas através de distinções prosódicas resultantes
desenhos melorítmicos similares às “baixarias” do de acentuações fortes, vibratos e glissandos. Em al-
choro (Bastos, 2008). As características dessas tópi- guns pontos, surpreende a ausência de inflexão, espe-
cas referem-se ao lirismo de gêneros mais antigos, cialmente onde a letra alcança picos dramáticos. Esta
cingidos por certa nostalgia, como a modinha, a limpeza interpretativa é, paradoxalmente, percebida
valsa, a seresta e o choro (Piedade, 2011). pelo ouvinte como inflexão. O canto de Adoniran
A transcrição da canção evidencia imediata- não é óbvio nem derramado, flutuando entre a tris-
mente a presença dessas tópicas (os números refe- teza e a alegria.24 É significativa neste sentido a capa
rem-se a compassos): que Elifas Andreato fez para o disco em homenagem
ao cantor, lançado em 1980, “Adoniran Barbosa –
• Apojatura: 1-2; 3-4; 117-118. 70 Anos”.25 A primeira proposta tinha o desenho de
• Mordente: 121-122 (superior). um palhaço chorando, mas o diretor da Odeon na
• Grupeto: 118-119 (inferior). época teria dito que Adoniran não se reconheceria
• Aproximação por grau conjunto: 2-3; 4-5. ali. Andreato, então, fez uma ilustração mais sóbria,
• Aproximações cromáticas: 6-7; 7; 8; 15-16. com a qual Adoniran se identificara mais: ‘‘Elifas, eu
• Padrões com caráter e função das “baixarias”: sou esse palhaço triste aqui, e não o alemão que você
2-3; 16-17; 127-128; 133-134. pôs na capa do disco.”26
Na primeira estrofe (32-44), saliento a falta de
É com o clima de nostalgia que vem da intro- inflexão quando o narrador pede licença a “sinhô” –
dução que o arranjo atinge a parte II (compassos alguém em posição hierárquica superior – para
17-24, com repetição em 25-32), somando 16 iniciar sua narrativa. O tema da memória é então
compassos (32 com a repetição em 101-108/109- lançado – “Se o sinhô num tá lembrado/Dá licença
116). Trata-se do refrão, cantado pelo coro femini- de contá” (32-36). Verifica-se desde aí que se trata de
no, acompanhado pelo regional e pelos contracan- uma narrativa histórica. A partir daí, as inflexões
tos do clarinete. Os quatro segmentos II – como caem em sílabas tônicas, num trecho em que a
aqueles tipologicamente I – somam um total tam- função harmônica é a dominante com sétima (A7)
bém de 32 compassos, cerca de ¼ do arranjo. da subdominante (Dm) da tonalidade da canção
No refrão, o âmago de significação da letra é (Am). A acentuação (>) nas tônicas se mostra uma
a saudade, o que não somente é compatível, mas inflexão e, não, uma obviedade, pois não ocorre em
dá continuação à linha melódica do clarinete que todas as palavras, mas serve para destacar algumas:
segue fazendo contrapontos com o regional até o “tá” de “está” (37-38, >), “ar” de “artu” (39-40,
final da canção. O coro opera sem inflexões. Na vibr), “vé” de “véia” (41-42, >), “ce” de “palacete”
letra, há apenas duas ocorrências do falar “narfa- (42-43, vibr). No momento da resolução na subdo-
beto”: “onde nóis passemos”, com a variante “onde minante (Dm, 43-44), um glissando atinge as duas
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sílabas finais de “assobradadu”, a penúltima sendo a na dominante (A) da subdominante (Dm) – “is-
tônica. A alternância entre o velho (“véia”, “palace- piá a demolição” (67-68). Atinge-se a subdomi-
te”, “assobradadu”) e o novo (“está”, “artu”) aqui se nante, e vale dizer que o verbo pode assumir aqui
evidencia como o objeto central da narrativa. dois sentidos: expiar e espiar. A letra então recor-
A segunda estrofe (45-80) também começa da, lamentando, a tristeza (70) e a dor (74-75) –
com uma enunciação do narrador para “sinhô”, marcas desta versão de “Saudosa Maloca” –
chamado “seu moço” (“Foi aqui seu moço”, 45- provocadas pela demolição do palacete. Adoni-
46), cantado em glissando. Em seguida, o narra- ran passa a narrar na primeira pessoa do singular,
dor relata que foi “aqui”, na casa “véia”, que ele diferentemente dos momentos em que ele usa o
(Eu), Mato Grosso e Joca, instalaram a maloca, o plural ao falar em nome dos três heróis. As mar-
seu reduto –espaço político não somente esquivo, cas de lamentação apelam para um sentimento de
mas concorrencial em relação ao que lhe é exterior. resignação na estrofe seguinte (76-92). O grito
Também aqui (47-48), já de volta para o campo impronunciado por meio do qual Mato Grosso
harmônico da tônica (Am), o nome Joca é cantado sinaliza resistir à demolição (76-77), entoado na
em glissando. A sílaba “sa” de “nossa” é então acen- dominante (E) e com acentuação forte na última
tuada (51), embora não seja tônica, o que ocorre sílaba de “gritá”, não subsiste, uma vez que Joca
sobre um acorde de dominante da dominante (B) (89-92) aciona a senha da resignação, de maneira
que conduz à dominante (E) sobre a sílaba “lo” de proverbial: “Deus dá o friu” (89-90), entoado na
“maloca” (51-52), cantada de maneira acentuada, dominante da dominante (B) – com acentuação
sendo as outras duas sílabas, “loca”, em vibrato. Em forte, vibrato e glissando – “conformi o cobertor”
seguida, chegamos aos trechos mais dramáticos, de (91-92), termo cantado em vibrato e incidindo
novo quando a função harmônica é a dominante sobre a dominante (E). Há um grande investi-
com sétima (A7) – agora também com uma nona, mento expressivo nesse trecho: o uso do vibrato
menor – da subdominante (Dm): “Mais um dia é índice importante, visto que aponta para uma
(53-54) nem (54) queru me lembrá” (55-56, Dm). forte sensibilização do cantor.
A nona (nota si bemol sobre a palavra “nem”) é Não é à toa que o vibrato domina a última estro-
cantada enfaticamente, antecedida por uma pausa e fe (94-100). As inflexões ocorrem na primeira síla-
seguida por outra – inflexão feita sem nenhum dis- ba de “báia” (94), entoada na subdominante (Dm),
pêndio senão as próprias pausas. A estrofe, então, na primeira de “grama” (94-95), na segunda de
se fecha: “chegô os hômis co’as ferramenta” (57-58, “jardim” (95-96) – que recai sobre a tônica (Am) –
Am), “menta” em glissando. Adoniran então recita, e na finalização de “assim” (99-100), novamente
de modo documental, bem silabado: “qui o donu na tônica, após uma passagem pela dominante da
mandô derrubá” (57-80). Não há inflexão aqui, se- dominante (B) e dominante (E): “e prá isquecê (B)
não o próprio recitativo: “mandô” é cantado na do- nois cante (E) mus assim (Am)”. O apelo para a
minante (E) e “derrubá” na tônica (Am). Há uma recordação do início da narrativa resvala agora para
fina dialética nas duas primeiras estrofes entre os o esquecimento, sua marca triunfante voltando-se
usos do glissando e do vibrato, o primeiro ocupan- para o lado da derrota, tais as equações produzidas
do quase sempre a posição de finalização de verso; o pela narrativa – entre a recordação e a vitória; o es-
segundo ocorrendo em sílabas de palavras marcadas quecimento e a derrota.
pelo cantor. Talvez nesta última estrofe possamos vislum-
A terceira estrofe (63-76) é dominada quase brar uma alusão às transformações por que passa-
exclusivamente pelo uso do vibrato, com exceção va São Paulo na época. O conjunto de bairros na
do verso “cada táuba qui caía” (73-74), entoado zona oeste da cidade conhecido como “jardins” –
na dominante da dominante (B), onde o vibrato Jardim Europa, Paulista entre outros –, integra-
se soma à acentuação nas duas últimas sílabas de dos à malha urbana nos anos de 1930, levou para
“caía”. Aqui se narra a expulsão dos heróis de seu a região segmentos abastados da sociedade, e nas
reduto, quando vão para a rua (65-66) – cantada décadas seguintes era costumeiro que os pobres
ENSAIO SOBRE ADONIRAN 37
dali trabalhassem, entre outras ocupações, como discurso sobre composição musical bem mais ela-
jardineiros nas propriedades mais ricas. O termo borado e sedimentado (cf. Laboissière, 2007). A
“báia” usado na gravação de 1951 certamente foi partitura é reificada por pretensa descritividade, o
um engano de Adoniran, que queria dizer “páia”, que não acontece no âmbito da música popular,
aludindo justamente ao trabalho de limpar jar- onde a interpretação se evidencia como um dado
dins, o que é confirmado em todas as outras ver- naturalizado, uma vez que a escrita musical nesta
sões de “Saudosa maloca”27. O canto de Adoniran esfera é considerada uma espécie de estenografia
parece, dessa maneira, ser uma narrativa dessas (cf. Menezes Bastos, 1995).
mudanças, cuja finalização é resignadamente do- A aproximação dos conceitos de arranjo, ver-
lorida. Talvez aí esteja a raiz do propalado fracasso são e interpretação instiga uma análise que articu-
desta primeira versão, pois a cidade vivenciava o laria essa cadeia ao conceito de transformação (e de
ufanismo econômico e a reinvenção da paulistani- estrutura) em Lévi-Strauss, mas tal discussão não
dade, tudo vindo a desembocar nas retumbantes caberia no espaço restrito deste artigo. De qual-
comemorações do IV Centenário. quer maneira, antecipo uma resposta sobre a razão
Se, num primeiro momento, com base na com- de as canções normalmente pressuporem arranjos.
paração das duas versões, evidenciei que no universo Creio que isso acontece para que as canções, isto
das concepções nativas a gravação de 1951 teve a sua é, o material básico ou preexistente, constituídas
condição de arranjo neutralizada, sendo vista como como versões de segunda ordem, terceira e assim
a própria composição, e que a questão da autoria só por diante, possam trazer à luz um determinado
veio à tona com a entrada em cena do segundo arran- universo de interpretações.
jo; agora, a partir da análise do arranjo de Miranda es- Sobre o pretenso fracasso da primeira versão
pecificamente, é possível apontar para o que sustenta de “Saudosa maloca”, vale dizer que no mesmo
esses dois pontos: o cerne desse arranjo é o canto de ano de 1951, o samba “Malvina”, também de
Adoniran, com a sua assinatura indelével e um grande Adoniran (letra e música), cantado pelos Demô-
poder expressivo dado pelo peso da sua interpretação. nios da Garoa, ganhou o prêmio de primeiro lu-
É claro que se poderia argumentar que o peso gar no concurso de músicas de carnaval da cida-
maior do páthos do arranjo é dado pela ubíqua nos- de de São Paulo. Em 1952, o mesmo aconteceu
talgia impressa pelo solo do clarinetista. Mas seu com outro samba dele com letra de Osvaldo Mo-
anonimato vis-à-vis a onipresença dessa linha me- les, mais conhecido como produtor de progra-
lódica no arranjo revela justamente que, a rigor, o mas radiofônicos. Adoniran na época já gozava
arranjo, com todas as suas interpretações, faz parte de certa fama como compositor e letrista, num
do universo autoral, assim como a composição. Isto mercado musical orientado para o carnaval (Me-
equivale a dizer que a diferença entre composição nezes Bastos, 2005); talvez não fosse conhecido
e arranjo é pura ilusão; ilusão, vale lembrar, que ainda como cantor.
move montanhas no mundo da mercadoria. Ademais, Adoniran, desde o começo dos anos
Se, com base na referida confrontação – no de 1940, trabalhou como ator cômico em várias
que diz respeito à cadeia de concepções pertinentes rádios, entre elas a Record. Sob direção de Osval-
ao conceito de arranjo e sobre a natureza aspectual do Moles, seus personagens – Zé Cunversa (ver
para a qual ele acena –, a definição de arranjo está nota 10), Jean Rubinet e outros – eram muito po-
muito próxima da ideia de versão, a análise da letra pulares na época. O célebre programa “Histórias
e da música do arranjo de Nelson Miranda eviden- das malocas”, em que Adoniran vivia Charutinho,
cia que essa aspectualidade resulta da articulação foi lançado em 1955, na esteira do sucesso da se-
das interpretações ali presentes, assim como o con- gunda versão da “Saudosa maloca”, e permaneceu
ceito de interpretação aponta para a atomicidade no ar por dez anos. Além disso, Adoniran e Moles
do conceito de arranjo. dividiram a criação de vários sambas (Mugnani,
Na música erudita, há uma forte distinção 2002). Assim, podemos afirmar que o suposto
entre partitura e interpretação, baseada em um fracasso do samba na versão de Adoniran foi algo
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excepcional em sua já bem-sucedida carreira de ra- Almeida e Menotti del Picchia, entre outros (Cer-
dioator e de compositor no mercado carnavalesco ri, 1998). Nos anos de 1950, há outra forte infle-
de então.28 xão no sentido de que a paulistanidade se torna
É preciso tem em mente ainda que o mercado ela mesma uma mercadoria, o que se evidencia
do disco no Brasil da década de 1950 tinha mag- nos festejos do IV Centenário de São Paulo, em
nitude reduzida. Poucas pessoas compravam discos 1954 (Godoy, 2011). A partir daí, o slogan “São
para ouvir em casa. De fato, o disco era ouvido e Paulo não pode parar” tornou-se um apelo com
divulgado pelo rádio, meio de comunicação he- forte eco local e nacional. A narrativa de Ado-
gemônico de então, sobre o qual infelizmente há niran vai contra essa ideologia, articulando-se
escassez de dados. Ademais, o mercado tinha no a um universo discursivo do mundo intelectual
cinema um meio também importante de dissemi- paulista e paulistano que, no âmbito da música
nação.29 Em outras palavras, a comparação das duas popular, mas sem qualquer acento erudito, ante-
primeiras versões de “Saudosa maloca” do ponto cipa as posturas críticas da vanguarda paulista.31
de vista de seu sucesso no mercado do disco parece O suposto fracasso de “Saudosa maloca” em 1951
não passar de uma projeção anacrônica. ou sua obscuridade no mercado fonográfico tem
A população do município de São Paulo deu esta inscrição crítico-interpretativa: tristeza, dor,
um salto nos anos de 1950, atingindo 3,5 milhões lamentação, resignação. Com efeito, esta versão
de pessoas. A grande responsável por isto foi a ex- passou a ser uma referência para todas as outras
pansão industrial, que impulsionou correntes mi- que vieram depois, entre as quais a dos Demô-
gratórias principalmente do Nordeste e do interior nios da Garoa, marcada pela jocosidade e desdém
do estado, atraídas por um crescente mercado de e por uma musicalidade de irrisão – os arranjos
trabalho, especialmente nos setores fabril e de cons- existem para tornar possível a explicitação de uni-
trução civil. Com a implantação, na segunda meta- versos diferentes de interpretações.
de da década, da indústria automobilística no ABC,
houve importante crescimento na região metropo-
litana como um todo, com consequências nos pla- Notas
nos demográfico, urbanístico e arquitetônico. So-
bretudo a região central passou a ser cada vez mais 1 Para o emprego desse conceito no campo musical, ver
ocupada por arranha-céus, os “edifíciu(s) artu(s)” Menezes Bastos (2013).
como é dito no samba.30 A ideologia ufanista do 2 Agradeço a Samuel Araújo por me indicar este texto e
progresso passou a marcar de maneira decisiva a a Pedro Aragão pela gentileza do envio.
paulistanidade, ideia que rapidamente foi apropria- 3 Apelido de Osvaldo Gogliano (1910-1962), compo-
da pelo discurso político. “Saudosa maloca” é uma sitor, arranjador e pianista. Para informações sobre a
narrativa sobre esse processo e suas consequências música popular brasileira, ver Marcondes (1999) e o
para as camadas baixas; uma narrativa cuja finali- Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
(disponível em <http://www.dicionariompb.com.br/>,
zação é resignadamente dolorida, revelando, pois, a
consultado em 25/02/2014).
paulistanidade dos descontentes, na contramão de
4 Compositor, cantor e violonista (1910-1937).
todo desenvolvimentismo.
É evidente que quando pensamos em regio- 5 Para um estudo etnográfico com base no modelo de
nalismo estamos necessariamente fazendo uma Bakhtin, ver Seitel (1999); para a compreensão desse
modelo e seu emprego no domínio musical, ver Me-
generalização. A paulistanidade começou a ser
nezes Bastos (2007).
forjada ainda no século XVIII, impulsionada
6 Adoniran foi registrado como João Rubinato. Com
dois séculos mais tarde pelas revoluções de 1930
dez anos, sua data de nascimento foi adulterada para
e 1932, quando a região elevou-se a um patamar
1910 para que pudesse trabalhar. Sobre sua vida e
superior em face das condições regionais brasilei- obra, ver Bento (1990), Campos (2004), Gomes
ras. Nesta época, emergem obras de importantes (1987), Moura e Nigri (2002), Mugnani Jr. (2002),
intelectuais, como Paulo Duarte, Guilherme de Rocha (2002). Sobre a canção, ver Carmo (2001).
ENSAIO SOBRE ADONIRAN 39
7 DicionarioEletrOnicoHouaiss da Língua Portuguesa, sica popular (Frith, 1986) articula-se com o texto
São Paulo, Objetiva, versão 1.0, 2001. de Foucault (2001) sobre a função-autor. Segundo
8 Disponíveis no site do Instituto Moreira Salles (<http:// Foucault, a propriedade sobre os textos literários é
ims.uol.com.br/>, consultado em 5/10/2012). a primeira marca da função. Na Inglaterra, nos anos
de 1920, não era comum remunerar as letras das
9 Miranda, além de maestro e arranjador, era cantor,
canções (Frith, 1989).
compositor, cavaquinista e bandolinista (Cf. Dicio-
nário Cravo Albin de Música Popular Brasileira, dis- 20 Sobre o conceito de versão e arranjo, ver Cano (2011)
ponível em <http://www.dicionariompb.com.br/>, e Domínguez (2011).
consultado em 8/2/2012). 21 Maria Beraldo Bastos sugeriu que provavelmente o
10 O arranjo de 1951 está no lado B do 78rpm da Conti- clarinetista do arranjo de 1951 tenha sido o também
nental 16468 (matriz 11335-1). Ali, o samba intitula- compositor e saxofonista Abel Ferreira (1915-1980).
-se “Saudade da maloca” e, ao nome de Adoniran, 22 Parece-me que também se alterna com o cavaquinho
segue-se, entre parênteses, o de Zé Cunversa, perso- um bandolim, mas confesso que minha audição do
nagem cômico de Adoniran quando trabalhava como regional não é precisa. Vale lembrar de que o próprio
ator de rádio. Miranda tocava os dois instrumentos,
11 Este arranjo, de 1955, ocupa o lado A do 78rpm da 23 Agradeço a Acácio Tadeu de Camargo Piedade e
Odeon 13855 (matriz 10553), onde os Demônios Marina Beraldo Bastos pelas conversas sobre a ques-
são identificados como conjunto vocal (Mugnaini Jr., tão das tópicas. Para dados sobre esse período na
2002, pp. 81, 203). história da música popular brasileira, Ver Menezes
12 O clarinete e o regional estão presentes em todo o Bastos (2005). Sobre os arranjadores, ver <http://
arranjo. maestrorochasousa.blogspot.ca/2009/08/o-arranjo-
-na-musica-popular-brasileira.html>, consultado em
13 Agradeço a Patrício de Lavenère Bastos pela ideia de
27/10/2012.
onomatopeias das vozes dos instrumentos, apesar de
não explorá-la aqui. Agradeço também a Allan de 24 Tais sentimentos traduzem profundamente o caráter
Paula Oliveira, Paulo Freire, Roberto Corrêa e Silvia da música popular brasileira, mas isso não resulta uma
de Oliveira Beraldo pelas conversas sobre a versão dos maneira de cantar piegas, como já tinha comprovado
Demônios da Garoa. Noel Rosa (ver Menezes Bastos, 1996).
14 A esse respeito, ver Ângelo (2009) e sua entrevista dis- 25 Disco EMI-Odeon número 064 422868.
ponível em <http://www.portalsaofrancisco.com.br/ 26 Ver “As memórias sentimentais de São Paulo”, resenha
alfa/adoniran-barbosa/adoniram-2.php>, consultado de Francisco Quinteiro Pires a Matos (2007), dispo-
em 7/10/2012. nível em <http://www.controversia.com.br/index.php?
15 A avaliação da primeira versão como um fracasso deve act=textos&id=1791>, consultado em 4/11/2-12. Cf.
ser relativizada, considerando a magnitude reduzida Matos (2007), para um estudo abrangente sobre Ado-
do consumo doméstico de discos nos anos de 1950 niran Barbosa.
no Brasil, então ouvidos através do rádio, e Adoniran 27 Agradeço a Allan de Paula Oliveira por chamar minha
já era bastante popular neste meio como ator cômico. atenção a esse respeito.
16 Disponível em <http://www.geocities.com/demonio- 28 Sobre o rádio em geral e a carreira de Adoniran como
sdagaroa/pagina4.htm>, consultado em 13/11/06. radioator em São Paulo, ver Maia (2007), Pereira
Este link – no qual constava o texto do qual faz parte (2001) e Silva (2010).
o trecho citado – não está mais acessível hoje, mas 29 Ver Menezes Bastos (2005) sobre o mercado musical
ainda é possível rastreá-lo no Google. brasileiro nos anos de 1950.
17 Disponível em <http://revistaepocasp.globo.com/ 30 Dados sobre a história demográfica do município de
Revista/Epoca/SP/0,EMI136921-15389,00-CAR- São Paulo disponíveis em <http://smdu.prefeitura.
TAS.html>. Trata-se de uma forte crítica do biógrafo sp.gov.br/historico_demografico/1950.php>, consul-
a uma reportagem sobre Adoniran publicada na re- tado em 12/12/2012. Sobre as migrações para São
vista Época em abril de 2010 (revista consultada em Paulo, ver o clássico da antropologia (Durham, 1973).
7/10/2012).
31 Ver Menezes Bastos (2005) para um estudo detido
18 Sobre a linguagem de Adoniran, ver Candido (1975). sobre a música – e a cultura em geral – nas comemo-
19 Grande parte da literatura sobre a autoria na mú- rações do IV Centenário.
40 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 84
Leme, Bia Paes (org.). (2010), Pixinguinha na pau- Piedade, Acácio Tadeu de Camargo. (2011),
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 201
Rafael José de Menezes Bastos Rafael José de Menezes Bastos Rafael José de Menezes Bastos
Palavras-chave: Adoniran Barbosa; An- Keywords: Adoniran Barbosa; Anthro- Mots-clés: Adoniran Barbosa; Anthropo-
tropologia da música; Arranjo; Versão; pology of music; Arrangement; Version; logie de la musique; Arrangements; Ver-
Interpretação. Interpretation. sion; Interprétation.
Este artigo analisa o samba “Saudosa This article analyzes from two perspec- Cet article analyse la samba “Saudosa
maloca”, de Adoniran Barbosa, a par- tives Adoniran Barbosa’s samba “Sau- maloca”, d’Adoniran Barbosa, à partir
tir de dois ângulos: primeira versão (de dosa maloca”: the first version (1951), de deux angles: la première version (de
1951), com arranjo de Nelson Miranda, arranged by Nelson Miranda, and the 1951), avec les arrangements de Nelson
e a versão arranjada pelo grupo Demô- version arranged by the group Demônios Miranda, et la version (de 1955) arran-
nios da Garoa (de 1955), que transfor- da Garoa (1955), which transformed the gée par le groupe Demônios da Garoa,
mou o samba num sucesso. A letra da samba into a great success. The lyrics of qui a transformé la samba en un suc-
canção narra um encontro dramático the song describe a dramatic encounter cès. Les paroles de la chanson racontent
entre um sem-teto e o establishment between a homeless and the real state’s l’histoire de la rencontre dramatique
imobiliário na São Paulo dos 1950, ca- establishment in the Sao Paulo of the entre un sans-domicile et l’establishment
racterizados pelo ufanismo econômico, 1950’s, a moment characterized by eco- immobilier dans la ville de São Paulo des
pela reinvenção da paulistanidade e pe- nomic overoptimism, the reinvention of années 1950, marqué par le chauvinisme
las comemorações do IV Centenário da paulistanidade, and the commemorations économique, la réinvention du caractère
cidade. O primeiro arranjo é marcado of the IV Centennial of the city of Sao pauliste et par les festivités du IVe Cente-
por um sentimento de tristeza e dor, Paulo. The first arrangement is marked naire de la ville. Le premier arrangement
com uma musicalidade que remete à by a feeling of sadness and pain, with a est marqué par un sentiment de tristesse
lamentação e à resignação. O segundo, musicality alluding to lamentation and et de douleur, avec une musicalité qui
ao contrário, é marcado por certa joco- resignation. The second, on the contrary, renvoie à la lamentation et à la résigna-
sidade e desdém, com uma musicalidade is characterized by certain jocosity and tion. Le second, au contraire, est marqué
que se reporta ao escárnio. O estudo disdain, with a musicality of derision. par une certaine ironie et dédain, avec
busca reconstituir os modelos nativos The study seeks to reconstruct the na- une musicalité qui se rapporte au mépris.
de compreensão da canção, com especial tive models of song comprehension, with L’étude tente de reconstituer les modèles
atenção às problemáticas do arranjo e das special attention to the issues of arrange- natifs de compréhension de la chanson,
maneiras de cantar e tocar. ments and ways of singing and playing. avec une attention particulière aux pro-
blématiques de l’arrangement et des ma-
nières de chanter et de jouer.