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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

CÉLIA MAKI TOMIMATSU

A condição humana e as disposições sobre


o bem e o mal em Bhagavadgītā

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

São Paulo
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

CÉLIA MAKI TOMIMATSU

A condição humana e as disposições sobre


o bem e o mal em Bhagavadgītā

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciências da Religião, sob a orientação
do Prof. Dr. Silas Guerriero.

São Paulo
2013
Banca Examinadora

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「僕はいつだってしっかりと意識的に悪と抱き合って暮らしてきたから、
おかげでずっと善を見て来れたよ。
悪とは無縁の人は、善なんか見たことないんじゃない?」
「ほどほど」の効用 - 曽野綾子

Em todo momento de minha vida convivi conscientemente abraçado ao mal.


Graças a isso pude sempre ver o bem.
Alguém imune e indiferente ao mal talvez nunca tenha visto o bem.
Ayako Sono
AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, meus agradecimentos ao prof. Dr. Silas Guerriero pela orientação e pelo tempo
de convivência.

Ao prof. Dr. Frank Usarski que desde o início me ajudou com a formatação do projeto de
pesquisa e ofereceu valiosas sugestões bibliográficas antes e durante o Exame de Qualificação.

Ao prof. Dr. Décio Passos pela escolha final do tema desta pesquisa e composição inicial da
dissertação.

Ao prof. Dr. Pedro Lima Vasconcellos pelas sugestões dadas no Exame de Qualificação.

À profa. Ms. Vera Lúcia Paes de Almeida pelas aulas sobre Mahābhārata, às quais me
incentivaram a iniciar esta pesquisa acadêmica.

Ao Programa de Ciências da Religião da PUC-SP pela oportunidade de realizar o curso de


mestrado.

À CAPES, Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Ensino Superior, pela concessão de bolsa


de mestrado para a realização desta pesquisa.
RESUMO

Este trabalho tem como objeto de pesquisa a investigação sobre as disposições do bem
e do mal no texto hindu Bhagavadgītā, cuja passagem está inserida no Livro VI do épico
indiano Mahābhārata. O objetivo é refletir sobre a condição humana que permeia na
passagem de Bhagavadgītā, principalmente no que diz respeito à ideia acerca do bem e do
mal no contexto do diálogo entre os principais personagens deste capítulo: o deus Kṛṣṇa e seu
amigo Arjuna, o guerreiro Pāṇḍava. A hipótese é que, neste épico, nem o diálogo nem a
batalha narrada representam uma ação externa de um indivíduo, mas um discernimento
interno dos valores morais segundo o conceito de dharma do Hinduísmo, tendo, portanto, as
ações de Arjuna e tudo que o envolve como uma metáfora da condição humana para distinguir
o bem do mal. A metodologia escolhida foi a pesquisa bibliográfica baseada em autores
especializados como Sri Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Angelika Malinar (MALINAR,
2007), Paramahansa Yogananda (KRIYANANDA, 2007), Surendranath Dasgupta
(DASGUPTA, 1952), entre outros. O resultado desta dissertação procura colaborar na
discussão de tópicos como traduções e valores interculturais, que de acordo com as leituras do
bem e do mal do dharma Hindu, devem ser considerados fora do escopo do pensamento
ocidental e de qualquer julgamento de valor.

Palavras-chave: Hinduísmo, dharma, Ética Hindu, Bhagavadgītā, Bem e Mal.

Célia Maki Tomimatsu: A condição humana e as disposições sobre o bem e o mal em


Bhagavadgītā
ABSTRACT

The object of this research is an investigation about the disposition of good and evil in
the Hindu text Bhagavadgītā, which passage is inserted in Book VI of the Indian epic
Mahābhārata. The goal is to reflect about the human condition that permeates the passage of
Bhagavadgītā, about the ideas of good and evil, especially in the context of the dialogue
between the main characters of this chapter: the god Kṛṣṇa and his friend Arjuna, the Pāṇḍava
worrier. The hypothesis is that, in this epic, neither the dialogue nor the narrated battle,
represent an external action of an individual, but, due to the concept of dharma in Hinduism,
an inside discernment of moral values. Therefore, Arjuna’s actions and everything that
involves him, it is a metaphor of human condition in order to distinguish good and evil. The
chosen methodology was the bibliographical research based on scholars such as Sri
Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Angelika Malinar (MALINAR, 2007), Paramahansa
Yogananda (KRIYANANDA, 2007), Surendranath Dasgupta (DASGUPTA, 1952), and
others. The result of this dissertation try to collaborate to discuss issues like intercultural
translations and values that according to the Hindu dharma readings of good and evil must be
considered outside the scope of Western thought and any judgments of value.

Keywords: Hinduism, dharma, Hindu Ethic, Bhagavadgītā, Good and Evil.

Célia Maki Tomimatsu: The human condition and the disposition of good and evil in
Bhagavadgītā
SUMÁRIO

Introdução ........................................................................... 9
Notas sobre transcrição do sânscrito ........................................................................... 13

Capítulo I – Um contexto preliminar arqueológico-religioso da Índia antiga ... 14


1. Da oralidade para as escrituras ........................................................................... 15
1.1. Período védico ........................................................................... 15
1.2. Período bramânico ........................................................................... 20
2. Hinduísmo – um viver antes de um conceituar ............... 21
2.1. Varṇa e jāti: as tarefas do homem hindu ............... 23
2.2. Puruṣārtha e varṇāśrama: os percursos do homem hindu ............... 25
2.3. Darśana: um sistema de contemplação ............... 27
2.4. Deva e avatāra: as divindades entre os homens ............... 31

Capítulo II – Mahābhārata e Bhagavadgītā ....................................... 42


1. A narrativa épica de Mahābhārata ....................................... 42
1.1. A história do texto e do autor ....................................... 43
1.2. Os dezoito Parva de Mahābhārata ....................................... 46
1.3. Bhagavadgītā dentro de Mahābhārata ....................................... 63
2. A anatomia simbólica em Bhagavadgītā ....................................... 83
2.1. Os irmãos Pāṇḍava e os irmãos Kaurava ....................................... 84
2.2. O divino que se personifica ....................................... 86
2.3. A metáfora dos sentidos na batalha ....................................... 88

Capítulo III – Possibilidades de leitura sobre as percepções do bem e do mal ... 90


1. O discernimento e o equilíbrio interno como bem-estar ....................................... 90
1.1. Uma ideia acerca de dharma ....................................... 92
1.2. A questão ética em Bhagavadgītā ....................................... 95
2. A condição humana ....................................... 98
2.1. A dor e a morte como uma necessidade ....................................... 100
2.2. A questão do mal em Bhagavadgītā ....................................... 102

Considerações Finais ...................................................................................... 108


Referência Bibliografia ...................................................................................... 110
Glossário ...................................................................................... 116
Ilustração ...................................................................................... 121
9

INTRODUÇÃO

A Índia é um país peculiar. Não se enquadra em nenhuma “categoria” única. Não há


uma devoção única, não há um dialeto único, não há um “sabor” único. No entanto, ou talvez
exatamente por isso, dentro dessa mescla de pensamentos e cores, ela atrai e surpreende de
forma ímpar qualquer forasteiro desavisado. Difícil e imprudente seria afirmar “Isso é Índia”
ou “A Índia é assim”. Não há como fotografar uma Índia, pois não é uma cultura instantânea
nem de fácil assimilação. Os estereótipos são muitos e não raramente injustos devido a
inúmeras tentativas frustrantes de encaixá-la num perfil comodamente enciclopédico.
Os documentários midiáticos muitas vezes ensaiam ilustrar diversas facetas da Índia
das mais variadas formas: partindo do ilustre Taj Mahal, passa pelos encantadores de cobras,
pelas mulheres vestidas de sáris, pelos ascetas barbudos, pelo trânsito caótico costurado entre
bicicletas / carros / riquixás e, é claro, entre as vacas sagradas. Até mesmo os filmes de
Bollywood 1 , largamente popular na Índia, tornaram-se conhecidos fora de seu país. Da
pobreza extrema das grandes favelas às luxuosas mansões dos maharajás, tudo é parte
integrante da Índia. Hoje, século XXI, entra na cultura indiana também a alta tecnologia da
informática e os avanços das telecomunicações. Como conciliar mundos tão díspares?
Dentro desse universo complexo, a cultura sânscrita engloba simultaneamente
aspectos religiosos, filosóficos e míticos, sem que haja necessidade de subdividi-la para a
construção do sujeito perante seu objeto. Tudo está no sujeito, tudo está no seu objeto. Assim,
antes mesmo de teorizar a sua cultura e conceitualizá-la, o homem hindu é um homem do
viver e do agir. Ele apreende a realidade ao seu redor e o seu mundo interior segundo seus
ensinamentos sagrados. Vale aqui uma ressalva sobre o termo sagrado, que merece igual
cautela:
(...) A herança comum nem sempre é identificável no vocabulário, nem nas teologias e
mitologias da época histórica. Devem-se levar em conta, por um lado, os diferentes contatos
culturais realizados durante as migrações, cumpre não esquecer, por outro lado, que nenhuma
tradição religiosa se prolonga indefinidamente sem modificações, produzidas seja por novas
criações espirituais, seja por empréstimo, simbiose ou eliminação. O vocabulário reflete esse
processo de diferenciação e inovação, iniciado provavelmente desde proto-história. O exemplo
mais significativo é a ausência de um termo específico, no indo-europeu comum, para designar
o “sagrado” (ELIADE, 2011, 187).

Dessa forma, devemos inserir esta palavra (aliás, não só ela, mas os termos em
sânscrito de forma geral) levando em consideração a sua história interna e seu contato com o
mundo indiano e não indiano. Os rituais são processos e meios de devoção utilizados através

1 Derivado da palavra Bombaim – cidade cujo nome oficial é Mumbai – associado à Hollywood
10

de orações e recitações para que o homem hindu possa entrar em contato com o seu Supremo.
É nesse âmbito que utilizaremos a palavra sagrado.
A condição humana perante o sagrado visa antes de tudo obter um conhecimento do
ser enquanto seu ātman (traduzido geralmente como si-mesmo, self ou eu). Para atingir esse
patamar, há um processo ritualístico a ser seguido; existe um caminho a ser trilhado. Sua
observação e reflexão enquanto um ser baseia-se nesse viver. E esse viver tem como sua
principal fonte espiritual a prática do yoga, tema este de crucial importância abordada em
Bhagavadgītā, cuja passagem encontra-se em Mahābhārata2.
A obra Mahābhārata é considerada uma das maiores epopeias da história em termos
de volume e também uma importante fonte de informação sobre a cultura e a civilização da
Índia antiga, segundo historiadores e pesquisadores sanscritistas. Os elementos da cultura
védica e bramânica estão expressos através das aventuras e desventuras de seus personagens.
Os fundamentos religiosos do Hinduísmo são igualmente caracterizados ao longo da obra, em
especial nas passagens do Livro VI (do total de XVIII), o Bhagavadgītā. O diálogo entre os
personagens centrais desse trecho, Arjuna, e seu primo e conselheiro, o deus Kṛṣṇa, é de
importância primordial para apresentar o tema crucial de todo o Hinduísmo, o dharma.
Durante a batalha entre dois clãs, de um lado os irmãos Pāṇḍava e do outro, os irmãos
Kaurava, Arjuna (terceiro irmão Pāṇḍava) questiona quanto ao seu dever como guerreiro e,
portanto, necessita da intervenção do seu amigo Kṛṣṇa para que este possa despertá-lo e fazê-
lo discernir quanto ao bem e o mal segundo seu dharma.
Esta dissertação pretende focar a pesquisa sobre esse discernimento e a condição
humana envolvidos no diálogo dentro do Bhagavadgītā, sob os aspectos do termo bem e mal
dentro da ideia envolvida no dharma. Para tanto, faz-se necessário fazer um contexto
preliminar introdutório sobre o Período védico e o Período bramânico, mas que não visa um
estudo exaustivo sobre a história da Índia antiga nem tampouco tem a pretensão de fazer uma
análise aprofundada das escrituras sagradas da época.
No primeiro capítulo será feita, ainda que brevemente, uma apresentação da origem do
termo Hinduísmo e seus desdobramentos cultural, filosófico e religioso, perpassando pelas
suas escrituras. O objetivo aqui será de situar o leitor quanto a esses tópicos e dar um contexto
introdutório para entrar na questão mais importante que virá posteriormente. Como quadro
teórico, serão utilizados os estudos feitos pelos indólogos Louis Renou (RENOU, 1964;
2
O recorte feito nessa dissertação não incluirá detalhes minuciosos sobre os estudos do Yoga, pois não é o foco
deste trabalho devido a sua complexidade e, portanto, valeria uma outra pesquisa. Apenas serão feitas algumas
discretas passagens aqui e ali sobre ele no intuito de interar o leitor.
11

RENOU, FILLIOZAT, 1947), A. L. Basham (BASHAM, 1991 e 2004), Mircea Eliade


(ELIADE, 2010a, 2010b e 2011), Surendranath Dasgupta (DASGUPTA, 1952), Heinrich
Zimmer (ZIMMER, 1988), entre outros.
No segundo capítulo, analisaremos a obra Mahābhārata, com o objetivo de
contextualizar a passagem sobre o Bhagavadgītā. No primeiro subcapítulo apresentaremos a
“biografia” do autor, o resumo dos dezoito Livros do Mahābhārata e do Bhagavadgītā.
Focalizaremos a seguir a anatomia simbólica e metafórica dos personagens tanto humanos
quanto divinos. Quanto ao estudo sobre os Livros do Mahābhārata, veremos a tradução do
sânscrito para o inglês de Kisari Mohan Ganguli (GANGULI, 1883-1896). Há uma tradução
em língua portuguesa dos dezoito Livros feita por Eleonora Meier 3, mas que não foi feita
diretamente do sânscrito para o português; ela foi feita da tradução do inglês de Ganguli para
o português. Também existem traduções feitas para o português baseadas nas versões feitas
por Krishna Dharma (DHARMA, 2002) e por William Buck (BUCK, 1998). Mas estas, por
serem versões condensadas, constarão apenas na referência bibliográfica a título de
curiosidade, pois uma vez traduzida e condensada, a obra adquire uma outra configuração
contextual.
Quanto ao Bhagavadgītā, foram feitas inúmeras traduções ao longo dos anos, como
consta no trabalho de mestrado de Rodrigo Gomes Ferreira (cf. FERREIRA, 2006). Mas todas
as passagens citadas nesta dissertação serão extraídas da última tradução brasileira feita
diretamente do sânscrito para o português pelo Carlos Alberto da Fonseca (FONSECA, 2009),
pois essa edição nos mostra que muitas palavras em sânscrito são intraduzíveis para a língua
portuguesa. Foram, portanto, colocadas em nota de rodapé as várias possíveis interpretações
para a compreensão do texto. As análises serão feitas baseando-se nos estudos feitos por
Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Katsuhiko Kamimura (KAMIMURA, 2010), Angelika
Malinar (MALINAR, 2007), Paramahansa Yogananda (KRIYANANDA, 2007;
YOGANANDA, 2010), entre outros. O objetivo desse capítulo é também de situar o contexto
histórico e narrativo da epopeia.
Finalmente, no terceiro capítulo, focaremos o tema da redação sobre as percepções
simbólicas dos personagens segundo o dharma, o bem e o mal expostos na condição humana
do homem hindu. Neste capítulo, a pesquisa terá como quadro teórico o estudo feito pela
Wendy Doniger O’Flaherty (O’FLAHERTY, 1980), Alf Hiltebeitel (HILTEBEITEL, 2010),
Chanturvedi Badrinath (BADRINATH, 2007), Roy W. Perrett (PERRETT, 1998) entre outros.

3
Disponível somente em página eletrônica (<http://www.shri-yoga-devi.org/textos.html>. Acesso em: 30-04-
2013).
12

É comum observarmos que dentro do senso comum fazemos uma delimitação clara
entre as condutas direcionadas ao bem e outra ao mal. O que vemos no Bhagavadgītā não é
um juízo de valor do senso comum. Os irmãos Pāṇḍava, a princípio, deveriam representar o
bem, pois estes vivem em harmonia, são justos, respeitam o próximo e são corajosos. Seus
primos, os cem irmãos Kaurava, por outro lado, enganam o próximo para seus próprios
benefícios, manipulam as pessoas, são gananciosos e agem por impulsividade do desejo. São
filhos de pais cegos que, devido a essa limitação, recusam-se a enxergar a obstinação
existente nas ações de seus filhos.
Na passagem de Bhagavadgītā, as divindades tornam-se tão “humanos” quanto os dois
clãs. Dão conselhos, ajudam os seus parentes, mas são igualmente cruéis e impiedosos. No
entanto, eles exercem um papel fundamental para nortear a conduta humana. Há uma força
conservativa dos Kaurava contra uma força evolutiva dos Pāṇḍava. O guerreiro Arjuna
representa a nossa essência nos momentos de dúvida. O diálogo entre ele e seu mentor Kṛṣṇa
é o diálogo que fazemos quando temos dúvida nas nossas escolhas. É a batalha que ocorre
dentro do nosso corpo e uma voz de introspecção em nossa mente. O ego e a consciência,
neste caso, não são para serem combatidos, mas sim refinados através do despertar de seu
dharma, cujo sentido vai além do dever. É um cumprimento dos desejos sociais e religiosos, é
um dever para com o grupo diante do papel a que cada um pertence e ter a percepção da etapa
que se encontra nesta vida. É por isso que após tantos séculos de existência a importância de
Bhagavadgītā ainda é relevante para o homem hindu.
Há, portanto, em Bhagavadgītā três dimensões na vida do homem hindu:
1. A humana: a dúvida, a posse (artha) e o desejo (karma);
2. A heróica: a ambivalência, a coragem, a disciplina e a moral (dharma);
3. A divina: a sabedoria, o discernimento e o desprendimento (mokṣa).
Como uma última observação nesta parte introdutória, ressaltamos a dificuldade que
há quando se faz uma tradução de um texto. Existe uma inevitável “recriação” e uma
intraduzibilidade não só de vocabulário, mas também de percepção, pois não lidamos com os
mesmos pressupostos da era védica / bramânica. É uma experiência soberana de distintas
compreensões sobre o corpo, percepção e discernimento. Por isso, há também uma
singularidade para lidar com o mal, com a dor e com o divino. A narrativa de Bhagavadgītā
representa essa diferença cognitiva através de metáforas enunciadas pelos personagens.
13

Notas sobre transcrição do sânscrito

No presente trabalho, as transcrições e transliteração do sistema fonológico


devanāgarī para o alfabeto português obedecem às normas estipuladas pela Convenção de
Orientalistas de Genebra de 1894, conforme segue abaixo:
1. Fonemas vocálicos (as vogais longas com traço e os ditongos duram o dobro do tempo das
breves): a / ā / i / ī / u / ū / e / ai / o / au
2. Fonemas retroflexos vocálicos (com a ponta da língua “vibrando” no céu da boca; muitas
vezes grafada na língua moderna como /ri/): ṛ
Ex.: Ṛgveda (ou Rig-Veda)
3. Índice de nasalização (anusvāra, “o que segue a vogal”): ṃ
Ex.: saṃsāra
4. Aspirada surda (visarga): ḥ (como no inglês home)
Ex.: Duḥśāsana
5. Fonemas cacuminais (a ponta da língua deve tocar a parte mais alta do palato):
ṭ / th / ḍ / dh / ṣ / ṇ
Ex.: Kṛṣṇa (ou Krishna)
6. Outras nasais: ñ (palatal); ṅ (velar)
Ex.: Gaṅgā
7. Sibilante palatal surda (corresponde ao som /ch / ou /x /; muitas vezes grafada na língua
moderna com /ç/): ś
Ex.: Śiva (ou Shiva, Çiva)
8. K – sempre com o som de /ca / de cama. Ex.: karma
G – sempre com o som de /gue / de guerra. Ex.: Bhagavadgītā
C – sempre com o som de /tch /, como em tiro. Ex.: cakra
J – sempre com o som de /dj /, como em dia. Ex.: pūjā
R – sempre com o som de /ra / de cara, e não de raso. Ex.: Rāmāyaṇa
No corpo do texto por mim redigido seguirá as convenções acima citadas. Porém as
citações retiradas dos textos consultados manterão as grafias conforme apresentadas por cada
editora.
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Capítulo I – Um contexto preliminar arqueológico-religioso da Índia antiga

Sobre a Índia antiga, podemos dizer que, de acordo com pesquisas feitas ao longo dos
séculos, dois grandes rios foram responsáveis pela formação de sua civilização: o rio Ganges
e o rio do vale do Indo, que abrange o atual território do Paquistão.
Por volta de 2.500 a.C., segundo explorações arqueológicas, havia dois sítios que
deixaram indícios das comunidades que habitavam a região: Mohenjo-Daro e Harapa.
Mostraram ser cidades-fortaleza bastante avançadas, pois já faziam uso de metais e argilas,
utilizavam tijolos e conheciam a técnica de canalização de água. O povo dessa época já sabia
escrever, mas até hoje sua escrita permanece um enigma. Apesar de não haver templos,
palácios nem túmulos reais, foi surpreendente observar a uniformidade e a continuidade
cultural que havia nessa civilização harapiana, provavelmente por ter existido alguma espécie
de autoridade religiosa. Foi também em Mohenjo-Daro que se encontrou o “Grande Bath”
(ELIADE, 2010a, 130), o que lembrava muito as piscinas que eram usadas em rituais hindus.
Esses indícios arqueológicos harapianos provavelmente passaram por várias modificações,
adaptações e eliminações até chegarem ao formato das características hinduístas que surgiram
posteriormente, devido a diferentes contatos culturais ocorridos ao longo das constantes
migrações.
A partir de 1.600 a.C., antes da entrada dos povos arianos, essa cultura harapiana
começa a declinar. Em sequência, durante o período das grandes conquistas, esse povo ārya,
que em sânscrito significava “homem nobre”, formado por guerreiros nômades indo-iranianos,
tinha iniciado sua penetração no nordeste da Índia, conquistando a civilização concentrada
nos vales do Indo e depois conquistaram pouco a pouco toda a metade do norte da Índia,
destruindo, assim, as cidades harapianas.
Por volta de 1.500 a.C., esses arianos nômades passaram a ter uma vida sedentária,
fixando-se assim, como agricultores locais (ELIADE; COULIANO, 2003, 172). É importante
lembrar aqui que os ārya desconheciam a escrita (ELIADE, 2010a, 192). Ocupada por arianos
pela terra e por europeus pelo mar, nem por isso a Índia deixou de preservar a concepção tão
longamente enraizada sobre sua aceitação da sua cadeia ininterrupta de reencarnações.
Cientes de que a sua existência é momentânea e que o sofrimento é parte da sua condição
segundo sua posição social encarnada, o indiano mescla o divino e o humano como parte de
sua unidade. Mas não devemos nos esquecer de que desde essa época até hoje, a Índia é um
país de múltiplas etnias, línguas e costumes.
15

1. Da oralidade para as escrituras

Nos textos védicos podemos encontrar passagens que evocam combates dos arianos,
nos quais são possíveis de se reconhecer os continuadores ou os sobreviventes da civilização
do Indo. As mitologias, embora de formas fragmentadas e por vezes deformadas, constituem
igualmente elementos importantes na tentativa de reconstituir a concepção religiosa original.
Antes transmitidas oralmente e em épocas tardias registradas em forma de escrita, tanto a
mitologia quanto o poema eram recursos utilizados pela civilização antiga para explicar e
compreender o homem, a natureza e o ciclo de vida cósmico. Carlos Alberto da Fonseca
explica esse recurso da seguinte forma:

Fazer poesia, ou literatura em geral, fosse ela de tendência artística ou científica, por parte a
elite cultural bramânica dominante em todos os períodos históricos da Índia antiga, era uma
atividade que deveria ter como suporte um nível lingüístico de prestígio – um nível lingüístico
adjetivado de “ornado, enfeitado, rebuscado, feito com arte, completamente produzido;
acabado, bem temperado, de bom gosto, refinado”: o tal Sânscrito, em suma (FONSECA, 2004,
56).

O recurso da oralidade dos literatos indianos no período bramânico (situado entre o


período védico e o período clássico) era como uma recusa à escrita como recurso técnico
literário. A fruição do texto era tão importante quanto seus meios de fixação para transmissão
da obra durante a composição. Os indianos, assim, fizeram o uso do corpo, da criação da
melodia, da emoção, da reverberação sonora e emocional para relacionar-se com essa fruição
poética. Para tanto, a transmissão oral era um recurso inigualável. Mas esse conjunto de textos
inicialmente transmitido oralmente foi registrado por escrito a partir dos séculos VIII e VII
a.C., sobretudo devido às ameaças da difusão do Jainismo e do Budismo.

Não que os indianos não tivessem conhecido a escrita: há algumas alusões a ela já nos poemas
védicos, e os poemas épicos refletem sua problematização. No Mahābhārata, por exemplo, na
relação ali instaurada entre o narrador Vyāsa e o escriba Ganeça, perpassa uma autêntica
discussão sobre os estatutos do criador-literário-senhor-da-memória-e-de-suas-intençoes-
expressas-verbalmente e do escriba-enquanto-fixador-por-escrito-do-que-foi-falado-por-outro
(FONSECA, 2004, 57).

1.1. Período védico

O Período Védico compreende aproximadamente os anos entre séculos XV a V a.C.


(CAMPBELL, 1994, 142) .
16

Fig. 1
Mapa da Índia setentrional no período védico tardio

Há dois grupos principais de textos na tradição védica: o śruti (o que foi “ouvido”,
“revelado”), no qual se compreende o Veda (daí o nome do período), que são várias
coletâneas de textos cujo período de formação encontra-se entre os séculos XIV e IV a.C.
(ELIADE; COULIANO, 2003, 173), e o smṛti (o que foi “memorizado”). Essas tradições,
de origem oral, foram registradas, como já vimos, tardiamente por escrito. O termo Veda
significa “saber”, no duplo sentido de conhecimento e revelação. Acredita-se que esse saber
foi recebido dos deuses pelos ṛṣi (sábios-videntes) sob a forma de revelação. Possui um
considerável volume de mais de 40 mil versos.

O śruti subdivide-se em quatro saṃhitā (coletânea de hinos), conhecido como Veda:

Fig. 2
Ṛgveda
17

- Ṛgveda: é o mais antigo dos quatro Veda e o mais antigo documento da literatura indiana;
foi composto entre 1.500 a 900 a.C. e a sua coleção de 1028 hinos está dividido em dez seções
(ou livros) chamados de maṇḍalas (ciclos); os hinos são utilizados pelo sacerdote hotṛ para
invocar os deuses; são preces e louvores dirigidos a um panteão de deuses, principalmente a
Varuṇa (deus do oceano), Indra (deus da guerra) e a Agni (deus do fogo), cada qual possuindo
uma função específica e que deve ser rigorosamente seguido cada um segundo seu ṛta (ordem
cósmica, regulador da natureza); A. L. Basham (BASHAM, 1991, 7) observa que os autores
destes saṃhitā muito provavelmente não eram habitantes das cidades da Índia antiga,
primeiro por não haver nenhuma menção a esses locais dentro da composição, e segundo
pelos hinos védicos frequentemente mencionarem animais como cavalos, o que não existia
nas cidades hindus da época;
- Yajurveda: Veda das cerimônias conduzidas por adhvaryu (guia para as liturgias); composto
por cinco saṃhitā (um Yajurveda Branco, com fórmulas sagradas – os mantras; quatro
Yajurveda Negro, com fórmulas litúrgicas); no Yajurveda as invocações são dirigidas aos
deuses e aos objetos de culto, conferindo um caráter sagrado;
- Sāmaveda: Veda dos cantos cujo conteúdo é conduzido pelo especialista udgārtṛ; também é
chamado de Veda das melodias;
- Atharvaveda: recitado por um brâmane, que inspeciona a atividade dos demais sacerdotes;
encontram-se nesses hinos os primeiros elementos sobre a medicina indiana (Āyurveda),
contendo fórmulas de cura e também preces mágicas.

Consta (...) que o rito era sempre obra secreta, porque realizada em espaço proibido, interdito
aos não-iniciados. Com efeito, o trabalho ritualístico constituía, na Índia védica, prerrogativa
de membros da casta bramânica, os brâmanes (do sânscrito brahamaṇa, lit, “aquele que detém
o brahaman” = o “poder” oriundo do rito). Eram estes treinados, ao longo de vários anos, nas
diversas disciplinas necessárias para o cumprimento do rito – as quais implicavam, entre outros
requisitos, a memorização de extensas porções de textos relativos à tradição à qual pertenciam
os ritualistas, ao conhecimento da adequação dos ritos aos eventos e, sobretudo, o
conhecimento das artes retóricas, graças às quais se tornava possível evocar e presentificar a
forma dos deuses (FERREIRA, 2004, 89).

Cada Veda, por sua vez, subdivide-se em:


- Brāhmaṇa: exposição dos rituais compostos pelos sacerdotes védicos datada entre 1000 a
800 a.C.; são instruções para os procedimentos litúrgicos; “os Bramanas, comentários em
prosa, interpretam o Brama sob o ponto de vista teológico por meio de símbolos, e tratam da
ciência sagrada explicando-lhe os ritos e as fórmulas” (LEMAÎTRE, 1958, 25);
- Āraṇyaka: chamado também de Livros das Florestas; são obras secretas que eram recitadas
fora da comunidade, no isolamento da floresta;
18

- Upaniṣad: palavra sânscrita que significa upa (“perto”), ni (“sob”; “aos pés de”), ṣad
(“sentar-se”), ou seja, é a transmissão do conteúdo sobre a revelação de Brahman – Ātman,
cujo discípulo senta-se próximo a seu mestre para ouvir seus ensinamentos; entre os Upaniṣad
atualmente conhecidos, 108 são considerados como “a essência de todos os Upaniṣad”; o
Brahman é considerado o Espírito Absoluto e a Divindade Suprema; ele é tão transcendente
quanto imanente, “mas cada ser traz em si uma parcela de brama: o átman” (LEMAÎTRE,
1958, 28).

Com exceção dos Upanixades antigos, todos os outros textos religiosos e filosóficos foram
redigidos depois da pregação de Buda. (...) Não se deve, porém exagerar a importância da
cronologia. Em geral, todo tratado filosófico indiano apresenta concepções anteriores à data da
sua redação, e quase sempre muito antigas (ELIADE, 2011, 52).

Associados aos quatro Veda e seus anexos (Brāhmaṇa, Āraṇyaka e Upaniṣad) os


textos védicos ainda se compõem em:
- Vedāṅga: disciplinas auxiliares dos Vedas;
- Kalpasūtra: breves sūtras (“fio”; “frase; texto”; “prece”) sobre ritual, ética e leis, que se
subdividem por sua vez em Śrautasūtra (ritual de sacrifício), Gṛhyasūtra (ritual doméstico e
ritos de passagem) e Dharmasūtra (aforismos sobre dharma, redigidos em prosa, no estilo
característico dos sūtras védicos; são textos sobre moral, ética, lei e política).
O smṛti (o que foi “memorizado”) foi desenvolvido a partir dos textos de Dharmasūtra,
no qual é conhecido como Dharmaśāstras (ou código de leis). São manuais de direito
canônico, civil e criminal, também conhecido como Código de Manu (Manusmṛti), devido ao
seu compilador, o sábio Manu. O próprio smṛti possui também uma subdivisão de textos, o
Itihāsa-Purāṇa:
- Itihāsa: que significa iti “dessa forma”; ha “de fato”; āsa “foi” – convencionalmente
traduzido como história (BASHAM, 1991, 70), são grandes poemas épicos que contam a vida
dos reis, sábios e heróis; é onde encontramos os épicos Mahābhārata (que contém o
Bhagavadgītā) e Rāmāyaṇa;
- Purāṇa: são coletâneas de mitos, lendas, instruções de adoração às divindades, inicialmente
transmitidos oralmente; há dezoito principais Purāṇa que representam fonte importante da
história religiosa hindu; são dedicados a Brahmā, Viṣṇu e Śiva;
-Āgamas: manuais de culto e adoração.
Além das escrituras, existe no Hinduísmo uma importante divisão de era: o mahāyuga
(“grande era”) ou conhecido também como ciclo cósmico. Foi desenvolvido a partir dos
19

textos de Brāhmaṇas e está subdividido em quatro yuga, o caturyuga (SARASVATI, 2006,


125):
- Satyayuga ou Kṛtayuga (Era do Ouro): considerada como a idade perfeita; é a era das
virtudes e do conhecimento, época do perfeito dharma; existe fartura e justiça, na qual os
homens não se descuidam de seus deveres e vivem em felicidade plena;
- Tetrāyuga (Era de Prata): nessa era os deveres passam a ser aprendidos, pois não são mais
espontâneos; começam as primeiras divisões hierárquicas; os homens tornam-se dependentes
das cerimônias religiosas, por isso surge uma grande variedade de ritos; eles começam a se
interessar por recompensas e ganhos; é a era das renúncias e do domínio; o dharma perfeito
do yuga anterior agora se reduz a ¾.
- Dvāparayuga (Era de Bronze): o dharma está reduzido pela metade e a outra metade do
universo passa a ser dominado pelos vícios; a infelicidade começa a ser mais frequente e a
vida física do homem se torna cada vez mais curta; eles buscam agora prosperidade e fama;
- Kaliyuga (Era de Ferro): é a era das disputas e da degradação; o dharma está reduzido a ¼
do universo; ¾ são de miséria, fome e medo; é o período em que surge Vyāsa, o sábio que
narra Mahābhārata.

Fig. 3
O ciclo do calendário Yuga

“As três primeiras [yugas] já estão concluídas, e a quarta teve início à zero hora do dia
18 de fevereiro do ano 3102 a.C. Durações respectivas: 1.728.000 anos, 1.296.000 anos,
864.000 anos; Kaliyuga vai durar 432.000 anos. A diminuição dos números representaria uma
deterioração física e moral dos homens em cada era” (FONSECA, In: Bhagavadgītā, 2009,
87). Mil mahāyuga formam um período cósmico que corresponde a um dia de Brahmā, o deus
20

da criação. Um mahāyuga corresponde a apenas um piscar de olhos de Brahmā. Ele vive cem
anos e cada ano corresponde a trezentos e sessenta dias e noites cósmicos. Quando Brahmā
perece, ocorre a dissolução do universo, o mahāpralāya (ELIADE; COULIANO, 2003, 179).
No fim do quarto yuga, o universo encontra-se em sua total degradação. Por isso
Viṣṇu encerra o seu trabalho de preservação para que um novo Satyayuga se inicie. Assim,
sucessivamente, as quatro eras formam um ciclo até a última dissolução no qual Brahmā entra
no período do descanso da criação. Brahmā, então, após esse “sono cósmico” recomeça sua
criação num eterno ciclo de saṃsāra.

Saṃsāra: Metensomatose (encarnação de uma alma preexistente em novos corpos) no


hinduísmo tradicional, paradoxalmente aceita pelo budismo. Concebida como negativa.
Diversos métodos ascéticos e/ou místicos aparecem ao longo da história religiosa indiana para
obter a libertação (moksa) dos laços cármicos que produzem a repetição das descidas para o
corpo. [...] em outros contextos religiosos, a metensomatose pode ser positiva (ELIADE;
COULIANO, 2003, 332).

1.2. Período bramânico

O Período bramânico (ou Período épico-bramânico) compreende-se entre século X a.C.


e IV d.C. aproximadamente (FONSECA, 2009, 48). Nesse período, a arianização foi
acompanhada de perto tanto pela expansão do Bramanismo quanto do Hinduísmo alguns
séculos mais tarde. É provável que os brâmanes tenham chegado ao Ceilão (atual Sri Lanka)
ainda no século VI a. C. Posteriormente, por volta do século II a. C. a século VI d. C., o
Hinduísmo entrou na Indochina e parte da Indonésia atual. Mas este Hinduísmo, ao entrar no
sudeste asiático, parece ter absorvido muitos dos elementos locais. Durante as peregrinações,
os brâmanes contribuíram fortemente para a unificação religiosa e cultural da Índia central e
meridional. O objetivo desses brâmanes era inicialmente impor a estrutura social, o sistema de
culto e a visão de mundo segundo preceitos dos Veda e dos Brāhmaṇas às populações arianas
e não arianas locais. No entanto, ao mesmo tempo, esses brâmanes assimilaram também um
grande número de elementos populares das regiões dos locais por onde passavam.
Eliade observa que a passagem do Bramanismo para o Hinduísmo é imperceptível,
pois certos elementos especificamente “hinduístas” já estavam presentes no seio da sociedade
védica. “Mas visto que não interessavam aos autores dos hinos e dos Brāhmaṇas, esses
elementos mais ou menos ‘populares’ não foram registrados em textos” (ELIADE, 2011, 49).
No período védico, os poemas como Ṛgveda falam dos deslumbres do homem perante
as forças da natureza, dos sentimentos e da cultura, mas sem o questionamento no âmbito de
21

contemplação. O relevante aqui era a obediência e a louvação às forças criadoras da vida; era
um viver antes de um raciocinar. O homem submetia-se aos ensinamentos proferidos pelos
seus superiores. No entanto, o quadro muda ao longo do período bramânico: o homem
sânscrito desse período passou a refletir seu papel enquanto indivíduo (ātman) em relação a
algo maior que ele (Brahman). A questão passou a ser: qual o papel do homem diante do
plano filosófico-religioso, enfim, qual o seu dharma? Esse comportamento e questionamento
foram elaborados principalmente nos épicos Mahābhārata (Bhagavadgītā) e Rāmāyaṇa. Por
isso, algumas vezes, esse período é chamado de Período Épico Bramânico. Sobre o ātman,
Fonseca explica:

(...) ātman, conceito dos mais prestigiados em todas as variadas escolas de pensamento
surgidas ao longo do período bramânico. No período védico, a palavra ātman designava tão-
somente o pronome reflexivo, o indicador do agente que praticava uma ação que se voltava
para/contra si mesmo. Decorre desse sentido o significado da palavra, tal como desenvolvido
pelo questionamento das Upaniṣad (também no período bramânico): tudo aquilo que determina
a constituição psico-mental-afetiva-social-histórica do indivíduo, o que o define e caracteriza
em oposição a qualquer outro sujeito. Assim, indica o Singular, o Individual, o Relativo –
contrariamente ao seu par conceitual, o brahman, que indica o Coletivo, o Grupal, o Absoluto
(FONSECA, 2009, 57).

2. Hinduísmo – um viver antes de um conceituar

Também conhecido como Sanātanadharma, o termo Hinduísmo foi “criado” a partir


da palavra Hindu, designado originalmente a Rio Indo. Tem origem etimológica na palavra
persa Sindhu, o que mostra uma forte relação entre a civilização persa e a indiana. Mas o
termo Hinduísmo como conhecemos hoje provém do final do século XVIII, utilizado pelo
Ocidente. Narayanan analisa esta expressão Sanātanadharma da seguinte forma:

O próprio uso do termo “hindu” é complexo. Tanto “Índia” como “hindu” derivam de Sindhu,
o nome tradicional do rio Indo. Em antigas inscrições e documentos, “hindu” refere-se ao povo
de “Hind”, o subcontinente indiano. Nos impérios da Índia Medieval sob domínio muçulmano
o termo era usado para designar muitas comunidades indianas não-muçulmanas. Embora se
encontre na literatura hindu em tempos mais antigos, só depois do final do século XVIII é que
o termo se tornou popular como nome para designar a religião dominante do povo indiano.
(...) A expressão sanatana dharma (“fé eterna”) tornou-se popular nos dois últimos séculos, mas
aplica-se mais às interpretações filosóficas da religião do que às suas variadas manifestações
locais. Nos textos antigos, sanatana dharma significava as obrigações religiosas ideais dos
seres humanos, mas não expressava a idéia de uma comunidade de fé (NARAYANAN, 2009,
7-8).

Heinrich Zimmer afirma que “a filosofia da Índia é fundamentalmente cética em


relação às palavras” (ZIMMER, 1986, 33). Assim, dizer “religião” ou “fé eterna”,
“pensamento” ou “filosofia”, talvez pouco importe para o pensamento indiano. As palavras
22

são traduzidas e/ou conceituadas num âmbito puramente intelectual para poder situar-se no
mundo onde se encontra. Mas as respostas ao enigma do universo e da existência humana não
se resumem simplesmente a esse processo. Para compreender o seu papel, o seu objetivo,
enfim, a sua relação com o seu objeto (seja ele homem ou universo), um homem hindu faz uso
de suas escrituras e seus rituais como meios de comunicação.
Para o pensamento hindu, além da importância do ritualismo puro, é igualmente
importante a sua dependência na crença de uma alma. Assim, ele aceita dois princípios
básicos de sua crença: o saṃsāra, que crê na transmigração das almas, e o karma, que está
ligado à doutrina de compensação. Essa conexão entre o saṃsāra e o karma com a
compensação do bem e do mal propõe um renascimento mais ou menos honorário. Isso
significa que na Índia, a crença sobre o destino foi largamente difundida.
Este karma do bem e do mal era determinado pela astrologia e pelo horóscopo, mas de
forma individual e não coletivo. Não havia uma recompensa ou um castigo que durasse
eternamente. Mas no pensamento hindu, em geral, o paraíso e o inferno tinham papeis
secundários. O paraíso, originalmente, foi provavelmente um local privilegiado para os
brâmanes e para os guerreiros, como veremos no Livro XVIII de Mahābhārata. Weber
observa que a doutrina do karma transformava o mundo num cosmos estritamente racional,
ético e determinado, representando, assim, a mais consistente teodiceia, jamais antes
produzida pela história (WEBER, 1958, 121).
O sacrifício védico dos Upaniṣad é desvalorizado em comparação ao dos Brāhmaṇas,
pois é um ritual de ação (karma), e como toda ação, produz resultados de ordem negativa,
desencadeando para o ser humano o ciclo do saṃsāra (ELIADE; COULIANO, 2003, 175).
Este termo saṃsāra aparece somente no Upaniṣad, mas ignora-se a origem de sua doutrina.
Foi uma tentativa de explicar a crença na transmigração da alma pela influência de elementos
não arianos. De qualquer forma, esse termo acabou por criar uma visão pessimista da
existência. O ideal do homem védico, como por exemplo, viver mais de cem anos, mostrou-se
ultrapassado. Mas a vida em si mesma não representava necessariamente um mal. Entretanto
ela, a vida, deve ser utilizada como meio de livrar-se dos laços do karma. O único objetivo
digno de um sábio é a obtenção do mokṣa, a liberação (ELIADE, 2010a, 230).

Uma vez que todo o ato (karma), religioso ou profano, revigora e perpetua a transmigração
(samsara), a liberdade não pode ser alcançada pelo sacrifício nem por meio dos íntimos
relacionamentos com os deuses, nem através da ascese ou da caridade. (...) Uma descoberta
importante foi realizada ao se meditar sobre o valor soteriológico do conhecimento, já exaltado
nos Vedas e nos Bramanas. Evidentemente, os autores dos Bramanas referiam-se ao
conhecimento (esotérico) das homologias implícitas na operação ritual. Era a ignorância dos
mistérios sacrificais que, segundo os Bramanas, condenava os homens a uma “segunda morte”.
23

Mas os rishis foram mais longe; dissociaram o “conhecimento esotérico” do seu contexto ritual
e teológico; a gnose é agora tida como capaz de apreender a verdade absoluta, revelando as
estruturas profundas do real. Tal “ciência” acaba por eliminar literalmente a “ignorância”
(avidya), que parece ser o quinhão dos seres humanos. Trata-se, certamente, de uma
“ignorância” de ordem metafísica, pois ela se refere à realidade última, e não às realidades
empíricas da experiência cotidiana. (ELIADE, 2010a, 230)

Essa ignorância está diretamente relacionada à ilusão, referindo-se ao māyā, que tem
um poder criador do mundo àqueles de pouca observância. “Segundo a filosofia indiana, a
tarefa primordial do ser humano, e, em última instância, irrecusável, consiste em compreender
este segredo, saber como age e transcender – se possível – seu feitiço cósmico (...)”
(ZIMMER, 1986,33).

Da raiz MĀ “medir”, (...) literalmente, māyā é a medida que todo sujeito forma da realidade,
do meio em que vive, é seu ponto de vista, sua visão das coisas – e, nesse sentido, corresponde
a uma arte, uma sabedoria. Como todo sujeito imagina que sua ideia deve prevalecer, então sua
māyā se converte em “ilusão, imagem irreal, erro de percepção”. Nos sistemas filosóficos
Sāṃkhya e Vedānta, é considerada a fonte do universo perceptível (FONSECA, 2009, 86).

Portanto, o homem hindu centra sua atenção e seu questionamento para uma grande
tarefa: como poderia o homem sair afinal dessa roda da reencarnação e, por conseguinte, de
qualquer repetição de morte? E como desfazer-se desse māyā, conhecido como o véu da
ignorância? As possíveis respostas são estudadas até hoje em textos de Upaniṣad. A síntese
de todo o pensamento hindu foi formulada depois do fim do período desses textos, entre 500
a.C. e 500 d.C., época em que foram definidos a concepção de varṇas (“cor”), de āśramas
(“etapa”) e dos seis darśanas (“opinião”, “contemplação”).
Nos subcapítulos a seguir, veremos as divisões desses seis darśana, as concepções de
varṇa e suas quatro metas e etapas, das quais o dharma pertence. Também veremos as
principais divindades que fazem parte tanto do Veda quanto de Mahābhārata, e em qual
avatāra se localiza um deles, o Kṛṣṇa. As metas fazem parte de todo o corpo de Mahābhārata.
Os darśana Sāṃkhya-Yoga e o avatāra de Viṣṇu, o Kṛṣṇa, são partes integrantes de
Bhagavadgītā.

2.1. Varṇa e jāti: as tarefas do homem hindu

Os indianos contemporâneos são quase unânimes em considerar que na época védica


ainda não existia uma designação para o termo casta que a Índia viria a utilizar
posteriormente. Em sânscrito existem dois termos distintos para designar a compartimentação
um grupo social: o varṇa, que significa “cor”, e o jāti, que significa “grupo de nascimento”.
“Nas varṇa, cada uma em sua especificidade, a que cada sujeito pertence são levadas em
24

consideração as qualidades do sujeito e sua performance, a realização funcional de seus


talentos” (FONSECA, 2009, 88). Qualquer que seja o termo designado ao grupo social, nota-
se que durante esse período, havia uma ideologia religiosa que nitidamente repartia esse grupo
em quatro:

Brāhmaṇ (brâmane)
São sacerdotes cuja função era de se ocupar da soberania mágica e jurídica. Os
brāhmaṇ que memorizam as fórmulas e rimas dos rituais oficiais védicos eram considerados
“deuses humanos”, pois eles eram os únicos que se comunicavam com as divindades através
das orações. Toda família bramânica (gotra) está ligada a um santo, o ṛṣi, que também vem a
ser um vidente. Profissionalmente os brāhmaṇ se dividem em oficiante e em sacerdote
(purohita), recrutado por vezes entre o grupo de brāhmaṇ da vila. O purohita está
estritamente a serviço de um rei (RENOU, FILLIOZAT, 1947, 375).

Kṣatriya (guerreiros)
Tinham a função dos deuses como força protetora e de luta. Eram também reis e
príncipes. Segundo o mito védico do Puruṣa, eles nasceram dos braços do “ser primordial” de
que originou o mundo. Em Mahābhārata veremos que um dos principais personagens da
epopeia eram kṣatriyas. Arjuna, a figura central de Bhagavadgītā, perde-se no seu dharma
como kṣatriya, por isso pede a ajuda de seu fiel amigo Kṛṣṇa, como veremos no Capítulo II.

Vaiśya (agricultores)
Eram os provedores de prosperidade econômica, baseada principalmente de produção
agrícola.

Śūdra (servos)
Eram aqueles com função servil, sem qualquer detenção de poder.

À parte dessa divisão, havia o grupo dos párias, também conhecidos como os
“intocáveis” ou “impuros”. No fim da época védica, observa-se que essa organização da
sociedade em quatro principais grupos estava concluída. Renou cita uma passagem em que J.
Muir descreve sobre a origem e valor deles:

Brama criou assim anteriormente os Prajapatis bramânicos, penetrados por sua própria energia
e em esplendor igualando o sol e o fogo. O senhor formou então a verdade, correção, fervor
25

austero e os Vedas eternos, a prática virtuosa e a pureza para se atingir o céu. Formou também
os deuses, demônios e homens, brâmanes, xátrias, vaixás e sudra, bem como todas as outras
classes de seres. A cor dos brâmanes era branca, a dos xátrias vermelha, a dos vaixás amarela e
a dos sudras negra.
Se a casta das quatro classes for distinguida por sua cor, então se mostra observável uma
confusão de todas as castas. O desejo, a raiva, o medo, a cupidez, a aflição, a apreensão, a fome,
a fadiga, atingem-nos todos; pelo que se discrimina a casta, então? O suor, urina, excremento,
fleuma, bílis e sangue são comuns a todos; todos têm corpos que degeneram; pelo que se
discrimina a casta, então? Há inúmeras espécies de coisas que se movem e são estacionárias;
como se pode determinar a classe desses diversos objetos?
Não há diferença de castas; tendo sido criado inteiramente bramânico de início por Brama, em
seguida este mundo se separou em castas devido às obras. Aqueles brâmanes que gostavam do
prazer sensual, ferozes, irascíveis, inclinados à violência, que tinham abandonado seu dever e
apresentavam membros vermelhos, caíram na condição de xátrias. Aqueles brâmanes que
extraíam sua subsistência do gado, eram amarelos, subsistiam pela agricultura e
negligenciavam seus deveres entraram no estado de vaixás. Aqueles brâmanes que gostavam
da maldade e falsidade, eram cobiçososo e viviam de todos os tipos de trabalho, eram negros e
tinham abandonado a pureza, mergulharam na condição de sudra. Estando separados uns dos
outros por essas obras, os brâmanes se dividiram em castas diferentes.(...)
Aquele que é puro, consagrado às cerimônias natais e outras, que estudou completamente os
Vedas, vive na prática das seis cerimônias, executa perfeitamente os ritos da purificação, come
os restos das oblações, prende-se a seu mestre religioso, é constante nas observâncias religiosas
e devotado à verdade, chama-se brâmane (...). Aquele que pratica o dever advindo do cargo de
rei, dedica-se ao estudo dos Vedas e tem prazer em dar e receber, a este se chama um xátria.
Aquele que prontamente se ocupa com gado, é dedicado à agricultura e à aquisição e se mostra
perfeito no estudo dos Vedas, denomina-se vaixás. Aquele que habitualmente se inclina a todos
os tipos de alimento, executa todos os tipos de trabalho, não é limpo, abandonou os Vedas e
não pratica as observâncias puras, é tradicionalmente chamado de sudra. E isto que afirmei é a
marca do um sudra, e não se encontra em um brâmane; um sudra assim continuará a ser um
sudra, enquanto o brâmane que agir assim não será um brâmane (MUIR, apud RENOU, 1964,
107-108).

2.2. Puruṣārtha e varṇāśrama: os percursos do homem hindu

O puruṣārtha ou puruṣa (“homem”) / artha (“meta” ou “sentido”) é a finalidade da


vida do homem hindu, ou seja, o esforço pelo qual o homem deve fazer para trilhar o percurso
de sua vida. Para realizar esta tarefa, ele deve observar e viver quatro metas específicas ao
longo de sua vida. São elas: o dharma, o artha, o kāma e finalmente o mokṣa. As três
primeiras são chamadas de trivarga e consideradas metas humanas, ou seja, metas mundanas.
A quarta meta, o mokṣa, é a libertação dessas metas humanas. “O fim do sanatana dharma
realiza-se na identificação do átman com Brama. É o mokcha, ou Libertação” (LEMAÎTRE,
1958, 30).

Dharma
Termo complexo de difícil definição, ele apreende basicamente dois âmbitos: o
dharma definido como conduta moral e virtude pessoal, e o dharma no âmbito universal, em
que cada indivíduo deve observar suas ações segundo contexto inserido em sua sociedade.
26

Assim, cada indivíduo é responsável pelo seu dharma do mundo interno e externo (veremos
com um pouco mais de detalhe no Capítulo III desta dissertação). Os textos mais relevantes
que compreendem essas leis são o Dharmaśāstra e o Dharmasūtra.

Artha
Significa literalmente “coisa, objeto”. Refere-se às posses materiais e às riquezas:
inclui-se nessa meta o propósito da economia e da política, e as técnicas de sobrevivência. São
objetos materiais passíveis de serem adquiridos para as necessidades de sobrevivência do
cotidiano, seja ela para manutenção e sustentação de uma família, como também para cumprir
os deveres e as obrigações religiosos. Mas essas posses podem ir além: refere-se também às
aquisições para ostentação e prezeres pessoais, conforto e prosperidade, lucro e fortuna. No
campo das políticas, refere-se à obtenção, ao exercício e à conservação de poder. Ensinado
por vezes em forma de versos didáticos, esse exercício de poder surge em doutrinas indianas
de várias escrituras. “Elementos valiosos também aparecem em muitos dos diálogos, relatos e
fábulas didáticas da grande epopeia nacional, o Mahābhārata” (ZIMMER, 1986, 39).

Kāma
Relacionado aos desejos, prazeres e amores da vida. Kāma é o deus hindu do amor,
mestre e senhor da Terra. Vātsyāyana, autor do texto clássico Kāmasūtra, acabou por
popularizar os ensinamentos sobre a sensualidade e erotismo indiano, mas a sua reputação
acabou atingindo um âmbito equivocado e ambíguo, pois o texto nada mais era um manual
para amantes, cujo objetivo era de corrigir e evitar frustrações na vida conjugal. Além desse
manual, há um outro texto que trata das várias artes do prazer: o Nātyaśāstra, que apresenta a
arte da dança, do canto e das artes dramáticas.

Mokṣa
É a libertação das três metas anteriores; é a redenção e a liberação espiritual. A palavra
deriva da raiz muc, que significa “desatar, livrar, soltar, libertar, abandonar, largar”.

Mokṣa é uma técnica para transcender os sentidos a fim de descobrir, conhecer e permanecer
identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida no mundo. O sábio
conhece e interpreta a natureza e o homem na qualidade de visíveis, tangíveis e susceptíveis de
experiência, mas apenas para ir além deles rumo ao bem metafísico supremo (ZIMMER, 1986,
44).
27

Há além dessas quatro metas, o varṇāśrama que são os estágios da vida que o homem
hindu pode percorrer, mas normalmente costuma-se parar no segundo estágio. São eles o do
estudante brahmacharya (estudar as escrituras sagradas sob as orientações de um brāhmaṇ), o
gṛhastha (ser chefe de família e constituir um lar), o vānaprastha (retirar-se na floresta para
meditação) e finalmente, sannyāsa (renunciar ao mundo e levar uma vida de mendicância
para tornar-se um asceta). Na passagem de Bhagavadgītā, Kṛṣṇa afirma que o sannyāsin (o
renunciante) é o verdadeiro representante de yoga. É este que se dedica à meditação e ao
estudo dos textos filosófico e religiosos.
Dos quatro varṇa mencionados, apenas o brāhmaṇ, o kṣatriya e o vaiśya eram dignos
de passar por essas etapas, pois eles eram dvija (nascidos duas vezes): o primeiro nascimento
referente ao fato biológico e outro referente ao nascimento após iniciação religiosa, o
upanayana. Diante dessas divisões, o dvija opõe-se ao śūdra, o trivarga opõe-se ao mokṣa e
os três primeiros āśrama opõem-se ao sannyāsa (ELIADE; COULIANO, 2003, 177).
Assim, a vida do homem hindu é norteada pelas leis de seu varṇa, sob a etapa da vida
em que se encontra (āśrama). Uma vez pertencente a um grupo, a uma família, ou a uma
função, suas condutas, públicas ou privadas, são rigorosamente normativas. O indivíduo,
enquanto ser único, é eliminado; sua personalidade é absorvida no coletivo. É talvez esta a
maior representatividade simbólica de Arjuna, pois este não é um indivíduo isolado.

2.3. Darśana: um sistema de contemplação

Na tradição indiana, o Hinduísmo é tão religioso quanto filosófico. São dois aspectos
indissociáveis, nas quais as concepções metafísicas e cosmológicas da Índia não são vistas
como doutrinas distintas ou independentes. O darśana, ou o “ponto de vista", indica que
essas duas concepções provêm da mesma origem: o Veda. Por isso, os precursores do darśana
foram pensadores, santos, místicos e sábios que tinham como finalidade a retomada e a
conservação da formas religiosas mais puras e autênticas. Eles eram verdadeiros estudiosos e
herdeiros dos Brāhmaṇas e dos Upaniṣads.

Convém esclarecer que o sânscrito não possui um vocábulo que corresponda exatamente ao
termo europeu “filosofia”. Um sistema filosófico especial denomina-se darsana, “ponto de
vista, visão, compreensão, doutrina, maneira de ver as coisas” (da raiz drs, “ver”, “contemplar”,
“compreender”) (ELIADE, 2011, 52).
O fato é que não há nenhuma palavra sânscrita que abarque e inclua tudo aquilo que na
tradição literária indiana poderíamos chamar “filosófico”. Os hindus têm vários modos de
classificar os pensamentos que consideram dignos de aprender e transmitir, mas não dispõem
de um termo único que compreenda todas as suas generalizações fundamentais sobre a
realidade, a natureza humana e a conduta (ZIMMER, 1986, 38).
28

De qualquer forma, “filosofia” ou “contemplação”, “ponto de vista” ou “pensamento”,


o que sabemos é que o sistema do darśana foi dividido em seis escolas. Eliade e Couliano
(ELIADE; COULIANO, 2003, 176) e Musashi Tachikawa (TACHIKAWA, 1992, 76-77)
observam que os seis darśana formam na realidade três pares: Sāṃkhya/Yoga,
Vedānta/Mīmāṃsā e Nyāya/Vaiśeṣka devido a proximidade de pensamento de cada par. Mas
todos eles tinham como objetivo final a busca pelo mokṣa. Vejamos um pouco as
características de cada um:

Sāṃkhya
Escola fundada pelo sábio Kapila Muni, o termo Sāṃkhya significa “o que repousa
sobre o número”, “contagem”, “enumeração”, fazendo referência ao emprego das
enumerações e classificações desse darśana. Sāṃkhya é um sistema dualista que divide o
plano em fenomenal de natureza universal (prākrti) e transcendental, e natureza espiritual
(puruṣa).
O Samkhya é fundamentalmente ateísta e reconhece apenas o Espírito e a Natureza como o
princípio eterno das coisas, das quais se deriva pela evolução a totalidade das formas e seres. A
libertação é “isolamento”, onde a alma é desindividualizada. (RENOU, 1964, 29).

No contexto do capítulo 2 de Bhagavadgītā, Sāṃkhya pode significar “batalha, guerra,


combate”. “Para uma melhor ilustração de como talvez o dado numérico chamasse a atenção
na formação dos esquadrões dos exércitos e na quantidade de armas necessárias, note-se que
uma divisão do exército chamada akṣauhiṇī possuía um determinado número de elefantes,
carros, cavalos e pés” (FONSECA, 2009, 43). Por isso, Sāṃkhya em Bhagavadgītā pode
significar “A instalação da batalha”.

Yoga
É o estudo sobre a união entre o homem e o universo. A formulação de seu texto foi
feita em época desconhecida, mas foi Patañjali o principal responsável pela sistematização
dessa escola. O Yoga possui oito etapas conhecidas como aṣṭāṇga: abstinência, observância,
posturas corporais, técnicas de respiração, interiorização, concentração, meditação e
contemplação.

A Ioga, teísta, retém do ciclo causal do Samkhya apenas aquelas estruturas psíquicas por
intermédio das quais ensina o controle psico-fisiológico, uma restrição à circulação do
pensamento. Essa restrição pela ioga torna possível não só a aquisição de poderes sobre-
humanos como também e principalmente a conquista do controle místico. (...) Estudado através
do Samkhya-Yoga, o hinduísmo surge como uma disciplina do inconsciente (RENOU, 1964,
29).
29

Em Bhagavadgītā, como veremos no capítulo II da dissertação, o Bhaktiyoga (o Yoga


da devoção) é apresentado como uma das três vias da libertação, além do Karmayoga (o Yoga
da ação desinteressada) e do Jñãnayoga (o Yoga do conhecimento). Conhecido também como
Hinduísmo devocional, o Bhaktiyoga tem como objetivo a devoção principalmente a Viṣṇu
feito através do culto próprio, o pūjā, que substitui os antigos sacrifícios védicos, o yajña.

Vedānta
Fundado por Bādarayaṇa (também comentador de Brahmasūtra e de Bhagavadgītā),
Vedānta literalmente significa “fim do Veda”, por estarem colocados no final dos textos
védicos. A princípio designa o conjunto das doutrinas presentes no Upaniṣad.
Foi graças ao sábio Śaṅkara (século VIII d. C.) que o Vedānta retoma vida através do
Sāṃkhya. Esse sistema Vedānta é chamado de advaitavāda (“não-dualista”), pois Śaṅkara
defende o monismo absoluto do princípio impessoal de Brahman e o caráter ilusório do
mundo, o māyā. Śaṅkara salientou o mokṣa, ou seja, a salvação, como a realização da
identidade do ātman com o Brahman, e isso deveria ser obtido através da meditação
(ELIADE, 1995, 364).
É uma exposição teórica da natureza e da manifestação universal. Este sistema aborda
como os cinco órgãos dos sentidos (jñãnendrīya) estão relacionados com os cinco órgãos da
ação (karmendrīya) e as projeções materiais (tanmāta) que formam o mundo (ELIADE;
COULIANO, 2003, 176-177).

Ao lidar com o pensamento indiano, no entanto, é o Vedanta o que se destaca como de


importância primordial. O pensamento vedântico se baseia nas antigas linhas dos Upanichades
no que concerne às relações do eu e da Alma Universal. De acordo com Shankara (séculos
VIII-IX), o fundador ou restaurador do não-dualismo radical, a realidade única é brahman, a
essência inqualificada composta do ser e da consciência. (...) A libertação consiste mais em
reconhecer a identidade entre atman e brahman, ou melhor ainda, em “realizar” essa identidade
no eu (RENOU, 1964, 29).

Só progressivamente e tardiamente (nos primeiros séculos da nossa era) é que o


Vedānta passou a ser a denominação específica de um sistema filosófico que viria a se opor
aos outros darśanas, mais especificamente ao Sāṃkhya e ao Yoga.

(...) No Svetasvatara e na Maitri Upanishad, na Bhagavadgita e no Mokshadharma (o livro


XIII do Mahabharata), encontra-se um número suficiente de indicações relativas às grandes
tendências do pensamento vedantino antes de Sankara. A doutrina da maya adquire uma
importância de primeiro plano. São sobretudo as relações entre Brahman, a Criação e a maya
que suscitam a reflexão. A concepção antiga da Criação cósmica como manifestação do poder
mágico (maya) de Brahaman cede o passo diante do papel devolvido à maya na experiência de
cada indivíduo, em especial a de cegueira. No final, maya é assimilada à nesciência (avidya) e
comparada ao sonho (ELIADE, 2011, 54).
30

Māyā, portanto, tem um papel importante em todo o pensamento indiano tanto no


plano filosófico quanto religioso, pois é ela uma das principais responsáveis pelo sofrimento e
apego que o homem hindu tenta se desfazer.

Mīmāṃsā
Seu fundador foi Jaimini. Mīmāṃsā significa “investigação” ou “reflexão profunda”;
tem por objeto de estudo os textos sagrados e seus sentidos exatos das passagens dos rituais;
investiga, por exemplo, o sentido do dharma e do Brahman.

A Mimansa insiste sobre a necessidade de uma ortografia correta e de uma pronúncia perfeita
para a boa compreensão dos textos, bem como sobre a obrigação de distinguir bem as
diferentes classes de mantras segundo os ritmos que lhes são próprios (LEMAÎTRE, 1958, 53).

Nyāya
Darśana fundado por Akchapada Gautama, seu principal estudo é sobre a lógica, cujo
foco abarca ainda uma “pesquisa do espírito”. Possui uma forma particular de raciocínio que
se aplica ao domínio espiritual que conduz à libertação. “O nyaya-sutras chegam à conclusão
de que o infortúnio da existência é causado pela ignorância, pelo falso conhecimento”
(LEMAÎTRE, 1958, 48).

Vaiśeṣka
A autoria dos textos de Vaiśeṣka é atribuída a Kaneda. Faz distinções entre substâncias
materiais e espirituais e descreve os elementos da natureza; contempla a física e a teoria
atomística como principais temas de estudo.

Para o Vaisesika os corpos materiais se compõem de átomos infinitamente pequenos, eternos e


indestrutíveis, animados por uma força invisível, os quais se combinam segundo leis próprias
para formarem moléculas (...); a essas combinações de átomos ajuntam-se inumeráveis átmans,
ligados ao mundo fenomenal, e consequentemente ao círculo do sansara (LAMAÎTRE, 1958,
46).

Tanto o Nyāya quanto o Vaiśeṣka não pertencem ao corpus da tradição dos Veda, o
smārta. Dos seis darśana apenas o Mīmāṃsā e o Vedānta são considerados smārta. É nesse
corpus do smārta que está formulada a teoria de varṇa (ELIADE; COULIANO, 2003, 177).
31

2.4. Deva e avatāra: as divindades entre os homens

Nas representações das divindades, brāhmaṇ correspondiam aos deuses Varuṇa e


Mitra; os kṣatriya, ao deus Indra e os vaiśya, aos gêmeos Nastya (ELIADE, 2010a, 189). Os
textos védicos apresentavam o deus Varuṇa como um deus soberano, que reinava sobre o
mundo, sobre os deva (deuses) e sobre os homens, mas não tinham o mesmo prestígio da
popularidade de Indra. No entanto, ele, Varuṇa, estava ligado a duas noções religiosas
importantes: o ṛta e o māyā. O vocabulário ṛta significa “adaptar-se” ou “curso, caminho”,
designando a ordem do mundo, simultaneamente a ordem cósmica, litúrgica e moral. Também
possui a conotação de “ordem fixada ou estabelecida, lei, regra, lei divina” (FONSECA, 2009,
145). A criação do mundo foi efetuada conforme o ṛta, os deuses agiam segundo o ṛta e ṛta
organizava tanto os ritmos cósmicos quanto as condutas morais. Por isso Varuṇa era aquele
que detinha o poder de restabelecer a ordem conforme os erros e as ignorâncias.
Posteriormente, na língua clássica, o termo ṛta foi substituído pelo vocábulo dharma
(ELIADE, 2010a, 196).

À primeira vista, parece paradoxal que o guardião do rta esteja ao mesmo tempo ligado
intimamente a maya. A associação é, porém, compreensível, se levarmos em conta o fato de
que a criatividade cósmica de Varuna possui também um aspecto “mágico”. Sabe-se que o
termo maya deriva da raiz may, “mudar”. No Rig Veda, maya designa “a mudança destruidora
ou negadora dos bons mecanismos, a transformação demoníaca e ilusória, e também a
alteração da alteração (DUMÉZIL, apud ELIADE, 2010a, 196).

Assim, Varuṇa, em sua ideia de poder criador, altera a norma cósmica, apreendendo o
sentido de māyā como “mudança desejada”, tanto como criação como destruição. Observa-se,
portanto, que a origem do conceito filosófico de māyā, como sendo a ilusão cósmica,
irrealidade, está associada simultaneamente com a ideia de “alteração”. Trata-se, portanto, de
uma māyā ambivalente, pois não se trata apenas uma alteração da ordem cósmica; é também
da criatividade divina (ELIADE, 2010a, 197).
Indra é o mais popular dos deuses, um herói por excelência, modelo de guerreiro a ser
seguido, enfim, um temível adversário. Representa a vida e a energia cósmica. Por isso, sua
presença é bastante constante em Mahābhārata.
32

Fig. 4
Indra - Templo de Banteay Srei, Camboja

Fig. 5
Varuṇa
33

Brahmā, juntamente com Śiva e Viṣṇu, forma a trindade da divindade hindu, a trimūrti.

Fig. 6
Da esquerda para direita: Brahmā, Viṣṇu e Śiva – Caverna de Ellora, Índia

Brahmā representa a força criadora do universo. Esse universo criado por ele tem a
duração de um dia no calendário hindu (yuga). Ao fim do dia, quando anoitece, Brahmā cerra
seus olhos e adormece. É o momento em que o universo sucumbe e tudo é consumido pelo
fogo, pondo fim a um ciclo de vida. Brahmā possui quatro cabeças e oito braços. As quatro
cabeças são para poder ver a sua amada Sarasvati, pela direita, pela esquerda, por trás e pela
frente. Em seus braços, ele segura uma flor de lótus, um vaso, seu cetro, um rosário, uma
colher e os Veda.
Śiva, por sua vez, é conhecido como o deus destruidor ou também deus da
transformação, pois ele destrói para poder reconstruir e transformar o universo. Nos hinos
védicos ele aparece com o nome de Rudra. Em um de seus braços ele segura o tridente para
destruir a ignorância dos homens. A serpente que sempre o acompanha simboliza a
imortalidade, pois Śiva conseguiu dominar a mais mortal delas. No topo de sua cabeça
encontra-se a lua crescente e a água que jorra desse topo não é senão o Rio Ganges. No centro
de sua testa encontra-se o terceiro olho, que simboliza sua superior sabedoria e poder de visão.
Sua cabeça é escura por ter bebido o veneno letal que surgiu do fundo do oceano cósmico,
para assim, poder salvar outros deuses da destruição. Śiva é associado à potência demoníaca,
ou no mínimo pode se dizer que essa potência é ambivalente, pois simboliza o perigo, inspira
o terror, é imprevisível, mas o seu poderio tem função também de fertilidade. Pode ser ao
mesmo tempo cruel e complacente, praticante de yoga e também dançarino. Nas altas
34

montanhas de Kailāsa, localizadas no Himālaya, Śiva é o grande yogī, que fica sentado sobre
a pele de um tigre, em sua profunda meditação e é através dessa meditação que Śiva mantém
o universo. Assim, com seu poder divino, ele consegue mostrar sua variedade de

personalidade: ele não só é o deus místico, mas também o senhor da dança, o Naṭarāja.

A figura de Viṣṇu aparece no Ṛgveda e em outros textos védicos. Sua figura é


representada com quatro braços, cada um segurando um símbolo de seus atributos: uma
concha denominada pāñcajanya (“relativa aos cinco povos, às cinco aldeias”) que possui os
cinco elementos da criação (ar, fogo, água, terra e éter) ou cinco classes ortodoxas de seres
que habitam o mundo (os deva, os homens, os músicos/dançarinos celestiais, as serpentes e os
ancestrais). Ao soprar essa concha ouve-se o som da origem de todo o universo – o OM. Em
seu outro braço, há a roda de energia chamada sudarśana que representa o controle dos seis
sentimentos. Serve também como arma para cortar as cabeças de seu inimigo. A flor de lótus
chamada de padma simboliza a pureza e a verdade que está por trás de māyā. Por fim, o
cajado kaumodaki representa a força física e mental do universo. Para os devotos do Viṣṇu,
este deus é a fonte do universo e de todas as coisas que o pertence. De acordo com o mito
cómico do Hinduísmo, Viṣṇu dorme no oceano sobre a serpente de mil cabeças, a Śeṣa.
Durante o seu sono, uma flor de lótus cresce de seu umbigo e a partir desse lótus nasce
Brahmā, que cria o mundo. Uma vez criado o mundo, Viṣṇu se desperta para reinar o céu
mais elevado, o Vaikuṇṭha (BASHAM, 2004, 302-303).
Kṛṣṇa é um dos avatāra (descida de Deus à Terra sob forma de encarnação corporal)
de Viṣṇu. Além de surgir nas epopeias, está também nos dezoito Grandes Purāṇas e dezoito
Pequenos Purāṇas (ELIADE; COULIANO, 2003, 178). Devido a uma maldição, Viṣṇu foi
condenado a nascer muitas vezes na Terra (MATHUR; CHATURVEDI, 2008, 75). Mas essa
maldição fez com que Viṣṇu pudesse preservar e proteger seus devotos reencarnando e
surgindo na Terra sempre quando o mal e os demônios tornam a vida insustentável. É função
dele restabelecer a ordem e a justiça. Há dez avatāra que são geralmente aceitos
popularmente. Matsya, Kūrma, Varāha, Narasiṁha teriam surgido em Satyayuga; Vāmana,
Paraśurāma, Rāma teriam surgido na era de Tetrayuga; Kṛṣṇa na terceira era, ou seja,
Dvāparayuga, e finalmente Buddha4, na quarta e última era, o Kaliyuga. Kalki, um avatāra
futuro, deverá surgir ao final da era de Kaliyuga. Vejamos brevemente as características de
cada um deles (BASHAM, 2004, 304-306).

4
Há uma versão de que o nono avatāra não teria sido o Buddha, e sim o irmão de Kṛṣṇa, o Balarāma
(NARAYANAN, 2009, 29).
35

1º avatāra: Matsya (peixe) –Quando a terra


estava para ser engolida pela grande
inundação universal, Viṣṇu tomou a forma
de um peixe e alertou o sábio Manu do
perigo. Matsya salva os sete grandes ṛṣi,
Manu e sua família, colocando-os numa
embarcação. Matsya também consegue
salvar os Veda da inundação.

Fig. 7

2º avatāra: Kūrma (tartaruga) -


Durante a grande inundação, muitos dos
tesouros divinos se perderam, inclusive o
amṛta, a bebida que preservava a juventude
dos deuses. Viṣṇu torna-se uma grande
tartaruga, mergulha até o fundo do oceano
cósmico e em suas costas carrega o Monte
Mandara. Envolve-o com a serpente
Vāsuki no centro do oceano, rodopia-o
puxando a serpente, como se girasse um
peão puxando-o com a corda. Do
redemoinho do oceano emerge o amṛta e
vários dos tesouros perdidos.

Fig. 8
36

3º avatāra: Vāraha (javali) – O rei


demônio Hiraṇyākṣa afunda a terra
novamente para o fundo do oceano
cósmico. Viṣṇu toma a forma de um
grande javali, mata o demônio e usando as
presas, Vāraha resgata a terra da
profundeza das águas.

Fig. 9

4º avatāra: Nārasiṃha (homem-leão) –


Hiraṇyakaśipu, irmão do demônio
Hiraṇyākṣa, passa a nutrir um profundo
ódio por Viṣṇu. Prahlāda, filho de
Hiraṇyakaśipu, era um grande devoto de
Viṣṇu, o que lhe causou um profundo
desgosto. Mas Hiraṇyakaśipu foi
abençoado por Brahmā devido a suas
realizações de guerreiro, só podendo ser
morto por alguém que não fosse nem
homem nem animal, nem de dia nem de
noite e nem por uma arma. Assim, Viṣṇu
apareceu meio-homem e meio-leão, ao pôr
do sol e com suas garras matou-o sobre
Fig. 10
suas coxas, cumprindo dessa forma todas
as exigências de Brahmā.
37

5º avatāra: Vāmana (anão) – Bali, rei terceiro passo até que fosse enviado às
demônio e neto de Prahlāda, toma posse do profundezas da terra.
universo, ameaçando os poderes dos
deuses. Estes pedem ajuda a Viṣṇu, que
agora assume a forma de um anão
brāhmaṇ mendicante, aparecendo diante
do rei Bali num momento de culto no qual
atendia aos pedidos dos brāhmaṇ. Vāmana,
aproveitando a oportunidade, pede que lhe
conceda todos os espaços que ele pudesse
medir com seus três passos. Logo que Bali
aceita o seu pedido, Vāmana torna-se
gigante e com o primeiro passo toma a
terra, com o segundo passo, o céu, e ao
tentar tomar a atmosfera com o terceiro, Fig. 11

Vāmana decide deixar o mundo


subterrâneo a Bali. Assim, Vāmana diz-lhe
que a cabeça de Bali será pisoteado com o

6º avatāra: Paraśurāma (Rāma-com-o-


machado) – Paraśurāma obtém de Śiva seu
machado chamado paraśu. É também com
ele que Paraśurāma aprende a arte da
destruição. É a primeira encarnação
plenamente humana de Viṣṇu, que surge
como filho do brāhmaṇ Jamadagni. Este
foi morto pelos filhos do rei Kārtavīrya,
depois que Paraśurāma destruiu todos os
males dos kṣatriya, pois estes não estavam
respeitando os brāhmaṇ e isso era
imperdoável perante a tradição indiana.
Fig. 12
38

7º avatāra: Rāma - Viṣṇu, agora é


conhecido como Rāma, príncipe de
Ayodhyā e herói da narrativa Rāmāyaṇa,
epopeia escrito por Vālmīki. Surge para
salvar o mundo das opressões do Rāvaṇa,
demônio que capturou sua esposa Sītā.
Hanuman, o deus macaco, é o seu fiel
companheiro e amigo.

Fig. 13

8º avatāra: Kṛṣṇa – Certamente, dentre


todas as encarnações, Kṛṣṇa é considerado
o mais representativo avatāra de Viṣṇu.
Filho de Vasudeva e Devakī, durante a
infância realizou vários milagres, inclusive,
o de aniquilar demônios. Na adolescência
teve inúmeras relações com esposas e
filhas de vaqueiros. É o personagem
central de Bhagavadgītā. Seu nome
significa literalmente “preto”.

Fig. 14
39

9º avatāra (a): Buddha – Viveu entre 563-


483 a.C. É a única encarnação de Viṣṇu
baseada em registros históricos. O
Budismo de Gautama Śākyamuni tem
como característica a não violência e a
recusa em executar sacrifícios de animais,
opondo-se assim, à tradição védica.
Fig. 15a

9º avatāra (b): Balarāma, irmão de Viṣṇu,


também personagem de Mahābhārata.

Fig.15b
Kṛṣṇa e seu irmão Balarāma

10º avatāra: Kalki (destruidor do tempo) –


Um avatāra do futuro, designado a surgir
no final da era de Kaliyuga, no tempo em
que o conhecimento sagrado estiver caído
no esquecimento. Destinado a destruir os
conflitos e o mal entre os seres, tem como
objetivo por o fim do ciclo de yuga, para
poder iniciar um novo Satyayuga,
restabelecendo a verdade e a pureza no
universo.

Fig. 16
40

F. Max Müller, em uma de suas palestras proferidas (cf. MÜLLER, 1882), nota que os
três primeiros avatāra de Viṣṇu estão relacionados às águas 5, os quais em todos os casos
referem-se ao resgate da espécie humana do desastre proveniente das inundações. Quando a
literatura védica tornou-se mais conhecida de forma geral, essas histórias sobre as grandes
águas foram descobertas talvez não em forma de hinos, mas no mínimo escritas em prosas
pertencentes ao período bramânico. Não somente a história sobre Manu e o Matsya, mas
também sobre Kūrma e Vāraha. Esta passagem sobre a destruição causada pelas águas
encontra-se nos textos de Catapatha Brāhmaṇa, no qual se encontra o diálogo onde Matsya
alerta Manu sobre o desastre que levará todas as criaturas. Matsya, então, ordena Manu a
construir um navio6e a meditar em nome de Matsya para poder se salvar.
Kṛṣṇa relata a Arjuna em uma das passagens do capitulo 4 de Bhagavadgītā sobre os
diversos avatāra pelos quais ele já passou e explica que razão pelo qual ele surge:

O Venerável7 disse:
Muitos foram os nascimentos atravessados por mim e por ti, Arjuna;
eu os conheço todos, Paraṃtapa8, tu não conheces. (4.5)
(...)
Toda vez que o dharma se torna débil, ó Bhārata,
O adharma se levanta - então eu surjo de meu ātman. (4.7)

E assim, mostra a Arjuna que toda vez que o homem esquece-se de seu verdadeiro
dever, Kṛṣṇa se torna necessário surgir diante deles.
Não se sabe ao certo se os textos védicos são fontes de estrutura primordial dessas
divindades. Eliade pondera que é preciso sempre levar em consideração que os hinos védicos
e os tratados bramânicos foram compostos para uma elite, a saber, a aristocracia e os
sacerdotes (ELIADE, 2010a, 207).
Ainda em Ṛgveda, além da várias dedicações aos deuses Indra, Varuṇa e Mitra,
encontram-se hinos que aludem os conflitos entre diferentes tribos arianas. Mas os dados
históricos desse Veda não aparecem em grandes quantidades. Alguns nomes das tribos
védicas, como o dos Bhārata, reaparecem, no entanto, em literatura posterior, o Mahābhārata,
composto pelo menos cinco ou seis séculos depois da época védica. Divindades como Indra,
que aparece com bastante relevância e importância nos hinos védicos, aparece também no
Mahābhārata.

5
Max Müller usa o termo deluge (cf. MÜLLER, 1882, 133); A. L. Basham usa o termo flood (cf. BASHAM,
2004, 304).
6
Max Müller usa o termo ship (cf. MÜLLER, 1882, 135).
7
Venerável = Kṛṣṇa.
8
Paraṃtapa = epíteto de Arjuna.
41

Por último, apresentamos Gaṇeśa,


filho de Śiva e Parvati. Conhecido como
“destruidor de obstáculos”, é um semideus
dotado de sabedoria. Foi a ele que Vyāsa
recorreu para escrever a narrativa de
Mahābhārata.

Fig. 17
Gaṇeśa

Embora certos Upanichades revelem exatamente um início discreto para o hinduísmo, a


erupção maciça da religião se formou pelos Grandes Épicos, acima de todos pelo Mahabharata,
texto que, pelo menos em seu conteúdo, certamente antecede a era cristã. (...) Em seu texto são
tratados todos os valores mais profundos de hinduísmo no plano ético e jurídico, os deveres do
indivíduo em si próprio e em sua relação quanto à sociedade. (RENOU, 1964, 19).

Dessa forma, vemos que quando encontramos palavras como Vedismo, Bramanismo
ou Hinduísmo, os teóricos e estudiosos se distinguem entre si quanto às divisões
(cronológicas e contextuais). No entanto, estamos na realidade observando partes integrantes
de algo maior que engloba um todo: o universo indiano. Esse universo está ricamente narrado
em Mahābhārata, como veremos no próximo capítulo. Podemos concluir este capítulo com a
seguinte observação de Louis Renou:

O hinduísmo é realmente uma religião rica e complexa. Nenhuma iniciativa de um fundador,


ou dogma, ou reforma, impôs restrições a seu domínio; muito ao contrário, as contribuições
dos séculos se sobrepuseram, sem jamais desgastar as camadas anteriores de desenvolvimento.
(...)
Finalmente, hinduísmo caracteriza a sociedade como um todo. O sistema de castas com seus
diversos “estágios” de existência é parte dele e a vida é encarada como um rito. Não há
qualquer linha divisória absoluta entre o sagrado e o profano. Na verdade, não há termo hindu
correspondente ao que chamamos “religião”. Existem “atitudes” com relação à vida espiritual e
existe o dharma ou “manutenção” (no caminho certo), ao mesmo tempo norma ou lei, virtude e
ação meritória, a ordem das coisas transformada em obrigação moral – princípio este que
governa todas as manifestações da vida indiana.
Pode-se perguntar quando o hinduísmo começou, mas a resposta terá de ser indireta – o
hinduísmo começou na época em que a atividade original do ritual védico chegou a seu fim,
quando se perdeu a antiga estrutura védica.
(...)
O nome de “bramanismo” às vezes é dado à mais antiga das formas eruditas do hinduísmo,
mas levando-se tudo em conta é preferível encarar o mesmo como um todo, sem procurar
subdivisões superficiais (RENOU, 1964, 13).
42

Capítulo II – Mahābhārata e Bhagavadgītā

O grande combate dos Bhārata conta a terrível guerra travada entre os cinco irmãos
Pāṇḍavas e seus primos, os cem irmãos Kauravas, pelo reinado de Bhārata. Kṛṣṇa, avatāra do
deus Viṣṇu, fica ao lado dos irmãos Pāṇḍavas e no momento do grande conflito, dá a Arjuna,
o guerreiro Pāṇḍava, a lição filosófico-religioso, conhecido como Bhagavadgītā, inserido no
Livro VI de Mahābhārata.
Bhagavadgītā, por sua vez, está subdividido em dezoito capítulos (Livro VI-25 a 42).
É considerado por muitos (cf. ELIADE, 2011; RENOU, 1964) como o texto sagrado mais
importante do Hinduísmo. A grande batalha entre os dois clãs envolve não só os homens
mortais, mas também as divindades que tomam partidos dentro da guerra. É uma obra que
discute o conhecimento do ātman (“eu”, “alma humana”, “si-mesmo” ou “self”) perante o seu
Brahman (“o Absoluto” ou “o Supremo”), tendo como pano de fundo as peripécias das
divindades, dos sábios, dos reis, dos príncipes, enfim, de todos aqueles que estão envolvidos
no relacionamento entre a dualidade da criação e a harmonia deste Brahman. A presença de
elementos míticos não pode ser reduzida a uma simples ficção. São passagens de relevância
histórica que englobam contextos cosmológicos, religiosos, filosóficos e éticos, nos quais
nada escapa do intuito de elucidar o universo humano perante seu papel e existência neste
mundo.
A seguir veremos uma breve apresentação de quem foi o narrador/personagem Vyāsa,
de como a obra foi concebida, um panorama dos dezoito Livros e a localização de
Bhagavadgītā dentro desse complexo épico.

1. A narrativa épica de Mahābhārata

A epopeia Mahābhārata, também conhecida como “A batalha de Kurukṣetra”, é o


principal documento histórico mitológico da Idade de Ouro da Índia. Maha significa “grande”
ou “total”; Bhārata, além do nome de um sábio, é também nome de uma família, um clã,
ancestral dos príncipes do norte da Índia e também um dos antigos nomes da própria Índia, a
“Terra dos Bhārata” (Bhāratavarṣa). Mahābhārata, portanto, pode ser traduzido como “O
grande descendente Bhārata” ou “A grande história de Bhārata”. É a mais longa epopeia da
literatura universal, possuindo cerca de cem mil śloka (estrofes de dois ou quatro versos)
escritos em sânscrito, dividido em dezoito Parva (Livros). Não se sabe ao certo a datação
precisa de quando obra foi elaborada, mas presume-se que tenha sido concluído entre VII e VI
43

a.C. e tomando a forma como é apresentada atualmente entre V a.C. e IV d.C. (CAMPBELL,
1994, 259). Ou ainda, segundo Louis Renou: “(...) sua redação talvez esteja situada em uma
época entre o século II ou III antes de Cristo e o século I da era cristã” (RENOU, 1964, 107).
As aventuras são inspiradas em antigas lendas e fazem alusão aos dados históricos das
guerras. Por isso, Mahābhārata é às vezes traduzido como “A grande história da humanidade”.

A narração é interrompida aqui e ali por episódios a ela relacionados, fábulas e apólogos, ou
por dissertações políticas e morais que transformaram esse enorme poema numa espécie de
resumo geral dos valores principais do hinduísmo, resumo, entretanto, que dá mais espaço ao
dharma do guerreiro do que ao de um brâmane ou asceta (RENOU, 1964, 107).

Nos subcapítulos seguintes, veremos primeiro quem foi o autor dessa epopeia, seguido
de um pequeno enredo da obra para conhecermos os principais personagens e suas peripécias.
Na terceira parte, veremos em que contexto está inserido Bhagavadgītā.

1.1. A história do texto e do autor

Quando se credita a autoria de uma obra específica, existe na realidade uma atribuição
a um conceito não só de um indivíduo igualmente específico, mas também a um conceito de
poder. Existe algo como “o autor desta obra sou eu” ou “quem leva crédito desta obra?”. Em
Mahābhārata há essa autoria creditada historicamente, mas pela extensão da narrativa e pela
constatação de que o autor/narrador conversava com uma deidade, o Gaṇeśa, prova que ele foi
um “autor” e não um autor real. Louis Renou observa que a língua, o estilo, as contradições
internas, tudo denuncia uma irregularidade na redação, o que confirma a distância artística
entre as partes do texto e o autor (RENOU; FILLIOZAT, 1947, 385). Embora não haja
unanimidade na tradição indiana quanto à autoria, existe uma figura mítica popularmente
aceita e, portanto, uma cultura pautada no coletivo. Mas ele, enquanto elemento de
autenticidade, na realidade é secundário, ou seja, o relevante não é “quem” e sim “o quê”.
Jean-Claude Carrière faz uma interessante observação, segundo Georges Dumézil:

Será que é uma obra coletiva, uma coletânea de relatos sucessivos? Há quem sustente esta
hipótese. Georges Dumézil, que via o poema como uma transposição de um quinto Veda (hoje
desaparecido), acreditava, ao contrário, que era obra de um único autor, uma obra organizada,
em que os detalhes apresentados nas primeiras cenas encontram correspondência no final e,
sobretudo, porque a evolução de cada um dos personagens é precisa, a escrita poética é
coerente e, principalmente, não perde de vista, em nenhum momento, o sentido de conjunto
(CARRIÈRE, 2002, 267).
44

Fig. 18
Gaṇeśa escreve Mahābhārata

Esse “autor”, chamado Vyāsa, de fato é um personagem importante na epopeia. Sem


ele não haveria a narrativa. É um autor onisciente e onipresente. Vejamos algumas
informações sobre como ele foi concebido: Vyāsa significa vy-āsa “distribuir ou deixar ir (as)
em todas as direções (vi)”. Não só é considerado o autor de Mahābhārata, mas também dos
dezoito principais Purāṇas (ou mais), e também compilador e organizador dos quatro Veda
(CAMPBELL, 1994, 259; RENOU, FILLIOZAT, 1947, 271, 385).
Kṛṣṇa Dvapayana Vyāsa é filho de Parāśara e de Satyavatī. Satyavatī é filha do rei
Uparicara Vasu e da apsara (ninfa) Adrika. Mas esta, devido a uma maldição, foi
transformada em um peixe. Certo dia, quando um pescador estava navegando sobre o rio
Yamuna, pescou Adrika e de dentro de sua barriga tirou um menino e uma menina. O menino
se tornou rei da cidade de Matsya, mas a menina, devido a seu mau cheiro de peixe, foi
chamada de Matsyagandha (ou “aquela que cheira peixe”), e foi adotada pelo pescador.
Parāśara, durante seu passeio pelo rio, vê Satyavatī. Apaixona-se por ela e promete
eliminar o seu odor de peixe em troca da união. Satyavatī concorda com a proposta e em
seguida dá luz a um menino. Assim, seu odor de peixe se transforma em um perfume. Ao
crescer, esse menino passa a se chamar Vyāsa e por ordem de sua mãe, decide viver na
floresta como eremita para se tornar porteriormente, um grande sábio e vidente, um ṛṣi.
Mais tarde, Śāntanu, rei Kuru do reino de Hastināpura, atraído pela fragrância de
Satyavatī, pede-a em casamento. Ela aceita sob a condição de que seus filhos herdem o
reinado, exigindo-lhe inclusive que o filho mais velho de Śāntanu deixe de obter seus direitos
como filho do rei. Este filho não é ninguém senão Bhīṣma, importante aliado dos Kaurava na
batalha de Kurukṣetra. Ele é filho de Śāntanu e de sua primeira esposa, a deusa Gaṅgā. Gaṅgā
havia afogado os primeiros sete filhos do casal devido a uma maldição, mas Śāntanu consegue
impedir que ela matasse o oitavo, o que viria a ser Bhīṣma. Este, ao saber que seu pai Śāntanu
encontrava-se em conflito devido a exigência de Satyavatī, decide abdicar o trono e promete
45

ter vida de celibato para assegurar que nunca tenha filhos que ameacem usurpar o trono dos
filhos de Satyavatī.

Fig. 20
Fig. 19
O rei Śāntanu apaixona-se por Satyavatī
Śāntanu tenta impedir que sua esposa, a deusa
Gaṅgā afogue seu oitavo filho, futuramente
conhecido como Bhīṣma

Após a morte de Śāntanu, Satyavatī e seus dois filhos (Chitrāngada e Vichitravirya)


herdam o reinado. Mas estes morrem ainda jovens. Quando ocorre essa tragédia Vyāsa fica
subitamente sem personagem para continuar a sua narrativa. Ele precisa de sucessores nesse
reinado. Satyavatī pede a Bhīṣma que tenha herdeiros, mas este lembra-a de sua promessa de
voto de castidade. Quem, então, Satyavatī procura pelas florestas para solucionar o problema?
Ninguém menos que o seu primogênito, o próprio Vyāsa. Pede-lhe para que tenha herdeiros
com as duas viúvas (Ambika e Ambalika). Nascem dessa união Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu, futuros
pais respectivamente dos Kaurava e dos Pāṇḍava. No entanto, Ambika, apavorada com a
aparência horrenda de Vyāsa, acaba fechando os olhos quando concebe Dhṛtarāṣṭra, por isso
ele é o “filho da escuridão”, o filho cego. Mas Ambalika, apesar de não se intimidar com a
presença de Vyāsa, ficou branca e pálida e devido a isso seu filho Pāṇḍu foi considerado o
“filho da luz”. Dhṛtarāṣṭra é “aquele que suporta”, “aquele que tem um reino seguro”, dhṛta,
“ reino”; Pāṇḍu é o “branco, pálido” (CAMPBELL, 1994, 262). Assim, o autor passa a ser
também pai dos seus personagens. “A carne penetra a palavra”, como observa Carrière
(CARRIÈRE, 2002, 267) e dessa forma, a castidade de Bhīṣma desencadeou o nascimento
dos dois novos personagens.
Vyāsa, ficando mais velho, pede certo dia a Gaṇeśa, filho de Śiva e Parvati, que
registre a história sobre seus filhos Dhṛtarāṣṭra ePāṇḍu e seus netos, iniciando-se assim, a
narrativa.
46

Fig. 21
Vyāsa narra ao Gaṇeśa as peripécias de Mahābhārata.

1.2. Os dezoito Parva de Mahābhārata

Fig. 22a
Mahābhārata - Templo de Hoysaleshwara, Índia

Fig. 22b
Mahābhārata - Templo de Kailash, Índia
47

Vejamos a seguir os personagens mais relevantes da obra e a composição dos dezoito


Parva (Livros) de Mahābhārata, de forma sintetizada.

Abhimanyu filho de Arjuna e Subhadrā


Ambalika mãe de Pāṇḍu
Ambika mãe de Dhṛtarāṣṭra
Arjuna terceiro filho Pāṇḍava; filho do deus Indra
Aśvatthāmā filho de Droṇa
Balarāma irmão de Kṛṣṇa
Bhārata rei do norte da Índia; patriarca do clã Bhārata
Bhīma segundo filho Pāṇḍava
Bhīṣma ancião do clã Kuru; primogênito do rei Śāntanu com Gaṅgā; aliado dos
Kaurava
Chitrāngada filho do rei Śāntanu e Satyavatī
Dharma deus da Justiça; pai de Yudhiṣṭhira
Dhṛtarāṣṭra rei cego do clã Kuru; habitante de Hastināpura; irmão de Pāṇḍu; pai dos cem
irmãos do clã Kaurava
Draupadī esposa dos cinco irmãos Pāṇḍava; filha do rei Drupada
Droṇa instrutor militar dos irmãos Pāṇḍava e dos Kauravas
Duḥśāsana segundo filho de Gāndharī, irmão de Duryodhana
Duryodhana primeiro filho Kaurava
Gāndharī esposa de Dhṛtarāṣṭra; mãe dos cem irmãos Kaurava
Gaṅgā deusa do Rio Ganges; mãe de Bhīṣma
Ghaṭotkaca filho de Bhīma
Janamejaya filho de Parīkṣit; bisneto de Arjuna
Karṇa filho de Kuntī e deus do Sol; aliado dos Kaurava
Kṛṣṇa avatāra de Viṣṇu; aliado dos Pāṇḍava
Kuntī primeira esposa de Pāṇḍu; mãe dos príncipes Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna
Kuru Bhārata que deu nome ao povo e ao campo de batalha de Kurukṣetra
Mādrī segunda esposa de Pāṇḍu; mãe dos príncipes gêmeos Nakula e Sahadeva
Nakula quarto filho Pāṇḍava; filho do deus gêmeos Ashvin
Pāṇḍu rei do clã Kuru; irmão mais novo de Dhṛtarāṣṭra; pai dos cinco irmãos Pāṇḍava
Parīkṣit filho de Abhimanyu; neto de Arjuna
Sahadeva quinto filho Pāṇḍava; filho do deus gêmeos Ashvin
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Śakunī irmão de Gāndharī; aliado dos Kaurava


Śalya irmão de Mādrī; aliado dos Kaurava
Saṃjaya sábio e vidente; conselheiro e cocheiro de Dhṛtarāṣṭra
Śāntanu rei Kuru do reino de Hastināpura; pai de Bhīṣma
Satyavatī mãe de Vyāsa, Chitrāngada e Vichitravirya
Saunaka sábio que pede o registro da história dos descendentes de Bhārata
Subhadrā segunda esposa de Arjuna; mãe de Abhimanyu; irmã de Kṛṣṇa
Uttara filho do rei Viratā
Uttarah filha do rei Viratā; mãe de Parīkṣit
Vichitravirya filho do rei Śāntanu e Satyavatī
Vyāsa poeta e narrador, sábio que compôs Mahābhārata; filho de Parāśara
com Satyavati
Yudhiṣṭhira primeiro filho Pāṇḍava

Fig. 23
Distrito de Kurukṣetra
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Livro I – Ādhiparva (Ādhi = “primeiro”, “começo”).


Trata-se de como esta obra foi narrada, contando a história do começo de Bhārata e o
início da vida dos príncipes guerreiro. É onde veremos a investigação dos sujeitos e sua
universalidade.
Janamejaya, bisneto de Arjuna, inicia o ritual do Sacrifício das Serpentes e é
questionado pelo motivo que o levou a fazer tal cerimônia. Janamejaya explica que seu pai foi
morto devido a uma maldição feita pelo deus da serpente. Após o término do sacrifício, o
sábio Saunaka que estava presente no ritual pede para que o Mahābhārata seja narrado.
Assim, Vyāsa chega a Janamejaya, e ao ser pedido para relatar as peripécias dos Kurus,
procura por Gaṇeśa para ajuda-lo nessa tarefa, dando início assim, o poema.
Depois de relatar o nascimento de Bhīṣma e de Vyāsa, a narrativa segue com a história
de seus filhos Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu. Dhṛtarāṣṭra, apesar de ser o príncipe herdeiro, devido a sua
cegueira, abdica seu trono a seu irmão mais novo Pāṇḍu. Mas quando este morre, Dhṛtarāṣṭra
adota seus cinco sobrinhos Pāṇḍavas (Yudhiṣṭhira, Arjuna, Bhīma e os gêmeos Nakula e
Sahadeva), criando-os junto com os seus cem filhos. Entretanto, com tempo nota-se que os
Pāṇḍava tornam-se superiores aos Kaurava quanto à inteligência e capacidades militares.
Droṇa, brâmane e habilidoso arqueiro, tem como função ensinar a arte militar tanto para os
Pāṇḍava quanto para os Kaurava. Mas é em Arjuna que Droṇa percebe especial talento às
ciências das armas. Assim, principalmente entre o Pāṇḍava Arjuna e o Kaurava Karṇa, inicia-
se os primeiros sinais de rivalidade entre eles, pois ambos possuíam destacadas proficências
militares. Karṇa, apesar de estar ao lado dos Kaurava, é meio irmão de Yudhiṣṭhira, Bhīma e
Arjuna, mas ambos os clãs desconhecem esse fato, pois Kuntī, mãe de Karṇa, ao pari-lo,
abandonou-o num rio dentro de um cesto. Karṇa, assim, foi adotado e criado por um cocheiro
até a idade adulta.
Com a morte de Pāṇḍu, Dhṛtarāṣṭra torna-se rei, até que o primogênito de Pāṇḍu,
Yudhiṣṭhira, tenha idade suficiente para assumir o poder. Duryodhana, primogênito de
Dhṛtarāṣṭra, consumido por uma inveja demoníaca, não se conforma com esta decisão e arma
inúmeras armadilhas para eliminar o seu oponente para que possa assumir o poder no reinado.
Ele é a encarnação do demônio Kali, o mais perverso demônio do panteão hindu. Tempos
após os Pāṇḍava terem escapado das armadilhas arquitetadas por Duryodhana, Arjuna ganha a
princesa Draupadī como prêmio de uma competição. Draupadī torna-se a esposa dos cinco
irmãos Pāṇḍava, por ordem de sua mãe pois esta lhes ensina que tudo o que possuem deve ser
dividido igualmente entre os quatro irmão.
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Para amenizar a rivalidade, Dhṛtarāṣṭra, após renuniciar o trono, decide dividir o reino
em duas partes, dando Hastināpura aos Kaurava e o reino de Indraprastha aos Pāṇḍava.

Fig. 24
Pāṇḍu e Kuntī

Livro II – Sabhāparva (Sabhā = “corte”)


É o Livro que narra a vida no palácio e na corte. Kaurava, com inveja da prosperidade
do reino de Indraprastha, trama uma nova estratégia para destruir os Pāṇḍava. Um dia,
Duryodhana, com a ajuda de seu tio-feiticeiro Śakunī, decide desafiar Yudhiṣṭhira num jogo
de dados. Com os truques e trapaças de Śakunī, Yudhiṣṭhira perde sucessivamente seus bens
materiais, o reino, chegando a apostar no desespero, seus irmãos e por fim, sua esposa
Draupadī. Os Kaurava, na tentativa de humilhar ainda mais os Pāṇḍava, tenta despir Draupadī
diante de todos, mas Kṛṣṇa salva-a com a sua intervenção divina.
51

Fig. 25a
Duḥśāsana tenta despir Draupadī na frente de todos

O rei Dhṛtarāṣṭra e sua esposa Gāndharī, percebendo o desespero e a desolação de


Yudhiṣṭhira e a ganância de seu filho Dryodhana, ordena que encerre o jogo, mandando-o
anulá-lo e devolver os bens aos Pāṇḍavas. No entanto, Yudhiṣṭhira, não se conformando com
o ocorrido, é seduzido novamente a partipar de uma segunda jogatina. Assim, devido aos
truques de Śakunī sobre os dados, os Pāṇḍava novamente perdem tudo e como punição são
banidos de seu reino e passam a viver exilados junto com Draupadī na floresta por treze anos,
sendo que no último ano eles deveriam viver incógnitos.

Fig. 25b
Kṛṣṇa salva Draupadī da humilhação
52

Livro III – Vanaparva


Os Pāṇḍava habitam a floresta, conversam com os sábios e passam por diversas
experiências. Durante os doze anos de exílio, são abordados temas como a percepção do
ātman, a manifestação e a não manifestação do ātman, a sua energia e o seu relacionamento.
Nesse tempo, Arjuna sobe ao reino de Indra para adquirir disciplina militar e para poder obter
armas dos deuses. Yudhiṣṭhira e um ṛṣi conversam sobre as causas da miséria, o apego à
riqueza e o mal que há entre os homens.
Mesmo durante o exílio, Duryodhana planeja matar os Pāṇḍava, mas Vyāsa consegue
impedir que isso aconteça. Draupadī, observando tudo isso, não consegue se conter e desabafa
seu desespero a Kṛṣṇa. Nesse momento, ocorre discussões entre os irmãos Pāṇḍava: todos
querem retornar ao reino e reaver seus direito, mas Yudhiṣṭhira pede paciência e relembra
seus irmãos e sua esposa sobre virtude, mas Bhīma tenta encorajar Yudhiṣṭhira a agir e lutar.
Vyāsa, então conversa com Yudhiṣṭhira e avisa-o que Arjuna partirá para o norte para obter as
armas necessárias para a luta. Arjuna entra para a floresta, pratica austeridade, mas ao
combater Śiva, perde. No entanto, Arjuna recebe de Śiva a arma e encontra-se com Indra. Lá
recebe também armas dos deuses.
Durante o exílio, Viṣṇu surge em seu terceiro avatāra na forma de Vāraha (javali) para
erguer o mundo afundado durante o Satyayuga. Quando Draupadī cai devido à exaustão,
Bhīma socorre-a. Surge, então, Hanuman (o macaco), o fiel servo de Rāma, oitavo avatāra de
Viṣṇu. Hamuman conta a proeza de Rāma, descreve os quatro yuga e fala sobre os deveres de
um kṣatriya a Bhīma.
Os irmãos Pāṇḍava esperam ansiosamente pela volta de Arjuna. Quando este retorna,
relata-lhes a sua história sobre Śiva e as armas que obteve de Indra, mas que ele estava
impedido de exibi-las. Bhīma quer voltar para lutar contra Duryodhana. Assim, os Pāṇḍava
decidem partir, deixando as montanhas. Depois de ouvirem discursos sobre as percepções da
mente, do intelecto e sobre a transmigração da alma, todos retornam à casa.
Kṛṣṇa aproxima-se dos irmãos para falar sobre os atos dos homens e seus resultados
neste mundo e no próximo. Inicia-se posteriormente uma conversa sobre a dissolução do
universo quando chegar a era do Kaliyuga. Yudhiṣṭhira quer também saber sobre seu dever.
Ouve assim, sobre a grandeza de um kṣatriya, sobre virtude, karma, nascimento e morte, e o
resultado das ações.
No meio do caminho, os irmãos Pāṇḍava, um a um, chegam a um lago em busca de
água. Mas um grou faz perguntas a eles e cada um, ao dar respostas erradas, é morto.
Yudhiṣṭhira é o único que consegue responder corretamente fazendo com que esse grou
53

ressuscite todos os irmãos. Esse animal não era ninguém senão Indra, o Senhor da Justiça.
Pela virtude de Yudhiṣṭhira, Indra concede-lhe benefícios.

Livro IV - Viratāparva
É o fundamento da vida e dos relacionamentos, no qual veremos a universalidade do
dharma. É o dharma como relacionamento entre ātman com ātman, e ātman com o outro.
É o décimo terceiro ano de exílio, no qual os Pāṇḍava foram ordenados a vivem
incógnitos. Passam os dias na corte do rei Viratā. Yudhiṣṭhira vive como um cortesão jogando
dados com o rei, Bhīma como cozinheiro, Arjuna como eunuco, Nakula como treinador de
cavalos, Sahadeva como treinador de vacas, Draupadī como criada da filha da rainha e Kṛṣṇa
como um criado. Todos eles são instruídos sobre como se comportar na frente de um rei. O
gerenal Kicaka do reino de Viratā tenta seduzir Draupadī, mas esta consegue escapar e pede
para que Bhīma o mate. Bhīma então, atrai Kicaka num salão e esmaga-o. Devido a este
incidente, parentes do rei exigem que Draupadī seja queimada, mas ela consegue se libertar
dessa punição.
Sob ameaça da invasão dos Kaurava em seu reino, Viratā alia-se aos Pāṇḍava após
estes revelarem as suas verdadeiras identidades. Droṇa sente maus presságios sobre os
Kauravas, mas tanto Duryodhana quanto Karṇa ignoram as palavras alarmantes de Droṇa e
preparam-se para o combate. Karṇa se prepara para lutar contra Arjuna, mas Aśvatthāmā,
filho de Droṇa, se recusa a lutar contra Arjuna. Bhīṣma recorda que a promessa de treze anos
de exílio foi cumprida e organiza seus soldados para a batalha. O rei Viratā oferece a sua filha
em casamento para o filho de Arjuna.

Livro V – Udyogaparva (Udyoga = “esforço”)


É o livro sobre a tentativa de trazer a paz diante da iminência da guerra entre Kaurava
e Pāṇḍava. Aqui veremos o tema sobre āhiṃsā, ou seja, a não violência como fundamento da
vida e do relacionamento. Também está presente tema sobre a justificativa do ódio, a
racionalidade sobre o perdão e seus limites, a violência no discurso e nas palavras, a violência
contra o ātman do indivíduo e a liberdade proveniente do medo (liberdade esta, fruto da
violência da história).
Os Pāṇḍava decidem reaver o reinado usurpado pelos Kaurava. Diante da recusa de
Duryodhana, aumenta-se a tensão entre os dois clãs. Ambos iniciam os preparativos para a
batalha e ambos pedem a aliança de Kṛṣṇa. Este, apesar de relutante diante da iminência da
54

batalha, acaba por escolher os Pāṇḍava, rompendo assim, a última tentativa de pacificação em
Kurukṣetra. Bhīṣma, Droṇa e Kṛṣṇa, ou seja, sábios e divindades que antes eram conselheiros
e amigos dos Pāṇḍavas e dos Kaurava, agora precisam lutar uns contra outros.

Livro VI – Bhīṣmaparva
É a primeira parte da grande batalha, tendo como líder a divindade Bhīṣma que luta ao
lado dos Kaurava. É onde consta a passagem de Bhagavadgītā. Neste Livro veremos a
essência não só de Mahābhārata, mas também a essência da vida humana, pois cada
personagem possui um relacionamento com seu ātman, com suas particularidades entre seu
corpo e mente, cada qual com seus específicos desejos, motivos, ações e emoções. Cada
personagem possui um relacionamento também com seu outro, não só do ātman, mas com o
seu grupo, sua sociedade, sua nação, e de forma mais ampla, com sua terra, céu, fogo, vento e
tantos outros elementos do universo do qual ele/ela está rodeado. Assim, da mesma forma
como a vida está relacionada a todos esses atributos, a morte está igualmente presente.

Livro VII – Droṇaparva


As mortes continuam e Karṇa, a pedido de Duryodhana, indica Droṇa como novo
líder. Droṇa, mestre de arco e ritos védicos, foi inicialmente instrutor de guerra tanto dos
Kaurava quanto dos Pāṇḍava. Mas optou por ficar ao lado dos Kaurava, uma vez que Kṛṣṇa
optou por ficar com os Pāṇḍava. Depois de Bhīṣma, portanto, a divindade Droṇa agora é o
líder da batalha. Mas este acaba sendo morto. Dhṛtarāṣṭra lamenta a morte de Droṇa e
pergunta como isso ocorreu. Há novamente uma retrospectiva da narração. Duryodhana havia
pedido para que Droṇa capturasse Yudhiṣṭhira. Abhimanyu, filho de Arjuna, apesar de pouca
idade, também se destaca na batalha. Droṇa ataca Yudhiṣṭhira e provoca devastação, mas os
Pāṇḍava, sob liderança de Bhīma continuam resistindo.
Yudhiṣṭhira pede a Abhimanyu que penetre na formação de combate circular de Droṇa
e esse obedece. Abhimanyu consegue ferir Karṇa e Śalya, irmão de Mādrī. Mata em seguida o
irmão mais novo de Śalya, mas não conseguindo resistir à batalha, Abhimanyu morre. Vyāsa
chega à noite e é interrogado por Yudhiṣṭhira sobre a morte do menino. Kṛṣṇa tenta consolar
Subhadrā, mãe de Abhimanyu, esposa de Arjuna.
Śiva se aproxima de Brahmā, pois este não para de destruir as criaturas. Dhṛtarāṣṭra
reflete sobre a situação de como ela chegou a se desenvolver até esse ponto de aniquilação
55

brutal e pergunta a Saṃjaya, seu conselheiro e visionário, a respeito. Ele, então, explica-lhe
que o próprio Dhṛtarāṣṭra é responsável pelo que está ocorrendo.

Livro VIII – Karṇaparva


Este Livro trata sobre o interesse em ātman e sobre a prudência como atributos
humanos.
Karṇa, filho e Kuntī, meio-irmão dos Pāṇḍava, agora está no comando após a morte de
Droṇa. Saṃjaya e Dhṛtarāṣṭra lamentam por testemunhar a batalha. Bhīma luta contra
Aśvatthāmā, mas este se retira para a tropa de Karṇa. Os gêmeos Nakula e Sahadeva levam
Yudhiṣṭhira para seu aposento depois de Karṇa tê-lo mutilado severamente. Śalya, por sua
vez, desvia-se de Karṇa para salvar Duryodhana de Bhīma. Depois de mais uma batalha feroz,
Arjuna derrota Aśvatthāmā e vai visitar Yudhiṣṭhira.

Fig. 26
Karṇa mata Ghaṭotkaca, filho de Bhīma

Livro IX – Śalyaparva
É outro Livro que trata dos atributos humanos: o prazer e a dor como experiência dos
fatos. Por que há mais dor do que prazer? Quais as suas ligações?
Dhṛtarāṣṭra culpa o destino pela atrocidade. Śalya está no comando no último dia da
batalha. Kṛṣṇa pede a Yudhiṣṭhira que mate Śalya. Sahadeva acaba matando o filho de Śalya.
Em seguida, Śalya e Bhīma lutam com o bastão mausala. Bhīma consegue matar Duḥśāsana,
aquele que humilhou Draupadī no dia em que ela foi colocada como a última aposta de
Yudhiṣṭhira no jogo de dados.
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Balarāma, irmão de Kṛṣṇa, chega à batalha para assistir. As divindades Vāruna e Agni
também assistem a batalha. É Balarāma quem diz a Bhīma e a Duryodhana para lutarem no
terreno de Samantapancaka. Bhīma recebe muitos golpes, por isso Kṛṣṇa, vendo a situação,
orienta Bhīma a lutar desonestamente para vencer, dizendo-lhe para quebrar ambas as coxas
de Duryodhana. Bhīma obedece e além disso chuta a cabeça de Duryodhana, o que faz com
que Yudhiṣṭhira repreenda severamente Bhīma. Balarāma também fica furioso ao testemunhar
a atitude covarde de Bhīma e por isso amaldiçoa-o. Kṛṣṇa retorna a Hatinapura e tenta
tranquilizar Gāndharī e Dhṛtarāṣṭra. Aśvatthāmā, filho de Droṇa, está agora no comando da
batalha.

Fig. 27
Duryodhana sendo morto por Bhīma

Livro X – Sauptikaparva (Sauptika = “guerreiros adormecidos”)


Aqui é narrada a importância da prosperidade material e a riqueza, ou seja, o artha,
uma das quatro metas do Hinduísmo.
No décimo oitavo e último dia de batalha, Aśvatthāmā oferece seu corpo a Śiva. Este
então entra no corpo de Aśvatthāmā fazendo com que ele adquira poderes além do normal e
mata os guerreiros aliados de Pāṇḍava enquanto estes estão dormindo. Morrem os cinco filhos
de Draupadī quando Aśvatthāmā percorre por todo o acampamento. Mas Arjuna consegue
neutralizar a arma de Aśvatthāmā e este é punido a vagar sozinho no meio dos odores de
sangue por três mil anos.
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Livro XI – Strīparva (Strī = “mulher”)


Este é o livro das mulheres, no qual Gāndhārī, Kuntī e as mulheres, tanto do clã
Kaurava quanto do Pāṇḍava, lamentam a grande matança. É a passagem na qual aborda o
tema sobre a energia sexual, o kāma, outra meta do Hinduísmo.
Saṃjaya continua a relatar os acontecimentos a Dhṛtarāṣṭra. Vidura conforta-o e fala
sobre a aflição e a tristeza, e sobre nascimento, sofrimento e morte de todas as criaturas. Fala-
se sobre os vínculos ao mundo fazendo analogia da carruagem. Vyāsa, por sua vez, explica
que a batalha foi ordenada pelos deuses e assim, finalmente a angústia de Dhṛtarāṣṭra é
acalmada.

Livro XII – Śāntiparva (Śānti = “paz”)


Este é o Livro sobre a paz na qual ocorre a coroação de Yudhiṣṭhira como novo rei de
Hastināpura. Os Pāṇḍava vão para a cidade Kuru e lá Yudhiṣṭhira pergunta a Narada a
respeito de Karṇa. Narada então narra o propósito de nascimento de Karṇa, de como Karṇa
obteve as armas e como foi amaldiçoado por ter matado a vaca de um brāhmaṇ. Certa vez,
enquanto Śiva dormia no colo de Karṇa, um verme perfura a coxa de Karṇa, mas este, apesar
da dor, não se move para não perturbar o sono de Śiva. Śiva então percebe que Karṇa é um
kṣatriya, pois caso contrário não teria suportado a ferida. Karṇa, então, é amaldiçoado a
perder a arma de Brahmā no momento em que ele mais irá precisar dela.
Vyāsa fala sobre os deveres de um rei, sobre os acontecimentos como parte do curso
do tempo, sobre os atos que atraem os erros dos homens e de como se purificar deles.
Yudhiṣṭhira, então, é avisado para ir até Bhīṣma. Yudhiṣṭhira é instalado no trono, designa os
deveres para os seus irmãos, doa as riquezas em homenagem aos que foram mortos e ruma até
Kṛṣṇa. Ambos vão juntos até Bhīṣma. Primeiro, Kṛṣṇa vai até ele para conversar sobre moral;
depois, Yudhiṣṭhira ouve de Bhīṣma sobre os deveres políticos e éticos dos reis e
posteriormente os deveres de kṣatriya, vaiśya e śudra. Indra também surge e faz um discurso
sobre os deveres de um kṣatriya.

Livro XIII – Anuśāsanaparva (Anuśāsana = “instrução”)


É o Livro sobre as últimas instruções de Bhīṣma. Bhīṣma, em seu leito de morte, fala
sobre o valor do reinado na sociedade, na economia e na política. Conversa sobre a
importância da família, suas obrigações e seus deveres, e o papel da esposa e da mãe dentro
de cada família. Yudhiṣṭhira ouve sobre a vida após a morte. Relata também sobre o maior
bem para os humanos: a compaixão. Os homens devem praticar o ato da doação como grande
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mérito da virtude. Bhīṣma ensina a Yudhiṣṭhira que a abstenção de carne também é um


exemplo de compaixão. Vyāsa afirma que o medo da morte é um exemplo de apego à vida e
que essa atitude deve ser abandonada.

Fig. 28
Os últimos ensinamentos de Bhīṣma

Livro XIV – Āśvamedhikaparva (Āśvamedhika = “Sacrifício do Cavalo”)


Kṛṣṇa explica a Arjuna sobre a qualidade da ignorância (ilusão), a paixão, a bondade e
sobre a grande alma (mahat). Relata também sobre as divindades, os deveres que são
governados sob diferentes formas, a analogia da vida com uma roda e a vida de reclusão como
forma de emancipação.

Fig. 29
Sacrifício do Cavalo
59

Kṛṣṇa retorna a casa e discute a morte de Abhimanyu, filho de Arjuna. Outros


membros de Pāṇḍava também lamentam sua morte. Parīkṣit é filho de Abhimanyu com Uttarā,
filha do rei Viratā (Livro IV), e neto de Arjuna com Subhadra. Quando se iniciou a batalha,
Uttarā ficou grávida de Parīkṣit. Mas na noite do ataque de Aśvatthāmā (Livro X), Uttarā é
golpeada no ventre, fazendo com que perdesse Parīkṣit. No entanto, com a ajuda do poder de
Kṛṣṇa, ele consegue ser ressussitado. Posteriormente Parīkṣit casa-se com a rainha Mādravatī
e tem o filho Janamejaya, futuro rei de Hastināpura.
Ocorre a cerimônia real do Sacrifício do Cavalo. São os atributos centrais do
governante tendo como base a disciplina do dharma, mais uma meta do Hinduísmo. A
disciplinina do dharma é a disciplina de um rei. O temor deve servir como base da ordem
social. Mas quando Yudhiṣṭhira cai na aflição para conduzir a cerimônia, pede conselhos a
Dhṛtarāṣṭra, a Kṛṣṇa e a Vyāsa, mas este último repreende-o e Kṛṣṇa orienta-o a conquistar a
batalha que está ocorrendo dentro de sua mente.
O Sacrifício do Cavalo é um ritual védico que deve ser realizado somente por um rei
vitorioso, fazendo com que adquira dignidade de um soberano universal. O cavalo é
identificado com o cosmo e o seu sacrifício simboliza o ato da Criação.

Livro XV – Āśramavāsikaparva (Āśramavāsika = “vida eremita”)

Fig. 30
Gāndharī, vedada, ampara Dhṛtarāṣṭra e segue Kuntī no momento em que Dhṛtarāṣṭra torna-se velho e frágil,
retirando-se assim para a floresta
60

Vyāsa sugere a Dhṛtarāṣṭra, agora em idade bastante avançada, que se retire para as
florestas. Dhṛtarāṣṭra, então, dá a Yudhiṣṭhira instruções e conselhos de como se deve agir
uma pessoa da realeza e ensina-lhe sobre o significado de guerra e de paz. Terminada a sua
tarefa, Dhṛtarāṣṭra parte para a floresta juntamente com um grupo. Kuntī e Gāndharī decidem
segui-los.
Vyāsa ensina a Dhṛtarāṣṭra como se deve viver na floresta. Pāṇḍava, angustiados,
decidem visitá-lo e conseguem encontrar-se com ele, Kuntī e Gāndharī. Kuntī, então, fala
sobre seu sentimento de culpa em relação a seu primogênito Karṇa.
Após Vyāsa convocar as tropas para uma reconciliação, os Pāṇḍava retornam a
Hastināpura. Mas após alguns anos, Yudhiṣṭhira toma conhecimento de que Dhṛtarāṣṭra,
Gāndhārī e Kuntī morreram em um incêncio na floresta onde viviam. Todos os Pāṇḍava
lamentam o ocorrido e realizam rituais fúnebres.

Livro XVI – Mausalaparva (Mausala = “bastão”)


Após trinta e seis anos de batalha, Yudhiṣṭhira tem maus presságios, que também é
notado por Kṛṣṇa. Vyāsa avisa que a hora dos Pāṇḍava está próxima. Arjuna, então, resolve
voltar para Yudhiṣṭhira.

Livro XVII – Mahāprasthanaparva (Mahāprasthana = “grande jornada”)


Yudhiṣṭhira passa o reinado a Parīkṣit, neto de Arjuna. Aqui, veremos temas como a
peregrinação, a renúncia, a reta conduta, a sabedoria, a ignorância e o santo.
Após anos que se seguem de mortes e atrocidade, a cidade desmorona, as divindades
perecem, os Kaurava morrem e os Pāṇḍava, já envelhecidos e debilitados, dirigem-se às
montanhas localizadas no Himālaya, o reino celestial de Indra, acompanhados pela esposa
Draupadī, pelos irmãos e por um cão. Não resistindo, morrem Draupadī (devido à sua
demasiada afeição por Arjuna), Sahadeva (por se achar o sábio e o mais humilde dos cinco
irmãos), Nakula (pela vaidade e por se achar o mais belo), Arjuna (por não ter vencido todos
os inimigo, como havia prometido, e pela sua demasiada confiança e arrogância) e Bhīma
(por não ter prestado atenção aos outros) durante a viagem, restanto apenas Yudhiṣṭhira e o
cão.
61

Livro XVIII – Svargārohanaparva (Svargārohana = “ascenção para o svarga”)


Finalmente, neste último Livro veremos a ascenção de Yudhiṣṭhira ao svarga de Indra
e sua última provação. Também veremos o retorno dos Pāṇḍava ao mundo espiritual. É a
narrativa sobre a última meta do homem hindu: o mokṣa, ou seja, a libertação.
Ao chegar às montanhas, Yudhiṣṭhira é recebido por ninguém menos que Indra, a
divindade soberana, chefe tutelar de varṇa, ordenador do mundo tanto cósmico quanto moral.
Mas para que Yudhiṣṭhira possa ascender ao svarga, Indra ordena-o que abandone seu cão,
pois este é impuro e não digno de pisar o svarga. Yudhiṣṭhira recusa esta ordem divina
alegando que este animal foi-lhe fiel e companheiro durante sua trajetória até chegar a Indra.
Diante desta atitude de integridade, Indra revela a Yudhiṣṭhira quem realmente é este cão: seu
próprio pai, Dharma, a lei personificada. A Yudhiṣṭhira então, lhe é permitido a entrada para o
svarga, por ter passado pelo teste da virtude.

Fig. 31
Yudhiṣṭhira e seu cão a caminho do svarga

Quando chega ao reino dos svarga, para sua surpresa ele encontra ali os seus piores
inimigos, os Kaurava. Não compreendendo o ocorrido, Yudhiṣṭhira desce novamente ao
encontro de Indra e demanda a presença de seus irmãos e de sua esposa. Indra encaminha-o,
então, ao naraka e lá, entre cheiro de putrefações de corpos mutilados e escuridão,
Yudhiṣṭhira reconhece seus fieis companheiros. Após ver o svarga e o naraka, Yudhiṣṭhira
depara em sua última provação: escolher viver no svarga junto com seus inimigos ou viver
com sua família no naraka, um lugar de sofrimento onde vivem também aqueles que
praticaram erros. Yudhiṣṭhira responde a Indra afirmando que jamais abandonaria seus aliados,
preferindo assim, permanecer no naraka. Indra, então, revela que tanto naraka como svarga
62

são māyā e que a provação era para testar a integridade de Yudhiṣṭhira diante das escolhas
que ele faz. Assim, Indra desfaz a cena, uma simples ilusão, concedendo a Yudhiṣṭhira, a seus
irmãos e a Droupadī a ascensão ao svarga. Com isso, encerra-se o Dvāparayuga e inicia-se o
Kaliyuga.
Ao final de toda a batalha, Janamejaya torna-se rei de Hastināpura ao longo de
sessenta anos, sucedendo Yudhiṣṭhira e Parīkṣit. Parīkṣit morre devido a uma maldição de um
brâmane, por ele tê-lo ofendido. Este brâmane faz com que Parīkṣit morresse com a mordida
de um naga (serpente). Janamejaya ao saber disso, decide fazer o ritual do Sacrifício das
Serpentes para se vingar de Takshaka, o rei do povo de naga. Durante este ritual, foi narrado a
epopeia Mahābhārata por Vaiśampāyana, discípulo de Vyāsa, a Janamejaya.

Fig. 32
À esquerda, com a coroa e arco-e-flecha, o rei Janamejaya. À direita, Vyāsa

Observemos que a referência à svarga e ao naraka não corresponde exatamente ao


“céu” e ao “inferno” no termo cristão. Não é uma questão de mérito ou de demérito. Svarga
significa “(lugar de) muito brilho” e naraka é “(lugar) para os homens”, como explica
Fonseca (FONSECA, 2009, 24). O que Yudhiṣṭhira presenciou não passa de um simples māyā.
Naraka, na realidade, é filho de Anṛta (“descontrole”; “desorganização”) e de Nirkṛti
(“desonestidade”; ”desmanche”) ou Nirṛti (“corrupção”). Nirṛti, por sua vez, é mãe de Bhaya
(“medo”) e de Mṛtyu (“morte”). Māyā, na mitologia personificada, é filha de Anṛta e Nirṛti,
ou filha de Adharma “desordem” (FONSECA, 2009, 86).
Devido a todos esses episódios, aventuras e desventuras com inúmeras reviravoltas,
Mahābhārata de fato merece ser classificado como um grande poema. O épico é
desenvolvido através de misturas de diálogos e narrações e Vyāsa é apresentado como o
sujeito e líder dos atores de seu próprio poema. Talvez, como observa C. V. Vaidya
(VAIDYA, 1904, 48), o personagem principal de Mahābhārata não seja o conjunto das
63

grandes ações, mas sim a natureza da vida de um heroi. Mahābhārata sem dúvida deu vida
aos Pāṇḍava do início ao fim, mas também é possível perceber que o principal objetivo do
épico seja narrar as peripécias dos personagens, por isso a descrição detalhada das ações de
cada um. Vejamos a seguir umas das passagens centrais do épico: o diálogo entre Arjuna e
Kṛṣṇa.

1.3. Bhagavadgītā dentro do Mahābhārata

Fig. 33
Bhagavadgītā, manuscrito do século XIX

Inserido no Livro VI de Mahābhārata, Bhagavadgītā é um poema com setecentos


versos, distribuídos ao longo de dezoito capítulos, considerado como a “porção didática de
Mahābhārata” (RENOU, FILLIOZAT, 1947, 394). O texto hindu passou a ser mais
conhecido no ocidente por ter sido, em 1785, o primeiro a ser traduzido para a língua europeia
pelo sanscritista inglês Charles Wilkins. Bhagavat é “aquele que possui bhaga”, ou seja, “a
felicidade, o bem-estar, a prosperidade”. É também uma fórmula de tratamento que significa
“glorioso, ilustre, venerável”. Gītā significa “canção, poema sagrado, louvação em forma de
canto”. Bhagavadgītā, portanto, é traduzido como “A canção do Senhor”, “A canção do
Venerável” ou, segundo Basham, “Cantado pelo Senhor”9 (BASHAM, 1989, 82).

9
“Sung by the Lord”
64

Nesta canção consta uma peculiar combinação entre o pensamento não bramânico e as
ideias védicas dos arianos. Ela nos mostra, como já vimos, a essência do pensamento hindu,
que não deve ser lida como um simples diálogo entre um mestre e seu discípulo. É acima de
tudo um diálogo que nos mostra como apreendemos de forma subjetiva o mundo externo que
projetamos segundo um conceito estabelecido baseado em uma realidade formulada pelo
nosso intelecto, como observa Heinrich Zimmer:

A estéril divisão do mundo em matéria e espírito resulta de uma abstração do intelecto e não
deve ser projetada sobre a realidade; porque é da natureza da mente estabelecer diferenças,
formular definições e discriminar. Declarar que “há distinções” é apenas constatar a atuação de
um intelecto que aprende. Os pares de opostos percebidos refletem não a natureza das coisas,
mas a da mente que os percebe. Daí que o pensamento e o próprio intelecto têm de ser
transcendidos se o que se quer é alcançar a verdadeira realidade. A lógica pode auxiliar nos
esclarecimentos preliminares, mas é um instrumento imperfeito e inadequado para o
conhecimento final (ZIMMER, 1986, 273).

Fig. 34
Saṃjaya narra ao rei Dhṛtarāṣṭra os acontecimentos em Kurukṣetra

A importância de Bhagavadgītā está justamente em apresentar essa característica do


pensamento hindu: há uma transcendência da realidade que vai além do nosso intelecto.

(...) O pensamento bramânico no período das Upaniṣads estava bem equipado para absorver
não apenas as personalidades divinas do panteão védico primitivo, mas também as formulações
filosóficas e devocionais bem mais complexas, da tradição aborígine, não–ária. A
Bhagavadgītā é o documento clássico das primeiras etapas desta adaptação. (...) O texto (...)
não é, de modo nenhum, uma só composição. Críticos ocidentais assinalaram numerosas
contradições; para a mentalidade indiana, no entanto, são precisamente nestas contradições que
esse radica o valor do texto (ZIMMER, 1986, 274).
65

Quando o príncipe Arjuna está prestes a enfretar a batalha final contra seus inimigos,
ele é subitamente tomado por medo e por dúvida em derramar sangue. Qual seria o propósito
em aniquilar seus entes familiares, mestres, Bhīṣma, Droṇa, entre outros? Assim, inicia-se
Bhagavadgītā, a canção do venerável senhor, com o rei cego Dhṛtarāṣṭra pedindo a Saṃjaya10
que lhe conte o que está ocorrendo. Vejamos algumas passagens relevantes relacionadas ao
tema da pesquisa:

Capítulo 1

Então, tendo visto os filhos de Dhṛtarāṣṭra perfilados, o pândava


- quando começou a chuva de flechas – Kapidhvaja11 ergueu o arco. (1.20)
Ó Senhor da terra, ele disse o seguinte discurso para Hṛṣīkeśa12:
“Acyuta13, para meu carro no meio entre os dois exércitos! (1.21)
para que eu possa ver os que estão perfilados ansiosos para lutar
ao meu lado, ansiosos para lutar neste levante marcial, (1.22)
e para que possa ver aqui reunidos aqueles que nesta guerra
estão dispostos a satisfazer a mente maligna de Duryodhana.” (1.23)
Isso dito por Guḍākeśa14, ó Bhārata15, então Hṛṣīkeśa,
estacionando o carro no meio dos dois exércitos, (1.24)
diante de Bhīṣma e Droṇa, e de todos os poderoso da terra,
disse: “Ó Pārtha16, contempla todos os Kuru aí reunidos!” (1.25)
Então ali o Pārtha via perfilados pais e avôs,
mestres, tios maternos, irmãos, filhos, netos e também companheiros. (1.26)
E sogros e amigos em pé em ambos os exércitos,
ele contemplava, ó Kaunteya17, todos os parentes ali parados. (1.27)
Com piedade suprema ele dizia o seguinte angustiadamente:
Vendo minha própria gente, Kṛṣṇa, ali postada para lutar, (1.28)
tremem meus braços, e minha boca resseca,
e esse tremor no meu corpo, e meus pelos se arrepiam... (1.29)
Gāṇḍīva18cai de minha mão, minha pele queima por toda parte;
não consigo ficar em pé, minha mente se move sem rumo... (1.30)
(...)
Que orgulho teremos se matarmos os dhārtaraṣṭra19, ó Janārdana20?
Só culpa cairá sobre nós se matarmos essa turba de saqueadores. (1.36)

10
Saṃjaya = “de vitória total, de triunfo completo”; condutor do carro de Dhṛtarāṣṭra; é um bardo que tinha
também a função de difundir e conservar histórias na memória das pessoas.
11
Kapidhvaja = epíteto de Arjuna.
12
Hṛṣīkeśa = epíteto de Kṛṣṇa.
13
Acyuta = epíteto de Kṛṣṇa.
14
Guḍākeśa = epíteto de Arjuna.
15
Bhārata = aqui se refere a Dhṛtarāṣṭra.
16
Pārtha = filhos de Kuntī com Pāṇḍu, ou seja, Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna.
17
Kaunteya = “filho de Kuntī”, Arjuna.
18
Gâṇḍīva = nome do arco usado por Arjuna.
19
dhārtaraṣṭra = “filhos de Dhṛtarāṣṭra”.
20
Janārdana = epíteto de Kṛṣṇa.
66

Arjuna, diante da dúvida que o atormenta devido à atrocidade, questiona sua atitude e
pede ao seu fiel conselheiro Kṛṣṇa sobre sua hesitação e seu temor, pois ao se dar conta dessa
mente maligna de Duryodhana (1.23), Arjuna percebe a real intenção dos Kaurava. A piedade
(1.28 - kṛpā, em sânscrito) aqui presente possui conotação de ternura, compaixão e lamento,
mas também está no sentido de ser fraco (FONSECA, 2009, 33) e o sentimento de culpa
(1.36 - pāpa, em sânscrito) de Arjuna distingue-se do contexto cristão do sentimento de
pecado. Deve ser entendido aqui como um sentimento de angústia de comportamento mal
conduzido e incorreto perante um grupo social. Assim, o guerreiro Arjuna, confuso sobre seus
deveres, pede a Kṛṣṇa para ser seu mestre espiritual.

Capítulo 2

Saṃjaya disse:
A ele que estava cheio de piedade, e muito aflito, olhos agitados
e cheios de lágrimas, então Madhusūdana21 lhe disse um discurso. (2.1)
O Venerável disse:
Neste mometo tão adverso, de onde te vem esse desânimo, Arjuna,
digno de um anārya22, de má reputação e que não leva ao Svarga? (2.2)
Não te portes como um desmacho, ó Pārtha! Não te fica bem!
Arranca essa fraqueza vil do coração e levanta, terror dos inimigos! (2.3)

Fig. 35
O desânimo de Arjuna

21
Madhusūdana = epíteto de Kṛṣṇa.
22
anārya = não-ária.
67

Novamente temos a palavra piedade (2.1) que agora além de significar fraqueza, tem o
sentido de tormento. O desânimo (2.2) de Arjuna mostra-se no âmbito já do desespero e do
abatimento. Ele não sabe mais como lidar com seu comportamento e sentimento de tortura.
Por isso Kṛṣṇa repreende-o em tom severo.

Arjuna disse:
Como eu, Bhīṣma e Droṇa em batalha, ó Madhusūdana,
combaterei com flechas, dignos eles de veneração, ó Arisūdana23? (2.4)
Não matar os mestres seria menos honroso
que no mundo ter para comer apenas da tigela de um mendigo.
Matar os mestres, porém, só para obter artha e kāma,
só me daria o gosto de chafurdar em sangue. (2.5)
E nem sabemos o que seria mais grave para nós –
nós vencermos ou eles nos vencerem.
Se matarmos aqueles que não queremos que continuem vivos,
esses dhārtaraṣṭra, eles continuarão de pé na nossa frente. (2.6)
Impelido pela culpa de uma fraqueza, indeciso,
eu te peço, a mente completamente confusa quanto ao dharma,
dize-me o que seja positivamente meritório.
Sou teu discípulo, ensina este suplicante. (2.7)

Arjuna ainda inquieta-se diante do sentimento de culpa (2.7 - doṣa, em sânscrito), o


que novamente não se refere a um pecado. Aqui Arjuna angustia-se pelo comportamento de
modo negativo que lhe atormenta, pois transgride a sua consciência diante da falta que
acomete seus atos.

Fig. 36
Arjuna pede conselho de Kṛṣṇa

23
Arisūdana = epíteto de Kṛṣṇa.
68

Kṛṣṇa, então, desperta em Arjuna a importância em exercer seu dharma para um bem
maior, sem apego aos resultados. O conhecimento é importante, mas ele deve estar atrelado à
ação desprendida do egoísmo. Kṛṣṇa revela que tem ensinado a importância de aceitar as
palavras de seu ensinamento, pois é dessa forma do chamado yôguica devocional é que o
homem encontra sua salvação. O homem deve, portanto, meditar para que através desse
processo possa atingir o samādhi e consequentemente a morada suprema. Samādhi significa:

(...) aquele estado/momento em que o sujeito cumpre/realiza em definitivo alguma operação


em seu interesse, sendo fundamental que esse processo se configure como um movimento
espiritual ou religioso que bem poderia ser definido como uma epifania, no sentido de
“manifestação ou percepção da natureza ou do significado essencial de uma coisa” – não se
tratando, entretanto, de uma apreensão puramente intuitiva nem inesperada (o inesperado é
simplesmente o fantástico, o maravilhoso, o extraordinário). Textos de orientação filo-religiosa
traduzem, ou interpretam (...) a palavra como “concentração total do espírito”, “meditação
religiosa”, “concentração dos pensamentos” etc. (FONSECA, 2009, 58).

O homem não deve, por fim, temer e lamentar pelo perecível nem tampouco pelo
imperecível. Kṛṣṇa, indestrutível e eterno, ensina a Arjuna que o homem não passa de um
corpo, uma matéria que pode ser destruída e dissolvida:

O Venerável disse:
Lamentas pelos que não merecem lamento. E falas com sabedoria.
Pânditas não lamentam pelos que respiram ou deixaram de respirar (2.11)
Além disso, nunca inexisti, nem tu nem esses chefes de homens;
nem cessaremos, todos nós, de nos tornarmos algo. (2.12)
Existe infância, juventude e velhice no corpo da criatura,
E na obtenção de outro corpo. Um mente-firme não se engana. (2.13)
E contatos materiais, Kaunteya, como frio/quente e alegria/tristeza,
Estão sempre indo e vindo, impermanente. Resite a eles. (2.14)
(...)
Diz-se que esses corpos sem-fim são matéria constante,
Indestrutível, imensurável. Por isso, Bhārata, luta! (2.18)
Quem afirma que ela mata e quem pensa que ela é morta,
esses dois nada sabem. Ela não mata nem é morta. (2.19)
(...)
Assim como, após tirar as roupas velhas,
um homem veste outras, novas,
assim também, após tirar as carnes velhas,
o homem se cobre com outras, novas. (2.22)
(...)
Indivisível ela, incalcinável também, e inumectável e irressecável;
ela eterna em toda parte, firme, estável, duradoura. (2.24)
Ela é dita indefinível, impensável, incambiável.
Por isso, sabendo que ela é assim, não deves ficar triste por ela. (2.25)
(...)
69

A morte é certa para quem nasce, o nascimento para quem morre.


Por isso, quanto ao inevitável não te deves lamentar (2.27)
Os seres têm inícios indefiníveis, meios definíveis, ó Bhārata,
finais também indefiníveis. Então lamentação para quê? (2.28)
Alguém a vê como algo incomum, e outros a dizem incomum.
Outros ouvem ser ela assim, mas mesmo ouvindo ninguém conhece. (2.29)
Esse homem no corpo de todos, Bhārata, nunca será morto.
Por isso, quanto a todos os seres, não te deves lamentar. (2.30)

Kṛṣṇa inicia (2.11) afirmando que um homem sábio não lamenta pela morte ou pela
vida, como Arjuna está claramente fazendo pelos que estão morrendo na batalha, pois nenhum
deles irá morrer de fato. De acordo com o princípio de saṃsāra, apenas os corpos perecem. O
dharma é para sempre e duradoura, referindo-se ao próprio Sanātanadharma (2.24) e os seres,
bhūta, são aqueles sempre passíveis de transformações (2.28). Arjuna, de acordo com Kṛṣṇa,
deve cumprir o seu papel como guerreiro, pois não lhe cabe outra alternativa; como
verdadeiro kṣatriya, este é o seu dharma. Ele deve defender o caminho de seu dharma através
desta guerra. A vida e a morte são de pouca valia diante de algo muito maior, que é o valor
eterno, pois tanto uma quanto a outra são ilusórias e o corpo não passa de matéria perecível.
Não deve, portanto, ficar lamentando-se pelo inevitável, ou seja, a morte corpórea. Arjuna,
assim, deve saber diferenciar entre o corpo perecível e a alma eterna.

Ademais, considerando teu próprio dharma, não deves vacilar.


Não se conhece nada mais dhármico para um xátria do que a luta. (2.31)
Inesperadamente, numa guerra como esta, ó Pārtha, os xátrias
conseguem alegrias, é possível uma porta aberta para o Svarga (2.32)
Mas, se tu não fizeres esta guerra conforme o dharma,
então com teu svadharma24 e tua honra tu te tornarás um erro. (2.33)
E os seres relatarão sobre ti uma desonra infindável,
e a desonra, para quem está acima, é mais desejada que a morte. (2.34)
(...)
Ou morto conseguirás o Svarga ou vencendo desfrutarás a terra.
Por isso, levanta-te, Kaunteya, decide-te pela luta. (2.37)
Considera iguais alegria e tristeza, ganho e perda, vitória ou derrota
- participa da guerra e não te tornarás um erro. (2.38)
(...)
Tua preocupação é com a ação, não com os frutos, nunca!
Não te tornes a causa do fruto da ação, não fiques preso à inação. (2.47)
(...)
Quando tua buddhi25 tiver atravessado os nós da consciência,
então chegarás à aversão ao que será sabido e ao que já é sabido. (2.52)

24
svadharma = conjunto de normas para o comportamento de cada sujeito.
25
buddhi = “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”.
70

Há nessa passagem a síntese de dois pensamentos centrais do Hinduísmo: a pravṛtti


(ação), exemplificado na tradição ritualística védica, e nivṛtti (inação), exemplificado na
tradição renunciante da Upaniṣad tardia. Bhagavadgītā afirma que o indivíduo deve agir e
desempenhar seus deveres apropriados ao seu svadharma (2.33), mas também deve agir sem
apego. Essa doutrina é um dos mais importantes ensinamentos sobre a ética hindu. A tarefa do
homem deve ser executada com ação e trabalho, e não se baseando nos resultados dela. Kṛṣṇa
cria incessantemente o mundo, mas sem se prender a ele. É esse pensamento que ele quer
transmitir a Arjuna: este deve aprender a pravṛtti, mas não se apegar a nivṛtti. Deve, portanto,
dessa forma, sair do círculo kármico através do desprendimento. Isso ocorrerá quando a mente
do indivíduo (buddhi) estiver livre de confusão e erros em sua consciência, que também pode
ser interpretado como ilusão (2.52 – mohakalila, em sânscrito).

Capítulo 3

O Venerável disse:
Neste mundo, ó Anagha26, desde tempos antigos refiro duas certezas:
o jñāna-yoga27 do Sāṃkhya, o karma-yoga dos yogin. (3.3)
Não é não iniciando uma ação que o homem consegue o naiṣkarmya28,
nem é pela renúncia a ela que chega ao estado siddhi29. (3.4)
Nem por um instante um ser-nascido não permanece sem agir por uma ação.
Pelas qualidades inatas de sua constituição, todos sem exceção cumprem ações. (3.5)
Aquele que controla a ação e os sentidos mas deixa a mente lembrando,
um ātman endoidecido pelos objetos dos sentidos – esse é dito de conduta falsa. (3.6)
Mas aquele que mantém os sentidos controlados pela mente, Arjuna,
E inicia, desapegado, o karma-yoga com a ação e os sentidos – esse é superior. (3.7)

Por constituição (3.5), ou seja, a prakṛti, Kṛṣṇa refere-se à matéria que se opõe ao
espírito. É dessa prakṛti que provém as atividades humanas. Assim, ao renunciar aos frutos de
seus atos, Bhagavadgītā dedica-se a ensinar que o desprendimento é o caminho para desfazer-
se dos sofrimentos. Portanto isso significa que o homem deve fazer esse sacrifício da renúncia
para não transtornar a ordem do universo. Para que se possa conservar essa ordem
supervisionada por Kṛṣṇa, o homem deve sacrificar e desprender-se de todos os seus atos. Por
esses atos deve-se entender como ação impessoal, desvinculada às paixões e desejos. É dessa
forma que o homem conseguirá sair de seu círculo do karma. Não deve, portanto, perder o seu
controle, tendo um ātman endoidecido (3.6) alguém que perdeu qualquer ação racional, pois
corre-se o risco de agir falsamente. Assim, o homem deve participar de sua vida cotidiana,

26
Anagha = “sem erro, não merecedor de críticas” – epíteto usual para Śiva, aqui referido a Arjuna.
27
jñāna = “conhecimento”.
28
naiṣkarmya = “estado ou condição resultante do fato de não se praticar uma ação”.
29
siddhi = “cumprir, chegar ao objetivo, obter sucesso num empreendimento”.
71

mas nunca esperando um retorno, uma gratificação, enfim, um resultado. Se Arjuna deixa de
seguir esses ensinamentos, deixará de cumprir seu dharma, acarretando consequentemente um
desequilíbrio no universo cósmico. Portanto, a ação de Kṛṣṇa deve ser imitada por Arjuna,
pois:

Se eu não me mantivesse sempre em ação, infatigável,


os homens, em toda parte, acompanhariam meu caminho. (3.23)
Esses mundos se arruinariam não fosse minha ação agida.
Eu seria o agente do saṃkara30 e o destroçador das criaturas. (3.24)
Como os ignorantes praticam os atos, Bhārata, apegados a eles,
então que o sábio aja, desapegado, agindo para a integração do mundo. (3.25)
(...)
Em toda parte as ações são crias dos guṇa31da prakṛti32;
um ātman desorientado pelo ahaṃkāra33pensa “eu que fiz”. (3.27)
Mas quem conhece o isso-tudo, ó Mahābāhu, por meio da distinção entre guṇa e ação,
ele, pensando “os guṇa agem sobre os guṇa”, não se deixa prender. (3.28)
Os enganados pelos guṇa da prākrti prendem-se às ações dos guṇa.
O tudo-sabe não confunda os nada-sabem, tão lentos de espírito. (3.29)

O dualismo do Sāṃkhya-Yoga, ou seja, a prākrti e o puruṣa não deve ser confundido


com o dualismo mente-corpo do âmbito ocidental, conforme observa Roy W. Perrett (cf.
PERRETT, 1998). No Sāṃkhya, puruṣa em seu estado puro é eternamente imutável e está
associado ao mana34, ao ahaṃkāra e ao buddhi35 . Todo puruṣa está associado somente a
prākrti.

Kṛṣṇa, enfim, ensina-lhe:


Melhor o próprio dharma, mesmo viguṇa36, que o dharma de outro sem erro.
Melhor a morte no dharma próprio; o dharma de outro é portador de alarme (3.35)

É nessa passagem que Kṛṣṇa enuncia as distintas obrigações designadas a cada varṇa.
Podemos observar aqui o dharma não só de um kṣatriya, mas também de todos do grupo
social bramânico que vimos anteriormente. Aurobindo analisa essa passagem comparando as
ações dos homens com a de um tigre ou de um fogo ou de uma tempestade (AUROBINDO,
1995, 65). Os homens não podem matar e justificar essa ação afirmando que agiu de acordo
com sua natureza. Tal afirmação não poderia ser feita porque ele não tem a natureza e,

30
saṃkara = “caos, confusão universal”; mais contextualmente “cruzamento de castas”.
31
guṇa = “qualidade”: “bondade” [sattva], “paixão” [rajas] e “trevas” [tamas].
32
prakṛti = “o que existe (ou se faz) antes”; “natureza, caráter, matéria original”.
33
ahaṃkāra = “o fabricador do eu”; “a ideia da individualidade de alguém”; “autoconsciência”.
34
mana = “pensar”; “mente”; “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos cinco sentidos”.
35
buddhi = “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”.
36
viguṇa = “sem guṇa”, “sem qualidade, imperfeito, deficiente, corrompido”.
72

portanto, o svadharma do tigre, do fogo ou da tempestade. Ele tem o buddhi (“espírito”,


“mente consciente”) do qual suas ações devem tomar como referência. Caso ele ignore esse
buddhi, caso aja cegamente de acordo com seus impulsos e paixões, então o dharma do seu
ser não estará trabalhando de forma apropriada. Ignorando o buddhi ele será igual a um
animal.

Arjuna disse:
Então impulsionado por que o homem marcha para esse erro,
Contra sua vontade, ó Vārṣṇeya37, como se uma força o impelisse? (3.36)
O Venerável disse:
Isso é o kāma, isso é o krodha38– brotados do guṇa rajas39,
O que tudo-devora, o que tudo-desvirtua. Sabe-o: ela é o inimigo. (3.37)

Kṛṣṇa ensina que os erros são acometidos devido ao kāma que, apesar de ser uma das
quatro metas do homem hindu, ele é também o impulso que leva o homem ao engano. Kāma é,
segundo a mitologia, filho de Dharma, mas marido de Rati, o deus da luxúria. Tanto o kāma
quanto o krodha, filho de Lobha (“cobiça”) e Nikṛti (“fraude”), devem ser observados, pois
são enganadores e ao mesmo tempo sedutores.

Capítulo 4

Os quatro varṇa foram por mim criados considerando os guṇa e os karman.


Eu o fautor deles. Sabe-me entretanto inativo, imóvel. (4.13)
As ações não me atingem, nem é meu um desejo pelo fruto da ação.
Quem se conhece assim não é aprisionado pelo karman. (4.14)
Sabendo disso, os antigos agiram, ávidos de liberação.
Age tu também, como antigamente agiram os antigos. (4.15)
“O que é ação? O que é inação?” Até os kavi40estão enganados.
Eu te explicarei o que é karman para que, sabendo, tu te liberes do mal. (4.16)
(...)
Abandonado o apego ao fruto da ação, sempre satisfeito, independente,
por mais envolvido na ação, ele não pratica nada nada. (4.20)
Sem desejo, o ātman e a mente domados, liberado de todo apego,
cumprindo uma ação apenas corporalmente, ele não conhece culpa. (4.21)
(...)
Portanto, a dúvida do desconhecimento instalada no coração corta!
Repouse o ātman no conhecimento, firme o yoga, levanta-te, Bhārata! (4.42)

37
Vārṣṇeya = epíteto de Kṛṣṇa.
38
krodha = “ira, cólera, raiva”.
39
rajas = “brilho, pulsação”.
40
kavi = no período védico designava o homem particularmente dotado de percepção e inteligência e
conhecimento, um sábio; nos períodos bramânico e clássico designa o cantor de textos, o poeta.
73

Capítulo 5

A firmeza obtida com o sāṃkhya também é conseguida com o yoga.


O sāṃkhya e o yoga são uma coisa só. Quem vê, vê... (5.5)
(...)
O adepto do yoga – o ātman limpo. O ātman controlado, os sentidos dominados,
cujo ātman se confunde com o ātman de todos os seres –não é poluído. (5.7)
(...)
Ātman não-marcado pelas impressões externas, ele encontra no ātman a felicidade.
Ātman unido de união com o brahman, ele consegue uma felicidade indestrutível. (5.21)
(...)
Conquistam o nirvāṇa em brahman os ṛṣi de escuridão diminuída,
Seus ātman afastados das dualidades, são satisfeitos, dedicados a todos os seres. (5.25)
Liberados do kāma e do krodha, as mentes pacificadas,
O próprio ātman conhecido, encontram o nirvāṇa em brahman. (5.26)

Vejamos aqui mais um termo importante no pensamento hindu:

Nirvāṇa: “(...) estado/condição em que não há vento”; (...) “extinção, desaparecimento,


cessação, dissolução, morte”; (...) “fato de se livrar da vida material e se absorver no Ser
supremo”. O nirvāṇa, entretanto, não é a morte do sujeito – e a morte, no sujeito, de sua
relação de desejo/apego para com os objetos dos sentidos, é o estado em que tudo subsiste, mas
não existe “vento”. (FONSECA, 2009, 67)

Segundo Kṛṣṇa, o desprendimento total revelado por ele no capítulo 4 deve ser
alcançado através da prática e domínio corpo-espírito que o yoga ensina. Somente quando o
discípulo concentra sua atenção no divino é que ele alcaçará esse objetivo. Kṛṣṇa ensina na
passagem do capítulo 5 que seu fim último é a união com o Brahman, ou a devoção a ele.
Todos os seres deste universo estão em Kṛṣṇa, tanto a fonte material quanto a espiritual.
Arjuna assim, aceita as palavras de Kṛṣṇa, colocando-se diante desse Ser Supremo como seu
guia. Diante de toda exposição do procedimento correto para devoção, Kṛṣṇa diz a Arjuna que
agora lhe foi ensinado o caminho para a perfeição máxima da vida do homem. Kṛṣṇa ensina a
Arjuna que a felicidade e a paz só podem ser atingidas se seguir os passos do desapego e
assim unir-se ao Brahman. A mente não deve seguir segundo percepções externas, pois elas
são antes de tudo uma ilusão. Aquele que renuncia à vida mundana e ao apego, Kṛṣṇa o
considera o verdadeiro renunciante, o sannyāsin, o verdadeiro praticante de yoga.

Capítulo 7

Entre milhares de homens, talvez um se esforce pelo siddhi.


E, entre os que chegaram ao siddhi, talvez um me conheça em essência. (7.3)
74

Terra, água, fogo, vento, kha41, manas, buddhi


e ahaṃkāra – os oito componentes da minha prakṛti. (7.4)
Mas essa é a prakṛti imanente. Sabe que tenho uma prakṛti transcendente,
a tornância da vida, Mahābāhu, pela qual este mundo é sustentado. (7.5)
Tem em mente que isso são as fontes de todos os seres:
eu o provir e a dissolução do mundo inteiro. (7.6)
Nada está acima de mim, Dhanaṃjaya,
tudo está tecido em mim, como fileiras de gemas num fio. (7.7)

Praticando-se o yoga, com o māna (“mente”) voltado para o Kṛṣṇa, ele faz uma nova
ressalva a Arjuna. Não é qualquer um que consegue cumprir o siddhi (“tarefa”), pois o
sucesso não deve objetivar uma recompensa. Somente um dentre vários que tentam
conseguem compreender realmente as palavras de Kṛṣṇa. É através de buddhi, ou seja, o
discernimento, o ahaṃkāra (aquilo que compõe a autoconsciência), entre outros componentes
é que atingem a prakṛti expostas por Kṛṣṇa. Não se deve confundir a prakṛti imanente com a
prakṛti transcendente, pois a primeira é inferior, não elevada, enquanto que a segunda é
superior, transcendental (FONSECA, 2009, 118).

Capítulo 8

Tendo chegado a mim, não recebem novo nascimento


nesse lugar transitório de sofrimento e os mahātman 42 chegados ao saṃsiddhi 43 supremo.
(8.15)
Os mundos, daqui ao de Brahman, estão sujeitos a um outra vez, Arjuna.
Mas, vindo a mim, Kauteya, não saberás de outro nascimento. (8.16)
Quem sabe que o dia de Brahman dura mil yuga,
e a noite outros mil yuga, esses homens conhecem o dia e a noite. (8.17)
Do imanifesto produzem-se os manifestos na chegada do dia;
na chegada da noite mergulham no que é chamado imanifesto. (8.18)
Essa multidão de seres, tornando e tornando a ser, mergulha,
ó Pārtha, destruída, na chegada da noite e ressurge na chegada do dia. (8.19)

Da mesma forma que chega a noite, chega o dia. Assim como termina um yuga, outro
yuga se inicia. Eis o que Kṛṣṇa ensina a Arjuna a não temer, pois o inevitável não há como ser
impedido. Os praticantes de yoga são os que detêm a ciência desse evento. Por isso Kṛṣṇa diz
a Arjuna que é esse caminho que ele deve seguir.

41
kha = caos
42
mahātman = “grande alma”.
43
saṃsiddhi = “perfeição; êxito”.
75

Capítulo 9

Os homens que não põem śraddhā44 nessa doutrina-de-vida, ó Paraṃtapa,


não me alcançando caem nas trilhas do saṃsāra e da mṛtyu45. (9.3)
Fui eu, sem forma manifesta, que desenrolei todo esse mundo.
Todos os bhūta46 estão em mim, mas eu não estou neles (9.4)
Mais: os bhūta não estão em mim –vê minha situação poderosa:
meu ātman carrega os bhūta, não está nos bhūta, é a morada dos bhūta. (9.5)
(...)
Adotando eu um corpo humano, os alucinados me desconhecem,
Desconhecem meu bhāva47 supremo, o grande senhor dos bhūta. (9.11)
(...)
Mas os de grande ātman, Pārtha, submissos a um prakṛti daiva48,
ligam-se apenas a mim, sabidamente a origem imperecível dos bhūta. (9.13)
(...)
Mesmo quem tenha praticado as piores ações, se se dedicar a mim e a nenhum outro,
que seja considerado um sadhu, pois está apropriadamente determinado. (9.30)
Depressa ele se torna um ātman com dharma e alcança a śānti49 interminável.
Compreende, Kauteya, meu devoto nunca se arruína. (9.31)

Por isso a insistência constante de Kṛṣṇa para que Arjuna se dedique e confie em seu
mentor. Por pior que possa aparentar a ação de Arjuna, se ele seguir seu dharma, ele não
estará caminhando no erro, ou seja, no adharma.

Capítulo 10

O Venerável disse:
De novo, ouve minha fala suprema, Mahābāhu,
que te explanarei para teu bem por te querer bem. (10.1)
Nem as multidões de sura50 nem os grandes ṛṣi conheceram minha origem
- pois eu sou, de todos os modos, a fonte dos deva, dos grandes ṛṣi. (10.2)
Quem me sabe não-nascido, sem-começo, grande senhor do mundo,
ele, não-insensato entre os mortais, é liberado de todos os erros. (10.3)
Buddhi, jñāna, não-insensatez, paciência, veracidade, autocontrole, paz,
felicidade, infelicidade, tornância e destornância, medo e não-medo. (10.4)
Não-violência, equanimidade, contentamento, penitência, esmola, honra e desonra:
procedem de mim os variados e diversos modos de ser dos bhūta. (10.5)
Os sete grandes ṛṣi de antigamente e os quatro manu
procedem de mim: nascidos da mente dos quais procedem todos no mundo. (10.6)
Quem conhece essencialmente minha expansão e meu yoga,
ele com certeza é equipado com o yoga inabalável. (10.7)

44
śraddhā = “crença”; “fé”; “confiança”.
45
mṛtyu = “morte”.
46
bhūta = “os que são de determinado modo porque passaram a ser assim”.
47
bhāva = pronome de tratamento; “mestre”.
48
daiva = “divina”.
49
śānti = “apaziguamento, estado de felicidade espiritual”; “paz”.
50
sura = “brilhar, governar, possuir qualidade/poder sobrenatural”.
76

Eu a origem de tudo, de mim tudo deriva:


é pensando assim que aderem a mim os sábios plenamente dotados de bhāva (10.8)

Os sete grandes ṛṣi (10.6) enunciados aqui são aqueles que foram salvos pelo primeiro
avatāra de Viṣṇu, Matsya, para que eles pudessem salvar o mundo após a grande inundação.
Kṛṣṇa demanda de Arjuna devoção à sua doutrina compreendendo-o e imitando-o, pois o que
Kṛṣṇa faz deve servir de modelo de comportamento no universo e na história. No plano
terrestre, onde se encontra a imperfeição, é impossível não se cometer erros, tanto no que
concerne à ignorância quanto no que concerne ao apego. Para alcançar a perfeição, o homem
deve dissolver o indivíduo no seu coletivo, ou seja, “estar” no anônimo. Isso não o isenta de
cumprir o seu dharma; muito pelo contrário: é pelo dharma que cumpre o seu papel no
coletivo. Guṇa (“qualidade”) está em herdar e agir no seu cumprimento. Assim, Arjuna
compreende seu verdadeiro dharma e decide retornar à batalha, agora sem hesitar. Kṛṣṇa não
tinha apenas a função de aconselhar e despertar seu principal discípulo; ele tinha também
como finalidade declarar a toda humanidade a sua doutrina de salvação do mundo pela ação
desinteressada (Karmayoga) e pela devoção (Bhaktiyoga). O Brahman e o ātman residem
dentro de cada um e devem sempre ser observados e refinados, ensina Kṛṣṇa.

Capítulo 11

Arjuna disse:
A fala que por ti foi dita em meu benefício, o supremo segredo
conhecido pelo adhyātman51, eliminou minha alucinação (11.1)
A origem e a dissolução dos bhūta foi ouvida por mim, elaborada por ti,
ó Olhos-pétala-de-lótus, e também teu māhātmyam. (11.2)
Tudo é como tu mesmo disseste, Parameśvara.
Quero ver tua forma soberana, Puruṣottama52. (11.3)
Se pensas que ela pode ser vista por mim, Prabhu,
ó Senhor do Yoga, mostra-me teu ātman imperecível. (11.4)
O Venerável disse:
Vê, Pārtha, minhas formas às centenas e aos milhares,
infinitamente diversas em formas e cores, divinas. (11.5)
Vê os āditya, os Vasu, os Rudra, os dois Aśvin e os Marut.
Vê inumeráveis maravilhas jamais vistas, Bhārata. (11.6)
Vê aqui agora inteiro o mundo em meu único corpo, tudo o que se move ou não,
no meu corpo, Guḍākeśa, e o mais que queres ver. (11.7)
Mas não me podes ver apenas com teus próprios olhos.
Dou-te o olho divya. Vê meu yoga soberano. (11.8)

51
adhyātman = “próprio; concernente ao próprio indivíduo, à personalidade individual”.
52
Puruṣottama = “Personalidade Suprema”.
77

Saṃjaya disse:
Tendo dito isso, ó rajá, então Hari, o Grande Senhor do Yoga,
fez ver ao Pārtha sua suprema forma soberana (11.9)
de bocas e olhos sem conta, espantosas aparências sem fim,
inumeráveis enfeites divinos, infindáveis armas divinas alevantadas, (11.10)
portando guirlandas e vestimentas divinas, ungido de perfumes divinos...
Feito de todos os prodígios, eis o deva infinito dando suas múltiplas caras (11.11)
(...)
O Venerável disse:
Sou o Tempo, que, avançando, faz a destruição do mundo.
Minha função aqui é a supressão das gentes.
Um dia, não importa o que façam todos
enfileirados como soldados em batalhas. (11.32)
Por isso, ergue-te, conquista a glória!
Vencendo os inimigos, delicia-te com um reino próspero.
É por mim que, antes de tudo, eles são mortos.
Sê, hábil arqueiro, apenas meu instrumento. (11.33)
Droṇa e Bhīṣma e Jayadratha
e Karṇa e os outros heróis de batalha:
eu os matarei! Mata também, não hesites!
Combate! Vencerás na luta os rivais! (11.34)

Fig. 37
Kṛṣṇa mostra sua forma universal a Arjuna

Tendo ouvido esses ensinamentos e tendo visto a sua forma universal, Arjuna agora
postado em reverência, submete-se aos ensinamentos de Kṛṣṇa. São então aqueles que se
78

devotam a ele, aqueles que meditam e aqueles que praticam o desapego aos frutos das ações
que merecem śānti, “a paz”. Kṛṣṇa afirma, enfim, que as mortes não são diretamente causadas
por Arjuna. Ele é o que age, mas não é o responsável pelas ações. Portanto, deve pegar as
armas e vencer a angústia que tanto o atormenta.

Capítulo 12

Melhor de fato é o conhecimento que as práticas,


a meditação excele o conhecimento,
a renúncia ao fruto dos atos a meditação:
após a renúncia vem imediatamente a śānti. (12.12)
(...)
Aquele que não perturba o mundo nem pelo mundo é perturbado,
que se liberou das agitações da alegria, da cólera e do medo – esse me é caro. (12.15)
Quem é desinteressado, honesto, imparcial, indiferente,
aquele que renunciou a toda atividade frutificante, devotado a mim – esse me é caro. (12.16)
(...)
Mas aqueles que, ouvindo este néctar sobre o dharma, se aproximam
dotados de śraddhā, de mim como seu supremo – esses me são muito mais caros. (12.20)

Por isso, Kṛṣṇa ensina que aqueles que creem nele e se aproximam dele deve chegar
prontificados à prática da meditação, à renúncia, libertos tanto da alegria quanto do temor,
dotados de fé e humildade, confiando nas palavras dele.

Capítulo 13

Arjuna disse:
O que é prakṛti e puruṣa, e o que é kṣetra53 e kṣetrajña54;
Quero saber o que é jñāna e jñeya, Keśava. (13.1)
O Venerável disse:
Este corpo, Kaunteya, é conhecido como kṣetra.
Quem o conhece é chamado de kṣetrajña. (13.2)
Mas sabe, Bhārata, que em todos os campo eu sou o ksetrajṭa.
O conhecimento do kṣetra e do ksetrajṭa – esse é o vero conhecimento. (13.3)
O que é o kṣetra a que ele é igual, de que se faz a mudança, e de onde vem
[o conhecedor do kṣetra] ouve isso de mim concisamente. (13.4)
(...)
Vou te dizer o que deve ser conhecido – com ele se consegue a imortalidade:
é o brahman supremo, que não tem começo e do qual não se diz ser nem não-ser (13.13)
(...)
Está no interior e no exterior dos bhūta, e é imóvel e móvel;
tão sutil que não pode ser conhecido, e está longe e está perto. (13.16)

53
kṣetra = “campo, terreno”.
54
kṣetrajña = “conhecedor do campo/terreno”.
79

Indivisível, reside nos bhūta como se fosse divisível;


suporta todos os bhūta, devorando-os ou os criando. (13.17)
É chamado de luz das luzes, a que está além das trevas.
Conhecimento e conhecível, acessível pelo conhecimento, reside no coração de todos. (13.18)
Assim te disse em resumo o que e o kṣetra e também o conhecimento e o conhecível.
Quem, devotado apenas a mim, compreende isso atinge meu bhāva. (13.19)

Kṣetra, então, representa o campo de batalha, mas também aqui fica claro que é o
campo do corpo, onde reside o bem e o mal, onde reside o conflito da alma. A śānti e a
imortalidade da alma residem naqueles que são porque assim são, ou seja, “os que são de
determinado modo porque passaram a ser assim”, dentro do eu, o principal responsável por
conhecer o brahman supremo. As luzes (o bem) superam as trevas (o mal) assim que
despertarem a percepção da presença de Kṛṣṇa. Por isso, é importante que perceba a distinção
entre o corpo (não-eu) e o ātman (eu).

Capítulo 15

Aqueles que não estão orgulhosos nem alucinados,


que dominaram o erro do apego, sempre constantes ao que pertence ao ātman,
que estão além dos fatores duais opostos conhecidos como prazer e dor
e que não são estúpidos – esses trilham o caminho imperecível. (15.5)
(...)
Eu estou sentado no coração de todos;
de mim procedem a memória, o conhecimento e o raciocínio;
eu que posso ser sabido por todos os Veda,
eu sou o autor de Vedānta e quem conhece o Veda. (15.15)
(...)
Aquele que, não iludido, me conhece como o puruṣa mais elevado,
esse sabe tudo, Bhārata, devota-se a mim com tudo seu ser. (15.19)

Tanto o prazer quanto a dor, tudo é parte necessária, pois são pelos pares de opostos
que ambos existem e resistem. Mas somente aqueles que tomam ciência dessa dualidade é que
são dignos de serem imperecíveis tal qual Kṛṣṇa.

Capítulo 16

O Venerável disse:
A destemeridade, a limpeza do sattva55, a firmeza na aquisição do conhecimento,
a generosidade, o autorrespeito e o sacrifício e o estudo e a auteridade e a retidão, (16.1)
a não-violência, a veracidade, a não-raiva, a renúncia, a calma, a sinceridade,
a piedade pelos bhūta, o desinteresse, a ternura, o pudor e a tranquilidade, (16.2)

55
sattva = “pureza, bondade”; “virtude, altruísmo”.
80

a vigilância, a tolerância, a força, a limpeza, a indulgência, a modéstia


- tornam daiva a condição dos seres, Bhārata; (16.3)
a pretensão, o orgulho e a enfatuação, a cólera e a grosseria,
a ignorância – tornam āsura56 a condição dos seres, Pārtha. (16.4)
A condição daiva leva à liberação, a āsura ao aprisionamento.
Não lamentes a condição daiva, Pāṇḍava, nela nasceste. (16.5)

Herdamos todos nós, segundo Kṛṣṇa, o lado daiva e o lado āsura. Devemos, pois,
discerni-los através do conhecimento, praticando a retidão e todas as qualidades referentes aos
sattva. É com esse guṇa que se deve prestar atenção e se dedicar. Kṛṣṇa diz a Arjuna que as
qualidades de um āsura não estão somente no plano do submundo. Podem perfeitamente
serem encontrados entre os homens. Kṛṣṇa enfatiza aqui novamente a Arjuna quais as
qualidades de um daiva, pois os homens tendem a se esquecer constantemente sobre sattva.

Capítulo 17

O Venerável disse:
A crença de cada um está, Bhārata, em conformidade com o sattva.
O homem é feito de crença. Tal a crença, tal o homem. (17.3)
(...)
Culto dos deva, dos dvija, dos guru e dos prājña57, limpeza, retidão,
brahmacarya e não-violência – isso é chamado austeridade do corpo. (17.14)
Linguagem jamais ofensiva, que é confiável, agradável
e o auto-estudo-meditativo – isso é chamado austeridade da fala. (17.15)
A felicidade mental, a bondade, o silêncio, o domínio do ātman,
a pureza do bhāva – isso é chamado austeridade da mente. (17.16)
Essa austeridade tríplice praticada com crença extremada
pelos homens aplicados ao ganho sem-fruto é chamado sāttvika. (17.17)

Arjuna questiona sobre aqueles que, mesmo não seguindo os ensinamentos dos śāstra,
se continuariam dignos de serem homens de qualidade. Kṛṣṇa então lhe responde ensinando
quais são as atitudes austeras do corpo, da fala e da mente. Kṛṣṇa fala sobre a crença, onde ela
reside e quais as ações que levam enfim o homem ao sāttvika. O relevante são as ações
executadas conforme o sattva e é assim que torna o homem realizador de suas crenças.

Capítulo 18

Arjuna disse:
Desejo conhecer, Mahābāhu, a natureza do saṃnyāsa
e do tyāga58, ó Hṛṣīikeśa, respectivamente, ó Keśiniṣūdana. (18.1)

56
āsura = entidades malignas; geralmente traduzidas como demônios, espíritos maus.
57
prājña = sábios.
58
tyāga = “abandono"; “auto-entrega”.
81

O Venerável disse:
Para os kavi, o saṃnyāsa é a abstenção dos atos inspirados pelo kāmya59;
para aqueles esclarecidos o tyāga é a renúncia ao fruto de todos os atos. (18.2)
Para racionalistas, deve-se renunciar ao karma por ser um erro;
para outros, não se deve renunciar ao sacrifício, à doação e à austeridade. (18.3)
(...)
Cumpre o ato prescrito, Arjuna, apenas porque ele deve ser cumprido,
renunciando ao apego: eis a renúncia sāttvika. (18.9)
O renunciante dotado de sattva, de dúvidas afastadas, de pensamentos vigorosos,
não odeia a ação desagradável nem se deixa atrair pela agradável. (18.10)
Nem é capaz o mortal de renunciar completamente aos atos:
o renunciante ao fruto do ato é que se torna um renunciante. (18.11)
(...)
O conhecimento, o conhecível e o conhecedor são o estímulo triplo à ação;
o instrumento, a ação e o agente são o tríplice agregador da ação. (18.18)
(...)
Um ação dita sāttvika quando obrigatória, isenta de apego,
cumprida sem ódio ou desejo por alguém não motivado pelo fruto. (18.23)
(...)
O agente livre de apego, que não fala sobre si, dotado de firmeza e
cuidado, não movido pelo sucesso ou insucesso, é dito sāttvika. (18.26)
(...)
Melhor a própria ação sem qualidade que a ação de outro muito bem feita.
Quem cumpre o karma determinado por sua própria natureza não comete erro. (18.47)
Não seja abandonada, Kaunteya, a ação dada pelo nascimento, mesmo com erros.
Todos os resultados estão cercados de erros, como o fogo pela fumaça. (18.48)
A buddhi livre de todo apego, o ātman dominado, o desejo dispensado –
Com renúncia (saṃnyāsa) ele chega à suprema naiṣkarmyasiddhi60. (18.49)
(...)

Kṛṣṇa relembra a mesma obrigação de kṣatriya a Arjuna (18.47), como foi apresentado
no capítulo 3 (3.35). Se os seres devem seguir o seu dharma, então, não há razão para duvidar
nem hesitar em seguir sua prakṛti de acordo com seu guṇa.
Aurobindo afirma que o jīva (“espírito individual”) é, num contexto de auto expressão,
uma porção do puruṣottama (“Personalidade Suprema”) e que a lei da ação de cada indivíduo
determinado pelo svabhāva (“natureza própria para cada ser”) é nossa reta lei, na qual deve
ser auto lapidado e trabalhado, enfim, é o nosso svadharma (AUROBINDO, 1995, 269).

Devotado a mim, renunciando em mim em pensamento a todas as ações,


ampliando o esforço da buddhi, sê sempre mente-em-mim. (18.57)
Mente-em-mim, ultrapassando todos os obstáculos a partir de minha graça,
mas se, cheio de teu ego, não me escutares, tu te arruinarás. (18.58)
Quando, apoiado em teu ego, pensares “não lutarei”,
essa resolução é falsa: tua prakṛti te impulsionará. (18.59)

59
kāmya = “desejo”.
60
naiṣkarmyasiddhi = “perfeição da supressão do ato / perfeição da ação transcendente”.
82

A ação que, ligada a ti por nascimento, tu te recusares a fazer por causa de uma alucinação,
Kauteya, tu a cumprirás mesmo contra tua vontade. (18.60)
(...)
Abandonando todos os dharma, procura o único refúgio em mim –
eu te libertarei de todos os teus erros, não te inquietes. (18.66)
(...)
Arjuna disse:
Minha ilusão se foi, obtida a memória graças a ti, Acyuta;
estou firme, minhas dúvidas se foram. Cumprirei tua palavra. (18.73)

É por esse motivo que Kṛṣṇa se revela diante de Arjuna. É preciso conhecer o modelo
a ser seguido. Por isso Kṛṣṇa afirma que é preciso que conheça quem é e como age o Supremo.
Deve compreender tanto a essência da divindade como seus distintos modos de manifestação.
Condenado a agir, o homem necessita cumprir seu dharma, e nesse caso, cumprir como dever,
seguindo cada qual adequado à sua situação distinta. É dessa forma que o homem cumpre seu
papel na história atribuído a sua própria condição.

Fig. 38
Kṛṣṇa e Arjuna em Kurukṣetra

Ao descrever o aniquilamento, Mahābhārata antecipa de certa forma o pralaya (fim


do mundo). A revelação de Kṛṣṇa como senhor desse pralaya traz também à tona sua postura
de oposição a Śiva, mas também o seu complemento. O equilíbrio interno entre o poder
criador de Kṛṣṇa (Viṣṇu) e o poder destruidor de Śiva é ambivalente, pois Kṛṣṇa possui
também autoridade para ressurreição, assim como fez com filho de Arjuna, Abhimanyu.

Isso equivale a dizer que Vishnu, na qualidade de ser supremo, é a realidade última; por
conseguinte, governa tanto a produção como a destruição dos mundos. Está além do bem e do
mal, como o estão, aliás, todos os deuses. (...) O Mahabharata, no entanto – mais exatamente,
em primeiro lugar, a bhagavadgita –, a torna acessível, e portanto popular, em todos os níveis
da sociedade indiana. (...) Desse ponto de vista, o Mahabharata pode ser considerado a pedra
angular do hinduísmo. (ELIADE, 2011, 210-211)
83

De acordo com a concepção hindu, a entrada de Deus na luta do Universo não significa a única
e assombrosa entrada da essência transcendental no tumulto das coisas mundanas (...), mas um
evento rítmico, conforme à pulsação das idades do mundo. O salvador desce como contrapeso
as forças do mal durante o decurso de cada declínio cíclico dos acontecimentos mundanos.
(ZIMMER, 1986, 279)

Surendranth Dasgupta observa que segundo o pensador Śaṅkara, ao fundar o sistema


Sāṃkhya analisa a passagem de Bhagavadgītā, procurando enfatizar que o dogma do reto
conhecimento nunca pode ser combinado com deveres védicos ou com deveres recomendados
por escrituras legais (DASGUPTA, 1952, 437). Śaṅkara observa que se através da ignorância
ou através do apego o homem continua a cumprir os deveres baseados nos Veda e se, como
resultado dos sacrifícios, recompensas e austeridades religiosas, a mente deste homem
acredita tornar-se pura e assim adquirir o reto conhecimento relacionado à natureza da última
realidade e, depois disso, quando todos os motivos para as ações estiverem voltadas para si
mesmo, ainda assim continuar a executar os deveres prescritos iguais aos homens comuns e
encorajar outros a se comportarem de forma similar, então essas ações seriam inconsistentes
com o reto conhecimento.

2. A anatomia simbólica em Bhagavadgītā

O conteúdo narrativo de Mahābhārata não pode ser enquadrado simplesmente num


panorama de uma epopeia. As passagens e os personagens tanto divinos quanto humanos são
na realidade uma vasta representação simbólica da condição humana em seus vários aspectos
e percepções. Eliade afirma que “raro são os fenômenos mágico-religiosos que não impliquem,
de uma forma ou de outra, um certo simbolismo” (ELIADE, 2010b, 355).

A rigor deveríamos reservar o termo símbolo para o caso dos símbolos que prolongam uma
hierofania ou que constituem, eles próprios, uma “revelação” inexprimível de outra forma
mágico-religiosa (rito, mito, forma divina). Em sentido amplo, no entanto, tudo pode ser um
símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo (...). O vocabulário corrente da etnologia, da
história das religiões e da filosofia admite os dois sentidos da palavra “símbolo” e (...) os dois
sentidos apoiam-se na experiência mágico-religiosa de toda a humanidade. (ELIADE, 2010b,
365)

Os símbolos têm como uma de suas funções remeterem o homem à sua identificação
por meio de uma linguagem, de forma que eles estejam e sejam acessíveis à maior parte de
uma determinada sociedade. Seja essa linguagem inserida num contexto histórico ou psíquico,
o diálogo entre Kṛṣṇa e Arjuna representa a comunicação que há entre um indivíduo e seu
universo particular, e a comunicação com a sociedade em que cada um faz parte. Assim,
Kṛṣṇa e Arjuna não são indivíduos particulares, mas sim um sujeito e seu universo próprio.
84

Esse simbolismo, seja de forma parcial ou total, é remetido através de matáforas a uma
experiência única num aspecto religioso e sagrado, pois a interpretação de cada um é remetida
também a uma realidade individual, realidade esta de forma transcendente, na qual ultrapassa
ou até mesmo anula os limites da realidade concreta. Segundo Eliade, “(...) todo simbolismo
aspira a integrar e a unificar o maior número possível de zonas e de setores da experiência
antropocósmica, (...) todo o símbolo tende a identificar a si próprio o maior número possível
de objetos, de situações e de modalidades” (ELIADE, 2010a, 371).

2.1. Os irmãos Pāṇḍava e os irmãos Kaurava

O rei de Hastināpura Pāṇḍu é filho do rei Vicitravīrya (filho da princesa Satyavatī e do


rei Śantanu) e da princesa Ambalika. Devido a uma maldição expelida pela divindade
Kindama, Pāṇḍu não poderia ter filhos com suas esposas Kuntī e Mādrī. Se os tivesse, Pāṇḍu
estaria condenado à morte imediata. Assim, Kuntī evoca a ajuda do sábio Durvasa para que
pudesse dar herdeiros a Pāṇḍu. Durvasa, então, condede-lhe a ajuda das divindades Dharma,
Vāyu, Indra e Aśvinau. Assim, nascem os cinco irmãos Pāṇḍava. Portanto, Yudhiṣṭhira,
Bhīma, Arjuna e os gêmeos Nakula e Shadeva, apesar de serem filhos do rei Pāṇḍu, nasceram
por intervenção do deuses.
Yudhiṣṭhira (“aquele que se mantém firme”, “aquele sem inimigos”) é filho de
Dharma, senhor do universo e representante da virtude. Apesar de estar na posição de ser o
sucessor do reino, não deseja herdar este destino. Ironicamente, justo ele, filho de Dharma,
não quer seguir seu dharma. Quando perde seu reino no jogo de dados, poderia ele no fundo
ter sentido alívio? Recupera-o uma vez, mas jogo tudo na segunda aposta e é dessa forma
condenado ao exílio. Parecia a princípio estar abalado, mas não evitou a tragédia quando
poderia tê-la feito. Bhīma (“o destemível, o terrível, o formidável”) é filho de Vāyu, senhor
dos ventos, da atmosfera, da respiração; Arjuna (“aquele que possui luz, é o claro, o brilhante,
transparente, aquele que pratica ação pura”) é filho de Pāṇḍu e Kuntī, com intercessão do
deva Indra, deus da tempestade, senhor dos céus; Nakula (que significa “o mais belo”) e
Shadeva (que significa “mil deuses”), são filhos gêmeos das divindades gêmeas Aśvinau,
deuses da medicina, aquele que domina os cavalos. Dos cinco irmãos, Yudhiṣṭhira é o mais
justo, o correto e o gentil. Arjuna é o guerreiro ideal, nobre, generoso e bravo; Bhīma é o
bruto, com grande poder físico, desprovido de inteligência, mas que não possui malícia.
85

Fig. 39
Na parte inferior, a figura central é Yudhiṣṭhira; as duas figuras à sua esquerda são Bhīma e Arjuna; os gêmeos
Nakula e Shadeva estão à sua direita; Draupadī, a esposa dos cinco, encontra-se à direita de todos. Acima deles,
Kṛṣṇa envolvo por uma serpente – Templo de Desavatar, em Deogarh, Índia.

Duryodhana (que significa “aquele que é difícil de lutar contra”, “difícil de conquistar”
ou “difícil de ser vencido”) é o mais velho dos Kaurava. Dotado de grande força física e de
habilidade de grande guerreiro, sua principal arma era o manuseio do bastão. Ele é a
encarnação de Kali, a deusa do mal. Seu irmão Duḥśāsana (“aquele que é difícil de destruir”)
era igualmente cruel e foi o responsável pela humilhação que Draupadī sofreu na frente de
todos da corte após Yudhiṣṭhira perdê-la no jogo de dados (Livro II). Duryodhana representa
o egoísmo humano. Não é motivado a ser o filho perfeito tampouco se importa com a família.
É guiado por uma força da qual nenhum membro da família consegue controlá-lo. Por isso,
aqueles que estão ao seu redor são arrastados para a guerra. Ele é o símbolo daqueles que são
autoconfiantes em demasia. Ele se recusa a mostrar qualquer fraqueza; nem mesmo aceita a se
submeter às exigências de seus primos quando estes querem reaver suas propriedades após o
tempo de exílio.
A atitude de Duryodhana provoca oposição daqueles que estão próximos a ele,
principalmente de seu pai Dhṛtarāṣṭra. Seu capricho é fortemente criticado por ignorar os
laços familiares e é inclusive acusado de ser o “assassino da família” devido a este egoísmo e
ganância. Ele nem mesmo se preocupa em levar a família à destruição. Isso o torna o
86

verdadeiro vilão, o lado obscuro que leva um grupo às ruínas. Ele não só, portanto, representa
um rei mau, ele é também é o mal, como analisa Angelika Malinar (MALINAR, 2007, 45).
Ser o rei das terras que ele tanto demanda faz dele alguém que representa a perda do
autocontrole, portanto aquele que não sabe seguir os ensinamentos do Sāṃkhya-yoga. Esta
perda de Duryodhana desclassifica-o de governar um reino. Mas ele, de certa forma, é um
cumpridor de seu dever como kṣatriya – não ceder e lutar pelo seu status. Um dos principais
deveres de um guerreiro é jamais se submeter a alguém e nisso, ambiguamente, Duryodhana é
fiel. Duryodhana, ressalta Vaidya, possui de certa forma seu próprio encanto (VAIDYA, 1904,
51), por ele ser fiel à suas determinações e ambições.
Finalmente, há o Karṇa, filho bastardo de Kuntī, portanto meio-irmão dos Pāṇḍava.
Kuntī, ao gerar Karṇa com o deus do Sol, abandona seu filho num rio e só o reencontra anos
mais tarde. Karṇa é sombrio e amargo, mas dotado de uma incrível habilidade bélica, que se
equipara a de Arjuna. Apesar de ser um Pāṇḍava, torna-se aliado de Kaurava.
As ações dos dois grupos de irmão são evidenciadas não dentro exclusivamente do
entorno das disputas de reino. As rivalidades foram desencadeadas devido às ações de outros
personagens também. Podem estes a princípio parecerem secundários, mas sem eles a
narrativa não teria seguido em frente. Dhṛtarāṣṭra é um rei frágil, mas sempre com tendência a
agir corretamente. No entanto, é facilmente persuadido pelo mal. Por ele ter dividido o reino
em duas partes, foi desencadeada a principal fissura entre os dois clãs. Apesar de ser cego, ou
talvez justamente por sê-lo assim, observa as ações dos irmãos Pāṇḍava e dos irmãos Kaurava
à distância através de seu mentor e narrador Saṃjaya. Yudhiṣṭhira, Bhīma, Arjuna, Karṇa,
Draupadī, Droṇa, Bhīṣma e Kṛṣṇa são os modelos de virtude devido às suas ações e
determinações, mas todos eles, sem exceção, possuem fraquezas e cometem erros.

2.2. O divino que se personifica

Na cultura hindu, as orações feitas aos deuses como Indra personificava o sacrifício no
qual tinha como objetivo, entre vários, manter o rta, ou seja, a força que mantinha a ordem
entre o universo cósmico e o homem. Os hindus creem que as manifestações do divino sejam
bastante abundantes. Nota-se esse fato pelas inúmeras divindades postas em templos e altares
domésticos. Essa crença acabou por resultar em numerosas manifestações em forma e figuras
variadas, seja ela em forma de animal ou homem / mulher, ou combinação parte animal, parte
humano. A maioria dos hindus acredita que essas manifestações surgem de tempos em tempos
na Terra no intuito de proteger o bem e destruir o que quer que seja que obstrua a harmonia
87

cósmica. É também fato que muitos hindus acreditam que todas as manifestações divinas
provêm de um único Ser supremo.
Em sânscrito, a palavra murti significa “forma” ou “encarnação”. São as “imagens”
que os hindus expõem em formato concreto para que possam cultuar suas divindades em
templos ou lares, apesar de que muitas vezes creem que não se deve impor as ideias humanas
que deus tenha gênero ou número. Assim, durante os rituais, para alguns hindus, mesmo o
deus personificado deixa por alguns instantes de ser uma matéria sólida e concreta para se
tornar algo além de um símbolo. É ele o Brahman, aquele que está além da compreensão
racional humana.

Embora os Upanixades suponham que brahman está para além da compreensão humana, os
textos chamados Puranas (“Antigas [compilações]”) afirmam que esta entidade divina assume
uma forma e um nome para tornar-se acessível à humanidade – e por isso os hindus referem-se
ao ser supremo como sendo ao mesmo tempo nirguna (“sem atributos”) e saguna (“com
atributos”, tais como graça e misericórica). Há textos que identificam o ser supremo de
diversas maneiras como Vishnu (“Onipresente”), Shiva (“Auspicioso”) ou a Deusa é uma de
suas muitas manifestações, como Shakti (“Energia”), Durga e Kali (NARAYANAN, 2009, 24).

O sentido desses deuses faz parte de um caráter específico do hindu, cujo contexto
expressado tanto nos textos quanto nos sentimentos e consciência dos indianos estão além da
aparência fenomenal. Essas anatomias simbólicas em sua natureza estão também em māyā,
mas não em um aspecto necessariamente negativo. Possuem, acima de tudo, um aspecto
qualitativo para expressar essa consciência e vivência do homem hindu.
Nas palavras de Gandhi, Kṛṣṇa é a personificação do verdadeiro conhecimento e da
perfeição. É uma perfeição imaginária, mas no Hinduísmo a encarnação é atribuída àqueles
que realizaram algum feito extraordinário à humanidade. Por isso Kṛṣṇa ensina a Arjuna a
segui-lo; a sua realização está em imitá-lo, pois segundo Bhagavadgītā, Kṛṣṇa é a própria
imagem da perfeição.
Em Mahābhārata as divindades estão presentes em toda a narrativa. Mas elas não são
uma presença inacessível, sem corpo, sem imagem. Elas se personificam, interagem com os
personagens, mas agem com o único propósito de mostrar, por vezes de forma aparentemente
cruel, os erros que os homens não percebem. Dentre os deuses hindus, Indra sem dúvida
ocupa um lugar permanente de honra em Mahābhārata. Era o executante dos atos da batalha,
combatia as trevas e matava os demônios.
No entanto, em uma das passagens de Mahābhārata, no Livro V (Udyogaparva),
vemos qual o papel de um deus. No Livro, Dhṛtarāṣṭra argumenta que os Pāṇḍava são
invencíveis porque os deuses estão do lado deles e que por isso Duryodhana estaria em
posição de desvantagem. Duryodhana não aceita esta teoria do “apoio divino” apontando para
88

isso uma falha de cunho lógico nas palavras de seu pai. Duryodhana rejeita sob a alegação de
que se deuses são deuses, é porque eles representam os valores da renúncia e deveriam estar
desapegados às emoções humanas; além disso, a divindade deveria estar conectada ao poder
do sacrifício.
Assim, os deuses não poderiam tomar o “terceiro partido” num conflito humano
porque os poderes deles são baseados em seus desapegos a todas as obrigações sociais e
inclinações pessoais. Eles possuem seus poderes desde que eles não os usem para propósitos
mundanos. No entanto, por outro lado, o poder dos deuses está restringido às dependências
ritualísticas porque ele é chamado durante o sacrifício executado por qualquer sacerdote que
conheça corretamente as invocações. Assim, Duryodhana se autoproclama o senhor de todos
os seres e que é capaz de lidar com problemas humanos tanto quanto um deus, e as divindades,
ao tomar partido entre os dois clãs, perde seu status divino, segundo argumento de
Duryodhana.

2.3. A metáfora dos sentidos na batalha

Kurukṣetra toma como metáfora tanto o corpo quanto a alma humana, uma batalha
entre os impulsos do bem e do mal. Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu são respectivamente “a escuridão” e
“a claridade”. A batalha seria em essência um conflito entre os filhos da escuridão, as trevas
(filhos de rei cego) com a luz (filhos de rei com olhos atentos). Mas há algo muito mais
elaborado nessa epopeia. Há “um jogo simbólico dos brâmanes, por quem foi concebida a
biografia fisicamente impossível de Vyāsa” (CAMPBELL, 1994, 263). Aparentemente a luz
deveria ser o oposto das trevas, mas nessa versão indiana não há o melhor ou o pior. Existem
ambos que devem ser equilibrados e refinados, estando, portanto, fora do patamar de um juízo
de valor. Vyāsa, filho de Satyavatī,interpreta assim, o papel das forças ambivalentes que não
tem como finalidade última determinar quem triunfará.
As metáforas dessa dualidade estão representadas já no início da epopeia, antes
mesmo da guerra efetivamente tomar forma. As viúvas Ambika e Ambalika, respectivamente
mães de Dhṛtarāṣṭra e de Pāṇḍu, já se mostraram serem a escuridão e a luz, mas ambas são
complementares no que concerne a fraqueza humana. O que as metáforas representam são o
desencadeamento e envolvimento do mundo ilusório de māyā.

(...) a figura da rainha Satyavati, que nesta lenda representa toda a ironia do jogo de māyā, é a
mãe tanto de Vyasa quanto dos dois jovens reis que morreram. O mistério cósmico de māyā
tem três poderes. O primeiro é o de obscurecer, tornar oculto brahman; o segundo, o de
89

projetar a miragem do mundo, e o terceiro, o de revelar brahman através da miragem. Satyavati


em seu barco transportava iogues para a outra margem e nessa função representava o poder
revelador de māyā; mas ela também transportava passageiros da margem de lá para a de cá e
com isso obscurecia e projetava. A serviço do desejo do bondoso rei Santanu, que ficou com
ela na margem de cá, ela se tornou a força ativadora de toda a esfera e de toda interação de luz
e sombra no universo do Mahābhārata (CAMPBELL, 1994, 265).

Entra em cena posteriormente, portanto, o diálogo que vimos no capítulo anterior, no


qual Arjuna, não compreendendo seu conflito, pede a Kṛṣṇa que esclareça suas dúvidas
(Bhagavadgītā 11.5).
Bhagavadgītā está impregnado de temas religiosos. Prega a união total no Ser Único
que Kṛṣṇa, tomando a sua forma universal, ensina a Arjuna o que há de mais valoroso em seu
pensamento. No ápice da batalha entre os Pāṇḍava e os Kaurava, Kṛṣṇa torna-se o conselheiro
de Arjuna e aproveita o dramático momento para proclamar não só o dharma de Arjuna, mas
também a sua doutrina de salvação do mundo, o Karmayoga e sua implicação com o
Bhaktiyoga. Kṛṣṇa não é ninguém senão o herói que veio para salvar a humanidade,
exterminando o demônio.

Encontramo-nos assim em presença de dois sistemas especulativos: o monismo e o dualismo;


mas o Gita não adota uma doutrina particular com dogmas definidos e rígidos num quadro
ortodoxo, ele representa antes uma orientação religiosa, apaixonada, que permanece na tradição
hindu (LEMAÎTRE, 1958, 40).

O poema, de fato, representa a batalha entre o bem e o mal, ou seja, entre deva (deus) e
āsura (demônio), entre dharma e adharma. Dessa destruição de grandeza cósmica ressurge
um mundo novo simbolizado pelo retorno de Parīkṣit, neto de Arjuna, quando esse havia
morrido pelo impacto que sua mãe Uttarā recebeu em seu ventre (Livro 10).
Essa grande batalha de Kurukṣetra foi decidida por Brahmā, o deus da criação. Seu
propósito era aliviar a Terra de uma crescente multiplicação da população e porque eles já não
mais se recordavam de seu dharma. Assim, Brahmā pede aos deuses e aos demônios que
surgissem entre os homens para provocarem uma guerra escatológica. Mahābhārata descreve
portanto, o fim de uma era e de um pralaya (fim do mundo) para que possa emergir um
mundo novo. Yudhiṣṭhira e Parīkṣit, neto de Arjuna, seriam os representantes deste novo
reino. Essa criação e destruição ordenada por Brahmā simboliza o fim de uma idade cósmica,
uma conclusão do ciclo de uma era mítica, o yuga.
90

Capítulo III – Possibilidades de leitura sobre as percepções do bem e do mal

As distinções e os pares de opostos que aparentemente são representados em


Mahābhārata são percepções que captamos segundo conceitos que nos foram concebidos
dentro de um âmbito ético do bem e mal inseridos em um juízo de valor. Mas vimos que as
representações dos Pāṇḍava e dos Kaurava vão muito além disso. Não se limitam a um mundo
material e palpável. Esses pares estão num contexto entre dharma e adharma, a reta conduta
diante da devoção, no qual não é possível existir um sem o outro.
Vimos como Kṛṣṇa executa o seu papel durante a batalha. Leva Abhimanyu, filho de
Arjuna, a seguir o combate mesmo sabendo que devido a sua pouca idade, não teria chances
de vencer o inimigo. Ghaṭotkaca, filho de Bhīma, também recebe o mesmo destino fatal por
ter sido enviado para o meio da batalha. Kṛṣṇa também ordena que Arjuna atire em Karṇa
quando este se encontra indefeso com o seu carro preso à terra. É dessa forma que Vyāsa
relata o dharma de cada um. O que designamos “mal” não existe na realidade no Hinduísmo
clássico. Há o adharma ou o pāpa, que em sânscrito significa “defeito” ou “imperfeição”,
portanto, algo mais próximo ao “erro” e consequentemente, o mal. Essa abstração é necessária
para que possamos compreender que tratamos de mundos distintos de percepções, como
Zimmer observa:

A estéril divisão do mundo em matéria e espírito resulta de uma abstração do intelecto e não
deve ser projetada sobre a realidade porque é da natureza da mente estabelecer diferenças,
formular definições e discriminar. Declarar que “há distinções” é apenas constatar a atuação de
um intelecto que apreende. Os pares de opostos percebidos refletem não a natureza das coisas,
mas a da mente que os percebe. Daí que o pensamento e o próprio intelecto têm de ser
transcendidos se o que se quer é alcançar a verdadeira realidade (ZIMMER, 1986, 273).

1. O discernimento e o equilíbrio interno como bem-estar

Arjuna, ao tomar consciência de seu dharma, não só decide seguir os ensinamentos de


Kṛṣṇa, mas também percebe claramente que as suas ações são postas em prova para que
mostre ser fiel e leal a Kṛṣṇa. O discernimento quanto à sua reta conduta o faz despertar que
sem ele jamais encontraria o seu bem-estar. Isso significa não só no âmbito pessoal, mas
também o equilíbrio do ciclo do universo.
Kṛṣṇa ensina-lhe que tanto a alegria quanto a tristeza, o ganho ou a perda, a vitória ou
a derrota, fazem parte da batalha. Deve, portanto, ser um agente ativo ao participar dela, pois
dessa forma Arjuna não se afastará de seu dharma. Por isso, Kṛṣṇa afirma:
91

Não existe esforço sem êxito, não é conhecida qualquer depreciação.


Mesmo só um bom bocado de dharma protege de um grande temor. (2.40)
Una é a buddhi fundada no discernimento, ó Kurunandana,
mas multiformes e infindas são as buddhi dos sem-discernimento. (2.41)
Os ignorantes que se satisfazem com os ditos dos Veda, ó Partha,
falam falas floreadas, afirmam “não existe diferente” (2.42)
(...)
Jungido à buddhi, abandona aqui ambos o meritório e o demeritório.
Por isso, aferra-te ao Yoga: Yoga é adequação nas ações. (2.50)

O discernimento (vyavasāya), segundo Kṛṣṇa, consiste em ter o reto conhecimento,


baseando-se em um pensamento bem-formado perante suas impressões e percepções que lhe
foram surgidas. Aquele que tem o seu ātman bem-resolvido, sem vacilo, sem impurezas e sem
dúvidas terá a mente (buddhi) esclarecida. É através das ações do Yoga que Arjuna alcançará
o seu bem-estar (kauśala) e como consequência, a buddhi tranquila.
Caso Arjuna tivesse desistido de seguir seu dharma e interrompido a batalha,
afirmando que seria um equívoco continuar com o fratricídio e o extermínio, ele teria
desequilibrado a assimilação de suas ações. A interrupção da batalha, que a princípio teria a
intensão de prevenir um mal maior, na realidade estaria provocando exatamente o efeito
oposto. O apego ao resultado não é senão o māyā que Kṛṣṇa tanto quer provar a Arjuna. A
busca pelo bem-estar é árdua e é preciso lutar para que possa obtê-lo. Mas mesmo uma vez
obtido, não deve acreditar que será eterno, pois para obter o discernimento é preciso muitas
vezes percorrer um caminho incessantemente e às vezes pode até vir a ser ilusório.
No entanto, não é só Arjuna que representa essa luta pelo equilíbrio do bem-estar;
Yudhiṣṭhira igualmente representa a força e a necessidade desse equilíbrio interno, pois é ele
mais um representante de mokṣa, ou seja, o desapego e a consequente libertação. Quando ele
resiste em iniciar a batalha, quando ele resiste em assumir o reinado, discute com ninguém
menos que Arjuna, justo este que também resiste em seguir seu dharma. Yudhiṣṭhira é
confuso e por vezes faz parecer que é fraco. Não resiste à jogatina, mesmo sabendo que não
tem habilidade; não impede que sua esposa passe por humilhação ao perdê-la na aposta.
Experimenta, portanto, o lado obscuro da natureza humana: o vício, a covardia e a fraqueza.
No entanto, é o personagem que representa igualmente a integridade humana, pois no final da
batalha, ao se retirar nas florestas, ruma em direção às montanhas do Himālaya e quando lá
recebe ordens de Indra para abandonar o seu fiel companheiro da jornada, um cão,
Yudhiṣṭhira firmemente desobedece-o dizendo-lhe que jamais faria tal coisa mesmo que isso
provoque a ira de Indra e fizesse com que Yudhiṣṭhira não possa subir ao reino de svarga.
Com essa provação, Indra lhe permite ascender a svarga. Lá, ao encontrar seus inimigos, pede
92

a Indra que o leve onde seus familiares estão. Não abandona seus familiares, mesmo eles
estando em agonia na escuridão do naraka, preferindo isto às maravilhas do svarga, sendo
esta a sua última provação.
Podemos dizer que, de forma ampla, Yudhiṣṭhira é aquele que através da longa
epopeia de Mahābhārata representa o que é o discernimento, o que é o cumprimento de um
dharma e consequentemente a luta para alcançar o bem-estar, e que Arjuna é aquele que,
representado pelo diálogo com Kṛṣṇa, mostra-nos essas mesmas buscas na passagem de
Bhagavadgītā.

1.1. Uma ideia acerca de dharma

Dharma deriva da raiz DHṚ “colocar, montar, dar forma”; com o sentido de “forma, fôrma,
modelo”, designa o conjunto de direitos e deveres a serem seguidos por todos aqueles que
pertencem a um determinado grupo social ou recortado na sociedade. Embora incluam
constrições e permissões coletivas, cada sujeito – conforme sua profissão, seu sexo, sua idade
etc. – tem suas particularidades a cumprir. Costuma-se traduzir a palavra por Norma, Lei,
Direito, Justiça, Costume, Tradição, Moral, Piedade, Religião. É tudo isso junto e mais alguma
coisa. Seu contrário é o a-dharma. Os dois conceitos fazem parte do fundo temático de todo o
Mahābhārata (FONSECA, 2009, 36).

A palavra dharma também significa “suster, sustentar, carregar, o que mantém unido
ou erguido” (ZIMMER, 1986, 128). Ou ainda “dever, retidão, ética” (NARAYANAN, 2009,
50). Como podemos notar, não há uma única tradução que possa definir com precisão este
termo. Este subcapítulo, portanto, não tem como objetivo mostrar a distinção entre os termos
“ética” e “moral”, pois dharma não se limita somente ao contexto da lei e do costume
construídos por um grupo de sociedade, como religião, modos de comportamento, deveres
sociais, virtude, mérito moral ou justiça. É tudo isso, mas inclui-setambém noções sobre
qualidade, caráter, função social e padrão de reta conduta.
Traçaremos aqui uma ideia sobre o dharma hindu, ou seja, uma ideia sobre uma “lei”
no contexto hindu, aquele que perdura enquanto o universo existir e que sucumbe no instante
em que o mundo extinguir. O dharma de um indivíduo é a manifestação de um ser enquanto
este é (sat). Isso significa que seria impensável ser um hindu sem um dharma. Sat
literalmente significa “ente ou existente”, ou também “verdadeiro, essencial, real”. Sat, enfim,
significa “bom, virtuoso, certo, adequado, o Bem” (ZIMMER, 1986, 130) e o próprio nome
da religião hindu Sanatanadharma significa dharma eterno ou universal, como já vimos.
Dharma, obrigações religiosas e sociais do bom homem hindu, segundo ordem
cósmica, é parte essencial do Hinduísmo. Como vimos no capítulo I dessa pesquisa, seu
93

conceito tem origem nos textos do Ṛgveda, no qual inicialmente usava-se a terminologia ṛta
para designar essa ordem. O tratado sobre dharma encontra-se fundamentalmente nos textos
de Manusmṛti, importante fonte sobre as leis e costumes hindus. De acordo com esses textos,
o varṇāśramadharma (capítulo I) enaltecia as obrigações (dharma) do homem hindu de
acordo com seu grupo (varṇā) e seu estágio de vida (āśrama).
O Manusmṛti tem uma forte ligação com o Mahābhārata, pois Mahābhārata descreve
dois pontos importantes do pensamento hindu: a luta entre o bem e o mal, e o dharma e
adharma, mas não só no patamar individual. O confronto desses opostos adquire uma
importância de proporção universal, pois a percepção de ambos rege tanto a vida cósmica
quanto todo o equilíbrio da existência social e pessoal. Quando o dharma se desequilibra, o
universo também se desequilibra; ele entra em caos. É o que vimos no capítulo I quando
mencionamos a degeneração do yuga. O homem, então, segundo o pensamento hindu, é o
responsável pela harmonia e desarmonia da existência, e também pela manutenção do
universo. Ao se esquecer de seu dharma (como estava prestes a acontecer com Arjuna no
meio da batalha), surge uma divindade (no caso, Viṣṇu reencarnado como Kṛṣṇa) para fazer
com que os homens se recordem dos seus verdadeiros papéis.

Nesse sistema (de castas), quem recebe as mais altas posições e honras não é o rei ou o
milionário e sim o sábio, o santo, o mahātma (que literalmente significa “magnânimo”:
Espírito ou Eu [ātman] grande [mahānt])”, (...) pois é dele que deriva toda a ordem da
sociedade. O rei, a bem dizer, é apenas o administrador dessa ordem; os agricultores e os
mercadores fornecem os materiais que dão corpo à forma; e os trabalhadores (śūdra) são
aqueles que contribuem com o necessário labor físico. Assim, todos estão harmonicamente
concatenados para revelar, preservar e experimentar a grande imagem divina. Dharma é a
doutrina dos deveres e dos direitos de cada indivíduo numa sociedade ideal e, como tal, é a lei
ou espelho de toda ação moral (ZIMMER, 1986, 41).

Brahmā cria, Viṣṇu preserva e Śiva destrói. Estes são os princípios básicos desses
deuses. Mas são os homens os principais responsáveis pela destruição do universo (destruição
esta diferente da destruição de Śiva). Essas três divindades observam de yuga em yuga o
comportamento dos homens. Ao perceberem que o dharma individual está entrando em
desequilíbrio, os deuses intervêm e “engolem” o universo de forma que ultrapassa a realidade
humana.
O mal em Bhagavadgītā se refere à carência de discernimento e ao excesso de avidyā
(“ignorância”), algo que não havia durante o Satyayuga. Não é um mal relacionado à
“maldade” que atinge fatores externos ao homem. Diferentemente de outros animais que
matam ou ferem por questões de sobrevivência e de preservação de sua espécie, a natureza do
homem não limita sua agressividade somente nesses itens. Sua agressão ultrapassa esse
94

campo, pois o orgulho e a ganância são partes inerentes da sua sobrevivência. Apesar dos
requisitos do dharma de cada indivíduo serem bastante claros e inflexíveis, o homem entra em
conflito com os seus deveres por ter um discernimento distinto do resto dos animais. O
homem quer saber o porquê dos acontecimentos de sua vida. Arjuna quer saber o motivo de
todo os eventos que ele está vivenciando. Esse questionamento leva-o a angústia, a um
“vacilo”, algo que não se nota nos animais por terem eles uma espontaneidade infalível,
observa Jean Delumeau (DELUMEAU, 2002, 350).
Mahābhārata narra esse esquecimento do homem, a falta de discernimento e a
ignorância como principal causa do Kaliyuga. Era preciso que os deuses interviessem
novamente no ciclo cósmico e assumissem seus avatāra para que o dharma pudesse ser
restaurado. O mokṣa e o sannyāsa, respectivamente a libertação e a renúncia, não foram feitos
para qualquer indivíduo, pois nem todos conseguem chegar a essa etapa, como vimos no
capítulo I. Mas são dois fatores que levam o homem a saírem do ciclo de saṃsāra. O homem
é uma engrenagem essencial para o funcionamento harmonioso do universo. Mas quando ele
começa a pensar como indivíduo e não como coletivo, acaba desencadeando esse
desmoronamento caótico do equilíbrio. O bem-estar não pode ter um fim individual nem
tampouco isolado. Kṛṣṇa bem afirma isso a Arjuna: a não ação dele e a sua dúvida será a ruína
de seu dharma.
Alf Hiltebeitel aponta algumas possibilidades sobre o dharma como sendo o foco
central do tema de Bhagavadgītā (HILTEBEITEL, 2010, 118): o primeiro e o mais simples é
considerar a euforia descrita por Arjuna sobre Kṛṣṇa como “o protetor do dharma eterno”. O
capítulo 11 revela esse mérito, mostrando ser o auge de Bhagavadgītā, quando Kṛṣṇa revela
suas diversas formas (Bhagavadgītā 11.5). O segundo ponto está no capítulo 18 quando Kṛṣṇa
ordena Arjuna a abandonar todos os dharma e a procurar Kṛṣṇa como único refúgio para que
assim consiga se libertar dos erros (Bhagavadgītā 18.66). Hiltebeitel afirma que no capítulo 9
há também um dos momentos em que Kṛṣṇa fala sobre dharma, no sentido de seu
ensinamento ou doutrina, quando Kṛṣṇa afirma (retomando parte do capítulo II desta
dissertação):

O Venerável disse:
Para ti, tão cândido, esse jñâna secretíssimo vou expor,
acompanhado do vijñāna – conhecendo-o te livrarás do inauspicioso. (9.1)
É a ciência régia, o segredo régio, a suprema purificação;
vinda com evidência, segundo o dharma, prazerosa de fazer, imperecível. (9.2)
Os homens que não põem śraddhā nessa doutrina-de-vida, ó Paraṃtapa,
não me alcançando caem nas trilhas do saṃsāra e da mṛtyu. (9.3)
95

Seguindo sua doutrina, portanto, Kṛṣṇa assegura a Arjuna que não cairá no submundo,
aqui interpretado como a prisão dentro do ciclo de saṃsāra e da eterna repetição de morte
(mṛtyu). Dos capítulos 12 a 16, Kṛṣṇa faz uma pausa para dizer a Arjuna alguma das mais
profundas implicações sobre Bhagavadgītā. Os capítulos 12 e 16 podem ser lidos de forma
contínua como uma discussão acerca da virtude e do vício inseridos nas pessoas de diferentes
naturezas. Kṛṣṇa, assim, descreve quem são as pessoas caras e quais ele considera pessoas de
erro. Os capítulos 13 e 15 são os que apresentam o campo de batalha como metáfora de nosso
corpo e que, portanto, é a morada do nosso dharma. É nesse kṣetra que tanto cultivamos
quanto destruímos o dharma. E é no capítulo 14 que Kṛṣṇa indica como atingir o verdadeiro
dharma e, portanto, consequentemente, a verdadeira felicidade:

O Venerável disse:
Luz, atividade e alucinação, Pāṇḍava:
presentes, não as odeia; ausentes, por elas não anseia. (14.22)
Quem, completamente indiferente, não é perturbado pelos guṇa;
quem, dizendo “os guṇa estão em processo”, fica à parte, imóvel; (14.23)
quem, o mesmo na alegria e na tristeza, em paz consigo, argila pedra ouro iguais,
o mesmo o agradável e o desagradável, firme, o mesmo a censura e o elogio, (14.24)
o mesmo na honra e na desonra, o mesmo para amigos e inimigos,
abandonado todo empreendimento – esse, dizem, ultrapassou os guṇa. (14.25)
E quem se serve, sem sair do caminho, com um yoga de devoção,
esse, ultrapassados os guṇa, se integra, pronto, no brahman. (14.26)
Porque eu o suporte do brahman, do imortal e do imperecível,
Da estrada do dharma e da felicidade final. (14.27)

1.2. A questão ética em Bhagavadgītā

Distintamente da ideia de uma reta conduta como nos é concebido no ocidente (não
matar, não mentir, não roubar, não agredir etc.), a ética hindu inserida em Bhagavadgītā nos
remete a um outro âmbito: a do cumprimento do dharma. A princípio, parece impensável
vermos alguém ferir e matar o próximo, como ocorre desde o princípio na narrativa de
Mahābhārata (a começar pela deusa Gaṅgā, que mata seus filhos por estar presa a uma
maldição). No entanto, cumprir uma tarefa e seguir rigidamente o seu dharma é em si ser
ético no Hinduísmo.
A ética hindu não deve ser limitada somente ao preceito da primeira ordem moral no
que concerne sobre as ações obrigatórias e proibidas construídas e impostas por uma
sociedade. Tais ensinamentos da ética hindu já aparecem no Dharmaśāstra e em outros textos
96

hindus. Ética hindu trata, segundo Roy W. Perrett, além desse primeiro preceito, basicamente
sobre duas outras questões: “o que devemos fazer?” e “por que devemos fazer isso?”
(PERRETT, 1998, 1). Deve-se em última instância, portanto, analisar sobre o que significa
ser correto e o que significa agir bem dentro do Hinduísmo e não em outro contexto. É nesse
contexto que Arjuna pergunta: “por que devo fazer isso?” e “o que devo fazer para seguir em
frente?”.
Perrett observa em primeiro lugar, que a justificativa do svadharma não precisa
depender exclusivamente na passagem de Bhagavadgītā. Ou seja, ele afirma que é verdade
que os autores do Hinduísmo clássico sustentam que dharma é comentado inicialmente e
essencialmente nos śruti (o que foi “revelado”), particularmente os Veda. Mas é sabido
também que mesmo todos os textos védicos não são suficientemente ricos em explicitar a
constituição adequada da ciência do dharma. Por isso é preciso que o sentido de dharma seja
complementado pelo corpo dos textos do smṛti (o que foi “memorizado”), ou seja, o grupo de
textos dos quais Bhagavadgītā pertence. Além disso, a ética hindu está relacionada
diretamente com outro conceito: o de responsabilidade. Embora o indivíduo seja o agente
intencional das ações, ele não é necessariamente responsável moralmente por elas. Em outras
palavras, embora Arjuna seja o condutor da ação, ele não é responsável pela sua ação e suas
consequências, desassociando-as, dessa forma, de sua responsabilidade. O que Bhagavadgītā
ensina é o caminho dessa dissociação das ações. Não se deve conduzir as ações associando-as
ao fim (ao fruto) delas. Deve-se, portanto, desresponsabilizar as ações éticas dos resultados
finais. Bhagavadgītā mostra que o corpo que age não é na realidade “meu” ou “eu”, ou seja,
as ações que fluem a partir dele não pertencem em última instância ao indivíduo:

Quem age fundamentando os atos no brahman, abandonando o apego,


não é mais atingido pelo erro que a água na folha de lótus. (5.10)
Pelo corpo, pelo manas61, pela buddhi, apenas pelos sentidos
os yogin, abandonando o apego, acionam uma ação para a limpeza do ātman. (5.11)
Adepto, abandonando o fruto da ação, consegue uma śānti estável;
não-adepto, apegado ao fruto pela incitação de kāma, continua preso. (5.12)

Isso significa que é um engano crer que eu sou o meu corpo da ação. Se levar a
interpretação por esse caminho, significa que o indivíduo assume a responsabilidade moral
das ações corporais, o que seria oposto ao que Kṛṣṇa quer ensinar. Esse dualismo prakṛti

61
manas = “pensar”, “mente”, “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos cinco
sentidos”.
97

(“matéria”) e puruṣa (“espírito”), esse ensinamento sobre responsabilidade da ação ética, é


apresentado por Kṛṣṇa quando este aborda o tema sobre o Sāṃkhyayoga para Arjuna:

O homem a quem eles não afetam, ó touro entre os homens,


um mente-firme na alegria e na tristeza, esse partilha da imortalidade. (2.15)
Sabe-se que o que não é não passa a ser e o que não passa a ser não é;
a conclusão sobre ambas as visões se dá aos olhos de todos. (2.16)
Saiba que é indestrutível tudo o que por ela é penetrado.
Nada causa a destruição do que não se desperdiça. (2.17)
Diz-se que esses corpos sem-fim são matéria constante,
Indestrutível, imensurável. Por isso, Bhārata, luta! (2.18)
Quem afirma que ela mata e quem pensa que ela é morta,
esses dois nada sabem. Ela não mata nem é morta. (2.19)

Este homem a quem Kṛṣṇa se refere é o próprio puruṣa, o portador do espírito e


espectador da prakṛti. A śarīrin (corpo), ou seja, a matéria constante (2.18) não pode ser
dissolvida. Portanto, Arjuna não tem nada a temer, pois o que o impedia de continuar a
batalha era o pensamento de que ao ferir os corpos eles seriam destruídos.
O objetivo final do ensinamento de Kṛṣṇa está em atingir o mokṣa. Na tradição hindu
este mokṣa está associado à libertação do ciclo de saṃsāra, o eterno renascer, e à teoria do
karma. Mas esse pensamento sobre o ciclo do sofrimento não opera somente na transição
uma vida para outra, mas opera também dentro do próprio nascimento ocorrido no momento.
Segundo análise feita por Perrett, existe uma “teoria geral do karma” da qual, baseado nos
textos de Bhagāvādgītā, cada ação resulta em dois distintos resultados (PERRET, 1998, 21): a
ação que resulta em prazer ou dor e a ação que tende a repetir essa ação. Há, portanto, o
phala (“fruto da ação”) e o saṃskāra (“disposição de repetir a ação”). Em Bhagavadgītā,
Kṛṣṇa ensina a Arjuna a renunciar todas as preocupações referentes aos frutos de suas ações e
enfatiza que enquanto o phala é inevitável, o saṃskāra é evitável. Isso significa afirmar que
um indivíduo é perfeitamente apto a controlar seus hábitos e libertar-se ele mesmo desse ciclo
de saṃsāra. De acordo com Bhagavadgītā, essa libertação não é feita cessando-se as ações, o
que em realidade seria impossível, mas adotando uma atitude de desprendimento.
A ética no Bhagavadgītā, portanto, caminha por um outro viés: a de agir porque assim
se deve. Por isso dharma é traduzido como ética, moral, virtude, reta conduta, entre outros. O
matar na batalha de Kurukṣetra é uma ação ética, pois o guerreiro kṣatriyas faz-se um homem
justo por cumprir não só o seu dever, mas também seu destino. Sua ação não pode ser
delegada a outro e não pode ser evitada. A recusa de Arjuna passa então a ser visto como um
capricho e ignorância, e não como bravura por poupar vidas humanas. “Liberte-se dos
resultados, pois eles são ilusórios”, afirma Kṛṣṇa. Aja, mas desprenda-se da responsabilidade
98

dos resultados. A morte, a vida, o svarga, o naraka são, em última instância, ilusórios: é o véu
de māyā que a ignorância humana insiste em usar. Considerar os Kaurava como inimigo, os
corpos mutilados como crueldade, angustiar-se pelas mortes de amigos e familiares, tudo isso
é resultado de māyā. Ao se livrar dela, o homem consegue discernir e perceber o que é afinal
um homem ético e também perceber que esse discernimento faz parte da condição humana.

2. A condição humana

Em Bhagāvādgītā, o episódio da crise de Arjuna e posterior ensinamento de Kṛṣṇa


através dos três importantes darśana (Vedānta, Sāṃkhya e Yoga) demonstra uma revelação
relacionada à condição humana pelas vias de libertação. Kṛṣṇa mostra-lhe os meios que ele
deve cumprir para seguir a sua função de kṣatriya desprendendo-se de seu karma. “Em linhas
gerais, as revelações de Krishna versam sobre: 1) a estrutura do Universo; 2) as modalidades
do ser; 3) as vias que cumpre seguir para obter a libertação final” (ELIADE, 2011, 212).
O Vedānta, o Sāṃkhya e o Yoga ensinam respectivamente a atividade ritualística, o
conhecimento metafísico através do que é o verdadeiro ātman e o caminho que conduz o
ātman ao Brahman através da prática do yoga. Mostram que a ambivalência, a equivalência e
a conciliação dos contrários são características do pensamento indiano. Bhagavadgītā assume
e valoriza essa historicidade da condição humana principalmente através dos atributos
humanos mostrados por Kṛṣṇa.
O bem e o mal são itens inseparáveis da condição humana, sejam eles para
demonstrarem a limitação humana, sejam eles para nos fazer perceber a nossa ignorância. O
que Kṛṣṇa insiste em mostrar a Arjuna é que essa limitação e ignorância estão relacionadas ao
esquecimento da origem divina que este kṣatriya possui. A intenção de Kṛṣṇa é de fazê-lo
recordar que a dor, a morte e o mal não possuem caráter degenerativo. Eles são necessários
para que o homem possa perceber que as coisas materiais (incluindo a vida) são ilusórias e
perecíveis.
Assim, em Mahābhārata são apresentados assuntos relacionados a nossa vida
cotidiana e, portanto, há no contexto da narração circunstâncias que permeiam a condição
humana trazendo à tona as questões e respostas das quais são investigadas na vida de um ser
humano. A epopeia não baseia seu entendimento sobre a vida humana relacionada à revelação
divina ou sobre pressupostos filosóficos propriamente ditos, segundo análise levantada por
Chaturvedi Badrinath (BADRINATH, 2007, 13). Nem tampouco ela pergunta sobre as
definições das coisas que permeiam a vida humana. Ela, na realidade, trata sobre os lakṣaṇa
99

(“atributos”) dos quais como essas coisas são conhecidas, reconhecidas e expostas. É um dos
principais pontos que Kṛṣṇa quer ensinar a Arjuna. Não é um conceito e sim um viver
segundo percepção dos atributos. É dessa forma que as discussões sobre o dharma e a verdade
procedem, enumerando esses lakṣaṇa da forma como eles são conhecidos ou como se
tornaram conhecidos.
A condição humana está na complexidade que existe quando discutimos sobre os
atributos e a sua relação com a questão de como eles se refletem no relacionamento com o seu
ātman e com a presença do outro. Diante desse relacionamento, de que forma uma pessoa
alcançaria sua meta final, o mokṣa e como seria, afinal, o relacionamento de um indivíduo
com a sua liberdade? Primeiramente, é necessário que se reconheça uma linha divisória que
determina onde começa e onde termina o que se compreende por liberdade e isso, de certa
forma, é bastante arbitrária. A complexidade da vida não nos fornece uma resposta clara e
definitiva. O que Mahābhārata nos sugere é que essa linha divisória e os limites não podem
ser quantificados porque a própria vida não se limita em conceitos ou linhas divisórias.
Badrinath exemplifica afirmando que a verdade, por exemplo, não é um conceito. Ela é, na
realidade, um entendimento.
O dharma, a verdade, a liberdade, a dor, e outros lakṣaṇa, nenhum deles pode existir
isoladamente como um simples conceito ou ideia. Qualquer um deles precisa na realidade de
um outro para poder existir. Esse relacionamento de codependência é que faz existir o
autoconhecimento e o conhecimento do outro, e isso é, enfim, parte integrante da condição
humana apresentada em Mahābhārata.
Além disso, Mahābhārata nos mostra que vida é para ser compreendida e vivida,
mesmo que paradoxalmente, pois assim é a vida humana: “a realidade é composta por
oposições”, afirma Badrinath (BADRINATH, 2007, 16). Para se equilibrar um lado, é
necessário que exista um outro para contrabalanceá-lo. Quando Dhṛtarāṣṭra propõe a divisão
de reinado igualitariamente entre os irmãos Kaurava e os Pāṇḍava, metaforicamente, o
equilíbrio entre o bem e o mal, Duryodhana, não se contentando, quer assumir todo o reinado
de Kurukṣetra quebrando assim, a ambivalência do universo. Há, acima de tudo, o paradoxo
da própria vida, que consiste na existência da morte, biologicamente, emocionalmente e
espiritualmente. Um não existe sem o outro. Por isso a morte foi criada. As manifestações dos
opostos são simultâneas e não consequências. O bem e o mal caminham juntos, assim como o
prazer e a dor.
100

2.1. A dor e a morte como uma necessidade

“O corpo é dor porque é o lugar da dor; os sentidos, os objetos [dos sentidos] e as percepções
são sofrimentos porque conduzem ao sofrimento; o próprio prazer é sofrimento porque é
seguido de sofrimento” (ANIRUDHA, apud ELIADE, 2011, 50).

Gautama Buddha afirmava que tudo era dor. Ela é parte da experiência humana e o
sofrimento é parte da condição humana. Isso não implica necessariamente que essa dor tenha
um cunho pessimista. Ela faz parte do processo para se chegar ao mokṣa. Devido também a
esse princípio é que os sábios e os ascetas hindus retiram-se do mundo, isolando-se das
pessoas, praticando o desapego tanto aos bens materiais quanto às ambições. É a certeza de
que pela dor e com a dor o homem transcenderá sua condição. “Por outro lado, o homem não
é o único que sofre; a dor é uma necessidade cósmica” (ELIADE, 2011, 50). Mas, ao mesmo
tempo que ela é estimuladora, é também um fator impeditivo das ações.
Por isso Kṛṣṇa diz a Arjuna que a dor por ele sentida não deve ser angustiante a ponto
de fazê-lo descumprir seu dharma. Ela é necessária por impulsionar a propiciar o andamento
do curso do universo. E para que Arjuna consiga obter a sua superação e consequente
salvação, ele deve seguir as palavras de Kṛṣṇa e nada mais. “A ‘salvação’ implica a
transcendência da condição humana” (ELIADE, 2011, 51). Arjuna em seu momento de
tristeza desabafa:

Não consigo ver como eliminar essa dor


que me resseca todos os sentidos
mesmo que tenha domínio sem igual na terra
ou poder sobre o reino dos sura. (2.8)

No pensamento indiano, a dor e o sofrimento foram cultivados com o propósito de


obter a liberdade das experiências e também dos sentimentos. Da mesma forma, a felicidade e
o prazer são algo para serem temidos por serem transitórios e tudo que é transitório merece
pouco valor por ele produzir no final nada além da dor. A partir desse pensamento, criou-se a
conclusão de que tanto o prazer quanto a felicidade apenas são camufladores de duḥkha
(“dor”).
Se há a noção de que a dor é algo que deve ser evitada, então também é verdade que a
felicidade seja igualmente recusada. Caso contrário, o desapego, a renúncia, a negação e a
abstinência, todos eles diretamente relacionados à dor e ao sofrimento seriam retirados do seu
verdadeiro contexto, sendo distorcidos e equivocadamente rearranjados, tornando-os apenas
atributos negativos. Um sannyāsa, por exemplo, não é um renunciante do mundo e da alegria,
101

como usualmente é caracterizado. Mas ser um sannyāsa significa a busca pelo estado do
conhecimento da verdadeira posição em que se encontram os atributos humanos na sua
natureza.
Existe em Mahābhārata muito mais passagens sobre dor, raiva, ódio, traição e
vingança do que amizade, ternura e amor. O que há é mais amor por violência do que a
vontade de libertar-se da violência. A ganância de Duryodhana, o ódio de Karṇa, a força bruta
de Bhīma, o orgulho de Yudhiṣṭhira e a covardia de Arjuna são todos forças destruidoras que
Mahābhārata constantemente narra como condição humana. Os personagens, na realidade,
ferem-se antes mesmo de ferirem os outros. Não é um autoflagelo. Essa ferida, nascida seja
do ódio ou da covardia, corroe por dentro todos aqueles que nutrem a vaidade. Mas também é
verdadeiro afirmar que essa ferida é a força motriz dos personagens da epopeia.
Vyāsa conta a Mṛtyu (“Morte”) que ela foi criada por Brahmā para aliviar a Terra do
peso intolerável que ela passou a carregar pelo crescente aumento descontrolado da população
dos seres vivos. Mṛtyu, portanto, veio a esse mundo com a tarefa de devorar esses seres. Mas
Mṛtyu não tolera essa dor, pois não quer ser considerada como assassina, e quando ela
lamenta e chora, Brahmā é que colhe suas lágrimas. Ela exige que Brahmā lhe dê explicação
sobre seu nascimento, pois para ela seria insustentável carregar o medo e o ódio que os filhos,
os parentes, os amigos e outros membros participantes da batalha teriam dela. Mṛtyu implora
que Brahmā a liberte desse seu dharma.
No entanto, Brahmā explica-lhe o quão importante é a sua presença. Assim, Mṛtyu
obedece às ordens de Brahmā, mas ela o adverte afirmando que a ganância, a raiva, a inveja, o
ciúme, a confusão das percepções, a vergonha, tudo isso devorará aqueles que incorporarem
esses sentimentos antes mesmo de ela agir. Brahmā diz a Mṛtyu que seu sentimento de
lamentação é inútil, pois parte das lágrimas que ele colheu caíram sobre a Terra e elas se
tornarão doenças que nascerão do próprio corpo dos seres vivos. A morte, portanto, será
causada pelo próprio corpo e não pela Mṛtyu. Brahmā, então, diz a ela que dessa forma não
estará cumprindo o adharma. Os homens serão, portanto, responsáveis pela deterioração dos
próprios corpos. Mṛtyu não será a causadora das mortes. Ela apenas trará a morte como
consequência àqueles que não souberam reconhecer e usar os bons atributos e refinar o seu
ātman.
Mahābhārata mostra que cada indivíduo possui um relacionamento com o seu ātman.
Sejam em forma de desejos, ações ou emoções, esse relacionamento possui suas
particularidades tanto no corpo quanto na mente de cada um. Mas esse relacionamento
abrange âmbitos individuais e coletivos. Novamente a morte possui igual peso nesse
102

relacionamento. A dor, a morte, a dor pela morte foram criadas para despertar no homem a
importância dos opostos. Assim, não há motivos para lamentação, pois todos os atributos
relacionados ao prazer são transitórios: a beleza, a juventude, a riqueza, a saúde. Nada é
estável: o acúmulo acaba em destruição, a subida em queda e a vida, em morte. Os esforços
humanos, portanto, são perecíveis. Essas são as razões pelas quais há mais dor do que prazer:
porque todos os objetos do prazer são transitórios; porque mesmo que tudo seja interminável,
o desejo em si criará mais dor do que prazer por ela provocar mais triṣṇā (“sede”), ou seja,
dor; e porque todas as coisas desejadas pelos homens são sementes que dão frutos da dor.
Eliade faz a seguinte colocação sobre a dor universal:

Para que se avalie o papel considerável da Bhagavadgita na história religiosa da Índia, cumpre
evocar as soluções propostas pelo sanquia, pela ioga e pelo budismo. (...) A descoberta da “dor
universal” e do ciclo infinito das reencarnações havia orientado a busca da salvação numa
direção precisa: a libertação devia implicar a recusa de seguir os impulsos da vida e as normas
sociais. (...) Em síntese, a salvação pressupunha um ato de ruptura: a desvinculação do mundo,
lugar de sofrimento e prisão amontoada de escravos (ELIADE, 2011, 216).

Quando Arjuna afirma que a dor resseca todos os seus sentidos, ele inclui, além dos
cinco sentidos físicos (olfato, paladar, tato, audição e visão), o sentido da mente. Ou seja, ele
não consegue nem mais dominar o seu manas (“mente”), tamanho é o seu sofrimento. Só
poderá se livrar dessa dor quando perceber que ela é apenas māyā. Quando o homem esquece-
se do seu ātman torna-se refém e prisioneiro do sofrimento, da dor e do mal. Mas uma vez
desperto, ele consegue obter a sua liberdade.

2.2. A questão do mal em Bhagavadgītā

O homem pode ser tanto amigo quanto inimigo de si mesmo. Segundo Bhagavadgītā,
caso ele siga o caminho das tentações, seu ātman declinará para o mal, tornando-se, assim, o
inimigo de seus próprios interesses. Por outro lado, é dever dele próprio esforçar-se para
erguer-se dessa queda para poder alcançar o patamar do desapego dos prazeres. As dualidades
envolvidas entre amigo/inimigo, conquistador/conquistado, poder de ascenção/declinação
estão presentes nas distinções entre o ātman elevado e o ātman declinado. Somente quando o
ātman elevado domina o ātman declinado é que o homem se torna amigo de si mesmo. O
homem que fracassou na tarefa de dominar suas próprias paixões, prazeres e apegos, este se
tornará seu próprio inimigo. Kṛṣṇa ensina a Arjuna:
103

Que o ātman pelo ātman se eleve; que o ātman não se destrua;


o ātman é mesmo o amigo do ātman; e o ātman é o inimigo do ātman. (6.5)
O ātman é amigo de quem tem ātman, por qual ātman o mesmo ātman foi vencido;
quem não tem ātman, o ātman se move em inimizade com o ātman como um inimigo. (6.6)
Quem tem o ātman vencido, está acalmado, eis um ātman supremo organizado
no frio como no quente, na felicidade quanto na tristeza, na honra como na desgraça. (6.7)

Assim, somente quando o ātman domina suas tendências inferiores e se eleva para o
plano superior é que ele dominará o mal. Um dos principais meios para conquistar esse nível,
ensina Kṛṣṇa na passagem acima de Bhagavadgītā, é tomando o caminho do yoga, ou seja, o
caminho da meditação que domina ao mesmo tempo o corpo e a mente.
Segundo pensamento indiano, quando o problema do mal aparece, surge na realidade
de ordem prática, ou seja, a afirmação de que tudo é na verdade sofrimento. No entanto, o mal
apresentado em Bhagavadgītā não deve ser interpretado nem tampouco compreendido como
algo que “prejudica o próximo” ou “fere si mesmo” no sentido mais restrito da expressão ou
no sentido do senso comum da palavra. Como vimos anteriormente, ele é tão necessário
quanto a dor. O mal em Bhagavadgītā não é senão o adharma do Hinduísmo, ou seja, o não
cumprimento do dever do homem segundo sua designação. Aquele que não age em
conformidade do seu dever estaria comprometendo não só o curso de sua vida, mas também o
curso existente relacionado com o outro, pois o homem não nasce como um indivíduo isolado.
Ele nasce para cumprir e agir seguindo seu dharma, pois só dessa forma ele estará
contribuindo com o percurso do vasto mundo complexo da humanidade. Mas antes de tudo,
ele precisa dominar o mal que existe em seu ātman.
Kṛṣṇa dialoga com Arjuna ensinando-lhe que através da devoção às palavras dele e
através do desapego às coisas mundanas como medo, dúvida, hesitação e angústia, é que
Arjuna, que alegoricamente representa as nossas próprias dúvidas, alcançará a realização
interna e consequentemente o encontro com seu ātman elevado. Enquanto o homem estiver
afastado do seu dharma ele estará causando o mal tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito
universal; enquanto ele estiver em estado de angústia e hesitação estará enfrentando adharma.
Pāpa, como vimos na introdução do capítulo III, é termo sânscrito que designa o mal
tanto moral (crueldade, vício, perversão etc.) quanto natural (doença, terremoto, tornado etc.),
ou até mesmo culpa (Bhagavadgītā 1.36). Aparece já nos Veda, mas com distinções de
conceito entre ambos (moral e natural), observa Wendy Doniger O’Flaherty. Por vezes é
traduzido também como cometer um pecado62 . Mas segundo pensamento indiano, o pecado é
possível de ser cometido mesmo sem a vontade do pecador. Se, portanto, o mal não é uma

62
“commit a sin” (cf. O’FLAHERTY, 1980, 7)
104

falta voluntariamente cometida pelo homem, então também é verdade que o karma não
resolverá o problema do mal. O mal, a princípio não é o que fazemos; é o que nós não
gostaríamos que faça a nós, afirma O’Flaherty (O’FLAHERTY, 1980, 6-7).
No Livro III de Mahābhārata (3.182)63 Vaiśampāyana, discípulo de Vyāsa, explica
para Yudhiṣṭhira através do sábio Markandeya64 como surge o mal entre os homens:

O senhor dos seres nascidos, ele mesmo surgido antes de todos, criou, para todos
os seres incorporados, corpos que eram imaculados, puros, e obedientes a
impulsos virtuosos, ó mais sábio dos descendentes de Kuru! Os homens antigos
tinham todos os seus desejos realizados, eram dados a modos louváveis de vida,
falavam a verdade, eram religiosos e puros. Todos eram iguais aos deuses,
podiam ascender ao céu à sua vontade, e podiam voltar novamente; e todos
passavam de um lugar para outro à vontade. E eles tinham sua morte e sua vida
também sob seu próprio controle; e eles tinham poucos sofrimentos; não tinham
medo; e tinham seus desejos realizados; e eles estavam livres de incômodos;
podiam visitar os deuses e os santos magnânimos; sabiam de cor todas as regras
virtuosas; eram auto-controlados e livres de inveja. E eles viviam muitos milhares
anos; e tinham muitos milhares de filhos. Então no decorrer do tempo eles vieram
a ser restringidos a andar somente sobre a superfície da terra, dominados por
luxúria e cólera, dependentes para subsistência de mentiras e truques, subjugados
pela cobiça e insensatez. Então aqueles homens pecaminosos, quando
desencarnados, por causa de seus atos injustos e profanos, iam para o inferno de
uma maneira tortuosa. Repetidas vezes eles eram atormentados, e, repetidas
vezes eles começaram a arrastar sua existência miserável neste mundo
admirável. E seus desejos não eram realizados, os objetivos não cumpridos, e seu
conhecimento tornou-se inútil. E seus sentidos estavam paralisados e eles se
tornaram receosos de tudo e a causa dos sofrimentos de outras pessoas. E eles
eram geralmente marcados por atos maus, e nascidos em famílias inferiores; eles
se tornaram maus e afligidos por doenças, e o terror de outros. E eles se tornaram
de vida curta e pecaminosos e eles colhiam os frutos de seus feitos terríveis. E
cobiçando tudo, eles se tornaram ímpios e indiferentes em mente, ó filho de Kunti!
O destino de cada criatura depois da morte é determinado por suas ações neste
mundo. Tu me perguntaste onde este tesouro de ações dos sábios e dos
ignorantes permanece, e onde eles desfrutam dos resultados dos seus atos bons
e maus! Escute às regras sobre este assunto! O homem com seu corpo sutil
original criado por Deus armazena um grande estoque de virtude e vício. Depois
da morte ele abandona seu frágil corpo (exterior) e nasce imediatamente outra vez
em outra ordem de seres. Ele nunca permanece inexistente por um único
momento. Em sua nova vida suas ações o seguem invariavelmente como sombra
e, frutificando, fazem seu destino feliz ou miserável. O homem sábio, por seu
discernimento espiritual, sabe que todas as criaturas estão determinadas a um
destino imutável pelo destruidor e que são incapazes de resistir à fruição de suas
ações em sorte boa ou má. Este, ó Yudhishthira, é o destino de todas as criaturas
mergulhadas em ignorância espiritual. Agora ouça sobre o caminho perfeito
alcançado por homens de percepção espiritual elevada! Tais homens são de

63
Cf. tradução de Eleonora Meier <http://www.shri-yoga-devi.org/textos.html>
64
Markandeya = sábio nascido na família de ṛṣi Bhrigu
105

grande virtude ascética e são versados em todos os escritos profanos e sagrados,


diligentes em realizar suas obrigações religiosas e devotados à verdade. E eles
prestam homenagem devida aos seus preceptores e superiores e praticam Yoga,
são perdoadores, continentes e enérgicos e devotos e são geralmente dotados de
todas as virtudes. Pela conquista das paixões eles são quietos em mente; por
praticar Yoga eles ficam livres de doença, medo e tristeza; eles não são inquietos
(em mente). No decurso do nascimento, maduro ou imaturo, ou enquanto
abrigados no útero, em todas as condições, eles com olhos espirituais
reconhecem a relação da sua alma com o Espírito supremo. Aqueles Rishis de
grande mente de conhecimento positivo e intuitivo passando por esta arena de
ações voltam novamente para a residência dos celestiais. Os homens, ó rei,
alcançam o que eles tem por consequência da graça dos deuses, do Destino ou
das suas próprias ações. Não pense de outra maneira. Ó Yudhishthira, eu
considero como o maior bem aquele que é considerado assim neste mundo.
Alguns alcançam felicidade neste mundo, mas não no seguinte; outros alcançam
no seguinte, mas não neste. Alguns, além disso, alcançam felicidade neste assim
como no mundo seguinte; e outros nem aqui nem no mundo seguinte. Aqueles
que tem riqueza imensa brilham todos os dias com corpos bem enfeitados. Ó
matador de inimigos poderosos, sendo viciados em prazeres carnais, eles
desfrutam de felicidade somente neste mundo, mas não no próximo. Mas aqueles
que são dedicados a meditações espirituais e ao estudo dos Vedas, que são
diligentes em ascetismo, e que debilitam a energia de seus corpos por realizarem
seus deveres, que subjugam suas paixões, e que se abstém de matar qualquer
ser animado, aqueles homens, ó matador de teus inimigos, alcançam felicidade no
próximo mundo, mas não neste! Aquele que primeiro vive uma vida pia e adquire
riqueza virtuosamente no tempo devido e então casa e realiza sacrifícios, alcança
felicidade neste e no mundo seguinte. Aqueles homens tolos porém que não
adquirem conhecimento, nem são dedicados ao ascetismo ou caridade ou a
aumentar sua espécie; ou em realizar os prazeres e diversões deste mundo, não
alcançam felicidade nem neste nem no mundo seguinte. Mas todos vocês são
proficientes em conhecimento e possuidores de grande poder e força e energia
celeste. Para o extermínio (dos maus) e para servir aos propósitos dos deuses,
vocês vieram do outro mundo e tomaram seu nascimento neste! Vocês, que são
tão valentes, e dedicados ao ascetismo, exercícios de autodomínio, e ordenanças
religiosas, e que gostam do esforço, depois de terem realizado grandes feitos e
gratificado os deuses e Rishis e os Pitris, finalmente no devido tempo alcançarão
por suas próprias ações a região suprema, a residência de todos os homens
virtuosos! Ó ornamento da linhagem de Kuru, que dúvidas não cruzem tua mente
por causa destes teus sofrimentos, pois esta aflição é para o teu bem!’"

Quando o ṛṣi comenta sobre o “decorrer do tempo”, O’Flaherty abre a possibilidade de


que ele possa estar se referindo ao Kaliyuga ou talvez simplesmente descrevendo o mal que
surgiria posteriormente encarnado em desejo e raiva, e assim, subsequente perda da pureza e
da imortalidade dos homens (O’FLAHERTY, 1980, 23). Os corpos físicos se tornariam
corruptíveis quando se tornarem moralmente corrompidos.
O Kaliyuga termina a era dos homens com uma grande chama e inundação. O tema
sobre a inundação aparece na antiga mitologia indiana quando Viṣṇu surge como avatāra de
106

um peixe (Matsya). Essa inundação não ocorre para punir os homens da sua fraqueza, mas é
simplesmente um evento natural inevitável que deve ocorrer para fazer dessa grande
inundação uma representação do fim de uma era, o yuga. Ela representa, na realidade, uma
grande “lavagem” ou “limpeza” que também é representado nos rituais de purificação. Mas a
inundação, assim como a chama que marca o fim do Kaliyuga, ocorre quando a fraqueza entre
os homens começa a prevalecer. Além disso, o Kaliyuga está quase sempre marcado por uma
superpopulação, o que denota também a necessidade de aliviar o peso através do extermínio
dos homens, seja por uma inundação, seja por uma batalha de grandes proporções.
Viṣṇu destrói o mal aflorado em Kaliyuga para prevenir uma ruptura iminente, uma
descontinuidade entre mal existente nos homens de Kaliyuga e o bem que virá a existir nos
homens de Satyayuga, a Era de Ouro. Kalkin, o último avātara de Viṣṇu, atua para antecipar
o inevitável retorno de Satyayuga, fazendo com que ocorra a natural passagem do mal para o
bem, que acontece no fim de Kaliyuga, assim como ocorre a natural passagem do bem para o
mal no final de Satyayuga. É necessário, portanto, que haja uma fase de transição entre eles.
Por isso, é nomeado ciclo de yuga. Não existe um hiato entre as eras. Quando Viṣṇu assume o
avātara de Kṛṣṇa, aponta essa mesma questão sobre o ciclo da era para Arjuna, no capítulo 11
de Bhagavadgītā, mostrando que Kṛṣṇa, e somente ele, é o senhor do tempo:

O Venerável disse:
Sou o Tempo, que, avançando, faz a destruição do mundo.
Minha função aqui é a supressão das gentes.
Um dia, não importa o que façam, todos
enfileirados como soldados em batalhas. (11.32)
Por isso, ergue-te, conquista a glória!
Vencendo os inimigos, delicia-te com um reino próprio.
É por mim que, antes de tudo, eles são mortos.
Sê, hábil arqueiro, apenas meu instrumento. (11.33)

A mitologia hindu sobre o mal e sobre a morte relaciona estreitamente essas duas
dimensões. Embora os deuses hindus ocasionalmente provem que são relutantes em
compartilhar a boa vida, parece que os hindus sempre consideraram a morte como uma
representação do mal, afirma O’FLAHERTY (O’FLAHERTY, 1980, 212). O tempo que
determina a morte é o fator que em muito dos mitos sobre a origem do mal representa uma
imagem destrutiva. Em Mahābhārata, morte é tempo destrutivo. Na ausência da morte, a terra
torna-se sobrecarregado e, devido a esse fato, os homens devem ser mortos. Da mesma forma
que Brahmā ensina a Mṛtyu que não se deve temer a morte dos homens, Kṛṣṇa ensina a
107

Arjuna na passagem abaixo que ele também justifica a morte desde que não mate sob
influência do desejo e da raiva.

Ou morto conseguirás o Svarga ou vencendo desfrutarás a terra.


Por isso, levanta-te, Kaunteya, decide-te pela luta. (2.37)
Considera iguais alegria e tristeza, ganho e perda, vitória ou derrota
- participa da guerra e não te tornarás um erro. (2.38)

Kṛṣṇa ao argumentar a importância que Arjuna tem em mãos para seguir o curso do
universo, convence-o a não temer o que não é real (a morte, a dor, o mal). Podemos dizer, por
fim, que Bhagavadgītā é a coluna vertebral de Mahābhārata e como tal explora, anuncia,
estuda e expõe principalmente o peso e a relevância que o homem hindu deve considerar
sobre dharma, karma, saṃsāra e yoga. O corpo é perecível, portanto não se deve lamentar
pela sua deterioração. O medo é tão necessário quando a dor o é, pois sem eles não se pode
existir a coragem (representada também por Arjuna). Deve se cumprir o dharma individual e
o coletivo universal, para não desencadear o caos. Aqueles que se esquecem de qualquer um
dos itens acima, estes sim, são os causadores do mal universal. O homem ético hindu precisa
sempre lembrar e ser lembrado disso. Mas a deterioração da memória do homem parece ser
inevitável, pois o ciclo de yuga sempre estará rodando e assim fazendo com que Mṛtyu
cumpra seu dharma: talvez a única divindade que nenhum homem jamais deixará de conhecer.
108

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se faz uma tradução de termos estrangeiros deparamos com alguns problemas
que já explicitamos na introdução desta dissertação: o de cometermos impropriedades na
tentativa de fazer o leitor compreender um universo explorado por olhos estrangeiros.
Tradução ou retradução, leitura ou releitura, a tarefa não é fácil ainda mais quando se trata de
fazer uma análise comparativa entre dois mundos em duas épocas bastante distintas: a Índia
do séc. X a.C. e o “mundo ocidental” da nossa era. Ao analisarmos o termo dharma e a ética
hindu, o risco de expor contradições é grande, mas, ao mesmo tempo, talvez seja esse risco
que nos levará a querer conhecer e obter mais informações a respeito daquele universo tão
distante.
Quando os sanscritistas e hinduístas afirmam que a datação precisa dos fatos históricos
não é muito relevante, é provável que isso signifique que o contexto dos acontecimentos seja
sempre mais relevante do que na cronologia exata e o acúmulo de fatos. Tanto o
Mahābhārata quanto o Bhagavadgītā são documentos arqueológicos que, de forma poética,
expõem de forma bastante original um “era uma vez...” que perdura até os dias de hoje.
O que essa pesquisa propôs foi fazer uma exposição preliminar da história da Índia
antiga. Para tanto, fez uma breve apresentação da formação do país, seguida dos principais
itens que representam o Hinduísmo e a presença da literatura, que é a experiência que mais
representa a religião, a filosofia e o pensamento hindu: o Bhagavadgītā. Ao final, dentre
vários pontos elucidados pelos personagens Kṛṣṇa e Arjuna, surge uma ideia sobre dharma e
como este está envolvido no contexto das ações do bem e do mal como parte da condição
humana.
A partir da hipótese, a pesquisa levou à conclusão de que o conceito sobre o bem e o
mal no Hinduismo, mais especificamente, a passagem do Bhagavadgītā, possui uma
complexidade e uma gama de significados que não pode ser reduzido a um juízo de valor. O
bem e o mal, dharma e adharma, Pāṇḍava e Kaurava são partes inerentes e integrantes do
equilíbrio interno e externo do universo hindu. Para isso, a ideia sobre māyā tem também um
importante papel no diálogo, pois é o principal “vilão” do temor de Arjuna. A morte, o
inimigo, a batalha são sempre ilusórios, fruto da nossa ignorância. Portanto, não levemos o
termo “ignorância” de forma pejorativa. Como Kṛṣṇa ensina a Arjuna, ela também é parte da
condição humana, cuja finalidade não é nada além do que tornar o homem apto a buscar
conhecimento, sem se render a estagnação e desistência.
109

Este tipo de pesquisa acadêmica que lida com a construção do conhecimento através
da percepção (a percepção do desconhecido) acaba sendo inevitavelmente inconclusiva. Mas
pode apontar algumas questões que levam a refletir sobre grandes temas, como o tempo da
vida, o tempo da morte, a ética, a condição precária do ser humano e, talvez, aquilo que nos
faz sentir mais vulneráveis: os limites entre o bem e o mal. Nesse sentido, tanto Mahābhārata
quanto Bhagavadgītā são documentos arqueológicos que não lidam apenas com o passado,
mas com uma potência inesperada para alimentar a vida.
110

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GLOSSÁRIO

Acyuta: epíteto de Kṛṣṇa


ādhi: “primeiro”; “começo”
adhyātman: “próprio”; “concernente ao próprio indivíduo, à personalidade individual”
āgamas: manuais de culto e adoração
ahaṃkāra: “o fabricador do eu”; “a ideia da individualidade de alguém”; “autoconsciência”
āhiṃsā: “não-violência”
amṛta: néctar que mantém a juventude dos deuses
anagha: “sem erro”; “não merecedor de críticas”
anārya: “não-ária”
anuśāsana: “instrução”
Araṇyakas: Livros das Florestas
Arisūdana: epíteto de Kṛṣṇa
artha: “posses materiais”; “riquezas”
ārya: povo nômade que passou a habitar a Índia
āśramas: “etapas da vida”
āśramavāsika: “vida eremita”
āsura: “entidades malignas”; geralmente traduzidas como demônios, espíritos maus
Āśvamedhika: Sacrifício do Cavalo
Atharvaveda: Veda de preces e encantamentos
ātman: “eu”; “alma humana”; “si-mesmo”
bāla: “criança”; “menino”; “infantil
Balarāma: irmão de Kṛṣṇa
Bhāva: pronome de tratamento; “mestre”
bhūta: “os que são de determinado modo porque passaram a ser assim”
Brahmā: deus da criação; força criadora do Universo; um dos Trimūrti
Brahman: “Espírito Absoluto” ou “o Supremo”
brāhmaṇ: brâmane, sacerdote
Brāhmaṇa: texto védico; exposição dos rituais compostos pelos sacerdotes védicos de 1000 a
800 a.C.; são instruções para os procedimentos litúrgicos
Buddha: 9º avatāra de Viṣṇu; teria surgido na quarta e última era, a Kaliyuga
buddhi: “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”
daiva: “divina”
117

darśana: “ponto de vista”, “visão”, “compreensão”, “doutrina”, “maneira de ver as coisas”


deva: “deus”
Dharma: divindade que representa a Lei
Dharmaśāstras: código de leis; inclui-se aqui o código de Manu
Dharmasūtra: textos sobre moral, ética, lei e política
dhārtarāṣṭra: “filhos de Dhṛtarāṣṭra”
Divya: “divino”
duḥkha: “dor”
Dvāparayuga: Era de Bronze
dvijas: “nascidos duas vezes”
Gāṇḍīva: nome do arco usado por Arjuna
gotra: família bramânica
Gṛhyasūtra: ritual doméstico e ritos de passagem
Guḍākeśa: epíteto de Arjuna
guṇa: “qualidade” - “bondade” [sattva], “paixão” [rajas] e “trevas” [tamas].
hotṛ: sacerdote que conduz o ritual do Rig Veda
Hṛṣīkeśa: epíteto de Kṛṣṇa
Ikṣvāku: nome do primeiro rajá da dinastia da genealogia dos personagens do Mahābhārata
Itihāsas: épicos Mahābhārata (Bhagavadgītā) e Rāmāyāna
Janārdana: epíteto de Kṛṣṇa
jāti: “grupo de nascimento”
jīva: “espírito individual”
jñāna: “conhecimento”
Kaliyuga: Era de Ferro
Kalki: 10º avatāra de Viṣṇu
Kalpasūtra: breves textos sobre ritual, ética e leis
kāma: “desejo”; “prazer”
kāmya: “desejo”
Kapidhvaja: epíteto de Arjuna
Karmayoga: Yoga da ação desinteressada
Kaunteya: “filho de Kuntī”; Arjuna
kha: caos
krodha: “ira, cólera, raiva”
Kṛṣṇa: 8º avatāra de Viṣṇu, teria surgido na era de Dvāparayuga
118

kṣatriya: guerreiro
kṣetra: “campo, terreno”
kṣetrajña: “conhecedor do campo/terreno”
Kūrma: 2º avatāra de Viṣṇu
lakṣaṇa: “atributos”
Madhusūdana: epíteto de Kṛṣṇa
Mahāprasthana: a Grande Jornada
Mahātman: “grande alma”
Manas: “pensar”; “mente”; “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos
cinco sentidos”
Manu: lendário legislador, compilador do “Código de Manu” sobre o dharma
Matsya: 1º avatāra de Viṣṇu
mausala: bastão
māyā: “mudança”; “ilusão”
mokṣa: “libertação”
mṛtyu: “morte”
naiṣkarmya: “estado ou condição resultante do fato de não se praticar uma ação”
naiṣkarmyasiddhi: “perfeição da supressão do ato”; “perfeição da ação transcendente”
Narasiṁha: 4º avatāra de Viṣṇu
padma: “flor de lótus”; simboliza a pureza e a verdade que está por trás de māyā
pantchdjanya: concha de Viṣṇu; possui os cinco elementos da criação (ar, fogo, água, terra e
éter)
pāpa: “culpa”; “mal”; “erro”
Paraṃtapa: epíteto de Arjuna
Paraśurāma: 6º avatār de Viṣṇu
Pārtha: filhos de Kuntī com Pāṇḍu (Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna)
parva: livro
phala: “fruto da ação”
prājña: sábios
prakṛti: “matéria”; “o que existe antes”; “forma ou condição original ou natural de alguma
coisa”; “natureza, matéria original”;“forma natural, forma primitiva; “matéria original, oposta
ao espírito”
pralaya: “fim do mundo”
Purāṇas: coletâneas de mitos, lendas, instruções de adoração às divindades
119

puruṣa: “natureza espiritual”; “eu”; “homem”; nome do espírito como passivo e espectador
da prakṛti
puruṣottama: “Personalidade Suprema”
rajas: “brilho, pulsação”
Rāma: 7º avatāra de Viṣṇu
Ṛgveda: Veda dos hinos em forma de poema
ṛṣi: sábios-videntes
ṛta: “próprio, adequado”; “honesto, verdadeiro”; “lei, regra”; “adaptar-se”
sabhā: “corte”
Sāmaveda: Veda dos cantos e melodias
saṃhitā: coletâneas de hinos, organizados em dez maṃḍalas, recitados por sacerdotes
saṃkara: “caos”; “confusão universal”
saṃsāra: encarnação de uma alma preexistente em novos corpos
saṃsiddhi: “perfeição”; “êxito”
saṃskāra: disposição de repetir ações
sannyāsa: “aquele que abandonou os negócios mundanos”; o asceta que se dedica à
meditação e ao estudo dos textos filo-religioso, um religioso mendicante
śānti: “apaziguamento, estado e felicidade espiritual”; “paz”
śarīrin: “corpo”; “matéria que pode ser destruída/dissolvida”; “cadáver”
sattva: “pureza”; “ bondade”; “altruísmo”
Satyayuga: Era do Ouro
sauptika: “guerreiros adormecidos”
siddhi: “cumprir”; “chegar ao objetivo”; “obter sucesso num empreendimento”.
Śiva: deus da transformação e da destruição
śloka: estrofes de dois ou quatro versos
smṛti: o que foi “memorizado”
śraddhā: “crença”; “fé”; “confiança”
Śrautasūtra: ritual de sacrifício
śruti: o que foi “revelado”; “ouvido”
strī: “mulher”
sudarshana: roda de energia de Vishnu que representa o controle dos seis sentimentos
sura: “brilhar”; “governar”; “possuir qualidade, poder sobrenatural”
sūtra: “fio; tecido”; “frase; texto”; fórmula verbal de reverência e saudação a pessoas
insignes e aos deva”; “prece”
120

svadharma: conjunto de normas para o comportamento de cada sujeito


svarga: “lugar de muito brilho”; lugar mítico habitado pelos deva, cuja tradução aproxima-se
à palavra “céu” ou “paraíso”
svargārohana: ascenção para o svarga
Tetrāyuga: Era de Prata
triṣṇā: “sede”
tyāga: “abandono"; “auto-entrega”
udyoga: “esforço”
Upaniṣad: ensinamento do mestre para seu discípulo sobre a revelação de Brahman / Ātman
vaiśya: agricultores
Vāmana: 5º avatāra de Viṣṇu
Varāha: 3º avatāra de Viṣṇu
varna: “cor”; “categoria”
Vārṣṇeya: epíteto de Kṛṣṇa
Veda: “saber”, no duplo sentido de conhecimento e revelação
Vedāṅga: disciplinas auxiliares dos Vedas
Vedānta: “fim do Veda”
viguṇa: sem qualidade, imperfeito, deficiente, corrompido
Viṣṇu: deus da preservação
Yajurveda: Veda das prescrições ritualísticas
121

ILUSTRAÇÃO

Fig. 1
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Map_of_Vedic_India.png
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 2
http://asiahistoria.blogspot.com.br/2012/01/la-creacion-del-mundo-en-el-rig-veda-i.html
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 3
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Yugas-
Ages-based-on-Sri-Yukteswar.png
Acesso: 06.abr.2013

Fig. 4
http://sanathanadharmahinduismo.blogspot.com.br/2010/07/indra.html
Acesso: 06.abril.2013

Fig. 5
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Vayu_Deva.jpg
Acesso: 06.abril.2013

Fig. 6
http://www.gregorius.jp/presentation/page_57.html
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 7
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Matsya
_painting.jpg
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 8
http://krishna.by/pic/photos/krishna/avatar/
Acesso: 13.mar.2013

Fig. 9
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Varaha
_avtar,_killing_a_demon_to_protect_Bhu,_c1740.jpg
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 10
http://www.dollsofindia.com/product/folk-art-paintings/vishnu-as-narasimha-avatar-killing-
demon-hiranyakashipu-orissa-paata-painting-on-canvas-BZ34.html
Acesso: 10.mar.2013
122

Fig. 11
http://livehappyenjoylife.blogspot.com.br/2013/01/ten-famous-vishnu-incarnations-in.html
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 12
http://trustearthpulse.com/blog/the-hindu-deities-parāma/
Acesso: 10.abr.2013

Fig. 13
http://www.payer.de/somadeva/soma024.htm
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 14
http://www.divinebrahmanda.com/2010/05/lord-krishna-eighth-avatar-of-lord.html
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 15a
http://www.boekenanna.nl/homepage/show/pagina.php?paginaid=274090
Acesso: 27.mar.2013

Fig.15b
http://subhagmaharaj.com/residing-in-the-holy-dham/krishna-balarama/
Acesso: 27.mar.2013

Fig. 16
http://swamivishwananda-cz.blogspot.com.br/2011/01/o-kalki-avatarovi.html
Acesso: 13.mar.2013

Fig. 17
http://www.spanda-yoga.com/blog/index.html?gubun=2&PHPSESSID=
fd1ab02235368a33dc1262f451fcb7ec
Acesso: 30.abr.2013

Fig. 18
http://www.crystalinks.com/Mahabharata.html
Acesso: 13.mar.2013

Fig. 19
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Raja_Ravi_Varma,_Ganga_and_Shantanu_(1890).jpg
Acesso: 30.abr.2013

Fig. 20
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Ravi_Varma-Shantanu_and_Satyavati.jpg
Acesso: 30.abr.2013
123

Fig. 21
http://aulasdesanscrito.com/tag/simbolismo/
Acesso: 30.abr.2013

Fig. 22a
http://sandeepyc.blogspot.com.br/2013/01/hoysaleshwara-temple-halebid.html
Acesso: 25.maio.2013

Fig. 22b
http://www.flickr.com/photos/13289475@N05/4956997573/
Acesso: 25.maio.2013

Fig. 23
http://www.topnews.in/regions/Kurukṣetra
Acesso: 30.abr.2013

Fig. 24
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Pandu_and_Kunti.jpg
Acesso: 30.abr.2013

Fig. 25a
http://www.harekrsna.com/sun/features/12-12/features2659.htm
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 25b
http://vedang.me/weblog/Mahabharata/2012/09/21/draupadi-and-the-pandavas/
Acesso: 24.abr.2013

Fig. 26
http://en.academic.ru/dic.nsf/enwiki/1077746
Acesso: 30.mar.2013

Fig. 27
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bhima_Killing_Duryodhana.jpg
Acesso: 27.mar.2013

Fig. 28
http://krishnastore.com/bishmas-final-teachings-on-bed-of-arrows-h-krishna-1450.html
Acesso: 27.mar.2013

Fig. 29
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Krishna_Advising_on_the_Horse_Sacrifice.jpg
Acesso: 27.mar.2013
124

Fig. 30
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Kunti_Gandhari_Dhrtarashtra.jpg
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 31
http://readtiger.com/wkp/en/Yudhisthira
Acesso: 27.mar.2013

Fig. 32
http://en.wikipedia.org/wiki/File:The_sage_Vyasa_and_the_king_Janamejaya..jpg
Acesso: 30.mar.2013

Fig. 33
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bhagavad_Gita,_a_19th_century_manuscript.jpg
Acesso: 30.mar.2013

Fig. 34
http://bbtcomunica.com/galeria/ventanas/olympus-digital-camera-61/#main
Acesso: 20.abr.2013

Fig. 35
http://back2godhead.com/the-basic-scientific-guidebook-of-spiritual-realization-bhagavad-
gita-as-it-is/
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 36
http://www.actualitte.com/justice/russie-le-livre-sacre-hindou-bhagavad-gita-sauve-
30846.htm
Acesso: 10.mar.2013

Fig. 37
http://indianjourneys.wordpress.com/2009/12/06/deogarh/
Acesso: 20.abril.2013

Fig. 38
http://www.hoparoundindia.com/haryana/city-guides/Kurukṣetra.aspx
Acesso: 20.mar.2013

Fig. 39
http://indianjourneys.wordpress.com/2009/12/06/deogarh/
Acesso: 13.mar.2013

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