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Claude Dubar

A Socialização
Construção das Identidades Sociais

Colecção Ciências da Educação

Orientada por
Maria Teresa Estrela e Albano Estrela

Título: A Socialização
Construção das identidades sociais e profissionais

Autor: Claude Dubar

Tradução de: Annette Pierrette R. Botelho e Estela Pinto Ribeiro Lamas

Revisão técnica e científica: José Alberto Correia e João Caramelo

Executor gráfico: Bloco Gráfico

Editor: Porto Editora

Titulo da edição original: LA SOCIALISATION


Construction des identités sociales et professionnelles

(Edição original: ISBN 2-200-21620-3) (2.e édition revue)

*c* Armand Colin Éditeur, Paris, 1991,1995

Copyright para a Língua Portuguesa

*C* Porto Editora, Lda. - 1997

Rua da Restauração, 365


4099 PORTO CODEX - PORTUGAL

Reservados todos os direitos.


Esta publicação não pode ser reproduzida nem transmitida, no todo ou em
parte, por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocopia, gravação
ou outros, sem prévia autorização escrita do Editor.

Claude Dubar é professor de Sociologia na Universidade


de Versailles-Saint Quentin en Ivelines. Consagrou a sua
tese e numerosas publicações à formação contínua e à
inserção dos jovens. Animou várias investigações colectivas
no seio do LASTREE (CNRS, Universidade de Lille I) e do
CEREQ (Ministérios da Educação e do Trabalho) que
alimentaram esta síntese teórica.

Coordenou recentemente duas obras colectivas:


Cheminements professionnels et mobilités sociales (La
Documentation francaise, 1992) e Genèse et dynamique
des groupes professionnels (Presses Universituires de Lille,
1 994).

Por que razão se fala hoje de crise de identidades? Esta expressão


remete-nos para fenómenos múltiplos: dificuldade de inserção profissional
dos jovens, aumento da exclusão social, diluição das categorias que
servem para se definir e definir os outros...

Compreender como se reproduzem e se transformam as identidades sociais


implica esclarecer os processos de socialização através dos quais elas se
constroem e se reconstroem ao longo da vida.

A dimensão profissional das identidades adquire uma importância


particular. Porque se tornou um elemento raro, o emprego condiciona a
construção das identidades sociais; porque conhece mutações
impressionantes, o trabalho obriga a transformações identitárias
delicadas; porque acompanha cada vez mais frequentemente as evoluções do
trabalho e do emprego, a formação intervém nestes domínios identitários
muito para além do período escolar. Este livro fornece instrumentos de
análise, quadros teóricos e resultados empíricos que permitem perceber a
dinâmica em curso da socialização profissional e das identidades sociais.

Agradeço vivamente aos colegas que, ao criticarem as sucessivas versões


deste manuscrito, me obrigaram a uma maior clareza e rigor na minha
escrita: Béatrice Appay, Catherine Cailloux, Catherine Marry, Catherine
Paradeise, Pierre Doroy, Heari Mandras, Jean-René Treanton merecem
particular destaque nestes agradecimentos. Agradeço também a Martine
Laplanche, Violaine Lecerf Véronique Testelin que interpretaram e
corrigiram as diferentes versões do texto; a sua paciência e
profissionalismo tornaram possível este trabalho.

Reportório das Siglas

bep -- Brevet d 'Études Professiounelles (niveau V) --


Diploma de Estudos Profissionais (nível V)

btp -- Bãtiments et Travaux Publics -- Obras Públicas

bts -- Brevet de Technicien Supérieur (nivenu iii) -- Diploma de Técnico


Superior (nível iii)

cap -- Certificat d'Aptitude Professionnelle (niveau v)


-- Certificado de Aptidão Profissional (nível V)

cep -- Certificat d'Études Primaires -- Certificado de Estudos Primários

cereq -- Centre d'Études et de Recherches sur les Qualifications --


Centro de Estudo e de Investigações sobre as Qualificações

CNAM -- Conservatoire National des Arts et Métiers -- Conservatório


Nacional das Artes e Ofícios

cnrs -- Centre National de la Recherche Scientifique --


Centro Nacional da Investigação Cientifica

DEST -- Diplôme d'Études Supérieures Techniques (niveau II) -- Diploma de


Estudos Superiores Técnicos (nível II)

dut -- Diplôme Universitaire de Techologie (niveau III) -- Diploma


Universitário de Tecnologia (nível III)

eseu -- Examen Spécial d'Entrée à l'Université (nivenu IV) -- Exame


Especial de Entrada na Universidade (nível IV)

GLYSI -- Groupe Lyonnais de Socialogie Industrielle (CNRS-Lyon II) --


Grupo de Lyon de Sociologia Industrial (CNRS-Lyon II)

LASTREE -- Laboratoire de Sociologie du Travail, de


l'Éducation et de l'Emplei (CNRS-Lille I) -- Laboratório de Sociologia do
Trabalho, da Educação e do Emprego
(CNRS-Lille 1)

LEP -- Lycée d'Enseignement Professionnel -- Liceu de Ensino Profissional

LERSCO -- Laboratoire d'Études et de Recherches sur la Classe Ouvrière


(CNRS-Nantes) -- Laboratório de Estudos e de Investigação sobre a Classe
Operária (CNRS-Nantes)

LEST -- Laboratoire d'Économie et de Sociologie du Travail (CNRS) --


Laboratório de Economia e de Sociologia do Trabalho (CNRS)

MRT -- Ministère de la Recherche et de la Technologie --


Ministério da Investigação e da Tecnologia

PIRTTEM -- Programme Interdisciplinaire Technologie-Travail-Emploi-Mode


de vie -- Programa Interdisciplinar Tecnologia-Trabalho-Emprego-Modo de
Vida

PME -- Petites et Moyennes Entreprises -- Pequenas e Médias Empresas

OP -- Ouvrier Professiounel -- Operário Profissional

os -- Ouvrier Spécialisé -- Operário Especializado


Introdução

O termo "identidade" reapareceu tanto no vocabulário das ciências sociais


como na linguagem corrente. Um pouco por todo o lado. fala-se de "crise
das identidades"
sem se saber bem o conteúdo desta expressão: dificuldades de inserção
profissional dos jovens, aumento da exclusão social, mal-estar face às
mudanças, desagregação das categorias que servem para se definir a si
próprio e para definir os outros... Como em qualquer período que se segue
a uma crise económica de grande dimensão, a incerteza quanto ao futuro
domina todos os esforços de reconstrução de novos quadros sociais: os do
passado já não são pertinentes e os do futuro ainda não estão
estabilizados.

A identidade de alguém é, no entanto, aquilo que ele tem de mais


precioso: a perda de identidade é sinónimo de alienação, de sofrimento,
de angústia e de morte. Ora, a identidade humana não é dada, de uma vez
por todas, no acto do nascimento: constrói-se na infância e deve
reconstruir-se sempre ao longo da vida. O indivíduo nunca a constrói
sozinho: ela depende tanto dos julgamentos dos outros como das suas
próprias orientações e autodefinições. A identidade é um produto de
sucessivas socializações.

Esta noção de socialização apela para um esclarecimento, uma redefinição


e mesmo uma reabilitação. Ao longo da história das ciências sociais -
história curta se a compararmos com a das ciências da matéria ou da vida
--, o termo "socialização" foi utilizado em diversos sentidos, e adquiriu
conotações consideradas, por vezes, hoje como negativas ou ultrapassadas:
inculcação das crianças, endoutrinamento dos indivíduos, imposição de
normas sociais, constrangimentos impostos pelos poderes tanto ameaçadores
quanto anónimos... Esta situação levou a que certos sociólogos tentassem
banir esta noção do vocabulário científico da sua disciplina. Mas
suprimir uma palavra não elimina um problema central: como discernir a
dinâmica das identidades sem ter em conta tanto a sua construção
individual como social?

A primeira parte deste livro, concebida como uma iniciação, é consagrada


à apresentação sucinta de algumas grandes teorias centradas, parcial ou
totalmente, na análise dos processos de socialização. Ela constitui um
convite à (re)leitura de alguns autores e de textos importantes ela é
acompanhada pela apresentação esquemática de algumas :, investigações
recentes inspiradas nestas grandes correntes teóricas; finalmente, ela
culmina com a apresentação de uma problemática daquilo que poderia
constituir hoje as bases de uma teoria sociológica operatória da
construção das identidades.

Entre as múltiplas dimensões da identidade dos indivíduos, a dimensão


profissional adquiriu uma importância particular. Porque se tornou um bem
raro, o *emprego* condiciona a construção das identidades sociais; porque
sofreu importantes mudanças, o trabalho apela a subtis transformações
identitárias; porque acompanha intimamente todas as mudanças do trabalho
e do emprego, a *formação* intervém nas dinâmicas identitárias muito para
além do período escolar. A segunda parte apresenta algumas importantes
contribuições das ciências sociais no domínio especifico da socialização
profissional. Da sociologia das "profissões" nos EUA à economia dos
"mercados do trabalho", passando pelo estudo das "relações
profissionais", explora-se alguns dos mais importantes domínios da actual
investigação sobre a dinâmica das identidades profissionais.

A terceira parte apresenta uma síntese dos resultados empíricos de várias


investigações que, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, se realizaram
em França; apresenta uma tipologia das identidades salariais em fase de
reestruturação nas empresas e na sociedade francesas. Ela apoia-se tanto
em trabalhos recentes, por vezes acabados de realizar, como sobre
inquéritos mais antigos, agora reinterpretados à luz destes trabalhos
recentes. Nesta terceira parte, mostramos até que ponto a identidade
profissional se tornou num objecto importante da actual sociologia
francesa, num objecto que está sempre em construção e em debate.

Socialização e Construção Social


da Identidade

A socialização da criança na psicologia piagetiana e os seus


prolongamentos sociológicos

Aplicado à criança, o termo "socialização" designa um dos objectos


essenciais da psicologia genética. A literatura consagrada ao
desenvolvimento da criança é abundante e constitui um importante acervo
de resultados e de análises empíricas imprescindível a qualquer
teorização dos processos de socialização (1). Porém, é raro encontrar aí
reflexões epistemológicas sobre as condições de uma abordagem científica
e sobre os problemas colocados pela confrontação de pontos de vista
disciplinares (biologia, psicologia, sociologia).

(1) Entre as inúmeras sínteses de investigação sobre a socialização ta


criança, citamos, em língua francesa, a já muito antiga mas sempre
sugestiva realizada por Daval (1964) e outra mais recente de Doise e
Deschamps (1986); em língua inglesa, as de Erikson (1950) e de D. A.
Goslin (1979) e, mais recente, a de Bruner (1983).

É o caso do texto de J. Piaget, publicado na primeira parte dos *Études


sociologiques* e intitulado "L'explication en sociologie" (1965). Ele
aborda frontalmente a problemática das relações entre a explicação
sociológica e as explicações psicológicas e biológicas e desenvolve, no
que diz respeito aos fenómenos da socialização, argumentos sugestivos.
Estes argumentos constituem, sem dúvida, a primeira tentativa de superar
as oposições entre os pontos de vista psicológico e sociológico --
oposições fundadoras da sociologia, segundo Durkheim -- e a primeira
tentativa estimulante de proceder a uma definição de uma abordagem
sociológica da socialização que fosse complementar e não antagónica das
perspectivas psicogenéticas, nomeadamente daquela que Piaget construiu e
aperfeiçoou ao longo da sua obra. Esta (nova) abordagem da socialização
foi parcialmente utilizada tanto no campo da sociologia da educação como
no da sociologia política. :,

1.1. A Abordagem Piagetiana da Socialização

Piaget interessou-se prioritariamente pelo desenvolvimento mental da


criança e definiu-o como uma *construção* contínua mas não linear. O
desenvolvimento mental da criança realiza-se por etapas sucessivas e
constitui aquilo que Piaget designa por processo de equilibração, ou
seja, o processo que assegura "a passagem de um estádio de menor
equilíbrio a um outro de equilíbrio superior" (1964, p. 10). Este
processo activa dois elementos heterogéneos: *estruturas* variáveis,
definidas como "formas de organização da actividade mental", que é
simultaneamente cognitiva e afectiva; um *funcionamento* constante que
provoca a passagem de uma forma a uma outra através de um movimento de
desequilíbrio seguido de um restabelecimento do equilíbrio e a passagem a
uma nova forma.

Este desenvolvimento mental tem sempre uma dupla dimensão individual e


social: as estruturas através das quais circulam normalmente todas as
crianças são simultaneamente "cognitivas" (internas ao organismo) e
"afectivas", quer dizer, relacionais (orientadas para o exterior). Assim,
o reflexo de sucção do recém-nascido é simultaneamente a manifestação de
uma tendência instintiva e a expressão das primeiras emoções dirigidas
para a mãe ou para aquela (ou aquele) que a substitui. Para Piaget, estas
*estruturas* evolutivas que lhe servem para definir os estádios do
desenvolvimento da criança (cujo número varia de acordo com os escritos
do autor...) são indissociáveis das *condutas*, já não definidas em
termos *behavioristas* como simples reacções a estímulos externos (o
célebre esquema
S :o R analisado nomeadamente por Pavlov), mas entendidas como respostas
às *necessidades* resultantes da interacção entre o organismo e o seu
meio físico e social. Assim, qualquer acção (gesto, sentimento,
pensamento...) é concebida como uma tentativa para reduzir uma tensão, um
desequilíbrio entre as necessidades do organismo e os recursos do meio:
ela é finalizada em torno de um objectivo a atingir (restabelecer o
equilíbrio) e definida pelos instrumentos accionados para a realizar.
Esta acção consuma-se quando a necessidade é satisfeita, isto é, quando o
equilíbrio é (re)encontrado. Este modelo *homeostático* (o movimento
definido como restabelecimento de um equilíbrio com o ambiente), muito
difundido nesta época nas ciências da vida, conduz Piaget a conceber o
desenvolvimento da criança e, portanto, a sua socialização -- que
constitui um elemento
essencial daquele -- como um processo activo de adaptação descontínua a
formas mentais e sociais cada vez mais complexas.

Para cada estádio, esta adaptação é descrita por Piaget como a resultante
e a articulação de dois movimentos complementares ainda que de natureza
diferente:

-- a *assimilação* consiste em "incorporar as coisas e as pessoas


externas" às estruturas já construídas. Assim, a sucção é
prioritariamente, para o recém-nascido, um reflexo de incorporação bucal
do mundo (vivido como "realidade a sugar" de acordo com os termos de
Piaget) que o conduz a generalizar a conduta (ele chupa o seu polegar, os
dedos de outrem, os objectos que lhe são apresentados...) a tudo aquilo
que lhe dá :, prazer depois de na prática ter discriminado aquilo que
correspondia à sua necessidade vital (o seio da mãe, o biberão...). Da
mesma forma, o reflexo do sorriso é, em primeiro lugar, reservado a
algumas pessoas (quinta semana) antes de ser generalizado a qualquer
rosto humano. Mais tarde, transformar-se-á em expressão voluntária de um
sentimento diferenciado. Estas condutas envolvem, assim, formas de
assimilação especificas a cada um dos estádios de desenvolvimento da
criança: num determinado momento elas constituem uma modalidade de
relação com o mundo adaptada a um estádio de maturação biológica da
criança. Quando a criança evolui, tornam-se simultaneamente necessárias e
possíveis novas formas de assimilação;

-- a *acomodação* consiste em "reajustar as estruturas em função das


transformações exteriores". Assim, as mudanças do ambiente são fontes
perpétuas de ajustamentos: se se passar do seio materno ao biberão, o
reflexo de sucção modifica-se; os sorrisos modificam-se também de acordo
com as pessoas que se debruçam sobre o bebé... Estas variações contribuem
para aquilo a que Piaget denomina por "construção do esquema prático do
Objecto", que é uma condição para a descoberta activa da permanência dos
objectos (materiais ou humanos) mesmo quando eles estão ausentes. Estas
variações permitem, também, as estruturações do espaço e do tempo e a
emergência das modalidades sucessivas de reconhecimento das relações de
causalidade. Estes quatro elementos (esquemas práticos, espaço, tempo,
causalidade) entram na composição das estruturas mentais características
de cada um dos estádios significativos do desenvolvimento da criança.

Estas estruturas mentais são inseparáveis das formas relacionais pelas


quais elas se exprimem em relação ao outro. Assim, a cada um dos estádios
definidos por Piaget, podemos fazer corresponder formas típicas de
socialização que constituem modalidades de relação da criança com outros
seres humanos. Passa-se, deste modo, segundo o autor, do *egocentrismo*
inicial do recém-nascido caracterizado por "uma indistinção do Eu e do
mundo" à *inserção* terminal do adolescente escolarizado no mundo
profissional e na vida social do adulto. Entre estes dois estádios
extremos, a criança aprendeu, em primeiro lugar, a exprimir sentimentos
diferenciados graças à estruturação de percepções organizadas (e à
solicitação do meio envolvente); em segundo lugar, aprendeu a imitar os
seus semelhantes, diferenciando nitidamente o pólo interno (o Eu) do pólo
externo (o Objecto); em seguida, graças à palavra, aprendeu a praticar
trocas interindividuais, descobrindo e respeitando as relações de
*constrangimento* exercidas pelo adulto; finalmente, aprendeu a passar do
constrangimento à *cooperação*, graças ao domínio conjunto da "reflexão
como discussão interiorizada consigo mesmo" e da discussão como "reflexão
socializada com o outro", o que lhe permitiu, simultaneamente, adquirir o
sentido da justificação lógica e da autonomia moral (cf. quadro 1.1.). :,

Quadro 1.1.
Desenvolvimento mental e socialização em seis estádios
(2) segundo Piaget (1964)

(2) A partir dos finais dos anos 60, Piaget passou a referir-se a um
desenvolvimento em quatro estádios: sensório-motor (I II e III), pré-
operatério (IV), operatório concreto (V) e formal (VI).

:::::::
Os estádios de desenvolvimento (versão 1964) -- Dimensão individual:
estruturas mentais -- Dimensão social:
formas de socialização

I. Estádio dos reflexos -- Tendências instintivas - Egocentrismo inicial

II. Estádio dos primeiros habitus motores -- Percepções organizadas -


Primeiros sentimentos diferenciados

III. Estádio da inteligência sensório-motora -- Regulações elementares de


ordem prática -- Imitação como primeira "socialização da acção"

IV. Estádio da inteligência intuitiva -- Imagens e intuicões


representativas "génese do pensamento" -- Submissão aos adultos por
*constrangimento*

V. Estádio da inteligência concreta -- Passagem às operações:


Explicações pelo atomismo -- Sentimentos e práticas de *cooperação*

VI. Estádio da inteligência abstracta-formal --- Construção de teorias ;


Pensamento hipotético-dedutivo; Categoria do "possível" -- Inserção
social e profissional
::::::::

Esta passagem do constrangimento à cooperação, isto é, a passagem da


submissão à ordem social (parental e escolar) para a autonomia pessoal
através da cooperação voluntária (com os adultos e as outras crianças)
constitui um ponto essencial na análise piagetiana da socialização. É em
torno desta passagem que, desde 1932, na obra *Le Jugement moral chez
l'enfant*, Piaget define o núcleo duro da sua concepção de socialização e
a diferencia da de Durkheim.

Para melhor compreender esta concepção, sigamos o autor na descrição do


seu exemplo favorito: o jogo de berlindes.

"Um grupo de crianças joga aos berlindes. Quer do ponto de vista da


prática das regras, quer do da consciência destas, o comportamento das
crianças varia com o nível etário... Pode-se dizer que os mais pequenos
não jogam ao berlinde; manipulam as bolas tratando-as segundo esquemas
perceptivos e motores muito simples... A criança responde às propriedades
do objecto (forma, consistência, tamanho...) segundo alguns esquemas
corporais (empurrar, puxar, amontoar, etc.). A criança brinca sozinha
mesmo quando está em grupo. Não há cooperação, e não há, :,
rigorosamente, o sentimento de que uma ganha e a outra perde. Na
realidade, ela não tem consciência de que algumas jogadas são permitidas
e outras proibidas... Os maiores, pelo contrário, são totalmente
absorvidos pelo seu jogo. Se os interrogarmos sobre as regras, eles
respondem: "as regras foram feitas por nós... podemos mudá-las na
condição de estarmos de acordo, mas enquanto se mantiverem todos devem
respeitá-las." (Piaget, 1932).

Nesta obra da sua juventude, Piaget distinguia quatro estádios que


correspondiam a quatro concepções da norma:

-- o estádio "motor e individual" (antes dos 2 anos). Neste estádio, só


se pode falar de norma por referencia às "regras motoras";

-- o estádio "egocêntrico" (dos 2 aos 5 anos) que começa quando a criança


recebe do exterior o conjunto das regras codificadas. Neste estádio,
mesmo ao brincar em grupo, cada criança brinca para si. A confusão entre
o eu e o mundo exterior e a ausência de cooperação constituem um só e
mesmo fenómeno: o egocentrismo que só pode ser limitado pelo
constrangimento;

-- o estádio da cooperação emergente (7 aos 12 anos). Neste estádio, cada


jogador procura ganhar aos outros, o que provoca o aparecimento da
preocupação com um controlo mútuo e com a unificação das regras, as
quais, contudo, permanecem informais apesar de serem parcialmente
negociadas (jogada a jogada);

-- o estádio da codificação das regras (depois dos 12 anos). Neste


estádio, os jogadores tomam consciência da existência e da necessidade de
regras formais. No domínio intelectual, eles verificam a coerência dessas
regras e, no domínio moral, eles discutem a sua justificação.

Poder-se-ia, assim, associar estas quatro formas sucessivas da


socialização a quatro maneiras de jogar: uma forma gestual e motora que
só é regulada por uma repressão directa que pode ser afectuosa ("seu
maroto") ou violenta (um par de bofetadas); uma maneira solitária e
egocêntrica que só pode ser regulada pelo constrangimento ("se não vens
comer, quando chegares já não há nada..."); uma maneira cooperativa, mas
informal, que pode sempre degenerar e deve ser vigiada mais ou menos
discretamente ("não, não tens o direito de fazer isso..."; uma maneira
cooperativa formalizada e dinâmica que assenta na negociação recíproca e
na adaptação comum às situações: a regulamentação inclui neste caso a
consciência das regras sociais existentes e a capacidade de jogar
colectivamente de acordo com estas regras.

O próprio Piaget resume o processo geral da socialização da criança


através das quatro transformações seguintes (1964, pp. 71-75):

-- a passagem do respeito absoluto (aos pais) para o respeito mútuo


(crianças/adultos e crianças/crianças); :,

-- a passagem da obediência personalizada ao sentimento da regra: esta


torna-se. no último estádio, a expressão de um acordo mútuo, um
verdadeiro "contrato";

-- a passagem da heteronomia total à autonomia reciproca, que implica no


último estádio a fixação de sentimentos novos como "a honestidade, a
camaradagem, o *fair play*, a justiça";

-- a passagem da energia à vontade que constitui uma "regulação activa da


energia" (supondo uma hierarquização, nomeadamente uma hierarquização
entre dever e prazer).

No fim do processo de socialização da criança, "os valores morais


organizam-se em sistemas autónomos comparáveis aos agrupamentos lógicos".
Reencontramos aqui o "núcleo duro" da concepção piagetiana da
socialização: a reciprocidade entre estruturas mentais e estruturas
sociais, a correspondência, em cada estádio, entre as operações lógicas e
as acções morais, isto é, sociais: "a moral é uma espécie de lógica dos
valores e das acções entre indivíduos da mesma forma que a lógica é uma
espécie de moral do pensamento" (1964, p. 72).
1.2. Durkheim e Piaget: um debate inacabado

Na segunda parte da obra *Jugernent moral*..., Piaget envolve-se num


debate construtivo com Durkheim que se insere numa "confrontação das
teses essenciais da sociologia e da psicologia genética que dizem
respeito precisamente à natureza empírica das regras morais".

Este debate faz aparecer, em primeiro lugar, uma série de convergências


entre as primeiras análises de Piaget e as presentes, por exemplo, em
*L'Éducation morale* (Durkheim, 1902-1903) ou em *De la Division du
travail social* (Durkheim, 1893).

Piaget adopta a definição durkheimiana da educação entendida como


"socialização metódica da geração jovem" (Durkheim, 1911, ed. 1966, p.
92), precisando -- como, aliás, o faz Durkheim -- que esta socialização
não depende somente da geração precedente, mas também dos próprios
indivíduos. Cada geração deve socializar-se por si própria, tendo por
base os "modelos culturais transmitidos pela geração precedente"
(Durkheim, 1902-1903, ed. 1963, p. 4). Para ambos, a socialização é uma
"educação moral". Enquanto para Durkheim ela é, basicamente, uma
*transmissão* do "espírito de disciplina" assegurada pelo
constrangimento, complementada por uma "ligação aos grupos sociais" e
interiorizada livremente graças à "autonomia da vontade" (Durkheim, 1902-
1903), para Piaget, ela é, fundamentalmente, uma *construção*, sempre
activa e até interactiva, de novas "regras do jogo", implicando o
desenvolvimento autónomo da "noção de justiça" e a substituição de
"regras de constrangimento" pelas "regras de cooperação" (Piaget, 1932,
p. 419).

Piaget reconhece, aliás tal como Durkheim, que a socialização se baseou


historicamente no constrangimento e na conformidade "natural" a modelos
exteriores. Ele partilha a teoria do "pecado mortal" desenvolvida por
Durkheim (1893): "A existência da moral :, só pode ser assegurada se
houver sanções" que reforçam o sentimento moral na medida em que o
"pecado mortal" é "aquilo que ofende os estados fortes e definidos do
sentimento colectivo". Neste sentido, a socialização contém em si uma
dimensão repressiva: aqueles que transgridem abertamente as regras
aceites devem ser punidos e é essencial que as sanções exercidas sejam
proporcionais à gravidade dos crimes cometidos. Como escreveu Piaget, "a
exterioridade inicial das relações sociais desencadeia inevitavelmente um
certo realismo moral" (1932, p. 136). Se as regras, tal como as crenças e
os valores que as fundamentam, se impõem, fundamentalmente, do exterior
(tanto na criança como nas sociedades ditas "primitivas"), é também
preciso que as sanções "recaiam" sobre aqueles que as transgridem,
contribuindo assim para consolidar o respeito pelas regras pelos outros.

Piaget e Durkheim estão também de acordo no reconhecimento da


individualização crescente da vida social à medida que as trocas se
desenvolvem e se complexificam. A passagem de uma solidariedade mecânica
por "imitação exterior" para a solidariedade orgânica através da
"cooperação e complementaridade" (Durkheim, 1993) desenvolve a
individualização e a diferenciação das relações sociais. Ora, "a vida
social, à medida que se individualiza, torna-se mais interiorizada"
(Piaget, 1932, p. 138). É necessário, por isso, apelar para a autonomia
da vontade mais do que para o medo da repressão. A socialização torna-se,
assim, cada vez mais voluntária.

Onde Piaget se afasta de Durkheim é quando este estabelece uma


equivalência pura e simples entre os objectivos e os efeitos do
*constrangimento* externo e os da *cooperação* voluntária. Na realidade,
como assinalou Nisbet (1966, trad. 1984, pp. 114 e seguintes), Durkheim,
depois de na primeira parte *De la Division du travail social* ter oposto
as sociedades ditas "primitivas" apoiadas na solidariedade mecânica às
sociedades industriais apoiadas na solidariedade orgânica, relativiza
esta posição na segunda parte desta obra. Ele escreveu nomeadamente que
"a divisão do trabalho só pode ser consumada entre os membros de uma
sociedade já constituída... Embora a divisão do trabalho suponha a vida
social, esta pode existir para além daquela... Existem sociedades cuja
coesão é assegurada essencialmente pela comunidade de crenças e de
sentimentos e... foi destas sociedades que saíram aquelas, cuja unidade é
assegurada pela divisão do trabalho" (Durkheim, 1893, 8.a ed. 1967, pp.
259-261). Deste modo, Nisbet realça com pertinência que "no seguimento da
obra de Durkheim a sociedade tornou-se um conjunto complexo de elementos
sociais e psicológicos que, inicialmente, eram apenas específicos das
sociedades primitivas". De facto, "Durkheim considera que os atributos da
solidariedade mecânica são a característica permanente de *todos os
factos sociais*" (Nisbet, *id.*, p. 116). Sem ir tão longe, Piaget
constata e critica também o facto de, para Durkheim, o constrangimento
social característico da sociedade mecânica possuir a mesma função e
assegurar os mesmos efeitos que a cooperação, que é um atributo da
solidariedade orgânica, a saber, o desenvolvimento em cada um de uma
"consciência colectiva", simultaneamente, intrínseca e exterior ao
indivíduo. É esta assimilação que Piaget rejeita, não por :,
"psicologismo", mas porque ele não partilha da mesma concepção que
Durkyheim tem da sociedade moderna e não interpreta da mesma forma a
passagem das sociedades tradicionais às sociedades industriais: "as
nossas sociedades civilizadas contemporâneas tendem cada vez mais a
substituir a regra de constrangimento pela regra de cooperação". Faz
parte da essência da democracia considerar a lei como um produto da
vontade colectiva e não como emanação de uma vontade transcendente ou de
uma autoridade de direito divino" (Piaget, 1932, p. 419).

Ao contrário de Durkheim, Piaget estabelece, assim, um corte radical e


uma oposição efectiva entre as *relações de constrangimento*
fundamentadas nos laços de autoridade e no sentimento do sagrado
(sociedades tradicionais) e as *relações de cooperação* fundamentadas no
respeito mútuo e na autonomia da vontade (sociedades modernas). A
passagem das primeiras para as segundas é apresentada por Piaget como a
confluência de uma "evolução intelectual" e do "desenvolvimento moral"
que torna possível a construção voluntária de novas relações sociais que
englobam a evolução e o desenvolvimento das próprias crianças. O que
Durkheim não teve em conta é "que existem relações sociais específicas
aos próprios grupos infantis: as regras das crianças também são sociais.
Elas apoiam-se sobre outros tipos de relação de autoridade... e alguns
pedagogos questionam-se mesmo sobre a possibilidade de utilizar estas
regras nas aulas" (Piaget, 1932, p. 417).

Finalmente, entre Durkheim e Piaget existe uma divergência a propósito da


seguinte questão: poder-se-á ainda falar "da" sociedade a propósito das
sociedades modernas? DurkLeim pensa que sim e Piaget duvida: "a moral
apresentada ao indivíduo pela sociedade não é homogénea porque *a
sociedade em si não é única. (3) A sociedade é o conjunto das relações
sociais" (Piaget, 1932, id.). Ora, para Piaget os dois tipos de relações
precedentes (constrangimento/cooperação) são fundamentalmente diferentes,
razão pela qual ele não pode definir a socialização apenas em termos de
integração -- mesmo que activa ---numa sociedade unificada. O seu debate
com Durkheim deve ser situado na própria concepção do social, de forma a
que se possa esclarecer assim as condições de uma abordagem sociológica
da socialização.

(3) Sublinhado do autor.

(4) Isto é, a representação mais geral do que é "o social" na comunidade


dos especialistas de ciências sociais. Considera-se geralmente que há
dois grandes 'paradigmas" do social: o paradigma "holista" que considera
a sociedade como uma totalidade, um "organismo"; e o paradigma
"individualista" ou "atomista" que a considera como um conjunto de
indivíduos aut6nomos (Boudon, Bourricaud, 1982). De facto, a maioria dos
teóricos da sociologia combinam elementos retirados destes dois
paradigmas.

A concepção paradigmática (4) do social, de Piaget, só será explicitada


muito mais tarde, no texto citado no princípio deste capítulo e
intitulado "A explicação em sociologia" (1965). Situando-se na polémica
estéril que opõe G. Tarde e Durkheim, onde o primeiro f "entendia a
sociedade como o resultado da socialização dos indivíduos" assegurada por
imitação (1965, p. 28), e o segundo considerava a "consciência colectiva"
como uma substancia e uma causa, "um núcleo inconsciente de emanações
conscientes" (p. 29), Piaget rejeita esta oposição e qualifica a sua
posição de *relativista*, definindo aquilo que ele denomina de "todo
social": "nem uma reunião de elementos anteriores, nem uma entidade :,
nova, mas um sistema de relações, onde cada uma das relações, enquanto
relação, engendra uma transformação dos elementos que relaciona" (p. 29).
A posição de Piaget nem individualista-atomista, que define o social como
agregação de indivíduos, nem holista-organicista, que considera o social
como uma globalidade realista, pode ser qualificada de relacionista-
construtivista na medida em que ela considera a sociedade como "um
sistema de actividades cujas interacções elementares consistem em acções
que se modificam umas às outras de acordo com determinadas leis de
organização ou de equilibração" (pp. 29-30). A socialização pode, por
isso, ser definida como um processo descontinuo de construção colectiva
de condutas sociais que integra três aspectos complementares:

-- o aspecto cognitivo representando a estrutura da conduta e traduzindo-


se em *regras*;

-- o aspecto afectivo representando o energético da conduta e exprimindo-


se em *valores*;

-- o aspecto expressivo (ou "conativo") representando os significantes da


conduta e simbolizando-se em *signos*.

Nas suas investigações formais, Piaget não fornece traduções operatórias


destes três aspectos da socialização. Encontramos traduções sociológicas
diversas ao longo desta obra (cf. quadro 1.3.). Para Piaget, eles
constituem os materiais de base com os quais se estrutura o
desenvolvimento da criança e se constrói a sua socialização activa.

Esta construção assenta na correlação essencial entre estruturas sociais


e estruturas mentais, isto é, entre a socialização concebida como
construção de formas de organização das actividades e a socialização
concebida como modos de desenvolvimento dos indivíduos. Assim, o social
pode ser sempre analisado e reconstruído, tanto a partir da análise
"objectiva" das formas de organização colectiva e da sua génese, como a
partir da análise "subjectiva" dos conteúdos de representações mentais e
individuais e do seu aparecimento. A correspondência entre estas duas
abordagens baseia-se no paralelismo psicossociológico que postula a
reciprocidade entre as representações mentais -- interiorização das
estruturas sociais -- e as cooperações sociais - exteriorização das
estruturas mentais.

Este "paralelismo psicossociológico" explica a razão por que Piaget, nas


suas análises do desenvolvimento da criança, nunca pôde separar -- mesmo
por uma abstracção metodológica que teria sido legítima -- as formas
sociais de cooperação das formas lógicas de construção mental. Piaget não
só recusou sempre postular a anterioridade lógica ou cronológica das
estruturas sociais relativamente às estruturas mentais, como também nunca
realizou nenhuma dissociação metodológica de umas relativamente às
outras. "Assim, como ele escreveu, se o progresso lógico acompanha o da
socialização, dever-se-á admitir que a criança se torna capaz de
operações racionais porque o seu desenvolvimento social a torna apta à
cooperação ou dever-se-á admitir, pelo contrário, que são as suas
aquisições lógicas individuais que lhe permitiriam compreender os outros
e que a conduziriam assim à cooperação? Uma vez que estes dois tipos de
progresso se desenvolvem paralelamente, *a :, questão parece não ter
solução*, a não ser que eles constituam dois aspectos indissociáveis de
uma só e mesma realidade que é simultaneamente social e individual"
(1965, p. 158).

Compreende-se melhor a dificuldade experimentada pelo autor, quando, na


análise dos processos de socialização, procura precisar os objectos da
psicologia e da sociologia. Por vezes, ele inclui a primeira na segunda:
"a psicologia da criança constitui um sector da sociologia consagrado ao
estudo da socialização do indivíduo" (1965, p. 23). Outras vezes, afirma
a autonomia da perspectiva sociológica: "a análise sociológica dos factos
de socialização pressupõe um método novo incidindo sobre o conjunto do
grupo, considerado como sistema de interdependências construtivas"
(*id.*, p. 16). Ele chega mesmo a reconhecer, com humor, a superioridade
desta abordagem: "a sociologia possui o grande privilégio de situar as
suas investigações numa escala superior à da nossa modesta psicologia e,
por conseguinte, de dominar os segredos de que dependemos" (Piaget, 1966,
p. 248). Mas qual é este "novo método" que permite à sociologia "situar-
se numa escala superior"? Piaget nunca o clarifica. Nesta perspectiva, o
debate com Durkheim foi sempre inacabado...

Os seguidores de Piaget apenas constataram que "Piaget não criou um


paradigma psicossociológico do desenvolvimento cognitivo" (Doise, 1982).
Se a sua concepção relacionista do social é claramente explicitada do
ponto de vista teórico e se demarca da de Durkheim, a verdade é que ela
continua sem tradução metodológica: no objecto "socialização da criança"
Piaget não realizou a distinção entre um ponto de vista psicológico,
centrado nas estruturas mentais, e um ponto de vista sociológico,
focalizado nas formas sociais de cooperação. Será que outros o fizeram
depois dele? Será possível construir uma abordagem sociológica de
inspiração piagetiana?
1.3. Uma aplicação em sociologia da educação

Em que medida esta teoria do desenvolvimento psicogenético como


equilibração pode servir a análise sociológica? Não será que ela se opõe
à abordagem "clássica" da sociologia da educação, que, por exemplo,
realça as desigualdades sociais de sucesso escolar e de inserção
profissional, as determinações de origem social sobre o nível escolar e a
posição social? Não voltaremos com Piaget a cair numa dessas
pseudoteorias do "homem médio" já criticadas por Durkheim (1987) na sua
polémica com G. Tarde e com as suas explicações através da imitação?

Podemos encontrar elementos interessantes de resposta a estas questões


numa investigação recente realizada por um investigador em psicologia,
que se reclama explicitamente de Piaget e que procura esclarecer alguns
mecanismos responsáveis pelas desigualdades sociais de sucesso escolar.
Através de uma pesquisa empírica, J. Lautray procurou confirmar a
hipótese de que "as condições de vida e de trabalho ligadas ao estatuto
socioeconómico dos pais determinam as práticas educativas que, por sua
vez, influenciam o :, desenvolvimento intelectual da criança" (Lautray,
1984, p. 18). Para operacionalizar esta hipótese. Lautray, a partir de
uma amostra de crianças de escola elementar, identificou três tipos de
estruturação do ambiente familiar: uma estruturação fraca, correspondendo
à ausência de regras e de previsibilidade que é pouco favorável à
reestruturação em caso de desequilíbrio; uma estruturação rígida,
constituída por regras fixas e constrangedoras e, por isso, pouco
favorável ao desequilíbrio inicial necessário ao desenvolvimento; uma
estruturação flexível, correspondendo a regras condicionais favoráveis
simultaneamente ao desequilíbrio e à reestruturação. Ele estabelece a
seguinte relação: "quanto mais alta for a profissão do pai na hierarquia
social, mais flexível é o tipo de estruturação, e quanto mais baixa for a
profissão, mais rígido será o tipo de estruturação" (*id.*, p. 115). Ele
demonstrou, finalmente, que, "do ponto de vista do estádio atingido no
seu desenvolvimento operatório, as crianças educadas num ambiente
familiar flexível estão em avanço relativamente aos outros dois grupos"
(*id.*, p. 214). Referenciando-se explicitamente ao processo de
equilibração das estruturas cognitivas de Piaget, ele procurou
estabelecer deste modo uma dupla relação entre, por um lado, o ambiente
educativo familiar e o sucesso escolar das crianças e, por outro, entre o
ambiente familiar e "o papel dos pais no sistema de produção".

Esta tentativa apoia-se numa série de hipóteses causais que se pode


explicitar da seguinte forma (cf. esquema 1.2.):

-- a verificação de uma relação estatística entre o sucesso escolar das


crianças (medida aqui pelo facto de ela estar adiantada ou em atraso na
escolaridade primária) e a posição social dos seus pais (medida através
do grupo socioprofissional do pai) pode ser decomposta recorrendo a uma
variável intermediária: o tipo de estruturação do ambiente familiar
(medido através de um questionário que permitiu dividir as famílias em
três tipos: fraco/flexível/rígido);

-- a relação estatística verificada entre sucesso escolar e tipo de


estruturação familiar pode ser interpretada através do esquema teórico de
equilibração das estruturas cognitivas (Lautray, p. 237): "um ambiente
familiar apresentando em simultâneo perturbações capazes de suscitarem
desequilíbrios e regularidades capazes de permitirem reequilibrações
(flexíveis) parece mais favorável ao processo de reconstrução de novas
estruturas mentais que os ambientes que são ricos em regularidades, mas
pobres em perturbações (fracas)". Se os alunos pertencentes a fami1ias em
estraturação flexível estão frequentemente mais "adiantados" que os
outros, é porque o seu ambiente familiar facilita o desenvolvimento
mental que se exprime através do seu sucesso escolar;

-- a relação estatística verificada entre o tipo de estruturação familiar


e o estatuto social medido pela posição socioprofissional do pai (as
famílias "flexíveis" têm muitas vezes um estatuto social elevado) pode
ser interpretada recorrendo à hipótese seguinte os pais transferem para o
universo familiar os modos de organização e de estruturação das tarefas
que regem o seu trabalho profissional. As famílias situadas :, na base da
escala social (pais operários ou empregados) adoptam uma estruturação
rígida porque as tarefas profissionais dos pais (as do pai pelo menos)
são "concebidas por outros e directamente submetidas ao controlo
hierárquico" sendo, portanto, rígidas. As famílias situadas no topo da
escala (quadros das empresas, patrões ou profissões liberais) adoptam uma
estruturação flexível porque as suas tarefas profissionais implicam
iniciativas e responsabilidade sendo, portanto, estruturadas de uma forma
flexível.

Esquema 1.2.

Esquema explicativo desenvolvido por J. Lautray (1984)

:::::::::
Posição social dos pais
*
*
*
Estatuto
socioprofissional
do pai (CSP)
(alto/médio/baixo)

:o Causalidade

Estruturação das
tarefas e dos papéis na
divisão do trabalho

Ambiente familiar
*
*
*
Tipo de
estruturação das
regras educativas
(flexível/rígido/fraco)
:o Correlação

Desenvolvimento mental como


processo de equilibração

Sucesso escolar dos filhos


*
*
*
Posição ao longo da
escola primária
(adiantado/na altura
certa/atrasado)
*** Indicador
::::::::::

Considerando as correlações estatísticas postas em evidência, as


variáveis intimamente a elas ligadas e a explicação causal de conjunto,
verifica-se que, entre elas, surgem hipóteses explicativas complexas que
exigem ser traduzidas e testadas empiricamente. A este respeito, podemos
interrogar-nos acerca dos pontos seguintes:

-- o que é que mede, de facto, o sucesso escolar ou mais concretamente o


facto de se estar avançado ou atrasado na escola primária? Será que o
sucesso sanciona um nível (estádio?) de desenvolvimento mental na criança
ou um grau de adequação entre as regras, os valores e os signos (tipo de
linguagem e dependência da linguagem) do universo familiar e dos
universos da escola? As pesquisas realizadas a este propósito pelo
sociólogo inglês Basil Berustein mostram a grande importância que o
código linguístico que rege as comunicações no seio da família (e
nomeadamente entre a mãe e as crianças) tem no sucesso escolar das
crianças. As crianças de origem popular, que utilizam um "código
restrito", encontram-se muito mais frequentemente em situação de
insucesso escolar do que aquelas que utilizam, no universo familiar, um
"código generalizado" que supõe uma relação com a língua (de tipo :,
abstracto, formal, distanciado...) valorizada pela escola (Bernstein,
1971). Sem serem contraditórias com as interpretações de Lautray, estas
análises evitam a noção de "desenvolvimento mental" para se centrarem
exclusivamente nas *formas de comunicação* interpretadas em termos de
cultura e de poder e não em termos cognitivos (cf. capítulos II e III);

-- quais são os pressupostos da hipótese de que os universos


profissionais dos pais (principalmente as do universo profissional do
pai) se transferem para a família e para a educação da criança? Para além
de implicar uma representação muito simplificada do funcionamento da
divisão do trabalho (de tipo "taylorista"), esta hipótese pressupõe a
existência de uma correspondência estreita entre condições de vida
(familiar) e condições de trabalho (profissional), não só no plano
material (remuneração e nível de vida), mas também no plano social
(organização do trabalho/organização doméstica). Ela pressupõe, portanto,
uma fraca autonomia da esfera familiar em relação à do trabalho
profissional. Não será este pressuposto contraditório com a posição de
Piaget que afirma a crescente multiplicidade dos tipos de relações
sociais e a ausência de unidade do funcionamento social? Não poderão as
normas familiares ser construídas em oposição às do universo profissional
(do pai)? Não terão as normas familiares mais relações com as normas que
regem as fami1ias dos pais (da mãe) do que com aquelas que estruturam o
trabalho profissional (do pai)? As recentes investigações no que se
refere à influência do nível de instrução e da origem social das mães
sobre o sucesso escolar dos filhos (Establet, 1988) mostram que as
mudanças biográficas e culturais de uma geração para a outra influenciam
os resultados escolares dos filhos tanto, e até mais, do que as condições
económicas dos pais. O inquérito realizado entre 1962 e 1972, sob a
direcção de A. Girard, junto de uma *coorte* de alunos que terminaram a
escola primária em França, puseram em realce esta influência: para
rendimentos iguais, as habilitações dos pais estão nitidamente
correlacionadas com o sucesso escolar das crianças, enquanto o inverso
não é verdadeiro: para as mesmas habilitações, os rendimentos das
fami1ias exercem pouca influência no rendimento escolar das crianças (P.
Clerc, 1964).

Embora possamos considerar como globalmente verdadeiro, como conclui J.


Lautray, que "são as mesmas pessoas as que têm as condições de vida e as
condições de trabalho mais constrangentes," (1984, p. 2403 e que "são as
crianças cujos pais têm as condições de vida mais constrangentes aquelas
que têm menor êxito escolar", não se pode inferir dai que as condições
económicas dos pais determinam directamente o desenvolvimento intelectual
das crianças. Para além dos mecanismos que, num dado momento, regem a
organização familiar, existem outros que influenciam a estruturação
cognitiva das crianças. As formas e conteúdos de comunicação entre filhos
e pais (nomeadamente as mães) têm tanta influência como as regras da vida
em comum. Estas regras não podem também ser deduzidas directamente das
tarefas profissionais realizadas pelos pais (nomeadamente o pai): :, elas
derivam, também, dos modelos culturais transmitidos de uma geração para a
outra, e resultam do tipo de formações seguidas pelos pais (nomeadamente
pelas mães).

A pesquisa de J. Lautray representa, no entanto, uma tentativa


interessante de aplicação dos esquemas piagetianos numa perspectiva
sociológica. Ela constitui uma tradução empírica do processo de
equilibração enquanto processo de construção de estruturas mentais
dependentes das condições sociais: para passar de uma forma de relações
para outra, é necessário poder mudar as regras anteriores bem como a
relação com estas regras. E necessário, por isso, estar inserido num
ambiente "flexível", mas estruturante: a capacidade de construir na
família este tipo de "meio" de socialização depende das condições de
vida, dos valores e do sistema educativo familiar que constituem, para
Lautray, as três dimensões dos seus tipos de estruturação do ambiente
familiar. A socialização da criança depende muito das condições sociais
-- tanto familiares como escolares -- da sua construção: analisá-las e
medir os seus efeitos constitui o objecto tradicional da sociologia da
educação (cf. capítulo III).

1.4. Uma transposição para a socialização política

No preâmbulo da exposição dos resultados de uma pesquisa sobre o universo


político das crianças, A. Percheron (1974) desenvolve a definição de uma
"nova" abordagem dos fenómenos da socialização, que se inscreve também na
continuidade da problemática piagetiana, e na sua sociologização
operatória. Criticando a abordagem da socialização de Durkheim, esta nova
abordagem propõe uma definição da socialização entendida como aquisição
de um *código simbólico* resultante de "transacções" entre o indivíduo e
a sociedade (Percheron, 1974, p. 25). O termo transacção constitui uma
transposição directa da equilibração piagetiana: "qualquer socialização é
o resultado de dois processos diferentes: processo de assimilação e de
acomodação. Pela assimilação, o sujeito procuraria modificar o seu
ambiente para o tornar mais conforme aos seus desejos e diminuir os seus
sentimentos de ansiedade e de intensidade; pelo contrário, pela
acomodação, o sujeito teria tendência a modificar-se para responder às
pressões e aos constrangimentos do ambiente". Desta problemática de base,
A. Percheron retira um conjunto de consequências que constituem, segundo
ele, a problemática da socialização política:

1. A socialização é um processo interactivo e multidirecional: pressupõe


uma *transacção* entre o socializado e os socializadores; não sendo
adquirida de uma só vez, ela passa por renegociações permanentes no seio
de todos os subsistemas de socialização. Como afirma A. Percheron, "a
socialização assume a forma de um acontecimento, de um ponto de encontro
ou de compromisso entre as necessidades e os desejos do indivíduo e os
*valores* dos diferentes grupos com os quais ele se relaciona" (1974, p.
26).

2. A socialização não é apenas, nem fundamentalmente, transmissão de


valores, normas e regras, mas "desenvolvimento de uma dada *representação
do mundo*", nomeadamente de mundos especializados", neste caso, o mundo
político. Esta representação não é imposta de uma forma acabada pela
família de origem ou pela escola, mas cada indivíduo "constrói-a
lentamente, utilizando imagens retiradas das diferentes representações
existentes, que ele reinterpreta para formar um todo original e novo"
(*idem*). Certamente que existem sistemas tipificados de "representações
automáticas" que permitem "respostas rápidas e estereotipadas"
(Moscovici, 1972, p. 282), mas o indivíduo reutiliza-os de acordo com as
suas aspirações e experiências.

3. A socialização não é, fundamentalmente, o resultado de aprendizagens


formalizadas, mas o produto, constantemente reestruturado, das
influências presentes ou passadas dos múltiplos agentes de socialização.
Esta "*socialização latente*" é muitas vezes impessoal e mesmo não
intencional: se se pode falar de aprendizagem é de uma aprendizagem
informal e implícita cujo "papel é de tal forma importante que é ela que
alarga a influência do ensino e da maioria das mensagens da sociedade"
(*id.*, p. 27).

4. A socialização é essencialmente *uma construção lenta e gradual de um


código simbólico* que não constitui, como em Durkheim, um conjunto de
crenças e de valores herdados da geração precedente, mas um "sistema de
referência e de avaliação do real" que permite "comportar-se de uma certa
forma, numa dada situação". Reactualizando a abordagem piagetiana,
mobilizando os resultados mais seguros da psicolinguística e aplicando-os
ao campo da política, A. Percheron realça "que nunca há uma relação
'objectiva' com o político e que a significação de qualquer conceito e de
qualquer noção constrói-se através da sua relação com outras noções, após
uma série de mediações e de transformações: não há objecto, lei ou
partido político, fora das representações que subjazem a estes conceitos
e não há representações fora do conjunto das atitudes que organizam
qualquer apreensão do real" e, portanto, nos permitem orientarmo-nos.
Assim "socializar-se é aprender a representar um significado (político
neste caso) com a ajuda de um dos múltiplos significantes que serve à sua
representação" (*id.*, p. 37).

5. A socialização é, enfim, um processo de identificação, de construção


de *identidade*, ou seja, de pertença e de relação. Socializar-se é
assumir o sentimento de pertença a grupos (de pertença ou de referência),
ou seja, "assumir pessoalmente as atitudes do grupo que, sem nos
apercebermos, guiam as nossas condutas" (*id.*, p. 32). A. Percheron
chama a atenção para uma aquisição essencial da antropologia cultural
(cf. capítulo II): o sinal decisivo de pertença ao grupo é a aquisição
daquilo que Sapir chamava "saber intuitivo" (1967, t. 1, p. 41) e que
Halbwachs designava de acordo com a interessante fórmula "começar a
pensar com os outros" (1950, p. 48). Este saber implica assumir-se, pelo
menos parcialmente, o passado, o presente e o projecto do grupo "tal como
eles se exprimem no código simbólico comum que funda. menta a relação
entre os membros" (Percheron, *id.*, p. 32). :,

Mas qualquer abordagem empírica de identidade torna-se particularmente


complexa pelo facto de "não haver uma identificação única" dos indivíduos
(cf. capitulo V). A criança tem de construir a sua própria identidade
através de uma integração progressiva das suas diferentes identificações
positivas e negativas, quer devido à multiplicidade dos grupos de
pertença ou de referência, quer devido à ambivalência das identificações:
ambivalência entre o desejo de ser como os outros, aceite pelos grupos de
que se faz parte ou aos quais se quer pertencer, e a aprendizagem da
diferença ou o desejo de oposição àqueles grupos. Como afirmava Lacan "o
eu é um objecto comparável a uma cebola; poderíamos descascá-lo e
encontraríamos as sucessivas identificações que o constituem" (1953,
1981, p. 144).

Esta integração das identidades depende certamente do "sistema relacional


do sujeito" (Percheron, *id.*, p. 34), mas ela só se manifesta através da
coerência de uma linguagem, isto é, através da estruturação dos signos e
dos símbolos que constitui, no fim de contas, "a modalidade especifica da
existência de um conjunto de símbolos que permite à linguagem estar em
relação com um dominio de objectos" (Foucault, 1969, p. 125). Eis a razão
pela qual, tendo definido a socialização política da criança como um
processo de construção de uma identidade, A. Percheron opta por estudar
"alguns aspectos dos fenómenos e processos de socialização recorrendo ao
estudo da constituição do vocabulário político das crianças, do
desenvolvimento das representações que a ele se associam e, sobretudo,
recorrendo à organização do vocabulário em dimensões específicas" (*id.*,
pp. 37-38).

Quadro 1.3.
Categorias de análise da socialização de A. Percheron reutilizando J.
Pinget

:::::::
Categorias de análise da socialização:
Processo essencial

PIAGET:
Equilibração adaptações sucessivas entre o Eu e o Mundo

PERCHERON:
Transacção Indivíduo/instituições:
compromisso entre desejos individuais
e valores colectivos

Categorias de análise da socialização:


Domínios distintos e articulados
PIAGET:
Cognitivo :o regras
Afectivo :o valores
Expressivo :o signos

PERCHERON:
Pertença + Relação
Identidade social

Categorias de análise da socialização:


Resultado

PIAGET:
Estruturação de uma inteligência formal
permitindo a construção de
um programa de vida
"possível"

PERCHERON:
Construção/selecção de um
código simbólico "especializado" :,
::::::::::

A partir do que foi dito, vê-se claramente como é que a tentativa de


tornar operatória uma abordagem da socialização, previamente definida de
uma forma muito "piagetiana" (cf. quadro 1.3.), conduz a uma forma
específica de análise da linguagem aqui análise estatística do
vocabulário político em crianças dos 10 aos 15 anos. destinada a
discernir as linhas de força, as dimensões essenciais do *campo das
representações políticas*.

É que a organização das representações -- a estrutura do vocabulário


político neste caso -- permite discernir, simultaneamente, a estruturação
objectiva do campo político, referenciando os sistemas de palavras às
posições no espaço em função dos usos linguisticos das diversas "forças
políticas", e as estruturações subjectivas das diferentes categorias de
crianças referenciando-as às características sociais (profissão do pai,
local de habitação, etc.), psicológicas e biológicas (nível etário)
destas crianças.

Os resultados empíricos da investigação de A. Percheron confirmam uma


hipótese importante: a estruturação do vocabulário político das crianças
depende tanto da idade como das características sociopolíticas do meio
ambiente. Entre os 10-11 anos e os 13-15 anos produzem-se reorganizações
significativas que manifestam uma actividade de reestruturação simbólica
por parte das próprias crianças. Tanto as representações como as escolhas
políticas não são transmitidas e constituídas de uma vez para sempre;
constroem-se como se fossem rearranjos periódicos, resultantes,
simultaneamente, de novas assimilações de elementos retirados dos
diversos sectores do ambiente
(família, escola, pares, área residencial, freguesia, etc.) e de
acomodações às evoluções desses sectores, que permitem reorganizar de
forma suficientemente coerente os elementos (palavras, fórmulas,
posições, símbolos...) de um sistema de representações políticas cada vez
mais interiorizado e constitutivo da identidade social a ser construída
pela própria criança. Neste sentido, a pesquisa de A. Percheron
desenvolve uma abordagem de tipo piagetiana, prolongando-a
sociologicamente de forma a que a identidade em construção é encarada
como uma componente de pertença social (cf. capitulo V).

1.5. Uma perspectiva "genética" e "restrita" da socialização

A teoria piagetiana da socialização da criança, tanto psicológica como


sociológica, permite, finalmente, uma dupla ruptura, necessária a
qualquer perspectiva operatória dos factos de socialização:

-- uma ruptura com uma concepção da "formação" (5) encarada como


inculcação de regras, normas ou valores por parte das instituições junto
de indivíduos passivos que assim são progressivamente modelados por estes
esquemas de pensamento e de :, acção. É esta concepção. anunciada por
qualquer perspectiva funcionalista da socialização (cf. capítulo II), que
constitui uma espécie de paradigma simplista e redutor -- que Boudon e
Bourricaud (1982, p. 483) chamam de socialização-condicionamento -- e que
implica, simultaneamente, uma representação substancialista das
instituições (aparelhos de socialização) e uma concepção determinista e
mecanicista das práticas individuais (comportamentos aprendidos);

(5) Utilizaremos, às vezes, o termo "formação" como sinónimo de


"socialização" ainda que em França este termo seja muitas vezes associado
à ideia de aprendizagem de tipo escolar, de cursos "formalizados" e
organizados por instituições para ensinar saberes a indivíduos
considerados ignorantes. Mas todas as investigações cientificas sobre a
socialização mostram que esta representação está muito afastada dos
processos reais de aprendizagem socializada.

-- uma ruptura com uma representação linear e unificada da formação


entendida como acumulação de conhecimentos ou progressão contínua das
competências. As noções de "estádio" e de processo de equilibração
reenviam para uma concepção dinâmica da socialização da criança como
desestruturação e reestruturação de equilíbrios relativamente coerentes,
mas provisórios: a passagem de uma coerência para outra implica uma
crise" e a reconstrução de novas formas de transacção
(assimilação/acomodação) entre o indivíduo e o seu meio social.

Esta passagem de uma forma de equilíbrio para outra implica uma primeira
fase de desestruturação que corresponde a uma crise das formas de
transacção anterior, uma segunda fase de desequilíbrio que corresponde a
uma acomodação sem assimilação (simples adaptação sem reequilibração) ou
a uma assimilação sem acomodação (simples crescimento sem reequilibração)
e uma última fase de reestruturação que corresponde a um novo equilíbrio
dos dois processos. Este "modelo" pode ser considerado como o contributo
mais importante de Piaget para a análise dos processos da socialização.

No entanto, ele deixa em aberto uma questão fundamental: dever-se-á


limitar o processo de socialização assim concebido às crianças e
considerar a adolescência como o período biográfico de consumação desse
processo? No contexto socioeconómico da época, esta posição era defendida
por Piaget pelas razões seguintes:

-- o estádio de inteligência formal é considerado como tendo sido


atingido, por uma maioria dos adolescentes, no momento em que se inserem
na actividade profissional: num contexto em que as competências
necessárias para o primeiro emprego apelam essencialmente para as
capacidades de raciocínio adquiridas no final da escolaridade, o
equilíbrio pode realizar-se na e pela inserção profissional;

-- as características sociocognitivas dos adolescentes ao entrar na vida


activa estruturam o conjunto do percurso profissional ulterior: as
mudanças significativas de situação de actividade são raras e os
estatutos adquiridos na entrada valem para o conjunto da vida activa. As
relações socioafectivas que se ligam à esfera familiar e à esfera
profissional formam um conjunto coerente que assegura aos adolescentes
uma integração espontânea no meio social familiar, estruturante para a
personalidade que se tornou adulta.

O que é que acontecerá quando não se verificam as condições sociais que


permitiam a equilibração das actividades durante a adolescência? O que se
passará quando as organizações de trabalho modificam as suas exigências,
excluem uma fracção dos jovens e :, transformam as suas regras de
funcionamento? Como pensar a socialização quando a inserção no primeiro
emprego se torna precária ou provisória para inúmeros jovens e quando as
mudanças de emprego, de ofício ou de profissão se multiplicam ao longo da
vida activa? Quais as consequências da dissociação crescente entre as
esferas da actividade social e da não coincidência sistemática dos
acontecimentos (saída da escola, entrada numa actividade estável.
casamento). que marcam a entrada no "estádio terminal" de Piaget?

Poder-se-á responder a estas perguntas de várias formas. que têm


incidências diferentes sobre a própria concepção de socialização
entendida como processo "genético .

A primeira consiste em considerar que estas transformações invalidam o


tratamento piagetiano da socialização no seu conjunto. E o sentido, por
exemplo, da crítica que um comentador de Piaget (Furth, 1981, pp. 15, e
seguintes) levanta quando escreve: as condições de socialização na
família, já não se enquadrando funcionalmente com as condições de
filiação nas organizações, geram problemas insolúveis aos jovens... a
crise da adolescência torna-se aguda e durável devido às disparidades
entre competências requeridas, disposições adquiridas e motivações
presentes". É por isso que, segundo este autor, os processos descritos
por Piaget "já não podem aplicar-se às condições sociais, radicalmente
diferentes daquelas que as tinham gerado". Devido à transformação das
formas de produzir e das formas sociais anteriores, o processo de
socialização ter-se-ia "transformado profundamente" e já não se
enquadraria "nos pressupostos da abordagem de Piaget". Em particular, o
processo de socialização teria tendência a "envolver a totalidade da vida
dos indivíduos", pondo assim em causa "a ideia da existência de um
estádio terminal" e "a própria ideia de estádio". A abordagem de Piaget
estaria assim historicamente ultrapassada e deveria ser substituída por
uma outra problemática.

A segunda, mais fecunda, consiste em conservar o "núcleo duro" da teoria


piagetiana, ou seja, a sua concepção da forma geral e dos mecanismos de
base do processo de socialização: descontínua, actuando por
desequilíbrios e reequilíbrios, implicando um duplo movimento de
acomodação e de assimilação, ligando estruturas lógicas e formas sociais
de cooperação. Este processo deve passar a ser concebido como permanente
e mais complexo: permanente, porque a socialização já não acaba com a
entrada no mercado do trabalho (acabamento do "adulto médio" segundo
Piaget), mas prolonga-se durante toda a vida segundo o mesmo mecanismo de
base (equilibração); mais complexo, porque já não se pode falar de
"estádio terminal" e porque a noção de estádio deve, em consequência
disto, ser relativizada. Segundo o que parece, foi o que Piaget e os seus
colaboradores fizeram no último período levando em conta as mudanças
socioeconómicas: "os estádios da teoria piagetiana do desenvolvimento
são... períodos de estabilidade relativa... que comportam todo o tipo de
flutuações que nascem de situações mutáveis com as quais o indivíduo se
confronta" (Piaget, Garcia, 1987, p. 157). Na síntese consagrada aos
adultos, G. Malglaive, ao comentar este texto, acrescenta: "a referência
aos estádios, sendo problemática em relação à criança, torna-se
enganadora ou até mesmo nefasta em relação ao adulto" (Malglaive, 1990,
p. 157). As conclusões de trabalhos recentes de psicologia cognitiva
reintroduzem "o mundo simbólico" como mediação essencial entre as
estruturas :, lógicas e as operações concretas, servindo-se,
nomeadamente, da noção de "Sistemas de Representação e de Tratamento", de
J.-M. Hoc (1987). Estes trabalhos permitiram precisar melhor o
funcionamento das estruturas lógicas. Piaget e Garcia escrevem: "cada
período ou cada estádio têm problemas específicos que o sujeito é capaz
de apreender... Em cada período... o sujeito não utiliza uma única
relação lógica mas várias. A linha de construção de cada estrutura lógica
segue um caminho complexo que lhe é específico e as linhas do
desenvolvimento não coincidem. *Os estádios de desenvolvimento não são
determinados pelo desenvolvimento das relações lógicas enquanto tais* (6)
(qual deveríamos privilegiar?). Dizer que determinadas estruturas
características são activadas em cada estádio não é, contudo, afirmar que
o estádio é definido por uma única estrutura lógica" (Piaget, Garcia,
*id.*, p. 158). A cronologia dos estádios torna-se, então, muito mais
incerta: algumas crianças -- assim como alguns adultos -- podem ter êxito
em provas "formais" e falhar em provas "concretas"; podem mobilizar
estruturas formais em determinadas situações (escolares, por exemplo) e
estruturas concretas noutras (situações de trabalho ou da vida
quotidiana). Os exemplos não faltam e mostram que um raciocínio abstracto
desenvolvido por um aluno ("criança" ou "adulto") na aula não é
transferível para uma situação extra-escolar. Pode estar-se seguro e ter
boas notas nas provas teóricas em electricidade e não conseguir mobilizar
os conhecimentos num problema prático de montagem eléctrica...

(6) Sublinhado dos autores.

O facto é que, na análise do desenvolvimento cognitivo, não podemos


esquecer as representações sociais através das quais os indivíduos
atribuem um sentido às suas situações de aprendizagem. Como afirma G.
Vergnaud (M. R. T., 1989, pp. 54 e seguintes), "o que um sujeito aprende
numa situação nova depende do que faz nessa situação e da interpretação
que lhe dá". Referindo-se ao papel atribuído por Piaget, nas suas últimas
obras, à "tomada de consciência" (1974), o autor clarifica as condições
de aquisição de um esquema, isto é, dos invariantes lógicos que permitem
a generalização ou a transferência de uma competência de uma situação
para outra: "para que estes invariantes se tornem objectos, é preciso que
a linguagem e as outras formas simbólicas permitam designá-los e
identificá-los e, simultaneamente, que outros sujeitos (pares,
formadores) possam debater, com o sujeito em formação, a veracidade ou a
falsidade dos enunciados produzidos".

A relação essencial que Piaget estabelece entre estruturas lógicas e


formas sociais é, portanto, sempre mediatizada por representações
simbólicas e nomeadamente pela linguagem que tem uma função essencial de
"codificação das situações vividas" (Bruner, 1983). Não é, pois, possível
isolar a análise "genética" do desenvolvimento cognitivo da análise
"cultural" dos sistemas simbólicos e das "representações" que servem para
definir e interpretar as situações vividas. O processo individual de
socialização não se desenvolve num vazio cultural: activa formas
simbólicas e processos culturais. A abordagem "restrita" da psicologia
genética reenvia-nos para abordagens "gerais" que fazem da socialização
não só um aspecto do processo de desenvolvimento individual, mas também a
pedra angular de todo o funcionamento social.

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(*) O ano entre parêntesis corresponde geralmente à data da primeira


edição das obras.
2

A socialização na antropologia
e o funcionalismo

A psicologia genética esclarece alguns mecanismos fundamentais que tornam


o recém-nascido, egocêntrico e totalmente dependente, num adulto, membro
cooperativo e relativamente autónomo da "sociedade". Mas esta abordagem
da socialização é "restrita": é unicamente centrada no indivíduo-criança
e ignora ou minimiza as enormes variações que se podem observar nos
"produtos" da socialização segundo as épocas, os tipos de sociedades, os
meios sociais, os grupos ou as classes sociais. Descobrindo e analisando
o funcionamento de sociedades diferentes -- designadas ainda, por vezes,
de sociedades "primitivas" --, os etnólogos e os antropólogos mostraram a
diversidade das formas de socialização. A acumulação de inquéritos,
incidindo sobre as sociedades "tradicionais", mostra claramente que os
adultos produzidos pelas diferentes sociedades são tão diferentes quanto
os procedimentos educativos que lhes eram aplicados quando crianças e que
estes procedimentos não podem ser reduzidos a mecanismos universais (7).
Como afirma C. Lefort, no prefácio da obra de Kardiner, considerada como
uma das obras fundadoras da antropologia cultural: "a interpretação do
desenvolvimento da criança está rigorosamente subordinada aos resultados
dos inquéritos realizados em diferentes sociedades" (Kardiner, trad.
1969, p. 19). :,

(7) Desde a década de sessenta, os trabalhos de antropologia cognitiva


(Dougherty, 1985) e de psicologia transcultural (Warren, 1980) renovaram
a questão dos "universais cognitivos" e mostraram que comportamentos
muito diversos, ligados a formas bastante diferentes de aprendizagem,
poderiam remeter para os mesmos processos cognitivos elementares
(categorização, generalização, diferenciação, resolução de problemas...).

Poder-se-á no entanto, retirar da comparação destes inquéritos um modelo


geral do funcionamento da socialização? Veremos que essa foi uma das
maiores preocupações de alguns sociólogos teóricos das diversas
*correntes funcionalistas* das ciências sociais e que conduziu à
construção de uma síntese tão ambiciosa como frágil. Estes esforços de
teorização produziram, apesar disso, categorias e modelos de análise que
servem, ainda hoje, para analisar factos da socialização. Estes
instrumentos permitem simultaneamente, compreender os limites de qualquer
teoria "geral" da socialização e discernir os problemas com que se deve
confrontar a sociologia empírica para fazer avançar o conhecimento dos
mecanismos concretos da produção social das personalidades.

2.1. Cultura e personalidade:


uma abordagem culturalista" da socialização

Ao apresentar e comparar três sociedades muito diferentes -- os Pueblos


do Novo México, os Dobu da Nova Guiné oriental e os Kwakiutls da costa
noroeste da América --, Ruth Benedict concluía o seu estudo da seguinte
forma: "a maior parte das pessoas estão moldadas à sua cultura, devido à
grande maleabilidade da sua natureza original: elas são adaptáveis à
forma modelizadora da sociedade onde nasceram" (1935, trad. francesa, p.
336). Ela punha em evidência uma oposição radical -- que se tornou muito
célebre entre a personalidade e a organização dos índios Zuñi qualificada
de *apolínea* porque "incrivelmente doce", baseada no equilíbrio e na
sobriedade e que se exprimia através de um "cerimonialismo interminável",
e a personalidade dos Kwakiutls qualificada como dionisíaca porque movida
pela rivalidade permanente dos indivíduos e dos grupos, agitada por
lutas, concorrências e destruições potlatchianas (8) e manifestando-se
por constantes "demonstrações de emoções". R. Benedict esclarecia, por
outro lado, que nem todos os indivíduos se sentiam à vontade no interior
de cada uma destas sociedades e que só aqueles que ela designava por
"bafejados pela sorte" possuíam as "virtualidades que se aproximam dos
modelos de comportamento presentes na sua sociedade" (*id.*, p. 337). Os
outros procuram escapar e só rara e dificilmente o conseguem. Assim,
"cada tribo possui os seus anormais que nela não participam" (*id.*, p.
341), mas os modos de expressão desses anormais e os seus destinos
sociais variam igualmente de uma sociedade para a outra: alguns, acusados
de feitiçaria, tornam-se feiticeiros (um deles até acaba a vida como
governador de Zuñi), enquanto outros são fisicamente eliminados; alguns
passam a ser reconhecidos pelo novo papel que assumem na sociedade (como
alguns homens-mulheres de Zuñi), :, enquanto outros falham e são
rejeitados... (*id.*, pp. 344-349). Para Ruth Benedict, o caso destes
indivíduos não é do domínio da psiquiatria mas a sua existência depende
do grau de tolerância da sociedade a que pertencem.

(8) O "potiatcht" dos índios da costa oeste da América do Norte consiste


em dádivas e contradádivas entre as famílias clãs e tribos num espírito
fortemente agonístico. Ele releva do "facto social total", segundo Marcel
Mauss que o analisou longamente no *Essai sur le don* (Mauss, 1950). R.
Benedict considera-o igualmente uma característica da Cultura de
Kwakiutis e Lévi-Strauss refere-se-lhe, muitas vezes, ao longo da sua
obra, para ligar estas práticas ao conjunto das estruturas de trocas (de
bens, de palavras, de mulheres...) desta sociedade (Lévi-Strauss, 1958).

A este estudo pioneiro seguiram-se muitos outros, alguns dos quais tinham
pretensões mais teóricas. Todos eles se organizaram à volta de uma tese
comum: *a personalidade dos indivíduos é o produto da cultura onde
nasceram*. Mais precisamente, "as instituições com as quais o indivíduo
está em contacto no decurso da sua formação produzem nele um tipo de
condicionamento que, a longo prazo, acaba por criar um certo tipo de
personalidade" (Lefort, 1969, p. 49). E esta posição, explicitada,
matizada e ilustrada por Kardiner, que serve de fio condutor à sua obra
intitulada pertinentemente *L'individu et sa société* (1939) e que começa
por uma critica argumentada às teses de Freud sobre a universalidade do
complexo de Édipo. Retomando, a propósito das ilhas Marquesas (cf.
encaixe 2.1.), a ideia aceite, alguns anos antes, por Malinowski a
propósito das ilhas Trobriand (9), Kardiner constata que nestas
sociedades, não aparece nenhuma manifestação de um qualquer complexo
edipiano porque não existe nenhuma instituição susceptível de o
engendrar. Mas o que é uma instituição? É um "conjunto de esquemas de
conduta, de *modelos* (pattern) de comportamentos fixados pela repetição
de acções individuais, uma formalização do comportamento humano" (Lefort,
p. 36). O conjunto destas instituições constitui a cultura de uma
sociedade que é também, segundo a célebre definição de Linton, "a
configuração geral dos comportamentos aprendidos e os seus resultados,
cujos elementos são adoptados e transmitidos pelos membros de uma dada
sociedade" (1945, p. 13).

(9) Foi, sem dúvida, Malinowski, graças às suas notáveis pesquisas sobre
os habitantes das ilhas Trobriand, quem, pela primeira vez, criticou
empiricamente a universalidade do complexo de édipo, formulado por Freud,
enunciando, simultaneamente, os princípios de uma abordagem "científica"
funcional da cultura (Malinowski, 1944). Mas, contrariamente a Kardiner e
a Linton, ele não atribuiu à socialização a importância que lhe deram,
posteriormente, os teóricos da antropologia cultural.

Aplicada ao recém-nascido e à criança, a instituição define-se, segundo


Kardiner, pelo conjunto das *disciplinas de base* que fornecem os modelos
de "gestão do corpo" da criança, ou seja, as respostas, extremamente
variáveis de acordo com as culturas, às questões que dizem respeito a) à
amamentação e ao alimento do bebé; b) às circunstâncias e modalidades do
desmame; c) à relação com a nudez, as roupas, as fraldas...; d) à relação
com a limpeza, os excrementos...; e) às atitudes para com a masturbação
infantil, etc. É este conjunto de "disciplinas orais, anais e sexuais"
que Kardiner refere como "instituições primárias" e que o antropólogo se
deve esforçar por observar para compreender as "experiências de base" a
partir das quais o indivíduo incorpora na sua personalidade a cultura do
seu grupo social. Tal como Freud, Kardiner atribui à primeira infância
uma posição privilegiada na formação do Eu, que ele define como sendo "a
soma de todos os processos de adaptação subjectivamente percepcionados"
(1939, p. 90). Tal como Freud, Kardiner atribui uma importância relevante
aos mecanismos de frustração que permitem o "tratamento social do
instinto" e a formação das primeiras ligações sociais (por fixação, :,
introjecção, deslocamento e transferência de acordo com as categorias de
Freud). Mas em oposição a Freud, Kardiner não conclui sobre a existência
de *algum mecanismo universal de construção do Eu*, mas constata a
existência de uma variabilidade extrema das disciplinas de base que
produzem "os traços comuns a todas as personalidades numa dada sociedade"
(*id.*, p. 99).

Linton, que realizou um longo inquérito nas ilhas Marquesas (cf. encaixe
2.1.), chega à conclusão de que não há "nenhuma ou poucas disciplinas de
base". O recém-nascido não é confiado à mãe mas aos maridos secundários
daquela, de tal forma que "a criança cresce no meio de vários pais de
entre os quais nenhum reivindica prerrogativas nem exerce uma autoridade
rígida, não existindo assim uma inflação anormal da imagem parental". A
amamentação dura pouco tempo (menos de quatro meses) porque "os
habitantes das ilhas Marquesas acreditam que ela torna a criança difícil
de educar e menos submissa" e sobretudo, segundo Linton, porque as
mulheres têm um grande orgulho na firmeza e na beleza dos seus seios" e
estão "convencidas de que um amamento prolongado estraga os seios". A
forma de alimentar é brutal: "deita-se o bebé no chão da casa enquanto a
mãe fica perto dele com uma mistura de leite de coco e de fruta com pão
cozido... ela pega numa mão cheia desta mistura e, mantendo firme o rosto
da criança, enfia-lhe a comida na boca". Não se esforçam por obter um
controlo anal do bebé antes de ele perfazer um ano de idade: "o homem
limita-se a mudar o tecido de casca de árvore no qual a criança está
deitada. Mais tarde, a criança é levada em braços pelo homem para perto e
posta em posição para fazer as suas necessidades". As crianças passam a
maior parte do dia na água e aprendem a nadar antes de aprender a andar.
Estão nuas e nunca sozinhas mas são constantemente vigiadas (embora sem
muita preocupação, segundo o autor) pelos maridos secundários. Se os
adultos estão ocupados, deixa-se a criança chorar. No caso de ela gritar
e se tornar muito incómoda, "pode acontecer que um adulto a acalme
masturbando-a". Aliás, prossegue Linton, "a masturbação das meninas
inicia-se muito cedo: logo que nascem, manipulam-se sistematicamente os
lábios para que estes cresçam e se tornem mais longos e, pensava-se, mais
bonitos" (Kardiner, *id.*, pp. 226-227).

Encaixe 2.1.

Os habitantes das ilhas Marquesas segundo Linton (1920-1922)

Os habitantes das ilhas Marquesa constituem um povo da Polinésia que vive


numa ilha do Pacífico central a mais ou menos dez graus a sul do equador
e que são de uma extrema beleza física, sobretudo as mulheres. Foram os
últimos habitantes da Polinésia a serem cristianizados e resistiram muito
tempo à influência dos brancos, chegando mesmo a escorraçar os
missionários. Quando foram submetidos, reagiram não procriando... Ilhas
montanhosas, cercadas por falésias abruptas, as Marquesas são formadas
por vales estreitos separados uns dos outros por esporões rochosos. :,

De vez em quando, estas ilhas são vitimas de secas prolongadas e


destruidoras que originam péssimas colheitas e escassez de água. Estas
secas. que se prolongavam. por vezes, durante três anos, provocavam
verdadeiras fomes, e podiam reduzir a população a um terço, levando, por
vezes, os indígenas a praticar o canibalismo.

A propriedade agrícola apenas consta de árvores ou jardins dispersos


pelos vales. A terra é propriedade colectiva da tribo, administrada pelo
chefe, mas as árvores e as colheitas são propriedade individual. Em cada
nascimento planta-se uma árvore que será propriedade do recém-nascido.
Apesar disso, a base da alimentação é fornecida pela pesca que se
organiza numa base comunitária com a ajuda de redes gigantes colocadas
entre os barcos. Antigamente, os habitantes das ilhas Marquesas eram
robustos canibais e, excepcionalmente, até as mulheres tinham autorização
para comer carne humana. Persiste um canibalismo cerimonial destinado a
incorporar as qualidades do indivíduo que se come (em geral. de uma outra
tribo) com preferência pelas crianças.

A instituição dos mestres-artesãos é uma marca saliente da cultura


marquesiana. O *tuhunga* (mestre-artesão), personagem importante,
trabalha por encomenda e, enquanto trabalha, é alimentado pelo cliente e
entoa cânticos sagrados. Ninguém o pode substituir porque ninguém sabe
reproduzir a sua maneira de cantar. Deste modo, ele pode acumular grandes
riquezas e tornar-se uma personagem poderosa. Em troca de uma
retribuição, ele ensina a sua arte aos jovens que lhe pedem.

O estatuto social é determinado pela primogenitura, independentemente do


sexo. Pratica-se, regularmente, a adopção. Através dos parentes que
possuem em cada geração a posição social mais elevada, os habitantes das
ilhas Marquesas estabelecem a sua genealogia (que, por vezes, recua até
sessenta ou oitenta gerações). Os casamentos são endogâmicos à tribo,
verificando-se uma grande mobilidade. Todas as profissões, excepto a de
padre cerimonial -- especializada no domínio do além e sem poder
económico --, estão abertas às mulheres, mas as mais prestigiosas
(*tuhunga*) são reservadas às filhas primogénitas. Há pouca divisão do
trabalho entre os sexos.
Entre os habitantes das ilhas Marquesas, há duas vezes e meia mais homens
do que mulheres. A causa deste fenómeno é desconhecida ou é escondida.
Por isso, o lar marquesiano é poliândrico. Há um marido principal e
maridos secundários, excepto nos lares mais pobres... Os lares mais
abastados podem ter mais de quatro homens para uma mulher e a casa do
chefe tem onze ou doze homens para três ou quatro mulheres. Todos os
membros do grupo assim formado têm direitos sexuais uns sobre os outros,
constituindo-se assim uma espécie de casamento de grupo...

Apesar de existirem poucas normas de disciplina entre os habitantes das


ilhas Marquesas (Linton notou que não existia qualquer punição para os
delitos, nomeadamente para o roubo de alimentos), existe, no entanto, o
perigo constante de infringir os tabus, o perigo :, imaginário dos papões
(*vehini-hai*, espíritos-papões que se acredita roubarem as criancinhas e
comerem-nas), o perigo real dos canibais ("se uma tribo inimiga atacassse
uma criança perdida, esta seria, certamente, comida ou sacrificada*). É
por isso que, havendo pouca aprendizagem organizada antes da puberdade
("a criança leva uma vida totalmente livre"), se assiste, a partir dos 8
anos, à formação de bandos mistos (mais rapazes do que raparigas, tendo
em conta a demografia) que se organizam para se protegerem dos perigos.
As crianças podem ficar afastadas das suas casas, dois ou três dias,
vivendo da pesca e dos saques, dançando e cantando; entregam-se a jogos
sexuais, imitando os pais (mãe e maridos, principal e secundários). "As
raparigas são instruídas sobre os problemas sexuais desde a mais tenra
infância e ensinam-lhes a mexer as ancas e a tomar atitudes muito
enraizadas no comportamento sexual. A técnica erótica era desenvolvida
até ao extremo. Os dois sexos orgulhavam-se, com a mesma sinceridade, das
suas proezas neste domínio que discutiam sem pudor. Com excepção das
crianças pertencentes à mesma família, considerava-se como natural que
qualquer encontro entre jovens de sexos diferentes conduzisse ao acto
sexual. As meninas começavam as danças totalmente vestidas mas
terminavam-nas completamente nuas, produzindo os efeitos que se pode
esperar desta situação." (*id.*, pp. 232-233)

Entre a idade da puberdade e a do casamento, os jovens formam um grupo


conhecido pelo nome de *Kaioi*: vestem-se com roupas complicadas e passam
horas a pintar o corpo. Tornam-se os principais animadores da tribo,
dançando e cantando nas festas e cerimónias em troca de generosas
recompensas. Só então -- talvez por volta dos 14-15 anos -- começa o
ensino: os padres ensinam-lhes os cânticos e as genealogias. Raparigas e
rapazes aprendem juntos sem regras particulares mas, "durante o ensino da
parte mais esotérica deste saber, mestre e aluno são submetidos a tabus
muito rígidos" (*id.*, p. 230). É durante este período que intervém a
*iniciação* (10) que consistia na feitura de uma tatuagem minuciosa que
podia durar várias semanas e era obra de especialistas reputados; as
raparigas eram tatuadas individualmente e sem rito particular, excepto as
primogénitas do chefe. Os rapazes eram tatuados em grupos e, a seguir,
tinham direito a uma festa colectiva no decurso da qual as raparigas
dançavam não nuas, mas sim vestidas com saias totalmente entrançadas "que
elas levantavam durante o canto final para mostrar as partes genitais".
Este gesto "era sinal de que o fim do período *Kaioi* tinha chegado e que
era oportuno os jovens escolherem uma parceira e estabelecerem-se". Ao
mesmo tempo, o rapaz começava a estudar "para se tornar membro de uma
qualquer profissão que tinha escolhido" (*id.*, p. 230). :,

(10) Linton assinala que a iniciação não acaba com a cerimónia da


tatuagem dos jovens: "quando um homem chega aos 30 anos, sobretudo quando
se tratava de um grande guerreiro, ele submetia-se a uma nova operação de
tatuagem acompanhada de uma pintura do corpo todo". Existe, portanto, uma
relação visível entre a cor dos corpos e o grau de socialização: os
"velhos" eram geralmente todos pintados de verde, o que permitia
identificá-los muito facilmente (Kardiner, op. cir., p. 232).

Percebe-se melhor a razão pela qual Kardiner responde negativamente à


pergunta: "Será que o complexo de édipo se manifesta de uma forma
qualquer na sociedade marquesiana?" (*id.*, p. 297). O antropólogo não só
não recolheu "nenhum relato em que se vê o filho matar o pai e possuir a
mãe", mas, se tivermos em conta a organização global da sociedade
marquesiana e a natureza particular das disciplinas de base a que são
submetidos os seus membros, compreendemos as razões desta ausência. Nas
ilhas Marquesas, o rapaz nunca tem ocasião de adoptar uma atitude de
dependência referente à união com a mãe; esta mostra-se cruel porque se
sente frustrada. Se a dependência se exerce fundamentalmente em relação
ao pai e aos maridos secundários, a criança não tem razão para os odiar
porque estes não a maltratam nem a enganam.

A personalidade marquesiana é, consequentemente, muito diferente da dos


adultos ocidentais. Nas ilhas Marquesas pratica-se a poliândria e o
casamento de grupo e o ciúme é desconhecido, "salvo quando se bebe". As
mulheres desempenham um papel importante na sexualidade, mas a sua
potência sexual "depende de preliminares complicados durante os quais
lhes é impossível chegar ao orgasmo... talvez por causa de um
condicionamento precoce ao jogo prolongado sem orgasmo". Nunca se fala de
impotência masculina pois esta é muito rara. O habitante das ilhas
Marquesas é "essencialmente um ser muito educado", de "modos doces" e com
"uma reduzida capacidade de explorar outrem", sendo o seu único objecto
de ódio a pessoa capaz de frustrar as suas necessidades essenciais ou de
o humilhar publicamente (o que pode conduzi-lo ao suicídio). A mulher
ocupa, "no folclore, uma posição muito próxima da do pai na nossa cultura
e é por isso que ela é a vítima habitual dos maus olhados".

Em vários domínios, a socialização da criança marquesiana é diferente e


mesmo oposta à socialização actual da criança ocidental. As relações da
criança marquesiana com a sua mãe estão reduzidas ao mínimo e são os
homens que se encarregam de tratar dela; não há constrangimentos nem
quanto à limpeza nem quanto a roupas impostas; não existe nenhuma
restrição sexual nem exigência de obediência; não há escola nem
aprendizagem obrigatória antes da puberdade, mas sim uma grande liberdade
colectiva no seio dos grupos de crianças; a sua instrução só começa na
altura da iniciação que a transforma num membro de pleno direito da
sociedade. Se se pode, com rigor, distinguir alguma fase ligada tanto à
maturação biológica quanto às instituições sociais (Linton só delimita
claramente o período que vai dos 8 anos à puberdade, o dos bandos das
crianças,), não se pode facilmente transferir para a sociedade
marquesiana qualquer um dos "estádios" construídos por Piaget. Através da
observação e da imitação, a criança marquesiana impregna-se
progressivamente na "cultura" do seu grupo; de seguida, e de uma maneira
informal, experimenta-a em grupos que reúnem crianças do mesmo nível
etário (11): desencadeia-a, de uma maneira formalizada, no seio do grupo
*Kaioi*; por fim, faz-se reconhecer como membro da sociedade pela
imitação coincidindo com um curto período de instrução e com o seu
casamento. :,
(11) Esta socialização informal das crianças em grupos que reúnem rapazes
e raparigas do mesmo nível etário ocupa também um lugar essencial nas
sociedades africanas (Rabuin, 1979).

*A hipótese da personalidade de base*

Fundamentalmente a abordagem da antropologia cultural


consiste assim na descrição da formação das personalidades individuais
entendida como uma incorporação progressiva da cultura da sociedade de
pertença. Como afirma Linton: "a cultura é totalmente exterior ao
indivíduo que nasce, e torna-se parte integrante da sua personalidade na
idade adulta" (1936, p. 322). "O que transforma um agregado de indivíduos
numa sociedade ou num grupo social não é apenas a sua organização, mas
também e sobretudo o seu espírito de corpo, isto é, a cultura feita
corpo, no duplo sentido de interiorização do corpo biológico, dos gestos,
posturas, atitudes constitutivas da cultura do grupo ("modos de fazer, de
sentir, de pensar"), e de exteriorização dos seus modos de estar em
conjunto num "corpo de regras específicas" que constituem a manifestação
da "comunidade das ideias e dos valores", bem como "a aptidão para agir
voluntariamente em grupo"" (Linton, *id.*, pp. 114- 116).

Mas a abordagem culturalista não se limita a esta descrição. Kardiner,


depois da apresentação, muitas vezes longa e minuciosa, das "culturas"
que toma como exemplo (para além da das ilhas Marquesas, a da Tanala de
Madagascar é igualmente descrita por Linton, tal como a de uma cidade
média americana), desenvolve um conjunto de análises com o intuito de
reconstruir o que ele designa por "estrutura da personalidade de base
(Eu) do indivíduo, isto é, o conjunto dos instrumentos de adaptação que
um indivíduo partilha com todos os outros numa dada sociedade" (Kardiner,
1939, p. 291). Esta noção -- muitas vezes traduzida pela simples fórmula
"personalidade de base" e, por vezes, transformada em "conceito
sociológico" (Dufrenne, 1953) -- não é simples de compreender e deu lugar
a interpretações diversificadas, por vezes caricaturais (Dufrenne, *id.*,
p. 127). O próprio Kardiner criou várias definições diferentes, entre as
quais se encontra a que é mais utilizada na tradição sociológica:
"configuração psicológica particular comum aos membros de uma dada
sociedade e que se manifesta por um certo estilo de vida sobre o qual os
indivíduos constroem variantes singulares" (Kardiner, citado por
Dufrenne, *id.*, p. 128). Se se comparar esta definição tardia com a
primeira, pode-se, se dar conta de um "deslocamento" do cultural
(instrumentos de adaptação que nos reenviam para as instituições no
sentido definido anteriormente) para o psicológico (configuração que
reenvia a tipos de personalidades descritos em termos psicológicos). Na
realidade, na sua primeira obra, Kardiner preocupava-se em distinguir a
noção de "personalidade de base" da de "carácter" concebido como
"conjunto de atitudes do eu, habituais e decorrentes do *status* social,
do sexo, etc." (1939, p. 291). Dizer que um esquimó (um "eu") se pode
mostrar teimoso e desconfiado é para Kardiner uma manifestação de
carácter. Mas dizer que a personalidade de base de um Esquimó (um "Eu")
difere da de um habitante das ilhas Marquesas é mostrar que ela é o
produto de instituições diferentes, que ela integra modelos diferentes de
comportamento, que ela constitui um outro "quadro que contém todas as
diferenças de carácter". Por outras palavras, é preciso distinguir o "Eu"
(personalidade de base) abstracto, reconstruído pelo investigador a
partir da configuração das instituições primárias, :, dos "eus"
(carácteres individuais) concretos que constituem modos singulares e
únicos de viver as mesmas instituições e de recorrer aos mesmos modelos.

Pretender que, em cada sociedade, existe uma "estrutura da personalidade


de base" dos indivíduos é propor uma hipótese ousada: a de que existe uma
coerência entre todos os modelos de comportamento, um núcleo duro
assegurando a unidade das instituições primárias, uma "unidade cultural"
susceptível de ser reconstruída de forma convincente, recorrendo a
algumas propriedades do sistema (o que Linton designa por "núcleo
psicológico").

Na sua descrição, Linton distingue três características essenciais do


"núcleo psicológico da cultura das ilhas Marquesas (Kardiner. 1939, pp.
256-957):

-- a angústia provocada pela falta de alimentação baseia-se na hipótese


de que "inúmeras instituições foram, inicialmente, meios para a evitar,
apesar de, actualmente, terem uma outra utilidade". Por exemplo, para
Linton a antropofagia, a ausência de punição para o roubo, a relação dos
adultos com a alimentação da criança fazem parte das instituições
segregadas por esta "angústia primordial":

-- a desigualdade numérica dos sexos (cuja causa real se ignora) está


ligada à hipótese de a organização dos habitantes das ilhas Marquesas
constituir uma adaptação a este facto considerado primordial: a
poliândria, a importância dada à paternidade, o afastamento do ciúme, que
permite preservar os principais interesses do grupo", a posição dominante
da mulher na sexualidade e também o seu "descrédito no folclore" (papão
"comedor de homens") são, entre outras, considerados por Linton como
instituições primárias decorrentes desta segunda característica
fundamental do "núcleo psicológico marquesiano";

-- a natureza das disciplinas de base e, nomeadamente, a quase ausência


de proibições constituem a terceira marca significativa deste "núcleo".
Ela corresponde à hipótese clássica da determinação do Eu pelas
experiências de base da primeira infância e nomeadamente pelo modo de
gestão dos corpos e das reacções iniciais às frustrações.

Será que estas três características essenciais permitem definir a


estrutura do Eu marquesiano? Manifestamente não, dado que Kardiner, na
sua síntese final, acrescenta três dimensões às instituições de base
produtoras da estrutura do Eu: as relações entre os sexos (que não
considera como simples efeito da relação demográfica homens/mulheres); a
mobilidade social (e nomeadamente a primogenitura que desempenha um papel
essencial na circulação dos poderes); o regime de propriedade que
determina, segundo Kardiner, a ausência de qualquer outra ansiedade que
não seja a da alimentação... A indeterminação no que diz respeito à
composição do "núcleo" da cultura (12) e a imprecisão referente às
relações entre os elementos deste "núcleo" (instituições primárias) não
são tidas em conta :,

(12) Um autor tentou teorizar e generalizar o modelo de Kardiner propondo


cinco dimensões fundamentais e estruturantes das instituições primárias
e, portanto, o "núcleo cultural de uma personalidade": "a ecologia, o
sistema de manutenção, as práticas educativas, as variáveis de
personalidade e os sistemas projectivos" (Whiting, 1961
pp. 355 e seguintes).
nesta síntese de Kardiner. Recusando-se a privilegiar uma característica
particular através da qual todas as outras ganhariam uma significação
(não se vislumbra, aliás, qual delas se dvee privilegiar...), não podendo
justificar o número e a natureza das instituições de base necessárias
para reconstruir a estrutura de base (as três de Linton ou as seis da sua
síntese ou outras ainda...), Kardiner tenta basear a sua demonstração na
distinção entre as instituições primárias que produzem a estrutura do Eu
e as instituições secundárias produzidas pela estrutura do Eu. O autor
espera validar a sua escolha das propriedades essenciais da cultura
mostrando empiricamente que a configuração das instituições primárias
permite, através da estrutura do Eu, dar conta da globalidade das
instituições secundárias (as que dizem essencialmente respeito às crenças
e às representações por um lado e às práticas simbólicas por outro). Mas,
ao fazê-lo, ele assume o risco do arbítrio: qualquer pessoa poderá
seleccionar as características culturais que lhe parecem mais
determinantes em função dos seus pressupostos. Basta ler atentamente o
quadro de Kardiner (*id.*, p. 301) para verificar que inúmeras
instituições secundárias poderiam ser consideradas como primárias e vice-
versa. Há manifestamente uma "circularidade entre os diversos elementos
institucionais" que torna "frágil" qualquer tentativa de introduzir nelas
uma causalidade convincente (Lefort, *id.*, p. 38).

A socialização na abordagem culturalista

Será que a socialização, considerada como o "processo que comanda a


formação e o equilíbrio da personalidade", pode ser decomposta num
conjunto de mecanismos gerais que asseguram a incorporação da cultura nas
personalidades individuais dos membros de uma sociedade? Será que se pode
sustentar a hipótese da existência de uma estrutura comum a todas estas
personalidades que partilham a mesma cultura? Em caso afirmativo, em que
condições?

Linton tentou elaborar categorias aplicáveis às sociedades modernas.


Resume o contributo essencial da perspectiva culturalista numa fórmula
geral: "as sociedades são constituídas de tal forma que só podem exprimir
a sua cultura por intermédio dos indivíduos que a compõem e só podem
perpetuá-la pela preparação destes indivíduos" (1936, p. 301). Mas,
contrariamente às sociedades tradicionais que possuem uma forte unidade
cultural, as sociedades modernas são definidas por ele como "agregados de
subculturas e de elementos gerais que resultam da sua interacção".
Distingue ainda quatro tipos de características culturais que intervêm na
modelação das personalidades individuais (1936, pp. 304-305):

-- as características gerais ("núcleo da cultura de uma sociedade") que


são comuns a todos os membros: a linguagem, os valores de base, os
modelos essenciais de relações sociais, os costumes comuns...;

-- as características especializadas, comuns a certas categorias


socialmente reconhecidas que partilham o mesmo *status* social: os sexos,
os níveis etários, as classes sociais, os grupos profissionais...; :,

-- as características alternativas que relevam das opções de reacção


perante as mesmas situações...;

-- as particularidades individuais que dizem respeito às escolhas


pessoais e que são essenciais aos processos de inovação cultural...
Linton esquematiza também em linhas gerais a dinâmica das sociedades
modernas:

-- o número de características culturais que formam o "núcleo da cultura


de uma sociedade" tem tendência a diminuir com a complexificação social;

-- quando a importância do "núcleo" se torna demasiado restrita, a


cultura tende a tornar-se num "leque de opções", e já não propõe um
modelo de vida coerente a todos os indivíduos de uma mesma sociedade
global: corre-se então um risco de "desintegração cultural";

-- este risco pode ser evitado pela emergência de um novo tipo de cultura
proveniente da "necessidade de um conjunto de ideias e de valores
mutuamente compatíveis aos quais todos os membros possam aderir para
justificar a sua pertença comum". Esta emergência implica a
reconstituição de um novo núcleo cultural a partir de uma reorganização
de elementos antigos e novos provenientes de inovadores culturais;
pressupõe, simultaneamente, a reconstituição de uma nova estrutura do Eu
(personalidade de base) assegurada através de uma socialização comum.

Linton -- como Kardiner e todos os antropólogos culturalistas -- acredita


na possibilidade e na necessidade de reconstituição de culturas comuns a
todos os membros de uma mesma sociedade. Para isso, baseia-se na
convicção de que existe "uma série de experiências subculturais de base
presentes em todas as sociedades se bem que com frequências variáveis"
(*id.*, p. 511). Na sua opinião, estas experiências de base reflectem
"elementos psicológicos subjacentes... que se mantêm escondidos" (*id.*,
p. 333). Elas ligam-se, finalmente, à primordial necessidade do indivíduo
de ter uma *pertença social* estável: "cada indivíduo considera os
modelos da sua própria subcultura como guias do seu comportamento e
raramente tenta imitar os modelos de outras subculturas mesmo quando os
conhece bem" (*id.*, pp. 305-306).

É por isso que a socialização da criança é essencialmente analisada como


processo de incorporação progressiva de tratados gerais característicos
da cultura do grupo de origem, aquele que é suposto definir a sua
*pertença social* de base. Mesmo se a socialização do indivíduo é também
a aquisição das características particulares dos seus futuros grupos
estatutários e preparação para as opções e escolhas dos seus elementos
culturais singulares, ela é fundamentalmente concebida como um treino
(*training*) para assimilar os elementos de base da cultura de pertença,
aquela que melhor corresponde às "experiências de base", incorporadas ao
longo da primeira infância. Esta fidelidade às raízes constitui,
finalmente, uma condição essencial da manutenção e da transmissão entre
as gerações dos núcleos culturais específicos a cada sociedade. É por
isso que qualquer teoria global das :, sociedades se confronta com a
questão da reprodução cultural. Como imaginar que uma sociedade possa ser
mantida se os seus membros não aderem ao núcleo cultural comum que
transmitem à geração seguinte? Mas como pensar esta transmissão quando
cada geração pretende construir a sua própria cultura? Como conciliar
esta exigência de reprodução com a dinâmica cultural das sociedades
modernas? É, em grande parte, para responder a estas questões que os
teóricos funcionalistas tiveram que construir concepções da socialização
que permitissem simultaneamente dar conta da reprodução dos "núcleos
culturais" e ter em conta as mudanças das "personalidades individuais"
(entre as gerações e no decorrer de uma vida).
2.2. A "teoria suprema" da socialização: Parsons e o sistema liga

Entre as tentativas funcionalistas (13) de construção de uma teoria


"geral" (e não "restrita" no sentido que lhe demos no capítulo I) da
socialização, incluída na Teoria Geral da Sociedade. a de Talcott Parsons
é triplamente interessante. Em primeiro lugar, porque aparece totalmente
"fechada", isto é, logicamente acabada numa espécie de axiomática geral
das ciências humanas. Em segundo lugar, porque utiliza elementos de
inúmeros autores cujos contributos pretende sintetizar: tanto Freud, como
DurkLeim, Weber Pareto... Finalmente, porque foi a partir da sua crítica
que se desenvolveram as novas abordagens mais operatórias da
socialização..

(13) Para uma apresentação global e uma síntese crítica das diferentes
correntes funcionalistas, podemos consultar o capítulo que G. Rocher lhes
consagra na sua obra *Introduction à la sociologie générale* (1968, t. 2,
pp. 160-176) assim como o artigo de Merton publicado em *Éléments de
méthode et de théorie socialogique* (1965, trad. francesa, pp. 65-139).

A teoria da acção segundo Parsons

O ponto de partida da teoria de Parsons é a análise da acção humana


partindo de uma divisão de um acto elementar em quatro elementos
essenciais: "a acção pressupõe um actor, uma situação parcialmente
controlada por ele, uma combinação de fins e de meios submetidos às
escolhas do actor por critérios normativos" (Bourricaud, 1977, p. 32). O
conjunto dos meios e dos fins é, por vezes, chamado *objecto* por Parsons
que reutiliza um termo essencial de Freud: este termo permite-lhe definir
a acção humana como uma relação objectal, ou seja, como um comportamento
orientado para fins e tendo uma significação para o actor. Ele inscreve-
se, por isso, também no prolongamento de Max Weber que faz da sociologia
a ciência da acção social definida como uma conduta que "tem uma
significação subjectiva", isto é, como uma conduta, "pelo menos
parcialmente, orientada para o comportamento de outrem" (1920, p. 5). :,

Parsons (1937) conceptualiza a acção humana através das quatro


proposições seguintes:

-- é orientada para *objectivos* (*goals*) que implicam antecipações da


parte do actor;

-- desenvolve-se em *situações* estruturadas por recursos;

-- é regulada por *normas* que guiam a relação do actor com os meios;

-- implica uma *motivação*, um gasto de energia que se aplica à relação


do actor com o objectivo que ele persegue.

O que interessa a Parsons é construir uma teoria geral que integre todos
os elementos da acção humana e dê conta das suas singularidades e
variações. Partindo do acto individual, ele depara-se, em primeiro lugar,
com a *interacção*, dado que qualquer acção humana pressupõe, de qualquer
forma, uma relação com o outro. Ora, a interacção só é possível segundo
Parsons, quando "uma *norma* comum se impõe simultaneamente aos dois
actores". Só se pode comunicar (tendo em conta o que Parsons chama de
"dupla contingência") se se possuir um código comum mínimo (eventualmente
uma linguagem gestual interpretada da mesma forma por todos...). Esta
norma comum, de acordo com Parsons, só pode derivar de uma cultura
partilhada que implique "um sistema de *valores* que subentenda as normas
que orientam os actores" (1937, p. 15).

Mas o acto individual persegue igualmente os *objectivos*. Para poderem


ser alcançados, estes objectivos implicam *motivações* que nos reenviam
para as necessidades do organismo. Pressupondo a existência de uma
cultura comum aos actores, a acção humana não é apenas interacção, é
também satisfação de uma necessidade que pressupõe, também ela, a
existência de um corpo que lhe fornece a energia necessária para se
realizar.

Numa síntese tardia Parsons decompõe (1996, capítulo 2) o sistema da


acção em quatro subsistemas funcionalmente interligados:

-- o subsistema *biológico*, o do organismo neuropsicológico, que se


define pelas suas necessidades e fornece a energia da acção;

-- o subsistema *psíquico*, o da personalidade, que se define pelas suas


motivações que dão conta dos objectivos da acção;

-- o subsistema *social*, o da interacção dos actores, que impõe normas à


acção;

-- o subsistema *cultural*, o dos sistemas simbólicos, que envolve


valores (mas também conhecimentos e ideologias...) e que permite
encontrar a informação necessária à acção.

Parsons pode desta forma definir a acção como uma "estrutura de


interdependência baseada na hierarquização sucessiva dos mecanismos de
controlo da acção". Estes mecanismos podem, com efeito, ser pensados em
torno de um modelo cibernético, definido sucintamente como o estudo
comparado dos sistemas informáticos e o sistema nervoso humano. Nesta
comparação intervêm três conceitos essenciais: a informação, a energia e
a regulação que aqui se define como um "controlo que consiste na
comparação dos resulta :, dos obtidos com as previsões e, em caso de
desvio, no desenvolvimento de operações correctivas (Couttignal, 1966, p.
118). É em torno deste "modelo" da cibernética -- hoje já ultrapassado --
que Parsons constrói o seu Sistema da Acção como uma integração dos seus
quatro subsistemas possuindo cada um deles mecanismos de regulação
(controlo)
"ciberneticamente hierarquizados": quanto mais um subsistema controlar os
outros, tanto mais rico ele é em informação; quanto mais um subsistema é
controlado pelos outros, tanto mais rico em energia ele é (Rocher, 1968,
pp. 209 e seguintes). Assim, a cultura controla o sistema social que
controla a personalidade que, por sua vez, controla o organismo.

A socialização: o sistema LIGA

Entre a definição analítica da acção produzida nas primeiras obras de


Parsons ( 1937) e a síntese dos quatro subsistemas do Sistema Geral da
Acção apresentada em obras tardias (1966), aparece uma teoria da
socialização elaborada em colaboração com Bales (1955) e baseada numa
concepção inteiramente funcional do sistema social. O sistema social
constrói-se, com efeito a partir de quatro imperativos funcionais
definidos da forma seguinte:

-- a função de estabilidade normativa (por vezes, designada pela letra


*L* como latência") significa que o sistema social deve assegurar a
manutenção e a estabilidade dos valores e das normas de tal modo que
estes sejam conhecidos dos actores e interiorizados por eles;

-- a função de integração (*I* como "integração") significa que o sistema


social deve assegurar a coordenação necessária entre os actores, membros
do sistema;

-- a função de "persecução dos objectivos" (*G* como "goal-attainment")


significa que o sistema social deve permitir a definição e a realização
dos objectivos da acção;

-- a função de adaptação (*A* como "adaptação") deve assegurar a


adequação dos meios aos objectivos perseguidos e, portanto, uma adaptação
eficaz ao meio ambiente.

Pode-se facilmente estabelecer uma correspondência entre estas quatro


funções do sistema social e os quatro subsistemas da acção:

-- a estabilidade normativa ("pattern-maintenance") assegura a


articulação do sistema social com o sistema cultural, garantindo assim a
ligação entre os valores culturais e as normas que regulam a acção;

-- a integração assegura a coesão interna do sistema social, garantindo a


eficácia colectiva das normas;

-- a persecução dos objectivos assegura a articulação do sistema social


com o sistema das personalidades, garantindo a compatibilidade entre os
objectivos da acção e as normas e valores legítimos da sociedade;

-- a adaptação assegura a articulação do sistema social com o organismo,


controlando a adequação dos meios aos objectivos da acção. :,

É o processo de socialização, pelo qual qualquer indivíduo se torna


portador do seu sistema social, que assegura a interiorização
(*internalization*) na personalidade destes quatro imperativos funcionais
integrados, designados, muitas vezes, por "sistema LIGA". A análise
pormenorizada que Parsons (1955) faz deste sistema apoia-se em duas
fontes essenciais: as aquisições da psicanálise de Freud e os resultados
das investigações sobre o funcionamento da interacção em pequenos grupos
(R.-F. Bales, especialista destas investigações, é também co-autor da
obra de referência). Essa análise organiza-se em torno das fases
essenciais do desenvolvimento da personalidade segundo Freud,
reinterpretando-as como momentos de um processo "de interiorização de
objectos através das interacções que constituem um sistema de relações
sociais" (1955, p. 40), assegurando o estabelecimento de um controlo
social da aprendizagem (*learning-social control*).

A primeira fase, que se segue ao "traumatismo" do nascimento, organiza-se


em torno da *identificação primária* do bebé à mãe com quem estabelece
uma relação de dependência oral (a1) sobre o modo da posse (a mãe é
"aquela que queríamos ter"). Esta fusão original cria uma identidade mãe-
filho (*mather-child identity*) que é designada de "protossocial", já que
o bebé não está ainda socializado. Com efeito, a atitude predominante da
mãe é a permissividade (b1) que permite ao bebé exprimir as suas
necessidades vitais e "interiorizar a mãe como um objecto" (*id.*, p.
65). Parsons insiste no poder da mãe, primeiro agente socializador: é
dela que depende o aparecimento desta primeira identificação, isto é, de
que depende a generalização do seu universo a outros objectos. A boca é
"o veículo desta generalização" (*id.*, p. 66) e é a atitude da mãe que
permite o prolongamento dos investimentos do bebé sobre novos objectos. É
ela também que permitirá deste modo o desencadear da primeira função do
processo de socialização: o estabelecimento de novas especificidades do
objectivo (G), de novas relações de objecto. Mas o seu papel não acaba
aqui. Parsons e os seus colegas, verificando, tal como Freud, que "o
superego da criança não se forma à imagem dos pais mas à imagem do
superego destes" (Freud, 1920, trad. 1981), define a identificação
primária como "o primeiro reconhecimento das normas e dos valores como
indicadores (*standard*) que balizam o campo da acção" (1955, p. 63). A
mãe, mas também o pai e eventualmente os familiares mais chegados,
através das suas atitudes, vão permitir ao pequenino fazer a primeira
aprendizagem dos "padrões" da acção, exprimindo-lhe o que pensam que é
permitido ou proibido fazer, em função do seu próprio superego, que não é
mais do que a interiorização das normas e dos valores da cultura.
Efectua-se, deste modo, a primeira função da socialização: a estabilidade
normativa (L) não por puro condicionamento, mas pela modelação de
atitudes na sequência das sanções que constituem as respostas dos
primeiros socializadores às investidas da criança. Nesta interacção, a
criança aprende as primeiras normas entendendo-as como respostas a esta
passagem da permissividade às primeiras proibições.

A fase anal constitui uma transição essencial entre a dependência oral e


a ligação amorosa (a2). Ela acompanha, no bebé, a primeira diferenciação
de si como objecto por oposição à mãe (e já não em fusão com ela), graças
às frustrações resultantes das proibições :, anteriores. Ao encorajar,
sob formas diversas, o controlo esfincteriano (segundo Parsons, protótipo
simbólico do controlo de si), a mãe permite também que a criança
desempenhe o seu primeiro papel autónomo em interacção com ela: ao dar
prazer à mãe, a criança "não só se sente amada como ama muito", (*id.*,
p. 43). Ela pode. assim, interiorizar activamente um conjunto de valores
essenciais da cultura do grupo social e preparar-se para enfrentar a
primeira grande crise do desenvolvimento, graças ao suporte (b2) que
constitui esta primeira autonomia em relação à mãe.

A crise edipiana, ao ser acompanhada pela descoberta de que é preciso


"partilhar a mãe com este intimo estranho, o pai", provoca "a primeira
expansão do universo social" assim como a "diferenciação da *identidade
de sexo*". Esta autêntica revolução no desenvolvimento dá-se através do
que os autores chamam "a cisão binária", isto é, a passagem de um sistema
a dois para um sistema a quatro, resultante de um primeiro desdobramento
das atitudes (*id.*, p. 79). Esta cisão permite a diferenciação de sexo
no universo familiar: 1. a criança dotada das suas primeiras normas
(aquilo que é permitido ou proibido ao eu, menino ou menina) encontra-se
agora perante três colectivos distintos; 2. os pais (fonte de aprovação e
de reforço das normas); 3. o "nós" das pessoas do mesmo sexo (o papa e eu
rapaz; a mamã e eu rapariga mais, eventualmente, os irmãos e as irmãs,
que são fonte de conformidade sexuada); 4. o nós familiar que constitui o
primeiro objecto colectivo interiorizado pela criança enquanto tal (e não
como relação do eu com os outros). Esta "interiorização da colectividade
familiar enquanto objecto assim como os seus valores" é considerada
crucial por Parsons. Já não se trata de uma fusão como na "crise oral",
mas sim de uma identificação colectiva que permite a realização da função
de integração social (I) na base da partilha de normas e valores comuns.
Esta identificação é acompanhada por uma "diferenciação sexuada do
universo social", já que, agora, o mundo se divide entre "os que têm um
dos sexos e os que não têm esse sexo" (*id.*, p. 80). Parsons não retoma
a tese tão célebre quanto controversa de Freud sobre "o desejo do pénis",
constitutiva da identidade feminina. Defende a ideia de que a
identificação com um papel sexual (*sex-role identification*) que
acompanha a interiorização da colectividade familiar constitui um
mecanismo essencial que assegura, em simultâneo, a integração de um
indivíduo no sistema social e a sua adaptação antecipada à divisão
sexuada dos papéis sociais. Ao socializar-se na família (ou "grupo
primário"), a criança define-se, concomitantemente, como um ser sexuado
que tem de obedecer a normas específicas.

A resolução da crise edipiana permite à criança iniciar a fase de


latência (a3) e consolidar o sistema dos quatro papéis familiares
(pai/mãe/menino/menina) na sua personalidade social. A criança poderá
assim sair da esfera interna da família para experimentar um primeiro
sistema social global (*latency-child society*) constituído pela trilogia
"família, escola, grupo dos pares" (*id.*, p. 52). Esta experiência é
acompanhada pela passagem de categorias particulares (os papéis
familiares) a uma "categorização universalista" (p. 122), a qual permite
a adesão a regras gerais e imparciais (cf. Piaget que Parsons invoca para
reforçar a sua análise) e pela interiorização de novos papéis sociais já
não baseados em :,
gratificações imediatas, mas naquilo que os autores chamam "denegações de
reciprocidade" (b3). A criança deverá passar a ser, ao mesmo tempo, um
filho ou uma filha na família, um aluno-aluna na sua turma e um/uma
colega no grupo etário e tudo isto sem esperar recompensas particulares,
para além das que resultam de estar em continuidade com as expectativas
dos "agentes socializadores". Parsons insiste mais uma vez na importância
dos papéis assumidos pelos "agentes socializadores" no estabelecimento
desta nova função de "persecução dos objectivos" (G) que caracteriza esta
nova fase. Aprender os ofícios de aluno-aluna, de filho-filha e de
bom/boa colega não pode fazer-se sem uma colaboração mínima dos
professores, dos pais e dos "grandes" (o irmão mais velho, a irmã mais
velha, etc.), sem a partilha das mesmas normas (função L) e sem a
integração no mesmo sistema social (função 1). A teoria parsoniana
integra tudo isto.

O momento da segunda grande crise que constitui a adolescência é marcante


na socialização do indivíduo. Trata-se, agora. de "abandonar a família de
orientação" para ser reconhecido como membro adulto de um grupo de
pertença de tipo "universalista" e já não "particularista" como era a
fami1ia de origem. Para o jovem, trata-se de entrar em novos campos de
interacção (casamento, profissão...) aprendendo novos papéis que implicam
o reconhecimento social da sua maturidade (a4). Este reconhecimento
pressupõe um novo relacionamento com as regras sociais que permitem a
"manipulação das sanções" (b4), ou seja, uma capacidade de se adaptar a
um novo universo institucional adaptando as regras às motivações, a
partir daqui conscientes e reconhecidas como legítimas. Trata-se, de
certa forma, de reconstruir uma adaptação (A) voluntária graças às
aquisições interiorizadas nas suas socializações anteriores. A superação
da crise da adolescência e a adaptação social à idade adulta dependem do
sucesso daquela reconstrução.

Esquema 2.1.

O sistema LIGA e a socialização segundo Parsons

:::::::
A: Adaptação
a4: maturidade (8-16 object systems)
b4: manipulação das sanções

G: Persecução dos objectivos


a3: latência (4-8 object-family role systems)
b3: denegação da reciprocidade

Adolescência (c4)

Crise oral (cl)


a1: dependência oral (mother-child identity)
b1: permissividade
L: Estabilidade normativa

Fase edipiana (c3)


a2: ligação amorosa (parent-self object differentiation)
b2: apoio anal 2)
I: Integração

Fase anal (c2)

Fonte: Parsons 1955, p. 41

a: fases da socialização

b: mecanismos específicos
c: fases e crises :,
::::::

O esquema 2.1 . retirado de Parsons ( 1955, p. 41 ) faz coincidir as


quatro fases "biográficas" da socialização dos indivíduos com as quatro
funções estruturais" da socialização concebida como processo social. Esta
correspondência é inteiramente justificada pela apresentação precedente.
Ela implica, de facto, que as funções mais decisivas da socialização (a
interiorização das normas e dos valores e a integração social) sejam
também aquelas que são realizadas mais cedo e que a personalidade social
esteja já constituída, desde a primeira infância, pela assimilação das
grandes "formas de orientação" da fami1ia de origem (os célebres
"*pattern-variebles*" que não foram abordados aqui, mas que estão
presentes e discutidos em todas os livros franceses consagrados à obra de
Parsons). Apesar de não ser a única leitura possível da síntese dedicada
especificamente à socialização ( 1955) que contém desenvolvimentos
importantes referentes à ambivalência e ao desvio como "desregramentos da
interacção e fontes de mudança social" (Bourricaud, p. 144), esta
apresentação não está, no entanto, em contradição com a teoria geral
parsoniana, ironicamente chamada por W. Mills (trad. 1967) de "Teoria
Suprema". Efectivamente, ela assenta na ideia de que o processo de
socialização deve normalmente conduzir à adaptação das personalidades
individuais ao sistema social tal como funciona nas estruturas mais
profundas, ou seja, nas estruturas que exprimem o sistema simbólico e
cultural existente. A conformidade precoce dos indivíduos às normas e aos
valores é assegurada pelos agentes socializadores que também foram
socializados neste sistema e que se encontram legitimados para garantir o
seu papel socializador. Quanto mais cedo esta conformidade intervém na
existência, mais ela se integra precocemente na personalidade em formação
e mais possibilidades ela tem de conduzir com sucesso a uma adaptação. É
este "esquema culturalista" que Parsons partilha com os teóricos da
antropologia cultural (14) e que completado com uma metáfora cibernética
lhe permite transpô-lo para as sociedades modernas e, antes de mais, para
a sociedade americana onde o conformismo representava, pelo menos na
época, uma norma essencial. O "sistema social", de acordo com Parsons,
representa, deste ponto de vista, o complemento indispensável à "cultura"
dos antropólogos e permite a generalização do modelo "culturalista" da
socialização para as sociedades contemporâneas (Rocher, 1972). Esta
generalização tornar-se-á objecto de múltiplas e contundentes críticas
que levarão a pôr em causa a própria pertinência do ponto de vista
funcionalista que orientou a sua efectivação. :,

(14) Parsons desenvolve longamente a questão da generalização do seu


esquema a culturas tradicionais regidas por outras estruturas de
parentesco. Considera a sua teoria como susceptível de ser generalizada,
com a condição de distinguir os tipos de papéis (*role-patterns*) da sua
aplicação especifica a uma dada cultura. Ao defender a tese da
universalidade das quatro funções e dos quatro papéis de base no "grupo
primário" (papéis de pai, mãe, filho e filha), considera como
equivalentes funcionais as diversas formas e combinações assumidas por
estes papéis nas diversas culturas (1955, pp. 106 e seguintes).

2.3. Críticas do funcionalismo:


da hipersocialização à socialização antecipatória

A querela da hipersocialização

Num artigo acutilante, o sociólogo Dennis Wrong (1961) acusa Parsons de


fazer da "sociedade dos homens" uma realidade que não é "muito diferente
da sociedade das abelhas" com a única reserva de que "o resultado
atingido neste caso pelo instinto é no outro caso atingido por outros
caminhos". Ao qualificar a teoria de Parsons como uma "concepção
hipersocializada do homem", Wrong denuncia a redução da socialização por
Parsons a um "puro e simples treino", eliminando assim a questão central
colocada desde o século XVIII por Hobbes: "Como é possível haver uma
coesão social numa sociedade sempre ameaçada pela guerra de uns contra os
outros?".

Esta querela do indivíduo hipersocializado provocou o protesto de Parsons


que redefine a socialização como "sistema de relações dinâmicas"
destinado a resolver aquilo que ele chama de "paradoxo do social" e que
ele enuncia deste modo: "as sociedades humanas são compostas por
indivíduos autónomos" e, no entanto, "não são puros agregados de
indivíduos". Em sua opinião, a sua teoria da socialização dá conta das
condições onde o indivíduo pode ser "obrigado, induzido, constrangido ou
motivado para participar na vida social". Ele insiste na importância da
passagem da socialização primária marcada pela dependência e considerada
como "hierárquica e naturalista" para a socialização secundária submetida
às interacções e concebida como "igualitária e artificialista". A
passagem de uma para a outra marca uma ruptura na "conquista da
autonomia", assegurando ao mesmo tempo a continuidade necessária à
manutenção das normas e dos valores da geração precedente. Porque, como
diz Parsons, "socializar um indivíduo é torná-lo semelhante aos outros
membros do grupo e particularmente aos seus pais". É isto que assegura,
em sua opinião, a identificação que permite à criança ser "semelhante sem
ser idêntica" (Bourricaud, 1977, p. 192).

Esta querela da hipersocialização incide sobre um aspecto essencial:


serão as eventuais identificações da primeira infancia decisivas quanto
às identidades futuras do indivíduo? Serão estas identificações
necessárias à estruturação da personalidade da criança? Será que elas
assegurarão a continuidade das normas e dos valores entre as gerações?
Como verificar empiricamente a relação entre estas identificações e os
comportamentos ou as representações da idade adulta? Não estaremos nós
diante de um postulado inverificável e demasiado arbitrário, resultante
do impacto da psicanálise no conjunto das ciências humanas? Isto parece
ser um dos pontos fulcrais desta querela. A relação de Parsons com a
psicanálise merece ser esclarecida. Lembramos que ele tinha iniciado
estudos de biologia com a intenção de empreender uma carreira médica,
mas, convertido às ciências sociais por um dos seus professores,
interrompeu-os dando início a novos estudos em economia e sociologia --
nomeadamente na Escola de Economia em Londres -- e começou a :, ensinar
em 1927 no departamento de Economia de Harvard onde publicou, em 1937, a
sua obra mais marcante *The Structure of Social Action*, o que lhe
provocou, aliás, um atraso considerável na sua carreira institucional em
Harvard (15). No início dos anos quarenta,

(15) Parece que Parsons teve de suportar reacções hostis em Harvard pelo
facto de criticar vigorosamente P. Sorokin, titular da cadeira de
Sociologia. Parece também haver uma relação entre esta rejeição relativa
e o envolvimento de Parsons na análise da prática médica no hospital de
Boston. Agradeço a Béatrice Appay por me ter feito descobrir estes
aspectos importantes da biografia do mais impressionante dos teóricos da
sociologia do século XX (Appay. 1989). Cf. também o livro de Gouldner
*The Coming Crisis of Western Socialogie* (1970), onde se poderá
encontrar uma biografia de Parsons e uma critica equilibrada da sua
teoria.

regressa de novo ao Hospital-Geral da região de Boston onde inicia um


estudo da prática médica que marcará decisivamente a continuação da sua
obra (cf. segunda parte. capítulo 6). Foi aí que descobriu a psicanálise
ao mesmo tempo que toma forma a sua teoria da acção enquadrada na sua
concepção da socialização. Esta foi fortemente impregnada pelas teses de
Freud que, de certo modo, foram reforçadas e generalizadas pela concepção
funcional da estrutura social. Na realidade, desde que Parsons se
persuadiu de que o sistema social -- cimentado por valores comuns --
constitui condição para o sucesso da comunicação (interacção) entre os
indivíduos e que este sistema só pode ser interiorizado nas
personalidades e não manter-se exterior a elas, a tese da socialização
precoce constitui a solução mais simples para o problema precedente:
identificando-se com os seus próximos, a criança interioriza as normas e
os valores deles e torna-se assim um actor desejoso de comunicar com
aqueles que têm a mesma experiência que ela, reproduzindo assim as normas
e os valores da sociedade e do seu meio de origem. Deste modo, a teoria
de Parsons não pôde evitar produzir uma espécie de axiomática formal que
reduz as acções individuais a esquemas analíticos pré-construídos
(Chazel, 1972). Segundo Parsons, o indivíduo hipersocializado mesmo sem
querer -- seja qual for a cultura de origem -- torna-se, na idade adulta,
um agente socializador que reproduz as normas e os valores que também o
socializaram. O paradoxo de Hobbes ("a guerra de uns contra outros")
resolve-se assim: não fazemos guerra aos nossos semelhantes,
identificamo-nos com eles.

O que aconteceria se não entrássemos neste padrão? Para Parsons, e para


todos os culturalistas, inscrevemo-nos numa trajectória de *desvio*. Os
que não saem da primeira infância (ou da adolescência) com o sentimento
de pertença cultural bem vincado -- seja por não terem conseguido
identificar-se, seja porque, tendo-se identificado, não interiorizaram
normas ou valores particulares -- têm de assumir a sua posição de
desviantes e lutar pelo seu reconhecimento por um outro grupo que não o
da família de origem, ou para inflectirem os valores e as normas do grupo
onde se querem integrar. Como Ruth Benedict dizia sobre as três
sociedades que estudou, alguns conseguem-no e podem mesmo tornar-se
prestigiosos inovadores, outros falham e são excluídos, marginalizados
ou, nas sociedades modernas, são acompanhados ou mesmo "psiquiatrizados".
Mas, em qualquer dos casos, são excepções que só marginalmente têm a ver
com a teoria sociológica na versão de Parsons... :,

Merton e a socialização antecipatória: a teoria do grupo de referência

Ao contrário de Parsons, Merton recusa fechar-se numa teoria geral. Ele


advoga a elaboração de "teorias de médio alcance" (*middle range
theories*), estritamente articuladas com as investigações empíricas e,
portanto, susceptíveis de serem enriquecidas ou mesmo invalidadas por
elas.
Funcionalista porque defensor da "análise funcional" que procura
encontrar as relações entre as estruturas de um grupo social com as
funções que ele desempenha, Merton critica as teorias funcionalistas
universais -- como explicitamente a de Malinowski e implicitamente a de
Parsons -- que assentam em postulados universais infalsificáveis (16) e
"impregnados de ideologia". Defende um funcionalismo heurístico, capaz de
fornecer hipóteses "submetidas a uma crítica teórica rigorosa
paralelamente à acumulação de investigações empíricas" (Merton, trad.
francesa, 1965, p. 138).

(16) O termo "infalsificável" é uma tradução do termo utilizado por K.


Popper para designar um dos critérios fundamentais de uma teoria
científica: o facto de se poder "falsificá-la", isto é, demonstrá-la como
falsa através da sua confrontação com um conjunto de procedimentos
empíricos (Popper, 1959).

Merton interroga-se sobre o seguinte fenómeno: por que razão alguns


indivíduos, em determinadas situações, se definem ou se referem
positivamente a um grupo social que não é o seu grupo de pertença? Os
exemplos abundam: as meninas que acham "ridículo" brincar com bonecas e
preferem correr nos bosques com os irmãos; os filhos de emigrantes que
rejeitam as suas tradições e valorizam as atitudes dos seus companheiros
autóctones; os operários que frequentam cursos do mesmo modo que os
técnicos da empresa em que trabalham; os estudantes que preferem os
"biscates" às aulas da faculdade... O primeiro autor a introduzir esta
noção, talvez Herbert Hyman, opunha o grupo de referência (*out-group*)
ao grupo de pertença (*in-group*) e interrogava-se sobre o papel do
primeiro na definição do estatuto do indivíduo (1942). Merton tenta
precisar o sentido desta noção e teorizá-la (*middle range*) a partir de
uma releitura do inquérito alargado realizado aos soldados americanos
durante a Segunda Guerra Mundial e conhecido pela designação de *American
Soldier*. Ele ficou, com efeito, surpreendido com o facto de os autores
do inquérito verificarem a existência de correlações inesperadas entre as
variáveis de situação e as variáveis de atitude dos soldados. Assim, a
título de exemplo, aqueles que se encontravam em unidades em que as
promoções eram rápidas (força aérea) estavam muito menos satisfeitos e
tinham opiniões mais desfavoráveis sobre as suas hipóteses de promoção,
enquanto que os que estavam nas unidades que tinham promoções mais raras
encontravam-se mais frequentemente satisfeitos e acreditavam muito mais
na hipótese da sua promoção (Merton, trad. 1965, p. 210). Para
interpretar estas relações, os autores do inquérito invocam a noção de
frustração relativa que subentende que cada um julgue a sua situação
comparando-se com uma categoria ou um grupo diferente do seu. Assim, e
voltando ao exemplo precedente: "Um grau elevado de mobilidade suscita
expectativas sucessivas que não podem ser satisfeitas, resultando daí uma
frustração para aquele que se mantém na mesma posição". O aviador de base
compara-se com o seu colega que se tornou oficial :, subalterno e sente-
se frustrado enquanto que o polícia se compara aos seus parceiros e
considera-se satisfeito. A partir da acumulação de exemplos ("45% dos
"azuis" afectos a unidades novas sem veteranos afirmam estar prontos a ir
para uma zona de combate, contra 35% dos "azuis" colocados em unidades
mais antigas e 15% dos veteranos"), Merton coloca uma primeira hipótese
que considera sólida: "Num grupo, os membros subordinados, ou ainda não
integrados, têm sempre tendência para partilhar os sentimentos e para se
conformarem com os valores do núcleo mais prestigiado e respeitado pelo
grupo". Assim, os "azuis" das unidades novas equiparam-se aos outros
"azuis". enquanto que os das unidades antigas se equiparam aos
"veteranos" os quais, já tendo sofrido bastante, recusam qualquer
idealização do "tiroteio". Ao aplicar esta hipótese geral a outros casos,
Merton realça a questão "dos mecanismos de assimilação dos valores": será
que os novos adoptam as posições dos mais prestigiados do grupo porque
estabelecem mais facilmente relações com eles? Será que, à partida, têm
motivações de promoção individual? Será que querem ser aceites pelo grupo
dirigente? Será que formam entre eles um agregado ou um subgrupo
organizado? Merton resume todas estas questões numa interrogação global
sobre as condições da mudança dos valores e das normas que fazem com que
os membros de um grupo "identifiquem o seu destino com o de um outro
grupo e já não tenham confiança nos seus interesses e valores" (*id.*, p.
223).

O próprio autor propõe um esboço de resposta com a noção de socialização


antecipatória. Trata-se do processo pelo qual um indivíduo aprende e
interioriza os valores de um grupo (de referência) ao qual deseja
pertencer. Esta socialização ajuda-o a "impor-se no grupo" e deveria
"facilitar a sua adaptação no seio do grupo". Mas, segundo Merton, não
existem, no momento em que escreve (1950, trad. 1965, p. 227), "dados
comprovativos" sobre esta questão.
Debruçar-nos-emos de seguida sobre esta questão.
Em primeiro lugar, verifiquemos que a noção de socialização antecipatória
foi aplicada por Merton a adultos e não a crianças. Trata-se de aprender
antecipadamente as normas, os valores e os modelos de um grupo ao qual
não se pertence. Notemos também que esta noção está logicamente ligada às
noções de "grupo de referência" e de "frustração relativa": porque se
compara aos membros de um outro grupo, o indivíduo sente-se frustrado em
relação a eles e quer tornar-se parecido com eles para, talvez um dia,
vir a ser reconhecido por eles como "membro". Assinalemos, finalmente,
que Merton evoca, por várias vezes, "casos" de mobilidade que implicam a
passagem efectiva de um grupo social a um outro a que ele associa um
conjunto de designações pejorativas e até depreciativas: "renegado,
traidor, apóstata, cata-vento, pérfido, desertor, herético" (*id.*, p.
246). Condensadamente ele explica a origem destas designações
depreciativas: "o renegado simboliza, então, a fraqueza dos valores e dos
suportes de um grupo" (*id.*, p. 246).

O que é que acontece, de um ponto de vista funcional, se se pressupõe que


a maior parte dos indivíduos têm tendência a identificarem-se não ao seu
grupo de pertença, mas sim a um grupo de referência mais prestigiado?
Várias situações são possíveis. Ou a instituição onde se encontram (ou
mesmo como diz Merton, a estrutura social) oferece :, oportunidades de
mobilidade ascendente ("a socialização antecipatória só é funcional numa
estrutura social que promove a mobilidade"): a coesão do grupo dá lugar à
competição entre os seus membros; todos acabam por partilhar as normas e
os valores do grupo dominante e alguns conseguem integrar-se nele, os
outros, excluídos e amargurados, serão ameaçados pela anomia. Ou a
instituição (ou a estrutura social) não promove a mobilidade e o grupo de
pertença partilha uma frustração colectiva que pode resultar numa acção
reivindicativa ou numa explosão de desanimo. Ou ainda cada um associa a
solidariedade para com os seus companheiros com a competição pelo acesso
a algumas posições em aberto: os valores partilhados são então um misto
dos valores "dominantes" e dos valores partilhados pelo grupo de base. Ou
então, por fim, a situação provoca uma segmentação do grupo entre os que
aderem aos valores dominantes, aqueles que mantendo os valores do grupo
dominado os combinam com os primeiros, aqueles que, identificando-se com
estes valores, procuram suscitar a acção colectiva e aqueles que,
interiorizando a impossibilidade de mobilidade, caem na anomia (17).

(17) Uma tentativa de modelização das hipóteses de frustração em função


da estrutura das situações de interacção -- e nomeadamente de competição
-- foi realizada por R. Boudon (1977).

Esta última hipótese assenta na ideia de uma *adesão diferencial aos


valores* do grupo de pertença. Esta diferenciação enraiza-se nas
histórias anteriores dos membros do grupo: aqueles para quem o grupo
representa um prolongamento do seu grupo social de origem estarão mais
ligados aos seus valores do que aqueles que conheceram uma mobilidade
anterior; a ligação destes últimos, por sua vez, será diferente consoante
a mobilidade anterior foi ascendente ou descendente. Por fim, a ligação
pode ser mínima naqueles que são originários de um grupo social que
partilha os mesmos valores dos do grupo dirigente da instituição. Neste
último caso, o grupo de referência é justamente o grupo social de origem
do indivíduo. É uma situação já bem conhecida na sociologia (Girod, 1971)
sob a designação de "contramobilidade social".

Um estudo empírico: formação continua e contramobilidade social


No final dos anos sessenta, C. de Montlibert analisou o público de um
Centro de Promoção Superior do Trabalho em França. Trata-se de adultos,
na maior parte dos casos, empenhados na vida profissional, que estudavam
à noite para obter um diploma, estruturado em unidades capitalizáveis. A
maioria deles eram operários e empregados em empresas ou administrações
da região da Lorena. O diploma de fim de curso (Diploma de Estudos
Superiores Técnicos) situava-se ao nível do bacharelato cientifico (12.o
ano + 3) e podia permitir o acesso a um emprego de quadro. A maior parte
dos "estagiários" entravam no "sistema de formação" sem um diploma
profissional anterior ou com um Certificado de Aptidão Profissional
(CAP), o que significava que tinham de frequentar aulas e acumular
"unidades" durante pelo menos cinco anos para terem hipóteses de
conseguirem o diploma de fim de curso (Montlibert, 1968, p. 208). :,

O autor verificou. em primeiro lugar, a existência de uma alta taxa de


abandono entre os estagiários: só chegam ao fim do curso uma baixa
percentagem dos inscritos no primeiro ano. Nem todos os que conseguem
acabar o curso se tornam quadros: dois terços são técnicos superiores ou
engenheiros alguns anos após terem terminado os estudos. Ele compara, em
seguida, através de um questionário, as características e as atitudes dos
alunos inscritos com as de uma amostra (grupo controlo), com as mesmas
propriedades no que diz respeito ao nível etário, ao estado civil e à
categoria socioprofissional de pertença (*id.*, p. 209). Consegue, deste
modo, pôr em realce um conjunto de diferenças significativas entre os
dois grupos, tanto no que diz respeito às atitudes como à trajectória
social. Assim. enquanto 8% dos adultos do grupo controlo se encontravam
numa posição social inferior à do pai ("desclassificação"), esta
percentagem é de 26% para os alunos que frequentavam o curso. Verifica-se
também uma diferença análoga, mas em sentido inverso. no que diz respeito
às trajectórias de "promoção".

Uma das questões em que se verificam as diferenças mais importantes nas


respostas dadas pelos dois grupos era a seguinte: "Há no vosso agregado
familiar pessoas que ocupam uma das seguintes profissões?". Quando se
trata de profissionais intelectuais (engenheiros, directores, estudantes,
professores) os "estagiários" respondem muito mais vezes positivamente e
muito menos vezes positivamente quando se trata de profissões como
"operários" ou "empregados".

Para interpretar estes resultados, C. de Montlibert apoia-se na teoria


mertoniana da socialização antecipatória e do grupo de referência: "os
alunos que se identificam com os engenheiros apercebendo-se da "distancia
social" que estes mantêm com os seus subordinados, reproduzem este
comportamento por antecipação: não será uma prova de fidelidade aos
valores do grupo a que se deseja pertencer rejeitar, em maior ou menor
grau, os colegas de trabalho?" (*id.*, p. 216).

Estas atitudes explicam-se pelo facto de que uma fracção significativa


dos adultos que, tendo seguido em regime nocturno uma formação longa, se
situam numa trajectória de contramobilidade social: oriundos de famílias
de camadas médias (professores, técnicos superiores) ou superiores
(engenheiros, directores...), estes adultos não conseguiram concluir o
12.o ano ou obter um diploma do ensino superior e encontraram-se, deste
modo, na situação de operários ou de empregados. Ao compararem-se a
alguns membros das suas famílias que pertencem a profissões
"intelectuais", consideram-se como desclassificados e sentem uma
frustração marcada pelos modelos culturais das camadas sociais
"superiores". A sua motivação para prosseguir os estudos, obter um
diploma de fim de curso e "tornar-se quadro", explica-se pelo
desnivelamento entre os valores e as normas do grupo "profissional" de
pertença e os do grupo "social" de referência, similares ou próximos dos
da família de origem ou da família por afinidade. Encontram-se, por isso,
"subjectivamente" envolvidos numa trajectória de promoção social, que
mais não é do que uma maneira de restabelecer a sua posição social de
origem (dai o termo contramobilidade social porque, afinal de contas,
eles encontram-se numa situação de não-mobilidade intergeracional): :,

Esta interpretação dá conta pelos menos parcialmente das diferenças de


atitudes entre este grupo e o grupo controlo (dos que não frequentam
nenhum curso): são menos frequentemente sindicalizados. acreditam menos
na possibilidade de uma promoção interna sem diploma, são mais críticos
em relação aos seus colegas de trabalho, os que se encontram na situação
de contramobilidade aderem muito menos às normas do grupo profissional a
que pertencem "objectivamente". Pelo menos parcialmente, eles
interiorizaram as opiniões, as atitudes, as crenças do grupo dos quadros
a que se referem "subjectivamente": desvalorização dos executantes,
hostilidade em relação à acção sindical operária, valorização do diploma,
etc. Eles estão empenhados num processo de socialização antecipatória aos
"modelos culturais" do grupo de referência: os cursos nocturnos são
somente um elemento desta socialização latente, essencialmente informal,
que está enraizada na infância, na rede de relações familiares e na
história pessoal (18).

(18) Esta abordagem dos cursos nocturnos por C. de Montlibert tem de ser
situada na sua época: os anos 60 em França onde o modelo da "promoção
social" predomina em matéria de formação continua As análises dos
comportamentos em formação dos adultos franceses serão, de futuro,
complexificadas, nomeadamente, pelo papel crescente das empresas e pela
subida do desemprego (Dubar, 1983).

2.4. Uma perspectiva funcional e "generalizada" da socialização

Apesar das diferenças entre as diversas concepções analisadas neste


capítulo, emerge uma abordagem comum que tende a conceber a socialização
como um mecanismo explicativo de inúmeras condutas individuais e como uma
modelagem das personalidades, de acordo com as características mais
estruturantes das culturas consideradas essenciais ao funcionamento
social.

Vejamos as principais críticas dirigidas a esta abordagem, tenha ela um


cunho mais "culturalista" e elaborada a partir de exemplos de sociedades
tradicionais (Kardiner) ou um cunho mais "estruturo-funcionalista" e
construída a partir do exemplo da sociedade americana (Parsons):

-- esta abordagem considera a formação da criança de acordo com um modelo


de adestramento (ef. Wrong) ou de acordo com o esquema do
*condicionamento* (Boudon, Bourricaud, 1982, p. 483) que implicam ambas a
assimilação precoce e inconsciente de esquemas corporais e atitudes
culturais que se espera determinam as condutas futuras. Este paradigma
(19) da "socialização-condicionamento" faz do indivíduo socializado uma
espécie de autómato determinado ou programado pelas experiências passadas
e não um actor livre das suas escolhas e responsável pelos seus actos; :,
esta abordagem privilegia as experiências da primeira infância e as
"disciplinações de base" impostas pela cultura do grupo social de origem:
as primeiras relações inconscientes ou recalcadas, marcam muito mais o
indivíduo do que as seguintes e constituem tipos de personalidade que
exprimem a cultura do grupo de origem Este paradigma "psicanalítico"
impregna, mais ou menos, todas as versões da abordagem culturo-funcional
e faz do adulto socializado um produto do complexo parental de onde ele é
originário;

(19) O termo paradigma é utilizado aqui num sentido mais lato do que no
capítulo 1: designa as representações de um fenómeno (aqui: a
socialização) características de algumas "correntes" transversais às
várias disciplinas das ciências humanas e fornece "modelos de
inteligibilidade" do funcionamento deste fenómeno.

-- esta abordagem confere à *cultura*, considerada como um todo, uma


eficácia *sui generis* sobre os indivíduos que ela modela ou impregna de
uma forma geralmente inconsciente. Este paradigma "holista" tende a não
ser operatório como até se torna um obstáculo à análise sociológica das
condutas individuais nas sociedades modernas. Estas tendem a fazer do
indivíduo livre e racional o ponto de partida obrigatório de qualquer
análise e do individualismo o referente de qualquer discurso mobilizador
(L. Dumont, 1983).

Será que estas críticas, tanto filosóficas como científicas, invalidam


totalmente a abordagem culturo-funcional da socialização, considerada,
contudo, durante muito tempo como "clássica"? (Gouidner, 1970). Não é
esta a nossa opinião e o uso que dela faz Merton mostra que ela conserva
um valor heurístico na condição de a aplicar em análises empíricas
sólidas. Ela permanece útil tanto para analisar e compreender as condutas
daqueles que cresceram em contextos culturais tradicionais e bastante
integrados, como para fornecer hipóteses explicativas das condutas
individuais ditas "modernas". Há uma vertente da sociologia que ainda
hoje está impregnada por esta abordagem e tenta adaptá-la às evoluções
das sociedades contemporâneas.

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A socialização como incorporação dos *habitus*


3.1. Uma definição problemática do *habitus*

Oriundo da palavra latina utilizada pela tradição escolástica, e


traduzindo a palavra grega *héxis*, usada por Aristóteles para designar
"as disposições adquiridas pelo corpo e pela alma" o termo *habitus* foi
utilizad por Durkheim num livro publicado com o título *évolution
Pédagogique en France* (1904-1905) onde afirma: "há em cada um de nós um
estado profundo de onde os outros derivam e encontram a sua unidade: é
sobre ele que o educador deve exercer uma acção durável... *é uma
disposição geral do espírito e da vontade* que possibilita uma visão das
coisas numa determinada
perspectiva... no cristianismo corresponde a uma certa atitude da alma, a
um certo *habitus* do nosso ser moral" (ed. 1968, p. 37). Durkheim
define, assim a educação como "a constituição de um estado interior e
profundo que orienta o
indivíduo num sentido definido para a vida inteira" (*id.*, p. 38).

Bourdieu retoma esta nação filosófica clássica utilizada por inúmeros


autores (Héran, 1987), conferindo-lhe uma definição mais complexa, mais
dialéctica e que pretende ser mais operatória. Define os *habitus* como
"sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto
é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e de
representações" (1980, p. 88). Presença activa e sintética de todo o
passado que o produziu, o *habitus* é a estrutura geradora das práticas
"perfeitamente conformes à sua lógica e às suas exigências", :, que
exclui as práticas mais improváveis, "à primeira vista, consideradas
impensáveis" (1980, p. 90). Produzindo apenas práticas "determinadas
pelas condições de produção passadas e antecipadamente adaptadas às suas
exigências objectivas", o *habitus* assegura, nomeadamente, "a
correspondência entre a probabilidade *a priori* e a probabilidade *ex
post*" (*id.* , p. 105) e, portanto, "a correlação muito estreita entre
as probabilidades objectivas (por exemplo, as hipóteses de acesso a este
ou àquele bem ou serviço) e as esperanças
subjectivas (as "motivações" e as "necessidades")". Na medida em que,
pondo de lado qualquer estratégia que lhes parece muito arriscada tendo
em conta as suas experiências
anteriores, os indivíduos acabam geralmente por só desejarem na prática o
que têm hipótese de conseguir tendo em conta o seu passado, o *habitus*
assegura "esta espécie de submissão imediata a uma ordem que leva a fazer
da necessidade uma virtude" (*id.*, p. 90, fórmula muitas vezes retomada
pelo autor). É esta espécie de regulação de base que Bourdieu chama
"processo puramente social e quase mágico de socialização" (*id.*, p. 96)
uma vez que assegura, simultaneamente, a adesão subjectiva e a
participação activa dos agentes à reprodução da posição social,
provocando ao mesmo tempo a incorporação de um "mundo de senso comum cuja
evidência imediata se transforma em objectividade e assegura o consenso"
(*id.*, p. 97).

Definido deste modo, o *habitus* parece excluir qualquer possibilidade de


mudança social. Se cada indivíduo está condicionado de maneira coerente
("tudo acontece como se
o *habitus* fabricasse coerência e necessidade a partir do acidental e da
contigência", *id.*, p. 134), desde a primeira infância, tanto nas
posturas corporais como nas suas crenças
mais íntimas ("os efeitos do *habitus* inscrevem-se para sempre no corpo
e nas crenças" *id.*, p. 96), percepcionando, querendo e fazendo
("esquemas de percepção de pensamento e de acção") apenas aquilo que é
estritamente conforme às suas condições sociais anteriores, não se
vislumbra de onde poderia vir a mudança: se cada um reproduzisse
estritamente aquilo que conheceu, então as condições que engendraram os
*habitus* manter-se-iam imutáveis pelas práticas saídas destes *habitus*.

Ora, será exactamente isto o que Bourdieu quer dizer? Na maioria dos
textos em que expõe a concepção do *habitus*
-- em todo o caso posteriores à *Reproduction* (1970) - tem o cuidado de
lembrar, várias vezes (nomeadamente: 1974, pp. 4, 5, 10, 28; 1980, pp.
103, 104, 105, 134...), que o *habitus* tende somente a reproduzir as
estruturas das quais é o produto "na medida em que as estruturas nas
quais funciona são idênticas ou homólogas às estruturas objectivas das
quais é o produto". Esta distinção entre "condições de produção" e
"condições de funcionamento" do *habitus* introduz um elemento
fundamental de incerteza na teoria do *habitus*.

Podemos, com efeito, interpretar as "condições de produção" do *habitus*


de duas formas diferentes situando-nos, antes de mais, a nível
individual. Podemos traduzir a expressão "estruturas objectivas que
produzem o *habitus*" pela de configuração das situações sociais nas
quais decorreu a infância de um indivíduo. Tudo depende então das
relações entre esta configuração de origem e as situações sociais vividas
na idade adulta. Um filho :, de um operário, que se tornou também
operário (e que se casou com a filha de um operário), encontrar-se-á face
a situações "homólogas" daquelas que produziram o seu "*habitus*
operário" e reagirá como aprendeu precocemente, contribuindo assim para
reproduzir todo o grupo operário. Um filho de um operário que se torna
empregado de escritório e que casa com a filha de um empregado defrontar-
se-á com situações inéditas e terá de inventar práticas para se adaptar a
essas situações: o seu "*hubitus* operário" conduzi-lo-á a ser um
empregado especial, vivendo as situações (familiares de trabalho, de
lazer...) mais como um operário do que como um empregado. Para se
adaptar, ele deverá ou converter, pelo menos parcialmente, o *habitus* de
origem, ou renunciar ao seu estatuto de emprego, para se encontrar numa
situação mais conforme ("de estrutura homóloga") à sua condição de
origem. Nesta primeira interpretação -- perfeitamente culturalista --, o
*habitus* não é senão a cultura do grupo de origem, incorporada na
personalidade, importando os seus esquemas em todas as situações
ulteriores e provocando inadaptações sempre que estas situações se
distanciam demasiado das da infância.

Tal como faz P. Bourdieu em várias ocasiões (1974. pp. 5, 19, 22; 1980,
pp. 102 e seguintes), pode-se também fazer do *habitus* não o produto de
uma condição social de origem, mas o produto de uma *trajectória social*
definida através de várias gerações e mais precisamente através da
"orientação da trajectória social da linhagem" (1974, pp. 5 e 29); neste
caso já não podemos definir de uma forma sincrónica as "estruturas
objectivas" que produzem *habitus*. O filho de um operário, sendo este
filho de camponês e propenso à ascensão social e ao abandono da condição
operária, não será educado da mesma maneira que o filho de um operário,
também este filho de operário, e persuadido que não se pode sair da
condição operária. Enquanto o primeiro arrisca ter um "*habitus* de
pequeno burguês" -- sendo de origem operária mas com uma socialização
antecipatória de pequena burguesia --, o segundo terá um *habitus*
operário "tradicional". A estrutura das situações que ambos encontram não
será percepcionada da mesma maneira pelo primeiro e pelo segundo. Assim,
o primeiro poderá ter um bom sucesso escolar, poderá investir nos estudos
para "não ser operário como o pai", enquanto que o segundo sairá da
escola mais cedo com, por exemplo, um diploma do ensino técnico curto
"para ter um bom ofício (de operário) como o do pai". Na segunda
interpretação, o *habitus* não é essencialmente a cultura do grupo social
de origem, mas a orientação da família (a "vocação" corresponde à
"orientação" da trajectória familiar -- cf. 1974, p. 16), a identificação
antecipada a um grupo de referência cujas condições sociais não são as da
família ou do grupo de origem.

É óbvio que estas duas interpretações do *habitus* e das condições


objectivas" de produção não são idênticas. Em ambos casos, a socialização
é certamente uma incorporação duradoira das formas "de sentir, de pensar
e de agir" do grupo de origem, mas enquanto, no primeiro caso, este
*habitus* é concebido como um produto das "condições objectivas" (o filho
de um operário tem um *habitus* operário), no segundo caso é apresentado
como uma impregnação de atitudes subjectivas provenientes da linhagem da
faml1ia (o filho de operário pode ter um *habitus* de pequeno burguês).
No primeiro caso, pode-se comparar "objectivamente" situações encontradas
na idade adulta a situações vividas na infância (a :, estrutura é
homóloga se as situações relevam das mesmas categorias sociais); no
segundo caso, esta comparação já não tem sentido porque a situação
"objectiva" depende dos "esquemas de percepção, de apreciação e de acção"
com os quais os indivíduos a apreendem (situações classificadas
socialmente de formas diferentes podem ser vividas de maneira
semelhante). Assim, quando Bourdieu apresenta o *habitus* como um tipo de
tendência do grupo para persistir no seu ser" (1974, p. 30), tem o
cuidado de indicar que esta tendência "não tem sujeito", que é "capaz de
inventar, na presença de situações novas, novos meios de realizar as
funções antigas" e que opera "a um nível muito mais profundo" do que as
tradições familiares ou as estratégias conscientes dos indivíduos. O
grupo pode, portanto, "persistir no seu ser social", assumindo formas
diferentes e adaptando-se a situações diversas. Da mesma maneira, quando
Bourdieu afirma que os *habitus* que engendram as práticas e as
"estratégias objectivas" dos indivíduos "cumprem sempre, em parte,
funções de reprodução", ele acrescenta que são "objectivamente orientadas
para a conservação *ou o aumento* (20) " do património" bem como para "a
manutenção *ou a melhorial* da posição do grupo" (*id.*, p. 30). Assim,
reproduzir as condições de produção pode significar querer aceder a um
estatuto social superior e não manter o estatuto de origem. Para conhecer
o *habitus* de um indivíduo, não basta conhecer as "condições objectivas"
em que foi criado, mas é necessário também conhecer o *habitus* dos pais
e o dos parentes e, sobretudo, a sua relação com o futuro. Poder-se-ia,
deste modo, apreender a mudança, mas com a condição de a incluir numa
trajectória social característica da linha de descendência ou de um
"grupo social" previamente definido como tal.

(20) Sou eu, Claude Dubar, que sublinho este aspecto.

Classes sociais e *habitus*: posições e trajectórias

Será que se pode encontrar na obra de Bourdieu um conjunto de *habitus*


específicos associados às grandes classes sociais e esclarecendo os
diferentes modos de socialização, que tenha por base a definição do
*habitus* entendido como sistema de disposições ligadas a uma trajectória
social?

Nos diferentes trabalhos do autor encontram-se múltiplas referências que


opõem as classes sociais, quer pela sua posição num espaço de poder
(dominantes/dominadas), quer pela sua trajectória global numa
temporalidade referenciada a duas ou três gerações
(ascendentes/descendentes), quer ainda por uma combinação destes dois
critérios (grande burguesia/pequena burguesia ascendente/pequena
burguesia em declínio/classes populares). Cada uma das classes ou
fracções de classe é definida, simultaneamente, por um estilo de vida
(bens consumidos, práticas culturais, etc.) e por uma relação especifica
com o futuro que inclui os seus "recursos de capital económico e
cultural" (volume e estrutura do património). Uma classe social torna-se,
assim, "a classe dos indivíduos dotados do mesmo *habitus*" (1980, p.
100), isto é, providos das mesmas disposições em relação ao futuro porque
partilham das mesmas trajectórias típicas. :,

A descrição dos *habitus* toma muitas vezes a forma de oposições de


"qualidades" ou de "virtudes" que estão enraizadas na língua comum e que
servem para caracterizar um estilo de relações. uma maneira de se
comportar física e moralmente, uma atitude geral diante do futuro
traduzindo-se por qualificativos triviais. Os que estão reunidos, por
exemplo, no quadro 3.1., são apresentados pelo autor para sublinhar "um
aspecto fundamental entre o *grande* (ou *o lato*) e *o pequeno* a partir
do qual se engendram todas as oposições particulares" (1974, p. 26).
Assim, no mesmo texto, o pequeno-burguês (em ascensão) é apresentado como
"um proletário que se faz pequeno para se tornar burguês": de origem
popular, limita a sua descendência "muitas vezes a um produto único,
concebido e moldado em função de expectativas rigorosamente selectivas da
classe importadora", inclina-se perante a família nuclear "muito unida,
mas restrita e um pouco opressiva", investe muito na escola e incentiva a
sua progenitura ao maior sucesso possível, manifesta através da sua
postura física (o que Bourdieu designa de *héxis* corporal) que deve
fazer-se pequeno para poder passar pela porta estreita que dá acesso à
burguesia: à força de ser estrito e sóbrio, discreto e severo na sua
maneira de vestir e de falar, nos gestos e no porte, falta-lhe sempre um
pouco de presença física, de capacidade de actuação, de ousadia e de
disponibilidade económica" (*id.*, p. 25). Ele opõe-se, assim, em tudo,
ao (verdadeiro) burguês, o qual pode mostrar disponibilidade económica
(nos gastos) e ousadia (de ideias) porque dispõe, simultaneamente, dos
meios (económicos) e dos códigos (culturais): tendo apenas a preservar
uma posição adquirida e não tentar aceder a uma posição superior, o
grande burguês manifesta, em todas as suas atitudes, esta "coincidência
realizada do ser e do dever-ser que justifica e autoriza todas as formas
intimas e exteriorizadas da certeza de si, segurança, :, desenvoltura
graça, facilidade maleabilidade, liberdade, elegância ou, numa palavra
natural" (*id.*, p. 27). O pequeno-burguês, segundo Bourdieu, distingue-
se do operário e do camponês que se mantiveram na sua condição de origem
e que não tendo tido a pretensão de se tornarem e, portanto, de parecerem
burgueses, podem ser o que são isto é, serem de condição "modesta", mas
com um falar franco e um "sólido" sentido da realidade que eles não
confundem com os seus desejos, e que os faz parecer "pacóvios" e com
"pouco à-vontade* quando se encontram no universo burguês do qual não
dominam os modos (económicos) de se enriquecer, nem o código (cultural)
das "boas maneiras" e da linguagem distinta.
Quadro 3.1.

Os *habitus* de classe segundo Bourdieu

::::::::::::
(Burguês)

"distinto", agradável, amplo (espírito, gesto, etc.), generoso, nobre,


rico, ousado (nas ideias, etc.), liberal, livre, maleável, natural,
agradável, desenvolto, seguro, aberto, vasto, etc.

(Pequeno-burguês)

"pretensioso", limitado, empertigado, com "ares de", pequeno, mesquinho,


sovina, cerimonioso, exigente, formalista, severo, rígido, crispado,
constrangido, escrupuloso, preciso, etc.

(Povo)

"modesto", atabalhoado, forçado, embaraçado, tímido, mal-


jeitoso,"incomodado". pobre, "modesto", "bom filho", "de boa natureza",
franco (fala), sólido

Fonte: 1974, p. 26. :,


::::::::::::

Esta descrição pressupõe que o *habitus* produto da socialização dos


indivíduos exprima, simultaneamente, uma posição (em cima/em baixo) e uma
trajectória (linear /ascendente) que se traduzem por uma mesma "visão do
mundo económico e social" (a qe Bourdieu chama, por vezes um "*éthos* de
classe"), que se afirma em todos os domínios da vida pública e privada.
Porque foi precocemente incorporada no duplo sentido de estruturação do
corpo de pertença" e de constituição de um "espírito de corpo", esta
disposição essencial, característica da pertença de classe, pode, assim,
escapar em grande medida à consciência e deixar os indivíduos na ilusão
da escolha quando apenas activam o *habitus* que os modelou. Assim
reformulada a questão inicial das relações entre "condições de produção"
e "condições de funcionamento" do *habitus* torna-se um falso problema já
que o indivíduo *aplica sempre os mesmos esquemas em todas as situações
que encontra* e que, à custa de "retraduções", "transferências" ou
"transposições sistemáticas" de acordo com as diversas situações, "todas
as práticas de um mesmo agente são objectivamente harmonizadas entre si,
sem necessidade de uma procura intencional de coerência e são
objectivamente orquestradas, sem recorrerem a uma concertação consciente
com as dos outros membros da mesma classe" (1974, p. 31). A socialização,
segundo Bourdieu, ao assegurar a incorporação dos *habitus* de classe,
produz a pertença de classe dos indivíduos, ao mesmo tempo que reproduz a
classe enquanto grupo que partilha o mesmo *habitus*.

3.2. Uma problemática ambígua dos campos sociais

"Num campo, agentes e instituições estão em luta, com forças diferentes e


segundo regras constituídas neste espaço de jogo, para se apropriarem dos
benefícios específicos que estão em jogo neste campo Os que dominam o
campo possuem os meios de o fazer funcionar em seu benefício, mas devem
contar com a resistência dos dominados" (1980, p 136). Esta fórmula
resume, de uma forma condensada, a essência da teoria dos "campos
sociais" que Bourdieu elaborou em complementaridade com a dos *habitus*.
Embora se baseie no que há de comum entre as análises sociológicas e as
económicas consagradas à passagem das sociedades "tradicionais" à
sociedade capitalista "moderna", :, Bourdieu toma em consideração a
segmentação crescente do espaço social em domínios ("campos")
especializados dotados de regras próprias de funcionamento. O campo
económico não funciona como o campo escolar nem como o campo da família
ou da política. Em conformidade com a maioria dos economistas, Bourdieu
considera estes "campos sociais" como mercados onde se trocam bens
específicos, materiais ou simbólicos, e onde capitais de um certo tipo
produzem benefícios do mesmo tipo de acordo com regras particulares.

Bourdieu, ao contrário dos teóricos neoclássicos dos mercados


concorrenciais, considera que, em cada um dos campos pertinentes do
social, a estrutura das trocas é fundamentalmente assimétrica. Não só os
capitais investidos em cada um dos campos são desiguais como os proveitos
obtidos não dependem só do volume, mas também da estrutura dos capitais
investidos. A maior parte das análises de Bourdieu colocam em jogo um
espaço a duas dimensões: "na primeira dimensão (os agentes são
distribuídos) de acordo com o volume global do capital que possuem nas
diferentes espécies; na segunda dimensão (os agentes são distribuídos) de
acordo com a estrutura do seu capital, isto é, segundo o peso relativo
das diferentes espécies de capital económico e cultural, no volume total
do capital" (1987, p. 152).

Um dos exemplos mais regularmente tratados por Bourdieu é o campo


escolar, visto ser considerado como particularmente estratégico. Para que
as crianças possam obter graus escolares mais elevados, isto é,
simultaneamente mais prestigiantes e mais rentáveis economicamente, as
famílias devem investir o capital especifico a este campo, o capital
cultural. São, com efeito, as crianças cujos pais têm diplomas de ensino
superior que mais hipóteses têm de fazer estudos prolongados e obter
títulos universitários; ao invés, as crianças de pais sem diploma são as
que mais frequentemente experimentam insucesso escolar (Girard, Bastide,
1973). 0 volume do capital económico da família (património e rendimento
da família) está menos correlacionado com o sucesso escolar dos filhos do
que o volume do capital cultural, medido pelos tipos de diplomas dos
pais. A classe dominante (grande burguesia), definida principalmente pelo
volume do capital económico, sendo baixo o volume do seu capital cultural
(já que não há necessidade de diploma para possuir e/ou gerir uma
empresa), sofre a concorrência, no *campo escolar* (21), da pequena
burguesia ascendente que possui essencialmente capital cultural (já que
são precisos diplomas para se ser professor, engenheiro ou médico). Para
manter a posição dominante no *conjunto da sociedade* (21), a classe
dominante deve reconverter uma parte do seu capital económico em capital
cultural (Bourdieu, Boltanski, Saint-Martin, 1973) com tanta mais
veemência quanto as regras do jogo económico têm tendência a mudar e a
fazer depender do diploma o acesso às posições de direcção (permitindo,
assim, tornar o domínio económico mais anónimo e, portanto, menos
ameaçado pelas lutas das classes dominadas). Assim, os filhos da grande
burguesia são

(21) Sou eu, Claude Dubar, que sublinho este aspecto.


levados, por todos os meios possíveis, a seguir :, estudos superiores
(dissimulando deste modo os pais o seu fraco capital cultural
institucionalizado em diplomas através de um capital cultural objectivado
em livros, obras, etc., e sobretudo através da utilização intensiva e
selectiva dos melhores liceus, escolas, etc.) e a obter os títulos
escolares mais rentáveis (escolas conceituadas), condição para ocuparem
posições de chefia no campo económico. Assistimos, deste modo, a um
reequilíbrio da estrutura do capital global (conjunto dos recursos
económicos e culturais) que permite à classe dominante manter a sua
posição com base na mudança das regras do jogo económico. Também a
pequena burguesia ascendente se reproduz enquanto tal, visto que a
maioria dos filhos não conseguem ocupar os postos de direcção, remetendo
as suas ambições para a geração vindoura. Quanto às classes populares, só
lhes resta resignarem-se ao menor sucesso dos seus filhos, o que se
traduz numa reprodução da sua posição (inferior) de origem.

Realçando a "posição cada vez mais estratégica do campo escolar, no


conjunto dos instrumentos da reprodução social", Bourdieu, Boltanski e
Saint-Martin consideram, assim, que a mudança mais importante do período
em curso reside na "transformação do sistema das estratégias de
reprodução das fracções das classes superior e média, as mais ricas em
capital económico... estando estas transformações na origem da utilização
que fazem do sistema de ensino" (1973, p. 62). Retomando uma ideia
similar numa obra recente, Bourdieu esclarece que as "duas grandes
mudanças" que afectaram os modos de reprodução dominantes são, "por um
lado, o acréscimo no próprio campo económico, da importância relativa do
título escolar (associado ou não à propriedade) relativamente ao titulo
de propriedade económica; por outro lado, assiste-se, entre os detentores
de capital cultural, ao declínio dos diplomas técnicos em benefício dos
diplomas que garantam uma cultura geral de tipo burocrático" (1989, p.
386). Assim, a reconversso do capital económico em capital cultural, que
faz do campo escolar um espaço cada vez mais essencial à reprodução do
poder, permite à classe dominante consolidar a sua legitimação simbólica.

Uma das questões mais delicadas que coloca esta versão da teoria dos
campos é a do grau de autonomia de cada um dos campos em relação ao
espaço global das classes sociais e à sua estruturação essencial
(dominante/dominada) e secundária (ascendente ou com
pretensões/descendente ou ameaçada). Se o volume do capital cultural está
cada vez mais dependente do volume global do capital da família de origem
-- reconvertendo o capital económico em capital cultural à medida da
"ascensão" do campo escolar na hierarquia dos campos --, não se
compreende como é que os mesmos agentes provenientes das fracções
dominantes da classe dominante não conseguem dominar todos os campos em
que investem os seus capitais. A introdução em algumas análises, como
aquelas que são feitas na parte final do *Le sens pratique*, de uma nova
espécie de capital, o capital simbólico, que tem por principal função "a
legitimação do arbitrário", permitindo transformar "relações arbitrárias
de domínio em relações legitimas" (1980, pp. 210-2113, vai no mesmo
sentido: cada um dos campos tende a ser estruturado de acordo com
posições de poder que são sistematicamente ocupadas pelas mesmas classes
e fracções de classes. :,

A autonomia relativa, a especificidade das regras do jogo, o modo


particular de estruturação funcionam, de facto, como tantas armadilhas
para as outras classes, visto que, *a la limite*, qualquer membro da
classe dominante pode dominar qualquer campo, reconvertendo uma parte do
seu capital económico em capital cultural ou simbólico, específico do
funcionamento deste campo. A existência de uma espécie de equivalente
geral dos capitais, que permite a conversão de um tipo de capital noutro,
conduz assim a uma "economia geral das práticas" justificadora da redução
de todas as práticas sociais a práticas "económicas", isto é, a práticas
instrumentais, supondo, simultaneamente, o aumento do património
(riqueza), o melhoramento da posição (prestígio) e o crescimento do seu
poder legítimo, isto é, a estrutura optimizada de combinação do capital
económico, do capital cultural e do capital simbólico. A noção de "campo"
perde, assim, uma grande parte do seu interesse heurístico.

3. 3. Do *habitus* à identidade: da dupla redução à dupla articulação

Segundo Bourdieu, a importância do *habitus* deriva do facto de se poder


pensar e analisar um conjunto coerente de disposições subjectivas --
capazes, simultaneamente, de estruturar representações e gerar práticas
-- como o produto de uma história, ou seja, como o produto de uma
sequência necessariamente heterogénea de condições objectivas, sequência
essa que define a trajectória dos indivíduos como movimento único através
de campos sociais, tais como a
família de origem, o sistema escolar ou o universo profissional (22).
Para estabelecer esta correspondência entre condições objectivas e
disposições subjectivas, Bourdieu viu-se na necessidade de operar uma
dupla redução que lhe permitisse especificar, simultaneamente, o
mecanismo de interiorização das condições objectivas e o mecanismo de
exteriorização das disposições subjectivas. É à custa desta dupla redução
que o *habitus* poderá ser definido, simultaneamente, como produto de
condições "objectivas" interiorizadas (a posição e a trajectória do grupo
social de origem) e como produtor de práticas conduzindo a efeitos
"objectivos" (a posição do grupo de pertença) que reproduzem a estrutura
social, assegurando, desta forma, a continuidade do *habitus* individual.

(22) Bourdieu retoma um "esquema elementar do pensamento teórico: a


activação do passivo" (Héran, 1987) mas acrescentando-lhe a tese de uma
correspondência necessária entre as transmissões "passivas" e as
incorporações "activas".

A primeira redução consiste, para Bourdieu, em ter de limitar o conjunto


das condições objectivas que produzem o *habitus* a "uma posição
diferencial no espaço social" (1989, p. 9), o que implica definir este
último como "exterioridade recíproca das posições" e "sistema unificado
de diferenças" (*id.*). O *habitus* é, deste modo, definido como estando
"ligado geneticamente (e também estruturalmente) a uma posição", isto é,
ele é produzido através de um ponto de vista único e coerente que resume,
ao mesmo tempo, a :, posição de uma trajectória de classe no espaço das
trajectórias possíveis (alta/média/baixa) e a posição de um indivíduo num
qualquer campo social (alto/médio/baixo). A partir do momento em que esta
homologia de posições está assegurada, o *habitus* pode ser pensado como
incorporação e interiorização desta posição única.

A segunda redução consiste em ligar necessariamente a percepção ou a


visão do campo social operada pelo *habitus* -- e, em particular, a
classificação que este produz no interior do espaço social (alto/baixo)
-- à orientação e à previsão necessárias para gerar práticas, em
particular o que Bourdieu designa por "a assunção de posição prática
sobre este espaço" ("estou em cima ou em baixo e tenho que me manter
nessa posição"). Esta relação necessária entre posição/disposição,
visão/previsão, percepção/orientação é muitas vezes chamada *conatus* ou
"tendência para se perpetuar de acordo com a sua determinação interna"
(*id.*). De acordo com Bourdieu, é ela que permite "perpetuar uma
identidade que é diferente", isto é, perpetuar uma posição relativa
constante no seio do espaço social considerado como "sistema das
diferenças constitutivas da ordem social" (*id.*).

É esta dupla redução -- da objectividade à "posição diferencial" e da


subjectividade à "tendência a perpetuá-la" -- que, segundo Bourdieu,
permite assimilar o *habitus* a uma identidade social definida como
*identificação a uma posição* (relativa) *permanente e às disposições que
lhes estão associadas*. Ela permite assegurar a permanência das
identidades individuais e a reprodução das estruturas sociais
-- concebidas, simultaneamente, como espaços estruturados nas mesmas
"posições" (alto/baixo) e como relações de dominação
(dominante/dominados) entre "posições" constantemente reproduzidas --
através de todas as formas de mudança, que não são mais do que
reconversões de estratégias objectivas que não modificam a estruturação
do espaço social. Para isso, é necessário e suficiente que cada *habitus*
funcione segundo os mesmos princípios e que todas as estratégias tenham
"objectivamente" o mesmo resultado: a reprodução do espaço das posições.
É isto que fundamenta a reprodução do espaço das posições. É isto também
que fundamenta a possibilidade de uma "economia geral das práticas" à
custa dos mesmos tipos de reduções do que as que permitiram a
constituição da economia política como disciplina cientifica,
independentemente das suas versões e das correntes teóricas.

Uma outra definição da identidade (cf. capitulo 5) implicaria a hipótese


inversa de uma dualidade irredutível das lógicas constitutivas do social
e, nomeadamente, da que estrutura as representações do *poder* e orienta
as práticas correspondentes (lógica "relacional" ou "comunicacional") e
da que comanda as estratégias "económicas" do crescimento do *capital*
sob todas as formas (lógica "estratégica" ou "instrumental"). Esta
posição suporia não assimilar *a priori* o espaço social das posições
(alto/baixo) na esfera "económica" ao espaço social das posições
(dominante/dominado mas também incluído/excluído) na esfera "relacional"
que não pode ser reduzida a um campo secundário ao serviço de estratégias
económicas. É o que faz Bourdieu quando evoca, por exemplo, a existência
de um "capital social" constituído pelo conjunto das "relações" que um
indivíduo pode mobilizar para o seu êxito escolar ou social. Longe de
funcionar segundo :, a sua própria lógica, este campo "relacional" é
descrito como se estivesse estruturado pelas mesmas regras de optimização
dos lucros que estruturam o campo "económico". Ora, sempre houve uma
tradição sociológica que recusou assimilar a lógica "comunitária" das
relações sociais à lógica "económica" das estratégias de optimização (cf.
capítulo 4). E na condição de distinguir radicalmente -- como hipótese
teórica e posição metodológica -- estas duas lógicas (23) que podemos
definir a identidade social como a dupla articulação problemática de uma
orientação "estratégica" e de uma posição "relacional" que resulta da
interacção de uma trajectória social e de um sistema de acção. Nesta
hipótese já não existe harmonia pré-estabelecida entre as identidades
"para si" produzidas pela trajectória passada e as identidades "para o
outro" incluídas num sistema de acção (cf. capítulo 5). Em vez da dupla
redução operada pela teoria do *habitus*, esta teoria da identidade
baseia-se na dupla articulação seguinte:

(23) É o que faz, parece, J.-C. Passeron (1986) quando distingue a auto-
reprodução escolar da reprodução social. Na sua opinião, "é ao
historiador o não ao sociólogo que compete descrever a renovação das
configurações produzidas polo encontro heterogéneo do processos que não
se podem tratar como evoluções sistemáticas desde que se considerem como
independentes" (p. 76).

-- uma primeira articulação entre "trajectória" e "sistema" implicando a


recusa, *a priori*, da homologia das posições e do mecanismo
sistematicamente reprodutor do *habitus*. Longe de reduzir a trajectória
a uma "posição objectiva", define-a antes como um "recurso subjectivo",
isto é, um balanço subjectivo das *capacidades* para enfrentar os
desafios específicos de um dado sistema. Longe de assimilar a relação ao
sistema (campo social especifico e não espaço social geral) a uma posição
"objectiva" no sistema (campo), ela considera-a uma oportunidade
estratégica para a realização dos objectivos dos indivíduos. Por esta
razão, o encontro de uma trajectória e de um sistema já não conduz
necessariamente ao prolongamento da trajectória e à reprodução do
sistema: pode-se ai encontrar um balanço positivo ou negativo das
*capacidades* de acordo com as leituras que os indivíduos fazem do
sistema e das suas oportunidades para os indivíduos, tal como pode haver
oportunidade ou não do sistema de acordo com a reconstrução subjectiva
que os indivíduos fazem da trajectória. Assim sendo, a hipótese
"consolidação da identidade/reprodução do sistema" só é uma das hipóteses
possfve s: todas as outras o são igualmente *a priori*;

-- a segunda articulação entre "trajectória anterior" e "estratégia"


implica a recusa, *a priori*, da continuidade necessária entre as visões
de futuro da trajectória -- incluindo as apreciações de oportunidade do
sistema -- e os balanços da trajectória passada que mobilizam as
representações investidas no sistema. O passado não determina
mecanicamente a visão do futuro; a um tipo de trajectória anterior
"objectivamente" determinada não corresponde necessariamente um tipo de
estratégia de futuro "subjectivamente" construída. Entre a trajectória e
a estratégia intercala-se o conjunto de relações internas ao sistema onde
o indivíduo deve definir a sua identidade especifica; da mesma forma,
entre representação e oportunidade do sistema interpõe-se a :,
trajectória dos indivíduos a partir da qual fazem um julgamento das
características e evoluções prováveis do sistema. Por este facto, a
hipótese "visões do futuro reproduzindo percepções do passado" é apenas
um dos casos possíveis da articulação entre representações (e categorias)
herdadas da trajectória passada e estratégias (e categorizações) tornadas
possíveis pelas oportunidades do sistema.

3. 4. Uma perspectiva "causal-probabilística" da socialização

A problemática assim amplificada concebe a socialização como um processo


biográfico de incorporação das disposições sociais vindas não somente da
família e da classe de origem, mas também do conjunto dos sistemas de
acção com os quais o indivíduo se cruzou no decorrer da sua existência.
Sem dúvida, ela implica uma causalidade histórica do passado sobre o
presente, da história vivida sobre as práticas actuais, mas esta
causalidade é probabilística: exclui qualquer determinação mecânica de um
"momento" privilegiado em relação aos seguintes. Quanto mais as pertenças
sucessivas ou simultâneas forem múltiplas e heterogéneas, mais se abre o
campo do possível e menos se exerce a causalidade de um provável
determinado.

Se as identidades sociais são produzidas pela história dos indivíduos,


elas também são produtoras da sua história futura. Este futuro depende
não só da estrutura "objectiva" dos sistemas nos quais se desenvolvem as
práticas individuais e nomeadamente do estado das relações sociais no
interior destes campos, mas também do balanço "subjectivo" das
capacidades dos indivíduos que influenciam as construções mentais das
oportunidades destes campos. As identidades resultam, portanto, do
encontro de trajectórias socialmente condicionadas por campos socialmente
estruturados. Mas estes dois elementos não são necessariamente homogéneos
e as categorias significativas das trajectórias não são necessariamente
as mesmas do que aquelas que estruturam os campos da prática social. Este
desfasamento abre espaços irredutíveis de liberdade que tornam possíveis,
e, por vezes, necessárias, reconversões identitárias que engendram
rupturas nas trajectórias e modificações possíveis das regras do jogo nos
campos sociais.

Permanece em aberto a questão da redução, legitima ou não, de todas as


dimensões da socialização a espécies de capitais convertíveis umas nas
outras e cumuláveis num valor único, balanço de todos os investimentos
sucessivos e simultâneos. Esta redução não é uma consequência necessária
do "modelo" geral da socialização que reconstruímos a partir da obra de
Bourdieu, e cuja interpretação permanece susceptível de debate (Accardo e
Corcuff, 1989); é, quando muito, uma simplificação cómoda que permite
interpretar as correlações
-- mais ou menos fortes -- entre posições actuais e posições passadas ou
entre posições em campos diferentes. Dá conta de uma forma de
socialização que permanece, sem dúvida, maioritária (a reprodução das
posições relativas e das disposições ligadas a estas posições), mas que
não é única. Privilegia a continuidade em relação às rupturas, a
coerência em relação às contradições. Permite explicar a reprodução da
ordem social, mas compreende mal a produção de mudanças verdadeiras.

Bibliografia do capítulo III

ACCARDO, A.; CORCUFF, P. (1989), *La sociologie de Bourdieu*, textes


choisis et commentés, Paris, Le Mascaret.

BOURDIEU, P.; PASSERON, I.-C. (1970), *La reproduction. Les fonctions du


système d'enseignement*, Paris, Éd. de Minuit.

BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L.; SAINT-MARTIN, M. (de) (1973), "Les


stratégies de reconversion", *Informations sur les sciences sociales*, 12
(5), 1973, pp. 61-113.

BOURDIEU, P. (1974), "Avenir de classe et causalité du probable", *Revue


française de sociologie*, XV, pp. 342.

BOURDIEU, P. (1980), *Le sens pratique*, Paris. Éd. de Minuit.

BOURDIEU, P. (1987), "Espace social et pouvoir symbolique", *Choses


dites*, Paris, Éd. de Minuit, pp.
147-166.

BOURDIEU, P. (1989), *La Noblesse d'État*, Paris, Éd. de Minuit.

DURKHEIM, E. (1904-1905), *L'évolution pédagogique en France, Paris, PUF,


2.e éd., 1969.

GIRARD, A.; BASTIDE, R. (1973), "De la fin des études élémentaires à


l'entrée dans la vie professionnelle ou à l'université", *Population*,
n.o 3, pp. 571-593.

HÉRAN, F. (1987), "La seconde nature de l'habitus", *Revue française de


sociologie*, XXVIII, 3. pp. 385-416.

PASSERON, J.-C. (1986), "Hegel ou le passager clandestin. La reproduction


sociale et l'Histoire", *Esprit*, 6, M 1667, pp. 63-81.

A socialização como construção social da realidade

As abordagens culturais e funcionais da socialização acentuam uma


característica essencial da formação dos indivíduos: esta constitui uma
incorporação dos modos de ser (de sentir, de pensar e de agir) de um
grupo, da sua visão do mundo e da sua relação com o futuro, das suas
posturas corporais, assim como das suas crenças intimas. Quer se trate do
grupo de origem no seio do qual se desenrolou a primeira infância e ao
qual pertence "objectivamente" ou de um grupo exterior no qual quer
integrar-se e ao qual se refere "subjectivamente", o indivíduo socializa-
se, interiorizando valores, normas, disposições que o tornam um ser
socialmente identificável.

Mas estas abordagens admitem um mesmo pressuposto que as conduz a reduzir


a socialização a uma qualquer forma de integração social ou cultural
unificada, muito enraizada num condicionamento inconsciente. Este
pressuposto é o da *unidade do mundo social*, quer à volta da cultura de
uma sociedade "tradicional" e pouco evolutiva, quer à volta de uma
economia generalizada que impõe a todos os membros das sociedades
"modernas" a sua lógica de maximização dos interesses materiais ou
simbólicos.

As teorias reunidas neste capítulo não admitem este pressuposto


unificador. Colocam a interacção e a incerteza no seio da realidade
social, assim definida como confronto entre "lógicas" de acção
funcionalmente heterogéneas. Não se aceita o postulado de que cada
indivíduo procura adaptar-se à cultura do grupo e reproduzir as
"tradições" culturais ou optimizar as riquezas e as posições de poder
segundo o tipo de sociedade no qual se encontra. Todos os indivíduos são
confrontados por esta dupla exigência e devem aprender a serem
reconhecidos pelos outros, assim como a cumprirem as melhores
*performances* possíveis. A socialização não pode, pois, reduzir-se a uma
dimensão única e neste caso consiste em gerir esta dualidade irredutível.
:,

4.1. A dualidade do social: trabalho e interacção (Hegel); agir


instrumental e agir comunicacional (Habermas)

É necessário um (breve) desvio filosófico para discernir a raiz desta


dualidade do social. Este desvio incide sobre a definição mais geral da
socialização na tradição alemã e sobre as consequências da sua utilização
nas ciências sociais.

É num texto da juventude de Hegel -- conhecido por *Philosophie de


l'esprit d'iéna -- que Jurgen Habermas (1967, trad. 1973, pp. 163 e
seguintes) afirma ter encontrado o "fundamento do processo de formação do
espírito humano" que constitui, quanto a si, a primeira formulação
sintética da "unidade problemática do processo de socialização"
(*Sotializierung*) determinado pela articulação de "três modelos de
formação heterogéneos".

Este fundamento teórico, que sistematiza "não só as etapas no decorrer do


processo de formação do espírito, mas também os *princípios* (24) da
formação, foi abandonado por Hegel na sua obra *Phénoménologie de
l'Esprit* para ser substituído pela célebre divisão enciclopédica em
espírito subjectivo, espírito objectivo e espírito absoluto. Ora, segundo
Habermas, a primeira teorização -- a de Iéna -- revelou-se, e revela-se
ainda, muito mais fecunda do que a segunda. Não só porque influenciou
parcialmente o pensamento de Marx e dos "hegelianos de esquerda" que se
apropriaram de Hegel, abandonando a identidade do espírito e da natureza
no saber absoluto, mas sobretudo porque inspirou várias correntes
importantes das ciências sociais que, de uma forma ou outra, se referem a
esta "teoria dos três mundos" (subjectivo, objectivo, social) como matriz
de uma problemática operatória do processo de socialização
(*sozializierung*), concebido como exteriorização do subjectivo e
interiorização do objectivo na constituição do mundo social. A
socialização é definida, simultaneamente, como "individualização do
recém-nascido" e como "movimento de construção do mundo social". Esta
relação entre o *desenvolvimento dos indivíduos*, conducente a
"identidades sociais", e a *estruturação dos sistemas sociais*, que
servem de suporte a "mundos sociais", constitui, segundo Habermas, a
problemática fundadora das "ciências sociais clássicas" -- que se
encontra tanto em Durkheim (Habermas, 1981, p. 171) como em Weber (*id.*,
p. 210) ou em Marx (*id.*, pp. 208-209). Todos eles consideram que "a
socialização é o processo explicativo primeiro e que só com a
socialização é que há individualização" (*id.*, p. 171).

(24) Sou eu, Claude Dubar, que sublinho.

A nível filosófico, este processo de socialização considerado como


formação do espírito é apresentado por Habermas, retomando Hegel, como a
unidade dialéctica das três mediações entre o sujeito e o objecto,
consideradas como "três modelos de relações dialécticas que têm um valor
comparável: a representação simbólica, o processo do trabalho
e a interacção baseada na reciprocidade" (*id.*, p. 164). :,

A dialéctica da interacção é exposta, em primeiro lugar, a partir da


ilustração da relação amorosa. Na segunda *´Leçon d'iéna*, Hegel define o
amor como sendo "o conhecer que se conhece no outro" e, por isso, como
resultante de um saber de "duplo sentido":

"Cada um é o mesmo que o outro naquilo em que se opõe ao outro.


Distinguir-se do outro é, por isso, para ele, supor-se como sendo o
outro, e há ar precisamente um conhecimento (...) pelo facto de a sua
oposição parecer voltar-se para a identidade para si, dito por outras
palavras, ele sabe ser ele mesmo nesta forma de se ver no outro." ( 1973,
p. 172)

Esta relação de *reconhecimento* recíproco não é, pois, apresentada por


Hegel como consequência imediata da intersubjectividade, mas como
reconciliação de um conflito anterior e, portanto, resultante de um
processo social. Esta luta pelo reconhecimento encontra a sua expressão
mais célebre na dialéctica do mestre e do escravo da *Phénoménologie de
l'Esprit*. Na *Philosophie d'iéna*, o jovem Hegel fala de uma
"causalidade do destino", dando como exemplo a punição que atinge aquele
que destrói uma "relação moral". A causalidade do destino é apenas o
movimento que faz nascer da "experiência da negatividade da vida desunida
o desejo de um regresso ao que se perdeu, levando a identificar na
existência estranha combatida a sua própria existência negada". Ela
conduz à definição de identidade como resultado de um reconhecimento
reciproco: "conhecimento do facto que a identidade do eu só é possível
graças à identidade do outro que me reconhece, identidade essa dependente
do meu próprio conhecimento" (*id.*, p. 176).

Esta definição de base da *identidade* do eu, como "identidade do


universal e do singular", isto é, daquilo que, em cada um, releva da
espécie (universal) e daquilo que só releva dele próprio (singular), já
não se coloca, no jovem Hegel, como um dado primeiro, uma unidade
originária abstracta da consciência pura ou da percepção como em
Descartes ou em Kant, mas como o produto de um processo conflituoso que
implica práticas sociais, relações objectivas e representações
subjectivas. O reconhecimento reciproco é, portanto, o ponto de chegada
possível e não o ponto de partida obrigatório da socialização. No texto
de Hegel, contrariamente ao *Cogito* cartesiano ou à posição de Kant, que
pressupõe, na sua filosofia prática, a autonomia do sujeito, não há "a
harmonização prévia daqueles que agem no quadro de uma
intersubjectividade sem rupturas". E não há também, como na
*Phénoménologie de l'Esprit*, a emergência de um saber absoluto que
resuma os conhecimentos parciais e dependentes dos indivíduos em relação
mútua. Segundo Habermas, o jovem Hegel produz uma problemática fecunda da
socialização já que "não relaciona a constituição do eu com a reflexão de
um eu solitário, fechado sobre si próprio, mas entende esta constituição
a partir dos processos da sua formação". Consequentemente, o que é
importante já não é a reflexão (*cogito*...) enquanto tal, mas o meio
(*Mitte*) onde se desenvolve este processo conflitual de identificação do
universal e do singular. Torna-se necessário ter em conta outras
mediações para a construção do eu. :,

A dialéctica da *representação* caracteriza o meio no qual se realiza a


apropriação subjectiva do objecto pelo sujeito. Classicamente, Hegel
distingue a intuição imediata povoada "das produções noctumas da
imaginação, do império efervescente e ainda desorganizado das imagens"
(*id.*, p. 182), da linguagem que constitui "a primeira categoria sob os
auspícios da qual o espírito já não é pensado como interior, mas antes
como um meio que não está fora nem dentro, *logos* de um mundo e não
reflexão de uma consciência solitária" (p. 184). Pelo seu carácter de
sistema cultural preexistente a qualquer existência individual e impondo
as suas categorias fundamentais ao indivíduo, a *linguagem* constitui,
portanto, o primeiro pressuposto de qualquer interacção envolvendo na
comunicação toda uma sociedade e toda uma cultura singulares, ou seja, o
que Hegel chama um "povo".

"A linguagem só existe como língua de um povo... É o universal, em si


mesmo reconhecido, que ecoa da mesma forma na consciência de todos;
qualquer consciência que fala torna-se de imediato uma outra consciência
na linguagem... É apenas no seio de um povo que a linguagem se torna...
expressão do que cada um pensa." (p. 193)

No artigo citado (1967), Habermas desenvolve pouco esta mediação pela e


na linguagem. Para ele, a linguagem só ganha sentido no seio dos dois
sistemas de actividades considerados como os mais estruturantes da
identidade: a *actividade instrumental* -- ainda chamada estratégica --
que une, à volta dos processos de trabalho, as finalidades económicas e
os meios técnicos e organizacionais para os atingir, e a *actividade
comunicacional* que estrutura a interacção entre os indivíduos -- e,
portanto, a sua identidade -- através das práticas de linguagem. Ao
contrário da perspectiva "piagetiana" da socialização da criança (cf.
capítulo 1), a dialéctica motriz da socialização não se situa, para
Habermas, entre o organismo e o meio, nem entre a maturação subjectiva do
indivíduo e as incitações objectivas do contexto, mas, como o indica o
próprio titulo do artigo, situa-se na ligação entre o trabalho e a
interacção, isto é, situa-se entre a dinâmica das actividades
instrumentais -- sistemas de acção racional referenciados a um fim,
segundo a definição de Max Weber -- e a natureza das actividades
comunicacionais -- sistemas de poder e de legitimidade mas também de
libertação e reciprocidade. Segundo Habermas, "é desta ligação que
depende essencialmente tanto o processo de formação do espírito como o da
espécie" (*id.*, p. 211).

Na apresentação de Habermas, a dialéctica do *trabalho* ocupa assim uma


posição central. Ao encontrar no jovem Hegel uma construção próxima
daquela que Marx e Engels desenvolveram numa parte essencial da sua obra
comum, Habermas situa, na esfera do trabalho e da troca, a raiz da
identidade e da "institucionalização do reconhecimento reciproco" nas
sociedades modernas. Marx tinha, aliás, reconhecido a Hegel a paternidade
desta concepção do trabalho como "essência do homem", nomeadamente no
célebre texto *Manuscrits* de 1844: :,

"O que há de notável na fenomenologia hegeliana... é que Hegel concebe a


auto-construção do homem como um processo. a objectivação como a des-
objectivação, a exteriorização como a superação desta exteriorização, e
discerne a essência do trabalho e compreende o homem objectivo, homem
verdadeiro porque real. resultado do seu próprio trabalho." (p. 209)

Haberrnas analisa precisamente a relação, realçada por Hegel, entre a


institucionalização da reciprocidade e a troca dos produtos do trabalho:
é na *divisão do trabalho* e na troca dos produtos do trabalho que está
enraizada a emergência do trabalho abstracto e do dinheiro como
equivalente geral, que fornece o modelo do comportamento recíproco. A
forma institucional desta troca é concretizada através do contrato no
qual "a palavra proferida adquire um valor normativo". A acção
complementar dos actores "mediatizada pelos símbolos que fixam as
expectativas de comportamentos obrigatórios... eis como a relação de
reconhecimento recíproco... é codificada enquanto tal por intermédio de
uma institucionalização da reciprocidade que se situa ao nível da troca
dos produtos do trabalho" (*id.*, p. 196).

Retomada *criticamente* por Marx, esta problemática constitui o núcleo da


teoria da dialéctica das forças produtivas e das relações sociais de
produção considerada, justamente ou não, como "inversão" da posição
hegeliana: a causa da perturbação dos sistemas de trabalho e da
transformação dos modos de produção reside na contradição entre "o poder
de dispor dos processos naturais acumulados pelo trabalho" (e de os
desenvolver para a satisfação das necessidades sociais) e "o quadro
institucional das interacções que obedecem ainda a regras naturais e
constrangedoras" (nomeadamente o poder de decidir a natureza da produção,
da organização e da repartição dos produtos). A dialéctica forças
produtivas/relações de produção em Marx retoma, então, a dialéctica
trabalho/interacção do jovem Hegel, alargando-a e tornando-a
historicamente operatória. Ambos partilham o mesmo ponto de vista,
segundo o qual "o processo de formação", no decurso da história
universal, depende dos "mecanismos da reprodução da vida social" e estes
enraízam-se nas interacções que se estabelecem durante o trabalho, a que
Marx aplica o conceito de "relações de produção", matriz da sua análise
das classes sociais, das suas lutas e do processo histórico que dai
decorre.

O que Habermas censura no pensamento de Marx -- nomeadamente o que


aparece na primeira parte da *Idéalogie allemande* -- é o facto de não
explicar a ligação entre trabalho e interacção de uma forma dialéctica e
aberta, reduzindo "um destes dois momentos ao outro sob o titulo não
especificado de prática social"... e, portanto, reduzindo "a actividade
comunicacional à actividade instrumental" que se torna deste modo "o
paradigma que permite produzir todas as categorias: tudo é absorvido pelo
próprio movimento (*Selbsthewegung*) da produção". Segundo ele, é esta a
razão pela qual "a intuição genial da ligação dialéctica entre as forças
produtivas e as relações de produção constitui o objecto de uma falsa
interpretação de natureza mecanicista" (p. 210) (25). :,

(25) Habermas defende a ideia que não existe teoria operatória da


socialização na obra de Marx uma vez que ele pensa que o desenvolvimento
das forças produtivas determina necessariamente as relações de produção
e, por isso, determina o conjunto das relações sociais ( 1981, p. 212).
Esta constatação é particularmente bem confirmada pela leitura de uma
síntese sobre o lugar da socialização nas abordagens económicas que se
reclamam do marxismo (Palloix, Zarifian, 1981).

Recusando radicalmente -- como o Hegel da *Philosephie d'iéna*, antes da


globalização do espírito humano no saber absoluto -- reduzir um destes
dois momentos ao outro (trabalho/forças produtivas e interacção/relações
de poder), Habermas mantém a ideia de uma autonomia irredutível das três
mediações essenciais do processo de socialização, em particular das duas
dialécticas motrizes: a do trabalho e da produção por um lado e a da
interacção e do poder por outro:

"O desenvolvimento das forças produtivas técnicas, que inclui a


construção de máquinas capazes de aprender e de exercer funções de
controlo que simulam todo o espaço de exercício da actividade
instrumental muito para além das capacidades da consciência natural e
substituem as realizações humanas, não se confunde com o facto de nos
libertarmos de normas capazes de consumar a dialéctica da relação moral
numa interacção livre, isenta de dominação, na base de uma reciprocidade
vivida sem constrangimentos. A libertação relativamente à fome e à
miséria não coincide necessariamente com a libertação relativamente à
servidão e à humilhação." (pp. 210-211)

Na esteira de Weber, Habermas distingue quatro conceitos fundamentais de


acção em sociologia: o agir teleológico ou instrumental correspondente à
*Zweckrationalitãt* de Weber, o agir regulado por normas correspondente à
*Wertrationalitãt*, o agir dramatúrgico (cf. Goffman) correspondente à
*Affektual* de Weber e o agir comunicacional definido a partir do
processo de interacção concebido como negociação das "definições de
situações" e tradução dos "mundos vividos" (Habermas, 1981, tomo 1, p. 98
e seguintes). Ele defende a hipótese da polarização dos modos de acção à
volta dos dois extremos e da passagem da "regulação de acordo com a
norma" à "apresentação comunicacional de si" (tomo 2, pp. 51 e
seguintes).

Defende, portanto, a tese da coexistência de dois modos de acção


essenciais nas sociedades modernas: o agir instrumental ou estratégico
que estrutura os processos de domínio da natureza (trabalho) e o agir
comunicacional ou relacional que estrutura os processos de comunicação
social (interacção). A actividade instrumental corresponde, pois, à
dialéctica do trabalho e ao universo das regras técnicas e a actividade
comunicacional à dialéctica da interacção e ao universo das normas
jurídicas, radicalmente distinto do da técnica (cf. quadro 4.1.).

Assim, segundo Habermas, não é legítimo (nem "científica" nem


"moralmente") reduzir os processos de comunicação social (interacção)
cujo desafio histórico é "a libertação das formas de domínio e de
dependência e a sua substituição pelas formas de reconhecimento
recíproco" a produtos ou a aspectos dos processos instrumentais e em
particular dos processos de produção (trabalho). A questão da
socialização desenrola-se precisamente, segundo ele, nesta relação entre
trabalho e interacção, isto é, entre processos ou "sistemas" de produção
e processos ou "mundos vividos" das relações sociais, sem :, que, de
forma alguma, os segundos possam reduzir-se aos primeiros. Noutros
termos, tanto para Habermas como para o jovem Hegel, as identidades
sociais e, correlativamente, as formas de relações sociais nas quais
estão enraizadas e se exprimem não podem ser deduzidas dos sistemas de
trabalho ou de produção e das "forças produtivas". Reduzir os "mundos
vividos" e os processos identitários a um aspecto ou um produto dos
"sistemas" é suprimir a questão da socialização e, portanto, retirar toda
a autonomia às ciências sociais (Habermas, 1981, tomo 2, pp. 331 e
seguintes).

Quadro 4.1.

Representação do processo de socialização (*Sozializierung*) segundo


Habermas com base em Hegel (*Philosaphie d'iéna*)

::::::::::::
Categorias -- Mundo objectivo -- Mundo subjectivo -- Mundo social
Mediações entre sujeito e objecto -- Dialéctica do trabalho
--Dialéctica da representação -- Dialéctica da interacção

Categorias - Utensílios - Símbolos - Relações

Categorias -- Actividade instrumental -- ... -- Actividade


comunicacional

Identidades da consciência (momentos da identidade) --Consciência manhosa


(identidade REIVINDCADA) --
Consciência denominação (identidade REPRESENTADA) --
Consciência reconhecida (identidade RECONHECIDA)

Instrumentos de socialização -- Regras técnicas -- Esquemas cognitivos --


Normas jurídicas

Processo -- Exteriorização (*Entfremdung*) Apropriação -- Cisão/alienação


(*Entausserung*) Reconciliação

Esfera - Produção - Linguagem - Comunicações


::::::

A crítica de Haberrnas apoia-se, portanto, numa orientação teórica


essencial, orientação essa ligada de um ou de outro modo ao funcionalismo
e que postula a existência de um sistema económico e social concebido
como globalidade integrada e que considera a socialização como um
processo de integração auto-regulada por este sistema. :,

4.2. Socialização comunitária e socialização societária uma leitura de


Max Weber

A importância atribuída à interacção na própria definição do social e a


recusa em considerar "a sociedade" como uma totalidade unificada e
funcional caracterizam uma tradição sociológica de que Max Weber é, sem
dúvida, o teórico mais fecundo, referido por inúmeros sociólogos ainda
hoje (26). Cada um faz dele a sua própria leitura; a que é proposta aqui
insiste na dualidade da socialização concebida como construção de formas
sociais significativas mas diferenciadas.

(26) Um aumento de interesse pelo pensamento de Max Weber manifesta-se em


inúmeros campos da sociologia desde
o principio da década de 80, tendo sido finalmente levada a cabo uma
edição científica das suas obras completas.

Lembremos, antes de mais, a posição complexa de Max Weber no que diz


respeito à própria definição do social como actividade humana dotada de
um sentido subjectivo e "que está ligada ao comportamento de outrem em
relação ao qual orienta o seu desenvolvimento" (1920, trad. 1971, p. 4).
Em oposição ao pensamento de Marx, o de Weber recusa separar as
estruturas (Estados, empresas, sociedades por acção, instituições...) dos
sistemas de acção que as engendraram e que as mantêm em actividade: "as
estruturas... são somente desenvolvimentos e resultados de acções
específicas de pessoas singulares, únicos agentes compreensíveis de uma
actividade orientada significativamente" (p. 12). A questão geral da
socialização (*Sozializierung*) não é, pois, separável para Max Weber da
das formas da actividade humana e, nomeadamente, dos modos de orientação
de um comportamento individual em relação aos de outrem.

Ora, se Max Weber distingue, sistematicamente, nas suas últimas obras,


quatro tipos de acção humana (cf. quadro 4.2.), só opõe duas formas
gerais de orientação dos comportamentos de um indivíduo em relação
àqueles de outrem: aquele a que chama acção comunitária ou "processo de
entrada na comunidade" (*Vergemeinschaftuag*) que traduzimos por
"socialização comunitária" e aquele que chama acção societária ou
"processo de entrada na sociedade" (*Vergesellschaftung*) que
traduziremos por "socialização societária" (27). Segundo Weber, a
diferença essencial entre estas duas "formas fundamentais de se
relacionar com o comportamento do outro" reside no facto de a segunda se
basear em regras (*Ordnuagen*) que foram estabelecidas "de forma
puramente racional tendo em conta a finalidade" (*Zwecirationalitãt*) e
que assentam, portanto, em conformidades subjectivas voluntárias a estas
regras, consideradas como "expressões de interesses comuns mas
limitados", enquanto que a primeira tem por base expectativas
(*Erwartungen*) de comportamentos fundamentados em hipóteses subjectivas
de sucessos que se podem exprimir sob a forma de "julgamentos objectivos
de possibilidade", vindos do costume ou do respeito pelos valores
partilhados. Enquanto a socialização "comunitária" pressupõe :, uma
colectividade de pertença (*Verband*) e, nomeadamente, uma "comunidade
linguística", a socialização societária não é mais do que "a expressão de
uma constelação de interesses variados" (p. 365).

(27) Esta formulação evita a utilização de neologismos inúteis (sociação,


societização... ) e, sobretudo, evita que se confunda a socialização em
geral (*sozializierung*) com a socialização societária
(*Vergesellschaftung*).

Quadro 4.2.

Categorias da socialização em Max Weber

::::::
Tipos de acção:
*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") --
tradicional/emocional racional em valor
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") -- racional em
finalidade

Relação social dominante:


*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") -- solidariedade
herdada
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") -- entendimento por
implicação mútua voluntária

Fundamento da regularidade:
*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") -- costume
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") -- interesses
específicos

Ordem legítima:
*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") -- Crença religiosa;
Abandono ao líder; Fé nos valores
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") -- convenções; direito

fundamento de legitimidade:
*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") --
tradicional/carismática
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") -- Legal/racional

Forma dominante de disposição:


*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") -- Sentimento de
pertença comum
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") --Compromisso ou
coordenação de interesses motivados racionalmente

Tipos de agrupamentos:
*Vergemeinschaftung* (Socialização "comunitária ") -- Família; Outras
comunidades afectivas; Nação
*Vergesellschaftung* (Socialização "societária") - Instituição (Anstalt);
Associação (Verein) ; Empresa (Betrieh)

Fonte: Weber, *Wirtschaft und Gesellschaft*, 1920, capítulo I (tradução


parcial *Économie et Société*, Plon).
:::::::::

Esta distinção weberiana baseia-se explicitamente na célebre oposição


comunidade-sociedade que serviu de título à obra de Ferdinand Tonnies
*Gemeinschaft und Geselischaft* publicada, pela primeira vez, em 1887 e
que pode ser considerada como um dos primeiros -- e dos mais célebres --
manuais de sociologia. Neste texto, F. Tõnnies desenvolve :,
uma oposição radical entre duas formas de agrupamentos (*Verein*) de que
uma (a "comunidade") é, à partida, definida como "vida orgânica e real",
"vida comum verdadeira e durável" associada a "tudo aquilo em que se
confia, à intimidade, vivendo exclusivamente em conjunto", enquanto a
outra (a "sociedade") é apresentada como "vida virtual e mecânica",
"passageira e aparente" e associada a "tudo o que é público" e constitui
apenas uma "pura justaposição de indivíduos".

Não há dúvida que, para Tõnnies, o que constitui o elemento primário,


originário da realidade social e, por isso mesmo, o objecto elementar da
sociologia, *não é o indivíduo mas a comunidade* definida como "conjunto
das relações necessárias e dadas entre diferentes indivíduos que dependem
uns dos outros", relações organizadas à volta das três relações
fundamentais que são, em sua opinião:

-- a relação entre uma mãe e o filho ("a relação maternal mais profunda
enraizada no instinto e no prazer");

-- a relação entre um homem e uma mulher enquanto esposos ("instinto


sexual que só se torna relação social pelo hábito de viver em conjunto");

-- a relação entre irmãos e irmãs descendendo da mesma mãe ("amor


fraternal, a relação mais humana das relações entre os seres humanos").

A imbricação destas três relações primitivas (filiação, aliança e


consanguinidade) é analisada por Tõnnies como a unidade elementar mais
imediata que torna possível a "comunidade das vontades humanas" por esta
tripla aproximação "de sangue, de ligação e de espírito" que constitui "a
raiz de todas as colectividades humanas" (*Gesamtheit*). Trata-se, para
Tõnaies, de uma "forma geral de vontade comum determinante, que se tornou
tão natural como a própria língua" e só ela é capaz de engendrar os dois
sentimentos que estão na base de todo o tipo de vida comum durável: a
concórdia (concórdia: aliança cordial e entendimento pacifico) e a
compreensão (*con-prendere*: um assumir comum e, portanto, acção
colectiva).

Para Tõnnies, esta formação comunitária (*Gemeinschaft*) opõe-se ponto


por ponto à forma "societária" (*Gesellschaft*) definida como "grupo de
indivíduos organicamente separados", no seio do qual "cada um está virado
para si, num estado de tensão relativamente a todos os outros". Enquanto,
na *Gemeinschaft*, os indivíduos "permanecem ligados apesar da
separação", na *Gesellschaft*, "estão separados apesar da ligação". Sem
ser "natural", nem produzida pela "vontade organica", esta última forma
social é analisada por Tõnnies como o resultado de um processo histórico
que é o da emergência da sociedade industrial e da produção capitalista.

A deslocação operada por Max Weber

Apesar de retomar parcialmente a oposição instaurada por Tõnnies, Max


Weber fá-la funcionar de uma forma completamente diferente. Em primeiro
lugar, enquanto que, para :, o primeiro, as características da comunidade
e as da sociedade constituem representações "realistas" das relações
sociais e excluem-se, pois, mutuamente; para Weber, elas constituem
*tipos-ideais*, produtos de pontos de vista específicos e não
contraditórios sobre o real, razão pela qual em sua opinião "a grande
maioria das relações sociais têm, em parte, o caracter de uma
socialização comunitária e, em parte, o de uma socialização societária"
(1920, p. 42). Assim, qualquer relação "societária" que se desenvolve por
um longo período tende a fazer nascer valores sentimentais
característicos da relação comunitária (Weber toma como exemplo os casos
da partilha da mesma unidade militar, da mesma sala de aula ou da mesma
oficina); inversamente, uma relação predominantemente comunitária pode
ser orientada, em parte, no sentido de uma racionalidade resultante da
vontade de todos ou de parte dos seus membros (Weber cita o exemplo da
família "explorada como socialização societária em certas ocasiões por
alguns dos seus membros"). Em segundo lugar, o esquema analítico de Weber
(cf. quadro 1.2.) não opõe dois "estados" sociais estáticos e fixos como
os de Tõnnies mas dois processos dinâmicos de instauração de relações
sociais orientadas por mecanismos diferentes. A socialização societária
não é um condicionamento passivo de pertença a uma sociedade
estabelecida, mas uma modalidade de entrada voluntária nas relações "de
tipo societário". Assim, afirma Weber, "a participação num mercado cria
entre os parceiros isolados relações societárias já que eles são
obrigados a orientar mutuamente o seu comportamento relativamente aos
outros" (*id.*, p. 43). É, pois, a estrutura da situação de mercado que
impõe, aos que querem nela participar, a adopção de um tipo de relações
privilegiadas baseadas na procura de uma optimização do interesse mútuo.

A última diferença, e não a menos importante, que Weber introduz


relativamente a Tõnnies, é a definição da passagem histórica de uma
socialização comunitária dominante a uma socialização societária
dominante encarada como *racionalização* social. Recusando qualquer
julgamento de valor sobre este processo de modernização, que ele
reconhece historicamente na esfera económica como na política e na
religiosa/cultural, Max Weber analisa-o como a passagem progressiva de
uma forma (28) dominante -- mas não exclusiva -- de actividade social
orientada por um fim (*Zwectrationalitãt*), para um tipo dominante -- mas
não necessariamente hegemónico -- de legitimidade política de tipo
racional (legal-racional) e, portanto, a passagem para um processo
dominante de socialização "societária" (*Vergesellschaftung*) baseado em
regras partilhadas, em função de interesses coordenados e motivados
"racionalmente".

(28) Max Weber vai explicitamente buscar a G. Simmel (1917) a noção de


"forma social" para designar as "formas de socialização", isto é, em
simultâneo os tipos de *organização* social e os modos de *orientação*
das acções individuais.

Um dos mecanismos essenciais desta racionalização que instaura novas


relações sociais reside, segundo Weber, na fragmentação do espaço social
"em domínios juridicionais distintos fixados oficialmente e determinados
por regras específicas, isto é, determinados por leis ou regulamentos
administrados" (1946, p. 196). Por oposição à "socialização :,
comunitária", que assume formas unificadoras e que assenta no ajustamento
das pertenças (família, clã, aldeia, etnia...), a socialização societária
implica, de acordo com Weber, uma dissociação e uma autonomização
crescente dos campos de actividade social cuja configuração depende das
relações entre os interesses dos actores implicados. Esta fragmentação do
social é correlativa da burocratização das instituições, fechadas numa
multiplicidade de administrações especializadas e impessoais encarregadas
de aplicar e de elaborar regulamentações cada vez mais diversas,
manifestando, através desta dispersão, a primazia crescente da regra pela
regra. A figura do *expert* profissional dotado "do monopólio legítimo de
uma competência atestada, baseada na especialização do saber e na
delegação de autoridade legal" (1946, p. 678), torna-se assim o produto
típico da socialização "societária", mecanismo essencial da
racionalização social.

Esta racionalização, traço essencial das sociedades modernas, é


apresentada por Weber como um processo tendencial, constantemente
atravessado por crises, e não como um movimento linear. De facto, tal
como o predomínio da socialização "societária" não acaba com a existência
da socialização "comunitária", também a racionalização crescente é
acompanhada, de acordo com certas análises weberianas (29), da manutenção
de tensões entre a racionalidade
visando um fim e a racionalidade orientada por valores
(*Wertrationalitãt*), de tensões entre o poder legal racional e as outras
formas de poder, nomeadamente do poder carismático. Uma tal constatação
pressupõe que o processo de racionalização social seja considerado como
um conjunto de tendências não lineares e não inevitáveis, confrontando-se
constantemente com as lógicas específicas de cada um dos campos de
actividade social, progressivamente mais fechados.

(29) Para uma apresentação sintética destas análises, podemo-nos referir


a R. Nisbot (1966, pp. 107 e seguintes), a J. Habermas (1981, t. 1, pp.
228 e seguintes) e a R. Raynaud (1987).

Assim, segundo Max Weber, as classes sociais, definidas em termos


puramente "societários" como o conjunto dos indivíduos caracterizados por
"oportunidades comuns de acesso a bens e rendimentos" e, portanto, por
"interesses económicos comuns dependendo das condições dos mercados (dos
bens e do trabalho)", não eliminam os *grupos de estatutos* definidos
mais em termos "comunitários" como grupos sociais cujos membros partilham
o mesmo estilo de vida e apreendem o mesmo ritual de distinções sociais,
visando manter o seu nível de prestígio. A socialização "de classe" que
é, para M. Weber, um processo voluntário implicando a entrada em
(inter)acção na esfera do trabalho para defender os seus interesses
"económicos", não elimina -- sem por isso a reforçar necessariamente -- a
socialização "estatutária" que é predominantemente imposta aos indivíduos
pelo seu contexto e se transfere para a esfera "cultural". Encontrar-se-
ia o mesmo tipo de coexistência de uma lógica "societária" e de uma
lógica "comunitária" na esfera política dos *partidos*, no seio dos
quais, a burocratização, longe de eliminar os chefes carismáticos,
assegura o seu regresso periódico que é necessário à mobilização de tipo
"comunitário" dos militantes e dos eleitores. Assim, segundo Weber, se "a
diferenciação entre classe, estatuto e partido só :, foi possível graças
a um vasto processo de socialização societária e, em particular, graças a
um quadro político de actividade (o Estado-nação) no interior do qual
operam" (1946, p. 195), pelo contrário, a intervenção racionalizadora do
Estado acentua a dissociação das esferas económicas, políticas e
culturais criando "secções-distintas e autónomas de actividades
comunitárias concorrentes" (*id.*, p. 201).

Assim, pode-se analisar o processo de racionalização ou de modernização


como um processo complexo e aberto baseado em combinações múltiplas entre
as duas *formas* opostas de socialização -- "societária" e "comunitária"
-- e numa articulação não funcional entre as três *esferas* constituídas
pela lógica das actividades de trabalho ("económico"), pela lógica das
representações simbólicas ("culturais") e pela lógica das estruturas de
organização e de poder ("político"). A tendência histórica que conduziu
ao desenvolvimento simultâneo da lógica "económica" das actividades
(optimização dos resultados), da forma "legal-racional" dos poderes
(regulamentação burocrática das relações) e da estrutura "distintiva" das
formas culturais (fechamento e encerrarnento dos domínios) produz efeitos
perversos não desejáveis, que obrigam que a análise tenha em conta as
motivações afectivas e as orientações éticas dos indivíduos, ou seja, que
tenha em conta as formas tradicionais e carismáticas de relações de poder
e as estruturas comunitárias de expressão "cultural". Mais do que
desembocar num tipo de individualidade única e estereotipada, o movimento
de sociedades modernas conduziria a uma forte diferenciação das
identidades de acordo com todas as possíveis combinações entre lógicas de
actividade, formas de poder e níveis culturais. A relativa autonomia dos
diferentes campos e a não coincidência crescente das posições dos
indivíduos nestes campos contribuem também para o aprofundamento desta
diferenciação de identidades.

4.3. A socialização como construção de um eu (*soi/) na relação com o


outro (*autrui*) (G. H. Mead)

É, sem dúvida, George Herbert Mead, na sua obra intitulada *Self, Mind
and Society* (1934), quem pela primeira vez descreveu, de forma coerente
e argumentada, a socialização como construção de uma identidade social
(um *self* na terminologia de Mead) na e pela interacção -- ou a
comunicação -- com os outros. Complementar e não antagonista da
perspectiva de Piaget (cf. capítulo 1), esta teorização tem o mérito de
colocar "o agir comunicacional" (e não "instrumental") no centro do
processo de socialização e fazer depender a lógica da socialização das
formas institucionais da construção do Eu e, nomeadamente, das relações
comunitárias (e não somente "societárias") que se instauram entre os
socializadores e o socializado.
Como Max Weber, Mead considera que "o facto mais importante é o acto
social que implica a interacção de diferentes organismos, isto é, que
implica a adaptação recíproca das suas condutas na elaboração do processo
social" (trad., p. 39). O acto elementar é o :, gesto que constitui uma
adaptação à reacção do outro. Mas há dois tipos de gestos. Quando um
barulho muito intenso ecoa atrás de si, você desata a correr (Mead),
quando chove, abre o guarda-chuva (Weber): são gestos reflexos que não
implicam nenhuma intenção relativamente a outrem. Quando alguém lhe
estende a mão, você estende-lhe a sua, se ele faz menção de o agredir com
um murro, você recua: são gestos simbólicos (30), "símbolos
significativos que têm um sentido definido" (*id.*, p. 40). Neste último
caso, Mead designa-os por linguagem e define-os a partir do facto de eles
fazerem "nascer implicitamente naquele que os realiza a mesma reacção que
produzem, explicitamente, naqueles a quem eles se dirigem" (*id.*, p.
41). Esta reacção significativa e simbólica, que "tem a mesma
significação para todos os indivíduos de uma dada sociedade ou de um
grupo social" e origina a mesma atitude naqueles que a realizam e
naqueles que a ela reagem, constitui, para Mead, a origem da consciência
ou daquilo que ele designa por espírito (Mind) e que ele caracteriza como
"a adopção da atitude do outro relativamente a si ou relativamente à sua
própria conduta" (*id.*, p. 41).

(30) É esta associação constante da interacção e do simbolismo que faz


com que G. H. Mead seja considerado o fundador do interaccionismo
simbólico do qual encontraremos outros representantes no decurso desta
obra.

Segundo Mead, a conversação por gestos está, assim, na origem de qualquer


linguagem, ela é o "modelo" (*pattern*) de qualquer comunicação e "a
essência da significação" já que comporta os dois aspectos de qualquer
processo social: a reacção de adaptação do outro e a antecipação do
resultado do acto: "através do gesto, a significação implica uma
referência ao resultado do acto social que aquele indica ou desencadeia;
o outro reage adaptando-se a este gesto: esta reacção é a significação do
gesto".

Esta análise de base reconcilia a sociologia weberiana com a psicologia


behaviorista na condição de se definir o comportamento (social) como uma
reacção significativa ao gesto do outro. Ela permite a Mead desenvolver
uma análise minuciosa da socialização como construção progressiva da
comunicação do Eu como membro de uma comunidade que participa activamente
na sua existência e, portanto, na sua mudança.

A primeira etapa essencial desta socialização meadiana é a "tomada em


conta" pela criança dos *papéis* desempenhados pelos que lhe são
próximos, aqueles que Mead chama de "outros significativos". O papel é
justamente este conjunto de gestos que funciona como símbolos
significantes e associados para formar uma "personagem" socialmente
reconhecida. A criança pequena começa a socializar-se, não imitando
passivamente a mãe ou o pai, mas recriando, através de gestos
organizados, com as bonecas o papel da mamã ou o papel do seu papa com as
ferramentas ou o jornal. Muitas vezes, a criança inventa para si um
"duplo" com o qual brinca, assumindo atitudes, trocando de papéis,
mudando os seus gestos e mesmo a sua voz. Estes "companheiros invisíveis
e imaginários que a maior parte (das crianças) criam na sua existência"
servem, deste modo, para "organizar as reacções que elas provocam nos
outros e que provocam, assim, nelas próprias" (*id.*, p. 127). São
particularmente importantes para assumir os diferentes papéis dos "outros
significativos" através de "jogos livres" que são, por si só, o assumir
dos papéis. :,

Uma segunda etapa será ultrapassada quando -- a partir da entrada para o


jardim-escola -- a criança passa do jogo livre para os jogos com regras e
deve ser capaz "de tomar a atitude de qualquer indivíduo que participa na
jogada". A aprendizagem é longa e progressiva, continuando a criança,
muitas vezes, a brincar sozinha apesar de estar com os outros (cf.
Piaget, cap. 1). Quando as crianças se reúnem para "brincar aos índios",
cada um pode interpretar os papéis à sua vontade e construir "o seu
próprio filme". Mas se começam um jogo de futebol, será preciso
compreender progressivamente que cada jogador tem um "papel organizado",
que o guarda-redes fica na baliza e que o defesa deve protegê-lo, que não
se pode sair do campo com a bola, nem marcar golos com a mão: a criança
deverá interiorizar as regras do jogo, isto é, compreender "que a atitude
de um obriga a uma atitude apropriada por parte do outro". A passagem do
jogo livre, "no qual se assume o papel do outro significativo", ao jogo
com regras, onde "se respeita uma organização vinda de fora", pressupõe
que se aceda a uma nova compreensão do outro. Este "outro" já não é um
parceiro singular do qual se assume um papel particular, mas antes é "a
organização das atitudes daqueles que estão comprometidos num mesmo
processo social", a comunidade, a equipa, o grupo que dá ao indivíduo a
*unidade do Eu*. Mead chama-lhe "o outro generalizado" e faz da
identificação àquele o mecanismo central da socialização definida como
construção do Eu.

A última etapa da socialização consiste, segundo Mead, no reconhecimento


como membro destas comunidades, nas quais a criança progressivamente se
identificou com os Outros Generalizados. Este reconhecimento do Eu
implica que o indivíduo não seja somente um membro passivo do grupo, que
interiorizou os seus "valores gerais", mas que seja um actor que
desempenha no grupo um "papel útil e reconhecido". É neste processo que
intervém uma dialéctica, mesmo um *desdobramento*, entre o "*eu*"
identificado pelo outro e reconhecido por ele como "membro do grupo"
(faço parte da equipa de futebol, vou aos treinos, paguei a quota, posso
dizer: "eu", membro da equipa X) e o "*eu*" que se apropria de um papel
activo e específico no seio da equipa e "que reconstrói activamente a
comunidade a partir de valores particulares ligados ao papel que assume"
(eu sou guarda-redes, "bato-me" por ser seleccionado, faço ganhar a
equipa não deixando entrar golos por desleixo e faço progredir uma
estratégia defensiva eficaz). É do equilíbrio e da união destas duas
facetas do Eu -- o "eu" que interiorizou "o espirito" do grupo e o "eu"
que me permite afirmar-me positivamente no grupo -- que dependem a
consolidação da identidade social e, portanto, o sucesso do processo de
socialização. Para Mead, a socialização desenvolve-se ao mesmo tempo que
a individualização: quanto mais se é Eu-próprio, melhor se é integrado no
grupo.

O que importa neste processo é o duplo movimento pelo qual os indivíduos


se apropriam subjectivamente de um "mundo social", "do espírito" (Mind)
da comunidade a que pertencem e, ao mesmo tempo, se identificam com os
papéis, ao aprender a jogar de uma forma pessoal e eficaz. Na realidade,
na educação, ao identificarem-se aos seus próximos (outros
significativos), as crianças começam por "absorver" o mundo social geral
(*Society*) :, mas filtram-no à sua maneira através de atitudes
particulares que, simultaneamente, definem as suas relações específicas
com os outros e seleccionam determinados papéis em detrimento de outros
(bom guarda-redes, bom em Matemática...). Assim, "a criança das classes
populares acabará não só por morar num mundo muito diferente daquele das
crianças das classes superiores, como acabará também por se diferenciar
do seu vizinho, que pertence, apesar de tudo, à mesma classe: através da
mediação dos seus pais ou de um adulto a que se identifica, a criança
poderá interiorizar uma atitude de aceitação do seu destino, de
resignação, de ressentimento amargo ou de revolta febril" (Berger e
Luckmann, 1966, p. 192).

A passagem das primeiras identificações aos outros significativos para a


construção de uma identidade social por "abstracção dos papéis" e
"identificação com o Outro Generalizado" não suprime esta tensão entre a
pertença, largamente imposta ("herdada"), a comunidades preexistentes e a
selecção activa ("escolhida") de papéis socialmente legítimos. É por isso
que G. H. Mead insiste sobre os riscos constantes da "dissociação do Eu"
que acompanha a socialização (*op. cit.*, p. 122): entre um "eu" que
implica necessariamente um esforço de conformidade ao grupo para se fazer
(re)conhecer e um "eu" que corre sempre o risco de ser anulado ou
desconhecido pelos outros, o Eu (*self*) em construção arrisca-se a ser
dissociado entre a identidade colectiva sinónima de disciplina, de
conformismo e de passividade e a identidade individual sinónima de
originalidade, de criatividade, mas também de risco e de insegurança.
Apesar de tudo, a conclusão de Mead acrescenta um elemento importante a
Max Weber: se a sociedade (*Society* sinónimo aqui de *gesellschaft*) não
pode ser construída sem ser fiel ao espírito (*Mind*) da comunidade
(*community* sinónimo de *gemeinschaft*) na qual se euraíza, ela só pode
fazê-lo através da acção coordenada de indivíduos socializados (*self*)
que constroem e inventam novas relações, produtoras de social. Ao
socializar-se, os indivíduos criam a sociedade da mesma forma que
reproduzem a comunidade.

4.4. Socialização secundária e mudança social (P. Berger e T. Luckmann)

Na sua obra de síntese consagrada à socialização (1986, trad. 1966),


Peter Berger e Thomas Luckmann (B. L.) retomam e aprofundam as análises
de Mead, introduzindo uma distinção interessante entre socialização
primária e socialização secundária.

Na sua análise da socialização primária, introduzem no esquema meadiano a


problemática dos *saberes* elaborada pela corrente fenomenológica e,
nomeadamente, por Alfred Schütz (ed. 1967). A socialização define-se,
antes de mais, pela imersão dos indivíduos naquilo que chama "mundo
vivido", o qual é, simultaneamente, um "universo simbólico e cultural" e
um "saber sobre este mundo". A criança absorve o mundo social no qual
vive "não como um universo possível entre outros, mas como o mundo, o
único mundo :, existente e concebível, o *mundo tout court*". Fá-lo a
partir de um saber (31) de base que é, segundo Schütz, quer pré-reflexivo
quer pré-dado, e que funciona como uma evidência, mas também como uma
reserva de categorias com a ajuda das quais:
(31) O termo inglês *knowledge* deve antes ser traduzido pelo termo
"saber" do que por "conhecimento".

-- "programa" os esquemas pelos quais o indivíduo percepciona o mundo


objectivo;

-- objectiva o mundo exterior no interior de uma linguagem e de um


aparelho cognitivo nela fundado;

-- ordena, a partir do interior da linguagem, objectos que são


apreendidos enquanto realidades;

-- fornece a estrutura no interior da qual tudo aquilo que ainda não é


conhecido acabará por ser mais tarde conhecido (B. L., p. 94).

É a incorporação deste "saber de base" na e com a aprendizagem "primária"


da linguagem (falar, depois ler e escrever) que constitui o processo
fundamental da socialização primária porque assegura em simultâneo "a
posse subjectiva de um eu e de um mundo" e, portanto, a consolidação dos
papéis sociais redefinidos por B. L. como "tipificações de condutas
socialmente objectivadas", isto é, simultaneamente "modelos predefinidos
de condutas típicas" e *códigos* que permitem a definição social das
situações, ou seja, "que no quadro de uma situação comum são pertinentes
tanto aos olhos de ego como do outro". Estes saberes de base, objectos da
socialização primária, dependem essencialmente das relações que se
estabelecem entre o mundo social da família e o universo institucional da
escola e são, simultaneamente, "campos semânticos" que permitem
categorizações de situação e "programas de iniciação formalizados" que
permitem a construção e a antecipação de condutas sociais. A escola
assegura, com efeito, a legitimação de certos saberes sociais em
detrimento de outros -- favorecendo assim certos tipos de famílias --, e
tem assim um papel decisivo na distribuição dos saberes. Nesta
problemática, não restam dúvidas de que os saberes de base incorporados
pelas crianças dependerão não só das relações entre a família e o
universo escolar, mas também da sua própria relação com os adultos, que
asseguram a sua socialização. A chave essencial de compreensão dos
mecanismos e dos resultados da socialização primária é, assim, a
valorização que é feita dos diferentes saberes possuídos pelos diferentes
adultos "socializadores" e das relações que estabelecem com os diversos
"socializados".

Mas o interesse essencial do texto de Berger e Luckmann reside na


tentativa de construir uma teoria operatória da *socialização secundária*
que não é uma simples reprodução dos mecanismos da socialização primária.
Se é certo que a obra de B. L. integra algumas fórmulas que podem ser
interpretadas neste último sentido ("a estrutura de base de qualquer
socialização secundária deve assemelhar-se à da socialização primária",
p. 180), a economia geral do texto conduz a uma teorização muito mais
original. :,

De facto, é possível propor a dupla hipótese: por um lado, "a


socialização nunca é completamente conseguida" (p. 146) e, por outro, "a
socialização nunca é total nem acabada" (p. 188). Portanto, é preciso dar
um lugar importante à *socialização secundária* provisoriamente definida
como "interiorização de submundos institucionais especializados" e
"aquisição de saberes específicos e de papéis directa ou indirectamente
enraizados na divisão do trabalho" (p. 189). Antes de mais, trata-se da
incorporação de saberes especializados -- que chamaremos *saberes
profissionais* -- que constituem saberes de um novo género. São
maquinismos conceptuais que têm subjacentes um vocabulário, receitas (ou
fórmulas, proposições, procedimentos), um programa formalizado e um
verdadeiro "universo simbólico" veiculando uma concepção do mundo
(*Weltsanschauung*) mas que, contrariamente aos saberes de base da
socialização primária, são definidos e construídos por referência a um
campo especializado de actividades e são, portanto, "situados
diversamente no interior do universo simbólico enquanto globalidade" (p.
191). A aquisição destes saberes pressupõe a socialização primária
anterior e coloca, à partida, "um problema de consistência entre as
interiorizações originais e novas". Aqui, vários casos são possíveis
desde o simples prolongamento da socialização primária por uma
socialização secundária cujos conteúdos concordam, simultaneamente, com o
"mundo vivido" pelos membros de família de origem e, portanto, com os
saberes construídos anteriormente, até à transformação radical da
realidade subjectiva construída aquando da socialização primária. A
análise pormenorizada deste último caso pressupõe que a socialização
secundária possa constituir uma ruptura em relação à socialização
primária como, por exemplo, quando "a criança com mais idade acaba por
reconhecer que o mundo representado pelos seus pais, este mesmo mundo que
considerou anteriormente pré-dado, é, de facto, o mundo das pessoas sem
educação, o mundo das classes inferiores" (B. L., p. 194). A tese
defendida pelos autores é que, neste caso, "é preciso vários *choques
biográficos* para desintegrar a realidade massiva interiorizada durante a
primeira infância" (p. 195). Estes, ao acompanharem um duplo processo de
"mudança de mundo" e de "desestruturação/reestruturação de identidade",
pressupõem, para terem êxito, as condições seguintes:

-- um assumir de "*distanciamento de papéis*" que inclui uma disjunção de


"identidade real" e de "identidade virtual" (Goffman, 1963);

-- técnicas especiais que asseguram uma forte identificação ao futuro


papel visado, um forte *compromisso pessoal* (*commitment*);

-- um processo institucional de *iniciação* que permite uma transformação


real da "casa" do indivíduo e uma implicação dos socializadores na
passagem de uma "casa" para a outra;

-- a acção continua de um "aparelho de *conversação*" que permite manter,


modificar e reconstruir a realidade subjectiva incluindo uma
"contradefinição da realidade" (transformação do mundo vivido pela
modificação da linguagem); :,

-- a existência de uma "*estrutura de plausibilidade*", isto é, de uma


instituição mediadora ("o laboratório de transformação"), que permita a
conservação de uma parte da identidade antiga acompanhando a
identificação a novos outros significativos, percepcionados como
legítimos.

Estas condições serão tanto mais importantes e difíceis de reunir quanto


maior for a distancia entre os conteúdos da socialização primária e os da
socialização secundária. Quando a ruptura é notória, assiste-se a
verdadeiras "alternações", isto é, a transformações totais da identidade;
assiste-se a situações de "alteridade" do indivíduo no decorrer da
socialização secundária. "O protótipo histórico da alternação é a
conversão religiosa" (B. L., p. 215). Esta só pode perdurar no seio de
uma comunidade religiosa que tem capacidade para criar todas as condições
precedentes e, nomeadamente, constituir uma estrutura eficaz de
plausibilidade que assegura a separação do convertido dos seus antigos
correlegionários "pelo menos no decurso da fase essencial da iniciação".

Os autores assinalam dois outros exemplos típicos de "alternação" que


envolvem procedimentos complexos de socialização secundária: o
endoutrinamento político e a psicoterapia. Nos dois casos, o desafio do
processo, isto é, a transformação de identidade, depende da articulação
duradoira de um "aparelho de legitimação" e de uma "reinterpretação da
biografia passada", à volta de uma estrutura do tipo "antigamente
pensava... agora sei". A ruptura biográfica deve poder ser vivida e
legitimada como uma "separação cognitiva entre trevas e luz", o que
pressupõe que o trabalho "biográfico" de redefinição dos acontecimentos
passados possa inscrever-se no quadro de um "aparelho de conversação",
ele próprio inserido numa estrutura legitimadora de plausibilidade: a
reunião de célula ou a cura psicanalítica podem corresponder, por
exemplo, a estas exigências.

Esta abordagem da socialização "secundária" como conversão da identidade


e do mundo social coloca duas questões que não são resolvidas no texto
citado:

1. Existirão estruturas sociais ou tipos de sociedade que implicam, da


parte dos seus membros, rupturas sistemáticas entre socializações
primária e secundária?

2. Em que é que o "sucesso" de uma socialização secundária está ligado às


condições e aos resultados da socialização primária?

O desencadear de uma socialização secundária em ruptura com a


socialização primária é associado, pelos autores, a dois tipos de
situações muito diferentes. A primeira é aquela na qual a socialização
primária não foi conseguida por várias razões (acidentes biográficos,
etc.): a socialização secundária permite então construir uma identidade
mais satisfatória -- ou simplesmente mais consistente -- do que aquela
produzida pela socialização primária. A segunda circunstância -- que é
apenas evocada - é aquela onde as identidades anteriores se tornam
"*problemáticas*", onde as identificações aos outros significativos se
tornam débeis, e até inexistentes, e onde se cria um "mercado dos mundos
disponíveis" (B. L., p. 234) acompanhado por uma "consciência geral da
relatividade de todos os :, mundos". Esta situação é particularmente
provável num "contexto socio-estrutural com uma mobilidade acentuada, com
uma transformação da divisão do trabalho e da distribuição social dos
saberes". Nestas situações, a questão da socialização secundária torna-se
um problema essencial colocado pela transformação do trabalho, dos
saberes e das relações sociais. Ela já não está ligada aos insucessos da
socialização primária, mas sim às pressões exercidas sobre os indivíduos
para modificar as suas identidades e as tornar compatíveis às mudanças em
curso. A construção de um aparelho de socialização secundário eficaz
torna-se então um desafio essencial ao êxito do processo de mudança
social.

A relação entre "sucesso" da socialização secundária e "condições" da


socialização primária constitui um dos pontos cruciais da teoria. Embora
recusando qualquer determinação mecânica da socialização primária sobre a
socialização secundária, não podem considerá-los como totalmente
independentes. A socialização secundária nunca apaga totalmente a
identidade "geral" construída no final da socialização primária. Em
condições institucionais bem precisas ela pode, contudo, transformar uma
identidade "especializada" numa outra, se bem que muito diferente. Impõe-
se precisar que relações unem a identidade "geral" (e o "mundo"
correspondente) vinda da socialização primária e as identidades
"especializadas" (e os "mundos" associados) construídas, desconstruídas e
reconstruídas no decurso da socialização secundária. Esta questão da
articulação das identidades "especializadas" (profissionais, culturais,
políticas...) no seio de uma identidade "global" (individual e social,
*Self and Society* de acordo com as categorias de Mead) não é *a priori*
resolvida pela abordagem fenomenológica: só pode ser descrita
empiricamente, verificada mas não teorizada (cf. capítulo 5).

Apesar desta limitação, a problemática da "construção social da


realidade" permite abordar a questão da socialização numa perspectiva da
mudança social e não somente da reprodução da ordem social. Ao relacionar
a questão da *diferenciação* do social em "esferas" especializadas
dotadas de uma autonomia cada vez maior à constatação da tendência para a
formação se generalizar ao conjunto da existência biográfica, esta teoria
permite definir a mudança social como um processo conjunto de "construção
de um mundo específico" e de "transformação de uma identidade
especializada" e, portanto, da socialização secundária em ruptura com a
socialização primária.

Esta possibilidade de mudança social "real" -- isto é, não reprodutora


das relações sociais e das identidades anteriores -- depende, antes de
mais, das relações entre os aparelhos de socialização primária e
secundária, ou seja, depende das relações entre as instituições de
legitimação dos saberes "*gerais*" (de base) que asseguram a construção
dos "mundos sociais" na infância e os sistemas de utilização e de
construção dos saberes "*especializados*" que legitimam a reconstrução
permanente dos "mundos especializados". Estes aparelhos de socialização
já não podem ser considerados como órgãos funcionalmente integrados numa
globalidade social (como nas teorias funcionalistas): possuem uma
autonomia crescente e contribuem para a construção de "mundos"
diferenciados à volta de *saberes* cada vez mais dissociados. A coerência
e a hierarquização dos saberes já :,
não são garantidas por uma instancia única de controlo social e de
legitimidade cultural. Assim sendo, os aparelhos de socialização primária
(famílias, escolas...) entram em interacção com os aparelhos de
socialização secundária (empresas, profissões...) provocando crises de
legitimidade dos diversos saberes e das transformações possíveis dos
"mundos legítimos". A mutação dos sistemas de trabalho e de produção, e
mais geralmente de *acção instrumental*, pode assim ser acompanhada de
socializações secundárias que põem em causa as hierarquias e os saberes
da socialização primária, nomeadamente através de uma mudança das
interacções, das relações sociais, em suma, através da *acção
comunicacional*. Esta mudança social implica que o processo de
diferenciação social e de autonomização dos campos da prática social --
nomeadamente da acção instrumental de tipo "económico" -- possa entrar em
contradição com o processo de reprodução das instituições educativas e,
nomeadamente, das relações de autoridade, de domínio e de poder que
caracterizam a acção comunicacional ou de tipo "relacional". Esta
contradição só se pode analisar em relação com os *conflitos sociais* que
opõem grupos ou "actores" sociais definidos não só pelo seus interesses
"estratégicos", mas também pelas suas identidades "culturais". É, de
facto, graças à transformação possível das identidades na socialização
secundária que se podem pôr em causa as relações sociais interiorizadas
ao longo da socialização primária: a possibilidade de construir outros
"mundos" para além daqueles que foram interiorizados na infância está na
base do sucesso possível de uma mudança social não reprodutora.

Subjectivamente, a mudança social é, portanto, inseparável da


transformação das identidades, isto é, é simultaneamente inseparável dos
"mundos" construídos pelos indivíduos e das "práticas" que decorrem
destes "mundos". Estando orientada fundamentalmente para a formação da
identidade social, a socialização primária só pode ser bem sucedida se
tiver subjacente um processo de incorporação da "realidade tal qual ela
é" (Mead), de adaptação ao "princípio de realidade" que implica a
renúncia ao "principio de prazer" (Freud), de integração na sociedade
existente e nas suas "relações sociais de produção e de reprodução"
(Marx). Só a socialização secundária pode produzir identidades e actores
sociais orientados pela produção de novas relações sociais e susceptíveis
de se transformarem elas próprias, através de um acção colectiva eficaz,
isto é, duradoira. É por esta razão que qualquer análise dos processos e
condições da mudança ou da inovação se confronta com a questão da
aprendizagem colectiva pelos actores das capacidades de "invenção de
novos jogos, de novas regras e de novos modelos relacionais" (Crozier-
Friedberg, 1977, pp. 338 e seguintes). Para isso não basta abrir os
"espaços de jogos", criando "zonas de incerteza" que permitam os
"investimentos estratégicos"; é necessário também assegurar a existência
de um aparelho de formação (socialização secundária), que permita a
transformação das identidades de actor num sentido que não se limite à
reprodução ou adaptação das identidades anteriores, mas que permita
envolver-se numa verdadeira criação institucional (Sainseulieu, 1987).
Trata-se, pois, de inventar novas regras federativas, novos colectivos
(Reynaud, 1989). 0 sindicalismo pode constituir, por exemplo, um aparelho
de socialização secundária, permitindo a transformação das identidades
"dominadas" em identidades :,
"militantes", que resistem à dominação e que contribuem para a produção
de novas regras do jogo. As empresas "inovadoras" procuram hoje aplicar
ou controlar um aparelho de socialização deste tipo que permite
transformar identidades de executivos em identidades de "assalariados
mobilizados" (cf. terceira parte). Nestes dois casos, a transformação da
socialização e das identidades parece constituir uma condição primordial
para o sucesso da mudança social. Nesta problemática que se apoia na
articulação da socialização primária com a secundária, a *reprodução
social* das identidades aparece como um resultado entre muitos outros --
o resultado mais provável na maior parte das sociedades que não estão
declaradamente em crise -- desta articulação que corresponde a uma
homologia acentuada entre os aparelhos de socialização e a uma acentuada
continuidade das identidades. Quando a socialização secundária transforma
as identidades provenientes da socialização primária, as relações entre
"mundos gerais" e "mundos especializados" tornam-se instáveis e podem
evoluir quer para uma crise durável quer para uma *conversão* do mundo
social à volta do "mundo especializado" construído na socialização
secundária. Por fim, é preciso ter em conta os casos em que não tendo a
socialização inicial estruturado a identidade social, a socialização
secundária, se não puder construir uma identidade especializada, leva a
uma desestruturação durável dos indivíduos e à sua *exclusão* do espaço
social. Na articulação dos grandes tipos de acção (Weber) com os
mecanismos de aprendizagem (Piaget) e com as relações entre trajectórias
e sistemas (Bourdieu), encontramos quatro "modelos de socialização" que
correspondem à hipótese fundamental do dualismo social em que se baseia
todo este capítulo.

4.5. Uma perspectiva "compreensiva" da socialização

O último elo necessário para a elaboração teórica consistia em encontrar


"a entrada" principal para o fenómeno identitário concebido como produto
da socialização. Esta entrada é fornecida pelo esclarecimento
fenomenológico e compreensivo, complemento estritamente indispensável do
ponto de vista causal desenvolvido no capítulo precedente: é através da
análise dos "mundos" construídos mentalmente pelos indivíduos a partir da
sua experiência social que o sociólogo pode reconstruir melhor as
*identidades típicas pertinentes num campo social específico*. Estas
"representações activas" estruturam os discursos dos indivíduos nas suas
práticas sociais "especializadas" graças ao domínio de um vocabulário, à
interiorização das "receitas", à incorporação de um "programa". Em
resumo, graças à aquisição de um *saber legítimo* que permite, ao mesmo
tempo, a elaboração de "estratégias práticas" e a afirmação de uma
"identidade reconhecida". As dimensões mais significativas destas
representações activas são:

-- a relação com os sistemas, com as instituições e com os detentores dos


*poderes* directamente implicados na vida quotidiana envolve a implicação
e o reconhecimento do indivíduo, o "envolvimento" e o "desinteresse", a
participação ou a contestação, a identidade virtual reivindicada e a
identidade realmente reconhecida; :,

-- a relação com o futuro do sistema e com o seu próprio futuro envolve


as *orientações* estratégicas que resultam da apreciação das capacidades
e das oportunidades, da interiorização da trajectória e da história do
sistema;

-- a relação com a linguagem, isto é, com as categorias utilizadas para


descrever uma *situação vivida*, ou seja, o modo de articulação dos
constrangimentos externos e dos desejos internos, das obrigações
exteriores e dos projectos pessoais, das solicitações do outro e das
iniciativas do eu.

É, pois, na *compreensão interna das representações* cognitivas e


afectivas, perceptíveis e operacionais, estratégicas e identitárias que
reside a chave da construção operatória das identidades. Esta construção
só pode ser feita a partir das representações individuais e subjectivas
dos próprios actores. Implicando o reconhecimento (ou o não-
reconhecimento) de outrem, constitui necessariamente uma *construção
conjunta*. Efectivamente, a representação como dimensão da identidade não
preexiste totalmente ao discurso que a exprime. Ela constitui "uma
actividade mimética na medida em que produz qualquer coisa, a saber,
justamente a recomposição dos factos através da intriga" (Ricaeur, 1985).
É esta passagem do "representado" ao operatório, do passivo ao activo, do
"já produzido" ao "em construção" que permite definir as identidades como
*dinâmicas práticas* e não como "dados objectivos" ou "sentimentos
subjectivos".

Devido ao seu enraizamento nos dois tipos de agir social (a acção


instrumental "estratégica" que pressupõe um olhar sobre o mundo, uma
categorização activa e o agir comunicacional "expressivo" que pressupõe a
partilha de uma linguagem, de um código e do seu uso nas relações
directas), estas representações activas envolvendo os diversos tipos de
saber constituem os melhores indicadores possíveis das identidades
sociais, resultados simultaneamente estáveis e provisórios de um processo
de socialização concebido em termos estratégico e comunicacional.

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Para uma teoria sociológica da identidade

O recurso à noção de *identidade*, para concluir esta primeira parte


consagrada às teorias da socialização, decorre do capítulo precedente
constituindo, ao mesmo tempo, um empreendimento perigoso pois que, como
afirma Erikson, "quanto mais se escreve sobre este tema, mais as palavras
instauram uma limitação à volta de uma realidade tão insondável como
invasora de todo o espaço" (1968, p. 5). A conceptualização esboçada
neste capítulo recusa a distinção da identidade individual da colectiva
(Tap, 1980) para fazer da identidade social uma articulação entre duas
transacções (cf. capítulo 1): uma transacção "interna" ao indivíduo e uma
"externa" estabelecida entre o indivíduo e as instituições com as quais
interage (cf. capítulo 4). A abordagem que serve de base a este capítulo
dá uma importância tão grande aos processos "culturais" (cf. capítulo 2)
como às estratégias de ordem "económica" (cf. capítulo 3). Empenha-se
particularmente em salientar e definir categorias de análise (cf. quadro
5.1.) que sejam operatórias para as pesquisas empíricas (cf. terceira
parte).

5.1. No ponto de partida: a dualidade no social

As teorias apresentadas no capítulo precedente levam a considerar a


*divisão do Eu* como a forma primordial de manifestação da identidade
(Laing, 1961, p. 25). Aqui, é preciso voltar à psicanálise e às suas
contribuições mais sólidas. Lembremos que, para Freud, o Eu é,
simultaneamente, uma instancia defensiva das agressões do real exterior,
uma :,
"agência" de coerência das representações e de adaptação à realidade e
uma organização de investimento libidinal. O tu é atravessado por
conflitos permanentes entre o Id, que comporta todos os desejos
recalcados, e o Superego, sede das normas e das interdições sociais
(Freud, 1913, trad. pp. 105 e seguintes). Foi, sem dúvida, Lacan que na
sua leitura de Freud mais insistiu nesta "discordância primordial na
relação do organismo com a sua realidade" (Lacan, 1966, p. 93), nesta
"subversão do sujeito" na sua actividade desejadora (*id.*, 1971, pp. 151
e seguintes), que ele localiza no *estádio do espelho* e na experiência
precoce da criança ("antes que o Eu se objective na dialéctica da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua no
universal a função de sujeito", *id.*, p. 90) experimentando, na sua
imagem, "a sua discordância com a sua própria realidade". Esta
interpretação da descoberta mais importante de Freud -- "a estrutura do
sujeito como descontinuidade no real" -- parece opor-se a outras leituras
(32) mais "humanistas" e mais "optimistas" como, por exemplo, a de
Erikson, que define a identidade do Eu desta forma: "sentimento
subjectivo e tónico de uma unidade pessoal (*sameness*, traduzida
normalmente por similitude) e de uma continuidade temporal que constitui
o princípio mais profundo de qualquer determinação à acção e para o
pensamento que eu possuo" (1968, p. 14). O autor apoia-se, nomeadamente,
numa carta de Freud (1926) reivindicando a sua identidade judaica muito
bem definida como "intimidade de uma estrutura psíquica comum bem
protegida" (Erikson, p. 16). As duas posições precedentes não são apesar
disso contraditórias já que Erikson insiste no facto de a "identidade
nunca estar instalada, nunca estar acabada já que aquilo que envolve o Eu
é instável" (p. 20) e que os indivíduos atravessam obrigatoriamente
crises de identidade ligadas a "fissuras internas do eu" (33) (*id.*, p.
87).

(32) Para uma síntese das abordagens psicanalíticas da identidade, podo-


se ler a síntese de J. Cain (1967) intitulada significativamente: *Le
double jeu*.

(33) Erikson interessou-se particularmente pela crise da adolescência, a


propósito da qual elaborou uma teoria próxima daquela que está esboçada
aqui.

A divisão intrínseca à identidade (34) tem de, finalmente e sobretudo,


ser esclarecida pela dualidade da sua própria definição: identidade para
si e identidade para o outro são inseparáveis e estão ligadas de uma
forma problemática. Inseparáveis porque a identidade para si é
correlativa do Outro e do seu reconhecimento: eu só sei quem eu sou
através do olhar do Outro. Problemáticas porque "a experiência do outro
nunca é directamente vivida por si... de tal forma que nos apoiamos nas
nossas *comunicações* para nos informarmos sobre a identidade que o outro
nos atribui... e, portanto, para forjarmos uma identidade para nós
próprios" (Laing, p. 29). Ora, todas as nossas comunicações com os outros
são marcadas pela incerteza: posso tentar pôr-me no lugar dos outros,
tentar adivinhar o que pensam de mim, até imaginar o que pensam que eu
penso deles, etc. Não posso colocar-me na sua pele. *Eu* nunca posso ter
a certeza que a minha identidade para mim coincide com a minha identidade
para o Outro. A identidade nunca é dada, é sempre construída e a
(re)constroir numa incerteza maior ou menor e mais ou menos durável. :,

(34) Poder-se-ia também ligar Erikson à teória durkheimiana do *homo


duplex* (ser individual/ser social) resumida,
nomeadamente, em éducation et Socialogie* (1911). Quanto às convergências
e divergências entre esta teoria e as
de Freud, cf. Bastide (1950).

Assim vista, será que a noção de identidade pode ser incluída numa
perspectiva sociológica? Certamente que não se nos mantivermos numa
perspectiva fenomenológica da relação interindividual Eu-Outro, ou numa
perspectiva psicanalítica redutora que considera o Eu como o elemento de
um sistema fechado em relação dinâmica mas "interna" com o Id e o
Superego que rejeita no "ambiente envolvente" o conjunto das instituições
e das relações sociais (35). Certamente que

(35) "A psicanálise nunca conseguiu conceptualizar o ambiente envolvente


de uma forma operatória" (Eritson, *op. cit.*, p. 20).

sim se restituirmos esta relação identidade para si/identidade para outro


ao interior do processo comum que a torna possível e que constitui o
processo de socialização. Deste ponto de vista, a identidade não é mais
do que o *resultado simultaneamente estável e provisório, individual e
colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos
processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e
definem as instituições*. Que traz, então, esta noção a mais ou de
diferente do que as noções de grupo, classe ou categoria, utilizadas numa
perspectiva macrossocial ou que as noções de papel e de estatuto
definidas a partir de uma perspectiva microssocial? A resposta parece
clara: tenta introduzir a dimensão subjectiva, vivida, psíquica no âmago
da análise sociológica. Esta noção de identidade introduz esta hipótese
paradoxal que inverte de qualquer maneira as posições psicanalíticas
"correntes" que opõem o Eu e o seu sistema "interior" (Id, Superego...),
considerado essencial ao Ambiente e à sua organização "externa" que é
muitas vezes considerada não essencial (36): "a ironia da situação é que

(36) Não era a posição do próprio Freud que escreve: "Todas as relações
que foram até agora objecto de investigações psicanalíticas podem, de
direito, ser consideradas como fenómenos sociais" (Freud, trad. 1981, p.
76). Portanto, seria preciso diferenciar e distinguir as diversas
correntes psicanalíticas; já que os escritos mais sociológicos de Freud
foram considerados, durante muito tempo, pela maioria dos psicanalistas
como os menos científicos e os menos pertinentes (cf. Enriquez, 1983, pp.
32 e seguintes).

aquilo que eu considero a mais pública realidade é considerada pelos


outros como o meu fantasma mais pessoal *e que aquilo que eu suponho ser
o meu mundo "interior" mais intimo revela-se como o que possuo de mais em
comum com os outros*" (Laing, p. 42). Esta inversão que faz "do mais
íntimo" aquilo que também é "o mais social" não elimina a divisão do Eu
como realidade originária da identidade: ela instala-o no *próprio
social* (37), abordando-o através da expressão individual dos "mundos
subjectivos" que são, simultaneamente, "mundos vividos" e "mundos
expressos", portanto, mundos susceptíveis de serem apreendidos
empiricamente (Dubar, 1990\b). Esta inversão justifica-se pela tentativa
de compreender as identidades e as suas eventuais fracturas como produtos
de uma tensão ou de uma contradição interna ao próprio mundo social
(entre o agir instrumental e o comunicacional, o societário e o
comunitário, o económico e o cultural, etc.) e nunca em primeiro lugar
como resultados do funcionamento psíquico e dos seus recalcamentos
biográficos. :,
(3) Cuja estrutura é, simultaneamente, o produto e o reflexo das
estruturas cognitivas e relacionais dos seus membros (Lévi-Strauss,
1977).

5.2. No centro da teoria: uma articulação de dois processos identitários


heterogéneos

A divisão do Eu como expressão subjectiva da dualidade do social aparece


claramente através dos mecanismos de identificação. Cada um é
identificado por outro, mas pode recusar esta identificação e definir-se
de outra forma. Nos dois casos, a identificação utiliza *categorias*
socialmente disponíveis e mais ou menos legítimas a níveis diferentes
(nomeações oficiais de Estado, denominações étnicas, regionais,
profissionais... até diferentes idiossincrasias...). Chamaremos actos de
*atribuição* aos que visam definir "que tipo de homem (ou de mulher) você
é", isto é, a identidade para outro; actos de *pertença* aqueles que
exprimem "que tipo de homem (ou de mulher) você quer ser, isto é, a
identidade para si". Não há correspondência necessária entre "a
identidade predicativa de si" que exprime a identidade singular de uma
dada pessoa, com a sua história individual vivida, e as identidades
"atribuídas por outro", quer se trate das identidades numéricas que vos
definem oficialmente como ser único (estado civil, códigos de
identificação, números de ordem...), quer se trate das identidades
genéricas que permitem aos outros classificarem-vos como membros de um
grupo, de uma categoria, de uma classe. Contudo, a identidade predicativa
de si reivindicada por um indivíduo é "a condição para que esta pessoa
possa ser identificada genérica e numericamente por outros" (Habermas,
1981, tomo II, p. 115). É, efectivamente, *pela e na actividade com
outros*, implicando um sentido, um objectivo e/ou uma justificação, uma
necessidade (um "fim", *um-zu-Motiv*, ou uma "causa", *um-zu-*Welt* no
vocabulário de Alfred Schütz, pondo bem em destaque a dualidade social),
que um indivíduo é identificado e é conduzido a aceitar ou recusar as
identificações que recebe dos outros ou das instituições. Pensamos na
análise exemplar de Howard Becker sobre a génese do comportamento
desviante, a partir dos seus estudos sobre os fumadores de marijuana e os
músicos de *jazz*: a identidade desviante forja-se no decurso de um
processo (*career*) que constitui uma "transacção entre um grupo e um
indivíduo considerado pelo grupo como tendo transgredido uma norma". Não
é apenas a transgressão, mas também e sobretudo a *etiquetagem*
(*labelling*) pelos outros que produz, segundo Becker, o desvio. Assim, o
autor, prosseguindo a sua análise, conclui que a identidade desviante é o
produto de uma transacção entre a identificação imposta por outro e a
subcultura do grupo desviante (Becker, 1963, p. 36), chegando a fazer do
acto desviante a causa do seu estatuto principal, isto é, aquele através
do qual o próprio desviante se define e ao qual se identifica activamente
(*commitrnent*).

Assim, o célebre teorema de Thomas, principio *da predição criativa*, de


acordo com o qual "quando os homens consideram certas situações como
reais, estas são reais nas suas consequências" e segundo o qual se
realiza "uma modelagem do indivíduo a partir da imagem que os outros têm
dele e da definição que dão dele" (Merton, 1950, pp. 140 e seguintes), só
pode ser operatório se incluir a questão da transacção entre a identidade
:, atribuída e a identidade aceite (ou recusada) pelo indivíduo em causa
(38). Não se pode, por exemplo, considerar como equivalente um processo
pelo qual um toxicómano definido como tal reivindica a sua identidade de
drogado (Becker) e o processo pelo qual o aluno com insucesso escolar
interioriza as predições dos seus professores (Rosenthal et Jacobson,
1968), a não ser na condição de termos verificado empiricamente que um e
outro se definem eles próprios conforme as predições de outros.

(35) Encontra-se uma outra análise exemplar desta transacção identitária


resultante de uma etiquetagem ("És um ladrão") no texto muito belo de
Sartre, consagrado à biografia de Jean Genet (Sartre, 1952).

Encontramo-nos aqui perante dois processos heterogéneos que algumas


teorias sociológicas têm tendência, sem demonstração convincente, a
reduzir a um mecanismo único (cf. capítulo 3). O primeiro diz respeito à
*atribuição* da identidade pelas instituições e pelos agentes
directamente em interacção com o indivíduo. Não pode analisar-se fora dos
*sistemas de acção* nos quais o indivíduo está implicado e resulta de
"relações de força" entre todos os actores implicados e da legitimidade
-- sempre contingente -- das categorias utilizadas. A "construção"
legítima destas categorias constitui um desafio essencial neste processo
que, uma vez concluído, se impõe colectivamente, pelo menos durante um
certo tempo aos actores implicados. O processo leva a uma forma variável
de *etiquetagem*, produzindo o que Goffman chama as identidades sociais
"virtuais" dos indivíduos assim definidos (Goffman, 1963, p. 57).

O segundo processo diz respeito à interiorização activa, à *incorporação*


da identidade pelos próprios indivíduos. Não pode analisar-se fora das
*trajectórias* sociais pelas quais e nas quais os indivíduos constroem
"identidades para si" que não são mais que "a história que contam a si
daquilo que são" (Laing, p. 114) e que Goffman chama de identidades
sociais "reais". Estas utilizam também categorias que devem, antes de
mais, ser legítimas para o próprio indivíduo e para o grupo a partir do
qual define a sua identidade-para-si. Este grupo de referência pode ser
diferente daquele ao qual pertence "objectivamente" para outro (cf.
capítulo 2). É, contudo, o único que tem "subjectivamente" importância
para o indivíduo. Sem esta legitimidade "subjectiva", não se pode falar
de identidade-para-si.

Vejamos: estes dois processos não coincidem obrigatoriamente. Quando os


seus resultados diferem, há "desacordo" entre a identidade social
"virtual" emprestada a uma pessoa e a identidade social "real" que ela se
atribui a si própria (Goffman, 1963, trad. p. 12). As "estratégias
identitárias" destinadas a reduzir o desvio entre as duas identidades são
uma consequência deste desacordo. Elas podem assumir duas formas: ou a de
transacções "externas" entre o indivíduo e os outros significativos que
visam acomodar a identidade para si à identidade para o outro (transacção
chamada "objectiva"), ou a de transacções "internas" ao indivíduo, entre
a necessidade de salvaguardar uma parte das suas identificações
anteriores (identidades herdadas) e o desejo de construir para si novas
identidades no futuro (identidades visadas) procurando assimilar a
identidade-para-outro à identidade-para-si. :, Esta transacção chamada
subjectiva constitui um segundo mecanismo central do processo de
socialização concebido como produtor de identidades sociais. As
estratégias identitárias podem, portanto, ser comparadas aos processos de
equilibração de Piaget (cf. capítulo 1).

A abordagem sociológica aqui desenvolvida faz da articulação entre as


duas transacções a chave do processo de construção das identidades
sociais. De facto, a transacção subjectiva depende, com efeito, de
relações com o outro que são constitutivas da transacção objectiva. A
relação entre as identidades herdadas, aceites ou recusadas pelos
indivíduos, e as identidades visadas, em continuidade ou em ruptura com
as identidades precedentes, depende dos modos de reconhecimento pelas
instituições legítimas e pelos seus agentes que estão directamente em
relação com os sujeitos em causa. A construção das identidades faz-se,
pois, na articulação entre os sistemas de acção que propõem identidades
virtuais e as "trajectórias vividas" (39) no interior das quais se forjam
as identidades "reais" a que aderem os indivíduos. A construção da
identidade pode, também, ser analisada tanto em termos de continuidade
entre identidade herdada e identidade visada, como em termos de ruptura
que implica conversões subjectivas (cf. capítulo 4). Ela pode também
traduzir-se tanto por acordos como por desacordos entre identidade
virtual, proposta ou imposta pelo outro, e identidade real interiorizada
ou projectada pelo indivíduo. Esta abordagem pressupõe, portanto, em
simultâneo, uma relativa autonomia e uma articulação necessária entre as
duas transacções: as configurações identitárias constituem então formas
relativamente estáveis mas sempre evolutivas de compromissos entre os
resultados destas duas transacções diversamente articuladas (cf. quadro
5.1.).

(39) A noção de "trajectória vivida" designa a forma como os indivíduos


reconstroem subjectivamente os acontecimentos da sua biografia social que
julgam significativos.

Esta problemática pressupõe que se conceba e se analise a transacção


"objectiva" como uma confrontação entre as procuras e as ofertas de
identidades possíveis e não simplesmente como produtos de atribuições de
identidades pré-construídas. Esta transacção pressupõe, pois -- para se
articular com a outra --, a redefinição do processo de categorização pelo
qual se constroem as identidades oferecidas aos indivíduos. Deve ser
concebida como uma verdadeira negociação entre os que procuram uma
identidade em situação de abertura do seu campo do possível e os que
oferecem uma identidade em situação de incerteza no que diz respeito às
identidades virtuais a propor. Esta *negociação identitária* constitui um
processo comunicacional complexo, irredutível a uma "etiquetagem" (40)
autoritária de identidades predefinidas na base das trajectórias
individuais. Implica fazer da qualidade das relações com o outro um
critério e um desafio importante da dinâmica das identidades. Pressupõe,
nomeadamente, uma redefinição dos critérios mas também das condições (41)
de identidades e de competências associadas às identidades oferecidas.
Esta transacção carece, portanto, que, em diferentes níveis, se possa
definir o processo de produção de identidades novas como uma construção
conjunta que inclua as suas confirmações objectivas e subjectivas. :,

40 O uso incontrolado deste termo (*labelling*) pelos sociólogos provem


muitas vezes do facto de as análises de Goffman ou de Becker, que incluem
esta negociação identitária, terem sido radicalizadas por alguns dos seus
rivais influenciados, nomeadamente, pelo pensamento de Foucalt.

(41) A distinção é desenvolvida de uma forma muito clara por Habermas


(tomo II, pp. 118 e seguintes).

Quadro 5.1.
Categorias de análise da identidade
:::::::
Processo relacional

Identidade para outro

*Actos de atribuição*:
"Que tipo de homem ou de mulher você
é" = diz-se que você é

Identidade -- numérica (nome atribuído) -- genérica (género atribuído)

Identidade social "virtual"

*Transacção objectiva* entre:


-- identidades atribuídas/propostas
-- identidades assumidas/incorporadas

Alternativa entre:
-- cooperação-reconhecimentos
-- conflitos/não-reconhecimentos

"Experiência relacional e social do


PODER"

Identificação com instituições


julgadas estruturantes ou legitimas

\\\

Processo biográfico

Identidade para si

*Actos de pertença*:
"Que tipo de homem ou de mulher
você quer ser" = você é que diz que é

Identidade predicativa do Eu (pertença reivindicada)

Identidade social "real"

*Transacção subjectiva* entre:


-- identidades herdadas
-- identidades visadas

Alternativa entre:
-- continuidades :o reprodução
-- rupturas :o produção

"Experiência das estratificações,


discriminações e desigualdades sociais"

Identificação com categorias


julgadas atractivas ou protectoras
|
|
|
Identidade social marcada pela dualidade :,
::::::::::::

A problemática definida deste modo baseia-se na hipótese de uma


*dualidade* do funcionamento social, irredutível a qualquer postulado de
harmonização funcional, associada em geral à ideia de "comunidades"
integradas, ou a qualquer redução das condutas a estratégias
instrumentais de ordem "societária". Os dois processos coexistem e nenhum
mecanismo macrossocial pode garantir, por exemplo, que as trajectórias
socioescolares produzirão indivíduos providos de atitudes relacionais
preadaptadas ao funcionamento óptimo dos sistemas sociais do futuro.
Nenhuma harmonia preestabelecida assegura a coincidência entre as
antecipações estratégicas dos indivíduos (em termos de rendimentos, de
poderes e de prestígios) com as exigências comunicacionais dos sistemas
(em termos de empatia, de cooperação e de trocas). Nenhuma instancia
simbólica reguladora (a religião, o Estado...) é capaz de assegurar a
continuidade necessária entre as identidades reconhecidas ontem e as de
amanhã. O desafio é certamente o da articulação destes dois processos
complexos mas autónomos: não se faz a identidade das pessoas sem elas e,
contudo, não se pode dispensar os outros para forjar a sua própria
identidade.

5.3. Um mecanismo comum aos dois processos: a tipificação

Se os dois processos que concorrem para a produção das identidades -- o


processo biográfico (identidade para si) e o processo relacional,
sistemático, comunicacional (identidade para outro) - são heterogéneos, a
verdade é que eles utilizam um mecanismo comum: o recurso a esquemas de
tipificação (Berger et Luckman, 1966) que implicam a existência de tipos
identitários, isto é, "de um número limitado de modelos socialmente
significativos para realizar combinações coerentes de identificações
fragmentárias" (Erikson, p. 53). Estas categorias particulares que servem
para identificar os outros e para se identificar a si mesmo são variáveis
de acordo com os espaços sociais onde se exercem as interacções e as
temporalidades biográficas e históricas onde se desenvolvem as
trajectórias (42). Assim, as categorias pertinentes no campo
religioso(praticante/não-praticante/não- crente ou
católico/protestante/muçulmano/judeu/ateu, etc.) não são as mesmas das do
campo político (direita/esquerda...)

(42) Laurence Hirschfeld, antropólogo, mostrou numa investigação recente


(1988) que existem dois tipos de processos diferentes de conhecimento
social": o primeiro está ligado à identificação com o outro com a ajuda
de categorizações -- nomeadamente éticas -- adquiridas precocemente pelas
crianças "a partir de características salientes"; o segundo esta ligado à
auto-identificacão pessoal dos indivíduos e assenta na construção
progressiva de categorias "ligadas".

ou das do campo do trabalho (activo/inactivo, assalariado/não-


assalariado, execução/enquadramento, etc.). *A priori*, nada permite
hierarquizar :, os diferentes campos de identificação nem estabelecer
correspondências necessárias entre as posições internas aos diferentes
campos (católico-direita-pesscal de enquadramento/não-católico -esquerda-
pessoal de execução): apenas podemos verificar a existência de
correlações significativas através da análise empírica. Também nada
permite afirmar *a priori* que as categorias que servem para se
identificar no decorrer da vida são as mesmas ou são facilmente
comparáveis entre elas. Pode-se sustentar a hipótese de que estas
categorias dependem muito das idades da vida e que existe um certo
fechamento entre as esferas de identificação de um mesmo indivíduo num
dado momento: a teoria dos papéis é inteiramente compatível com esta
hipótese de dispersão das identidades subjectivas (para si) de acordo com
os cenários sociais onde sucessivamente o indivíduo se investe (cf.
capítulo 4).

Não se pode concluir, no entanto, daqui que se deva renunciar à noção de


*identidade social* se a definirmos e a problematizarmos. No processo de
identificação do outro existem categorias mais sintéticas -- as
categorias sociais -- que servem para englobar homologias de posições em
sistemas no interior dos quais passa a quase totalidade dos indivíduos de
uma mesma geração ("a formação da identidade constitui essencialmente um
problema de geração", Erikson, p. 26). Em França, organismos oficiais
como o INSEE fabricam e modificam categorias gerais (CSP: categorias
socioprofissionais de 1954 até 1982, PCS: profissões e categorias sociais
desde 1982...) que permitem classificar o conjunto dos indivíduos
recenseados segundo critérios que combinam essencialmente a pertença e a
posição "profissional" com o nível e o tipo de estudos "escolares".
Apesar de ser historicamente contingente, a prioridade atribuída aos
campos profissional e escolar confere uma *legitimidade* particular a
estas categorias e, portanto, aos campos sociais a partir dos quais elas
são construídas e reconstruídas (Desrosières *et alii*, 1983).

Estas categorizações legítimas influenciam necessariamente o processo de


construção das identidades para si. Mas não as determinam mecanicamente
nem as fixam de um vez por todas. Por um lado, os indivíduos de cada
geração devem reconstruir as suas identidades sociais "reais" a partir:
1. das identidades sociais herdadas da geração precedente ("a nossa
primeira identidade social é sempre conferida", Laing, p. 116); 2. das
identidades virtuais (escolares...) adquiridas no decorrer da
socialização inicial ("primária"); 3. das identidades possíveis
(profissionais...) acessíveis durante a socialização "secundária"; 2. Por
outro lado, as próprias categorias pertinentes de identificação social
evoluem no tempo e permitem antecipações recíprocas nas quais se podem
encaixar as negociações identitárias. Assim, nada é mais importante para
a análise sociológica do que localizar os movimentos que afectam os
modelos sociais de identificação, isto é, os tipos identitários
pertinentes. Estes não podem ser assimilados às categorias sociais
existentes oficialmente num dado momento, que estão sempre ameaçadas de
uma relativa obsolescência, nomeadamente em períodos de crise
(Desrosières, Thevenot, 1988). Os tipos identitários pertinentes devem,
também e sobretudo, ser apreendidos a partir das identificações "reais"
dos indivíduos entre eles e para eles. Os processos de identificação
futura devem ser lidos
a :, partir da forma como os indivíduos utilizam, pervertem, aceitam ou
recusam as categorias oficiais já que elas implica reorganizações
permanentes tanto dos domínios como das categorias identitárias. É por
isso que as tipologias dos sociólogos devem tentar "colar-se às
tipificações recíprocas dos próprios indivíduos que são produzidas nas
negociações
complexas com as instituições pertinentes e os seus agentes
significativos (cf. terceira parte).
5.4. O processo identtitário biográfico

Se os modos de construção das categorias sociais a partir dos campos


escolar e profissional adquiriram uma grande legitimidade e certamente
porque tanto as esferas do *trabalho* e do *emprego* (assalariado para
mais de 80% da população activa e problemático para mais de 10% desde o
princípio dos anos 80) como a da formação (escolar mas também
profissional, inicial mas também contínua) constituem domínios
pertinentes das identificações sociais dos próprios indivíduos (cf.
terceira parte). Historicamente, nem sempre foi assim e é, sem dúvida,
após a crise que começou no fim dos anos 60 que estas ligações "emprego-
formacão" (Tanguy *et alii*, 1986) foram reforçadas no seio dos processos
identitários, pelo menos para os indivíduos da geração em causa (aqueles
que entraram no mercado do trabalho na segunda metade dos anos 70).
Considerando a evolução das políticas de gestão do emprego ao longo dos
anos 80, tudo se passa como se o conjunto dos activos, incluindo os da
geração precedente, passasse a estar afectado por este movimento a
"formação" tornou-se uma componente cada vez mais valorizada não somente
acesso aos empregos, mas também nas trajectórias de emprego e nos
abandonos de emprego. Se o emprego é cada vez mais central para os
processos identitários (Schnapper, 1989, a formação está cada vez mais
estritamente a ele ligada.

Isso não significa, contudo, que se devam reduzir as identidades sociais


a estatutos de emprego e a níveis de formação. É evidente que, antes de
se identificar pessoalmente com grupo profissional ou com um tipo de
diplomados, um indivíduo, desde a infância, herda uma identidade sexual,
mas também uma identidade étnica e uma identidade de classe social que
são as dos seus pais, de um deles ou dos que estão encarregados de o
educar. de facto, a primeira identidade vivida e experimentada
pessoalmente pela criança constrói-se sempre na relação com a mãe ou com
aquela (aquele?) que a substitui: é por isso que a psicanálise é
imprescindível em qualquer abordagem da identidade individual. No
entanto, é nas e pelas categorizações dos outros -- e, nomeadamente, as
dos parceiros da escola ("professores" e "pares") -- que a criança
experimenta a sua primeira identidade social. Esta não é escolhida mas
conferida pelas instituições e pelos que rodeiam a criança, tanto na base
das pertenças étnicas, políticas, religiosas, profissionais e culturais
dos seus pais, como na base das suas *performances* escolares. A escola
Primária constitui. assim um momento decisivo para a primeira construção
da identidade social, apesar de muitas :, vezes bastante desconectada de
qualquer universo profissional (Isambert-Jamad, 1984). Assim. se
"aprendemos a ser o que nos dizem que somos" (Laing, p. 116), então nós
devemo-nos construir através de todas as relações face a face, todas as
identificações com o outro significativo e depois com o outro
generalizado (med), adquirindo um "saber sobre o que nós somos no mais
profundo de nós".

Desta dualidade entre a nossa identidade para o outro conferida e da


nossa identidade para si construída, mas também entre a nossa identidade
social herdada e a nossa identidade escolar visada nasce um campo de
possibilidades, onde se desenrolam desde a infância a adolescência e ao
longo de toda a vida todas as nossas estratégias identitárias (43).
Assim, por exemplo, aparece a partir do estádio "fálico-motor" (por volta
dos 5 anos) uma alternativa na posição que as crianças adoptam em relação
à sua "identidade conferida": ou "extirpar esta identidade estranha que
nos doaram e criar uma identidade para si que de uma forma obstinada
procuramos confirmar" ou "exibirmos a nossa identidade de origem e
agarrar-se a ela para a valorizar" (Laing, p. 116). Esta escolha de
partida liga-se, segundo Erikson, a uma alternativa ainda mais primitiva
entre a "plenitude" de um "sentimento de confiança de base" (que reenvia
para uma integração sucedida, decorrente de uma "bondade experimentada"
entre o exterior e o interior), ou uma "desconfiança de base" (resultante
de todas as experiências infantis não coroadas de sucesso na experiência
da integração) (Erikson, p. 84). A alternativa parece ser sempre
recorrente. Certas trajectórias são antes de mais marcadas pela
*continuidade* inter e intra reracional, outras são marcadas por
*rupturas* de qualquer natureza que implicam o retomar de identidades
anteriormente adquiridas ou construídas.

(43) Um exemplo particularmente interessante de estratégia identitária no


campo do local é desenvolvido por O. Benoìt-guilbot a propósito das
escolhas do bairro de habitação, em frança, durante os anos 70 (1986,pp.
127 e seguintes).

Entre os acontecimentos mais importantes para a identidade social, a


saída do sistema escolar e o confronto com o mercado de trabalho
constituem actualmente um momento essencial na construção da identidade
autónoma. Com certeza, o leque das escolhas de orientação escolar mais ou
menos forçadas ou assumidas representa uma antecipação importante do
futuro estatuto social. A entrada numa "especialidade" disciplinar ou
técnica constitui um acto significativo da identidade virtual. Mas é no
confronto com o mercado do trabalho que, sem dúvida, se situa hoje o
desafio identitário mais importante dos indivíduos da geração da crise
(44). Este confronto assume formas sociais diversas e significativas
segundo os países, os níveis escolares e as origens sociais. Mas é da sua
saída que depende, simultaneamente, a identificação pelo outro das suas
competências, do seu estatuto e da carreira possível e a construção para
si do projecto, das aspirações e da identidade possível. Este
afrontamento com a incerteza diz respeito praticamente a todos os níveis
etários, rapazes e raparigas, autóctones ou emigrados, estudantes ou sem
diploma. :,

(44) Da mesma forma, é na experiência da reforma, qualificada por A.-M.


Guillemard como "morte social", e, portanto no momento da saída do
mercado do trabalho, que se decidem as mais delicadas estratégias
identitárias da
geração de entre as duas guerras (a.-m guillemard, 1972).

Para esta geração, este afrontamento acontece em condições históricas


particulares (Baudelot, 1988): uma alta taxa de desemprego que afecta de
uma forma diferenciada os que entram no mercado de trabalho segundo os
países, os níveis escolares, as origens sociais e o sexo; um processo
rápido de modernização tecnológica e de mudanças organizacionais nas
empresas, administrações, serviços; um prolongamento da transição entre a
saída da escola e o acesso a um emprego cada vez menos considerado
estável ("perpétuo"). Do resultado deste primeiro confronto dependem as
modalidades de construção de uma *identidade "profissional" de base* que
constitui não só uma identidade no *trabalho*, mas também e sobretudo uma
projecção de si no futuro, a antecipação de uma trajectória de emprego e
o desencadear de uma lógica de aprendizagem, ou melhor, de *formação*
(cf. terceira parte). Poderíamos chamá-la *occupational identity* para
melhor designar, tal como o fazem E. Hughes, A. Strauss e H. Becker, a
identificação a uma carreira na sua globalidade (*career*), a implicação
(*commitment*) num tipo de actividades e a experiência da estratificação
social, as discriminações étnicas e sexuais, as desigualdades de acesso
às diferentes profissões (cf. capítulo 6). Esta construção de identidade
para si no confronto com o mercado de trabalho ou com os "sistemas de
emprego" é hoje coincidente com o "drama social do trabalho", de que
falava Hughes, já que, para uma fracção dos jovens, ela implica o risco
de uma exclusão durável de um emprego estável (cf. capítulo 8) e, para
todos os jovens, ela exige a invenção de estratégias pessoais de
apresentação de si ("aprender a vender-se"), que ameaçam ser
determinantes para o desenvolvimento futuro da sua vida profissional. Não
se trata somente de uma situação de "escolha do oficio" ou de obtenção de
diplomas, mas da construção pessoal de uma estratégia identitária que põe
em jogo a imagem do eu, a apreciação das suas capacidades, a realização
dos seus desejos.

Mesmo quando é reconhecida por um empregador, esta primeira "identidade


profissional para si" já não tem hipóteses de ser definitiva. É
regularmente confrontada com as transformações tecnológicas,
organizacionais e de gestão de emprego das empresas e das administrações.
Está votada a sofrer ajustamentos e reconversões sucessivas. Ela corre o
risco de ser tanto mais ameaçada, quanto especializadas e estreitas são
as categorias a partir das quais ela se construiu. Implica projecções no
interior das opções de futuro que, para alguns, ainda não existem e, para
outros, arriscam-se a ser profundamente modificadas. Ela é, por isso,
fortemente marcada pela incerteza apesar de teoricamente acompanhar a
passagem da adolescência à vida adulta, e, portanto, a uma forma de
estabilidade social.

Quais os modelos de identificação social que actualmente dispõem os


indivíduos que entram no mercado do trabalho para se definirem no campo
do trabalho, do emprego e da formação? As categorias sociais oficiais
ainda constituem referências pertinentes? Quem são essas "pessoas
colectivas de onde as pessoas individuais retiram o nome comum que as
designa?" (Boltanski, 1982, p. 7)? Quais são as "identidades de
aspiração" que permitem projecções de futuro eficazes para a acção? Se se
admitir, com razoes sociológicas convincentes, que a identidade de um
quadro ou a de um engenheiro constitui um modelo pertinente para uma
parte dos jovens envolvidos em estudos superiores longos ou uma :, parte
dos adultos já confirmados nesta identidade "para si", o que acontece com
as outras identidades? A identidade operária ou a identidade tecnicista
constituem modelos unívocos de identificação? Em caso afirmativo, a que
posições elas correspondem nos campos do trabalho, do emprego e da
formação? Em caso negativo, por que modelos foi esta identidade
actualmente substituída? A última parte deste livro será, em parte,
consagrada a estas questões. Mas apenas em parte, porque o processo
biográfico de identificação com estes modelos sociais é insuficiente para
a análise: ele interfere necessariamente com um processo relacional que
interessa precisar agora.

5.5. O processo identitário relacional


Para realizar a construção biográfica de uma identidade profissional e,
portanto, social, os indivíduos devem entrar em relações de trabalho,
participar de uma forma ou de outra em actividades colectivas de
organizações, intervir de uma forma ou de outra no jogo de actores. Esta
perspectiva da identidade conduz-nos à definição dada por R. Sainsaulieu:
"forma como os diferentes grupos no trabalho se identificam com os pares,
com os chefes, com outros grupos, a identidade no trabalho baseia-se em
representações colectivas diferentes, que constroem actores no sistema
social da empresa" (1985, p. 9). Contrariamente à que deriva da
perspectiva biográfica, esta definição situa a identidade na "experiência
relacional e social do poder" (*id.*, p. 342) considerando, por isso, que
as relações de trabalho são o "lugar" onde se experimenta "o confronto
dos desejos de reconhecimento num contexto de acesso desigual, movediço e
complexo". Para Sainsaulieu, a identidade, mais do que um processo
biográfico de construção do eu, é um processo relacional de investimento
do eu. A noção "actor do eu" remete não para um simples papel passageiro
numa encenação provisória, mas sim para um investimento essencial em
relações duráveis que põem em causa o reconhecimento recíproco dos
parceiros. Trata-se, portanto, de uma transacção objectivamente
verificável na análise das situações de trabalho e dos sistemas sociais
da empresa. Desta transacção dependem as identidades daqueles que nelas
se comprometem ou nela se comprometeram.

Quais serão as dimensões pertinentes desta transacção analisada como


relação de poder para R. Sainsaulieu? No quadro sintético que produz no
fim da sua análise (1985, p. 392), figuram, simultaneamente, as
modalidades constitutivas das identidades no trabalho e os indicadores
que nos permitem caracterizá-las; se as distinguirmos, encontramos três
dimensões identitárias:

-- o *campo* de investimento ("acesso ao poder") permite distinguir os


tipos que implicam um investimento no trabalho (modelos "negociador" e
"promocional" e, em menor grau, de "afinidade"), do tipo que se
caracteriza por um acesso ao poder fora do trabalho (modelo "de refúgio")
e do tipo associado a um não-acesso a nenhum destes dois campos (modelo
"de fusão"); :,

-- as *normas* de comportamento relacional são designadas da seguinte


forma: individualismo (modelo "de refúgio"), unanimismo (modelo "de
fusão"), solidariedade e rivalidade democrática (modelo "negociador"),
separatismo (modelo "de afinidade") e integração e submissão (modelo
"promocional");

-- os *valores* provindos do trabalho são os seguintes: económico (a


pessoa dos *chefes*) para os "de refúgio", estatutário (a *regra* e
também a massa) para os "de fusão", a criatividade (a *profissão* mas
também o *perito*) para os "negociadores", as pessoas (do chefe e dos
colegas para os "de afinidade" e um misto dos valores precedentes (a
*regra* e a pessoa dos *chefes*) para os "promovidos".

Contrariamente à tipologia várias vezes reafirmada no decurso da sua


análise e baseada nos quatro "modelos de relação no trabalho" capazes de
"esclarecerem lógicas de actores operários, empregados, mestres e
técnicos" (refúgio/fusão/negociação/afinidade), o quadro evocado
anteriormente distingue cinco "produtos culturais do trabalho organi-`
zado" designados através de cinco categorias associadas a grupos
profissionais:
-- os "O.S. mulheres, emigrados, empregados jovens" são associados à
norma do *refúgio* e ao valor "económico" dominante (o salário);

-- os "O.S. homens, velhos, empregados antigos" são definidos pela norma


de unanimismo e referenciados aos valores da massa, da regra e do
estatuto, em conformidade com o modelo de *fusão*;

-- os "operários profissionais, quadros médios e superiores" são


associados às normas democráticas e aos valores do oficio (O.P.) ou da
criação (quadros superiores), em conformidade com o modelo da
*negociação*;

-- os "operários novos profissionais, os agentes técnicos e o pessoal não


estável" são identificados com as normas e valores do modelo "de
*afinidade*";

-- os "mestres e quadros sul alternos" são definidos pela norma


"integração/submissão" e partilham uma parte dos valores do "modelo de
fusão" (a regra) e uma parte dos valores do modelo de refúgio (a pessoa
dos chefes).

Parece, pois, que este último grupo não corresponde, na análise de


Sainsaulieu, a uma identidade no trabalho verdadeiramente típica: os seus
membros investem no campo do trabalho da mesma forma que os
"negociadores" possuem em parte os mesmos valores que os outros
assalariados da sua geração e da sua origem social e só se distinguem dos
outros pelas normas relacionais específicas. Sem dúvida que é esta a
razão pela qual não constituem um modelo identificatório retido pelo
autor na tipologia que desenvolve no prefácio da segunda edição (1985, p.
1) cuja importância diminui "no decurso dos anos", razão pela qual os
outros tipos são considerados como "capazes de esclarecer as lógicas dos
actores no decurso deste período" (*id.*, p. 111).

Deste modo, a construção das quatro identidades típicas no trabalho,


feita por Sainsaulieu, baseia-se na constatação -- ou na hipótese - de
uma grande coerência entre lógicas de actores no trabalho e normas
relacionais no seio da empresa. Num esquema recapitulativo :, produzido
posteriormente (1987, p. 213), situa estas posições identitárias no
interior de um espaço ortogonal estruturado pela dupla oposição
individual/colectivo e oposição/ aliança:

-- a identidade "de refúgio" combina a preferência individual com a


estratégia de oposição;

-- a identidade "de fusão" combina a preferência colectiva com a


estratégia de aliança;

-- a identidade "negociadora" alia a polarização no colectivo com uma


estratégia de oposição;

-- a identidade "de afinidade" alia a preferência individual com uma


estratégia de aliança.

Estes novos desenvolvimentos teóricos já não estabelecem correspondência


entre estes modelos identitários e categorias profissionais correntes. Os
termos "fervilhar" e "brilhar" fazem pensar que as mesmas posições
identitárias podem ser, agora, investidas pelos membros das diversas
categorias profissionais -- no velho sentido -- segundo a dinâmica das
relações que se estabelecem entre os indivíduos e as diversas
instituições onde eles se situam e, nomeadamente, na empresa cuja função
identitária se torna, segundo o autor, cada vez mais central.

Esta hipótese vai parcialmente ao encontro da do carácter estruturante da


*transacção objectiva* pela construção das identidades virtuais ("para
outro") no seio do processo relacional. Possui o inconveniente de
privilegiar o espaço das relações de trabalho na empresa como desafio
prioritário, e mesmo único desta transacção. O que está aqui em causa é o
reconhecimento da identidade para os e nos investimentos relacionais dos
indivíduos. Este processo implica uma transacção que pode ser conflitual
entre os indivíduos portadores de desejos de identificação e de
reconhecimentos e as instituições que oferecem estatutos, categorias e
formas diferenciadas de reconhecimentos. Põe em jogo *espaços de
identificação* prioritários (lugares nos quais é reconhecido o "estatuto
principal" no sentido de Goffman) no seio dos quais os indivíduos se
consideram como suficientemente reconhecidos e valorizados. O facto de
poder "jogar" com diferentes espaços e de poder assim "negociar" os
investimentos e "gerir" as pertenças constitui um elemento essencial da
transacção objectiva. Os parceiros desta transacção são, efectivamente,
múltiplos: o grupo de pares no seio da oficina, do escritório ou da
equipa de *trabalho*, o superior hierárquico, outros responsáveis da
*empresa*, o dirigente sindical ou o eleito local, o formador, mediador
do universo da *formação*, o cônjuge e o universo da *família*, etc.

Pode-se, pois, com Sainsaulieu, colocar a hipótese de que o investimento


privilegiado num *espaço de reconhecimento identitário* está intimamente
dependente da natureza das relações de poder neste espaço, do lugar que o
indivíduo ocupa e do seu grupo de pertença. Não se pode, portanto,
considerar a empresa ou o trabalho (no sentido restrito do posto de
trabalho) como o espaço privilegiado de reconhecimento da identidade
social: este reconhecimento depende da legitimidade das categorias
utilizadas para identificar os indivíduos. O espaço de reconhecimento das
identidades é inseparável dos *espaços de :, legitimação dos saberes e
competências* associados às identidades (45). A transacção objectiva
entre os indivíduos e as instituições é, antes de mais, aquela que se
organiza à volta do reconhecimento e do não-reconhecimento das
competências, dos saberes e das imagens de si que constituem os núcleos
duros das identidades reivindicadas.

(45) Mas também imagens do eu que se privilegia num dado momento da sua
biografia: elas podem dizer respeito ao
espaço de habitação mais do que ao espaço de profissão (O. Benoft-
Guilhot, 1986), ou sobre o espaço associativo
na ausência do espaço profissional (a.-M. Guillemard,
1972).

5.6. A identidade como espaço-tempo geracional

Vejamos mais claramente a necessária articulação dos dois processos


identitários que acabam de ser definidos. Se o processo biográfico pode
ser definido como uma construção no tempo pelos indivfduos de identidades
sociais e profissionais a partir das categorias oferecidas pelas
instituições sucessivas (família, escola, mercado do trabalho, empresa...
) e consideradas, simultaneamente, como acessíveis e valorizantes
(transacção "subjectiva"), o processo relacional diz respeito ao
reconhecimento, *num dado momento e no seio de um espaço determinado* de
legitimação, das identidades associadas aos saberes, competências e
imagens de si propostas e expressas pelos indivíduos nos sistemas de
acção. A articulação destes dois processos representa a projecção do
espaço-tempo identitário de uma geração confrontada com as outras na sua
caminhada biográfica e o seu desenvolvimento espacial. As formas sociais
desta articulação constituem, simultaneamente, a matriz das categorias
que estruturam o espaço das posições sociais (alto/baixo mas também
dentro/fora do emprego) e a temporalidade das trajectórias sociais
(estabilidade/mobilidade mas também continuidade/ruptura).

A definição geral da identidade como espaço-tempo geracional (Erikson,


1968) resume bem a teoria esboçada neste capítulo. A identidade social
não é "transmitida" por uma geração à seguinte, ela é construída por cada
geração com base em categorias e posições herdadas da geração precedente,
mas também através das estratégias identitárias desenroladas nas
instituições que os indivíduos atravessam e para cuja transformação real
eles contribuem. Esta construção identitária adquire uma importância
particular no campo do trabalho, do emprego e da formação que ganhou uma
forte legitimidade para o reconhecimento da identidade social e para a
atribuição do estatuto social. Ora, é também neste campo que importantes
abordagens sociológicas contribuíram para precisar os mecanismos da
socialização profissional.

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II

:as "abordagens" da
socialização profissional

Das "profissões" à socialização profissional

6.1. História e terminologia

O termo "sociologia das profissões" é uma tradução do inglês *sociology


of the professions* (46) que exige um esclarecimento prévio. Em francês,
o termo "profissão" tem (pelo menos) dois sentidos correspondentes a dois
termos ingleses diferentes. Ele designa ao mesmo tempo:

(46) Utilizaremos no seguimento desta segunda parte a palavra "profissão"


para traduzir o termo inglês *profession*, a palavra "emprego" para
traduzir o termo
*occupation* e a palavra "ofício" para traduzir o sentido do termo inglês
*craft*. Os termos profissão e profissional assim como ofício, sem
indicação particular, vão ser utilizados no sentido geral de actividade
remunerada.

-- o conjunto dos "empregos" (em inglês: *occupations*) reconhecidos na


linguagem administrativa, nomeadamente nas classificações dos
recenseamentos do Estado;

-- as "profissões" liberais e sábias (em inglês: *professions*), isto é,


*learned professions*, nomeadamente os médicos e os juristas.

A terminologia francesa complica-se mais se introduzirmos um terceiro


termo, o de "ofício" (*métier*). As "profissões" (liberais) e os
"ofícios" têm, no Ocidente, uma origem comum: as *corporações*. Na Idade
Média, a partir do século XI e de forma totalmente instituída no século
XV, "idade de ouro das corporações", distinguiam-se:
-- os que tinham "direito a pertencer à corporação", isto é, os que
podiam fazer parte de uma corporação reconhecida; :,

-- os que não tinham esse direito: jornaleiros, trabalhadores braçais,


carrascos...

Na sua síntese histórica, J. Le Goff (1977) mostra como, antes da


expansão das Universidades, a partir do século XIII, o trabalho era
considerado uma arte e abrangia todos os que integravam as corporações
definidas como "regulamentos corporativos para garantir a competência
jurídica, isto é, a autorização de exercer e de defender o seu monopólio
e os seus privilégios no interesse do bem comum" (Olivier Martin, 1938).
As artes liberais e as artes mecânicas, os artistas e os artesãos, os
intelectuais e os trabalhadores manuais provinham de um mesmo tipo de
organização corporativa que assumia a forma de "ofícios juramentados" nas
"cidades juramentadas", onde "se professava uma arte". O termo
"profissão" deriva desta "profissão de fé" consumada nas cerimónias
rituais de entronização nas corporações (cf. encaixe 6.1.).

O juramento englobava, de acordo com formas muito variadas, três


compromissos:

-- observar as regras;

-- guardar os segredos;

-- prestar honra e respeito aos jurados, controladores eleitos e


reconhecidos pelo Poder Real.

Foi só com a expansão e a consolidação das Universidades que as artes


liberais e artes mecânicas começaram a dissociar-se, chegando a uma
oposição entre:

-- as "profissões" derivadas das "*septem artes liberales*" que se


ensinavam nas Universidades e "cujas produções pertenciam mais ao
espírito que à mão" (*Grande Encyclopédie*);

-- os "ofícios" derivados das artes mecânicas "onde as mãos trabalham


mais do que a cabeça" (J.-J. Rousseau) e que se desvalorizam na sociedade
do Antigo Regime a ponto de a *Enciclopédia* lhes dar a definição
seguinte no século XVIII: "ocupações que exigem a utilização dos braços e
que se limitam a um dado número de operações mecânicas."

Podemos, assim, associar à oposição entre "profissões" e "ofícios" um


conjunto de distinções socialmente estruturantes e classificadoras que se
reproduziram através dos séculos: cabeça/mãos, intelectuais/manuais,
alto/baixo, nobre/vilão, etc. Acontece ainda que "ofícios" e
"profissionais" participam do mesmo "modelo" de origem: as corporações,
isto é, "corpos, confrarias, e comunidades" no seio dos quais os membros
"estavam unidos por laços morais e por um respeito às regulamentações
pormenorizadas dos seus estatutos", constituem "estados" reconhecidos
pelo Poder Real (Sewell, 1980, trad. p. 53). Deste modo, como escreve
Sewell (cf. encaixe 6.1.): "dizer-se do ofício de um artesão que era a
sua profissão denotava um compromisso ou um juramento público solene". A
par da oposição ofício/profissão, subsistia o reconhecimento de uma
profunda similitude: a "dignidade e a qualidade" de um "estado
juramentado" socialmente legítimo e pessoalmente incorporado graças à
"eficácia simbólica dos ritos sociais" (Heilbron, 1986). :,

Encaixe 6.1.

A profissão de fé corporativista segundo Sewell

As actividades das confrarias de ofício demonstram que as corporações


eram "corpos e comunidades" tanto no sentido moral como no sentido legal
do termo e que os seus membros estavam unidos por laços morais e por um
respeito às regulamentações pormenorizadas dos seus estatutos. A natureza
destes laços revela-se no epíteto de "ofício juramentado" -- ou "estado
juramentado", para retomar o termo da carta patente de Henrique III,
datada de 1585 -- que designava frequentemente estes corpos e
comunidades. O acto essencial que interligava os membros da corporação
consistia num juramento religioso solene, similar na forma aos juramentos
pronunciados pelos padres aquando da sua ordenação, pelos monges no acto
de ingressarem nas ordens, pelo rei na sua coroação, pelos cavaleiros ao
ingressarem na ordem da cavalaria ou no juramento de fidelidade ao senhor
ou, ainda, pelos universitários ao receberem o grau de doutor. Assim,
dizer que o ofício de um artesão era a sua profissão denotava um
compromisso ou um juramento público solene. Os juramentos mais
importantes eram prestados pelos mestres, no momento da sua admissão, no
entanto -- facto significativo -- também os aprendizes eram geralmente
obrigados a prestar juramento quando principiavam a sua aprendizagem.
Fazer a aprendizagem de um ofício não consistia somente em adquirir a
habilidade necessária para exercer uma actividade adulta. Era também
entrar numa comunidade moral com motivações profundas, uma comunidade de
homens que tinha prestado um juramento solene de fidelidade, e que sendo
filhos espirituais de um santo patrono o veneravam em conjunto no dia da
sua festa. Em suma, a corporação não se contentava em ser uma associação
de homens, partilhando a mesma personalidade legal, mas assumia-se também
como uma fraternidade espiritual juramentada.

A carta patente redigida por Henrique III em 1585 revela um outro aspecto
característico da comunidade moral corporativa. Ratificando os estatutos
dos mercadores de vinho e dos estalajadeiros, o rei estabelecia "de forma
perpétua o dito estado...". Noutros termos, o estado juramentado, uma vez
criado, passava a existir a titulo definitivo como "corpo, confraria e
comunidade". Esta perenidade da comunidade era entendida de duas formas.
Uma delas era que, logo que instituída pela autoridade real, a comunidade
com os seus direitos e privilégios era reconhecida como um corpo
permanente no Estado, e os seus estatutos já não tinham de ser de novo
ratificados pelos monarcas posteriores. A segunda era que aqueles que
entravam nesta comunidade continuavam membros dela até ao fim da :, vida
-- pelo menos em princípio. Esta ideia de que a pertença a uma corporação
era o compromisso para uma vida encontrava-se sob diferentes formas na
linguagem corporativa. Estava subentendida no termo estado, tal como era
empregue pelo rei na célebre carta patente e de uma forma mais
generalizada no vocabulário social do Antigo Regime que designava a
profissão de um artesão. Segundo o jurista Loyseau, o estado era "a
dignidade e a qualidade" que eram "os atributos mais imutáveis e os mais
inseparáveis de um homem". Em consequência, quando um artesão entrava no
ofício adquiria um estado particular, uma condição social e uma qualidade
ontológica permanente que partilhava com aqueles que exerciam o mesmo
ofício e que o distinguia dos membros das outras profissões. O estado de
um artesão determinava definitivamente o seu lugar na ordem social e
definia os seus direitos, as suas dignidades e obrigações, de uma forma
bastante similar à da pertença de um indivíduo, a um outro nível, a um
dos três estados do reino: o Clero, a Nobreza e o Terceiro Estado.
Considerava-se, portanto, o
ofício como um meio de assegurar a posição na vida.

6.2. A problemática das "profissões": um consenso entre os fundadores da


sociologia?

Na sua obra de síntese, R. Nisbet (1966) mostra até que ponto todos os
fundadores da sociologia, na sua reflexão teórica e nos seus trabalhos
empíricos, concederam um lugar central à análise das actividades
profissionais. Assim, por exemplo, Le Play, nos seis tomos da obra *Les
ouvriers européens* (primeira edição, 1855), considerada por Nisbet "a
primeira obra de sociologia científica do século XIX" (trad., p. 85),
analisa 45 tipos de situações operárias, combinando não só três formas
fundamentais de famílias (patriarcal, instável, família de raiz), mas
também seis níveis de estatutos internos à classe operária (domésticos,
jornaleiros, tarefeiros, chefes de ofício, proprietários simples,
proprietários operários) assentes em três critérios essenciais: 1. o
ofício exercido; 2. o lugar ocupado no interior da profissão; 3. a
natureza do contrato que liga o operário ao patrão. Em meados do século
XIX, Le Play refere-se, constantemente, às bases económicas e
profissionais da família e da vida comunitária e considera que "só a
actividade que exerce permite ao homem dar um sentido ao meio envolvente"
(Nisbet, p. 89). Assim, aos seus olhos "as associações profissionais
constituem uma das glórias da Inglaterra e explicam em grande medida a
supremacia intelectual que esta goza nessa época, especialmente no
domínio científico" (*id.* , p. 91).

Da mesma forma, quando Tõnnies esclarece o conceito de "*Gemeinschaft*",


assinala que a relação típica desta associação é "a amizade, isto é, uma
comunidade de ordem espiritual e intelectual baseada no trabalho em
comum, num ofício comum (*Beruf*) e, portanto, em crenças comuns" (1887,
citado por Nisbet, p. 101). Refere as corporações e as :, associações de
operários como modelos de "*gemeinschaft*" ao lado das igrejas e das
ordens espirituais.

é inútil lembrar o lugar que ocupa a actividade exercida -- enquanto


indicador da posição nas relações sociais de produção" -- nas definições
que Marx e Engels dão das classes sociais cuja luta constitui, para eles,
o motor da História.

Numa outra perspectiva, Durkheim, na conclusão da obra *Suicide* (1897)


e, mais explicitamente ainda, no prefácio da segunda edição de *De la
division du travail social*
(1902), faz da reestruturação das corporações ou antes das associações
profissionais constituídas "fora do Estado, embora submetidas à sua
acção", a melhor das soluções capaz de estabelecer "uma disciplina moral
de um género novo sem a qual todas as descobertas da ciência e todos os
progressos do bem-estar só poderiam formar indivíduos descontentes"
( 1893, 8.a ed. p. 440). Durkheim esclarece que não se trata de uma
restauração das antigas corporações, "varridas pela evolução histórica
das nossas sociedades", mas da instauração de associações profissionais
de um novo tipo que, reconhecidas, simultaneamente, pelo Estado e pelas
famílias dos membros livremente associados, constituiriam novos "corpos
intermediários" investidos de uma autoridade legal e assegurando as bases
concretas da integração e da regulação sociais.

Podemos ver, através destes quatro exemplos, até que ponto as análises,
reflexões ou propostas dos "primeiros sociólogos", no que se refere às
actividades e às associações profissionais, se inscrevem na continuidade
da prática comunitária dos ofícios. Não para desenvolver, como o fizeram
tantos outros pensadores conservadores da sua época, uma denúncia
nostálgica do individualismo interesseiro ou dos conflitos sociais, mas
sim para enraizar a relação dos homens com o seu trabalho numa
perspectiva comunitária e tentar definir as condições de uma organização
económica socialmente viável.

Eis a razão por que esta sensibilidade e este tipo de abordagem não se
opõem verdadeiramente nem ao ponto de vista de um Spencer, que via na
elaboração e no desenvolvimento das "profissões" a característica
essencial de uma sociedade civilizada (1896), nem, e sobretudo, às
perspectivas de um Max Weber que, como já vimos (cf. capítulo 4),
considerava que a "profissionalização" (*Verberuflichtung*) constituía um
dos processos essenciais da modernização, isto é, da passagem de uma
"socialização principalmente comunitária" em que o estatuto é atribuído a
uma "socialização fundamentalmente societária" onde o estatuto social
"depende das tarefas efectuadas e dos critérios racionais de competência
e de especialização" (1920, capítulo 2). Esta oposição entre a
transmissão hereditária dos estatutos e dos ofícios (*ascription*) e a
livre escolha individual das formações e das profissões (*achievement*) é
uma das justificações clássicas da diferença entre "ofício" e "profissão"
e um dos argumentos mais frequentes da superioridade atribuída às
"profissões" na sociologia anglo-saxónica dominante (Boudon-Bourricaud,
1982, pp. 437 e seguintes). Mas esta oposição não impede que uma parte
dos sociólogos envolvidos transfiram para as "profissões" de hoje uma
parte ou a totalidade das suas representações dos ofícios de ontem. A
profissão adquire neste caso uma dimensão comunitária estruturante do
sistema social global. :,

6.3. Institucionalização da sociologia das "profissões" nos estados-


unidos

Como sublinham Jackson (1970, p. 6), Heilbron (1986, p. 72) e Desmarez


(1986, pp. 25-27), o aparecimento da sociologia das "profissões" nos
Estados Unidos não derivou directamente da tradição dos fundadores, mas
de uma estratégia de profissionalização dos sociólogos confrontados,
durante a crise de 1929, com os pedidos do governo Hoover para
compreender a evolução da sociedade e ajudar a definir a sua política.
Adoptando o grande projecto de William Fielding Ogburn, que visava
promover uma sociologia "neutra" e "imparcial" contra a sociologia
"moral" e "implicada", representada nomeadamente por Small e os seus
colegas de Chicago, uma fracção dos sociólogos americanos pôs-se ao
serviço das agências governamentais e "constitui-se numa comunidade
científica abrigada do mundo exterior" (Desmarez). Nos anos que se
seguem, Ogburn e os seus companheiros tornam-se membros influentes das
instâncias encarregadas de definir a política de investigação das
ciências sociais e de animar o Social Science Research Council. Puseram
em prática novas orientações, mais centradas nas camadas privilegiadas da
sociedade do que nas camadas discriminadas pela evolução social. O
interesse pelas associações profissionais, consideradas como "modelos de
todas as ocupações", cresce, enquanto que o peso das investigações sobre
as classes populares ou sobre os sindicatos tende a diminuir (Desmarez,
id, p. 27). O modelo do "profissional" (*professional*), distinto quer do
empresário quer do operário, desenvolve-se rapidamente na literatura
sociológica desta época tanto nos Estados-Unidos como no Canadá
(Marshall, 1939).

Encontramos esta perspectiva particularmente desenvolvida na obra ainda


considerada por muitos sociólogos anglo-saxónicos como uma referência:
*The Professions* de Carr-Saunders e Wilson publicada em 1933, obra essa
que se segue a um primeiro ensaio mais sintético realizado apenas por
Carr-Saunders (1928). Tendo por base uma definição de profissão que se
tornou clássica ("dizemos que uma profissão emerge quando um número
definido de pessoas começa a praticar uma técnica definida, baseada numa
formação especializada") e que marca a continuidade com os ofícios
manuais qualificados (*skilled*), a obra analisa sistematicamente a
evolução do trabalho e dos diferentes "empregos" em termos de
profissionalização, isto é: 1. de especialização dos serviços que permite
aumentar a satisfação de uma clientela; 2. de criação de associações
profissionais que obtêm para os seus membros "a protecção exclusiva dos
clientes e dos empregadores que requerem o serviço do seu ofício" e que,
como clarifica o autor, "colocam uma linha de separação entre eles e as
pessoas não qualificadas" que permite aumentar o prestígio do "ofício" (o
exemplo dos cirurgiões ingleses que se demarcam dos barbeiros em 1844 é
sistematicamente citado) definindo e controlando as regras de conduta
profissional ainda designadas "códigos de ética e de deontologia
profissionais"; 3. (este ponto é o mais relevante) de constituição de uma
formação específica assente num "corpo sistemático de teoria" que permite
a aquisição de uma cultura profissional. A obra de Carr-Saunders termina
fazendo :, uma verdadeira apologia do "profissional" que ele entende
concretizar "uma alternativa ao empresário que procura apenas o ganho
financeiro e representa uma solução para determinados problemas da
organização comercial". As profissões encarnam, assim, segundo o autor,
"o ideal de serviço" assente numa competência especializada (*adequate
qualification*) e constituem "um progresso da *expertise* ao serviço da
democracia".

É impressionante constatar, como faz J. Heilbron (1986), a grande


semelhança entre o conteúdo do artigo "Profession" da *International
Encyclopedia of the Social Sciences*, redigido por Carr-Saunders na
edição de 1933, e o de Parsons na edição de 1968, onde se pode ler: "O
desenvolvimento e a importância estratégica crescente das "profissões"
constituem, sem dúvida, a mudança mais importante que se deu no interior
do sistema de emprego das sociedades modernas... Do ponto de vista das
transformações estruturais da sociedade do século XX, a emergência
massiva do fenómeno "profissional" (*professional complex*) ultrapassa em
significado as da especificidade dos modos de organização de tipo
capitalista ou socialista" (1968, p. 545). E se, com Marc Maurice (1972,
p. 215), notamos que o essencial da definição e dos critérios de Carr-
Saunders se encontra já "num dos primeiros estudos sistemáticos sobre uma
profissão", precisamente o de A. Flexner, em 1915, incidindo sobre o
trabalho social ("Flexner, de acordo com os seus critérios, só reconhecia
como verdadeiras profissões o exercício da medicina, do direito, dos
técnicos de engenharia e das artes: literatura, pintura, música"),
devemos reconhecer uma longa tradição da sociologia das "profissões" pelo
menos nos EUA, marcada por uma impressionante continuidade do objecto e
do recorte da realidade social. Podemos, com J. Heilbron, resumir esta
continuidade, dizendo que, para Carr-Saunders, em 1933, como para
Parsons, em 1968 (e já para Flexner, em 1915), a "profissão" representa
"a fusão da eficácia económica e da legitimidade cultural". Para
compreender porquê, é preciso avançarmos para o que Chapoulie chama "a
teoria funcionalista das profissões" (1973, p. 88) que constitui, a
muitos títulos, uma teorização *ex post* desta longa tradição.

6.4. A teoria funcionalista das "profissões"

No seu célebre artigo "Structure sociale et processus dynamique: le cas


de la pratique médicale moderne" (trad. 1955, pp. 193-255), Parsons faz
da relação terapêutica médico-doente o modelo da relação entre um
"profissional" e um cliente assente em três dimensões específicas do
papel profissional articulando normas sociais e valores culturais:

-- um saber prático ou "ciência aplicada" articula uma dupla


*competência*, a que assenta num saber teórico adquirido no decurso de
uma formação longa e sancionada e a que se apoia na prática, na
experiência de uma "relação agradável". Esta dimensão do papel
profissional associa ao valor do "universalismo da ciência" a norma da
"valorização da realização" (*achievement*); :,

-- uma competência especializada ou "especificidade funcional" que se


apresenta como uma dupla *capacidade*, a que se apoia na especialização
técnica da competência e que limita a autoridade do "profissional" ao
domínio legitimo da sua actividade e a que funda o seu poder social de
prescrição e de diagnóstico numa "relação mais ou menos recíproca";

-- um interesse desapegado (*detached concern*), característica da dupla


atitude do "profissional", que une a norma de neutralidade afectiva com o
valor de orientação para o outro, de interesse empático para o cliente e
para a sua expectativa incondicional.

O papel médico, como qualquer papel profissional, exerce-se, segundo


Parsons, numa interacção com o papel do doente -- cliente do
"profissional" -- que é, simultaneamente, dependente do médico pelo seu
desejo incondicional de ficar melhor e autónomo em consequência da
limitação da competência do médico e da independência deste em relação a
qualquer tutela hierárquica e pública ("segredo médico"). Se o médico for
"obrigado" a ocupar-se do seu doente, o doente deve "dizer tudo" ao seu
médico no domínio da sua especialidade: esta obrigação recíproca cria a
possibilidade de institucionalização da troca e, portanto, da
profissionalização do papel do médico assegurada pelas instituições de
formação, de cuidar, de controlo profissional, etc.

A institucionalização dos papéis em "profissões" resulta, pois, em


primeiro lugar, segundo Parsons, de um equilíbrio das motivações entre a
"necessidade" que o cliente tem do profissional e a necessidade que este
tem de ter clientes, o que é característico das "profissões liberais".
Esta institucionalização deriva também de uma dinâmica de legitimação que
pode apoiar-se neste ajustamento dos papéis para definir um corpo de
saberes independente dos indivíduos que desempenham o papel e susceptível
de ser ensinado, testado, controlado com a participação dos próprios
"profissionais" e o reconhecimento do Estado regulador.
Este "modelo" de Parsons não é inteiramente partilhado -- muito longe
disso -- por toda a sociologia das "profissões". Assim, M. Maurice
constata, ao comparar as características das "profissões" utilizadas por
oito "dos mais eminentes" autores anglo-saxónicos (Flexner, Greenwood,
Cogan, Carr-Saunders, Barber, Wilensly, Moore, Parsons), que apenas há
concordância em um "dos dez critérios mais citados: a especialização do
saber; a seguir aparecem a formação intelectual e o ideal de serviço
(seis em oito)" (1972, p. 215). Ao contrário, e depois de constatar que
"as investigações empíricas que se reclamam da análise parsoniana estudam
os corpos profissionais em si mesmos e não a partir da posição na
estrutura social", Chapoulie é da opinião de que existe um grande acordo
sobre o "tipo ideal profissional", quer este seja abordado do ponto de
vista da conduta, quer da organização ou da categoria, e que "o monopólio
na realização das tarefas profissionais é descrito na maior das vezes
como se se apoiasse:

-- numa competência técnica e cientificamente fundamentada;

-- na aceitação e na utilização de um código ético que regula o exercício


da actividade i profissional" (1973, p. 92). :,

Para além disso, Chapoulie acrescenta propriedades derivadas que são


"genericamente retidas para completar o tipo ideal:

-- uma formação profissional longa em estabelecimentos especializados;

-- um controlo técnico e ético das actividades exercidas pelo conjunto


dos colegas. considerados como os únicos competentes;

-- um controlo reconhecido legalmente e organizado com o acordo das


autoridades legais;

-- uma comunidade *real* (o sublinhado é dele) dos membros que partilham


"identidades" e "interesses" específicos;

-- uma pertença, através dos rendimentos de prestígio e de poder, às


fracções superiores das camadas médias" (*id.*, p. 93).

Entre a definição residual que resulta da comparação de M. Maurice e a


definição rigorosa proposta por Chapoulie, o termo "profissão" sofre uma
inflexão. Na primeira definição (saber formalizado e ideal de serviço),
podemos incluir um amplo conjunto de grupos profissionais, que procuram
ser reconhecidos como tais; a utilização da segunda definição deve ser
reservada a algumas categorias intelectuais com estudos superiores e
organizadas de forma a manterem e consolidarem o seu monopólio junto de
um público. Assim, no primeiro caso, põe-se a tónica no reconhecimento de
uma competência (saber legitimado); no segundo, a profissão é um grupo
social específico, organizado e reconhecido que ocupa uma posição elevada
baseada numa formação longa. A primeira inclui todos os especialistas
altamente qualificados e assalariados a quem é reconhecido um saber
legítimo; a segunda restringe o número de especialistas e exclui os
membros de todas as "semiprofissões", "quase-profissões" ou
"pseudoprofissões" relativamente aos quais os numerosos estudos citados
por Chapoulie concluem que, na melhor das hipóteses, elas se encontram no
decurso de um processo de profissionalização.

Esta variação na extensão do campo onde se aplica o termo "profissão"


torna-o, segundo os dois autores, pouco operatório para analisar grupos
profissionais concretos. Mas, para além das definições imprecisas do
termo "profissão", a perspectiva funcionalista distingue-se dos outros
pontos de vista (e nomeadamente do ponto de vista "interaccionista
simbólico" que trataremos a seguir) por uma dupla afirmação: por um lado,
as profissões formam *comunidades* reunidas à volta dos mesmos valores e
da mesma "ética de serviço"; por outro, o seu estatuto profissional é
validado por um *saber* "científico" e não apenas prático. A primeira é
particularmente reafirmada num artigo de Goode, um dos principais
discípulos de Parsons, a propósito das "profissões" jurídicas (1957): a
aceitação, a formação e a difusão de um código de deontologia entre os
"profissionais" são apresentadas como componentes ligadas de um processo
de aquisição de um estatuto "profissional" que permite, simultaneamente,
regular a concorrência interna entre os práticos e pagar o preço da
autonomia relativa concedida pelas autoridades legais. A segunda é
claramente desenvolvida num pequeno artigo de Wilensky intitulado: "the
professionalization :, of everyone" (1964) no qual a posse de um saber
teórico, graças a estudos longos, é apresentada, simultaneamente, como a
garantia de uma competência verdadeira e especializada num sector de
actividade ancorada numa motivação experimentada e como o meio mais
eficaz para evitar um afluxo excessivo de praticantes na "profissão".
Assim, comunidade ética e saber científico, que constituem as duas
características específicas de uma "profissão" descrita numa perspectiva
funcional (cf. capítulo 2), são inseparáveis da distinção cultural e do
fechamento social.

Existe, no entanto, uma ruptura assinalável entre a teorização


generalizante de Parsons e o conteúdo das análises empíricas referidas
anteriormente: por exemplo, não se encontram traduções operatórias das
dualidades evidenciadas no "modelo" de origem: teoria e prática, técnica
e social, desapego e interesse. Ora, estas articulações são essenciais do
ponto de vista funcionalista: primeiro, porque implicam, como afirma
Parsons, que, "na nossa sociedade, é a ciência que constitui a tradição
cultural essencial" (1955, p. 250) e que a crença partilhada na
capacidade que a ciência possui de responder a certas "necessidades
básicas" constitui uma condição essencial da eficácia "profissional"; de
seguida, porque pressupõem um ajustamento eficaz entre as motivações do
"profissional" e as dos seus clientes que permitem a validação da sua
autoridade e a justificação dos "privilégios" que lhe são conferidos"
(*id.*); por fim, e se calhar sobretudo, porque estas articulações
significam que um conjunto de actividades ligadas a certas "necessidades
básicas" ou a certas "funções sociais" devem escapar à lógica comercial e
financeira do "mundo dos negócios" e serem confiadas a actores
"orientados-para-a-colectividade" e a instituições específicas (*id.*, p.
247). Passa-se, por exemplo, o mesmo com tudo o que diz respeito à saúde,
à justiça, às liberdades ou à educação e, talvez ainda, de uma forma mais
geral, no que diz respeito aos serviços personalizados. Sem este conjunto
de "relações aos valores", o modelo "profissional" não poderia, de acordo
com Parsons, funcionar e legitimar-se por muito tempo. Ora, é justamente
este sistema cultural que várias abordagens criticas contribuíram para
pôr em causa, até mesmo, segundo alguns, para estilhaçar.

6.5. A abordagem do interaccionismo simbólico

Numa recolha de artigos intitulada *Men and their work* (1958), Everett
Hughes analisa, por várias ocasiões, a relação entre o "profissional" e o
seu cliente no que se refere à relação entre o sagrado e o profano, o
clero e o laico, o iniciado e o não-iniciado. Insiste no facto de que o
termo "profissional" deve ser tomado como categoria da vida quotidiana e
"que não é descritivo mas implica um julgamento de valor e de prestígio"
(p. 42) Se não se encontra em Hughes uma "teoria da profissão", encontra-
se uma multiplicidade de indicações e de pistas para reflexão baseadas ou
não em trabalhos empíricos que desenham um quadro de abordagem muito
sugestivo. :,

Para Hughes, "o ponto de partida de qualquer análise sociológica do


trabalho humano é a *divisão do trabalho*". Não se pode separar uma
actividade do conjunto daquelas onde ela se insere e dos procedimentos de
distribuição social das actividades. Consequentemente, as questões mais
pertinentes a serem colocadas, perante qualquer trabalho, são, segundo o
autor, as seguintes: O que é que considera ser sujo, penoso ou vergonhoso
no seu trabalho? Tem a possibilidade de delegar os trabalhos sujos? A
quem? Como? Em caso negativo, porque continua a fazê-los? Assim, o
"profissional" é, simultaneamente, aquele que pode delegar as "tarefas
sujas" a terceiros e só fazer o que está ligado a uma satisfação
simbólica e a uma definição prestigiosa ("curar os doentes").

Para apreender o fenómeno "profissional", Hughes introduz, no único


artigo inédito de recolha, duas noções essenciais que designa por
"diploma" (*licence*) e "mandato" (*mandate*). A *licence* é a
autorização legal para exercer algumas actividades que outros não podem
exercer; o mandato é a obrigação legal de assegurar uma função
específica. Ora, segundo ele, *licence* e "mandato" constituem as bases
da divisão moral do trabalho" que define como sendo "o processo pelo qual
diferentes funções valorizadas por uma colectividade são distribuídas,
entre os seus membros, por grupos, categorias e indivíduos, em
simultâneo". Sendo objecto de conflitos essenciais, esta divisão do
trabalho implica uma hierarquização das funções e uma separação entre
funções essenciais (sagradas) e funções secundárias (profanas). Existem
duas operações que presidem à selecção dos profissionais: separá-los dos
outros (*licence*) e confiar-lhes uma missão (*mandate*).

Hughes distingue então dois atributos essenciais aos "profissionais"


munidos de um *diploma* e de um *mandato*. O primeiro dos atributos,
designado "saber inconfessável" (*guilty knowledge*), espécie de
conhecimento embaraçoso que caracteriza um aspecto essencial da relação
entre o "profissional" e o seu cliente: "jurista, polícia, médico,
repórter, sábio, diplomata, secretária particular... devem ter
autorização para ouvir -- guardando sigilo -- coisas culpabilizadoras ou,
pelo menos, informações embaraçosas ou perigosas" (p. 82). O exemplo
apresentado, mais uma vez, é o do padre que recebe e absolve os pecados
veniais e mortais em troca de uma separação com o mundo profano
simbolizado pela "sotaina(!) e o celibato". No centro da
profissionalidade, explica Hughes, encontra-se uma transacção (*bargain*
e não *trade*, do mesmo modo o cliente é um *client* e não um
*customer*), um pacto entre quem pratica, devidamente creditado
(diplomado) e mandatado, e os parceiros particulares, pacto que consiste
na troca das "coisas perigosas" que devem ficar secretas. Em que consiste
esta transacção entre aquele que dá e aquele que recebe o serviço do
"profissional"? Trata-se, diz o autor, "da transferência legítima, pela
sociedade, de uma parte das suas funções sagradas a um subconjunto
reconhecido", da projecção do mal, do maldito, do doente -- em resumo do
*tabu* -- sobre os "profissionais" legitimados para se responsabilizarem
pelo saber em causa e mantê-lo em segredo. Se os exemplos canónicos do
médico e do advogado são frequentemente associados à figura deste
"profissional", é porque as características eminentemente secretas,
íntimas e tabu da doença e do crime são evidentes. Mas, diz Hughes, pode-
se alargar a análise a um :, conjunto considerável de actividades: basta
que estas tenham sido definidas como "sagradas" e que o segredo da sua
importância estratégica possa ser preservado. Assim, tudo o que diz
respeito à coesão comunitária, aos "ritos de passagem" e às relações
entre tempos individuais e tempos sociais (nascimentos, mortes,
casamentos...) deve ser confiado a "profissionais" que vão guardar o
segredo sobre as significações "reais" da sua "missão" simbólica. Deste
modo, a própria natureza do saber do "profissional" está no cerne da
"profissão": trata-se de um segredo social confiado pela autoridade a um
grupo específico, que o autoriza e o mandata para trocar sinais de
transgressão pelas marcas de reintegração social e de reabilitação moral.
A justificação científica é apenas, nesta problemática, uma cortina de
fumo.

Quando passa do sentido restrito de "profissional" ao sentido lato,


Hughes introduz um segundo critério da profissão: a existência de
instituições destinadas "a proteger o diploma e a manter o mandato dos
seus membros". As organizações profissionais devem manter os
profissionais longe do público dos profanos sempre prontos a lançar sobre
eles a suspeita de charlatanismo ou de abuso de poder. A organização
deve, portanto, proteger o segredo e reactivar regularmente a autorização
e o mandato: eles constituem intermediários entre o Estado e os
profissionais ecrãs entre estes profissionais e o público. A organização
deve assim zelar pela aprendizagem e pela reprodução do ritual entre os
profissionais. O ritual constitui, com efeito, uma protecção
indispensável contra os "riscos do ofício" e a sua importância depende da
natureza do mandato: "quanto maior for o risco, mais o ritual deve ser
desenvolvido". A organização deve ainda gerir a questão, eminentemente
crítica, segundo Hughes, dos erros profissionais. Enquanto "os profanos
consideram as técnicas profissionais como um meio, os profissionais
consideram-nas como uma arte". Assim, a organização desempenha um papel
essencial na desculpabilização em caso de erro desde que as regras da
arte tenham sido respeitadas. No caso de as regras da arte não terem sido
respeitadas, o papel da organização é desembaraçar-se das "ovelhas
ranhosas", dos falsários e dos incompetentes: eles não souberam "gerir" o
cerne da sua relação com o cliente que é de ordem simbólica (manipulação
do tabu) e que se deve apoiar na confiança e no respeito estrito das
regras profissionais ("deontologia").

Um último critério ocupa um lugar muito importante nas análises de Hughes


respeitante às profissões em sentido lato. É a sua definição de profissão
enquanto carreira e enquanto meio de socialização. Se o grupo
profissional é, sem dúvida, segundo ele, "aquele que reivindica o mandato
de seleccionar, formar, iniciar e disciplinar os seus próprios membros e
de definir a natureza dos serviços que deve realizar e os termos nos
quais devem ser feitos" e se este mandato tem a ver com "certas funções
sagradas que implicam o segredo", então este mandato é, necessariamente,
acompanhado por um desenvolvimento de uma "filosofia", de uma "visão do
mundo", que inclui os pensamentos, valores e signifïcações envolvidos no
trabalho. Compreende-se, portanto, por que é que este mandato pode ir até
ao *monopólio* que exclui todo o não-membro do exercício do trabalho e
que regula a totalidade das relações que dizem respeito à actividade.
Compreende-se :, também por que é que este mandato é, em geral,
acompanhado por um conjunto de *discriminações* em relação a todas as
categorias sociais suspeitas de não serem capazes de cumprir este mandato
e de não saberem manter este segredo. Assim, qualquer profissão tende a
constituir-se em "grupo de pares com o seu código informal, as suas
regras de selecção, os seus interesses e a sua linguagem em comum" e a
segregar *estereótipos profissionais* que excluem, realmente, os que não
lhe são conformes. Hughes assinala, a este respeito, como estes
estereótipos, nos EUA, se organizam geralmente à volta das
características "branco, anglo-saxónico, homem e de cultura protestante"
que constituem as "características esperadas por todos os altos
*status*". As lutas dos "novos grupos" de mulheres, de negros, de
minorias étnicas ou religiosas para "entrar na profissão" não suprimem os
estereótipos mas deslocam-nos, hierarquizando, nomeadamente, subfunções
desvalorizadas (*dirty works*) e subpúblicos que confiam a estes novos
grupos. Assim, como assinala o autor, não é raro nos EUA que aos
contramestres negros se atribua a responsabilidade de gerir
exclusivamente grupos de negros poucos qualificados e que se lhes dê o
nome de "testa de ferro" (*straw boss*). Da mesma forma, também as
médicas são frequentemente remetidas para a prestação de cuidados às
crianças e alcunhadas "médicas-galinhas" (*hen doctor*), etc. Assiste-se,
assim, a uma hierarquização e a uma segregação internas ao grupo
profissional que reserva o essencial do mandato e do segredo apenas aos
profissionais dotados de características conformes ao estereótipo
dominante.

Compreende-se, assim, por que é que numerosos estudos empíricos


desenvolvidos em torno de paradigmas do interaccionismo simbólico (cf.
capítulo 4) punham em questão a existência das comunidades
"profissionais" integradas e reguladas, em conformidade com o modelo
parsoniano. Os inquéritos de Freidson (1970), que retomam e completam os
de Hall (1949), insistem nas importantes diferenciações internas ao corpo
médico e mostram as múltiplas adaptações dos médicos aos pedidos dos seus
doentes, diferenciados de acordo com as classes sociais. Solomon (1961)
põe em evidência, por exemplo, a correlação entre as pertenças étnicas e
sociais dos médicos e a posição na comunidade hospitalar estruturada pela
hierarquia das funções do hospital. D. C. Lortie (1959) realizou um
célebre estudo, várias vezes citado por Hughes, que mostra a forte
heterogeneidade do grupo dos juristas, pondo (também aí) em correlação as
origens sociais e universitárias dos juristas com a sua posição no seio
da divisão do trabalho jurídico e a natureza da sua clientela.

6.6. A socialização profissional em Hughes

Num célebre artigo publicado em 1955 e retomado no capítulo 9 de *Men and


their work* Hughes formula aquilo que chama "um esquema geral de
referência para estudar a "formação" (*training*) para profissões muito
diversas". Intitula-o "a fabricação de um médico" e apresenta esta
fabricação como uma espécie de "modelo" da socialização profissional
concebida, simultaneamente, como uma *iniciação*, no sentido etnológico,
a :, "cultura profissional" (neste caso médica) e como uma *conversão*,
no sentido religioso, do indivíduo a uma nova concepção do eu e do mundo,
em resumo, a uma nova identidade (47).

(47) Encontramos, nas análises de Hughes, uma notável síntese entre os


contributos mais sólidos da antropologia cultural (cf. capítulo 2) e os
do interaccionismo simbólico (cf. capítulo 4) que viabiliza uma
perspectiva sociológica da identidade profissional (cf. capítulo 5).

Três mecanismos específicos da socialização profissional são


particularmente explicitados por Hughes. O primeiro designa. o de
"passagem através do espelho" e consiste em "olhar o espectáculo do mundo
às avessas, de forma a ver as coisas invertidas como se tivessem sido
escritas no espelho". É uma espécie de imersão na "cultura profissional"
que aparece brutalmente como o "inverso" da cultura profana e coloca a
angustiante questão da forma como "as duas culturas interagem no interior
do indivíduo". A crise e o dilema instaurados pela "identificação
progressiva com o papel" só podem ser dissipados por uma renúncia
voluntária aos estereótipos profissionais no que diz respeito à natureza
das tarefas (*tasks, skills*), à concepção do papel, à antecipação das
carreiras e à imagem do eu que constituem, segundo o autor, os quatro
elementos de base da identidade profissional. Esta descoberta da
"realidade desencantada" do mundo profissional pode "ser fugaz se
acontece muito cedo ou muito tarde, traumatizante se acontece numa altura
imprópria", excitante ou mesmo inebriante (*inspiring*) se acontece na
altura certa.

O segundo mecanismo importante diz respeito ao que se poderia chamar "a


instalação na dualidade" entre o "modelo ideal" que caracteriza a
"dignidade da profissão", a sua imagem de marca, a sua valorização
simbólica, e o "modelo prático" que diz respeito "às tarefas quotidianas
e aos trabalhos pesados" e que mantém poucas relações com o primeiro.
Hughes assinala que esta distância entre os "modelos sagrados" e as
"diversas vias da prática quotidiana" é objecto de um debate constante no
seio dos grupos profissionais e que as lutas para manter o controlo das
tarefas nobres" constituem uma chave para a compreensão do meio
profissional, caracterizado por "uma tendência constante para que as
actividades auxiliares e rotineiras se tornem fins em si". Assim, no
processo de socialização intervém "uma série de escolhas de papéis", ou
seja, "interacções com os outros significativos que tentam reduzir esta
dualidade e representam passagens constantes de um modelo a outro". A
formação de um "grupo de referência" no seio da profissão, representando
em simultâneo uma antecipação das posições desejáveis e uma instância de
legitimação das suas capacidades, constitui um mecanismo essencial de
gestão desta dualidade.

Este processo de projecção pessoal numa carreira futura por identificação


aos membros de um "grupo de referência" vai ao encontro da teoria
mertoniana da "socialização antecipatória" (cf. capítulo 2). A
identificação social dos indivíduos em formação releva, sem dúvida, de
uma lógica da "frustração relativa": comparando-se aos membros do meio
envolvente dotados de um estatuto social mais elevado, forjam para si uma
identidade não a partir do seu "grupo de pertença", mas sim por
identificação a um "grupo de referência" a que gostariam de pertencer no
futuro e em relação ao qual se sentem frustrados. Esta :, identificação
antecipada, que implica uma aquisição cautelar, por parte dos indivíduos
em causa, das normas, dos valores e dos modelos de comportamento dos
membros do "grupo de referência", é consideravelmente favorecida pela
existência de etapas promocionais instituídas, permitindo assim
planificar o acesso a este grupo. Ela permite dar conta do grau de
implicação (*commitment*) dos indivíduos nas suas tarefas (Becker, 1960).
Aplica-se, por isso, particularmente bem à socialização profissional, tal
como Hughes a analisa para o caso dos médicos.
O interesse da abordagem que resumimos reside mais na sua fecundidade
operatória do que na originalidade e no rigor do "modelo" apresentado.
Este modelo permitiu desenvolver vários estudos empíricos que se reclamam
dele mas abre também importantes pistas metodológicas e teóricas que, ao
que parece, só foram parcialmente exploradas (Becker e Carper, 1956).
Entre as investigações empíricas que aplicam este "modelo", uma das mais
célebres é a que Fred Davis, realizou, durante três anos, estudando cinco
promoções sucessivas de enfermeiras e que foi objecto de uma obra (1966)
e de uma quinzena de artigos (Davis 1968), um dos quais resume as seis
etapas da "conversão doutrinal" das enfermeiras da forma seguinte:

-- a inocência inicial: é o reino sem partilha dos estereótipos


profissionais da enfermeira devota, altruísta, disponível...;

-- a consciência da incongruência: é a perturbação, a crise que se segue


à tomada de consciência de que a profissão não é exactamente "aquilo que
se esperaria" e de que as categorias estereotipadas (dedicação,
altruísmo...) pelas quais as aprendizes enfermeiras a representavam são
"incongruentes", estranhas ao "mundo" entrevisto. O autor fala de "choque
da realidade" (*reality shack*)...;

-- o *psyching out* ("*clic*"): é a intuição geralmente apresentada como


brutal de "aquilo que se deve fazer" para estar em conformidade com as
expectativas das instrutoras, é a arte de "sentir" (*o pif*), de
"adivinharem exactamente aquilo que se espera delas"; algumas não
conseguem totalmente...;

-- a simulação do papel: é a instalação no falsidade, a aceitação do


abismo que separa o papel a desempenhar dos estereótipos anteriores, é o
desencadear do "clic" apesar do que implica. Davis fala de alienação do
Eu...;

-- a interiorização antecipada: é a etapa da constituição de uma dupla


personalidade por antecipação da carreira: é a aceitação de uma dualidade
entre o eu profano e o eu profissional em troca da oportunidade de uma
carreira mais ou menos assegurada...;

-- a interiorização estável: é a aquisição dos reflexos profissionais, a


incorporação do papel que permite a rejeição estabilizada do eu
"profano", a instalação numa nova visão profissional do mundo reforçada
pelos contactos regulares das "profissionais"...

Uma outra investigação inspirada pelo "modelo" de Hughes foi conduzida


por Dan Lortie junto dos estudantes de Direito de Chicago, incidindo
sobre uma amostra que foi acompanhada durante vários anos após a sua
saída da universidade (*in* Vollmer e Mills :, 1966, pp. 98-101). Lortie
constata igualmente, nos discursos dos jovens juristas, o testemunho da
"substituição gradual de imagens estereotipadas" (exóticas e dramáticas)
por percepções subtis, complexas e ambíguas mas radicalmente diferentes
(rotineiras e "terra a terra"). Verifica que o desenvolvimento de uma
"autoconcepção profissional" intervém após a obtenção do diploma durante
o período em que o indivíduo interioriza uma nova imagem profissional que
se torna um aspecto muito significativo da sua personalidade. As
respostas dos jovens juristas apresentam uma forte homogeneidade e um
grande consenso no que diz respeito: 1. à opinião de que os estudos os
preparam mal (dois terços dos casos); 2. à opinião de que os exercícios
práticos e as capacidades sociais são muito mais importantes do que os
"conhecimentos" para exercer o ofício; 3. à constatação de que as
transformações importantes da sua personalidade aconteceram por ocasião
da imersão (*hurly-burly*) no mundo do trabalho depois de terem obtido o
seu diploma.

A solução habitual da fase de conversão última -- por abandono e rejeição


dos estereótipos -- e de dualidade entre "modelo ideal" e "normas
práticas" constitui segundo Hughes, o último mecanismo importante. Este
mecanismo refere-se ao ajustamento da *concepção do Eu*, isto é, da sua
identidade em vias de constituição que implica "a tomada de consciência
das suas capacidades físicas, mentais e profissionais, dos seus gostos e
desgostos" com as hipóteses de carreira que o profissional pode
realisticamente esperar no futuro. Em primeiro lugar, trata-se de
identificar as possibilidades de progressão profissional tendo em conta
as fases significativas do seu desenvolvimento e as suas sequências
específicas de aprendizagem, sabendo que, embora estejam
institucionalizadas algumas possibilidades, outras, apesar de "informais
ou não reconhecidas", seguramente existem enquanto regularidades de
mudanças constatáveis, geralmente ligadas a modificações na composição
das actividades. Trata-se, em seguida, de localizar as decisões cruciais
que põem em relação os critérios de sucesso profissional com as
oportunidades de mobilidade e que implicam escolhas cuidadas de grupos de
referência e de "outros significativos" que acabam por determinar a
órbita onde nos inscreveremos no futuro. Trata-se, finalmente, de
desencadear estratégias de carreira definidas em termos de riscos, de
projecções do Eu no futuro e de previsões mais ou menos realistas da
evolução do sistema. Hughes é assim conduzido a definir a carreira como
"soma total destas disposições e orientações que fornece a chave da
distribuição dos profissionais entre as diferentes vias da carreira e os
diferentes tipos de práticas" (1958, p. 159).

6.7. Alcance e limites do paradigma interaccionisita

E. Hughes e os sociólogos por vezes reunidos sob a designação de "escola


de Chicago" tiveram o grande mérito de ligar estreitamente o universo do
trabalho aos mecanismos da socialização. Ao defini-lo como um "drama
social" (*social drama of work*), Hughes sublinhava o facto essencial de
que o "mundo vivido do trabalho" não podia
ser :, reduzido a uma simples transacção económica (o uso da força de
trabalho em troca de um salário): põe em destaque a personalidade
individual e a identidade social do sujeito, cristaliza as suas
esperanças e a sua imagem do Eu, compromete a sua definição e o seu
reconhecimento sociais. Mas, sobretudo, a perspectiva interaccionista
simbólica mostrou-se fecunda na medida em que obrigava a abandonar a
análise sincrónica da "situação de trabalho" ou mesmo do "sistema social"
(cf. as análises de Elton Mayo e da escola das relações humanas) para,
numa perspectiva diacrónica, os substituir, realçando a importância da
carreira encarada no duplo sentido de categorias de emprego e de
trajectórias socioprofissionais (Becker e Strauss, 1970). Como afirma P.
Tripier (1987), a escola de Chicago permitiu o desenvolvimento de novas
abordagens da qualificação redefinindo-a como "uma articulação entre
trajectória provável e sistema ocupacional, isto é, entre um sistema de
expectativas legítimas (o que é que eu quero tendo em conta o que sei e o
que fiz anteriormente?) e um sistema de oportunidades (o que posso
esperar tendo em conta a evolução provável das posições profissionais?)".
Suscitando a utilização de análises transversais e estruturais dos
sistemas de emprego, ela permitiu pôr em evidência o que Tripier chama
"sistemas ocupacionais" (48) que ele define como a "selecção natural das
oportunidades nas biografias".

(48) Preferimos traduzir *occupational system* por "sistema de emprego" e


o termo *occupational socialization* por "socialização profissional" para
não criar neologismos inúteis. Na perspectiva de Hughes, exercer uma
"profissão" ou ocupar um "emprego" implica uma "socialização
profissional".

Esta perspectiva coloca a socialização profissional no centro da análise


das realidades do trabalho. Fá-lo sob condição de definir o termo
"profissional" de uma forma muito mais lata do que aquela que foi dada
anteriormente pela sociologia das "profissões" (Elliott, 1972). Ora, sob
este ponto de vista, o balanço das investigações da escola de Chicago é
marcado por ambiguidades importantes. O modelo das "profissões liberais"
(sentido restrito) permanece muito fecundo apesar de adoptar uma
definição de profissão diferente da dos funcionalistas, como assinala P.
Desmarez: para estes, "uma profissão é um ofício que conseguiu que quem o
pratique disponha de um monopólio sobre as actividades que ele implica e
de um lugar na divisão do trabalho que os impeça de se confrontarem com a
autoridade do profano no exercício do seu trabalho" (Desmarez, 1986, p.
169). Como sublinha P. Tripier (1984), esta definição está muito marcada
pelo contexto dos Estados Unidos e pela referência implícita ao Taft
Hartley Act de 1947 que instaura uma distinção jurídica entre as
actividades (*Professions*) cujos membros podem organizar-se em
associações profissionais e aquelas (*Occupations*) cujos membros só se
podem organizar em instituições sindicais. Apesar de uma minoria de
assalariados ter conseguido fazer reconhecer a sua actividade como uma
"profissão", a maior parte não o consegue ou só o consegue parcialmente
(fala-se então de "semiprofissões"). Este reconhecimento como "profissão"
parece assim constituir um desafio social que depende, nomeadamente, da
capacidade que têm os membros de uma qualquer actividade para se
coligarem, para :, desenvolverem uma argumentação convincente (Paradeise,
1988), e para se fazerem reconhecer e legitimar através de uma
multiplicidade de acções colectivas.

Será que isto significa que as actividades assalariadas "comuns" -- isto


é, todas aquelas que não dizem respeito ao processo de profissionalização
-- não envolvem nenhuma socialização profissional? A posição de E. Hughes
a este respeito era claramente negativa (Chapoulie, 1984) e parece ser
validada pela análise empírica de tipo "interaccionista" realizada sobre
um conjunto de empregos (Desmarez cita "os talhantes, os desportistas, os
actores, os guardas da prisão, os engenheiros do som, os *strip-teasers*
dos dois sexos, os polícias, os jogadores profissionais de cartas e os
contabilistas"). É preciso, no entanto, assinalar que a maior parte das
noções engendradas a partir do estudo das "profissões" (médicos,
juristas...) ou das "semiprofissões" (enfermeiras...), tais como o
compromisso (*commitment*), o "clic" (*psyching out*), o choque da
realidade... são muitas vezes ambíguas e dificilmente transponíveis para
outros "empregos" mesmo independentes (Olesen e Whittaker, 1970). Esta
constatação é ainda mais verdadeira para o universo da grande empresa e,
nomeadamente, para os seus assalariados menos qualificados (operários,
empregados de escritório...) que ficam totalmente fora das análises
interaccionistas. Tudo se passa como se a socialização profissional não
dissesse verdadeiramente respeito àqueles cujas condições de trabalho
eram definidas e controladas de acordo com as normas (tayloristas ou não)
da grande empresa capitalista. Esta não é analisada como um meio de
socialização profissional no sentido definido anteriormente. A sua
análise é remetida para a sociologia do trabalho, das organizações e das
relações profissionais (*Industrial Relation*) que não utiliza os mesmos
paradigmas que a sociologia das "profissões".

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Profissões, organizações e relações profissionais

A partir do momento em que abandonou o quadro estreito da análise das


"profissões liberais ou intelectuais", a sociologia das profissões
debateu-se com dificuldades consideráveis que explicam em larga medida a
sua divisão relativa em múltiplas correntes teóricas e a sua interacção
forte com outros ramos da sociologia: sociologia do trabalho, das
organizações, das relações profissionais.

7.1. A "profissão" como organização: dos processos sociais estruturantes

No próprio núcleo da sociologia das "profissões" nos Estados Unidos, a


partir dos anos 60, abordagens diferentes centradas na organização tendem
a fazer evoluir as teorias funcionalista e interaccionista. No interior
da "corrente" funcionalista, as análises de Merton tiveram um papel
importante nesta evolução. Na continuidade das análises interaccionistas,
os trabalhos de Freidson (1970) dão, particularmente, um bom testemunho
da evolução das problemáticas. Esta foi igualmente induzida pelo
desenvolvimento do salariado entre os "profissionais": tanto nas grandes
empresas de forma capitalista -- é o caso dos juristas americanos -- como
também e talvez sobretudo em instituições (hospitais, escolas e
universidades, centros sociais...) centradas em serviços para
particulares e não orientadas para o lucro. :,

O contributo essencial de Merton é, sem dúvida, ter distinguido as


funções *manifestas* das funções *latentes* das organizações
profissionais e das suas políticas de formação. A propósito de uma
análise da formação dos médicos (1957), pôs em evidência os dois
processos essenciais pelos quais uma "profissão" se transforma em
"organização fechada" utilizando a missão de serviço que lhe foi confiada
para provocar um "efeito perverso" de segregação social.

Ao primeiro mecanismo, Merton chama a *burocratizacão das carreiras* cujo


instrumento mais importante é o *diploma* que abre, por si só, o acesso a
uma carreira profissional no termo de um curn'culo preestabelecido.
Generalizando este modelo de burocratização elaborado a propósito das
formações médicas, Merton (1957a) indo, aliás, ao encontro de Hughes
(1958, capítulo 10), distingue cinco etapas neste processo:

-- na sua concorrência com outros "empregos afins", para se fazer


reconhecer ou confirmar como "profissão", um grupo de praticantes tem
interesse em ligar-se a uma instituição;

-- as instituições mais eficazes para esta função são instituições


educativas que permitem instaurar uma formação profissional específica
(*formal training*);

-- esta formação aberta, antes de mais, a "profissionais"


institucionaliza-se por sua vez em currículo para se abrir a jovens e
tornar-se escola profissional (*vocational school*);

-- esta escola integra-se na universidade que permite a multiplicação dos


pré-requisitos e níveis de formação até à sanção última, o diploma;

-- a formação assim estandardizada e hierarquizada torna-se um quadro de


sequencialização das carreiras, estando cada nível de formação associado
a um estádio de carreira.

Este processo burocrático permite, antes de mais, estabelecer uma


separação entre os "verdadeiros profissionais" integrados na instituição
e tendo ultrapassado todo o curso de formação ou parte dele e os "falsos"
profissionais periféricos que não transitaram pela "via real". Permite de
seguida distinguir, no interior da própria profissão, aqueles que
passaram pela "porta grande" da via universitária baseada numa formação
geral valorizada e aqueles que entraram pela "porta pequena" da via
profissional especializada e desvalorizada. Esta burocratização das
carreiras permite, finalmente, legitimar o poder interno à profissão
através de cursos e diplomas de elites reservados a categorias
específicas encarregadas da manutenção da "ordem simbólica da profissão"
(Freidson).

Assim, de "profissão" aberta a todos aqueles que sentem vocação para a


concretização de um ideal do serviço (função manifesta), o grupo
profissional torna-se, neste modelo, uma "organização fechada",
preocupada, antes de mais, com a sua própria reprodução (função latente).

Este mecanismo de base, centrado na formação e na carreira, é completado


por um outro que leva "naturalmente" o grupo profissional a multiplicar
as regulamentações, as normas estatutárias e os privilégios diferenciados
pelos seus próprios membros. A profissão torna-se, assim, um "corpo" por
vezes mais preocupado com o seu funcionamento interno e com o respeito
pelos seus procedimentos burocráticos do que com a qualidade dos serviços
oferecidos aos clientes. :,
Uma abordagem clássica da "profissão médica" (Freidson, 1970) chega mesmo
a definir a profissão médica como uma organização formal e informal "que
escapa de tal forma ao controlo dos clientes, dos profanos, que são os
seus empregadores, e do Estado, que ela praticamente não é incitada a
recorrer a outras formas de controlo (trad. 1984, p. 206). Três
mecanismos concorrem para tornar, segundo Freidson, a profissão médica
uma organização:

-- uma divisão das tarefas que se estabelece entre os diversos ofícios


envolvidos na base de "relações relativamente estáveis" que permitem, por
exemplo, "traçar uma espécie de organigrarna da divisão das tarefas na
medicina comparável no seu todo aos que se podem estabelecer para
empresas integradas"; nesta divisão do trabalho, "todas as tarefas
organizadas à volta do trabalho de cura são, em última instancia,
controladas pelos médicos" (*id.*, p. 48);

-- a existência de porta-vozes oficiais da "profissão" que é, assim,


dotada de uma identidade jurídica e susceptível "de estender as suas
vantagens jurídicas e estratégicas através de negociações com a
autoridade soberana". Esta organização "oficial" tem uma função
essencial: persuadir o Estado e a opinião pública de que a profissão
merece ser apoiada e deve auto-regular-se;

-- as redes de relações informais que estruturam os diversos meios do


trabalho e hierarquizam a "profissão" em função dos diversos segmentos da
clientela; esta estrutura informal, segundo Freidson, não é reconhecida
como uma organização mas desempenha um papel essencial no reconhecimento
de competências profissionais que são muito mais diversificadas e
hierarquizadas do que aquelas que estão implícitas na "legenda oficial
segundo a qual qualquer médico está apto a trabalhar utilizando a mesma
competência técnica e moral" (*id.*, p. 208).

Esta análise conduz, assim, a ligar a estruturação e a evolução de uma


"profissão" à construção e à racionalização de organizações muito
próximas do modelo da grande empresa industrial ou da administração
pública (como é para alguns o caso do hospital). O objectivo tanto da
organização "profissional" como da organização industrial não será o de
assegurar o monopólio de uma clientela ao mesmo tempo que controla a
competência dos seus membros? Não se baseiam ambas numa divisão do
trabalho que permite, simultaneamente, melhorar a sua eficácia e
hierarquizar, controlando, as competências necessárias? O fosso entre o
universo das "profissões" e o do trabalho industrial não estará, por
isso, bastante subestimado?

7. 2. A organização profissional do trabalho na produção capitalista: a


dupla fonte do poder

Segundo os historiadores do trabalho, tanto na Europa como na América do


Norte, o nascimento e a extensão das manufacturas foram precedidos e
acompanhados por um sistema de "trabalho ao domicilio" característico do
capitalismo mercantil. Neste sistema, os :, mercadores enviavam materiais
e dinheiro aos artesãos de oficina doméstica que trabalhavam em casa, em
geral, com a ajuda de membros da sua própria família. Os mercadores
faziam contratos com estes trabalhadores ao domicilio para o fabrico de
bens ou de peças que deviam ser entregues numa data estabelecida em troca
de uma percentagem fixa à peça. Os trabalhadores utilizavam os
adiantamentos de fundos para comprar as matérias-primas e as ferramentas
de que precisavam e podiam trabalhar ao seu ritmo e eram livres de
trabalhar com as suas próprias técnicas. Eram mais subempreiteiros do que
assalariados no sentido moderno do termo: artesãos ou operários de
ofício, eles assumiam plenamente a responsabilidade do seu trabalho e a
organização da sua produção (Lallemant, 1989).

Durante todo o século XIX e começo do século XX, os mercadores


capitalistas procuraram aumentar o controlo que exerciam deslocando o
lugar de produção da casa para a fábrica. Eles admitiam que os
trabalhadores autónomos, mais do que para manter um ritmo de trabalho
cada vez mais intenso exigido pela concorrência na feitura da mercadoria,
tinham tendências intrínsecas para a bebida, a dança ou descanso. É assim
que as manufacturas podem ser analisadas como invenções sociais
destinadas a quebrar a autonomia dos produtores e a aumentar o poder de
supervisão directa exercida pelos capitalistas (Marglin, 1970; Derber e
Schwartz, 1988).

Mas, na maior parte das indústrias e durante longos períodos, os


proprietários das manufacturas, tal como antes destes os mercadores,
continuaram dependentes dos trabalhadores de ofício por causa do seu
conhecimento dos modos de fabricação dos produtos. O próprio Frederick
Taylor, fundador da "organização cientifica do trabalho", reconhece-o:
"Os trabalhadores de cada um destes ofícios possuíam um saber que lhes
tinha sido transmitido por via oral. O contramestre e os administrativos
sabiam, melhor do que ninguém, que o seu próprio saber e a sua
competência estavam longe de poder igualar o saber e a habilidade
(*skill*) de todos os trabalhadores debaixo das suas ordens" (citado por
Montgomery, 1979, p. 9).

Os operários de ofício exploravam individual e colectivamente esta


situação para manter, com os seus novos empregadores, negociações
características da "*organização profissional do trabalho*" que
reproduziam certas características do "trabalho ao domicilio"
(Montgomery, 1979). Segundo a análise clássica de Alain Touraine, para a
França, o "sistema profissional do trabalho" assegura a manutenção do
controlo dos "profissionais de fabrico" sobre o processo de trabalho
enquanto o empregador controla o processo de produção. Os operários de
ofício utilizam o capital e o equipamento do proprietário, contratam
alguns dos seus ajudantes, geralmente não-especializados (por vezes, os
filhos ou pais), e vigiam a forma como o trabalho é feito, assegurando as
tarefas mais delicadas. A sua "qualificação" é complexa e baseia-se no
domínio dos saberes profissionais adquiridos pela experiência e pela
aprendizagem (Touraine, 1955). De acordo com a síntese de David
Montgomery para os Estados Unidos, as negociações entre os capitalistas e
os trabalhadores de ofício não eram certamente uniformes, mas englobavam,
muitas vezes, uma :, partilha dos riscos e dos lucros da empresa.
Constituíam, portanto, trabalhadores de um tipo particular "parcialmente
empregados, parcialmente administradores e parcialmente empresários
independentes" (Montgomery, 1979, capítulo 1).

As negociações internas entre empregadores e "profissionais de ofício"


levaram, em certos ramos, a formas curáveis de associação colectiva.
Assim, no sector do aço nos Estados Unidos, desenvolveu-se, no fim do
século XIX, uma cooperação entre os grandes magnatas e os respectivos
sindicatos. O sindicato de cada indústria estabelecia um contrato com o
proprietário para produzir um dado número de toneladas de aço cuja taxa
variava de acordo com os preços do mercado. O proprietário fornecia o
edifício, o material e as ferramentas e assegurava a comercialização do
produto final. Os "profissionais de oficio" organizados no sindicato
dirigiam o resto: recrutamento dos "não-especialistas", partilha das
tarefas com estes, organização técnica, horários de trabalho, pagamento
dos salários. Coexistindo com o poder patronal baseado no capital, o
poder sindical baseava-se no monopólio do oficio e na organização do
"*closed shop*" (Stone, 1970). Noutros ramos ou empresas já não era o
sindicato dos trabalhadores de ofício, mas indivíduos -- "profissionais
de ofício" particularmente empreendedores -- que se tornavam
"contratadores internos", que negociavam com a companhia a produção a
realizar e a sua parte nos lucros e que recrutavam assistentes e
supervisionavam o seu trabalho. Eles constituíam uma aristocracia
salarial ganhando, frequentemente, o triplo do operário médio e
partilhando com os outros trabalhadores de oficio as tarefas de
supervisão e de controlo do trabalho dos não-especialistas (Derber e
Schwartz, 1988).

Muitos outros exemplos de organização profissional do trabalho são


analisados na literatura histórica e sociológica. Apesar das variações
nacionais e temporais, estes exemplos mostram a força histórica de um
modelo de organização que se apoia em *três grupos estratificados
baseados numa dupla fonte de poder e de legitimidade*:

-- os dirigentes de empresa retiram o seu poder através da sua relação


com o *capital* (económico e financeiro) e a sua legitimidade do seu
sucesso económico no mercado dos bens e dos serviços;

-- os "profissionais de ofício" retiram o seu poder a partir da relação


com o *saber* (técnico e especializado) e a sua legitimidade da sua
posição individual e colectiva na organização e no *mercado do trabalho*;

-- os assalariados não-profissionais (ou não-qualificados) são duplamente


excluídos da esfera do capital e do domínio legítimo da competência.

Este modelo de organização é profundamente instável: o interesse dos


dirigentes é, de facto, o de reduzir a autonomia e o poder dos
"profissionais de ofício" assegurando para si, recorrendo a vias
diversificadas, o controlo directo da organização do trabalho: o
progresso técnico e os novos métodos de organização "científica" do
trabalho têm, em parte, este objectivo. O interesse dos profissionais é o
de se organizarem para defenderem a sua posição e protegerem a
"insubstitubilidade" da competência (Paradeise, 1987): o sindicato :, de
ofício e o controlo das formações têm, em parte, estes objectivos. Quanto
ao interesse dos não-profissionais, é o de poderem aceder às formações e
às carreiras que lhes permitem conquistar os saberes profissionais
legítimos, sob pena de estes saberes serem banalizados arrastando a
proletarização geral de todos os assalariados. Por isso, compreende-se
por que é que a interpretação das evoluções é sempre complexa e polémica:
a interacção constante das duas relações de trabalho (a relação salarial
e a relação profissional) correspondentes às duas fontes de poder
(capital e saber) não permite uma visão simplista dos movimentos que
afectam a organização do trabalho e a estruturação das actividades na
economia capitalista.

7. 3. Profissionalização e desprofissionalização:
Debate permanente e duplo movimento recorrente

Será possível construir uma definição comum às duas realidades


profissionais que acabámos de descrever no seu movimento interno: a
"profissão liberal ou sábia" no seu processo de organização, de
assalariamento e de diferenciação interna que advém do controlo dos
dirigentes; o "ofício" (assalariado ou não) integrado na organização
capitalista, ameaçado pelas estratégias dirigentes e tentando
salvaguardar a autonomia? Num artigo de síntese, que confronta as teses
sobre estes dois movimentos, Marie-José Legault propõe a seguinte
definição: "a profissão é uma organização susceptível de estandardizar a
formação, de definir o saber legítimo e de controlar a oferta de trabalho
através de um monopólio da referida definição" (1988, p. 164). Esta
definição aplica-se, com efeito, aos dois movimentos precedentes e
permite, segundo a autora, encontrar um núcleo comum a certas
problemáticas recentes muitas vezes designadas por "neomarxistas" e a
outras consideradas, por vezes, como "neoweberianas" (Saks, 1983).

As primeiras (ditas "neomarxistas") assentam numa esquematização comum


não necessariamente contraditória com as segundas (ditas
"neoweberianas"): a passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo
monopolista conduz à concentração do capital e à burocratização das
empresas. A proporção do emprego qualificado (profissional, no sentido
acima referido) relativamente ao emprego total aumenta com a evolução
tecnológica e com a especialização das funções de gestão. Este aumento
manifesta-se no emprego assalariado das grandes empresas ou
administrações burocráticas e não na forma empresarial do emprego
independente. Esta última é típica de um modo de produção mercantil e
opõe-se, na teoria marxista, à lógica da organização capitalista. O
crescimento do emprego assalariado significa, portanto, "a conservação
pelos profissionais assalariados do hermetismo do *saber* (49) necessário
ao empresário capitalista"
(Legault). :,

(49) Muitas análises insistem no esoterismo do saber e do seu modo de


aprendizagem por impregnação como critério
essencial do "ofício" comum às profissões independentes (artesãos,
agricultores...) e aos assalariados "profissionais de ofício" (cf. Darré,
1987; Delbos e Jorion, 1984; Pharo, 1985; Tripier, 1984; Zarca, 1988).

Perante esta constatação, M.-J. Legault distingue três correntes


principais na recente literatura sociológica e económica:

-- uma primeira corrente defende a tese de um determinismo capitalista


conducente a um processo irreversível de proletarização e de
desprofissionalização (ou desqualificação) a partir do momento em que
haja racionalização e assalariamento que impliquem economias de mão-de-
obra e divisões das tarefas (Braverman, 1976);

-- uma segunda corrente defende a tese de uma polarização das


qualificações (desqualificação da maioria, sobrequalificação de uma
minoria). Os sobrequalificados que melhoram a sua posição seriam aqueles
que participam em tarefas de gestão ou de concepção (Johnson, 1972, e
Freyssenet, 1974) essenciais à valorização do capital;
-- uma terceira corrente desenvolve a hipótese de uma não-proletarização
dos profissionais assalariados devido ao novo modo de gestão da mão-de-
obra posto em prática pelas empresas, modo de gestão esse específico
desta categoria de assalariados e valorizando a profissionalização e os
valores da *expertise* (Larson, 1977); Derber *et alii*, 1989).

Esta última corrente pressupõe, portanto, que perdura o modelo da


organização profissional -- isto é, simultaneamente, alguns aspectos da
forma profissional de organização do trabalho e da organização
profissional dos assalariados "de tipo corporativo" -- ainda que sob
novas formas, ou seja, constantemente renovadas (Segrestin, 1985). Esta
corrente implica, pois, a referência a um *duplo espaço* que interessa
articular: o espaço da organização do trabalho "*interno*" da empresa que
deve permitir evidenciar zonas de autonomia e iniciativas dos
profissionais assalariados e o espaço da organização profissional
"*externo*", transversal às empresas e que permite aos profissionais
assalariados manter formas de associação, de construção e de defesa das
suas competências e capacidades de *expertise* (50). Ao contrário das
outras duas correntes, esta não postura nenhuma correspondência
necessária, a prior), entre a posição dos indivíduos no interior do
processo de trabalho e a sua pertença de classe (ou a sua posição nas
relações sociais de produção). Pôr em correspondência as posições
ocupadas nos espaços é que pode permitir empiricamente definir as
identidades profissionais e sociais dos assalariados.

(50) Esta dualidade do espaço está ligada por alguns autores à manutenção
das duas fontes julgadas irredutíveis de poder na organização económica:
o poder do capital c o poder do saber ("logocracias") que não pode ser
totalmente apropriado pelo capital (Derber, Schwartz, Magrass. 1989, pp.
5 e seguintes).

Este modo de colocar o problema encontra-se com a dos investigadores


("neoweberianos") que se referem à noção weberiana de "*fechamento
social*" para designar "o processo pelo qual uma dada categoria social
tende a regular a seu favor as condições de mercado face à competição
actual ou potencial dos pretendentes (*outsiders*), restringindo o acesso
às oportunidades específicas de um grupo restrito de elegíveis" (Saks,
1983). Segundo esta posição, os profissionais assalariados como os
"profissionais" liberais
são :, aqueles que conseguiram "organizar a aquisição e a legitimidade da
sua competência, em vastos campos funcionais, na base dos títulos
oficiais de que são detentores" (Larson, 1977). Devem dotar-se para isso
de "instituições próprias que disponham, por delegação, de autoridade
pública, do poder de validar e sancionar os seus membros" (Paradeise,
1987). É preciso, portanto, que existam, para eles, "elos estruturais
entre um nível de instrução formal elevado e uma posição reconhecida na
divisão social do trabalho" (Larson, *idem*).

Estes elos só podem resultar de um *trabalho de argumentação* bem


sucedido, isto é, "de uma aptidão reconhecida para produzir e se
apropriar das declarações que são autoridade" (*idem*). Esta aptidão tem
que ser reconhecida não só pelos públicos externos que devem ser
persuadidos do valor da "necessidade" à qual responde a profissão, mas
também pelos públicos internos que são os potenciais empregadores e os
outros profissionais (Paradeise, 1988). O trabalho de argumentação deve,
pois, ligar a esfera da prática, isto é, a demonstração da eficácia do
profissional na satisfação da "necessidade" com a esfera da teoria, isto
é, a legitimidade "científica" da disciplina na qual a profissão se
fundamenta (*idem*). Este trabalho de reconhecimento científico da
disciplina é particularmente difícil já que necessita do consentimento
dos outros "sábios" das disciplinas já constituídas que formam "sistemas
anónimos que servem para a construção de novos enunciados válidos, de
quadros teóricos no interior dos quais as propostas pertinentes devem ser
ordenadas para ganhar sentido" (Larson, 1977). A capacidade dos
profissionais para "dominarem a definição de um campo autorizado da
ciência" constitui, de acordo com esta abordagem, uma das condições
essenciais para estabelecer e manter um "fechamento simbólico" aos olhos
dos outros parceiros implicados na sua actividade.

Assim, compreende-se melhor o interesse para os empregadores em


reconhecerem o poder e a competência legítimos de profissionais que
poderão colocar ao serviço dos objectivos da sua empresa em troca de
salários e de perspectivas interessantes de carreira. É nesta
*transacção* entre o reconhecimento por parte do empregador de uma
*competência* baseada num título e a *mobilização* (*commitment*) pelo
profissional assalariado desta competência ao serviço da empresa que
assenta o "novo (?) modo de gestão da mão-de-obra" que preserva os
profissionais da proletarização e mantém uma separação entre eles e os
assalariados que não começaram ou não conseguiram a sua
"profissionalização". Como qualquer transacção, esta é instável e depende
do conjunto das relações que caracteriza a situação dos profissionais, os
quais arriscam sempre uma desprofissionalização, mas também a dos não-
profissionais que aspiram sempre a uma profissionalização.

Não existe, no entanto, nenhuma "lei geral" que permita concluir uma
profissionalização generalizada ou uma de profissionalização maciça dos
assalariados na empresa capitalista. Desde há muito tempo que se observam
movimentos cruzados e complexos de *integração* de "profissionais" que
mantêm ou aumentam o seu poder de *expertise* nas organizações de tipo
burocrático, de desprofissionalização ou "*desqualificação*" de
profissionais de ofício perdendo a sua autonomia e o seu controlo devido
ao progresso :, técnico e ao enfraquecimento da organização interna, de
profissionalização ou "*requalificação*" de novas categorias de
assalariados conseguindo organizar e fazer reconhecer o monopólio da
competência; sem falar das "*reconversões*" de um outro tipo de
profissionalidade que permita manter estatutos profissionais pelas
transformações estruturais das empresas. Estas diferentes dinâmicas
profissionais podem sempre analisar-se como resultados incertos e frágeis
das transacções salariais entre os indivíduos em causa e os parceiros das
relações de trabalho: os seus empregadores mas também os seus clientes ou
o seu público, as suas organizações profissionais ou sindicais mas também
as suas instituições de formação. Esta abordagem revelou-se
particularmente fecunda para compreender o movimento secular da
socialização profissional (51).

(51) Contudo, falta-lhes ter em conta as "transacções subjectivas"


necessárias aos indivíduos para se envolverem numa dinâmica profissional;
é este o motivo por que o termo "identidade" é pouco utilizado por estas
correntes.

7.4. A qualificação como produto codificado de "modelos profissionais"

Existirão, contudo, "modelos" que permitem caracterizar os termos da


transacção precedente, entre as competências exigidas pelos empregadores
(qualificações dos empregos) e as competências adquiridas pelos
assalariados (qualificações dos indivíduos)? Será que existirão
correspondências típicas entre os modos de codificação das categorias de
*empregos* e os princípios de codificação das *formações* através das
quais se definem os indivíduos? Se recusarmos qualquer postulado de
adequação preestabelecida entre os dois processos, ao mesmo tempo que
definimos a qualificação como socialização profissional (Alaluf, 1986),
podemos, pelo menos a título de hipótese, reconhecer na literatura modos
de ajustamento entre estes dois tipos de codificação.

Para apresentar estes modelos hipotéticos, apoiar-nos-emos em resultados


de dois trabalhos muito diferenciados (devido aos países, às categorias e
aos períodos em causa) e, no entanto, largamente convergentes. O primeiro
é uma síntese, elaborada por W. E. Moore (1969), dos quatro níveis de
identidade profissional (*Occupational Socialization*), presentes em
numerosas análises americanas dos anos 60. O segundo é uma tentativa de
elaboração de três "modelos de valorização da força de trabalho"
estreitamente ligados a três tipos de opções de emprego descobertas por
P. Rivard (1986) nas suas investigações sobre a qualificação dos quadros
nas empresas francesas. O facto de um dos "níveis de identificação"
(Move) não corresponder a nenhum "modelo de valorização" (Rivard)
explica-se facilmente pela diferença das populações abrangidas (e também,
sem dúvida, pela diferença dos países de referência). Veremos que outros
trabalhos permitem acrescentar um quarto "modelo" aos propostos por
Rivard, reforçando assim a convergência das duas sínteses. :,

O ponto de partida da síntese de Moore é a seguinte questão: quais são os


quadros legítimos de identificação dos assalariados que a literatura
sociológica admite? Moore coloca a hipótese de que estes "espaços"
resultam em parte da interiorização de "normas de emprego" (*Occupational
Norms*) que exprimem as principais "formas de lealdade" dos assalariados
em relação às instituições pertinentes e ao Outro significativo (Mead).
Estabelece uma distinção importante entre as normas ideais e formais
transmitidas pela formação e as normas práticas e informais consolidadas
pela experiência do trabalho (cf. capítulo 6). Verifica que são estas
últimas que estruturam de uma maneira duradoira as identificações dos
assalariados e que asseguram formas diversas de implicação profissional
continua (*continuing occupational commitment*), as quais permitem a
confirmação de identidades profissionais, constituindo, igualmente,
identificações a comunidades profissionais significativas de cada um dos
níveis de interesse iniciais.

O ponto de partida de P. Rivard é diferente. Interroga-se sobre as


expectativas de carreira dos quadros e sobre as diversas representações
comuns a partir das quais indivíduos e empregadores baseiam os seus
comportamentos. Associa estas representações, simultaneamente, a
estratégias típicas de "defesa, imposição, reforço da legitimidade do
modelo argumentativo" da competência do assalariado e a etapas
profissionais de progressão típicas baseadas em lógicas económicas e
sociais, específicas e irredutíveis umas às outras. É a esta
correspondência entre estratégias de carreira e etapas profissionais que
Rivard chama "modelo de valorização" e que ele apresenta a partir de três
figuras ideal-típicas que são o oficial, o físico e o artífice.

Estas três figuras correspondem de perto aos três espaços de


identificação de Moore e às três comunidades profissionais que lhes estão
ligadas. Por esta razão vamos apresentá-las ao mesmo tempo.

O modelo do artífice: valorização pelo resultado e identificação a um


posto (Job)

A unidade elementar que define o emprego é o POSTO, ou seja, um conjunto


de tarefas (prescritas), de resultados (previstos) e de meios
(atribuídos). O núcleo duro da competência é a :formação na tarefa (no
campo), ou seja, a capacidade de produzir resultados a partir da
experiência e do domínio da actividade de trabalho. O salário sanciona a
contribuição para a tarefa principal, contribuição essa que produz o
valor acrescentado incorporado no resultado do trabalho.

A codificação principal é a que classifica os postos segundo a sua


importância na produção dos resultados. A codificação dos indivíduos
decorre da precedente e baseia-se nas experiências anteriores (cana de
recomendações, currículo...) e nas aptidões medidas por testes
específicos. A carreira é concebida, apenas, como uma progressão para
postos cada vez mais importantes susceptíveis de produzirem resultados
acrescidos/mais positivos. O êxito profissional mede-se a partir destes:
é uma "carreira através dos postos" baseada na acumulação "interna" de
competências operacionais. :,

A identificação principal é a que liga o indivíduo ao colectivo de


trabalho, o qual constitui uma verdadeira "comunidade profissional" com a
sua linguagem própria, as suas normas informais, as suas alegrias e os
seus sofrimentos profundamente inferiorizados (Moore). Este colectivo
define-se a partir de um conjunto relativamente limitado de postos
(*closely related set of jobs*) estruturados em torno de um chefe ou de
um responsável detentor da identidade colectiva. é em relação a ele que
se define a lealdade e é por ele que passam todas as antecipações de
futuro (Moore).

A estratégia de qualificação essencial é uma regulação dos fluxos


dominada pelo empresário. Há pouca ou nenhuma codificação da visibilidade
dos resultados obtidos. A argumentação essencial é destinada a valorizar
os autodidactas e a reconhecer as diferentes formas de experiência
profissional úteis à empresa (Rivard).

O modelo do oficial: valorização pela função e identificação com um


estatuto

A unidade elementar aqui é a FUNÇÃO, "estado" no sentido do Antigo


Regime, isto é, o mandato atribuído por delegação de um poder central e
oficializado por um acto oficial. Trata-se de um serviço a
manter/preservar/consolidar e que implica uma responsabilidade inerente
ao estatuto possuído: o oficial é proprietário da sua patente militar.
Este estatuto é, pois, inseparável de uma HABILITAÇÃO especializada
resultante de uma FORMAÇÃO PROFISSIONAL inicial e contínua. Esta formação
constitui uma condição para postular ao nível das funções organizadas as
longas filas hierarquizadas de tipo burocrático.

A codificação principal é a que ordena os indivíduos em diferentes


escalões da fila de funções. A carreira não é mais que a sequência das
funções cada vez mais importantes desempenhadas numa sequência de etapas.
Ela resulta de jogos de actores muito complexos que dependem,
simultaneamente, de factores demográficos, de decisões políticas e de
interacções estratégicas entre os parceiros desta "regulação conjunta"
(J.-D. Reynaud).

A identificação principal é a que liga o indivíduo ao seu estatuto, ou


seja, à comunidade daqueles que ocupam as mesmas funções. Quer se trate
de associações profissionais ou de uniões sindicais de ofício, estas
comunidades de identificação são transversais em relação às empresas e
estruturam identidades profissionais "de tipo corporativo" fortemente
ligadas à manutenção e à reprodução de normas oficiais que legitimam a
função desempenhada.

A estratégia de qualificação consiste em "criar um grupo de postos


similares e em definir, depois, as condições necessárias à ocupação
destes postos" (Rivard). O funcionamento mais frequente é a cooptação
aceite tacitamente por todas as partes implicadas. A argumentação
essencial do grupo profissional incide sobre a utilidade e o valor das
novas funções a criar. :,

O modelo do físico: valorização pela formação e


identificação com a disciplina (sector, indústria...)

A unidade elementar de definição é aqui a ESPECIALIDADE, isto é, a


competência especializada adquirida pela formação de base e pelos saber-
fazer adquiridos pelas aprendizagens cumulativas. Teoricamente, existe
uma correspondência estreita entre as vias de ensino disciplinar e as
vias "profissionais". A carreira sanciona o domínio progressivo da soma
dos conhecimentos (saberes formalizados) e dos saber-fazer
correspondentes.

A codificação principal é a que classifica os indivíduos no interior dos


diferentes níveis de conhecimento da disciplina. Ela deve assegurar uma
equivalência entre os empregos que correspondem ao mesmo nível em todas
as empresas ou instituições. A mobilidade externa é, assim, permitida e
favorecida para contornar os constrangimentos demográficos e assegurar a
progressão ao longo da especialidade.

A identificação principal é a do indivíduo com a sua reputação no seio da


comunidade disciplinar. Ele procura, antes de mais, o reconhecimento
pelos pares e a implicação profissional é fortemente condicionada pela
esperança de um intensificar deste reconhecimento muitas vezes enraizado
numa concepção da "vocação" (*commitment to a calling*, segundo Moore).

A estratégia profissional é a da acumulação dos saberes e da luta pela


manutenção da raridade da formação.

Na tipologia de Moore, encontramos um quarto espaço de identificação,


constitutivo do modelo da EMPRESA

Na tipologia de Rivard, a lealdade em relação ao empregador é incluída no


modelo do artífice, que se baseia, de facto, na articulação de dois
níveis pertinentes: o dos postos de trabalho e o da empresa que os define
e os codifica para alcançar os seus resultados. Porque Rivard se
interessa unicamente pelos quadros e desenvolve o modelo do quadro de
produção autodidacta que progride na sua empresa a partir dos seus
resultados produtivos, não pode separar a identificação com o posto da
identificação na empresa. Moore, pelo contrário, interessa-se também
pelos assalariados de execução dos quais uma fracção só se define a
partir do colectivo imediato de trabalho. É preciso dizer que a maior
parte destes não têm qualificação reconhecida nem hipóteses de carreira.
São, portanto, excluídos do espaço de qualificação interna das empresas e
não relevam de nenhum dos modelos de valorização construídos por Rivard.
Na literatura sociológica, encontramos outras tipologias de "modelos
profissionais" que se aplicam quer a uma categoria de assalariados quer
ao conjunto dos diplomados. Assim, Hughes distingue e opõe os *scientist*
(modelo do físico), o *manager* e o *professional* (1958, pp. 142 e
seguintes), Goldthrope e Lockwood definem, junto dos operários e
empregados ingleses, três orientações: instrumental (centrada no
resultado financeiro); :, burocrática (centrada no estatuto social); e
solidária (centrada no grupo de trabalho ou na empresa) consideradas como
tipos-ideais (1968, pp. 86 e seguintes). Todas estas tipologias se unem e
podem ser consideradas como variantes dos quatro "modelos" precedentes.

7.5. A qualificação como resultado instável das relações profissionais

Uma última visão sobre estes "modelos" de qualificação consiste em


salientar os sistemas de relações profissionais que lhes estão
subjacentes e em caracterizar a sua dinâmica histórica. Devemos, com
efeito, colocar a hipótese de que cada "modelo" corresponde a uma
configuração particular de actores entre os quais se negoceia a
construção, a reprodução e a transformação das qualificações.

Um ramo particular da sociologia estuda, há mais de trinta anos, a


dinâmica dos sistemas de relações profissionais (*Industrial Relations*,
cf. Dunlop, 1958) em relação com o processo de industrialização e mais
globalmente com a evolução das sociedades industrializadas. Parte de uma
teoria universalista da industrialização baseada na hipótese de uma
convergência de todas as sociedades industriais para um modelo único de
relações institucionalizadas de trabalho, constatando uma extrema
diversidade das formas de regulação entre os diferentes actores da vida
económica (Sellier, 1986). Esta teoria universalista, centrada na
hipótese da diversidade irredutível das formas de acção colectiva e de
regulamentação conjunta, dá lugar a teorias estratégicas que assumem esta
diversidade pondo em causa as orientações funcionalistas que
privilegiavam o consenso e desenvolvem novos modelos de inteligibilidade
(J.-D. Reynaud, 1989). De acordo com aquela hipótese, a qualificação dos
assalariados representa um desafio essencial aos três parceiros
principais: os empregadores, os trabalhadores e o Estado.

Os interesses dos empregadores e dos assalariados são, *a prior*),


divergentes e até mesmo antagónicos. Os empregadores procuram um
compromisso viável (mas não necessariamente óptimo) entre a redução dos
custos de produção e a sobrevivência da empresa. Constrangidos, perseguem
um duplo objectivo: dispor de uma mão-de-obra que tenha as qualidades
exigidas para a melhor produção possível e assegurar que esta mão-de-obra
tenha o custo mais reduzido possível. Estes dois objectivos raramente
podem ser atingidos espontaneamente. Para os atingir, os empregadores
devem, pois, negociar, individual ou colectivamente, as condições de
trabalho e de remuneração. Inversamente os assalariados procuram
valorizar ao máximo a força de trabalho e minimizar a sua dependência.
Têm ao seu alcance a possibilidade de desorganizar o processo de produção
quer seja por abandono individual, quer por acção colectiva. Mas
interessa-lhes, muitas vezes, negociar a valorização da sua competência e
aumentar a sua "insubstitubilidade" (C. Paradeise, 1988). Podem,
nomeadamente, dirigir-se ao Estado para garantir, valorizar ou melhorar o
seu diploma escolar e a sua competência profissional. O Estado pode, por
sua vez, fazer :, pressão sobre os empregadores para que participem na
formação dos seus assalariados e reconheçam os diplomas escolares que ele
confere.

A construção dos espaços de qualificação é, assim, o produto de todas


estas negociações em interacção que levam ao confronto entre diversas
categorias de actores com interesses e representações diferentes mas com
obrigatoriedade de realizar uma "apropriação mútua" (Weber). Estas
negociações estão cada vez mais descentralizadas e sucedem-se a níveis
diferentes com múltiplos parceiros: empresas, ramo profissional, região,
nação, quadro europeu... Estão dependentes dos "modelos da competência"
trazidos por cada um dos actores e dos modos de organização herdados das
formas históricas de desenvolvimento das empresas, dos ramos, das nações.
Esta dispersão da negociação torna cada vez mais difícil a definição de
normas profissionais comuns e acarreta o risco de uma profusão de regras
jurídicas cada vez menos aplicadas (J.-D. Reynaud, 1989).

Para que as negociações resultem em compromissos que codifiquem,


simultaneamente, os requisitos exigidos pelos empregadores e as
qualidades adquiridas pelos assalariados e legitimadas pelo Estado, é
preciso que os parceiros consigam construir *espaços comuns de
racionalidade* a partir de lógicas diferentes. É preciso, pois, que
partilhem um processo conjunto de socialização que implique uma acção
comum (o processo de trabalho), representações comuns (um modelo da
competência) e interacções positivas (cf. capítulo 4). O quadro deste
processo pode ser: 1. o colectivo de trabalho, 2. a empresa, 3. a função,
4. o ramo profissional ou a disciplina, o que corresponde aos quatro
"modelos" precedentes. Os actores pertinentes não são os mesmos em cada
um dos casos, mas o desafio é sempre a construção conjunta da
profissionalidade dos indivíduos, que implica a articulação de três
processos:

-- o processo de *formação* inicial e contínua das competências pela


articulação das suas diversas origens: saber formalizado, saber-fazer,
experiência;

-- o processo de construção e de evolução dos *empregos* e da sua


codificação nos sistemas de emprego;

-- o processo de *reconhecimento* das competências, resultado do jogo das


relações profissionais.

A análise pormenorizada de uma comparação internacional centrada sobre as


coerências nacionais entre estes três processos permitirá justificar a
necessidade de os articular para compreender as dinâmicas da socialização
profissional.

7.6. Socialização, organização e relações profissionais: uma comparação


internacional
No fim de uma longa investigação comparativa entre a França e a antiga
Alemanha Federal, Maurice, Sellier e Silvestre publicaram uma síntese
organizada em torno da :, articulação das três relações que consideram
como estruturantes das "coerências societais" a relação educativa (ou
profissional), a relação organizacional e a relação industrial (MSS, 1
982).
O ponto de partida da sua análise é a tentativa de explicar as diferenças
de hierarquia dos salários entre os dois países: a relação entre o
salário médio dos não-operários-e dos operários era, em 1970, de 1,42 em
França contra 1,33 na RFA; o coeficiente de variação dos salários
masculinos era de 55% em França e de 33% na RFA; os desvios devidos à
antiguidade eram muito mais acentuados em França do que na RFA, etc. Para
dar conta destas diferenças sistemáticas, os autores partem de uma
análise dos *movimentos de mobilidade* (educativa, profissional e social)
que não são apenas diferentes nos dois países, como "se orientam, também,
segundo princípios diferentes". Estes têm por base a *relação educativa*
e, nomeadamente, a relação formação geral -- formação profissional.
Assim, enquanto que, nos anos 60, na RFA, 68% dos indivíduos pertencentes
ao mesmo nível etário tinham frequentado uma formação profissional
inicial de aprendizes, em França essa percentagem era apenas de 29%; se,
na RFA, apenas 10% dos aprendizes não tinham obtido o seu diploma, em
França 60% abandonavam a sua formação inicial sem obter o CAP
(Certificado de Aptidão Profissional). A socialização profissional
aparece, assim, muito diferente nesta época, de um pais para o outro:
enquanto para a maioria dos jovens alemães a socialização profissional
consiste numa "preparação para a qualificação industrial", para a massa
dos jovens franceses é sobretudo uma "iniciação a saber-fazer
específicos" completada depois por uma "socialização na empresa". Assim
sendo, o que os autores chamam o espaço de qualificação é
fundamentalmente diferente nos dois países: enquanto na RFA ele se
organiza em torno das relações entre sistema de formação profissional e
"indústria" (ramo estruturado pelas relações empregadores-sindicato), na
França organiza-se muito mais em torno das relações entre os assalariados
e a sua empresa e através de uma forte influência do Estado na
distribuição dos diplomas. Assim, segundo os autores, "as tendências para
a promoção individual são em França mais importantes do que as tendências
favoráveis à identificação colectiva" (MSS, pp. 80-81). Enquanto que na
RFA existe um "espaço único de qualificação marcado pela aprendizagem
operária na base e alargado para os diplomas profissionais intermediários
não operários", em França só se encontram "espaços segmentados pelas
triagens/orientações/selecções realizadas pelas empresas a partir de uma
mão-de-obra pouco diferenciada profissionalmente".

Estas diferenças na relação educativo-profissional são de seguida


relacionadas com as características da "relação *organizacional*", isto
é, os modos de funcionamento dos colectivos de trabalho e de estruturação
das empresas. A análise incide aqui sobre as diferenças de identidade do
mestre francês e do *Meister* alemão que refle tem "dois modos de
organização do *sistema de trabalho*". Enquanto na França as exigências
do posto de trabalho contam muito mais do que os perfis dos trabalhadores
e se observa um "primado da antiguidade", na RFA é a qualificação dos
trabalhadores que prima sobre o perfil dos postos e :,
que provoca um "primado da profissionalidade baseada nos diplomas de
formação profissional". Assim sendo, o mestre na França tem um papel
"essencialmente hierárquico, marcado pela distância salarial com os
operários" (poder compensatório do salário) e depende essencialmente do
"sistema organizacional da empresa (daí a sua fragilidade e o seu mal-
estar)", enquanto que na Alemanha ele constitui um mediador entre "gestão
técnica e gestão social" e integra-se numa linha de autoridade baseada
nas competências técnicoprofissionais reconhecidas (do *facharbeiter* ao
*Graduiert* *Ingenieur* via o *meister*). Esta identidade profissional do
*Meister* é inseparável da "forte autonomia" do grupo operário
(*Arbeiteischaft*)" ancorada na profissionalidade reconhecida e expressa
por uma "ligação colectiva à eficácia (*Leistung*)". Contrasta, segundo
os autores, com a identidade do mestre francês cuja profissionalidade --
como a dos outros assalariados -- "depende mais da empresa que o emprega
e o nomeia para o seu posto do que das formações adquiridas" (MSS, p.
208).

As diferenças da relação educativa e da relação organizacional estão


ligadas, por fim, aos dois "sistemas de relações industriais", isto é, ao
conjunto das regras e dos actores que presidem à negociação colectiva das
relações de trabalho. Ao caracter estruturante das "indústrias" (ramos
profissionais) e à existência de uma "lógica de produção" dominante e
partilhada em conflito, no sistema alemão, os autores opõem uma
polarização das empresas ("heterogeneidade social e profissional dos
ramos") e um domínio da "lógica administrativa", no sistema francês.
Estas diferenças são perfeitamente coerentes com as precedentes: é à
volta da relação formação profissional-organização do trabalho baseada na
profissionalidade que, na RFA, o ramo ("indústria") se estrutura como
"espaço de qualificação" e como "lugar essencial das relações
profissionais"; pelo contrário, em França, é à volta da relação
integração na empresa-organização baseada na divisão em postos que a
empresa se constitui como "espaço de mobilidade interna" e "lugar de
exercício do poder administrativo".

Esta tripla análise daquilo a que os autores não chamam "sistema" mas
antes "relações sociais" definidas como "conjunto estruturado de relações
de cooperação, competição e domínio, que os trabalhadores mantêm entre
eles, na produção ou na sua preparação" põe em evidência as "coerências
societais" (p. 240). Segundo eles, um conceito-chave desta análise é o de
"socialização" definido como "aprendizagem das relações sociais nos
processos de mobilidade (espaços de qualificação)" (MSS, p. 242). É
porque estes espaços (chamados também "espaços profissionais") estão
estruturados de uma forma diferente em França e na Alemanha que os modos
de socialização profissional são também profundamente diferentes e mesmo
opostos entre os dois países: nível de instrução geral/formação
profissional, experiência e profissionalidade/antiguidade e eficácia,
homogeneidade do ramo/localização dos conflitos na empresa, lógica
administrativa/lógica produtiva
(quadro 7.1.). :,

Quadro 7.1.

Os espaços profissionais em França e na antiga RFA segundo MSS (1982)

:::::::
França:

Centralização hierárquica e administrativa das decisões


+ Localização dos conflitos na *empresa*; Experiência profissional
(antiguidade) + Nível de instrução
RFA:

Co-gestão, descentralização e lógica produtiva (oficina) +


Homogeneização do *ramo*; Profissionalidade, eficácia
(*Leistung*) + Formação profissional
:::::::::

Apesar dos problemas metodológicos ligados à construção da


comparabilidade e ao ponto de vista adoptado na comparação (Doray-Dubar,
1989), esta análise faz avançar a compreensão das relações estreitas que
ligam o ensino, a organização do trabalho e o campo das "relações
profissionais". Numa última parte mais teórica, os autores recapitulam as
posições adoptadas pelas diversas correntes da sociologia e da economia a
propósito destas relações estruturantes entre a socialização concebida
como "construção social dos actores" e a organização considerada como
"estruturação dos espaços de trabalho e de mobilidade". Consideram, com
pertinência, que os diversos paradigmas (tecnológico, ecológico,
accionista, político...) forjados por estas disciplinas só permitem muito
parcialmente construir abordagens operatórias das "interacções entre
processos de socialização e lógicas de organização" e que estas
abordagens necessitam de se centrar nas lógicas intermediárias (entre o
macrossocial único e o microssocial diverso) que constituem "a construção
das identidades colectivas dos actores" (socialização e trajectórias) e
"a estruturação dos espaços de qualificação" (organização e divisão do
trabalho). A definição que eles adoptam do indivíduo ("actor que
contribui para estruturar os sistemas que organizam a lógica da sua
acção") está próxima da problemática da socialização adoptada na primeira
parte deste livro.

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Das profissões aos mercados do trabalho

A renovação da "sociologia das profissões" foi acelerada pela crise dos


anos 60 (EUA) e 70 (Europa Ocidental). O aumento de um desemprego
estrutural, afectando, nomeadamente, fracções inteiras da juventude,
colocou o problema do emprego no centro das análises. A questão
fundamental já não é saber quais as actividades que constituem
"profissões" ou que indivíduos se tornam "profissionais", mas sim
compreender, e se possível explicar, simultaneamente, as transformações
do acesso aos empregos e as reestruturações das etapas profissionais que
implicam exclusões duradoiras da esfera das actividades reconhecidas.

Esta é uma das razões essenciais pelas quais a atenção dos sociólogos se
deslocou claramente da análise do *trabalho* e das profissões para a
análise do funcionamento dos *mercados do trabalho*. Foi assim que os
sociólogos se reencontraram com as mais antigas preocupações dos
economistas e os seus múltiplos esforços para produzirem teorias novas do
(ou dos) mercado(s) do trabalho. A tónica deslocou-se também, ao mesmo
tempo, para as formas de funcionamento das organizações. Neste capítulo,
veremos de que modo estas novas orientações contribuíram também para
renovar as problemáticas da socialização profissional.

8.1. Profissão e mercado do trabalho: interrogações fecundas

Entre as críticas feitas à "teoria dominante das profissões", as dos


economistas do trabalho são importantes pelo menos por duas razões. Por
um lado, porque partem de um ponto de vista "societário" sobre o trabalho
e não de um ponto de vista "comunitário" :, sobre as profissões: é
enquanto anomalia, excepção. e até mesmo entrave ao funcionamento do
*mercado de trabalho* que eles consideram o facto profissional. Por outro
lado, porque a persistência e até a extensão do fenómeno profissional,
apesar da existência teórica de um mercado do trabalho concorrencial (e
medidas políticas visando instaurá-lo), obrigou certos economistas,
nomeadamente americanos, a elaborar *novas teorias* do mercado do
trabalho que integram a dimensão da socialização profissional.

De facto, é durante os anos 50 e 60 nos Estados Unidos que se multiplicam


os estudos empíricos. visando explicar as desigualdades de salários,
confrontando-as com o "modelo" económico dominante: a teoria neoclássica
do "capital humano". De acordo com este modelo, o assalariado é concebido
"como gestor de um capital que ele constitui a partir de investimentos e
cujos serviços, combinados com os do capital material, são transformados
em produto (salários)" (Silvestre. 1978, p. 166). Estes investimentos em
capital humano definem a oferta de trabalho que vai ao encontro da
procura de trabalho das empresas num "mercado" concebido a partir do
modelo da concorrência perfeita, isto é, cuja unidade é mantida através
da gratificação dos investimentos dos trabalhadores e da fixação de
"salários compensadores" pelas empresas. Segundo este modelo, as empresas
"fixam os salários de forma a assegurar a realização dos investimentos em
capital humano correspondente ao factor "raro", assegurando-lhes uma
óptima combinação produtiva" (*id.*, p. 184). Assim, cada assalariado que
fez o mesmo tipo de investimento deve receber o mesmo salário, e as
desigualdades entre salários devem poder ser explicadas pelas diferenças
de níveis de investimentos medidos por variáveis interpretáveis nestes
termos: o nível de educação, a experiência profissional, a mobilidade
voluntária constituem as variáveis mais usuais medidas pelos estudos
empíricos. Ora, se estas variáveis aparecem fortemente correlacionadas
com os níveis de salário, existem outras "que não estão
significativamente ligadas aos níveis de investimentos dos trabalhadores"
mas que, por vezes, se relacionam mais fortemente com os níveis de
salários. É o caso das diferenças de salários entre homens e mulheres,
entre brancos e minorias étnicas, entre rurais e urbanos, com diplomas e
trajectórias profissionais equivalentes. O caso da antiguidade na empresa
ou na profissão aparece, por exemplo, como a variável mais relacionada
com o salário no inquérito sobre os EUA de Rees e Shultz (1970) e que,
segundo Silvestre, constitui "uma das investigações mais sistemáticas
efectuadas sobre a formação dos salários num mercado do trabalho urbano":
na grande maioria dos ofícios em causa, "as variâncias explicadas pela
antiguidade atingem 30% e, em três de doze casos, ultrapassam 50%"
(Silvestre, 1978, p. 199). Noutros inquéritos (Harrison, 1973), o tamanho
das cidades ou a taxa de urbanização explica também uma parte
considerável da variação dos salários (de 40% a 60%). Todos estes estudos
levaram os economistas a reconhecer "a existência de leis de
compartimentação que vão no sentido oposto ao da unidade económica do
mercado do trabalho: discriminação entre os sexos ou as raças, efeito da
origem social, da empresa e das formas de organização colectiva do
trabalho" (Silvestre, *id.*, p. 208). :,

Ora, estas observações permitem reinterpretar, desde os anos 50 nos EUA,


os resultados de certas investigações sociol6gicas sobre as "profissões".
Quando um sociólogo como Goode põe a tónica na comunidade profissional,
não de um "mercado institucionalizado" em consequência de
será pelo indício da existência de um monopólio das profissões
estabelecidas? Quando Hughes e os seus colaboradores analisam
discriminações profissionais em relação às mulheres ou aos não brancos,
não será isto indicativo de uma segmentação do mercado de trabalho?
Quando outros estudos mostram que a mobilidade e a repartição geográficas
de certas "profissões" (médicos, advogados...) estão ligadas às
concentrações da clientela abastada, não será, de novo, uma
característica de "mercado institucional" ou, de acordo com a expressão
de um artigo célebre de Clark Kerr, o indício da existência de um
processo de "balcanização do mercado do trabalho" (1954)?

Estas constatações vão levar determinados economistas a propor novas


abordagens, e até mesmo uma nova teoria do funcionamento do mercado do
trabalho, que consideram estas compartimentações internas não como
imperfeições do modelo neoclássico (teorias da concorrência imperfeita),
mas como modos de estruturação do espaço profissional que dão conta do
carácter estratégico do que anteriormente se considerava como simples
obstáculos contingentes à concorrência.

Uma primeira abordagem em termos de "segmentação do mercado do trabalho,


d' autoria de Edwards, Gordon e Reich (1973), inscreve-se no
prolongamento da análise marxista do funcionamento da força de trabalho e
considera a compartimentação do mercado do trabalho como o resultado dos
modos de gestão da força do trabalho pelo capital Esta compartimentação
resulta das "novas estratégias capitalistas de resposta às tensões e
contradições suscitadas pelo próprio desenvolvimento", levando a
distinguir, cada vez mais nitidamente, e a articular "dois espaços de
mobilização da força de trabalho": um sector *central* caracterizado por
uma "forte integração dos trabalhadores nas estruturas onde se regula o
uso da força do trabalho" através de uma organização colectiva dos
assalariados e de regras negociadas de gestão das carreiras e, portanto,
por uma forte
estabilidade do emprego sobretudo composto por homens, brancos, de origem
urbana; um sector *periférico* composto por empregos residuais, não
protegidos e cada vez mais precários ocupados por mulheres, estrangeiros
ou minorias, e trabalhadores de origem rural. Segundo estes autores,
foram as exigências da produção de massa e a consequente
cação da produção e "o controlo crescente sobre o uso directo da força de
trabalho" que motivaram a constituição de um sector central composto por
grandes empresas, com uma "força de trabalho homogénea e organizada" que
interessava integrar (estabilidade, regularidade, disponibilidade) e
regular (relações industriais), em troca de salários elevados da
estabilidade de emprego. O residual é enviado para o sector periférico
que constitui um conjunto de "zonas de menor resistência que permitem
aumentar a eficácia global do processo de valorização". O "modelo
profissional",recuperado pelas direcções das grandes empresas constitui
assim, um elemento essencial da integração do sector central. :,

A segunda abordagem, designada por Silvestre (1978, p. 266) como "teorias


da *estratificação* do mercado do trabalho", é, em parte, posterior à
abordagem precedente e já não se referencia à análise marxista. Esta
abordagem é proveniente tanto da obra de Doeringer e Piore (1971) como do
"modelo da competição dos empregos" de Thurow (1972), que constituirá, em
França, uma das referências do modelo da *inégalité des Chances* de R.
Boudon (1973). Ela comporta duas vertentes complementares: uma
microeconómica e microssociológica centrada na *empresa* a partir do
conceito de mercado interno do trabalho; uma outra macroeconómica e
sociológica centrada no *sistema social* definido em termos de
estratificação.

O nível "macro" é teorizado por Thurow de acordo com o modelo da


"competição dos empregos". Ele postura que o rendimento de um trabalhador
é determinado: 1. pela sua posição numa ordem de preferência estável; 2.
pelo tipo de distribuição dos empregos disponíveis. "Os salários são
função das características dos empregos e os trabalhadores estão
distribuídos pelos empregos disponíveis de acordo com a sua posição na
ordem de preferência... Os ajustes do mercado de trabalho traduzem
relações de indivíduos com estratos hierarquizados que os acolhem
selectivamente" (Silvestre, 1978, p. 267). Assim, o espaço dos empregos é
estruturado pelas características de estratificação do sistema social
onde se formam as hierarquias e se distribuem selectivamente os
indivíduos. Considerando a posição social de origem e o nível de diploma
como elementos de base da estratificação, Boudon desenvolveu, nesta base,
o seu modelo das estruturas elementares de mobilidade, dando conta da
permanência da desigualdade das hipóteses sociais apesar de uma redução
relativa da desigualdade das hipóteses escolares (1973).

O nível "micro" parte da distinção entre mercado interno e mercado


externo do emprego que constituem dois espaços articulados de gestão da
não-de-obra O *mercado interno* é definido como "uma unidade de decisão,
tal como uma empresa, onde a repartição do trabalho e a remuneração são
governadas por um conjunto de regras e de procedimentos administrativos"
(Doeringer e Piore, p. 1). O tipo ideal do mercado interno, "tal como o
acesso aos postos elevados, e condicionado pela existência prévia de um
itinerário profissional a todos os níveis de uma organização na qual este
itinerário se constrói". Este espaço de mobilidade, onde "a progressão e
a valorização profissional são construídas na base do diploma e na forma
como é adquirida a experiência profissional", é assim definido com base
no *modelo profissional burocrático no qual o diploma serve para
distinguir os assalariados internos dos externos e a carreira para
assegurar a integração nos objectivos da organização. Estas "vias de
promoção" são, de facto, descritas como "características de uma gestão
administrada da mão-de-obra" pela qual regras rígidas governam,
simultaneamente, a formação dos salários e a distribuição dos
trabalhadores. Os autores insistem no facto de que neste modelo "são os
processos de *formação* e os seus efeitos na *empresa* onde eles se
desenrolam que são importantes para a compreensão do funcionamento dos
mercados internos do trabalho" (Doeringer e Piore, pp. 17-18). Segundo
estes autores, a construção do espaço da mobilidade é um fenómeno de
socialização e o seu :, funcionamento faz parte da organização: "tendo-se
entrado, os postos e as hipóteses de promoção são fortemente determinados
pela estrutura das organizações" (Silvestre, p. 276).
Ao contrário do mercado interno, o "mercado externo" está subordinado à
concorrência (Doeringer e Piore, 1971). De acordo com esta formalização,
as trajectórias de mobilidade são, deste modo, compostas por dois
momentos muito diferentes: o momento que precede "a inserção" que se
desenvolve no "mercado externo" numa situação concorrencial e o momento
da "mobilidade interna". Se se admitir que a concorrência no "mercado
externo" se faz principalmente em função dos diplomas e das
características da formação escolar, a fase de inserção será tanto mais
longa e difícil quanto mais baixo for o nível escolar e quanto mais ou
menos adaptada ao estado da concorrência tiver sido a formação
profissional inicial. De acordo com esta representação, a grande maioria
dos assalariados deveriam, um dia, inserir-se numa forma qualquer de
"mercado interno" e passar de uma fase "de inserção", essencialmente
dependente do nível escolar, para uma fase de "qualificação", comandada
pelas normas formais e informais do "mercado interno", apesar de estes
assalariados multiplicarem os empregos de "espera" e as estratégias de
procura de emprego que incluem a aquisição eventual de formações
complementares.

Assim, a análise "micro" do funcionamento dos mercados internos integra-


se na teoria "macro" da estratificação do mercado de trabalho. Os
estratos hierarquizados do sistema social deveriam corresponder aos
diferentes níveis de emprego constitutivos das diferentes vias dos
"mercados internos". O nível de entrada de um indivíduo dependeria
essencialmente do seu nível escolar e o seu itinerário ulterior seria
determinado pelas regras de funcionamento do "mercado interno" no qual
está inserido. A posição social de um indivíduo num dado momento da sua
carreira resultaria, portanto, da simples combinação do seu nível de
diploma inicial -- ele próprio dependente da posição social de origem
-- com as características do mercado interno (ou: dos mercados
sucessivos...) no qual se encontra (ou: se encontrou sucessivamente).

Nesta formalização, o mercado de trabalho é assim duplamente


estratificado: verticalmente, pelos níveis de diploma que condicionam os
pontos de entrada no mercado de trabalho e reflectem a estratificação
"societal" do sistema social; horizontalmente, pelos tipos de mercado
interno que nos remetem para modos de gestão dos empregos pelas empresas
que condicionam as trajectórias dos assalariados ao longo da carreira e
exprimem as características "económicas" das empresas. De acordo com este
modelo, as desigualdades de salários já não se explicam unicamente pelas
diferenças de investimentos em "capital humano" dos indivíduos, mas
também através das interacções entre estas estratégias individuais e os
modos de estruturação dos mercados internos Os "privilegiados" de certas
categorias profissionais resultariam, assim, da *articulação forte* entre
certas categorias individuais ligadas a características socialmente
valorizadas e certas políticas de gestão interna dos empregos ligadas a
configurações económicas ou políticas particulares.

8.2. Mercado primário e mercado secundário: a hipótese dualista

A formalização do funcionamento do mercado do trabalho muda quando é


introduzida uma descontinuidade mais ou menos radical entre "mercado
primário" e "mercado secundário" (Berger e Piore, 1980). A abordagem,
neste caso, opõe dois tipos de sistemas de emprego que, tendencialmente,
correspondem a dois tipos de processos de trabalho (produção de
massa/produção unitária ou de pequena escala). Nestes autores, esta
distinção traduz uma diferença significativa quanto à *incerteza* do
mercado dos produtos (procura estável e previsível/instável e
imprevisível) e, portanto, das condições de valorização do capital e de
uso da força de trabalho. Para estes autores, o suposto dualismo do
mercado (do produto/do trabalho) tem, *grosso modo*. correspondência na
dimensão das empresas: as grandes empresas interessam-se pelos segmentos
da procura estável e previsível, as pequenas pelas fracções da procura
instável e imprevisível. Corresponde, igualmente, a formas de organização
do trabalho e de modernização tecnológica diferentes. Remete, por fim,
para formas institucionais diferentes: apenas as empresas "dominantes"
possuem um "mercado interno" e formas de regulação conjunta; as empresas
"dominadas" que não possuem esse mercado podem ainda assumir um papel
regulador essencial: o mercado secundário "contribui para a flexibilidade
económica graças à maleabilidade da gestão de mão-de-obra que o sector
primário, confrontado com a amplitude dos investimentos e o poder das
organizações sindicais, não se pode permitir" (*id.* , p. 101). Os dois
sectores são, pois, nesta perspectiva, profundamente complementares mesmo
se entre eles existe uma descontinuidade fundamental tanto no que diz
respeito ao processo de trabalho como à gestão do emprego (Campinos,
Marry, 1986, p. 218).

Uma carácterística importante desta formalização, fortemente ideal-


típica, reside no lugar atribuído à formação na definição distintiva dos
dois mercados e nas modalidades de acesso dos indivíduos àqueles.
Efectivamente, segundo estes autores, as diferenças entre os mercados de
trabalho podem ser explicadas "em termos de meios pelos quais as pessoas
apreendem e compreendem o seu trabalho". Deste ponto de vista, distinguem
dois *processos de aprendizagem* (*learning processes*). "No primeiro, as
pessoas apreendem um conceito abstracto e, quando estão perante uma
operação concreta de trabalho, deduzem a partir dela a forma como
realizá-la", o que pressupõe uma "imagem mental" do produto (*mental
picture of a car*) e o conhecimento dos princípios essenciais que
presidem ao seu fabrico (*rudimentary principies governing its
operation*): a aprendizagem pode ser designada abstracta e a compreensão
de intrínseca. Na modalidade alternativa de aprendizagem concreta e de
compreensão extrínseca, as pessoas apreendem as operações particulares
directamente e organizam-nas mentalmente, em relação a espaços que são
externos ou extrínsecos às próprias operações, por exemplo, em relação a
uma sequência temporal ou a um lugar físico ou social onde as operações
são realizadas" (ia, pp. 19-20). Tendencialmente estas duas formas de
aprendizagem remetem-nos para modos de socialização :, diferentes:
enquanto a formação "*on the job*" é a forma privilegiada da aprendizagem
concreta, a formação formalizada é necessária para a aprendizagem
abstracta. Para além de ser diferente para as empresas o custo destes
tipos de formação, a diferença essencial reside na relação entre o modo
de aprendizagem e o grau de incerteza dos mercados do trabalho, entre
"uma componente estável que está associada a uma divisão relativamente
extensiva do trabalho utilizando recursos altamente especializados e uma
componente instável onde a produção recorre a uma divisão do trabalho
menos articulada e utiliza uma força de trabalho menos especializada e,
consequentemente, com capacidade de mobilidade que permite acompanhar as
flutuações da procura através de uma grande variedade de actividades"
(*id.*, p. 79).

Assim, o "mercado secundário do trabalho" não é, à partida, considerado


como a resultante de um movimento de exclusão do conjunto dos "mercados
internos" considerados como "mercado primário do trabalho", mas como
estruturação de um novo sistema de emprego, alternativo e complementar do
precedente, e baseado em aprendizagens concretas, que permitem uma
adaptabilidade a formas diversas de trabalhos pouco especializados e uma
mobilidade "horizontal" entre empregos instáveis ligados às incertezas do
mercado. O dualismo do mercado do trabalho remeteria, portanto, para dois
modos opostos e funcionalmente ligados de socialização profissional.

Esta perspectiva articula-se, em Berger e Piore, com hipóteses incidindo


sobre a dualidade das estratégias dos indivíduos em matéria de emprego e
de trabalho, bem como sobre os sistemas de representação da actividade
profissional e da articulação dos papéis na esfera do trabalho e fora
dele. Estas hipóteses apontam para a existência de uma forte adequação
entre os modos de funcionamento do "mercado secundário" e estratégias e
representações das categorias culturalmente mais afastadas das formas de
mobilização interna no mercado primário do trabalho: as mulheres, os
adolescentes, os camponeses, os imigrados, os trabalhadores sazonais
(Berger, Piore, p. 18; Campinos, Marry, p. 219). Uma das questões
centrais do movimento de dualização seria, assim, a crescente separação
de dois sistemas de representações das relações entre o trabalho e o não
trabalho, o primeiro sistema tinindo aprendizagem abstracta/mobilização
para o trabalho/carreira e o segundo ligando aprendizagem
concreta/mobilização fora do trabalho/empregos precários.

A diferença essencial com a formalização precedente em termos de


estratificação reside, pois, na concepção que se constrói dos processos
de socialização. Na versão dualista, já não existe *sistema unificado e
estratificado de socialização* mas, tendencialmente, dois modos distintos
e até opostos de socialização, integrando as dimensões familiares,
étnicas, escolares e profissionais. Para uns (predominando no "mercado
primário"), mobilização para o trabalho, integração nacional, diploma
escolar e carreira profissional formam um sistema de representações e de
acção orientado para a estabilidade de emprego e realização profissional.
Para outros (predominando no "mercado secundário"), mobilização familiar,
particularidade étnica, insucesso escolar e ausência de carreira
constituem igualmente um sistema de acção marcado pela instabilidade, a
precariedade e o carácter :,
instrumental do trabalho. Contrariamente às perspectivas da
estratificação, introduz-se uma descontinuidade entre aqueles que se
inserem nos "mercados internos" e aqueles que nunca o conseguem, entre
aqueles que se integram, em graus diferentes, num "modelo profissional" e
aqueles que nunca se integram.

Devemo-nos questionar sobre a pertinência desta dicotomia globalizante:


nem as investigações empíricas nem as sínteses teóricas mais recentes
(Marsden, 1989) (52) parecem validá-la (cf. os exemplos seguintes). Mas
devemos também tomar consciência do ressurgimento de uma oposição
estrutural já assinalada no principio da nossa apresentação do "facto
profissional": qualquer construção de uma organização ou de um mercado de
tipo "profissional" é acompanhada por um processo de exclusão dos "não-
profissionais". O facto de uns gozarem de "direito de integração''
pressupõe que outros não gozem desse direito. Qualquer socialização
profissional é também selecção e, portanto, virtualmente exclusão.

8.3. Mercados do trabalho fechados e modo integrado de socialização


profissional
Num artigo extraído da sua tese sobre a marinha mercante francesa, C.
Paradeise (1984) definiu os "mercados do trabalho fechados" como sendo
"espaços sociais onde a distribuição da força de trabalho pelos empregos
está subordinada a regras impessoais de recrutamento e de promoção". Ela
inclui nos "mercados do trabalho fechados "tanto os "mercados das
profissões liberais" e das "profissões com estatuto nacional" como os
"mercados internos das firmas" e também "um número importante de empregos
privados, localizados num sector, num oficio, numa firma". Atribui-lhes
certas características do ideal-tipo da burocracia como sistema racional-
legal, segundo Max Weber, reconhecendo também que nem todos estes
mercados se integram nas organizações "burocráticas" privadas ou
públicas. A partir do exemplo da marinha mercante, a autora constata,
finalmente, que "a formação constitui a ossatura do mercado sobre a qual
ela age de diferentes maneiras": organizando o acesso aos empregos e
criando uma ligação rígida entre
formação/antiguidade/qualificação/salário, regulando as relações entre os
interesses dos três parceiros (Estado, empregadores, assalariados) e
assegurando "a reprodução orgânica da competência... através de diplomas
dificilmente negociáveis no mercado de trabalho exterior" (*id.*, pp.
356-357).

(52) Marsden, na sua obra, apoiando-se em C. Keir (1954), distingue três


e não dois tipos de mercado do trabalho: os mercados *internos* com
qualificações não transferíveis, os mercados *profissionais* com
qualificações transferíveis e os mercados *ocasionais*.

Não é, pois, a natureza do *trabalho* nem a sua organização, nem mesmo as


suas relações internas que asseguram o "fechamento" deste tipo de
"mercado" institucionalizado. :,
Este "fechamento" é assegurado pelas condições de funcionamento do
sistema *de emprego*, isto é, do conjunto das relações profissionais
institucionalizadas que se organizam à volta de uma "super-regra"
(Reynaud, 1979) que pretende articular os interesses dos trabalhadores
aos dos empregadores "com a ajuda de *procedimentos* que escapam às leis
do mercado liberal". Ora, como assinala C. Paradeise, entre estes
procedimentos os que dizem respeito à formação ocupam um lugar
estratégico para regular o acesso aos empregos, a evolução das carreiras
e as remunerações. Trata-se, portanto, tanto de "sistemas de formação"
como de "mercados primários do trabalho", se definirmos a formação como
um "processo de socialização em meio marítimo" (1983, p. 357), que inclui
tanto formações *iniciais* de inserção no emprego, como "formações em
*alternância* que associam a aquisição dos saberes e dos saber-fazer e
que permitem "a promoção interna efectiva dos assalariados pela
comunicação entre os diversos níveis de formação" e "a caminhada ao longo
de um ciclo de vida que é, também, um ciclo *de aquisição de
experiências*". Podemos, pois, interpretar este "mercado de trabalho
fechado" como um *modo integrado de socialização profissional* que
permite realizar -- em certas condições económicas e demográficas
evidenciadas pela autora -- uma articulação "eficaz" entre os três
"momentos" do processo (formação geral prévia/formação profissional de
acompanhamento de carreira/experiência do trabalho ou do ofício que
constitui "um poderoso argumento de mobilização e de negociação no jogo
institucional"). É esta articulação que permite, nomeadamente, um
funcionamento eficaz da regulação conjunta entre os parceiros implicados.

Esta interpretação daquilo que C. Paradeise chama "mercado do trabalho


fechado" poderia ser transposta para numerosos sistemas integrando
formação, emprego e trabalho como os "sistemas profissionais fechados" de
tipo corporativo, cuja persistência no decurso dos anos 60 e 70 foi
analisada por D. Segrestin (1985). A constatação de que as organizações
burocráticas públicas e privadas souberam perfeitamente integrar este
"modelo" no seu funcionamento, permitindo, assim, a pelo menos uma parte
dos seus assalariados (quadros, nomeadamente), desenvolver uma forte
mobilização para a empresa em troca de perspectivas de carreira e, para
alguns, do acesso a posições de poder. Pode-se também estender este
"modelo" a certas categorias operárias como as da siderurgia onde "a
aquisição da qualificação se identifica com a passagem por diferentes
postos qualificantes e a progressão ao longo de diferentes vias de
empregos" (de Bonnafos, 1985).

Este "modelo" apareceu como um modelo de tal forma geral que chegou a
servir de suporte a numerosas concepções "substancialistas" da
qualificação baseadas na ideia de uma "correspondência estreita entre o
grau de complexidade das tarefas e as competências desencadeadas pelos
trabalhadores na sua execução" (Campinos e Marry, 1986, p. 199). Esta
formalização, seja ela entendida "por referência a uma situação
arquetípica" realizando "a identidade do trabalho e do trabalhador"
através da figura do artesão (Rolle, 1988, p. 46) ou interpretada em
termos de estratégia patronal, destinada a integrar os trabalhadores na
empresa e a assegurar a mobilização produtiva, põe em evidência o
lugar :, estratégico da formação concebida como socialização no trabalho,
na empresa e na carreira gestão do emprego. De facto, é em torno do
controlo das formas e das regras, assegurando as correspondências entre
formação e mobilização no trabalho, por um lado, e formação e progressão
de emprego, por outro, que se estabelecem, sem dúvida, as relações
sociais de trabalho mais decisivas: entre a contribuição salarial
(mobilização no trabalho) e a retribuição patronal (esperanças objectivas
de progressão no emprego). A formação na empresa constitui, assim, a
mediação essencial que assegura, simultaneamente, as condições da
mobilização e as esperanças subjectivas de promoção.

Qualificação e mercado interno de trabalho

Foi, curiosamente, necessário perto de meio século para que a sociologia


francesa do trabalho recuperasse as intuições de P. Naville ligando
estreitamente a qualificação à formação sem dissolver a especificidade da
primeira na generalidade da segunda. De facto, impõe-se constatar, como
J.-D. Reynaud (1987, p. 87), que a grande maioria dos estudos franceses
relativos à qualificação utilizaram, durante mais de vinte anos, "uma
teoria da qualificação incluída no *Traité de sociologia du travail* de
Friedmann e Naville (1961, 1962) e cuja origem se encontra na "segunda
parte dos *Problèmes Humains du machinisme industriel* (1946),
particularmente no capítulo consagrado ao automatismo", e que resume
deste modo: "o estudo das tarefas reais e das tendências da técnica e da
organização" e cuja obra de Touraine *Évolution du travail ouvrier aux
usines Renault* (1955) representava o primeiro exemplo seguido por tantos
outros.

Assim, enquanto os sociólogos do trabalho franceses, partilhando o


movimento de penetração do taylorismo nas empresas francesas e a
transferência dos métodos americanos da *Job Evaluation*, reduziam a
qualificação à qualificação do *trabalho*, e até mesmo do *posto de
trabalho*, os sociólogos da educação abandonavam pura e simplesmente a
noção de qualificação para considerar, tal como Bourdieu e Passeron
(1970), o sistema de formação -- reduzido ao "sistema escolar" -- como um
instrumento da reprodução social, preformando os hábitos da jovem geração
de maneira a corresponderem às exigências dos postos e das funções que
teriam de ocupar em função da sua posição de origem na estrutura de
classe (cf. capítulo 3). Assim, trabalho e formação encontravam-se
dissociados por muito tempo, tal como a qualificação do posto se encontra
dissociada da qualificação individual daquele que o ocupa. Por este
facto, e ao contrário das recomendações de Naville, a "estrutura das
qualificações" na esfera do trabalho e a "estrutura dos diplomas" na
esfera da formação já não eram analisadas em conjunto, mas concebidas
como harmoniosamente preajustadas na esfera do sistema de classes e da
sua necessária reprodução (Bourdieu e Passeron), ou consideradas como
puros jogos inscritos nas relações de força e das lutas sociais
(Touraine).

Um dos interesses mais tangíveis da "teoria" esboçada por j.-D. Reynaud


(1987) é o de romper com esta discrepância, para inscrever a qualificação
no cerne do funcionamento :, do mercado do trabalho, levando em conta os
desenvolvimentos mais recentes da teoria económica examinados
anteriormente.

A elaboração teórica de Reynaud baseia-se num certo número de trabalhos


sociológicos recentes dos quais alguns foram objecto de comunicações nas
Primeiras Jornadas de Sociologia do Trabalho em Nantes consagradas à
qualificação (Dubar, 1987). Por exemplo, o estudo de J. Saglio mostra uma
notável *estabilidade* das qualificações na metalurgia (estruturadas em
torno do operário profissional P1 com um CAP realizado em três anos)
entre 1936 e 1975 num contexto em que os sistemas de trabalho sofriam
profundas alterações. Por exemplo, as investigações evocadas por P.
Tripier (1987) sobre as qualificações dos técnicos de informática mostram
que, para um mesmo posto de trabalho, podem ser nomeados, classificados e
pagos diferentemente (analista e chefe de programa) segundo os diplomas e
o "potencial" daquele que o ocupa. Por exemplo, Margaret Maruani e
Chantal Nicole (1987) mostram, nas suas investigações sobre a organização
de um jornal de província, que as mesmas tarefas são realizadas tanto por
homens como por mulheres, com qualificações e remunerações muito
diferentes porque os primeiros são operários do Livro "protegidos" ao
passo que as segundas são antigas empregadas não protegidas por um
estatuto. Poderíamos multiplicar os exemplos, mostrando que a análise das
tarefas realizadas é radicalmente insuficiente para dar conta das
diferenças de qualificação, e que só é possível compreender os
funcionamentos concretos das qualificações e dos salários em numerosos
ramos profissionais se se tiver em consideração o mercado de trabalho
entendido como "*institutional market*", isto é, um mercado de trabalho
estruturado por relações profissionais mais ou menos institucionalizadas.

Destes diferentes exemplos e mais especificamente das investigações de C.


Paradeise e de D. Segrestin, J.-D. Reynaud retira um "esboço de teoria"
organizado em quatro tempos que reproduzimos aqui de uma forma aproximada
(1987, pp. 86 e seguintes). A qualificação é definida como:

1. *uma regulação contínua*: considerada como "resultado da combinação


das estratégias patronais e salariais que dizem respeito à organização de
um mercado de trabalho específico e concreto; as regras dizem respeito às
condições de acesso ao emprego, de segurança de emprego, de evolução de
carreira; resultam da interacção entre regras impostas pelos empregadores
e regras que visam proteger certas categorias de assalariados; as regras
podem ir até à "modelação" da formação e à abolição dos diplomas que a
sancionam, podem estar parcialmente implícitas e exprimir
"regularidades nacionais" que se imponham às duas partes;

2. *produto de um mercado interno do trabalho* no sentido de Doeringer e


Piore (1971): implicando uma parte de gestão administrada das carreiras,
e oportunidades de promoção, do futuro profissional das pessoas em causa;
implicando vias de emprego fortemente controladas e dependentes da
organização da produção no sector em :, causa; implicando um controlo, da
parte do Estado, dos diplomas que dão acesso a um sector; implicando um
peso muito grande da formação, da especialização e da hierarquia dos
diplomas na organização do trabalho;

3. *ligada a um tipo de organização da produção*: o que leva a verificar


que a regulação conjunta que está na origem do sistema de qualificação é
igualmente estruturante da organização da produção; o que conduz a
procurar modelos de regulação capazes de estruturarem, simultaneamente, a
organização da produção e a hierarquia das qualificações, portanto de
igual modo, a organização da formação mesmo "sector";

4. *produzida pelo sistema de relações profissionais*: ultrapassa


largamente a negociação formal dos parceiros sociais e "assenta numa
cultura profissional e na afirmação de um actor colectivo" (p. 104);
trata-se de uma "regulação complexa que não está ligada à negociação
colectiva tradicional e que aí se exprime só em parte".

Este modelo teórico, que faz da qualificação o produto de uma


socialização profissional integrada num "mercado interno" do trabalho,
coloca, na própria opinião do autor, a questão da sua generalização aos
sectores onde existem "mercados externos do trabalho com fraca regulação
para a mão-de-obra banal". Deveremos considerá-los como não abrangidos
pela qualificação ou como desencadeando um outro modelo de socialização
profissional?

No seio da sociologia do trabalho e das relações profissionais,


encontramos a questão que foi anteriormente colocada pelos economistas
que construíram um modelo de dualismo do mercado do trabalho. Serão os
assalariados, que não acedem a um "mercado fechado", empregados,
"independentemente de qualquer processo de socialização profissional num
conjunto mais integrado" (Silvestre, 1978, p. 282) ou estarão eles
dependentes de um outro "processo de socialização baseado noutros
mecanismos de aprendizagem" (Berger e Piore, 1980)?

8.4. Mercados secundários do trabalho e modo alternativo de socialização


profissional?

Quando uma fracção de jovens correm o risco de não aceder, ao longo da


sua vida activa, a qualquer "mercado fechado do trabalho" e, portanto, a
nenhum estatuto profissional estável, e quando um grupo de trabalhadores
idosos corre o risco de ser precocemente excluído, como se deve
interpretar a multiplicação das acções de formação que lhes estão
destinadas em todos os países industrializados?
As investigações sobre esta questão são tão recentes como o próprio
fenómeno. No entanto, é indiscutível que se assiste, desde o fim dos anos
70, à emergência de inúmeros :,
dispositivos de formação, cada vez mais complexos, destinados quer a
favorecer a inserção dos jovens com menos habilitações quer a reconverter
os trabalhadores vitimas de despedimentos quer a ajudar os desempregados
de longa duração a reinserirem-se no mercado de trabalho (Dubar, 1985,
segunda edição, capítulo 6). As populações a quem se dirigem estes
dispositivos es ao em situações de *exclusão* não apenas profissional,
mas também social e escolar: a sua formação, fora do emprego, mas também
da escola, não pode ser apoiada geralmente na experiência directa do
trabalho (a não ser sob a forma de "estágios práticos" que originam
muitas vezes apenas uma inserção truncada nos colectivos de trabalho) e
pode dificilmente estruturar-se a partir de aprendizagens cognitivas
formalizadas em cursos coerentes (a não serem algumas experiências
"pesadas" de tipo "remediação cognitiva"). A sua socialização
profissional aparece, pois, fortemente problemática' tanto do ponto de
vista "estrutural" da sua inserção no emprego como do ponto de vista
"biográfico" da sua construção de uma competência reconhecida.

As investigações em curso não permitem responder à questão inicial: que


formas alternativas de socialização permitirão uma inserção no "mercado
secundário do emprego" que não esteja marcada pela instabilidade
permanente e pelo seu ciclo: trabalhos precários/períodos de
desemprego/estágios de formação? Não se pode, contudo, negar os esforços
empreendidos pela maioria dos Estados para tentar construir dispositivos
múltiplos destinados a atingir este objectivo. As formas institucionais
de estruturação desta "transição profissional" (Rose, 1984) são variáveis
de acordo com o país e os públicos-alvo, mas elas manifestam sempre uma
responsabilidade acrescida dos organismos de gestão do emprego na
problemática da "exclusão" (em França é, nomeadamente, o caso da ANPE).

Numa investigação colectiva, levada a cabo junto de jovens desempregados


de um dispositivo de inserção social e profissional (Dubar *et alii*,
1987), são analisadas as representações que estes jovens têm do trabalho,
do emprego e da formação (cf. terceira parte). A maioria deles parecem
excluídos há muito tempo do acesso a qualquer forma de mercado fechado do
trabalho e referem-se a formas de emprego ("biscates") e de formação
("diplomas de cursos de pequena duração") muito distantes das que regem a
evolução dos mercados internos do trabalho nas grandes empresas. Apesar
de tudo, as suas representações não são homogéneas e a análise não
permite validar a hipótese de um dualismo nítido (cf. terceira parte).

Se concluímos a pesquisa citada admitindo a hipótese de emergência de um


novo modo de socialização que designámos "pós-escolar", foi porque os
materiais recolhidos tinham permitido, simultaneamente, discernir
elementos de constituição de um novo sistema de formação (estágios em
alternância, procedimentos de acolhimento, informação, orientação,
estágios em empresas...) e discernir a multiplicação de novas
trajectórias que combinam períodos de desemprego, empregos precários e
estágios de formação de diversos tipos (inserção, qualificação,
adaptação). E se devemos manter-nos prudentes quanto à interpretação
deste novo processo, é porque ele não está, ainda, completamente :,
institucionalizado em França. O modelo do "mercado secundário" não remete
ainda para nenhuma instancia claramente definida de estruturação: a rede
localizada dos "actores" institucionais (organismos de formação,
administrações, pequenas empresas "dominadas", municípios...) não pode
ainda ser considerada como um suporte coerente do novo modo de
socialização em gestação. Isto pressuporia, com efeito, que os diferentes
momentos do processo (formação geral, formação profissional, formação
prática) pudessem ser coordenados de maneira eficaz em torno de numa
instancia que assegurasse a regulação do conjunto. Não é manifestamente,
ainda, o caso, apesar de as tendências de estruturação se desenvolverem
aqui e acolá.

Se esta hipótese se confirmasse no futuro, assistir-se-ia a uma


importante mutação da socialização profissional que seria acompanhada por
uma dualização crescente do mercado do trabalho. Ao lado do reforço de um
modo "integrado" de socialização construído em torno da grande empresa
dos sectores ou das "profissões", constituir-se-ia então um modo
"alternativo" de socialização centrado no tecido das PME dominadas e no
aparelho estatal de tratamento social do desemprego largamente
centralizado. Os dois espaços sociais correspondentes a estes dois modos
de socialização seriam profundamente diferentes e até mesmo opostos: as
relações trabalho/fora do trabalho, estabilidade/progressão,
reconhecimento/não-reconhecimento não poderiam ser as mesmas das que
regem os "mercados fechados". Então, quais as formas que poderiam
assumir? Seriam as que caracterizam os "mercados abertos" mais
concorrenciais e mais flexíveis (Piore e Sabel, 1984)? Seriam novas
formas de mercados fechados com uma regulação conjunta e mais
individualizada (Reynaud, 1989)? Este é um desafio essencial às políticas
económicas e sociais neste fim de milénio.

8.5. Mobilidades profissionais e mercados do trabalho: uma investigação


empírica

Se existem correspondências entre as características de emprego dos


indivíduos e os modos de funcionamento dos mercados de trabalho nos quais
se encontram, como as apreender empiricamente? Como relacionar
"segmentos" típicos do mercado de emprego com "formas" significativas de
mobilidade? Escolhemos uma investigação norueguesa como exemplo das
complexidades metodológicas e dos contributos sociológicos deste tipo de
abordagem. Esta investigação tinha um objectivo essencial: evidenciar as
relações que existem entre perfis de assalariados e modos de gestão do
emprego pelas empresas. Procura-se, por isso, ligar empiricamente as duas
significações do conceito de socialização profissional que repetidamente
temos procurado distinguir e articular:

-- a estruturação das actividades pelos empregadores;

-- as trajectórias e as estratégias de emprego dos


indivíduos. :,

A. L. Stinchcombe (1979): Tipos de mobilidade e segmentos do mercado do


trabalho na Noruega (53)

(53) Agradeço a C. Paradeise e a P. Bernard terem-me dado a conhecer esta


investigação.

A investigação consiste numa análise secundária de dados estatísticos


incidindo sobre uma amostra de cerca de 7000 indivíduos, compostos por
três coortes de activos, que nasceram, respectivamente, em 1921, 1931 e
1941 e que foram interrogados acerca da sua mobilidade profissional
(mudanças de empregos, de empregadores, de ramos...) desde a sua entrada
no mundo do trabalho até à data do inquérito (1971). A pergunta à qual o
autor tenta responder é a seguinte: em que é que a segmentação do mercado
do trabalho, segundo grandes tipos de funcionamento, influencia a
mobilidade profissional e social dos indivíduos? Para responder, o autor
constrói uma tipologia dos sectores de actividade, cruzando
principalmente a situação dominante do mercado dos produtos
(concorrência/monopolista; parcial ou total) e as características
dominantes da gestão dos empregos (recrutamento de diplomados ou
não/sectores de promoção/segmentação interna...). Chega assim a sete
tipos (cf. encaixe 8.1.) que vão desde o sector primário tradicional
(agricultura, pesca, caça...) até ao sector dos serviços burocráticos,
que lhe permitem um reagrupamento das nomenclaturas dos sectores. De
seguida, analisa os grandes movimentos de mobilidade em função da idade e
do ano de nascimento, pondo em evidência estruturas permanentes de
mobilidade de acordo com a idade e que permitem validar a hipótese de uma
dupla origem da mobilidade: a procura de melhorar o emprego no mesmo
sector ou tipo de actividade valorizando a experiência (crescimento da
mobilidade com a idade) e a procura de melhorar o emprego na ausência de
perspectivas no sector (mobilidade forte desde o princípio da carreira).
Chega a um modelo que distingue quatro tipos de movimentos significativos
válidos, cada um deles, por cinco anos:

-- um modelo característico dos "mercados abertos" que implica uma forte


mobilidade externa, que cresce com a idade ("quanto mais idade se tem,
menos tempo se permanece no mesmo emprego");

-- um modelo característico dos "mercados internos" que implica uma


elevada taxa de mobilidade sem que haja mudança de empregador e,
consequentemente, baixas taxas de mobilidade externa;

-- um modelo típico dos "mercados profissionais" que implica elevadas


taxas de mudança de empregadores ou de sectores acompanhadas da
permanência no mesmo tipo de actividade;

-- um modelo marcado pela ausência de qualquer mobilidade significativa.

Stinchcombe constrói a seguir indicadores que permitem associar cada um


dos sete tipos de sectores a estes grandes modelos de mobilidade. Define,
desta forma, duas dimensões empiricamente mensuráveis de estruturação dos
mercados do trabalho: :,

-- a *continuidade* dos empregos medida pela taxa de assalariados que


nunca mudaram de tipo de trabalho (categoria) durante os cinco anos,
mudando de empregadores mas mantendo-se no mesmo ramo: uma taxa elevada
(+ 42%) é o índice de uma forte estruturação interna do sector;

-- o *fechamento* do mercado do trabalho medido pela taxa de assalariados


que ficam no mesmo ramo mudando de empregador: uma taxa de mais de 30% é
o índice de um mercado "relativamente fechado".

O cruzamento destas duas dimensões leva a um quadro te rapolar no seio do


qual cada tipo de sector é caracterizado, simultaneamente, por um modo de
estruturação do mercado do trabalho (relativamente aberto ou fechado) e
um tipo de mobilidade de emprego (continuidade ou descontinuidade):
-- os mercados relativamente fechados com forte continuidade de ocupações
caracterizam tanto os "serviços profissionais" (ex.: educação,
publicidade, saúde...) como as "pequenas empresas com trabalhadores
qualificados" (ex.: mecânica...);

-- os mercados preferencialmente fechados com forte de continuidade de


ocupações caracterizam os "serviços burocráticos" (ex.: exército,
polícia...);

-- os mercados preferencialmente abertos com forte continuidade de


ocupações caracterizam as grandes empresas dos sectores fortemente
capitalistas;

-- os mercados preferencialmente abertos com forte de continuidade de


ocupações caracterizam os sectores capitalistas clássicos (bens de
consumo...), o pequeno comércio e os serviços, assim como o sector
primário tradicional.

O quadro 8.2. resume as relações entre os quatro tipos de mobilidade que


correspondem a estes quatro tipos de mercado do trabalho e as
percentagens estatísticas a que chegou no inquérito.

Encaixe 8.1.

Classsificação dos sectores em sete tipos


segundo Stinchcombe (1979)

:::::::::::
1. Sector primário "tradicional" :o exemplo: pesca/agricultura:

-- propriedade familiar, pequenas empresas, fracos investimentos;


-- sector primário "pequeno-burguês":

a) recrutamento entre as famílias já ingeridas no ramo,


b) declínio do emprego. :,

2. Sector "capitalista" clássico (concorrencial) :o exemplo: têxtil:

-- pequenas firmas em competição no mercado dos produtos (MdP)/força de


trabalho pouco qualificada/grande proporção de grupos
desfavorecidos/baixos salários;

-- indústrias de bens de consumo onde a competitividade no MdP é


assegurada graças ao emprego de trabalhadores desfavorecidos.

3. Sector competitivo com mercados locais e trabalhadores qualificados :o


exemplo: BTP/metalurgia/tipografia:

-- monopólio parcial no MdP combinado com uma mão-de-obra qualificada (e


organizada);

-- organização de oficio (*Craf*) no mercado do trabalho (MdT).

4. Sector capitalista com mercado alargado com trabalhadores qualificados


e organização burocrática :o exemplo: química/p e T (Correios e
Telecomunicações):
-- monopólio quase total no MdT por razões diversas/salários acima da
média;

-- carreiras estáveis para trabalhadores qualificados e para engenheiros


e investigadores profissionais: mercado fechado com duas linhas de
carreira para execução/enquadramento;

-- combinação entre regras de antiguidade e de formação: mercado


"interno".

5. Sector do comércio e serviços "pequeno-burgueses" e competitivos :o


exemplo: comércio de retalho/serviços a particulares:

-- competitivo nos mercados locais, pequenas unidades (comércio de


retalho), não-assalariados ou empregados de PME;

-- carreiras limitadas mas educação reconhecida.

6. Sector dos serviços "profissionais" (profissões liberais e


intelectuais) :o exemplo: artistas/médicos liberais:

-- "profissionais" com estatutos obtidos pela educação e reconhecidos nas


diversas organizações;

-- não integrados em organizações burocráticas.

7. Sector dos serviços "burocráticos" :o exemplo: bancos-


seguros/escolas/hospitais:

-- tendência para o monopólio, para a gestão e para a não-produção;

-- estrutura alargada de carreiras burocráticas transversais às


organizações. :,
:::::::

Quadro 8.2.

Combinação dos dois indicadores de mercados sectoriais segundo


Stinchcombe (os algarismos reenviam à nomenclatura do encaixe 8.6.)

:::::::
Continuidade de tipo de emprego

+ (42% e mais) na mesma categoria:

-- Fechamento do Mercado do Trabalho:


(+30% no mesmo sector)
6. Mercados profissionais e internos
3.

-- (-30% no mesmo sector)


4. Mercados internos

- (menos de 42%):
-- Fechamento do Mercado do Trabalho:
(+30% no mesmo sector)
7. Mercados profissionais

-- (-30% no mesmo sector)


2.
5. Mercados abertos
::::::

Em conclusão, Stinchcombe considera ter validado a hipótese segundo a


qual "a teoria do estatuto atingido (*attainment status*) deve ser
considerada como uma teoria daquilo que os empregadores admitem ser
válido e, só secundariamente, como uma teoria daquilo que os
trabalhadores possuem como características julgadas válidas pelos
empregadores" (pp. 241-242). Os constrangimentos estruturais dos mercados
do trabalho, através dos sectores, são largamente preditivos dos
percursos de mobilidade dos assalariados presentes. A investigação indica
em todo o caso uma (bastante) forte correspondência entre os tipos de
organização dos mercados do trabalho e os tipos de mobilidade dos
assalariados. Ela vai ao encontro dos resultados obtidos por outras
investigações, nomeadamente francesas (Desrosières, Gollac, 1982).
Permite, pois, reforçar a hipótese de quatro modos de socialização
profissional que produzem quatro configurações identitárias típicas das
quais vamos apresentar as características mais pertinentes na última
parte.

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III

:a dinâmica das identidades profissionais e sociais

Introdução à terceira parte

Os quatro capítulos que finalizam esta obra (54) apresentam quatro


configurações identitárias, baseadas num conjunto de investigações
empíricas, exclusivamente francesas, realizadas entre o início dos anos
60 e o fim dos anos 80. Privilegiam os resultados de uma investigação
colectiva recente levada a cabo pelo LASTREE com a colaboração de outros
investigados (55), centrada na análise aprofundada de inovações de
formação em seis grandes empresas privadas em mutação rápida (LASTREE,
1989). Estes resultados assentam na análise tipológica de 159 entrevistas
de tipo não directivo (Michelat, 1975), conduzidas junto de amostras
aleatórias de assalariados (de OS a técnicos, agentes técnicos e quadros
médios) implicados nestas "inovações", isto é, incitados a formarem-se
para mudar as suas atitudes no trabalho, alargar ou modificar as suas
competências e, por vezes, mudar de emprego, de serviço ou de
estabelecimento.

(54) As referências bibliográficas aparecem no fim do capítulo 12.

(55) A investigação, intitulada "Production et usage de la forTnation par


et dans l'entreprise" e realizada entre 1986 e 1988, foi financiada pelo
PIRTTEM (CNRS), a Délégation à la Fòrmation Professionnelle, o
Commissariat Général au Plan, a Région Nord-Pas-de-Calais e reunia, para
além dos sociólogos do LASTREE, economistas do trabalho e especialistas
de ciências de gestão.

As entrevistas exploram três domínios essenciais: o "mundo vivido do


*trabalho*", a trajectória socioprofissional e, nomeadamente, os
movimentos de *emprego*, a relação dos assalariados com a *formação* e
especialmente a forma como aprenderam o trabalho que fazem ou o que vão
fazer. É na intersecção destes três campos que é definida a identidade
profissional destes assalariados concebida, simultaneamente, como uma
*configuração* apresentando uma certa coerência típica e como uma
*dinâmica* implicando evoluções significativas, em resposta às mutações
da empresa.

Os resultados desta investigação são, num primeiro momento, aproximados


dos obtidos por outras investigações precedentes do LASTREE,
nomeadamente, da investigação :,
levada a cabo em dois centros de produção nucleares no decurso dos anos
1983-1984 (Dubar, Engrand, 1986) e da conduzida junto de uma amostra de
jovens não diplomados que estavam integrados num dispositivo de inserção
social e profissional para os jovens de 16-18 anos (Dubar *et alii*,
1987). Estas duas investigações, embora utilizando muito pouco a noção de
identidade, levavam igualmente à construção de quatro tipos de atitudes
ou de "lógicas de acção" combinando relações com o trabalho e com a
qualificação, trajectórias de emprego ou de desemprego e orientações
sobre a formação. Confrontando estas três investigações, podemos
verificar a relativa convergência dos principais resultados.

Estes vão ao encontro das conclusões de inúmeras outras investigações


sociológicas, recentes ou mais antigas, centradas nas empresas, por
exemplo: as consagradas aos assalariados (operários ou técnicos) da
siderurgia (de Bonnafos, 1988; Agache, 1993); a que foi conduzida pela
equipa do GLYSI a propósito das relações dos operários com as máquinas
(Bernoux *et alii*, 1984); outras, mais antigas, conduzidas por
Sainsaulieu junto de inúmeras empresas públicas ou privadas (Sainsaulieu,
1977); outras, ainda mais antigas, conduzidas por O. Benoìt-Guilbot e M.
Maurice junto dos assalariados da EDF (1965) ou por Claude e Michelle
Durand junto de uma amostra de grandes empresas durante a década de
sessenta (1971). As investigações integram também análises consagradas a
categorias daqueles que não têm emprego: os despedidos por razões
económicas abrangidos pela reconversão tecnológica (Cherain, Demazière,
1989), desempregados de qualquer tipo (Schnapper, 1981), desempregados de
longa duração (Demazière, 1992), assalariados reconvertidos (Lerolle,
1991), reformados (Guillemard, 1972), jovens em formação profissional
inicial (Baudelot, 1988; Haicault, 1969; Abboud, 1968). Em qualquer dos
casos -- e independentemente dos métodos utilizados -- as investigações
evidenciam diferenciações de atitudes, de opiniões, de horizontes dentro
das mesmas categorias quando confrontadas com mudanças importantes
(transformações do trabalho, dos modos de gestão do emprego, das
políticas de formação) ou quando se defrontam com novas situações
(inserção profissional, desemprego, reforma compulsiva...).

Os capítulos que se seguem retomam elementos significativos destas


investigações para os interpretar em termos de identidade profissional de
acordo com a problemática e as categorias definidas na primeira parte
(cf. capítulo 5) e enriquecidas pela segunda parte. Estes capítulos
apresentam cada configuração identitária como a resultante de uma dupla
transacção, por um lado, entre o indivíduo e as instituições
(nomeadamente a sua empresa) e, por outro, entre o indivíduo confrontado
com uma mudança e o seu passado. Descrevem as identidades como sendo
produzidas pela articulação de uma identidade (virtual) atribuída pelo
outro e de uma identidade (virtual) para si construída através da
trajectória anterior. Estes últimos capítulos dedicam-se, ainda, a
esclarecer a relação entre as gerações ao comparar, à distância de vinte
e cinco anos, as atitudes dos jovens confrontados com o mercado do
trabalho. :,

Do modelo de retirada ao processo de exclusão: a identidade do executante


"estável" ameaçado

9.1. A identidade para outro: a exclusão fora do modelo da competência

"São os OS saídos da escola por causa do insucesso escolar, não motivados


para a formação, incapazes de olharem para o futuro (incapazes de
atribuírem valor a si próprios/incapazes de efectuarem um cálculo
elementar), que não têm o hábito do rigor e da precisão (porque a empresa
apenas fabricava produtos de baixa qualidade), que não sabem controlar o
seu próprio trabalho e que são difíceis de mobilizar depois de décadas de
taylorismo." Esta frase de um director técnico, recolhida durante um
inquérito sobre as transformações recentes de uma empresa de mobiliário e
de decoração (Zarifian, 1988, p. 78) resume de forma notável a
*identidade para outro* atribuída por certos responsáveis de empresas
àqueles que são julgados *a prior*) desprovidos das "novas competências"
que a empresa do futuro exige, e considerados como incapazes de as
adquirir. Em todas as empresas inquiridas, alguns dirigentes ou quadros
hierárquicos disseram estar convencidos que uma parte do seu pessoal era
incapaz de "seguir as evoluções em curso e de beneficiar de formações de
actualização. Os chamados OS, de "baixo nível de qualificação" (BNQ),
"operários de limpeza", mas também, por vezes,"executantes" e até mesmo
simples "operários" dão azo, cada vez mais, a *actos de atribuição* que
visam categorizar (etiquetar) não só um conjunto de postos de trabalho
definidos a partir de tarefas prescritas, mas também um conjunto de
indivíduos considerados desprovidos das capacidades exigidas para mudar
as suas atitudes no trabalho, para acederem à formação e para
desenvolverem as suas competências profissionais. São assalariados que,
tendo sido contratados pela :, empresa para ocupar postos de trabalho
para os quais foram, então, julgados aptos, são considerados virtualmente
como *incompetentes* para cumprir qualquer que seja a função na empresa
do futuro. Esta "identidade social virtual" (cf. capítulo 5), assumindo a
forma de um julgamento antecipado de incompetência, resulta de uma
transformação do modelo de gestão do pessoal que substitui a cotação dos
postos de trabalho pela apreciação dos "potenciais" dos indivíduos, o que
P. Zarifian chama "o modelo da competência" (1988, pp. 77 e ss). E se
estes assalariados são considerados implicitamente "sem potencial" é
porque, em geral, não manifestaram indícios de uma mobilização mínima
para a empresa, de uma "boa vontade" de participação nas iniciativas
impulsionadas pela direcção ou pela hierarquia (círculos de qualidade,
grupos de progresso, reuniões de informação, etc.), de uma "conversão"
mínima às novas normas, muitas vezes informais, de trabalho ou de
relação. Acrescenta-se a tudo isto, por vezes, a existência de estigmas
(alcoolismo, absentismo, grosseria...) que reforçam as etiquetagens
constitutivas desta identidade virtual de incompetente, isto é, inapto
para produzir os indícios da vontade para adquirir as competências
futuras...
9.2. A identidade "biográfica" para si: saberes práticos e estabilidade
de emprego

Entre os indicadores cada vez mais privilegiados pelas empresas "em


mutação", a participação voluntária em diferentes formações, que
comportem sequências de "actualização", de "reciclagem" ou de
"sensibilização", é cada vez mais valorizada. Ora, a principal
característica comum a todos os assalariados que relevam desta lógica, em
todas as empresas inquiridas, é nunca terem pedido, por iniciativa
própria, desde a entrada na empresa, para seguir uma formação, e não
poderem conceber que uma formação que assuma totalmente ou em parte uma
forma escolar lhes pudesse ser destinada e até mesmo benéfica. A sua
identidade de trabalhador ou de trabalhadora, a sua *identidade para si*,
forjou-se na aprendizagem da tarefa, na aprendizagem directa do trabalho
("aprende-se olhando e tocando"), na aquisição de *saberes práticos* na
experiência directa das tarefas a cumprir. Mesmo naqueles que ocupam
empregos melhor classificados -- empregados, contramestres e mesmo
técnicos --, o discurso sobre o modo como aprenderam o seu trabalho, o
seu posto ou a sua função, está desconectado dos conhecimentos escolares
considerados sistematicamente inúteis para exercerem a função que ocupam.
O seu *julgamento* de pertença muitas vezes expresso por um "nós" anónimo
reenvia para o colectivo daqueles que fazem o mesmo trabalho e que
aprenderam da mesma forma, no interior do mesmo espaço restrito, os
gestos e as relações de trabalho (LASTREE, 1989, pp. 362-368).

Por essa razão, não podem imaginar diferenciarem-se dos seus pares ("os
compinchas", "as companheiras", "os outros"...), para irem sozinhos para
uma formação voluntária que não seja imediatamente necessária ao trabalho
e que corre o risco de levar a um insucesso. Aceitam perfeitamente a
ideia de uma formação como obrigação interna e :,
colectiva, ligada, por exemplo, à introdução de novas máquinas ("formam-
nos") mas as formações "inovadoras" não entram neste quadro. Aliás, na
grande maioria dos casos, o seu superior ("o chefe") não lhes propôs
pessoalmente estas formações: não são excluídos voluntariamente das
formações "inovadoras", não se sentem implicados nelas não só porque elas
não têm nenhuma relação visível com o seu trabalho, mas porque eles não
podem esperar nada em contrapartida... e, pelo contrário, têm tudo a
recear (o insucesso).

É aqui que encontramos a segunda característica comum a todos estes


indivíduos das seis empresas: não esperam qualquer evolução profissional,
nem têm outra perspectiva profissional senão a de se manterem no seu
emprego e sobreviver na empresa. Não tendo recebido formação profissional
inicial (ou muito incompleta ou numa especialidade sem relação com o
emprego), não tendo recebido formação contínua, só tendo conhecido
mobilidades impostas, estando fortemente subordinados ao posto ou à
função, não estando inseridos em redes que permitam uma acumulação de
saberes técnicos (56), não conseguem projectar-se em nenhuma ocupação
interna ou externa à empresa. A única evocação de futuro é a reforma
mesmo quando ainda não têm 40 anos: estão persuadidos de que nenhuma
reconversão lhes é acessível e que a única hipótese de manter o emprego é
a procura da manutenção de uma estabilidade que eles valorizam de todas
as formas possíveis. Querem ser reconhecidos no seu posto, no seu
emprego, no seu trabalho; não podem imaginar que a empresa o possa
suprimir porque se *identificam* com ele e consideram esta eventualidade
como uma sanção intolerável ("não podem fazer-me isso"). A *estabilidade*
ligada ao desempenho do trabalho e adquirida pela experiência é, aliás,
para eles, um valor essencial: são "sempre os mesmos que mudam", os que
nunca conseguem fazer nada "em condições", os que são instáveis,
imaturos. A mudança é uma sanção e não um progresso porque destrói os
saberes práticos acumulados e incorporados com a experiência, a qual
permite o aperfeiçoamento pelo domínio de todas as possibilidades perante
a mesma situação "concreta" de trabalho (LASTREE, 1989, pp. 86-387).

(56) a junção entre "mobilidade experimentada" e "ausência de acumulação


de saber" leva os investigadores do glysi a apelidá-los de "aventureiros"
(bernoux *et aliii*, 1984.)

9.3. A identidade "relacional" para si:


Dependência do chefe e trabalho instrumental

O seu espaço potencial de reconhecimento situa-se, pois, no interior da


situação concreta de trabalho: o posto, o atelier, o escritório, talvez o
serviço, mas nunca a empresa. Esta é uma entidade abstracta que os
ultrapassa e que suscita incerteza ("não estamos informados"),
desconfiança ("os grandes escritórios") e reacções defensivas ("o que ai
se trama..."). A empresa nunca intervém na definição que dão de si
próprios. A relação estruturante da sua identidade é a que mantêm com o
superior directo ("o chefe") e é também um ponto comum a todos os
indivíduos deste tipo. Esta relação é, antes de mais, uma :, relação de
grande dependência: é o chefe que lhes distribui o trabalho, que aprecia
o resultado e que atribui eventuais prémios, é em torno dele que toda a
vida do trabalho se organiza. Mas esta relação parece, também,
desestabilizada pelas evoluções em curso e pelas inovações analisadas: de
uma relação personalizada, por vezes de tipo paternalista, passa-se a uma
relação mais anónima, considerada ameaçadora e, por vezes,
estigmatizante. A maior parte dos assalariados deste tipo sentem-se
postos em causa no trabalho sem conseguirem encontrar as razões. Pede-se,
por exemplo, para mudarem de posto, e eles sentem esta incitação como uma
sanção não merecida. Sentem-se atingidos no seu próprio reconhecimento e
ameaçados pelas experiências em curso. Estas parecem-lhes opacas,
incompreensíveis, inaceitáveis. Essas experiências acentuam a distância
com "o chefe" e acabam por provocar divisões internas no grupo, que vão
prejudicar o "bom ambiente". Conduzem, amiúde, a um sentimento mais ou
menos afirmado de mal-estar e mesmo de marginalização e, por vezes, de
exclusão quando os despedimentos são sugeridos.

Este sentimento é avivado pelo facto de as "inovações" não serem


acompanhadas de uma contrapartida financeira. Ora, qualquer contribuição
suplementar para a empresa só tem sentido para eles se for acompanhada
por uma retribuição correspondente: "Se o trabalho muda, o salário deve
mudar; se não muda, nós não temos razão para mudar." A sua fraca
retribuição monetária pode, aliás, ser analisada como a contrapartida de
uma fraca contribuição, pelo menos julgada enquanto tal pelos chefes
(Benoìt-Guilbot, 1965). Está aqui em causa a última característica comum
àqueles que partilham esta identidade e que designámos de relação
instrumental -- "economista" no sentido dado por Touraine (Touraine,
Ragazzi, 1961, pp. 37 e seguintes) -- no trabalho, isto é, o facto de
todos dizerem que trabalham "para ganhar a vida" e se esforçam, antes de
mais, "por fazer o que devemos para o que nos pagam". Esta dimensão da
sua identidade privilegia radicalmente a transacção objectiva (equilíbrio
contribuição/retribuição) em relação à *transacção subjectiva* (relação
passado/futuro vivida em termos de estabilidade e de reprodução), o
contexto espacial (espaço de investimento e de reconhecimento) em relação
ao contexto temporal (a vida profissional não vivida em termos de
progressão ou de carreira). É por isso que a relação trabalho/fora do
trabalho está no centro da sua identidade e não pode ser analisada sem
ter em conta as relações sociais de sexo no seio da fami1ia e do
colectivo de trabalho.

Verificam-se, de facto, diferenças significativas entre identidades


masculinas e femininas embora se refiram à mesma lógica geral. O universo
familiar e doméstico interfere muito mais vezes com o universo de
trabalho no discurso das mulheres, mas elas são menos reticentes à ideia
de formação
-- mesmo geral -- do que os homens. Quanto aos homens -- sobretudo os
mais idosos --, as diversas componentes da identidade (estabilidade do
emprego/aprendi agem na tarefa/dependência em relação ao chefe/relação
instrumental no trabalho) formam uma espécie de "sistema fechado" que
integra uma representação muito tradicional da fami1ia e da divisão
sexual do trabalho (defesa ou nostalgia da mulher doméstica, ausência de
partilha das tarefas domésticas, dependência material...). Neste senado,
não se pode falar, em relação a eles, de verdadeiro investimento fora do
trabalho. Quanto às mulheres -- sobretudo as mais jovens --, as
características identitárias :, parecem menos integradas e a
eventualidade de evoluções posteriores está mais frequentemente presente
em relação com o seu papel maternal: "quando as crianças crescerem...",
"se o meu marido estivesse mais presente...", "se pudesse encontrar uma
solução...", a ideia de mudar de emprego, de entrar em formação, de fazer
um outro trabalho não é totalmente abandonada. Existe um outro obstáculo
muitas vezes invocado pelas mulheres deste primeiro tipo: o seu nível
escolar fraco, associado a uma falta de autoconfiança e a um receio das
situações escolares. A entrada em formação exige-lhes mediações
particularmente difíceis como o testemunha esta frase de uma operária
têxtil: "Não tenho cabeça para aprender... porque eu sei muito bem que
não vou conseguir... Se querem verdadeiramente ensinar-me, que me ensinem
ao lado da minha máquina... com uma operária como sempre fiz" (LASTREE,
E. Dubar, p. 236).

9.4. Uma identidade de classe ou de fora do trabalho?

A identidade assim esboçada neste primeiro inquérito põe em evidência,


tanto nos homens como nas mulheres, uma forte dualidade entre uma
identidade social virtual de *excluído* e uma identidade social real de
assalariado *executante estável*, trocando a força do seu trabalho por um
salário. É uma configuração identitária muito similar à que designámos de
*operário tradicional* na análise da relação à formação dos assalariados
das centrais nucleares (Dubar, Engrand, 1986, p. 45). Estando o risco de
exclusão aqui praticamente ausente, pelo facto de existir um estatuto, as
características evidenciadas assemelham-se muito às que caracterizam os
assalariados precedentes antes da realização das "inovações":

-- fraca implicação na actividade profissional e na relação


"instrumental" com o trabalho;

-- valorização do "bom ambiente" e das relações imediatas com os pares;


-- grande ligação à estabilidade do emprego e à experiência do posto;

-- pouca ou nenhuma perspectiva profissional (progressão lenta na


carreira);

-- origem operária e fraco nível escolar;

-- referência exclusiva à aprendizagem na tarefa e ausência de qualquer


formação voluntária;

-- relações de dependência com a hierarquia e consciência de uma grande


barreira entre os grupos.

Tínhamos interpretado esta identidade em termos de *identidade de classe*


na medida em que o sentimento de pertença operária se traduzia, em 1983-
1984, para a maior parte dos assalariados que partilhava esta lógica,
nesta empresa particular, por uma valorização da acção colectiva,
acompanhada até de várias criticas em relação a certas práticas e
evoluções sindicais (cf. Dubar, Engrand, p. 45). Estas duas atitudes
praticamente já não aparecem no inquérito de 1987-1988 realizado em
grandes empresas privadas em mutação. :,

Esta dualidade entre risco de exclusão e ligação à estabilidade


"operária" assume a forma de uma verdadeira ruptura nos operários da
siderurgia ameaçados de despedimento e cuja identidade foi longamente
analisada por C. Agache (1993, pp. 41 e seguintes, pp. 99 e seguintes,
pp. 145 e seguintes). Os que partilham esta "identidade antiga" centrada
no amor ao trabalho bem feito, na fidelidade à empresa ("nunca ausente",
"nunca atrasado"), na relação afectiva com o trabalho, valorizando a
coragem e a seriedade, a mobilização física e a reciprocidade sentimental
com o chefe, ficam chocados com as novas políticas da empresa que
contratam jovens finalistas do ensino secundário, valorizando unicamente
os saberes teóricos e difundindo o novo "modelo de competência". A sua
identidade fica dividida entre a dedicação aos saberes práticos que os
valorizam e o reconhecimento incontornável dos saberes teóricos que os
excluem. Recusam admitir ser julgados "incompetentes" pelo facto de não
possuírem formação profissional nem formação escolar prolongada; mas não
podem negar que os diplomas são necessários e que os jovens finalistas do
ensino secundário tenham conhecimentos que eles nunca terão. Mesmo se
defendem a ideia de que "os dois são precisos" (manuais e intelectuais),
reconhecem que, enquanto os jovens diplomados acabarão por adquirir a
experiência, eles nunca vão adquirir os conhecimentos teóricos. É por
isso que a sua identidade é cruelmente distorcida: a manutenção das
identificações anteriores, constitutivas da "identidade para si", é
também o que pode provocar a sua exclusão futura e a confirmação da
"identidade para outro": a impossibilidade de qualquer conversão
subjectiva reforça o insucesso de qualquer negociação objectiva. Quando
são despedidos, a sua reclassificação é muito difícil e só pode ser feita
"por constrangimento" (Lerolle, 1991). As duas transacções reforçam-se,
assim, negativamente para originar uma "lógica de exclusão".

A correspondência estabelecida aquando do inquérito nas centrais


nucleares entre "executante estável" e "pertença operária" deve, no
entanto, ser relativizada à luz dos resultados -- em concordância com os
nossos -- de uma investigação consagrada às identidades sociais dos
técnicos (de BoMafos, 1988, pp. 56-57, p. 95). Uma das identidades dos
técnicos verificada pelo inquérito corresponde estreitamente a esta
primeira configuração que articula as dimensões seguintes:

-- uma representação da empresa que implica um papel marginal do


indivíduo e um papel preponderante da hierarquia;

-- uma ausência de vontade de evolução social e uma valorização da


"chance" como factor de promoção;

-- uma representação do sistema social de empresa como "sistema onde cada


um mantém o seu lugar";

-- uma relação com o trabalho cujo fim é o salário;

-- uma grande integração no grupo de pertença imediato e uma grande


dependência hierárquica;

-- a ausência de qualquer grupo de referência e de qualquer projecção de


futuro (dos "técnicos-técnicos"). :,

Não se definindo como operários mas sim como técnicos, os assalariados em


causa não são assim mais do que executantes estáveis que combinam a
ausência de qualquer estratégia de evolução profissional (transacção
subjectiva desfavorável) com um fraco nível de reconhecimento pela
empresa (transacção objectiva sem vantagens). O seu espaço de
investimento permanece problemático e já não está conectado a nenhum
sistema de acção colectiva. Mesmo que não sejam ameaçados por nenhuma
exclusão, a curto prazo, também não entram, tal como os precedentes, no
novo "modelo da competência".

9.5. Crítica do "modelo de retirada"

Será que esta configuração de executante estável virtualmente ameaçado de


exclusão está em consonância com o modelo de "retirada" de Sainsaulieu
que emana de investigações na empresa nos anos 60 e 70? Na apresentação
que faz deste modelo, a "retirada" está associada à verificação "de
outras cenas de investimentos sociais" e à recusa de qualquer compromisso
pessoal nas relações colectivas de trabalho. Na obra *L'identité au
travail* (2.a edição, 1985), as análises sobre este modelo incidem
sobretudo sobre os empregos femininos e o trabalho de escritório e
postulam, simultaneamente, "uma ligação muito forte das mulheres ao valor
família" e uma "reprodução das relações familiares no trabalho". Estas
atitudes conduzem, sobretudo, a que "a estagnação profissional se
mantenha para assegurar a continuidade das estruturas familiares
tradicionais, vendo no chefe um pai, um conselheiro e não uma autoridade
técnica" (*id.*, p. 167). Associada a uma "total dependência no trabalho"
e a uma "incapacidade para se opor aos outros", a retirada engendra uma
"identidade *de colusão* generalizada", isto é, segundo a definição de
Laing, a interiorização de um "jogo no qual participam várias pessoas que
se enganam umas às outras de uma forma complementar" (D. Laing, 1961, p.
98). Esta identidade seria a de inúmeras "mulheres na fábrica e no
escritório" e resultaria de uma "colusão típica com o chefe" que permite
salvaguardar um investimento prioritário na esfera familiar "sem pôr em
causa as relações de dominação" (*id.*, p. 341). Este duplo jogo, que
permite salvaguardar um "duplo eu" (investido realmente na fami1ia e
aparentemente no trabalho), conduz, em última análise, à reprodução das
relações de dominação na fami1ia e no trabalho dissimulando-as através de
"falsas identidades" ("o eu falso" no sentido dado por Laing). Na parte
final da sua análise, Sainsaulieu levanta a hipótese de que "as relações
femininas de trabalho podem evoluir para um envolvimento colectivo maior
desde que os processos de progressão sejam desbloqueados" (*id.*, p.
168). Interroga-se também sobre a questão seguinte: "Será que este modelo
de relações colectivas de escritório com uma maioria de mulheres é o
mesmo que o dos homens?"

As nossas análises precedentes levam a colocar uma questão dupla sobre a


pertinência da noção de retirada para compreender as configurações e as
dinâmicas identitárias deste primeiro tipo. Em primeiro lugar, o aumento
do desemprego e a escassez de empregos não são acompanhados, em França,
por uma diminuição das taxas de actividade feminina: :, as mulheres não
só não voltaram para casa como também aceleraram a sua entrada em todos
os segmentos do mercado do trabalho. A actividade feminina pode ficar
dilacerada entre os papéis de mãe/esposa e de mulher activa/profissional.
A actividade feminina pode manter-se dilacerada, e este dilaceramento
pode não implicar uma atitude de retirada da esfera do trabalho, mas,
pelo contrário, pode estimular a invenção de estratégias de carreira
complexas, que de uma maneira diversificada têm em conta as estratégias
do cônjuge (C. Nicole, 1988). De seguida, a adopção progressiva pelas
empresas do "modelo de competência" torna cada vez mais arriscada a
manutenção e a exteriorização de atitudes de retirada no trabalho. Estas
arriscam-se a constituir-se imediatamente como sinais que desencadeiam
processos de exclusão. Ora, o que nos parece determinante é o mecanismo
de atribuição pela empresa de uma identidade virtual de excluído
(identidade para outro) e não o sentimento de pertença do indivíduo a um
grupo, a uma categoria de "retirada". Feita pelos indivíduos, este tipo
de projecção incide mais sobre a reforma do que sobre a retirada. Com
certeza, entre as condutas típicas de reforma evidenciadas pela
investigação de A.-M. Guillemard, a *reforma-retirada* (1972, pp. 35 e
seguintes, pp. 123 e seguintes) corresponde muito de perto às
características identitárias postas em destaque aqui (situação de
trabalho do passado de executante/fraco nível de instrução/fraca
intensidade de actividade/baixo nível de rendimento...). Mas a retirada
que se segue à reforma não é analisada como uma orientação voluntária mas
como uma "transformação ligada à passagem do trabalho ao não trabalho",
um processo de "retirada no ser biológico" que se segue a uma "ruptura
com o mundo social" (*id.*, p. 37). Quando os assalariados dizem que
apenas estão à espera da reforma, afirmam nunca a desejar de imediato;
pelo contrário, desejam permanecer na empresa até à reforma que só muito
raramente é associada a projectos "positivos".

9.6. O processo de exclusão: a articulação impossível das transacções

Esta análise é confirmada por um estudo recente que incidiu sobre duas
amostras de assalariados vítimas de despedimentos colectivos, que põem em
evidência lógicas típicas de reacção salarial (Cherain e Demazière,
1989). Os assalariados que partilham a identidade de executante ligada à
estabilidade e pouco implicados no seu trabalho são também aqueles que
vivem mais dolorosamente o processo de exclusão de que são alvo. Sofrem o
despedimento como uma sanção, "procurando a origem da exclusão num
conjunto de erros que poderiam ter cometido, negando, em simultâneo, a
possibilidade de os ter cometido". Sentem a supressão do posto como um
abandono pessoal ("eu já não agradava à sociedade") e de forma nenhuma
estabelecem ligação entre esta decisão e o sistema de atitudes no
trabalho que era o deles antes do começo dos despedimentos. Vivem, de
imediato, o despedimento como uma exclusão e não como uma retirada. :,

Estes mesmos sentimentos são encontrados na experiência do desemprego


sintetizada por D. Schnapper no termo "desemprego total" e que diz
respeito aos assalariados, partilhando a identidade que aqui é descrita
(Schnapper, 1981, pp. 55-115). Os sentimentos de humilhação ("já não nos
sentimos como um homem", p. 56), de degradação ("já não precisam de nós",
p. 60), a ausência de futuro ("depois vou atingir a reforma", p. 61), de
perda de virilidade para os homens ("agora, as minhas mãos são como as de
uma mulher", p. 64), de perda de afirmação social para as mulheres ("não
me afirmo em nada", p. 58), de desinteresse generalizado ("não se pode
fazer nada, cai-se diante de um obstáculo", p. 85) e, finalmente, de
solidão e de dessocialização ("fica-se amargurado", p. 99) são sintomas
da perda do laço social que constituíam as relações anteriores de
trabalho e do estatuto social próprias do emprego precedente. Compreende-
se melhor ainda a significação da estabilidade na identidade social
destes assalariados: é o reconhecimento pela empresa (através do chefe
directo) e, para além disso, pela sociedade, da legitimidade da
existência tal qual eles são (identidade para si), isto é, tal qual foram
produzidos pela sua socialização inicial e tal como eles se produziram
através dessa socialização. Esta identidade de base foi, de uma forma
duradoira, reconhecida no e pelo acesso ao emprego com o qual se
identificaram. Alterá-la significa pôr em causa a sua integridade.

Podemo-nos, além disso, interrogar sobre os elos implicitamente


estabelecidos entre a identidade de executante estável, associada ao
estereótipo do "emprego definitivo", e o processo de exclusão
desencadeado, nomeadamente, pelas grandes empresas privadas em fase de
modernização, que se associam às ideias de inovação, de mudança e de
mobilidade. Neste processo de exclusão parece ser menos importante a
*posição* ocupada pelo assalariado ou a *antiguidade* no posto de
trabalho do que a ruptura da dupla transacção característica da sua
identidade (cf. capítulo 5). Por um lado, o que é posto em causa pelas
transformações nos modos de gestão é o reconhecimento da sua competência,
ou seja, estes modos de gestão rompem com a transacção objectiva. Por
outro lado, as modificações do mercado interno do trabalho e a entrada de
novos actores na situação de trabalho (jovens diplomados...) conduzem à
desestabilização dos critérios de reconhecimento de si e à instauração de
um processo de autodesvalorização que desestrutura a transacção
subjectiva. Desencadeia-se, assim, um circulo vicioso "produto da relação
dialéctica entre as reacções do agente ameaçado e as acções dos
superiores e dos concorrentes"; como no esquema da predição criativa, "o
processo de exclusão engendra pela sua própria dinâmica os erros e os
fracassos que lhe servem de motivos" (Boltanski, 1982, p. 437). Este
processo tanto pode dizer respeito aos quadros como ao pessoal de
execução ou de chefia. As hipóteses de ele se desencadear e de se
consumar estão ligadas ao facto de o indivíduo tender "a sobrestimar o
valor que lhe é atribuído no mercado interno do trabalho" e ao facto de o
"papel que suporta a sua identidade se apresentar sempre sob uma forma
sincrética e não resistir ao questionamento" (*idem*). Podemos, assim,
chegar a somatizações ou formas de paranóia (Lemert, 1962) ligadas à
desestruturação brutal de identidades vividas como estáveis no interior
das grandes organizações. :,
9.7. Configuração identitária e geração: a génese biográfica da
identidade ameaçada

Na maior parte dos inquéritos anteriormente citados, os indivíduos deste


tipo pertenciam a gerações sucessivas. No entanto, no inquérito mais
recente (LASTREE, 1989), a maioria dos assalariados implicados nesta
identidade eram relativamente idosos e antigos na empresa: tendo entrado,
na maior parte dos casos, nos anos 60 e 70, só recentemente se viram
confrontados com presença de jovens diplomados em empregos parecidos e
mesmo similares aos seus. Poder-se-á, por isso, associar a génese desta
identidade a um modo de entrada no trabalho e de aprendizagem de uma (ou
várias) geração(ões) anterior(es) à crise do emprego?

No inquérito junto de jovens operários da região do Sena, com 18 a 20


anos, N. de Maupeou-Abboud chegou igualmente a quatro categorias de
assalariados partilhando horizontes profissionais muito diferentes. Uma
destas categorias agrupa o que o autor designa "verdadeiros OS", que têm
uma fraca bagagem escolar e que na sua vida profissional estavam na
situação de "retirada" (N. Abboud, 1968, pp. 65 e seguintes, pp. 171 e
seguintes). As características comuns a estes jovens são muito
semelhantes às dos assalariados adultos ligados à estabilidade e que nos
inquéritos anteriores estavam ameaçados de exclusão (ou vítimas desta):
entrada precoce no trabalho (com 14 anos) para ajudar financeiramente a
fami1ia, trabalho vivido em função do salário, ausência de qualquer
projecto profissional a curto ou longo prazo, privação de qualquer
formação profissional, preocupação de sobrevivência no emprego, sem
ligação nem à empresa, nem aos sindicatos, prioridade absoluta à
categoria do TER e aos bens materiais... Sem evocar o termo identidade,
N. Abboud colocava em evidência uma forte *coerência* das atitudes, das
representações e das condutas que o autor recusava ser uma consequência
mecânica das "características da situação objectiva" ou das "concepções
genéricas e abstractas em termos de nível etário". Na sua opinião,
estamos perante "uma óptica global do trabalho, da vida profissional e da
vida social no interior de um mesmo horizonte profissional".

Num inquérito do mesmo tipo realizado junto de futuros técnicos, no fim


dos anos 60, M. Haicault qualificava de "conformados adaptados" os jovens
(mais ou menos 20%) que não tinham nenhuma aspiração para subir para além
do nível para que estavam preparados e que mostravam estar "totalmente
dependentes do sistema de organização e de hierarquia promocional da
empresa" (Haicault, 1969, pp. 95 e seguintes).

Encontramos nestas abordagens todas as características essenciais do


conceito de identidade social definida no capítulo 5, isto é, uma
identidade que remete, simultaneamente, para uma trajectória típica de
emprego marcada pela *estabilidade* e para uma forma de relação social
marcada pela *dependência*. Vinte e cinco anos mais tarde, é esta
configuração identitária que se encontra, em situação de ameaça de
exclusão, na sociedade francesa.

Será que acontece o mesmo, uma geração mais tarde, aos jovens que saem do
sistema escolar sem diploma? Será que partilham ainda esta mesma
identidade? Na investigação :,
colectiva realizada sobre os jovens da região Nord-Pas-de-Calais que não
têm diploma e cuja idade se situa entre os 16 e os 18 anos (C. Dubar *et
alii*, 1987), constatou-se que apenas uma categoria de jovens -- das
quatro que também foram distinguidas -- partilhava esta identidade
centrada na concepção instrumental do trabalho e na valorização de uma
aprendizagem prática que implicava uma dúvida radical sobre a utilidade
da formação escolar e uma dependência passiva nas relações de trabalho
(*id.*, pp. 146-152). Estes jovens eram rapazes e raparigas originários
de famílias operárias entre as quais praticamente nenhum dos membros
tinha qualificação; tinham deixado a escola aos 16 anos -- o "college" ou
o "lycée" profissional -- sem qualquer diploma e sem pena de não o terem
adquirido, com uma forte interiorização do insucesso escolar e uma
profunda desvalorização de si próprios. Qualquer ideia de exame ou de
selecção tornara-se insuportável. O seu espaço de reconhecimento estava
limitado ao posto de trabalho, descrito apenas a partir dos efeitos
físicos (barulho, cadência, dureza...) e o seu tempo biográfico estava
limitado apenas ao horizonte de acesso problemático a um emprego precário
que eles consideravam como um meio de ganhar a vida. Três anos após o seu
abandono da escola, encontravam-se praticamente todos ainda no
desemprego, depois de se terem submetido a um ou vários estágios de
inserção e alguns terem conhecido empregos de duração limitada. A
exclusão era, para eles, a primeira experiência profissional, com
tendência a ser incorporada à sua identidade sob a forma de uma
precarização durável da sua vida profissional.

A dinâmica identitária característica desta fracção dos assalariados é


clara: o risco de exclusão do emprego está a partir daí no cerne de uma
configuração anteriormente organizada em torno de três dimensões:
estabilidade do emprego -- trabalho instrumental -- dependência
hierárquica. A atribuição de uma identidade de OS -- inclusive de
operário --, associada ao modelo taylorista, foi substituída por uma
identidade virtual de incompetente, inapta para se adaptar às evoluções
em curso. Paralelamente, o acto de pertença a um estatuto de executante
estável, manual mas experimentado, dominando *saberes práticos* e
recusando a forma escolar, é desestabilizado pela hipervalorização da
mudança, pela prioridade concedida aos saberes teóricos e pelo apelo à
formação geral. Por este facto, a identidade social real, oriunda da
trajectória ou da geração anterior, já não é atractiva e nenhuma outra
identidade parece acessível. É através desta fractura que se insinua a
ameaça de exclusão para aqueles que estão no emprego ou que se instala
precocemente o sentimento de exclusão nos que saem do sistema escolar ou
que estão no desemprego. O que se passa quando este sentimento invade
toda a identidade? Será viável uma identidade de excluído definitivo? :,

10

Do operário de ofício ao "novo profissional":


a identidade bloqueada

10.1. A identidade para outro: o modelo do operador polivalente e


gestionário

"Um operário que se torna gestor do seu posto de trabalho e já não um


executante, que saiba regular a máquina, calcular uma percentagem do
*stock* compreender a importância da gestão dos *stocks* e dos
movimentos, trabalhar com precisões muito finas e ligações complexas,
capaz de tomar em consideração a organização da produção, de controlar o
produto..."
É deste modo que o mesmo director técnico da empresa de mobiliário e
decorações define o operário ideal, pós-taylorista, que se opõe em todos
os aspectos à imagem do OS precedente (Zarifian, 1988, p. 79). Em todas
as empresas analisadas, no decurso da investigação sobre as inovações de
formação, difunde-se um "modelo da competência" que integra,
sensivelmente, as mesmas componentes (LASTREE, 1989, p. 445):

-- o quadro de definição e de estruturação desta competência já não é o


"ofício" (no sentido velho de corporação e de especialidade) mas a
*empresa* e a sua actividade de base (por vezes chamada "ofício" da
empresa num sentido novo);

-- o objectivo desta competência é o domínio de um posto concebido muitas


vezes em termos de função que implica diversas formas de polivalência que
vão da capacidade :,
de estar em vários postos até ao alargamento das tarefas associadas a uma
mesma função (exemplo típico: vigilância activa + manutenção elementar +
autocontrolo + domínio informático associado);

-- uma exigência cada vez mais incluída nesta competência é a compreensão


do conjunto dos procedimentos, isto é, um domínio intelectual mínimo dos
processos utilizados e dos seus encadeamentos. Já não se trata somente de
seguir procedimentos, mas de compreender para que servem para poder fazer
face aos imprevistos (avarias, incidentes...) e melhorar constantemente
estes procedimentos;

-- uma dimensão essencial desta competência diz respeito à capacidade


gestionária dos assalariados definida desta forma: "preocupação com os
custos da exploração", melhoria da qualidade, gestão dos *stocks* e dos
movimentos, respeito pelos prazos...

Este modelo ideal gera representações do operário do futuro que já não é,


aliás, na maior parte dos casos, designado como um operário: operador,
colaborador, polivalente, por vezes até técnico. Estas representações
confrontadas com os assalariados que existem actualmente servem para
construir identidades virtuais que constituem atribuições antecipadas e
mais ou menos colectivas. É cada vez mais ao confrontar-se com estas
identidades virtuais que estes assalariados devem confirmar ou não as
suas identidades reais.

10.2. A identidade "biográfica" para si:


Diplomas técnicos e carreiras de ofício

A maioria dos assalariados envolvidos nesta oferta identitária são


diplomados do ensino técnico (CAP, BEP, BAC Técnicos, BTS-DUT...) que
ocupam, em geral, empregos de execução, por vezes muito repetitivos
(operários de montagem, operários de produção, operadoras de linhas de
montagem, vigilantes ou condutores de processos automatizados...) e, por
vezes, mais autónomos (reguladores, operários de manutenção, empregados
de escritório...). O que eles têm de comum é o facto de se definirem a
partir de um
*ofício* ligado à sua formação inicial e projectarem-se numa via ligada a
essa especialidade, que implica uma progressão regular que combina, de
forma diversificada, a antiguidade e o aperfeiçoamento técnico nesta
especialidade (57). Para a maioria, o emprego actual não corresponde à
especialidade aprendida e é vivido como uma desclassificação temporária
na espera do acesso a um posto realmente "qualificado": vivem
dolorosamente a situação de trabalho considerada como rotineira,
monótona, simplista, desqualificada. :,

(57) este aspecto estruturante do "ofício de base", ligado à importância


da experiência e do aperfeiçoamento, conduz os investigadores do GLYSI a
chamá-los -- como em alguns sectores industriais -- de "profissionais"
(Bernoux *et alii*, 1984).

Para outros, o posto actual é o ponto de chegada de um percurso


profissional ligado à sua especialidade, mas a sua definição mudou e já
não se sentem à vontade. Assim, todos se dizem *bloqueados* na situação
profissional e preocupados com o futuro: as perspectivas anteriores são
questionadas pelas novas formas de organização do trabalho e de gestão do
emprego e não vêem nenhuma perspectiva de futuro nas formas de
polivalência que lhes são propostas. Os que estão envolvidos nestas
formas de polivalência declaram-se tão bloqueados como os outros e são,
também, incapazes de saber "o que lhes vai acontecer" (LASTREE, 1989, pp.
389-390).

A sua relação com a formação esclarece este sentimento de bloqueamento


muito incorporado na identidade. Dizem-se todos favoráveis "à" formação e
a maior parte seguiu formações contínuas depois da sua entrada no
trabalho. Mas quais são estas formações? São quase exclusivamente cursos
de aperfeiçoamento técnico organizados no interior da empresa e sobre a
sua especialidade. A sua referência principal é o sistema de ensino
técnico tal como o frequentaram na sua formação inicial e a sua concepção
de base liga estreitamente a formação à promoção. Por isso, não
reconhecem a utilidade das "formações inovadoras" que lhes são propostas
pela empresa e que privilegiam, de várias formas, a formação geral. Pelas
mesmas razões, resistem à ideia de cursos fora do tempo de trabalho tanto
mais se não estão associados, segundo eles, a nenhuma perspectiva de
futuro. Encontram-se, assim, face a um duplo bloqueamento: o que é
representado por uma formação geral não explicitamente ligada a saberes
técnicos especializados que consideram como os únicos instrumentos para o
seu "ofício"; o que é simbolizado pelo apelo ao voluntariado e ao
investimento pessoal em formações de empresa não ligadas a vias de
progressão de emprego. Esta é a razão por que estabelecem uma relação
muito ambivalente com as novas políticas de empresa: parecem-lhes em
ruptura completa com o sistema de valores e de crenças que tinha
presidido à construção -- muitas vezes frágil -- da sua identidade para
si, na base da formação inicial. As regras do jogo mudaram mas não podem
abandonar aquelas com as quais se tinham identificado, tanto mais que as
novas regras lhes parecem opacas, arriscadas, e mesmo ameaçadoras
(LASTREE, 1989, S. Engrand, pp. 209-308).

Esta ameaça parece-lhes real quando entram em concorrência com jovens


contratados que possuem habilitações mais elevadas e que não têm a mesma
identidade de ofício. A sua preocupação essencial é, então, conformar-se
com a sua posição e o seu emprego e evitar qualquer estigmatização por
parte dos responsáveis. Adoptam então uma atitude de participação
dependente e vigilante: fazem formação sem acreditar muito nela e
multiplicam os sinais de boa vontade. Estão, de certa maneira,
desdobrados: embora continuem a acreditar numa progressão na sua
especialidade e a defender, no seu intimo, uma identidade de ofício, eles
fingem-se actores da nova competência sem ilusões e sem saber o que
poderão ganhar no futuro com isso (LASTREE, M. Feutrie, pp. 331-337). :,

10.3. A identidade "relacional" para si:


reconhecimento suspenso e conflito latente

A maior parte dos assalariados que se definem como bloqueados evocam


relações difíceis com a hierarquia. Já não se sentem reconhecidos no
trabalho e queixam se de serem reduzidos a simples papéis de executante.
A frustração é ainda mais forte visto que este reconhecimento existira no
passado e permitira-lhes salvaguardar e até consolidar esta identidade de
ofício mesmo quando ela não se traduzia por um compromisso efectivo numa
opção deste tipo. No vocabulário tradicional das "relações humanas",
estes assalariados aliam a consciência de uma forte contribuição à
verificação de uma fraca retribuição financeira e sobretudo simbólica
(Benoìt-Guilbot, 1965).

Este questionamento do reconhecimento coincide com as mudanças de


política de gestão da empresa e, sobretudo, com a difusão das novas
normas de comportamento no trabalho. A incitação ao autocontrolo, por
exemplo, é vivida como uma suspeição já que sempre consideraram o
trabalho bem feito como um valor essencial. Da mesma forma, os discursos
e as práticas que dizem respeito à qualidade parecem ser evidentes ou
desempenharem uma função encantatória: o facto de se poder desconfiar de
eles não terem tido em conta a qualidade parece-lhes constituir um
atentado à sua identidade. Desenvolvem quanto à "polivalência" propósitos
ambivalentes: distinguem nitidamente os incitamentos ao alargamento das
tarefas em torno de uma especialidade de base, a qual aprovam, das
reorganizações visando fazer aprender -- superficialmente -- várias
especialidades e a organizar a rotação por postos diferentes que pode
conduzir a uma espécie de dissolução da qualificação, ou seja, a uma
dissolução desta identidade de ofício que eles procuram preservar a todo
o custo.

Estas reacções são fontes de conflitos potenciais com a "nova hierarquia"


que privilegia a mobilização colectiva de equipas polivalentes e
gestionárias sobre a coordenação burocrática das intervenções ou das
operações de "especialistas". Vê-se bem a raiz identitária do conflito
potencial: trata-se de renunciar a uma identidade singular de
"especialista" para se tornar membro substituível de uma equipa
mobilizada pela empresa, isto é, para se tornar, num primeiro momento
pelo menos, um assalariado sem identidade singular, um "homem sem
qualidade", definido apenas pela sua disponibilidade e pelo seu "espirito
de equipa". Entrar neste jogo, sem uma forma clara de acesso a uma nova
identidade mais valorizadora, é arriscar deixar o certo pelo incerto e
encontrar-se totalmente dependente das apreciações da hierarquia. Basta
que as relações com a hierarquia sejam vividas de uma forma conflituosa
para que o processo leve a um bloqueamento. O risco torna-se então
demasiado grande e a defesa da identidade de ofício constitui, então; a
resposta menos ansiogénica face à situação construída. :,

10.4. Uma articulação problemática das duas transacções

O bloqueamento pode ser interpretado de forma esclarecedora pela relação


problemática que se instaurou entre as duas transacções constitutivas da
identidade. A transacção subjectiva permanece positivamente virada para
uma esperança de progressão futura: o assalariado em causa contínua
persuadido que é capaz de ocupar um posto mais qualificado, de
reencontrar e de reactualizar os saberes técnicos adquiridos na sua
formação inicial e contínua, de progredir no interior da sua empresa se
futuramente aparecerem oportunidades. O que ele não pode aceitar é partir
do zero, ser obrigado a reconverter esta postura de base que constitui,
simultaneamente, uma relação com os saberes e um conjunto de saberes
incorporados.

A transacção objectiva está completamente dependente das políticas de


gestão da empresa que, apesar de se apoiarem apenas em poucas informações
realmente utilizáveis e esclarecedoras, não se podem abstrair das actuais
tendências (Sainsaulieu, 1987, pp. 325 e seguintes). Ora, não é
socialmente imaginável que essas políticas conduzam, mesmo a longo prazo,
a um processo de exclusão de todos os assalariados que partilham, sob
formas diversas, esta identidade. É necessário, portanto, combinar as
políticas de gestão com esta identidade, ou seja, construir formas de
transacção que tenham em conta estas lógicas subjectivas ao mesmo tempo
que as fazem evoluir para uma maior eficácia produtiva. Não encontramos
em nenhuma das empresas inquiridas nenhuma solução para esta articulação
eficaz. No decurso do último período e em relação com a educação nacional
multiplicaram-se experiências que consistiam em reconverter massivamente
assalariados de uma especialidade tradicional e direccionada para uma
"competência" larga definida a partir das exigências de novos sistemas
automatizados e de novas políticas de gestão (Doray, 1988; MRT, 1989). A
transacção objectiva entre os assalariados e a empresa parece permitir
salvaguardar o núcleo duro das identidades de ofício resultante das
transacções subjectivas reactualizadas pelas formações que foram
instituídas. É no respeito pelo "modelo de formação" do ensino técnico
francês e na sua adaptação às trajectórias identitárias dos assalariados
visados que estas experiências parecem ter conseguido reconstruir
identidades profissionais passíveis de articular eficazmente as duas
transacções. Qual é a natureza exacta destas identidades? Não existem
trabalhos que nos permitam apreciar os desbloqueamentos possibilitados
por estas formações que associam mais ou menos estreitamente a empresa, a
educação nacional e os próprios assalariados. A hipótese de que o
bloqueamento caracteriza hoje toda uma configuração identitária não é,
apesar disso, posta em causa.

10.5. Uma (nova) identidade de ofício?

A construção de uma identidade de ofício pressupõe uma forma de


transacção subjectiva que permite a autoconfirmação regular da sua
evolução, concebida como o domínio :, progressivo de uma especialidade
sempre mais ou menos vivida como uma arte. Mas pressupõe também
confirmações objectivas por uma comunidade profissional dotada dos seus
próprios instrumentos de legitimidade. A persistência através de toda a
história industrial do "fenómeno corporativista" (Segrestin, 1985)
testemunha até que ponto a identidade de ofício, constitutiva das
"comunidades pertinentes de acção colectiva" -- nomeadamente sindical --,
se revelou capaz de resistir e de se reproduzir através de todas as
formas de racionalização do trabalho e das empresas. É, sem dúvida,
porque esta identidade de ofício representa historicamente uma das formas
de articulação mais sólidas entre a identidade para si -- através do
esquema da aprendizagem que implica a progressão aprendiz-companheiro-
mestre (Ariès, 1973) e a transmissão de uma cultura de ofício através das
gerações (58) -- e a identidade para outro -- através do modelo das
relações profissionais baseadas na regulação conjunta das organizações
patronais e sindicais (Reynaud, 1989) --, que ela exprime uma imbricação
estável da transacção subjectiva que permite um desenvolvimento
autoconfirmado da identidade e da transacção objectiva que fornece
confirmações reguladas deste desenvolvimento autónomo.

(58) Cf., a propósito deste ponto, as análises de B. Zarca que põem esta
transmissão no cerne da identidade de grupo e que a interpretam como
"trama simbólica do processo de identificação" (1988, p. 267). Cf. também
as análises estimulantes de Delbos e Jorion (1984).

A última tentativa de desmantelamento das identidades de


ofício coincide com a emergência de uma nova configuração produtiva num
contexto económico exacerbado pela concorrência. As novas estratégias dos
grandes construtores que utilizam tecnologias microelectrónicas e ópticas
cada vez mais sofisticadas abalam as actividades de manutenção nas quais
se encontrava a maior parte dos operários de ofício; paralelamente, a
interpenetração crescente da procura e da produção desloca para montante
do fabrico as actividades de concepção que necessitam o domínio de
saberes teóricos sobre os progressos produtivos; por fim, a perturbação
dos mercados reintroduz as actividades comerciais e de serviço no seio
das novas dinâmicas económicas. Todos estes processos levam a um risco de
marginalização das actividades estruturadas na base dos ofícios. Dever-
se-á por isso concluir que a "identidade de ofício" como forma de
estruturação das actividades e como modo de socialização dos indivíduos
está em decadência?

A hipótese mais provável que sobressai dos trabalhos mais recentes é que
"longe de eliminar os saberes de ofício, longe de apagar as fronteiras
entre os procedimentos de fabrico, a automatização faz apelo a um
conhecimento ainda mais aprofundado e analítico das reacções da matéria-
prima" (Zarifian *et alii*, 1988, p. 43). A investigação aprofundada
levada a cabo por Jeantet e Tiger, junto de operários (e da sua família)
confrontados com as diferentes fases de automatização de uma oficina de
acabamentos mecânicos de uma grande empresa de material eléctrico,
confirma este resultado completando-o. Mesmo que os operadores "encontrem
nos novos equipamentos uma nova forma de autonomia operatória" e que "o
lugar do problema resida mesmo na relação do instrumento com a :,
matéria", todos estão de acordo em reconhecer que "não é o mesmo ofício"
e que se tornou "um trabalho mental" cuja aprendizagem consiste, antes de
mais, em "fazer compreender uma lógica" (leantet, Tiger, 1985, pp. 11-
13). A análise realizada por Y. Lucas junto dos antigos profissionais e
técnicos da aeronáutica leva igualmente a colocar o domínio de novos
saberes profissionais no centro das novas-carreiras técnicas (Lucas,
1989). A pesquisa levada a cabo por M.-C. Vermelle numa unidade de
fabrico de componentes realça também a importância da estratégia do
acesso aos "saberes de procedimento" tanto para a *performance* económica
do serviço como para a construção de identidades profissionais
reconhecidas (Vermelle, 1989).

Estes novos saberes profissionais, bases potenciais da reconstituição de


carreiras e de identidades "de ofício", aparecem, através destas
investigações, diferentes dos antigos saber-fazer e saberes de
especialidade, apesar de reproduzirem uma estrutura similar. São, em
primeiro lugar, muito mais intelectualizados e apelam para a apropriação
de saberes teóricos sobre os procedimentos e não apenas à apropriação de
saberes empíricos sobre as operações elementares (Vermelle, Zarifian,
Lucas, *idem*). Em seguida, eles deslocam a qualificação do "gesto
operatório" para a "conceptualização executória" (Zarifian, *id.*, p. 45)
que implica uma "distanciação do procedimento", uma "representação mental
do processo", uma "imagem mental do sistema técnico". Por fim, eles são
saberes finalizados já não por uma intervenção manual especializada, mas
através de uma actividade de diagnóstico que se exerce, cada vez mais, a
montante do fabrico: prevenção das avarias, dos acasos, dos defeitos,
mas, sobretudo, participação na "definição dos sinópticos de instalação"
e na "definição ergonómica dos postos de comando" (Zarifian, *id.*, p.
47).

Trata-se, todavia, de saberes profissionais de ordem operatória e não de


saberes científicos de natureza puramente cognitiva. Como os antigos
saberes de ofício, pressupõem que se ponha em relação conhecimentos
técnicos de natureza teórica com saberes práticos provenientes da
experiência. Mesmo que a relação teoria/prática pareça inverter-se em
favor da teoria, a articulação é fundamental e implica, simultaneamente,
experiência acumulada e formação formalizada e progressiva, relacionada
com esta experiência.

É por isso que a emergência de novas identidades de ofício baseadas na


cultura técnica e traduzidas nas vias de progressão profissional
constitui a hipótese mais provável no que diz respeito às dinâmicas
identitárias em curso nas grandes empresas. Então como explicar a
persistência dos bloqueamentos identificados anteriormente?

10.6. A crise do espaço social de reconhecimento

Todas as análises históricas (Sewell, 1980) ou sociológicas (Segrestin,


1985) que permitem compreender melhor (através das transformações
tecnológicas, económicas ou políticas) a reprodução das identidades de
ofício insistem no papel extremamente importante que desempenha o
reconhecimento, pelos poderes públicos (o Estado) e pelas :, populações
(os clientes), do grupo profissional portador da identidade colectiva e
considerado como um verdadeiro actor. Na realidade, para que uma
identidade de ofício exista e se reproduza, é preciso que um grupo
profissional exista na sociedade "não como um simples testemunho de
outros tempos, mas como um actor inserido num sistema de acção concreta
que se vai construindo constantemente" (G. Latreille, 1980, p. 323). O
sindicalismo desempenhou durante muito tempo este papel de actor
colectivo, pelo menos em certos sectores e ramos profissionais
particularmente estratégicos. No futuro, ele pode ainda ter um papel no
reconhecimento destas identidades virtuais. Mas, para que este
reconhecimento seja produtor de identidades, é preciso que exista um
espaço social no seio do qual os grupos profissionais adquiram
legitimidade não somente face aos empregadores mas também face ao Estado
e aos consumidores. É esta a razão por que a empresa não pode constituir
um espaço pertinente de estruturação e de reconhecimento de identidades
deste tipo. A legitimidade dos poderes profissionais exige uma forma de
reconhecimento estatal que a formação contínua só assegura parcialmente.
O reconhecimento da utilidade social destes "novos ofícios" exige também
formas de visibilidade junto dos utentes. Ora, estas condições estão
longe de serem satisfeitas actualmente. É por isso que os indivíduos
envolvidos neste processo identitário não podem geralmente encontrar as
garantias necessárias para o seu hipotético reconhecimento social. O
fechamento na empresa e a polarização sobre a hierarquia directa
bloqueiam a construção de espaços sociais de reconhecimento. O
enfraquecimento dos sindicatos limita a expressão colectiva das
reivindicações identitárias. A referência ao ofício permanece assim,
muitas vezes, puramente defensiva, ampliando os potenciais conflitos com
os actores da modernização da empresa.

10.7. A crise das "ideologias defensivas de ofício"

As identidades virtuais de "novos ofícios" centrados no domínio dos


saberes de procedimento e no reconhecimento de capacidades de *expertise*
diferem das antigas identidades de ofício numa característica essencial:
elas já não serão apenas o apanágio dos homens e já não poderão implicar
o que C. Dejours chama a "normopal ia viril" que, na sua opinião, é
consubstancial das ideologias defensivas de ofício (Dejours, 1988, p.
107). Na realidade, estas aparecem historicamente ligadas "à construção
social das relações de exploração entre sexos no trabalho", e, em
simultâneo, à "defesa contra o sofrimento no trabalho". São inseparáveis
da clivagem que valoriza o trabalho masculino (virilidade, perigo, força,
coragem...) e que desvaloriza o trabalho feminino (repetição, pormenor,
acabamentos...), clivagem essa que se baseia numa ideologia naturalista
de identificação (D. Kergoat e H. Hirata, 1988). Assim, a construção das
antigas identidades de ofício (cf. os mineiros, os operários da
construção, os camionistas...) implicava, no mesmo movimento, a
construção social da virilidade e, segundo C. Dejours, "o envolvimento de
toda a :, sexualidade por trás da bandeira da virilidade social" (ia,
p.92). É por isso que esta "identidade viril normopata" é qualificada
pelo autor como falsa identidade na medida em que ela constitui uma
espécie de uniforme, de envelope protector "em forma de palavras de ordem
pouco singularizadas de um indivíduo para o outro" (*id.*, p. 112). É o
que Laing designa, com um significado semelhante, por "*delusão*".

Encontramo-nos, aqui, bastante próximos do "modelo fusional" desenvolvido


por Sainsaulieu a propósito dos OS masculinos que se "integram na massa
para poderem suportar os constrangimentos e os confrontos e se envolvem
em "identificações projectivas e recíprocas entre pares" (1985, p. 334).
Fundamentalmente defensivas, estas identificações tornam difícil, mesmo
impossível, a construção de relações de reconhecimento recíproco,
nomeadamente, com o outro sexo considerado como "naturalmente inferior"
na esfera do ofício e "naturalmente dominado" na esfera doméstica.

Ora, a entrada maciça das mulheres no mercado do trabalho, e o seu acesso


crescente -- apesar de ainda marcado pela desigualdade -- à formação
profissional inicial e contínua tornam hoje mais difícil a reprodução de
tais identidades masculinas pelo menos pela geração jovem. A construção
da identidade masculina é hoje, aliás, considerada por C. Dejours como
problemática e definida como "a edificação singularizada de uma relação
de ironia e de subversão em relação a estes esquemas de conduta e de
pensamento" (*id.*, p. 115). Sem dúvida, acontece o mesmo com a
construção de novas identidades de ofício que não sejam defensivas, mas
ofensivas, nomeadamente, no próprio terreno da gestão económica e que não
sejam marcadas pela "normopatia viril", mas pela troca entre os sexos
mutuamente reconhecidos como parceiros de uma actividade qualificada e
evolutiva.

São mais visíveis os obstáculos que provocam actualmente o bloqueamento


das identidades estruturadas em torno de um modelo "profissional" no seio
das grandes empresas. Na investigação sobre as centrais nucleares,
tínhamos definido esta configuração identitária com a noção de
"negociação" (Dubar, Engrand, 1986, pp. 44 e seguintes) que é a que
utiliza Sainsaulieu para definir a identidade dos técnicos e dos
operários profissionais. Uma dupla reciprocidade destacava-se nitidamente
das entrevistas efectuadas então: por um lado, entre a contribuição para
a empresa e a retribuição que ela lhes trazia; por outro, entre a vida de
trabalho e a vida fora do trabalho. Aparecendo como conformistas e
relativamente passivos em matéria de formação, tinham uma velocidade
modal de progressão na carreira, característica dos antigos operários
profissionais. Mas basta que o crescimento das actividades diminua para
que a sua progressão seja bloqueada.

Na sua investigação sobre os técnicos, g. de bonnafos também designa como


técnicos bloqueados" aqueles que partilham a identidade de ofício; eles
consideram que o sistema de empresa bloqueie a utilização da sua
competência ("diluição na empresa", "destruição da carreira"...) e que
não se encontra aberta nenhuma via de progressão. Significativamente eles
agrupam-se "do lado dos operários" já que a clivagem com os engenheiros
lhes parece enorme. Consideram-se em situação de perda de poder apesar do
:,
papel activo que desempenham no trabalho. Nenhum menciona o sindicato
como actor capaz de desbloquear a situação (G. de Bonnafos, pp. 85 e
seguintes).

No caso de despedimento, alguns "miraculados da reconversão" (Lerolle,


1991) conseguem "prosseguir noutro sítio uma carreira bloqueada na
empresa de partida", mas outros não o conseguem e são considerados, pelos
agentes da ANPE, como "casos difíceis" que entram numa "lógica de
adiamento" (Demazière, 1992).

A identidade bloqueada é então inseparável da crise dos ofícios, da sua


organização, da sua legitimidade e das suas representações que lhes são
associadas em França. O lugar e o estatuto do ensino profissional são,
assim, directamente postos em questão por este fenómeno.

10.8. Configuração identitária e geração: a mutação do ensino


profissional

No fim dos anos 50, os jovens trabalhadores profissionais do sexo


masculino formados nos centros de aprendizagem e contratados em pequenas
e médias empresas nos arredores de Paris partilhavam os valores do
ofício: revolta contra os valores de autoridade, reivindicação de
igualdade aos operários adultos, ligação ao trabalho bem feito, ao valor
do FAZER (N. Abboud, 1968, pp. 66-67). Mas, ao fim de alguns anos, uma
série de choques tinham abalado a sua visão do mundo: "Sentem-se
bloqueados" (*id.*, pp. 199-200). Alguns "escolhem a revolta, a
consciência de classe, a oposição aos capitalistas, outros submetem-se e
desencorajam-se" (*id.*, pp. 168-170) (59). Viviam todos intensamente o
conflito entre "o sistema de valores, normas e representações construído
no decurso da aprendizagem" e "as estruturas e políticas industriais que
dificultam a sua possibilidade de promoção" (*id.*, p. 178). O seu
horizonte era qualificado como contraditório, o seu sentimento dominante
era o de frustração porque "não é possível tentar mudar uma situação que,
no entanto, lhes desagrada".
(59) No inquérito de M. Haicault sobre os futuros técnicos, os que ela
chama de "aspirantes veleidosos" tinham características comuns às dos
jovens operários: aspiração a uma promoção hierárquica simples no ofício
e desencorajamento face aos bloqueamentos da empresa (Haicault, 1969, pp.
l 12 e seguintes).

Nada teria mudado? Será que a identidade de ofício reproduz, de uma


geração para a outra, a mesma crise baseada na mesma contradição entre os
valores da aprendizagem e os constrangimentos da organização económica?
De um ponto de vista puramente empírico, as observações acumuladas no
final dos anos 50 vão no mesmo sentido daquelas que hoje dispomos e que
incidem sobre os jovens que saem, com ou sem diploma, do ensino técnico
curto, e que estão ou não empregados (Baudelot, 1988). Apenas com uma
diferença: a maioria daqueles que saem do *lycée* profissional começam
pela experiência do desemprego, por estágios de inserção ou de
qualificação ou por empregos precários. :, Aqueles que são fortemente
marcados pelo modelo escolar procuram, prioritariamente, "a certificação"
(Dubar *et alii*, 1987, pp. 152-157): sabem que o CAP já não é suficiente
para conseguirem um emprego estável, mas que é necessário para enfrentar
o mercado "secundário" do trabalho. Da mesma forma que os seus
antepassados valorizam o FAZER mas pressentem de forma confusa que já não
se pode fazer (bem) sem saber (teórico). Ora, estando bloqueados no
acesso a formações mais longas e mais gerais, sonham voltar à escola.

Para aqueles que não saíram da escola e que foram orientados para o
ensino profissional encontra-se, doravante, potencialmente aberta a
perspectiva de obter um *baccalauréat* (BAC). Pela primeira vez na sua
história, desde 1987, o sistema escolar francês produz *baccalauréats*
profissionais que não foram escolarizados liceus do ensino geral ou do
ensino técnico e que tiveram estágios em empresas. Qual é a identidade
destes jovens neoprofissionais que as empresas dizem procurar, agora,
para alimentar as suas novas carreiras que nós insistimos em designar "de
ofício"? Será que vão reproduzir o percurso identitário dos mais velhos
(pais? mães?) saídos dos centros de aprendizagem nos anos 50/60 ou saídos
dos CET, em seguida dos LEP com um CAP ou BEP nos anos 70/80? Em caso
afirmativo, é preciso decidir-se a considerar a identidade de ofício como
definitivamente bloqueada na sociedade francesa. Em caso negativo, será
preciso analisar, com muito cuidado, os mecanismos desta produção
conjunta (escola/empresa) de uma identidade que é estratégica para o
sucesso económico da maioria das empresas comuns e para as relações
profissionais de uma sociedade moderna. Será que um modelo francês da
qualificação operária é possível?

11

Do modelo "carreirista" ao processo de mobilização:


a identidade de responsável em promoção interna

11.1. A identidade para outro: o modelo de evolução pela e na empresa

"Estamos de acordo em promover as pessoas com a condição de elas terem


uma visão mais responsável do seu posto e com a condição de aceitarem
formar-se. Tendo-se concluído a formação geral, entra-se num processo de
progressão: está-se mais propenso para a mobilidade, muito mais capaz de
aceitar mudar de especialidade, de ofício, até mesmo de deslocar-se.
Está-se num processo que se auto-alimenta e que prepara o futuro... Tenho
a certeza que há necessariamente um ofício do futuro para os generalistas
que sejam capazes de se formar para funções de ponta, mas também de
evoluir para outras funções e, portanto, capazes de fazer evoluir a
empresa e de assumir responsabilidades de formadores para os outros."

Esta citação de um responsável dos recursos humanos de uma empresa de


mecânica (LASTREE, 1989, Dubar, Gadrey, pp. 129 e seguintes) que
desenvolveu uma importante inovação na formação (abertura de uma formação
geral modular pela empresa, fora do tempo de trabalho, para todo o
pessoal) traça um perfil de assalariado diferente do precedente e
aparentemente inverso do primeiro (cf. capítulo 9). A sua palavra de
ordem é a evolução, como contrário de estabilidade. O seu espaço de
desenvolvimento já não é o ofício, mas a empresa que o assalariado
"responsável" contribui para fazer evoluir, ao :, mesmo tempo que ela
permite a sua evolução profissional. A identidade aqui visada (identidade
para outro) é, antes de mais, construída pela e na própria empresa na
base de uma reciprocidade dinâmica: em troca de um envolvimento pessoal
do assalariado no seu trabalho e no sucesso da empresa, esta assegura-
lhe, simultaneamente, a segurança "subjectiva" do emprego e a progressão
provável da sua carreira. A condição de validação e de sucesso desta
troca reside no envolvimento sem reservas do assalariado na formação
realizada pela empresa: ao fornecer a prova viva que esta formação
constitui com certeza um factor de evolução conjunta da empresa e do
assalariado, aquele poderá, por sua vez, tornar-se responsável e
formador, alimentando, assim, a dinâmica do sistema.

A identidade social virtual destes assalariados em evolução é, portanto,


uma *identidade de empresa*: identificados a ela, ao sucesso e ao seu
nome, não podem *a priori* definir-se nem pelo trabalho actual, nem pela
formação inicial, nem pela trajectória anterior, mas somente pelo e no
projecto de empresa, que inclui totalmente a realização potencial desta
identidade. É através da predição criativa que liga o sucesso da empresa
ao próprio sucesso profissional e social que estes assalariados terão de
"construir a sua identidade evoluindo". A integração protectora da
instituição-empresa que legitima as identidades que ela própria produz
constitui uma resposta à incerteza desta *démarche*.

Ao contrário do modelo tradicional do "quadro promovido" impregnado do


"espírito-da-casa", a progressão interna já não é concebida como uma
recompensa para "serviços bons e leais" reservada para alguns eleitos,
escolhidos com muito cuidado, mas proposta como um acompanhamento
voluntário do sucesso colectivo da empresa. Trata-se, de certa maneira,
de uma identidade oferecida que deve provar a sua virtude mobilizadora à
medida que se desenvolvem as procuras. Obviamente que a competição não
está excluída deste modelo, representando a formação o lugar privilegiado
onde ele se deve exercer.

11.2. A identidade "biográfica" para si: evolução profissional e formação


contínua interna e "integrada"

O conjunto dos assalariados que possuem esta identidade nas seis empresas
da amostragem (LASTREE, 1989, pp. 388-389) têm em comum o facto de terem
conhecido, no passado, mobilidades diversas no interior da empresa ou,
por vezes, antes de ter dado entrada nesta. Menos frequentemente de
origem operária que os precedentes, mais frequentemente diplomados (aos
níveis V, IV ou m), eles insistem, antes de mais, no percurso interno na
empresa e nos conhecimentos que têm quanto ao seu funcionamento técnico e
social (60). Um dos termos-chave do discurso deles a propósito da
trajectória -- :, interessar-se" -- resume bem

(60)A ligação sistemática estabelecida entre o projecto de mobilidade


interna e a acumulação de conhecimentos diversificados fá-los ser
designados pelo termo "promocionais na investigação do GLYSI (Bernoux *
et alii*, 1984).

a importância destes saberes de organização na estruturação da identidade


social real. Querer compreender, saber mais, interrogar, documentar-se
constituem as expressões da sua *pertença* à empresa concebida,
prioritariamente, como um sistema sociotécnico que é fonte de saberes
específicos, diferentes dos saberes escolares e fortemente valorizados
relativamente a estes. Não se trata apenas de saberes práticos adquiridos
no exercício do trabalho, mas sim de verdadeiros saberes profissionais
que necessitam de ser relacionados com conhecimentos teóricos --
adquiridos nos cursos mas também nas conversas e nas práticas de
documentação e de autoformação --, de saberes práticos adquiridos no
terreno e através da experiência destes *saberes de organização*,
específicos da empresa e que permitem estabelecer uma relação eficaz com
os saberes anteriores. Eles insistem muito, por isso, na utilização
intensiva do sistema de formação interna à empresa e mostram-se capazes
de apreender alguns elementos de coerência interna, tal como faz este
assalariado quando enuncia as aprendizagens necessárias para dominar todo
o sistema de produção: aprender o posto através da formação prática e
recíproca; aprender o trabalho através das visitas e das interrogações
dos técnicos; aprender o produto através das formações gerais em sala que
incidem em "conteúdos", não ligados ao trabalho actual (LASTREE, M
Feutrie, p. 329).

Esta formação, concebida como "unidade complexa de aprendizagens",


contribui para estruturar uma identidade profissional de empresa e para
reforçar um sentimento de pertença a uma colectividade estruturada à
volta do processo de produção e da sua gestão técnica e social. Na
realidade, o acesso a uma linguagem técnica comum constitui a aquisição
essencial destas práticas de formação que permitem "compreender as
pessoas com quem se trabalha" e partilhar um conjunto de valores com
elas. É graças a esta *démarche* que a maior parte dos assalariados deste
tipo se mostram capazes de exprimir, ou mesmo de antecipar, no decurso
das entrevistas, as mudanças em curso na sua empresa e de apreender as
oportunidades que as acompanham. Alguns já tinham concretizado estas
estratégias por promoções internas, outros tinham aprovado planos
personalizados de formação ligados a planos de carreira, outros, enfim,
anteviam a maneira como se poderiam inscrever no processo em curso.

11.3. A identidade "relacional" para si: reconhecimento recíproco e


mobilização no trabalho

A maior parte dos assalariados que partilham esta identidade insistem nas
boas relações que mantêm com a hierarquia da empresa: "recorrem a mim".
Quer incida sobre problemas técnicos, relacionados com as avarias, os
imprevistos, as melhorias permanentes ou problemas de gestão relacionados
com a animação dos grupos, as atitudes dos responsáveis a seu respeito
são o testemunho do reconhecimento das suas capacidades e atitudes de
cooperação que favorecem a socialização antecipatória ao universo dos
operários :, especializados, dos técnicos superiores, e até mesmo ao
universo dos chefes de *atelier* ou de serviço. Por este facto, os
assalariados em causa já não se definem como executantes, mas sim como
técnicos, colaboradores, contramestres ou quadros *responsáveis*. Pode-
se, portanto, falar de uma dimensão gestionária da sua identidade
profissional: eles são os únicos a expressar preocupações económicas na
realização do seu trabalho: preocupação da qualidade, do cliente, da
rendibilidade Mas, sobretudo, valorizam as tarefas de animação, de
contacto, de formação recíproca: tendo sido reconhecidos e promovidos, ou
estando subjectivamente seguros de o ser, eles apresentam-se como os
prosélitos das experiências em curso que suscitam reacções
diversificadas. Interiorizaram muito a lógica da reciprocidade e
restituam-na de formas diversas: "o que é bom para a empresa não é mau
para nós, o inverso também" (LASTREE, 1989, Dubar-Gadrey, p. 238);
"Utilizo a política da empresa para evoluir e, ao mesmo tempo, dou-lhe
qualquer coisa em troca" (*id.*, p. 351).

A sua identidade de empresa inscreve-se assim num círculo virtuoso que


combina forte contribuição e forte retribuição (Benoìt-Guilbot, 1965) e
articula, de forma dinâmica, as duas transacções que a constituem: ao
estabelecerem uma relação de colaboração recíproca com a instituição à
qual se identificam, eles contribuem para o reconhecimento dos saberes
específicos que fundamentam a sua esperança de evolução; eles podem,
assim, consolidar esta esperança reestruturando a sua trajectória passada
como uma antecipação da sua progressão futura. A transacção objectiva e a
transacção subjectiva fortalecem-se e confirmam-se uma à outra na
construção de uma identidade simultaneamente reconhecida na empresa e
socialmente legitimável.

11.4. A transacção conseguida? Coincidência real ou aparente?

Contrariamente à identidade anterior, esta parece fazer coincidir a


identidade para si com a identidade para outro. Parece já que o
sociólogo, em virtude da construção que faz do objecto e das condições em
que realiza a sua investigação, corre o risco de ser vítima de uma ilusão
de óptica. Na realidade, será que o outro significativo pode, neste caso,
ser aquele que é responsável pelo processo identitário em questão? Tanto
nas configurações precedentes onde o parceiro principal da relação era "o
chefe", como nesta configuração, o parceiro de que depende o
reconhecimento vital da identidade não pode ser um daqueles que a
partilham e, *a fortiori*, um daqueles que contribuíram para a sua
construção. É suficiente que o sociólogo se tenha identificado como
estando plenamente do lado deste actor, para que os inquiridos tenham
acentuado sistematicamente, mesmo construído, as características
conformes ao seu modelo identitário...

Qual é, portanto, o Outro Significativo junto do qual é necessário


procurar o acto de atribuição identitária mais estruturante? Será que ele
pode ser encontrado no interior da empresa quando a própria definição de
identidade para si inclui a pessoa colectiva? Se não, onde poderemos
encontrat o Outro Significativo para que a atribuição possa ter um :,
valor socialmente legítimo? A resposta parece clara: é no seio do sistema
escolar e no reconhecimento dos diplomas que sancionam as formações que
se podem legitimar ou não tais identidades de empresa. Ora, a maior parte
das formações -- mesmo com forte componente geral -- envolvidas por estas
identidades não são validadas por diplomas nacionais. A maior parte dos
assalariados em questão não têm um BAC mesmo quando seguiram formações
gerais "de nível BAC" em assuntos considerados estratégicos para a
actividade da empresa.

É ao comparar esta configuração identitária centrada na empresa com a


última centrada no diploma (cf. capítulo 12) que aparece nitidamente a
falha constitutiva desta identidade aparentemente harmoniosa. Não só o
reconhecimento identitário fora da empresa é muito problemático, mas
também o reconhecimento, na empresa, dos jovens com um diploma mais
elevado pode criar uma situação conflitual. Apenas as empresas que
recusaram as contratações externas, incluindo as contratações aos níveis
de responsabilidade dos promovidos -- e não é o caso de nenhuma das seis
empresas estudadas --, podem prevenir-se dos tais questionamentos
identitários. Nas outras, o reconhecimento dos promovidos que não têm um
BAC arrisca-se constantemente a entrar em conflito com a frustração dos
jovens contratados com o BAC (e por maioria de razão com os titulares de
um diploma superior). Estes atribuirão aos "quadros promovidos" uma
identidade de "carreirista" e não uma identidade de "responsável". Se
confrontarmos esta primeira investigação com outras, verificaremos
claramente a ambiguidade, mesmo a ambivalência, desta identidade
responsável/carreirista.

11.5. Uma (nova) identidade de empresa?

No seio do serviço que reagrupa o conjunto de centrais nucleares


francesas, a maioria dos quadros eram, no momento do inquérito,
promovidos do cargo de mestre ou dos agentes de execução. A maior parte
destes e nomeadamente aqueles que conheceram uma rápida evolução na
carreira possuíam uma identidade de "responsáveis mobilizados na e pela
empresa" (Dubar, Engrand, 1986, p. 43), apresentando, de uma forma
marcada, as características identitárias analisadas neste capítulo. Para
a maior parte deles, esta identificação com a empresa abrangia a quase
totalidade da sua vida fora do trabalho incluindo, para alguns, a sua
identidade genérica (o nome da empresa servia, por vezes, para
identificar o indivíduo junto de outrem, quase com a mesma valia que o
nome do pai possui...). Será que se trata de uma característica
específica a algumas grandes empresas públicas ou privadas ou de uma
tendência geral das dinâmicas identitárias em curso? Será que se assiste
a uma espécie de patologia fusional implicando processos de
despersonalização por imersão nos "sistemas de fantasmas sociais" (Laing,
1961, pp. 43 e seguintes) ou, pelo contrário, assiste-se a identificações
libertadoras através das quais indivíduos acedem a reconhecimentos
efectivos e a margens de autonomia acrescidas? O que se passa com a :,
dimensão relacional destas identidades de empresa? Qual é o significado e
o valor dos reconhecimentos pelo outro, no interior das relações de poder
nestas empresas? Será que, nestes casos, o risco de subestimar o agir
comunicacional ao agir estratégico e o risco de reduzir a identidade
social a uma simples posição estatutária não é grande?

Estas questões colocam-se com tanta mais premência quanto são quase
exclusivamente os homens que levam a identificação à sua empresa até ela
invadir completamente a sua vida fora do trabalho. *á la limite*, a
transacção objectiva abole-se totalmente na transacção subjectiva quando
o futuro da empresa coincide com o futuro do indivíduo. No fim do
processo já não há outro para reconhecer a sua própria identidade. Como
afirma Laing: "Experimenta-se, assim, um sentimento intenso de frustração
se já não se consegue encontrar esse outro do qual precisamos para
estabelecer uma identidade satisfatória" (1961, p. 105).

A identificação total com a empresa, como qualquer identificação com um


colectivo, tem subjacente o risco de uma *ilusão* introjectiva, isto é,
de uma negação fantasmática da dualidade irredutível do social, de uma
imersão no fantasma da fusão consigo próprio, num esquecimento do facto
irredutível que "são os outros que vos dizem quem sois" (Laing, *id.*,
pp. 162 e seguintes). Será por acaso que este processo envolve muito mais
os homens do que as mulheres? Se reintroduzirmos na análise não só o
domínio dos homens sobre as mulheres na esfera do trabalho e do poder,
mas também os processos diferentes de constituição das identidades de
sexo, verificaremos que a resposta é negativa. Na realidade, não só os
quadros se podem investir totalmente na carreira se fizerem recair sobre
a sua esposa o essencial do trabalho de reprodução, mas é também
identificando-se totalmente à sua empresa que eles procuram suportar "o
sentimento de vazio e de futilidade que acompanha as práticas
relacionais" (Laing, id, p. 101). Reduzida a uma estratégia
"carreirista", a identidade masculina aparece, assim, singularmente
ilusória.

11.6. Uma identidade competitiva?

Na investigação sobre as identidades sociais dos técnicos, G. de Bonnafos


reconhece uma identidade de futuro quadro ou futuro engenheiro que possui
a maior parte das características distintivas do "responsável em promoção
interna" (1988, pp. 44 e seguintes, pp. 86 e seguintes). Para dar conta
do seu "mundo vivido do trabalho", ele acrescenta à noção de
responsabilidade a noção de criação que valoriza as iniciativas, as
resoluções de problemas e a capacidade de contornar obstáculos. Está-se
próximo do modelo do "labor" caro a H. Arendt (1957) que se opõe ao
modelo do trabalho mecânico (*animal laborans #k homo faber*): um dos
técnicos compara-se, aliás, a um marceneiro quando contempla o seu
projecto "depois de ter dado o último retoque". Mas a característica mais
saliente desta identidade técnica, em tensão com o estatuto de
engenheiro, é a concepção agonística da vida profissional ("para evoluir,
é preciso lutar por isso"), o que implica não só a :, competição entre os
pares ("é preciso salientar-se entre os demais") mas também a luta contra
a organização ("fazer, mesmo quando não é previsto nem autorizado"). Para
ter sucesso, é preciso sentir-se mais competente, mais dinâmico ("eu
gosto de trabalhar") mas também mais diplomata ("sem relação não se
consegue nada") do que os outros.

A chave da construção desta identidade de "futuro quadro" reside, sem


dúvida, no acesso a estes saberes de organização que o autor chama
"saberes sociais" e que permitem, simultaneamente, resistir à
especialização e tornar operatórios os saberes teóricos adquiridos em
formação. É o domínio destes saberes que garante uma vantagem na com
petição para a promoção mesmo se não são reconhecidos por diplomas.

Este modelo da competição reforça a aparente coincidência entre a


identidade para outro, interna à empresa, e a identidade para si forjada
por uma socialização antecipatória ao universo dos quadros.
Efectivamente, a empresa, ao definir-se ela própria como competitiva,
pode atrair e confirmar futuros quadros também eles competitivos e tendo
dado provas de tenacidade. Incita, então, uma pequena parte dos seus
técnicos a entrarem em competição para acederem a funções de engenheiro
mais ou menos reconhecidas, mais tarde. Mas, fazendo isto, provoca
efeitos de divisão interna quando a competitividade da empresa exige
cooperação e solidariedade. Assiste-se, portanto, a uma dissociação entre
a identidade virtual do responsável "animador e fonte de mobilização
colectiva" e a identidade real do futuro responsável "competidor e
fazedor de rivalidades pessoais". Também aqui, a identidade do quadro
promovido aparece muito mais perturbada do que a nossa apresentação
inicial poderia fazer crer: ele já não é um verdadeiro executante, apesar
de ainda estar ligado por relações horizontais aos seus antigos pares,
mas ele também nunca é completamente um quadro legítimo porque não possui
um diploma das "grandes escolas" e é incapaz de estabelecer relações
verticais de autoridade com os seu antigos parceiros.

11.7. Modelo fusional ou de negociação?

Na tipologia de *L'identité au travail*, o "quadro subalterno


autodidacta" encontra-se ligado, como o OS masculino, ao modelo fusional,
enquanto "o quadro de produção com uma carreira rápida" está ligado, como
os OP, ao modelo da negociação e da "solidariedade democrática"
(Sainsaulieu, 1985, pp. 234 e 365).

Nem um nem outro destes modelos corresponde verdadeiramente ao processo


identitário que identificámos nas grandes empresas privadas em
modernização rápida no fim dos anos 80. A identidade de "responsável
promovido" parece situar-se a meio caminho destes dois modelos elaborados
a partir de inquéritos feitos nos anos 60.

Tal como no "modelo fusional", o "responsável promovido" tem uma forte


identificação à empresa que, como vimos, podia conduzir a uma dissolução
da identidade por negação da dualidade. Estes responsáveis parecem, por
outro lado, escapar à situação clássica do "*double bind*" (Bateson,
1957), isto é, à situação da dupla injunção contraditória
entre :, a exigência de "ficar preso à base" de onde são oriundos e a de
aplicar as "instruções do topo" que os promoveu, devido à profunda
mudança do papel da mestria nas empresas analisadas. Simultaneamente
técnica e de animação, a nova mestria já não é, pelo menos teoricamente,
uma mestria que dá ordens, nem uma mestria gestionária de pessoal, mas um
recurso técnico e um substituto de formação junto dos colectivos de
trabalho. Por este facto, os responsáveis promovidos definem-se, nestas
empresas, menos como tampões entre a base e as cúpulas e mais como
gestores-animadores de equipas mais autónomas. Mas o nosso método de
inquérito nem sempre nos permitiu confrontar os discursos recolhidos com
observações directas: os resultados foram contrastados nas situações em
que se pôde realizar este confronto (LASTREE, 1989, E. Dubar e M.-C.
Vermelle, pp. 32-89).

Existe uma parte de "modelo de negociação" nos processos de acesso dos


assalariados ao estatuto de responsável reconhecido. É em troca de um
investimento na formação e em troca do domínio de saberes profissionais
que a promoção é finalmente obtida. É em resposta a uma mobilização
efectiva para a empresa que o reconhecimento da identidade de responsável
é dado. É negociando os seus planos de formação e de carreira no interior
do plano de empresa que os assalariados obtêm os meios de realização do
seu trajecto. Trata-se, pois, de uma transacção conseguida -- e,
portanto, de uma verdadeira negociação -- entre o indivíduo e a empresa e
não de uma recompensa por mérito ou de uma selecção com base em critérios
pessoais. Pode-se, aliás, considerar que uma parte dos promovidos eram
"profissionais negociadores" (por vezes, até antigos militantes
sindicais) e que o seu acesso a funções de técnicos ou de especialistas
se inscreve muito mais na continuidade do que na ruptura com a sua
trajectória anterior.

Passa-se o mesmo quando caem numa situação de desemprego: os "criadores


de empresa" reconvertem a sua implicação e o seu "gosto pelo trabalho"
num projecto de promoção social já iniciado (Lerolle, 1991) e os poucos
"desempregados de longa duração" fazem de "voluntários" e inscrevem-se
numa "lógica de activação" (Demazière, 1992).

Será que se assiste, por isso, à emergência de um modelo da reciprocidade


susceptível de estabilizar esta identidade de "responsável mobilizado"
conforme a este modelo
*managerial* da competência de que esta identidade constitui a pretensa
interiorização?

Tudo depende do lugar institucional que "a empresa" tomará na


configuração social do futuro. Nada está definido a este respeito, apesar
de o processo de "reabilitação ideológica da empresa na sociedade
francesa" (PIRTTEM, 1987) ter já produzido efeitos evidentes. A
problemática do que nós designamos a "produção conjunta da qualificação"
(Dubar, 1985) é, com efeito, colocada mas não resolvida: Este processo
está longe de estar generalizado apesar de um número cada vez mais
significativo de empresas se envolver em operações conjuntas com a
educação nacional para validar através de diplomas nacionais as formações
largamente negociadas. Por isso, o reconhecimento destas identidades de
"responsáveis promovidos" é frágil.

11.8. Configuração identitária e geração: a génese estrutural da


identidade promovida

No inquérito que realizou, no fim dos anos 50, junto de jovens operários
parisienses, N. Abboud (1968, pp. 64 e seguintes, pp. 197 e seguintes)
distinguia já, nos jovens profissionais diplomados das grandes empresas
modernas, a presença de um horizonte de mobilidade apoiado na esperança
de melhoria do estatuto social e a ambição de se "tornar chefe", de SER
alguém (por oposição às categorias do TER e do FAZER).

Servindo-se da noção de "carreirização" (J.-R. Treanton, 1961), a autora


colocava a questão da generalização das carreiras, a questão da
mobilidade no interior destas "grandes empresas modernas" que ela
considerava ser uma condição de realização das aspirações de mobilidade
destes jovens.

No seu inquérito sobre os futuros técnicos, no fim dos anos 60, M.


Haicault identificava "aspirantes engenheiros" que colocavam a sua
representação "correcta" do mundo profissional ao serviço "de uma
estratégia de promoção rigorosamente planificada" (Haicault, 1989, p.
128).

Ora, vinte e cinco anos mais tarde, é, sem dúvida, a partir da


reactivação do mercado interno do trabalho que as empresas estudadas
extraem as condições estruturais de realização destas novas formas de
promoções e, portanto, de construção, através da formação, destas novas
identidades de "responsáveis mobilizados". Mais uma vez, verifica-se que
mobilidade e formação internas são as componentes estruturais de um
sistema de emprego organizado em carreiras e concebido como mercado
fechado (Paradeise, 1987). Contrariamente às configurações identitárias
precedentes, neste caso, são as inovações estruturais que tornam possível
a realização de potencialidades biográficas que, na sua ausência,
permaneceriam virtuais. Sem o desenvolvimento de vias de progressão
profissional, a incitação à formação não poderia ter efeitos identitários
tangíveis. É no cerne deste encontro entre práticas pessoais de formações
"integradas" e construções estruturais de vias "internas" de mobilidade
que se joga a articulação entre identidade para si e identidade para
outro.

O que acontece aos jovens que entram no mercado do trabalho sem diploma
ou pouco escolarizados? Uma parte deles aprendeu, a partir da sua
socialização familiar, escolar ou pós-escolar e/ou a partir da primeira
confrontação com o mercado externo do trabalho, que a formação inicial
não bastava para actualmente se construir uma identidade profissional.
Estes jovens têm estratégias de emprego e de formação multidireccionais
(Dubar *et alii*, 1987, pp. 157-162) que combinam estágios múltiplos,
empregos de espera e formas pessoais de acesso a saberes profissionais.
Utilizam intensamente as redes de relações, nomeadamente as familiares
(C. Mairy, 1983), para aceder a empregos mesmo que precários e a
formações mesmo que pouco qualificantes. Concebem a vida profissional
como uma evolução permanente no decurso da qual jamais terão finalizado a
aprendizagem e na qual terão de forjar uma identidade aberta a todas as
progressões possíveis. Como definir :, esta identidade de espera que não
pode organizar-se em tomo de uma especialização profissional de ponta sob
pena de ser desacreditada antes mesmo de ser experimentada a identidade?
Como construir uma futura identidade de empresa antes de ser admitido por
ela? A questão colocada é, uma vez mais, a da produção conjunta da
qualificação através da activação de formas diversificadas de alternância
que garantam a função identitária, assegurada à sua maneira pelo Duales
System alemão. Para lá da "qualificação" ou da "competência", é, sem
dúvida, a construção das identidades profissionais e sociais que envolve,
simultaneamente, as instituições escolares e as instituições produtivas,
a produção e a reprodução das gerações de assalariados.

12

Do "modelo afinitário" ao processo de conversão:


a identidade autónoma e incerta

12.1. A identidade para outro: assalariados que trazem problemas

"Temos problemas com alguns dos jovens diplomados. Estão desapontados com
os empregos que ocupam e a empresa não lhes pode oferecer as carreiras
que desejam. Seguem muitos estágios de formação, muitas vezes sem o nosso
conhecimento e alguns acabam por se demitir para procurar emprego noutro
lado. De facto, eles estão aqui à espera..."
Esta constatação de um director dos recursos humanos de uma grande
empresa de telefones sanciona o fracasso relativo, na maior parte das
empresas analisadas, de uma política de recrutamento de jovens
"universitários" sobrediplomados relativamente aos empregos que ocupam e
fortemente desfasados relativamente a eles. Estes jovens trazem problemas
às direcções das empresas por dois motivos: por um lado, nenhuma das vias
de progressão profissional existentes parece ser-lhes adequada e o seu
futuro na empresa é problemático; por outro, eles não partilham as
atitudes no trabalho dos assalariados em promoção interna: mais
individualistas, menos mobilizados para a empresa, são muitas vezes mais
críticos e parecem mais instáveis. Não é, manifestamente, na empresa, que
eles querem construir ou consolidar a sua identidade inconstante. :,

Alguns assalariados mais idosos e mais antigos são também considerados


como "problemas". A empresa inovadora não sabe muito bem como lidar com
eles: ela não quer abdicar dos seus serviços, reconhece o seu potencial,
mas receia as suas iniciativas individualistas. Eles ou elas construíram,
por vezes, situações consideradas confortáveis como aquelas que são
chamadas "tapetes" numa empresa terciária para designar as secretárias
pessoais dos quadros superiores que recusam inscrever-se em qualquer
operação de mobilidade. Têm a sua própria *rede* de relações internas ou
externas à empresa que escapa à organização formal como aqueles que são
designados "os universitários" na empresa de telefones. Têm dificuldade
em se enquadrar nas normas e nos papéis colectivos, facto que leva a que
sejam chamados "individualistas" pelos responsáveis desejosos de realizar
as condições de uma "mobilização colectiva" (LASTREE, 1989, pp. 390 e
seguintes).

Duvida-se, por vezes, que eles tenham lugar na empresa do futuro, que
embora lhes reconheça um potencial pessoal pensa excluí-los. De facto
eles são dificilmente classificáveis sendo este desvio parte integrante
da sua identidade para outro. Rigorosamente eles não fazem nada como os
outros, razão pela qual se lhes atribui identidades de excepção.

12.2. A identidade biográfica para si: a contramobilidade social

A grande maioria dos assalariados que pertencem a este último tipo


identitário são de origem não operária; ocupam, no entanto, em geral,
empregos de execução muito diversificados: operários, empregados,
técnicos/as. Os mais jovens possuem quase todos um BAC, um BTS ou um DUT.
Os mais velhos adquiriram um diploma -- ou o que pensam ser equivalente
-- através de formações contínuas voluntárias ou, então, estão em vias de
adquirir o diploma (inscrições no CNAM, no ESEU, para acesso à área de
direito, para obtenção de diplomas universitários por unidades
capitalizáveis, inscrições em cursos por correspondência...). Para isso
esforçam-se por mobilizar uma parte dos recursos da empresa: inscrevem-se
no plano de formação para os estágios que lhes interessam, por vezes
pedem dispensas individuais de formação, negoceiam dias livres para
frequentar cursos. As únicas formações que lhes interessam são externas à
empresa e conduzem a diplomas reconhecidos: são muitas vezes muito
críticos em relação aos "estágios internos" criticando a sua utilidade e
o seu caracter integrador. Para eles, a formação é um direito individual,
um investimento pessoal que prolonga, duplica ou rectifica a formação
escolar.

As formações que realizam ou que realizaram são estruturantes da sua


identidade: definem-se muito mais pelo diploma do que pelo trabalho. Têm
consciência de valerem mais do que o emprego que ocupam e de serem
diferentes da forma como a empresa os define oficialmente. Como em alguns
casos de quadros desejosos de se distinguirem dos seus pares, "todo o seu
discurso é orientado no sentido de negar que a ligação administra :,
tive, a pertença formal a uma categoria possa constituir uma
característica pertinente da identidade social" (Boltanski, 1982, p.
479). De facto, falam muito pouco da sua situação de trabalho, mas muito
mais das formações e dos projectos, até mesmo da actividade exterior,
como, por exemplo, este montador-electricista que, tendo obtido por
correspondência um diploma de electrónica ("na altura custou-me três
milhões"), repara televisões todos os sábados e durante as férias
(lastree, 1989, Dubar-Gadrey, pp. 380-384).

A sua identidade está, portanto, desdobrada: a falsa identidade, a


identidade oficial, é a que os outros associam à sua situação actual de
trabalho, ao posto que ocupam, ao grupo ao qual sentem que não pertencem
"realmente". A verdadeira identidade -- para si -- é a que pretendem
adquirir através das formações ou dos fazeres culturais e que eles,
muitas vezes, não procuram com tanta obstinação porque, de qualquer modo,
já a tinham encontrado na sua origem social e no seu meio familiar (de
Montlibert, cf. capítulo 2). O seu grupo de referência é muitas vezes
também o seu grupo de origem: é por isso que podem afirmar esta
identidade virtual para melhor se distanciarem das identidades oficiais
que lhes podem ser atribuídas; "é a autenticidade que os define
realmente, é o que permite que eles escapem à padronização" (Boltanski,
*idem*).

É por esta razão que um dos momentos-chave das entrevistas realizadas com
eles é o momento em que, por vezes com meias-palavras e muitas vezes
ironicamente e sempre depois de terem ganho confiança no entrevistador,
desvendam o projecto que acarinham ou que realizam fora da empresa; este
"outro lugar", por vezes indeterminado, para onde "estão de partida" ou
que, por vezes, já está presente numa esfera escondida, tão íntima como
social: "criar uma PME", "tornar-se cabeleireira por conta própria", "ser
um dia professora do 1.o ciclo", "criar o meu gabinete de estudos",
"tornar-se jurista", etc. A confidência não é sistemática, a relação com
a origem social ou o ambiente familiar é raramente explicitada, o grau de
envolvimento no projecto é, muitas vezes, fluido, mas toda a entrevista
toma uma coerência nova quando se revela a "lógica afectiva" (Michelat,
1975, p. 232) que a subentende e lhe dá a sua significação identitária.

Este tipo de revelação que não é sistemática coexiste em geral com a


afirmação de um desejo de evoluir na empresa no caso de esta lhes
oferecer oportunidades interessantes. Mas muitas vezes, *e em particular
nas mulheres*, as perspectivas de progressão interna excluem
explicitamente o acesso a funções de enquadramento. Elas não querem
"tornar-se chefe", ter funções de autoridade, ter de "julgar as outras".
Aquilo que desejam é serem "responsáveis por elas próprias", de já não
estarem "na produção", já não se sujeitarem à dependência hierárquica. A
aspiração identitária é a autonomia.

12.3. A identidade relacional para si: postura crítica e oportunismo

As relações que mantêm os assalariados atrás referidos com a hierarquia


são ambivalentes: reticentes, até mesmo rebeldes, relativamente a
qualquer forma de comportamento :,
autoritário, dizem-se muitas vezes participativos em qualquer iniciativa
que vise atenuar o carácter rotineiro do trabalho ou a sobrecarga de
tarefas burocráticas da organização. Aprovam o espirito das experiências
em curso e participam geralmente nos grupos organizados para este efeito.
Apresentam-se mesmo, por vezes, como parceiros activos dos seus
responsáveis no exercício da função de animador: valorizam o diálogo, os
debates, as iniciativas destinadas a aumentar a autonomia dos
executantes. Mas também são muito críticos em relação à persistência dos
modos de gestão herdados do sistema anterior e que perduram nas
experiências em curso. Eles tornam-se mesmo francamente "vingativos"
quando a hierarquia lhes parece incapaz de desenvolver projectos
participativos ou racionalizadores da empresa. Esta relação pode tomar
uma forma conflitual quando a "competência" dos seus chefes é posta
explicitamente em causa. Nestas circunstâncias eles sentem-se na
obrigação de mobilizar *redes* exteriores ao serviço e até mesmo apelar
para a arbitragem de responsáveis superiores para deste modo evitar
confrontos pessoais ameaçantes. Estes incidentes alimentam o processo de
rotulagem de que eles, por vezes, são objecto, reforçando assim a sua
dilaceração identitária. É assim que alguns forjam, pressionados por
outrem, esta "subcultura desviante" (Becker, 1963) que lhes permite
partilhar com uma *rede* de semelhantes a mesma postura crítica e os
mesmos projectos ou fantasmas de abandono da empresa.

No entanto, as atitudes relacionais continuam, na maior parte dos casos,


assinaladas pela marca do individualismo: não manifestam, geralmente,
qualquer consciência de pertença a um colectivo interno à empresa. Para
realizar os seus objectivos pessoais, eles tentam tirar partido das
oportunidades que se desenvolvem com as inovações. Inscrevem-se
activamente nas iniciativas que visam desenvolver a mobilidade, mas
tentam antes de mais utilizá-las em seu beneficio: beneficiar de
formações que atribuem diplomas, aceder a postos que lhes deixam mais
autonomia para as iniciativas externas, escapar aos constrangimentos da
mobilização colectiva. Deste ponto de vista, eles integram-se,
claramente, na categoria daqueles que recebem uma forte retribuição em
troca de uma fraca retribuição, sendo pelo menos esta a opinião da sua
hierarquia (Benoìt-Guilbot, 1965). Pervertem assim os princípios oficiais
que presidem à implementação das inovações para os converterem em
instrumentos de realização dos seus próprios objectivos (lastree, 1989,
pp. 416 e seguintes).

12.4. Uma articulação instrumental das duas transacções

De uma forma exactamente oposta à dos assalariados em promoção interna,


os indivíduos à procura de autonomia tentam pôr a transacção objectiva
com a empresa ao serviço da transacção subjectiva com eles próprios. Ao
anteciparem a sua trajectória futura não em função das oportunidades ou
dos reconhecimentos da parte da sua empresa actual, mas tendo por base
prioritária a sua história passada e as suas formações anteriores,
eles :, procuram, nas suas relações de trabalho e nas transacções com os
superiores, os meios para fortificar e construir projectos que, na sua
génese e na sua finalidade, são estranhos às dinâmicas colectivas da sua
empresa.

Jogam, por isso, um jogo perigoso que só tem hipótese de êxito se se


apoiar em *redes* afinitárias que os protegem das relações hierárquicas
oficiais. É graças às zonas de incerteza, provenientes da complexificação
das relações de poder e, por vezes, do desmembramento das formas de
transacção institucional, que eles podem assim utilizar a parte que lhes
cabe nos espaços desocupados no interior dos jogos institucionais
legítimos. Mas eles são também constrangidos a praticar esta estratégia
oculta num universo fortemente estruturado por "constrangimentos"
económicos externos porque os projectos colectivos que subentendem estes
jogos legítimos só raramente têm em conta as aspirações individuais.

A identidade dividida destes assalariados revela, portanto, a ausência


quase geral de um lugar onde possam articular-se eficazmente os projectos
estratégicos da empresa com os projectos biográficos dos seus
assalariados (Sainsaulieu, 1987, pp. 359-367). Não só a maior parte das
empresas não possui qualquer informação sistemática das trajectórias dos
assalariados, mas também muito poucas se preocupam em recolher os
projectos pessoais dos assalariados para elaborar a gestão previsional
dos "recursos humanos". Podemos, a este respeito, interrogarmo-nos sobre
os efeitos do reducionismo economicista que preside geralmente às
tentativas de elaboração dos planos individuais de carreira (dos quadros
quase exclusivamente) na sua relação mais ou menos estreita com os
projectos da empresa. A redução destes planos a posições sucessivas nas
grelhas salariais deixa completamente de fora a questão das aspirações
identitárias e, portanto, das competências efectivas em que os
assalariados estão prontos a investir na sua vida de trabalho. Todas as
mulheres questionadas, no inquérito sobre as inovações de formação, e
cuja identidade releva do modelo aqui apresentado, insistem, no entanto,
na exigência de "desenvolvimento pessoal" e na sua aspiração a um
"trabalho interessante e descontraído", tendo uma relação com "as
possibilidades de aprender cada vez mais" no trabalho e insistem, muitas
vezes, na transferabilidade destas "valorizações" para a esfera familiar
("ajudar as crianças a serem bem sucedidas nos estudos", "abrir os seus
horizontes", "comunicar com elas", etc.). Efectivamente, trata-se de algo
mais do que de uma reorganização das condições de trabalho: trata-se de
fazer evoluir o próprio conteúdo das actividades, desenvolvendo,
nomeadamente, a autonomia interna e as relações externas (contactos com
os clientes, os fornecedores, os outros serviços...). É porque estes
valores não lhes parecerem estar presentes nas dinâmicas internas da
empresa que elas reactivam aspirações a actividades profissionais
externas. O desdobramento da sua identidade não é, muitas vezes, mais do
que a contrapartida da dualidade da empresa tal como elas a vivem:
discurso oficial/práticas efectivas; organização formal/jogos informais;
mudança proclamada/permanência constatada, etc. A partir do momento em
que as formas da transacção objectiva não são modificadas, bem como as
*regras* informais que governam esta transacção (prioridade aos mais
conformistas em detrimento dos inovadores, aos homens em detrimento
das :,
mulheres, ao conformismo em detrimento da crítica, etc.), a única maneira
de tentar "realizar-se no trabalho" é servir-se dessas regras -- fingindo
aderir-lhes -- para fazer avançar a única transacção importante, aquela
que se estabelece consigo na realização da identidade para si. Se nenhum
"outro" exterior valida, garante e reconhece esta transacção subjectiva,
corre-se o risco evidente de um solipsismo soberano. Ora, o perigo é
grande em constatar que a empresa só reconhece aqueles que a servem:
querer servir-se dela é arriscar nunca ver reconhecido aquilo que se
deseja ser.
12.5. Identidade em formação ou identidade de rede?

O espaço privilegiado de reconhecimento destes assalariados não pode,


então, ser a empresa. Definindo-se, antes de mais, pelo seu diploma ou
pela sua formação actual ou passada, por vezes, também por uma "paixão"
exterior ao trabalho profissional exercido, denunciam o seu desejo de
serem, antes de mais, reconhecidos pelo valor dos seus títulos no espaço
das posições escolares que é, muitas vezes, transferido para a sua
formação contínua. No inquérito sobre as identidades profissionais dos
operários da siderurgia, C. Agache nota que os "jovens com BAC",
maioritariamente de origem não operária, "se definem, antes de mais, não
pelo seu trabalho, mas sim pela sua formação" (1989, pp. 113 e
seguintes). Não se apelidam de operários, mas, por vezes, de técnicos e
quase sempre como possuindo um BAC. Definem-se pelos seus *saberes* e não
pelas suas actividades. Consideram-se muitas vezes "em formação". Como
assinala Boltanski, a propósito dos quadros que frequentam com
assiduidade cursos e estágios de qualquer tipo, "a intenção de se
instruir, para além da idade socialmente reconhecida para os estudos e de
se manter, o mais tempo possível, numa situação de aluno ou de estudante
-- isto é, numa situação de relativa incerteza no que se refere ao futuro
--, tende, sob a pressão dos constrangimentos objectivos da carreira, a
impor-se colectivamente a gerações e a categorias inteiras de
assalariados" (1982, p. 451).

Por este facto, a identidade para si é sempre, parcialmente, virtual:


nunca se é o que se faz, nem sequer aquilo que se é no presente. Finge-se
sempre. D. Laing dá o nome de "*elusão*" a esta construção de uma
"situação instável" que "é produto de si própria" (*op. cit.*, p. 63).
Ele define esta "elusão" como "uma relação em que, acima de tudo, se
finge estar longe do seu eu original para, de seguida, fingir ter
renunciado a esta simulação de forma a encontrar-se aparentemente no
ponto de partida" (id., p. 52).

Neste caso, a divisão do eu resulta de uma dissociação voluntária que


implica uma dupla simulação: a simulação de um "eu interior" vivido como
verdadeiro, autêntico mas indeterminado e não realizado; a simulação de
um "eu exterior" vivido como falso, não autêntico mas bem real e
actualizado.

Esta personalidade considerada, por vezes, esquizóide, isto é, "a quem


falta o sentimento habitual de unidade da pessoa", deve, neste caso, ser
interpretada como uma identidade :,
social continuamente desdobrada porque vivida como perpetuamente "em
transformação". Cada sequência de formação bem sucedida, cada descoberta
cultural intensa, longe de estabilizar uma identidade profissional
precisa, engendra um desejo de formação complementar que reactiva o
desdobramento anterior, de uma forma que será tanto mais viva quanto ela
for acompanhada por uma actividade de trabalho vivida como
constrangimento e regularmente desvalorizada. O processo identitário
auto-alimenta-se da vontade "de nunca ser aquele que todos julgam que é"
que encontra no acto de formação a sua última confirmação. à pergunta:
"Mas afinal quem é você?", o indivíduo só pode responder: "Eu estou em
formação".

Uma outra interpretação -- complementar e não contraditória -- deste


desdobramento consiste em esclarecê-lo através da sua posição sempre
ambivalente, situada na fronteira entre o interior e o exterior da
empresa e através do forte investimento nas redes de afinidade que são
sempre internas e externas. Estas redes permitem-lhes estar atentos às
oportunidades de emprego susceptíveis de os interessar ao mesmo tempo que
adquirem os títulos ou as competências valorizáveis no âmbito do que C.
Sabel chama mercados abertos do trabalho que atribuem, aos assalariados
que ai se encontram, uma identidade "de tipo Groucho Marx" (Sabel, 1991),
devido ao seu jogo nas margens do sistema.

Sempre à procura de si mesmo, o indivíduo assim investido nas suas redes


está também -- pela e na formação -- à procura de saberes. Estes saberes
que estruturam e desestruturam, ininterruptamente, a identidade não são
nem saberes praticados nascidos da experiência partilhada, nem saberes
profissionais construídos no ofício praticado, nem saberes de organização
experimentados nos jogos de poder, são saberes puros, teóricos e
culturais, isto é, despidos de qualquer interesse imediato que nunca
indicarão o que há a fazer, mas somente o que há a saber. Esta vontade de
saber produz-se a si própria, no ciclo renovado dos seus programas, das
suas divisões e das suas progressões indefinidas. Ela traduz assim, à sua
maneira, a procura incessante "daquilo que o saber só pode ensinar, ou
seja, activar a ignorância" (Lacar, 1971, p. 156).

12.6. Uma identidade social individualista?

De todos os inquéritos recentes, baseados nas identidades sociais na


empresa, emerge este tipo de assalariado qualificado muitas vezes de
individualista e descrito como estando deslocado tanto em relação às
normas colectivas dos grupos profissionais como em relação aos jogos de
poder que se integram na organização.

Na investigação levada a cabo junto dos assalariados de centrais


nucleares, designámos os indivíduos que relevam deste tipo como "activos
inadaptados" que multiplicam as iniciativas de participação e de formação
sem ter em conta a lógica muito estruturante do "sistema de formação-
carreira" (Dubar, Engrand" 1986, p. 46). Não se salientava no seu
discurso qualquer consciência de pertença a um colectivo interno ou
externo à empresa :, nem um empenhamento em utilizar as regras informais
da empresa unicamente para garantir o seu projecto individual, quase
sempre, vago e incerto. O que era identificado como "relação instrumental
à empresa" não podia, então, ser ligado a nenhuma construção identitária
precisa. Não estando ameaçados de exclusão, tendo renunciado a qualquer
ideia de promoção interna, eles não se sentiam, apesar disso, como
pertencendo a algum grupo social particular e referiam-se a projectos
exteriores que pareciam muito míticos ("trabalhar por conta própria",
"criar a sua empresa".. .).

Na investigação incidindo sobre identidades sociais dos técnicos, G. de


Bonnafos realça a existência de um conjunto de representações muito
estruturadas em torno da reivindicação de autonomia e da imagem da
empresa como "sistema que dá hipótese de evolução ao indivíduo" (1988, p.
56). As práticas de formação concebidas como "acumulação de conhecimentos
que poderão ser úteis noutras ocasiões" (*id.*, p. 92) são fortemente
estruturantes de uma identidade que é definida como "técnica,
colaboradora dos engenheiros". Não se trata tanto de uma identidade
expressa em termos de pertença, mas de uma identidade definida em termos
de relação personalizada, de tal forma que a podemos encontrar em algumas
secretárias qualificadas que se apresentam como "assistentes" ou
"colaboradoras" pessoais do chefe de serviço (lastree, 1989, Dubar-
Gadrey, p. 360).

O "modelo afinitário" construído por R. Sainsaulieu sintetiza muito bem


uma parte importante destas características identitárias: "identidade
instável e sempre reconstruída, a identidade revela um desfasamento
permanente entre os meios de afirmação do eu e as possibilidades de
reconhecimento colectivo" (1985, p. 339). Associada a uma "perda de
pertença aos grupos" e, simultaneamente, a uma "forte implicação nas
relações com os chefes e os colegas", esta identidade vivendo de "mal-
estares" e de "ansiedades" aparece explicitamente como estando em "crise
permanente".

Nas investigações incidindo sobre as situações exteriores à empresa e ao


emprego, aparece igualmente um tipo de identidade muito impregnado de
individualismo onde não se vive a situação em termos de exclusão, mas
antes de hipótese de "realização do eu". Assim, aquilo que D. Schnapper
chama "desemprego invertido" (1981, pp. 116 e seguintes) corresponde à
construção de uma situação onde os períodos de desemprego são vividos
como uma recuperação de um tempo para si, como uma possibilidade de fazer
finalmente aquilo de que se gosta ("devorei livros durante um ano", p.
118), como uma reactualização de um ritmo de vida estudantil, como uma
hipótese de retomar estudos com uma componente muito cultural
("sociologia, história, psicanálise", p. 125). Este "mundo vivido" é
analisado como um produto do desfasamento entre o sistema de valores
oriundo da formação inicial (universitária) -- "independência, a própria
realização" -- e o universo das normas vivido anteriormente no trabalho
(de execução) -- postos de empregados dependentes e muitas vezes
rotineiros" -- que produz uma recusa da identidade profissional e uma
espécie de retorno a uma identidade estudantil. De facto, os
desempregados em causa (na maioria desempregadas) não "entraram,
subjectivamente, no mercado do trabalho regular" (*id.*, p. 130). O que o
autor chama "a identidade pelo discurso" :, substituindo "a identidade
social que é dada normalmente pela actividade profissional" (*id.*, p.
130) não é mais do que esta identidade instável em formação que
caracteriza claramente os indivíduos em contramobilidade social que
recusaram investir-se num trabalho que consideram desqualificado. As
referências à vocação e à criação traduzem tanto a aspiração a "uma outra
cultura baseada na autenticidade" como a rejeição de uma "definição do eu
forjada a partir do trabalho de execução". O desemprego pode então
constituir um parêntesis no desdobramento reactivando a esperança de
escapar duravelmente deste desdobramento.

É o caso de alguns assalariados despedidos qualificados de "verdadeiros


reconvertidos" que, "decepcionados com a sua actividade profissional
anterior", encontram um novo equilíbrio num ofício totalmente diferente"
(Lerolle, 1991) bem como o de desempregados de longa duração "expeditos"
que se inscrevem numa lógica de autonomia (Demazière, 1992).

O modelo da "reforma-terceira idade" construído por A.-M. Guillemard


(1972, pp. 37-38) poderia muito bem corresponder à consumação biográfica
desta identidade. Neste modelo integram-se aposentados que se dedicam a
"actividades criadoras socialmente reconhecidas" que já tinham sido
exercidas mas de uma forma menos intensa durante a vida de trabalho. Um
antigo quadro, que se tornou escritor, utiliza uma expressão
significativa para designar esta recuperação de identidade que perseguiu
durante toda a vida: "resumindo, voltei a ser eu próprio" (p. 38). É
apenas devido à reforma que permite libertar da obrigação do trabalho
instrumental ou constrangedor que alguns acedem a formas mais ou menos
reconhecidas e mais ou menos sucedidas de identidade de artista, de
identidade individualista dado que a actividade, sobretudo, expressiva
está pouco socializada e implica, muitas vezes, reconhecimentos limitados
e, por vezes, frustrações que subsistem.

Desta maneira encontramos uma minoria de assalariados que vivem o seu


despedimento como uma hipótese de "realização do eu num projecto"
(Cherain, Demazière, 1989) que vivem e que reactivam velhos sonhos de
criança e projectos profissionais que foram contrariados na adolescência
("eu queria ser professor de ginástica, mas não foi possível por razões
médicas"). Todos eles insistem no carácter eminentemente pessoal das suas
iniciativas de emprego e de formação ("a minha formação fui eu sozinho
que a encontrei na faculdade") e na sua reacção instrumental tanto
relativamente à sua antiga empresa ("aproveitei de X o que pude
aproveitar, inclusive a minha saída da empresa") como relativamente aos
dispositivos públicos de acompanhamento dos despedimentos ("aproveitei o
que me pode ser útil, mais nada"). Insistem muitas vezes na não-
identificação com o antigo emprego, condição necessária para tornar o
despedimento numa oportunidade de construção de uma nova identidade
profissional.

Contrariamente aos assalariados que vivem o desemprego e a reforma em


termos de exclusão e que não podem opor uma resistência eficaz à
imposição por outro de uma identidade conforme a este processo, estes
indivíduos aproveitam o desemprego ou a :, reforma para reavivar uma
identidade para si construída por uma divisão e um adiamento no decurso
do seu período de trabalho. Será que se pode falar de um reconhecimento
identitário quando não existe, na maior parte dos casos, uma
profissionalização desta actividade que é praticada como um lazer?
Obviamente que não se trata de uma identidade de ofício que implica um
espaço profissional estruturado. Trata-se, mais, de uma identidade
instável, móvel, dilacerada que corresponde a uma dissociação duradoura
entre a identidade para si (herdada das origens e projectada num futuro
inacessível) e a identidade para outro (atribuída na base da actividade
de trabalho e dos estatutos sociais oficiais). É uma identidade que
combina a mobilidade com a ausência (ou a recusa) de enraizamento
profissional ou organizacional. Constituída à volta da reivindicação de
autonomia, expõe aqueles que a vivem aos riscos do "vazio social" (Barel,
1984), da dessocialização ligada ao desdobramento e mesmo à
estigmatização psiquiátrica que acompanha todas as formas ameaçantes de
fechamento sobre si próprio.

12.7. Configuração identitária e geração: o estudante tradicional, o


assalariado estudante

Na geração dos jovens operários parisienses, estudados por N. Abboud,


encontra-se apenas um tipo de expectativas susceptível de se aproximar
parcialmente da relação ao futuro aqui referida: é o dos jovens
"companheiros" das pequenas empresas tradicionais que, à conquista da
"autonomia profissional", procuram tornar-se artesãos (1968, pp. 64-65).
Eles definem o trabalho pela aprendizagem e pela formação e só vivem a
sua situação presente de uma maneira provisória e pelo facto de ela lhes
trazer experiência. Mas eles constituem apenas uma pequena minoria do
universo dos jovens operários inquiridos.
Na sua investigação sobre os futuros técnicos, M. Haicault identificava,
em contrapartida, um grupo bastante importante (mais de um terço) de
"rebeldes inovadores" dos "projectos já há muito tempo desvirtuados" e
não conformes à orientação inicial. Eles valorizavam bastante a
realização de si na profissão e encontravam-se todos em *lycées*

é também junto dos estudantes que é preciso procurar a presença de uma


tal identidade na geração do pós-guerra. Esta identidade estudantil
define-se, antes de mais, por uma recusa: recusa da identidade herdada do
meio social e "distanciamento relativamente à ideia insuportável de uma
determinação" que pesa sobre as suas escolhas de futuro. Manifesta-se, em
seguida, ela ligação a uma situação transitória, "a transfiguração
simbólica da necessidade de liberdade", a vontade de ser apenas um "puro
projecto de ser", a aspiração a um "modelo estudantil" feito de
anticonformismo que disfarça mal uma obediência às normas do meio
intelectual e um conjunto de atitudes culturais impostas (Bourdieu,
Passeron, 1964, pp. 62 e seguintes). Se se pode admitir que esta
identidade não é mais do que a dos estudantes de origem burguesa, a
verdade é que, na época, ela :, impregna o conjunto do "meio" estudantil
É típica do "tempo dos estudos" (Verret, 1974) no decurso do qual são
suspensas as pertenças sociais anteriores e futuras em nome de uma lógica
autónoma das aprendizagens. Importa, então, não ser nada (de definitivo)
para poder ser tudo (o possível): adiar as escolhas implica manter uma
identidade suspensa.

O que é que teria acontecido à geração seguinte desta identidade de


espera construída em torno da formação e do tempo de estudos? A
transformação radical das condições da inserção profissional que sofreu
um prolongamento generalizado (Baudelot, 1988), o reforço do privilégio
relativo dos estudantes no acesso ao emprego articulado com uma
democratização relativa do acesso às diversas formas de ensino superior
tendem, sem qualquer dúvida, a fazer evoluir o modelo da identidade
estudantil para uma diversificação acrescida das suas formas segundo as
vias de ensino e as suas relações com as posições sociais futuras. Uma
percentagem crescente de estudantes ultrapassaram a idade "normal" para
os estudos e ocupam um emprego assalariado. Muitas vezes, não possuem
qualquer objectivo preciso para prosseguirem os estudos superiores, mas
investem nos estudos o que melhor têm de si. A identidade já não tem
muito a ver com a dos estudantes diletantes e filhos de burgueses dos
anos 60 que deixavam transparecer uma relação distanciada com os estudos.
Contudo, o que há de comum entre eles é, simultaneamente, a recusa da
identidade herdada e a vontade de não atingir qualquer identidade
definida: eles estão numa situação de incerteza relativamente à sua
identidade social que foi completamente definida por eles numa relação
com o saber teórico, constituindo esta relação o único vector aceitável
da sua identidade presente. Estes verdadeiros estudantes são muitas vezes
"falsos assalariados" (Magaud, 1974) que escondem frequentemente a
natureza do seu emprego.

Finalmente, o seu desdobramento parece maior e mais durável do que o dos


estudantes típicos da geração precedente. A identidade que recusam é a
que herdaram da sua experiência de trabalho e não apenas a que herdaram
da sua família de origem. A dissociação entre identidade herdada e
identidade visada não integra apenas o risco do que V. de Gaulejac chama
nevrose de classe (1987), mas ela inclui a prática de um desdobramento
permanente da identidade entre a que é desencadeada na esfera do trabalho
e a que é investida -- e geralmente reconhecida -- na formação ou no
universo dos fazeres. Este desdobramento implica um duplo jogo: fingir o
investimento mínimo no trabalho para obter em troca as condições para
realizar uma formação ou para se entregar à paixão; esconder os
constrangimentos e as realidades culturais no seu meio de trabalho para,
em troca, obter o reconhecimento no universo da "vida verdadeira". Esta
forma exacerbada de divisão do eu, ligada a uma espécie de instalação num
no *man's land social* situado no âmago da dualidade entre o estratégico
e o comunicacional, não estará intimamente ligada ao desenvolvimento de
todas as formas "modernas" de mobilidade na incerteza? Não constituirá
ela, com a exclusão dos "baixos níveis" e com o bloqueamento das
identidades de ofício, uma das formas menos espectaculares mas mais
maciças da "crise actual das identidades"?

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conclusão

As formas elementares da actual identidade profissional e social

As quatro identidades profissionais típicas precedentes foram


reconstruídas a partir de diversos estudos empíricos largamente
convergentes (61). Não são deduzidas a partir de qualquer combinação *a
priori* de variáveis, dimensões ou atributos privilegiados. Estão
enraizadas na esfera socioprofissional mas não se reduzem a identidades
no trabalho. Elas correspondem a trajectórias sociais diferentes mas não
são reduzidas a *habitus* de classe. Elas envolvem as categorias
oficiais, as posições nos espaços escolares e socioprofissionais, mas não
se resumem a categorias sociais. São intensamente vividas pelos
indivíduos em causa e reenviam tanto para definições de si como para
rotulagens feitas pelos outros: são, pois, formas identitárias no sentido
em que foram definidas no último capítulo da primeira parte.

(61) Entre os inquéritos citados, treze chegam a uma mesma tipologia de


quatro tipos (Abboud, 1968; Benoìt-Guilbot, 1965; Haicault, 1969;
sainsaulieu, 1977; Dubar, Engrand, 1986; Dubar *et aliii*, 1987; de
Bonnafos, 1988; lastree, 1989; Agache, 1989; Cherain, demazière, 1989;
Lerolle, 1991; Demazière, 1992;Agache, 1993) e quatro a tipologias de
três ou cinco tipos (Guillemard, 1972; Schnapper, 1981; bernoux *et
alii*, 1984; Baudelot, 1986), próprios dos precedentes na medida em que
os podemos ligar ao mesmo
"modelo tetrapolar" (dubar, 1990). cf. bibliografia no fim da terceira
parte (pp. 230-232.)

Estas formas identitárias podem ser interpretadas a partir dos modos de


articulação entre transacção objectiva e transacção subjectiva, como
resultados de compromissos "interiores" entre identidade herdada e
identidade visada, mas também de negociações "exteriores" entre
identidade atribuída por outro e identidade incorporada por si.

Como caracterizar os diversos resultados destas duas transacções? A


transacção subjectiva pode levar a uma *continuidade* entre identidade
herdada e identidade visada ou a uma *ruptura*, a um desfasamento, entre
a definição do eu oriunda da trajectória anterior e a projecção do eu no
futuro. As identidades construídas no modo da *continuidade* implicam um
espaço potencialmente unificado de realização, um sistema de emprego no
interior do qual os indivíduos desenvolvem trajectórias contínuas. Este
espaço pode ser de tipo profissional (de acordo com o modelo geral do
ofício) ou de tipo organizacional (de acordo com o modelo geral da
burocracia ou da empresa). No primeiro caso, os indivíduos constroem uma
identidade profissional (de ofício), projectando-se num espaço de
qualificação que implica reconhecimentos de "profissionalidades"
estruturantes; no segundo caso, as identidades profissionais (de empresa)
constroem-se pela projecção no espaço de poder hierárquico que implica
reconhecimentos de "responsabilidades", estruturantes da identidade. As
identidades construídas no modo da *ruptura* implicam, pelo contrário,
uma dualidade entre dois espaços e uma impossibilidade de se construir
uma identidade de futuro no interior do espaço produtor da sua identidade
passada. Para encontrar ou voltar a encontrar uma identidade, é preciso
mudar de espaço. A identidade :, projectada pode ser sobrevalorizada ou
desvalorizada em relação à identidade herdada. Ela está em ruptura com
ela.

A transacção objectiva, articulada com a precedente, pode levar a um


reconhecimento social ou a um *não-reconhecimento*. No primeiro caso,
existe uma instituição que legitima a identidade visada pelo indivíduo: a
empresa ou a organização profissional na base do seu modelo identitário
ou de competência, a instituição escolar ou o organismo de formação na
base do diploma possuído ou dos saberes adquiridos. No segundo caso, as
pretensões ao reconhecimento não são adquiridas: o futuro da instituição
não coincide com o futuro do indivíduo, quer este futuro se tenha
construído em continuidade, quer em ruptura com o passado. Em termos
interaccionistas, o reconhecimento é o produto de interacções positivas
entre o indivíduo visando a sua identidade real e o outro significativo
que lhe confere a sua identidade virtual; o não-reconhecimento resulta,
pelo contrário, de interacções conflituais, de desacordos entre
identidades virtuais e reais.

As duas transacções (62) são relativamente independentes, mas


necessariamente articuladas. Quando a transacção subjectiva se estabelece
na base da ruptura, são possíveis duas saídas para a transacção
objectiva. Ou a ruptura é acompanhada por um conflito entre a identidade
atribuída pela instituição e a identidade forjada pelo indivíduo,
encontrando-se, neste caso, o indivíduo num processo de exclusão que
origina uma IDENTIDADE AMEAÇADA, ou então a ruptura é acompanhada por
confirmações legítimas pelo Outro da identidade para si e encontramo-nos
num processo de conversão que origina uma IDENTIDADE INCERTA. OS dois
tipos extremos (caps. 9 e 12) correspondem, sem dúvida, a estes dois
modos de articulação. Nos dois casos, a identidade desenha-se entre o

(62) O termo transacção é aqui utilizado no sentido amplo incluindo a


transacção com outro num sistema de acção e transacção consigo próprio
num processo biográfico. O uso de um mesmo termo justifica-se pela
estrutura comum dos processos relacional e biográfico.

espaço "interno" do trabalho, do emprego e da empresa e o espaço


"externo" do fora-do-trabalho, do desemprego ou da formação: as
trajectórias comportam empregos, formações possíveis e desempregos
prováveis. Mas, num caso, a passagem do trabalho ao fora-do-trabalho
resulta de um conflito e toma a forma de um processo de exclusão; no
outro, a passagem é voluntária e é acompanhada por formas de confirmações
da sua legitimidade pelas instituições (diplomas escolares ou práticas
culturais reconhecidas).

Quando a transacção subjectiva se baseia na continuidade, os dois


resultados da transacção objectiva são mais simples de descrever: ou a
progressão visada é reconhecida, encorajada, confirmada e encontramo-nos
num processo de promoção que diz respeito a uma IDENTIDADE DE EMPRESA, ou
então a progressão visada é invalidada, recusada, infirmada e encontramo-
nos num processo de bloqueamento que diz respeito a uma identidade de
ofício. Nos dois casos, a construção da identidade decide-se num espaço
único que estrutura a natureza das competências e os modos legítimos de
reconhecimento: espaço organizacional da empresa ou espaço profissional
do ofício. Trata-se, pois, das :, duas principais formas de "mercados
fechados do trabalho" que correspondem a dois modos significativos de
socialização profissional (cf. segunda parte). Os dois tipos centrais
(caps. 10 e 11) estão muito próximos destes dois novos modos de
articulação.

Os quatro processos identitários típicos

::::::
Identidade para si:
-- Transacção subjectiva

identidade para outro:


-- continuidade
-- ruptura

transacção objectiva:
-- reconhecimento
promoção (interna) identidade de empresa (capítulo 11)

conversão (externa) identidade de rede (capítulo 12)

-- Não reconhecimento
bloqueamento (interno) identidade de ofício
(Capítulo 10)

exclusão (externa) :identidade de fora-do-trabalho


(Capítulo 9)
:::::

Assim reconstituído, o espaço social das identidades típicas constitui


uma espécie de meta-espaço que ultrapassa a esfera do trabalho e engloba
a do fora-do-trabalho. Cada configuração identitária implica uma relação
com o espaço social e, portanto, uma redistribuição dos subespaços que o
estruturam. Estes subespaços constituem, nomeadamente, sistemas de
emprego (cf. capítulo 6) no seio dos quais os indivíduos desenrolam a sua
trajectória ao longo de vias reais ou virtuais: vias de empresa, de
ofício, de rede ou de exclusão (fora-do-trabalho). Cada configuração
identitária pode, portanto, ser associada a uma espécie de "carreira"
(aberta ou bloqueada) no interior destas vias potenciais que constituem
outros tantos espaços típicos de reconhecimento possível. Cada
configuração pode também ser esclarecida pelos tipos de relações
profissionais e pelos actores típicos destes diferentes espaços: actores
"internos" à empresa, actores que estruturam os ofícios ou os ramos
profissionais, actores da formação, actores da gestão social do
desemprego... (cf. capítulo 7). A construção das identidades é, portanto,
inseparável da existência de espaços de emprego-formação e dos tipos de
relações profissionais que estruturam as diversas formas específicas de
mercados do trabalho: mercados internos das firmas, mercados
profissionais ou de ofícios, mercados externos... (cf. capítulo 8).

As configurações identitárias típicas poderiam ser abstractamente


associadas a "momentos" privilegiados de urna biografia profissional
ideal: momento da *construção* da identidade que corresponde
tradicionalmente à formação profissional inicial (cf. capítulo 12),
momento da *consolidação* da identidade ligado à inserção e à aquisição
progressiva da` qualificação nas carreiras do ofício (cf. capítulo 10),
momento do reconhecimento da identidade que está sujeita ao acesso a
responsabilidades na empresa (capítulo 11), :, momento de
*envelhecimento* da identidade e da passagem progressiva à reforma (cf.
capítulo 9). Mas, de facto, estes "momentos" nunca aparecem reunidos nos
diferentes tipos de carreiras profissionais associadas a cada
configuração típica: a estabilidade da primeira parece desembocar no
risco de exclusão permanente; a progressão na via especializada de
"qualificação" (ofício) da segunda parece estar hoje bloqueada; a
promoção interna ligada ao desenvolvimento de "competências" da terceira
parece implicar uma grande dependência em relação à empresa; a acumulação
de diplomas e de formações da quarta parece ter continuidade ao longo de
toda a vida profissional e mesmo para além dela. Assim, se desenham tipos
de temporalidades profissionais discutas que correspondem a modos de
estruturação da identidade por projecções nos futuros possíveis.

Se cruzarmos os tipos de espaços privilegiados com as temporalidades


estruturantes, chegamos a estes espaços-tempos constitutivos das
configurações identitárias mais elementares (cf. capítulo 5). Os quatro
espaços-tempos realçados empiricamente combinam os tipos de carreiras e
os "momentos" postos em destaque anteriormente: o espaço da formação está
associado à construção incerta da identidade; o espaço do ofício está
ligado à consolidação e ao bloqueamento de uma identidade especializada;
o espaço da empresa é aquele no qual se desenha o reconhecimento de uma
identidade confirmada; o espaço fora do trabalho é aquele onde se
(des)estrutura uma identidade de exclusão.

Cada configuração elementar típica está associada a um tipo de saber


privilegiado que estrutura a identidade e que constitui a matriz de
lógicas de acção salarial, de "racionalidades" específicas. Os *saberes
práticos*, oriundos directamente da experiência de trabalho, não ligados
a saberes teóricos ou gerais, são estruturantes da identidade hoje
ameaçada de exclusão; associada a uma lógica instrumental do trabalho
para o salário (ter), esta identidade conflitua com o novo "modelo da
competência" difundido nas empresas. Os *saberes profissionais* que
implicam articulações entre saberes práticos e saberes técnicos estão no
centro da identidade estruturada pelo ofício e hoje bloqueada na sua
consolidação; associada a uma lógica da qualificação no trabalho (FAZER),
esta identidade é, actualmente, desafiada a ser reconvertida ou a ser
reestruturada em função destas novas normas de competência. Os *saberes
de organização* que implicam outro tipo de articulações entre saberes
práticos e teóricos estruturam a identidade de empresa, que implica
mobilização e reconhecimento; associada a uma lógica da responsabilidade
(SER), esta identidade é hoje valorizada pelo modelo da competência,
tornando-se, ao mesmo tempo, cada vez mais dependente das estratégias de
organização. Por fim, os *saberes teóricos*, não ligados a saberes
práticos ou profissionais, estruturam um tipo de identidade marcado pela
incerteza e pela instabilidade e muito virado para a autonomia e para a
acumulação de distinções culturais (saber); associada a uma lógica da
reconversão permanente é, simultaneamente, o produto e o alvo das
incitações à mobilidade (muito desenvolvidas nas empresas e nas
administrações actuais).

Estas identidades profissionais e sociais, associadas a configurações


específicas de saber, são construídas
através dos processos de socialização, cada vez mais diversificados. :,

A socialização "inicial", durante a infância, combina mecanismos de


desenvolvimento das capacidades e de construção de "regras, valores,
sinais" (Piaget) oriundos da família de origem, mas também do universo
escolar e dos grupos de pares onde as crianças fazem as primeiras
experiências de cooperação. É assim que elas constroem as suas primeiras
identidades por assimilações e acomodações sucessivas (cf. capítulo 1).
Esta socialização contribui igualmente para fornecer as referências
culturais a partir das quais os indivíduos terão de identificar os grupos
de pertença e de referência, e de inferiorizar as características
culturais gerais, especializadas, opcionais e individuais (Linton), e de
antecipar as socializações ulteriores (cf. capítulo 2). Estas inscrevem-
se nas trajectórias sociais que implicam, a partir de "disposições"
adquiridas no decurso da primeira educação, a validação de "capitais
económicos e culturais" simultaneamente desiguais à partida e
desigualmente rendíveis de acordo com os campos da prática social (cf.
Bourdieu, capítulo 3). Esta socialização contínua é inseparável das
mudanças estruturais que afectam os sistemas de acção e induzem
reconversões periódicas das identidades previamente constituídas e das
"construções mentais" que lhes estão associadas (cf. Berger e Luckmann,
capítulo 4).

As identidades estão, portanto, em movimento e esta dinâmica de


desestruturação/ reestruturação toma, por vezes, a forma de uma "crise
das identidades". Cada configuração identitária tem hoje uma forma mista
no interior da qual as antigas identidades entram em conflito com as
novas exigências da produção e onde as antigas lógicas que perduram
entram em combinação e, por vezes, em conflito com as novas tentativas de
racionalização económica e social (Weber). São estas formas mistas de
permanência e de evolução, do antigo e do novo, do estável que se tornou
ameaçante e do instável que se tornou valorizante, que são evidenciadas
pelas análises empíricas cada vez mais numerosas que insistem tanto na
permanência como na mudança. Entre a tentação de interpretar os elementos
de permanência destes tipos -- e a sua transversalidade sistemática em
relação às categorias sociais -- em termos "psicológicos" ou
"fenomenológicos" (cf. as categorias de desilusão/ilusão/colusão/elusão
em Laing), e a tentação para privilegiar os elementos de evolução para os
deduzir das novas estratégias e políticas "económicas" ou "estruturais"
das empresas e do Estado, a apresentação adoptada tentou manter o ponto
de vista sociológico definido na primeira parte deste livro: as
identidades sociais e profissionais típicas não são nem expressões
psicológicas de personalidades individuais nem produtos de estruturas ou
de políticas económicas que se impõem a partir de cima, elas são
construções sociais que implicam a interacção entre trajectórias
individuais e sistemas de emprego, sistemas de trabalho e sistemas de
formação. Produtos sempre precários, se bem que muito construídos no
processo de socialização, estas identidades constituem formas sociais de
construção das individualidades, em cada geração, em cada sociedade. As
que foram postas em evidência aqui dizem respeito à França no fim dos
anos 80: elas têm apenas a validade dos inquéritos empíricos em que se
apoiaram e que representam apenas uma pequena amostra dos que foram
realizados ou que ainda se realizam. Graças a estes inquéritos, este
trabalho poderá ser criticado e continuado com bases mais alargadas.

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