Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
PUC-SP
São Paulo
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
São Paulo
2013
Banca Examinadora
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
「僕はいつだってしっかりと意識的に悪と抱き合って暮らしてきたから、
おかげでずっと善を見て来れたよ。
悪とは無縁の人は、善なんか見たことないんじゃない?」
「ほどほど」の効用 - 曽野綾子
Antes de tudo, meus agradecimentos ao prof. Dr. Silas Guerriero pela orientação e pelo tempo
de convivência.
Ao prof. Dr. Frank Usarski que desde o início me ajudou com a formatação do projeto de
pesquisa e ofereceu valiosas sugestões bibliográficas antes e durante o Exame de Qualificação.
Ao prof. Dr. Décio Passos pela escolha final do tema desta pesquisa e composição inicial da
dissertação.
Ao prof. Dr. Pedro Lima Vasconcellos pelas sugestões dadas no Exame de Qualificação.
À profa. Ms. Vera Lúcia Paes de Almeida pelas aulas sobre Mahābhārata, às quais me
incentivaram a iniciar esta pesquisa acadêmica.
Este trabalho tem como objeto de pesquisa a investigação sobre as disposições do bem
e do mal no texto hindu Bhagavadgītā, cuja passagem está inserida no Livro VI do épico
indiano Mahābhārata. O objetivo é refletir sobre a condição humana que permeia na
passagem de Bhagavadgītā, principalmente no que diz respeito à ideia acerca do bem e do
mal no contexto do diálogo entre os principais personagens deste capítulo: o deus Kṛṣṇa e seu
amigo Arjuna, o guerreiro Pāṇḍava. A hipótese é que, neste épico, nem o diálogo nem a
batalha narrada representam uma ação externa de um indivíduo, mas um discernimento
interno dos valores morais segundo o conceito de dharma do Hinduísmo, tendo, portanto, as
ações de Arjuna e tudo que o envolve como uma metáfora da condição humana para distinguir
o bem do mal. A metodologia escolhida foi a pesquisa bibliográfica baseada em autores
especializados como Sri Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Angelika Malinar (MALINAR,
2007), Paramahansa Yogananda (KRIYANANDA, 2007), Surendranath Dasgupta
(DASGUPTA, 1952), entre outros. O resultado desta dissertação procura colaborar na
discussão de tópicos como traduções e valores interculturais, que de acordo com as leituras do
bem e do mal do dharma Hindu, devem ser considerados fora do escopo do pensamento
ocidental e de qualquer julgamento de valor.
The object of this research is an investigation about the disposition of good and evil in
the Hindu text Bhagavadgītā, which passage is inserted in Book VI of the Indian epic
Mahābhārata. The goal is to reflect about the human condition that permeates the passage of
Bhagavadgītā, about the ideas of good and evil, especially in the context of the dialogue
between the main characters of this chapter: the god Kṛṣṇa and his friend Arjuna, the Pāṇḍava
worrier. The hypothesis is that, in this epic, neither the dialogue nor the narrated battle,
represent an external action of an individual, but, due to the concept of dharma in Hinduism,
an inside discernment of moral values. Therefore, Arjuna’s actions and everything that
involves him, it is a metaphor of human condition in order to distinguish good and evil. The
chosen methodology was the bibliographical research based on scholars such as Sri
Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Angelika Malinar (MALINAR, 2007), Paramahansa
Yogananda (KRIYANANDA, 2007), Surendranath Dasgupta (DASGUPTA, 1952), and
others. The result of this dissertation try to collaborate to discuss issues like intercultural
translations and values that according to the Hindu dharma readings of good and evil must be
considered outside the scope of Western thought and any judgments of value.
Célia Maki Tomimatsu: The human condition and the disposition of good and evil in
Bhagavadgītā
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................... 9
Notas sobre transcrição do sânscrito ........................................................................... 13
INTRODUÇÃO
Dessa forma, devemos inserir esta palavra (aliás, não só ela, mas os termos em
sânscrito de forma geral) levando em consideração a sua história interna e seu contato com o
mundo indiano e não indiano. Os rituais são processos e meios de devoção utilizados através
1 Derivado da palavra Bombaim – cidade cujo nome oficial é Mumbai – associado à Hollywood
10
de orações e recitações para que o homem hindu possa entrar em contato com o seu Supremo.
É nesse âmbito que utilizaremos a palavra sagrado.
A condição humana perante o sagrado visa antes de tudo obter um conhecimento do
ser enquanto seu ātman (traduzido geralmente como si-mesmo, self ou eu). Para atingir esse
patamar, há um processo ritualístico a ser seguido; existe um caminho a ser trilhado. Sua
observação e reflexão enquanto um ser baseia-se nesse viver. E esse viver tem como sua
principal fonte espiritual a prática do yoga, tema este de crucial importância abordada em
Bhagavadgītā, cuja passagem encontra-se em Mahābhārata2.
A obra Mahābhārata é considerada uma das maiores epopeias da história em termos
de volume e também uma importante fonte de informação sobre a cultura e a civilização da
Índia antiga, segundo historiadores e pesquisadores sanscritistas. Os elementos da cultura
védica e bramânica estão expressos através das aventuras e desventuras de seus personagens.
Os fundamentos religiosos do Hinduísmo são igualmente caracterizados ao longo da obra, em
especial nas passagens do Livro VI (do total de XVIII), o Bhagavadgītā. O diálogo entre os
personagens centrais desse trecho, Arjuna, e seu primo e conselheiro, o deus Kṛṣṇa, é de
importância primordial para apresentar o tema crucial de todo o Hinduísmo, o dharma.
Durante a batalha entre dois clãs, de um lado os irmãos Pāṇḍava e do outro, os irmãos
Kaurava, Arjuna (terceiro irmão Pāṇḍava) questiona quanto ao seu dever como guerreiro e,
portanto, necessita da intervenção do seu amigo Kṛṣṇa para que este possa despertá-lo e fazê-
lo discernir quanto ao bem e o mal segundo seu dharma.
Esta dissertação pretende focar a pesquisa sobre esse discernimento e a condição
humana envolvidos no diálogo dentro do Bhagavadgītā, sob os aspectos do termo bem e mal
dentro da ideia envolvida no dharma. Para tanto, faz-se necessário fazer um contexto
preliminar introdutório sobre o Período védico e o Período bramânico, mas que não visa um
estudo exaustivo sobre a história da Índia antiga nem tampouco tem a pretensão de fazer uma
análise aprofundada das escrituras sagradas da época.
No primeiro capítulo será feita, ainda que brevemente, uma apresentação da origem do
termo Hinduísmo e seus desdobramentos cultural, filosófico e religioso, perpassando pelas
suas escrituras. O objetivo aqui será de situar o leitor quanto a esses tópicos e dar um contexto
introdutório para entrar na questão mais importante que virá posteriormente. Como quadro
teórico, serão utilizados os estudos feitos pelos indólogos Louis Renou (RENOU, 1964;
2
O recorte feito nessa dissertação não incluirá detalhes minuciosos sobre os estudos do Yoga, pois não é o foco
deste trabalho devido a sua complexidade e, portanto, valeria uma outra pesquisa. Apenas serão feitas algumas
discretas passagens aqui e ali sobre ele no intuito de interar o leitor.
11
3
Disponível somente em página eletrônica (<http://www.shri-yoga-devi.org/textos.html>. Acesso em: 30-04-
2013).
12
É comum observarmos que dentro do senso comum fazemos uma delimitação clara
entre as condutas direcionadas ao bem e outra ao mal. O que vemos no Bhagavadgītā não é
um juízo de valor do senso comum. Os irmãos Pāṇḍava, a princípio, deveriam representar o
bem, pois estes vivem em harmonia, são justos, respeitam o próximo e são corajosos. Seus
primos, os cem irmãos Kaurava, por outro lado, enganam o próximo para seus próprios
benefícios, manipulam as pessoas, são gananciosos e agem por impulsividade do desejo. São
filhos de pais cegos que, devido a essa limitação, recusam-se a enxergar a obstinação
existente nas ações de seus filhos.
Na passagem de Bhagavadgītā, as divindades tornam-se tão “humanos” quanto os dois
clãs. Dão conselhos, ajudam os seus parentes, mas são igualmente cruéis e impiedosos. No
entanto, eles exercem um papel fundamental para nortear a conduta humana. Há uma força
conservativa dos Kaurava contra uma força evolutiva dos Pāṇḍava. O guerreiro Arjuna
representa a nossa essência nos momentos de dúvida. O diálogo entre ele e seu mentor Kṛṣṇa
é o diálogo que fazemos quando temos dúvida nas nossas escolhas. É a batalha que ocorre
dentro do nosso corpo e uma voz de introspecção em nossa mente. O ego e a consciência,
neste caso, não são para serem combatidos, mas sim refinados através do despertar de seu
dharma, cujo sentido vai além do dever. É um cumprimento dos desejos sociais e religiosos, é
um dever para com o grupo diante do papel a que cada um pertence e ter a percepção da etapa
que se encontra nesta vida. É por isso que após tantos séculos de existência a importância de
Bhagavadgītā ainda é relevante para o homem hindu.
Há, portanto, em Bhagavadgītā três dimensões na vida do homem hindu:
1. A humana: a dúvida, a posse (artha) e o desejo (karma);
2. A heróica: a ambivalência, a coragem, a disciplina e a moral (dharma);
3. A divina: a sabedoria, o discernimento e o desprendimento (mokṣa).
Como uma última observação nesta parte introdutória, ressaltamos a dificuldade que
há quando se faz uma tradução de um texto. Existe uma inevitável “recriação” e uma
intraduzibilidade não só de vocabulário, mas também de percepção, pois não lidamos com os
mesmos pressupostos da era védica / bramânica. É uma experiência soberana de distintas
compreensões sobre o corpo, percepção e discernimento. Por isso, há também uma
singularidade para lidar com o mal, com a dor e com o divino. A narrativa de Bhagavadgītā
representa essa diferença cognitiva através de metáforas enunciadas pelos personagens.
13
Sobre a Índia antiga, podemos dizer que, de acordo com pesquisas feitas ao longo dos
séculos, dois grandes rios foram responsáveis pela formação de sua civilização: o rio Ganges
e o rio do vale do Indo, que abrange o atual território do Paquistão.
Por volta de 2.500 a.C., segundo explorações arqueológicas, havia dois sítios que
deixaram indícios das comunidades que habitavam a região: Mohenjo-Daro e Harapa.
Mostraram ser cidades-fortaleza bastante avançadas, pois já faziam uso de metais e argilas,
utilizavam tijolos e conheciam a técnica de canalização de água. O povo dessa época já sabia
escrever, mas até hoje sua escrita permanece um enigma. Apesar de não haver templos,
palácios nem túmulos reais, foi surpreendente observar a uniformidade e a continuidade
cultural que havia nessa civilização harapiana, provavelmente por ter existido alguma espécie
de autoridade religiosa. Foi também em Mohenjo-Daro que se encontrou o “Grande Bath”
(ELIADE, 2010a, 130), o que lembrava muito as piscinas que eram usadas em rituais hindus.
Esses indícios arqueológicos harapianos provavelmente passaram por várias modificações,
adaptações e eliminações até chegarem ao formato das características hinduístas que surgiram
posteriormente, devido a diferentes contatos culturais ocorridos ao longo das constantes
migrações.
A partir de 1.600 a.C., antes da entrada dos povos arianos, essa cultura harapiana
começa a declinar. Em sequência, durante o período das grandes conquistas, esse povo ārya,
que em sânscrito significava “homem nobre”, formado por guerreiros nômades indo-iranianos,
tinha iniciado sua penetração no nordeste da Índia, conquistando a civilização concentrada
nos vales do Indo e depois conquistaram pouco a pouco toda a metade do norte da Índia,
destruindo, assim, as cidades harapianas.
Por volta de 1.500 a.C., esses arianos nômades passaram a ter uma vida sedentária,
fixando-se assim, como agricultores locais (ELIADE; COULIANO, 2003, 172). É importante
lembrar aqui que os ārya desconheciam a escrita (ELIADE, 2010a, 192). Ocupada por arianos
pela terra e por europeus pelo mar, nem por isso a Índia deixou de preservar a concepção tão
longamente enraizada sobre sua aceitação da sua cadeia ininterrupta de reencarnações.
Cientes de que a sua existência é momentânea e que o sofrimento é parte da sua condição
segundo sua posição social encarnada, o indiano mescla o divino e o humano como parte de
sua unidade. Mas não devemos nos esquecer de que desde essa época até hoje, a Índia é um
país de múltiplas etnias, línguas e costumes.
15
Nos textos védicos podemos encontrar passagens que evocam combates dos arianos,
nos quais são possíveis de se reconhecer os continuadores ou os sobreviventes da civilização
do Indo. As mitologias, embora de formas fragmentadas e por vezes deformadas, constituem
igualmente elementos importantes na tentativa de reconstituir a concepção religiosa original.
Antes transmitidas oralmente e em épocas tardias registradas em forma de escrita, tanto a
mitologia quanto o poema eram recursos utilizados pela civilização antiga para explicar e
compreender o homem, a natureza e o ciclo de vida cósmico. Carlos Alberto da Fonseca
explica esse recurso da seguinte forma:
Fazer poesia, ou literatura em geral, fosse ela de tendência artística ou científica, por parte a
elite cultural bramânica dominante em todos os períodos históricos da Índia antiga, era uma
atividade que deveria ter como suporte um nível lingüístico de prestígio – um nível lingüístico
adjetivado de “ornado, enfeitado, rebuscado, feito com arte, completamente produzido;
acabado, bem temperado, de bom gosto, refinado”: o tal Sânscrito, em suma (FONSECA, 2004,
56).
Não que os indianos não tivessem conhecido a escrita: há algumas alusões a ela já nos poemas
védicos, e os poemas épicos refletem sua problematização. No Mahābhārata, por exemplo, na
relação ali instaurada entre o narrador Vyāsa e o escriba Ganeça, perpassa uma autêntica
discussão sobre os estatutos do criador-literário-senhor-da-memória-e-de-suas-intençoes-
expressas-verbalmente e do escriba-enquanto-fixador-por-escrito-do-que-foi-falado-por-outro
(FONSECA, 2004, 57).
Fig. 1
Mapa da Índia setentrional no período védico tardio
Há dois grupos principais de textos na tradição védica: o śruti (o que foi “ouvido”,
“revelado”), no qual se compreende o Veda (daí o nome do período), que são várias
coletâneas de textos cujo período de formação encontra-se entre os séculos XIV e IV a.C.
(ELIADE; COULIANO, 2003, 173), e o smṛti (o que foi “memorizado”). Essas tradições,
de origem oral, foram registradas, como já vimos, tardiamente por escrito. O termo Veda
significa “saber”, no duplo sentido de conhecimento e revelação. Acredita-se que esse saber
foi recebido dos deuses pelos ṛṣi (sábios-videntes) sob a forma de revelação. Possui um
considerável volume de mais de 40 mil versos.
Fig. 2
Ṛgveda
17
- Ṛgveda: é o mais antigo dos quatro Veda e o mais antigo documento da literatura indiana;
foi composto entre 1.500 a 900 a.C. e a sua coleção de 1028 hinos está dividido em dez seções
(ou livros) chamados de maṇḍalas (ciclos); os hinos são utilizados pelo sacerdote hotṛ para
invocar os deuses; são preces e louvores dirigidos a um panteão de deuses, principalmente a
Varuṇa (deus do oceano), Indra (deus da guerra) e a Agni (deus do fogo), cada qual possuindo
uma função específica e que deve ser rigorosamente seguido cada um segundo seu ṛta (ordem
cósmica, regulador da natureza); A. L. Basham (BASHAM, 1991, 7) observa que os autores
destes saṃhitā muito provavelmente não eram habitantes das cidades da Índia antiga,
primeiro por não haver nenhuma menção a esses locais dentro da composição, e segundo
pelos hinos védicos frequentemente mencionarem animais como cavalos, o que não existia
nas cidades hindus da época;
- Yajurveda: Veda das cerimônias conduzidas por adhvaryu (guia para as liturgias); composto
por cinco saṃhitā (um Yajurveda Branco, com fórmulas sagradas – os mantras; quatro
Yajurveda Negro, com fórmulas litúrgicas); no Yajurveda as invocações são dirigidas aos
deuses e aos objetos de culto, conferindo um caráter sagrado;
- Sāmaveda: Veda dos cantos cujo conteúdo é conduzido pelo especialista udgārtṛ; também é
chamado de Veda das melodias;
- Atharvaveda: recitado por um brâmane, que inspeciona a atividade dos demais sacerdotes;
encontram-se nesses hinos os primeiros elementos sobre a medicina indiana (Āyurveda),
contendo fórmulas de cura e também preces mágicas.
Consta (...) que o rito era sempre obra secreta, porque realizada em espaço proibido, interdito
aos não-iniciados. Com efeito, o trabalho ritualístico constituía, na Índia védica, prerrogativa
de membros da casta bramânica, os brâmanes (do sânscrito brahamaṇa, lit, “aquele que detém
o brahaman” = o “poder” oriundo do rito). Eram estes treinados, ao longo de vários anos, nas
diversas disciplinas necessárias para o cumprimento do rito – as quais implicavam, entre outros
requisitos, a memorização de extensas porções de textos relativos à tradição à qual pertenciam
os ritualistas, ao conhecimento da adequação dos ritos aos eventos e, sobretudo, o
conhecimento das artes retóricas, graças às quais se tornava possível evocar e presentificar a
forma dos deuses (FERREIRA, 2004, 89).
- Upaniṣad: palavra sânscrita que significa upa (“perto”), ni (“sob”; “aos pés de”), ṣad
(“sentar-se”), ou seja, é a transmissão do conteúdo sobre a revelação de Brahman – Ātman,
cujo discípulo senta-se próximo a seu mestre para ouvir seus ensinamentos; entre os Upaniṣad
atualmente conhecidos, 108 são considerados como “a essência de todos os Upaniṣad”; o
Brahman é considerado o Espírito Absoluto e a Divindade Suprema; ele é tão transcendente
quanto imanente, “mas cada ser traz em si uma parcela de brama: o átman” (LEMAÎTRE,
1958, 28).
Com exceção dos Upanixades antigos, todos os outros textos religiosos e filosóficos foram
redigidos depois da pregação de Buda. (...) Não se deve, porém exagerar a importância da
cronologia. Em geral, todo tratado filosófico indiano apresenta concepções anteriores à data da
sua redação, e quase sempre muito antigas (ELIADE, 2011, 52).
Fig. 3
O ciclo do calendário Yuga
“As três primeiras [yugas] já estão concluídas, e a quarta teve início à zero hora do dia
18 de fevereiro do ano 3102 a.C. Durações respectivas: 1.728.000 anos, 1.296.000 anos,
864.000 anos; Kaliyuga vai durar 432.000 anos. A diminuição dos números representaria uma
deterioração física e moral dos homens em cada era” (FONSECA, In: Bhagavadgītā, 2009,
87). Mil mahāyuga formam um período cósmico que corresponde a um dia de Brahmā, o deus
20
da criação. Um mahāyuga corresponde a apenas um piscar de olhos de Brahmā. Ele vive cem
anos e cada ano corresponde a trezentos e sessenta dias e noites cósmicos. Quando Brahmā
perece, ocorre a dissolução do universo, o mahāpralāya (ELIADE; COULIANO, 2003, 179).
No fim do quarto yuga, o universo encontra-se em sua total degradação. Por isso
Viṣṇu encerra o seu trabalho de preservação para que um novo Satyayuga se inicie. Assim,
sucessivamente, as quatro eras formam um ciclo até a última dissolução no qual Brahmā entra
no período do descanso da criação. Brahmā, então, após esse “sono cósmico” recomeça sua
criação num eterno ciclo de saṃsāra.
contemplação. O relevante aqui era a obediência e a louvação às forças criadoras da vida; era
um viver antes de um raciocinar. O homem submetia-se aos ensinamentos proferidos pelos
seus superiores. No entanto, o quadro muda ao longo do período bramânico: o homem
sânscrito desse período passou a refletir seu papel enquanto indivíduo (ātman) em relação a
algo maior que ele (Brahman). A questão passou a ser: qual o papel do homem diante do
plano filosófico-religioso, enfim, qual o seu dharma? Esse comportamento e questionamento
foram elaborados principalmente nos épicos Mahābhārata (Bhagavadgītā) e Rāmāyaṇa. Por
isso, algumas vezes, esse período é chamado de Período Épico Bramânico. Sobre o ātman,
Fonseca explica:
(...) ātman, conceito dos mais prestigiados em todas as variadas escolas de pensamento
surgidas ao longo do período bramânico. No período védico, a palavra ātman designava tão-
somente o pronome reflexivo, o indicador do agente que praticava uma ação que se voltava
para/contra si mesmo. Decorre desse sentido o significado da palavra, tal como desenvolvido
pelo questionamento das Upaniṣad (também no período bramânico): tudo aquilo que determina
a constituição psico-mental-afetiva-social-histórica do indivíduo, o que o define e caracteriza
em oposição a qualquer outro sujeito. Assim, indica o Singular, o Individual, o Relativo –
contrariamente ao seu par conceitual, o brahman, que indica o Coletivo, o Grupal, o Absoluto
(FONSECA, 2009, 57).
O próprio uso do termo “hindu” é complexo. Tanto “Índia” como “hindu” derivam de Sindhu,
o nome tradicional do rio Indo. Em antigas inscrições e documentos, “hindu” refere-se ao povo
de “Hind”, o subcontinente indiano. Nos impérios da Índia Medieval sob domínio muçulmano
o termo era usado para designar muitas comunidades indianas não-muçulmanas. Embora se
encontre na literatura hindu em tempos mais antigos, só depois do final do século XVIII é que
o termo se tornou popular como nome para designar a religião dominante do povo indiano.
(...) A expressão sanatana dharma (“fé eterna”) tornou-se popular nos dois últimos séculos, mas
aplica-se mais às interpretações filosóficas da religião do que às suas variadas manifestações
locais. Nos textos antigos, sanatana dharma significava as obrigações religiosas ideais dos
seres humanos, mas não expressava a idéia de uma comunidade de fé (NARAYANAN, 2009,
7-8).
são traduzidas e/ou conceituadas num âmbito puramente intelectual para poder situar-se no
mundo onde se encontra. Mas as respostas ao enigma do universo e da existência humana não
se resumem simplesmente a esse processo. Para compreender o seu papel, o seu objetivo,
enfim, a sua relação com o seu objeto (seja ele homem ou universo), um homem hindu faz uso
de suas escrituras e seus rituais como meios de comunicação.
Para o pensamento hindu, além da importância do ritualismo puro, é igualmente
importante a sua dependência na crença de uma alma. Assim, ele aceita dois princípios
básicos de sua crença: o saṃsāra, que crê na transmigração das almas, e o karma, que está
ligado à doutrina de compensação. Essa conexão entre o saṃsāra e o karma com a
compensação do bem e do mal propõe um renascimento mais ou menos honorário. Isso
significa que na Índia, a crença sobre o destino foi largamente difundida.
Este karma do bem e do mal era determinado pela astrologia e pelo horóscopo, mas de
forma individual e não coletivo. Não havia uma recompensa ou um castigo que durasse
eternamente. Mas no pensamento hindu, em geral, o paraíso e o inferno tinham papeis
secundários. O paraíso, originalmente, foi provavelmente um local privilegiado para os
brâmanes e para os guerreiros, como veremos no Livro XVIII de Mahābhārata. Weber
observa que a doutrina do karma transformava o mundo num cosmos estritamente racional,
ético e determinado, representando, assim, a mais consistente teodiceia, jamais antes
produzida pela história (WEBER, 1958, 121).
O sacrifício védico dos Upaniṣad é desvalorizado em comparação ao dos Brāhmaṇas,
pois é um ritual de ação (karma), e como toda ação, produz resultados de ordem negativa,
desencadeando para o ser humano o ciclo do saṃsāra (ELIADE; COULIANO, 2003, 175).
Este termo saṃsāra aparece somente no Upaniṣad, mas ignora-se a origem de sua doutrina.
Foi uma tentativa de explicar a crença na transmigração da alma pela influência de elementos
não arianos. De qualquer forma, esse termo acabou por criar uma visão pessimista da
existência. O ideal do homem védico, como por exemplo, viver mais de cem anos, mostrou-se
ultrapassado. Mas a vida em si mesma não representava necessariamente um mal. Entretanto
ela, a vida, deve ser utilizada como meio de livrar-se dos laços do karma. O único objetivo
digno de um sábio é a obtenção do mokṣa, a liberação (ELIADE, 2010a, 230).
Uma vez que todo o ato (karma), religioso ou profano, revigora e perpetua a transmigração
(samsara), a liberdade não pode ser alcançada pelo sacrifício nem por meio dos íntimos
relacionamentos com os deuses, nem através da ascese ou da caridade. (...) Uma descoberta
importante foi realizada ao se meditar sobre o valor soteriológico do conhecimento, já exaltado
nos Vedas e nos Bramanas. Evidentemente, os autores dos Bramanas referiam-se ao
conhecimento (esotérico) das homologias implícitas na operação ritual. Era a ignorância dos
mistérios sacrificais que, segundo os Bramanas, condenava os homens a uma “segunda morte”.
23
Mas os rishis foram mais longe; dissociaram o “conhecimento esotérico” do seu contexto ritual
e teológico; a gnose é agora tida como capaz de apreender a verdade absoluta, revelando as
estruturas profundas do real. Tal “ciência” acaba por eliminar literalmente a “ignorância”
(avidya), que parece ser o quinhão dos seres humanos. Trata-se, certamente, de uma
“ignorância” de ordem metafísica, pois ela se refere à realidade última, e não às realidades
empíricas da experiência cotidiana. (ELIADE, 2010a, 230)
Essa ignorância está diretamente relacionada à ilusão, referindo-se ao māyā, que tem
um poder criador do mundo àqueles de pouca observância. “Segundo a filosofia indiana, a
tarefa primordial do ser humano, e, em última instância, irrecusável, consiste em compreender
este segredo, saber como age e transcender – se possível – seu feitiço cósmico (...)”
(ZIMMER, 1986,33).
Da raiz MĀ “medir”, (...) literalmente, māyā é a medida que todo sujeito forma da realidade,
do meio em que vive, é seu ponto de vista, sua visão das coisas – e, nesse sentido, corresponde
a uma arte, uma sabedoria. Como todo sujeito imagina que sua ideia deve prevalecer, então sua
māyā se converte em “ilusão, imagem irreal, erro de percepção”. Nos sistemas filosóficos
Sāṃkhya e Vedānta, é considerada a fonte do universo perceptível (FONSECA, 2009, 86).
Portanto, o homem hindu centra sua atenção e seu questionamento para uma grande
tarefa: como poderia o homem sair afinal dessa roda da reencarnação e, por conseguinte, de
qualquer repetição de morte? E como desfazer-se desse māyā, conhecido como o véu da
ignorância? As possíveis respostas são estudadas até hoje em textos de Upaniṣad. A síntese
de todo o pensamento hindu foi formulada depois do fim do período desses textos, entre 500
a.C. e 500 d.C., época em que foram definidos a concepção de varṇas (“cor”), de āśramas
(“etapa”) e dos seis darśanas (“opinião”, “contemplação”).
Nos subcapítulos a seguir, veremos as divisões desses seis darśana, as concepções de
varṇa e suas quatro metas e etapas, das quais o dharma pertence. Também veremos as
principais divindades que fazem parte tanto do Veda quanto de Mahābhārata, e em qual
avatāra se localiza um deles, o Kṛṣṇa. As metas fazem parte de todo o corpo de Mahābhārata.
Os darśana Sāṃkhya-Yoga e o avatāra de Viṣṇu, o Kṛṣṇa, são partes integrantes de
Bhagavadgītā.
Brāhmaṇ (brâmane)
São sacerdotes cuja função era de se ocupar da soberania mágica e jurídica. Os
brāhmaṇ que memorizam as fórmulas e rimas dos rituais oficiais védicos eram considerados
“deuses humanos”, pois eles eram os únicos que se comunicavam com as divindades através
das orações. Toda família bramânica (gotra) está ligada a um santo, o ṛṣi, que também vem a
ser um vidente. Profissionalmente os brāhmaṇ se dividem em oficiante e em sacerdote
(purohita), recrutado por vezes entre o grupo de brāhmaṇ da vila. O purohita está
estritamente a serviço de um rei (RENOU, FILLIOZAT, 1947, 375).
Kṣatriya (guerreiros)
Tinham a função dos deuses como força protetora e de luta. Eram também reis e
príncipes. Segundo o mito védico do Puruṣa, eles nasceram dos braços do “ser primordial” de
que originou o mundo. Em Mahābhārata veremos que um dos principais personagens da
epopeia eram kṣatriyas. Arjuna, a figura central de Bhagavadgītā, perde-se no seu dharma
como kṣatriya, por isso pede a ajuda de seu fiel amigo Kṛṣṇa, como veremos no Capítulo II.
Vaiśya (agricultores)
Eram os provedores de prosperidade econômica, baseada principalmente de produção
agrícola.
Śūdra (servos)
Eram aqueles com função servil, sem qualquer detenção de poder.
À parte dessa divisão, havia o grupo dos párias, também conhecidos como os
“intocáveis” ou “impuros”. No fim da época védica, observa-se que essa organização da
sociedade em quatro principais grupos estava concluída. Renou cita uma passagem em que J.
Muir descreve sobre a origem e valor deles:
Brama criou assim anteriormente os Prajapatis bramânicos, penetrados por sua própria energia
e em esplendor igualando o sol e o fogo. O senhor formou então a verdade, correção, fervor
25
austero e os Vedas eternos, a prática virtuosa e a pureza para se atingir o céu. Formou também
os deuses, demônios e homens, brâmanes, xátrias, vaixás e sudra, bem como todas as outras
classes de seres. A cor dos brâmanes era branca, a dos xátrias vermelha, a dos vaixás amarela e
a dos sudras negra.
Se a casta das quatro classes for distinguida por sua cor, então se mostra observável uma
confusão de todas as castas. O desejo, a raiva, o medo, a cupidez, a aflição, a apreensão, a fome,
a fadiga, atingem-nos todos; pelo que se discrimina a casta, então? O suor, urina, excremento,
fleuma, bílis e sangue são comuns a todos; todos têm corpos que degeneram; pelo que se
discrimina a casta, então? Há inúmeras espécies de coisas que se movem e são estacionárias;
como se pode determinar a classe desses diversos objetos?
Não há diferença de castas; tendo sido criado inteiramente bramânico de início por Brama, em
seguida este mundo se separou em castas devido às obras. Aqueles brâmanes que gostavam do
prazer sensual, ferozes, irascíveis, inclinados à violência, que tinham abandonado seu dever e
apresentavam membros vermelhos, caíram na condição de xátrias. Aqueles brâmanes que
extraíam sua subsistência do gado, eram amarelos, subsistiam pela agricultura e
negligenciavam seus deveres entraram no estado de vaixás. Aqueles brâmanes que gostavam
da maldade e falsidade, eram cobiçososo e viviam de todos os tipos de trabalho, eram negros e
tinham abandonado a pureza, mergulharam na condição de sudra. Estando separados uns dos
outros por essas obras, os brâmanes se dividiram em castas diferentes.(...)
Aquele que é puro, consagrado às cerimônias natais e outras, que estudou completamente os
Vedas, vive na prática das seis cerimônias, executa perfeitamente os ritos da purificação, come
os restos das oblações, prende-se a seu mestre religioso, é constante nas observâncias religiosas
e devotado à verdade, chama-se brâmane (...). Aquele que pratica o dever advindo do cargo de
rei, dedica-se ao estudo dos Vedas e tem prazer em dar e receber, a este se chama um xátria.
Aquele que prontamente se ocupa com gado, é dedicado à agricultura e à aquisição e se mostra
perfeito no estudo dos Vedas, denomina-se vaixás. Aquele que habitualmente se inclina a todos
os tipos de alimento, executa todos os tipos de trabalho, não é limpo, abandonou os Vedas e
não pratica as observâncias puras, é tradicionalmente chamado de sudra. E isto que afirmei é a
marca do um sudra, e não se encontra em um brâmane; um sudra assim continuará a ser um
sudra, enquanto o brâmane que agir assim não será um brâmane (MUIR, apud RENOU, 1964,
107-108).
Dharma
Termo complexo de difícil definição, ele apreende basicamente dois âmbitos: o
dharma definido como conduta moral e virtude pessoal, e o dharma no âmbito universal, em
que cada indivíduo deve observar suas ações segundo contexto inserido em sua sociedade.
26
Assim, cada indivíduo é responsável pelo seu dharma do mundo interno e externo (veremos
com um pouco mais de detalhe no Capítulo III desta dissertação). Os textos mais relevantes
que compreendem essas leis são o Dharmaśāstra e o Dharmasūtra.
Artha
Significa literalmente “coisa, objeto”. Refere-se às posses materiais e às riquezas:
inclui-se nessa meta o propósito da economia e da política, e as técnicas de sobrevivência. São
objetos materiais passíveis de serem adquiridos para as necessidades de sobrevivência do
cotidiano, seja ela para manutenção e sustentação de uma família, como também para cumprir
os deveres e as obrigações religiosos. Mas essas posses podem ir além: refere-se também às
aquisições para ostentação e prezeres pessoais, conforto e prosperidade, lucro e fortuna. No
campo das políticas, refere-se à obtenção, ao exercício e à conservação de poder. Ensinado
por vezes em forma de versos didáticos, esse exercício de poder surge em doutrinas indianas
de várias escrituras. “Elementos valiosos também aparecem em muitos dos diálogos, relatos e
fábulas didáticas da grande epopeia nacional, o Mahābhārata” (ZIMMER, 1986, 39).
Kāma
Relacionado aos desejos, prazeres e amores da vida. Kāma é o deus hindu do amor,
mestre e senhor da Terra. Vātsyāyana, autor do texto clássico Kāmasūtra, acabou por
popularizar os ensinamentos sobre a sensualidade e erotismo indiano, mas a sua reputação
acabou atingindo um âmbito equivocado e ambíguo, pois o texto nada mais era um manual
para amantes, cujo objetivo era de corrigir e evitar frustrações na vida conjugal. Além desse
manual, há um outro texto que trata das várias artes do prazer: o Nātyaśāstra, que apresenta a
arte da dança, do canto e das artes dramáticas.
Mokṣa
É a libertação das três metas anteriores; é a redenção e a liberação espiritual. A palavra
deriva da raiz muc, que significa “desatar, livrar, soltar, libertar, abandonar, largar”.
Mokṣa é uma técnica para transcender os sentidos a fim de descobrir, conhecer e permanecer
identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida no mundo. O sábio
conhece e interpreta a natureza e o homem na qualidade de visíveis, tangíveis e susceptíveis de
experiência, mas apenas para ir além deles rumo ao bem metafísico supremo (ZIMMER, 1986,
44).
27
Há além dessas quatro metas, o varṇāśrama que são os estágios da vida que o homem
hindu pode percorrer, mas normalmente costuma-se parar no segundo estágio. São eles o do
estudante brahmacharya (estudar as escrituras sagradas sob as orientações de um brāhmaṇ), o
gṛhastha (ser chefe de família e constituir um lar), o vānaprastha (retirar-se na floresta para
meditação) e finalmente, sannyāsa (renunciar ao mundo e levar uma vida de mendicância
para tornar-se um asceta). Na passagem de Bhagavadgītā, Kṛṣṇa afirma que o sannyāsin (o
renunciante) é o verdadeiro representante de yoga. É este que se dedica à meditação e ao
estudo dos textos filosófico e religiosos.
Dos quatro varṇa mencionados, apenas o brāhmaṇ, o kṣatriya e o vaiśya eram dignos
de passar por essas etapas, pois eles eram dvija (nascidos duas vezes): o primeiro nascimento
referente ao fato biológico e outro referente ao nascimento após iniciação religiosa, o
upanayana. Diante dessas divisões, o dvija opõe-se ao śūdra, o trivarga opõe-se ao mokṣa e
os três primeiros āśrama opõem-se ao sannyāsa (ELIADE; COULIANO, 2003, 177).
Assim, a vida do homem hindu é norteada pelas leis de seu varṇa, sob a etapa da vida
em que se encontra (āśrama). Uma vez pertencente a um grupo, a uma família, ou a uma
função, suas condutas, públicas ou privadas, são rigorosamente normativas. O indivíduo,
enquanto ser único, é eliminado; sua personalidade é absorvida no coletivo. É talvez esta a
maior representatividade simbólica de Arjuna, pois este não é um indivíduo isolado.
Na tradição indiana, o Hinduísmo é tão religioso quanto filosófico. São dois aspectos
indissociáveis, nas quais as concepções metafísicas e cosmológicas da Índia não são vistas
como doutrinas distintas ou independentes. O darśana, ou o “ponto de vista", indica que
essas duas concepções provêm da mesma origem: o Veda. Por isso, os precursores do darśana
foram pensadores, santos, místicos e sábios que tinham como finalidade a retomada e a
conservação da formas religiosas mais puras e autênticas. Eles eram verdadeiros estudiosos e
herdeiros dos Brāhmaṇas e dos Upaniṣads.
Convém esclarecer que o sânscrito não possui um vocábulo que corresponda exatamente ao
termo europeu “filosofia”. Um sistema filosófico especial denomina-se darsana, “ponto de
vista, visão, compreensão, doutrina, maneira de ver as coisas” (da raiz drs, “ver”, “contemplar”,
“compreender”) (ELIADE, 2011, 52).
O fato é que não há nenhuma palavra sânscrita que abarque e inclua tudo aquilo que na
tradição literária indiana poderíamos chamar “filosófico”. Os hindus têm vários modos de
classificar os pensamentos que consideram dignos de aprender e transmitir, mas não dispõem
de um termo único que compreenda todas as suas generalizações fundamentais sobre a
realidade, a natureza humana e a conduta (ZIMMER, 1986, 38).
28
Sāṃkhya
Escola fundada pelo sábio Kapila Muni, o termo Sāṃkhya significa “o que repousa
sobre o número”, “contagem”, “enumeração”, fazendo referência ao emprego das
enumerações e classificações desse darśana. Sāṃkhya é um sistema dualista que divide o
plano em fenomenal de natureza universal (prākrti) e transcendental, e natureza espiritual
(puruṣa).
O Samkhya é fundamentalmente ateísta e reconhece apenas o Espírito e a Natureza como o
princípio eterno das coisas, das quais se deriva pela evolução a totalidade das formas e seres. A
libertação é “isolamento”, onde a alma é desindividualizada. (RENOU, 1964, 29).
Yoga
É o estudo sobre a união entre o homem e o universo. A formulação de seu texto foi
feita em época desconhecida, mas foi Patañjali o principal responsável pela sistematização
dessa escola. O Yoga possui oito etapas conhecidas como aṣṭāṇga: abstinência, observância,
posturas corporais, técnicas de respiração, interiorização, concentração, meditação e
contemplação.
A Ioga, teísta, retém do ciclo causal do Samkhya apenas aquelas estruturas psíquicas por
intermédio das quais ensina o controle psico-fisiológico, uma restrição à circulação do
pensamento. Essa restrição pela ioga torna possível não só a aquisição de poderes sobre-
humanos como também e principalmente a conquista do controle místico. (...) Estudado através
do Samkhya-Yoga, o hinduísmo surge como uma disciplina do inconsciente (RENOU, 1964,
29).
29
Vedānta
Fundado por Bādarayaṇa (também comentador de Brahmasūtra e de Bhagavadgītā),
Vedānta literalmente significa “fim do Veda”, por estarem colocados no final dos textos
védicos. A princípio designa o conjunto das doutrinas presentes no Upaniṣad.
Foi graças ao sábio Śaṅkara (século VIII d. C.) que o Vedānta retoma vida através do
Sāṃkhya. Esse sistema Vedānta é chamado de advaitavāda (“não-dualista”), pois Śaṅkara
defende o monismo absoluto do princípio impessoal de Brahman e o caráter ilusório do
mundo, o māyā. Śaṅkara salientou o mokṣa, ou seja, a salvação, como a realização da
identidade do ātman com o Brahman, e isso deveria ser obtido através da meditação
(ELIADE, 1995, 364).
É uma exposição teórica da natureza e da manifestação universal. Este sistema aborda
como os cinco órgãos dos sentidos (jñãnendrīya) estão relacionados com os cinco órgãos da
ação (karmendrīya) e as projeções materiais (tanmāta) que formam o mundo (ELIADE;
COULIANO, 2003, 176-177).
Mīmāṃsā
Seu fundador foi Jaimini. Mīmāṃsā significa “investigação” ou “reflexão profunda”;
tem por objeto de estudo os textos sagrados e seus sentidos exatos das passagens dos rituais;
investiga, por exemplo, o sentido do dharma e do Brahman.
A Mimansa insiste sobre a necessidade de uma ortografia correta e de uma pronúncia perfeita
para a boa compreensão dos textos, bem como sobre a obrigação de distinguir bem as
diferentes classes de mantras segundo os ritmos que lhes são próprios (LEMAÎTRE, 1958, 53).
Nyāya
Darśana fundado por Akchapada Gautama, seu principal estudo é sobre a lógica, cujo
foco abarca ainda uma “pesquisa do espírito”. Possui uma forma particular de raciocínio que
se aplica ao domínio espiritual que conduz à libertação. “O nyaya-sutras chegam à conclusão
de que o infortúnio da existência é causado pela ignorância, pelo falso conhecimento”
(LEMAÎTRE, 1958, 48).
Vaiśeṣka
A autoria dos textos de Vaiśeṣka é atribuída a Kaneda. Faz distinções entre substâncias
materiais e espirituais e descreve os elementos da natureza; contempla a física e a teoria
atomística como principais temas de estudo.
Tanto o Nyāya quanto o Vaiśeṣka não pertencem ao corpus da tradição dos Veda, o
smārta. Dos seis darśana apenas o Mīmāṃsā e o Vedānta são considerados smārta. É nesse
corpus do smārta que está formulada a teoria de varṇa (ELIADE; COULIANO, 2003, 177).
31
À primeira vista, parece paradoxal que o guardião do rta esteja ao mesmo tempo ligado
intimamente a maya. A associação é, porém, compreensível, se levarmos em conta o fato de
que a criatividade cósmica de Varuna possui também um aspecto “mágico”. Sabe-se que o
termo maya deriva da raiz may, “mudar”. No Rig Veda, maya designa “a mudança destruidora
ou negadora dos bons mecanismos, a transformação demoníaca e ilusória, e também a
alteração da alteração (DUMÉZIL, apud ELIADE, 2010a, 196).
Assim, Varuṇa, em sua ideia de poder criador, altera a norma cósmica, apreendendo o
sentido de māyā como “mudança desejada”, tanto como criação como destruição. Observa-se,
portanto, que a origem do conceito filosófico de māyā, como sendo a ilusão cósmica,
irrealidade, está associada simultaneamente com a ideia de “alteração”. Trata-se, portanto, de
uma māyā ambivalente, pois não se trata apenas uma alteração da ordem cósmica; é também
da criatividade divina (ELIADE, 2010a, 197).
Indra é o mais popular dos deuses, um herói por excelência, modelo de guerreiro a ser
seguido, enfim, um temível adversário. Representa a vida e a energia cósmica. Por isso, sua
presença é bastante constante em Mahābhārata.
32
Fig. 4
Indra - Templo de Banteay Srei, Camboja
Fig. 5
Varuṇa
33
Brahmā, juntamente com Śiva e Viṣṇu, forma a trindade da divindade hindu, a trimūrti.
Fig. 6
Da esquerda para direita: Brahmā, Viṣṇu e Śiva – Caverna de Ellora, Índia
Brahmā representa a força criadora do universo. Esse universo criado por ele tem a
duração de um dia no calendário hindu (yuga). Ao fim do dia, quando anoitece, Brahmā cerra
seus olhos e adormece. É o momento em que o universo sucumbe e tudo é consumido pelo
fogo, pondo fim a um ciclo de vida. Brahmā possui quatro cabeças e oito braços. As quatro
cabeças são para poder ver a sua amada Sarasvati, pela direita, pela esquerda, por trás e pela
frente. Em seus braços, ele segura uma flor de lótus, um vaso, seu cetro, um rosário, uma
colher e os Veda.
Śiva, por sua vez, é conhecido como o deus destruidor ou também deus da
transformação, pois ele destrói para poder reconstruir e transformar o universo. Nos hinos
védicos ele aparece com o nome de Rudra. Em um de seus braços ele segura o tridente para
destruir a ignorância dos homens. A serpente que sempre o acompanha simboliza a
imortalidade, pois Śiva conseguiu dominar a mais mortal delas. No topo de sua cabeça
encontra-se a lua crescente e a água que jorra desse topo não é senão o Rio Ganges. No centro
de sua testa encontra-se o terceiro olho, que simboliza sua superior sabedoria e poder de visão.
Sua cabeça é escura por ter bebido o veneno letal que surgiu do fundo do oceano cósmico,
para assim, poder salvar outros deuses da destruição. Śiva é associado à potência demoníaca,
ou no mínimo pode se dizer que essa potência é ambivalente, pois simboliza o perigo, inspira
o terror, é imprevisível, mas o seu poderio tem função também de fertilidade. Pode ser ao
mesmo tempo cruel e complacente, praticante de yoga e também dançarino. Nas altas
34
montanhas de Kailāsa, localizadas no Himālaya, Śiva é o grande yogī, que fica sentado sobre
a pele de um tigre, em sua profunda meditação e é através dessa meditação que Śiva mantém
o universo. Assim, com seu poder divino, ele consegue mostrar sua variedade de
personalidade: ele não só é o deus místico, mas também o senhor da dança, o Naṭarāja.
4
Há uma versão de que o nono avatāra não teria sido o Buddha, e sim o irmão de Kṛṣṇa, o Balarāma
(NARAYANAN, 2009, 29).
35
Fig. 7
Fig. 8
36
Fig. 9
5º avatāra: Vāmana (anão) – Bali, rei terceiro passo até que fosse enviado às
demônio e neto de Prahlāda, toma posse do profundezas da terra.
universo, ameaçando os poderes dos
deuses. Estes pedem ajuda a Viṣṇu, que
agora assume a forma de um anão
brāhmaṇ mendicante, aparecendo diante
do rei Bali num momento de culto no qual
atendia aos pedidos dos brāhmaṇ. Vāmana,
aproveitando a oportunidade, pede que lhe
conceda todos os espaços que ele pudesse
medir com seus três passos. Logo que Bali
aceita o seu pedido, Vāmana torna-se
gigante e com o primeiro passo toma a
terra, com o segundo passo, o céu, e ao
tentar tomar a atmosfera com o terceiro, Fig. 11
Fig. 13
Fig. 14
39
Fig.15b
Kṛṣṇa e seu irmão Balarāma
Fig. 16
40
F. Max Müller, em uma de suas palestras proferidas (cf. MÜLLER, 1882), nota que os
três primeiros avatāra de Viṣṇu estão relacionados às águas 5, os quais em todos os casos
referem-se ao resgate da espécie humana do desastre proveniente das inundações. Quando a
literatura védica tornou-se mais conhecida de forma geral, essas histórias sobre as grandes
águas foram descobertas talvez não em forma de hinos, mas no mínimo escritas em prosas
pertencentes ao período bramânico. Não somente a história sobre Manu e o Matsya, mas
também sobre Kūrma e Vāraha. Esta passagem sobre a destruição causada pelas águas
encontra-se nos textos de Catapatha Brāhmaṇa, no qual se encontra o diálogo onde Matsya
alerta Manu sobre o desastre que levará todas as criaturas. Matsya, então, ordena Manu a
construir um navio6e a meditar em nome de Matsya para poder se salvar.
Kṛṣṇa relata a Arjuna em uma das passagens do capitulo 4 de Bhagavadgītā sobre os
diversos avatāra pelos quais ele já passou e explica que razão pelo qual ele surge:
O Venerável7 disse:
Muitos foram os nascimentos atravessados por mim e por ti, Arjuna;
eu os conheço todos, Paraṃtapa8, tu não conheces. (4.5)
(...)
Toda vez que o dharma se torna débil, ó Bhārata,
O adharma se levanta - então eu surjo de meu ātman. (4.7)
E assim, mostra a Arjuna que toda vez que o homem esquece-se de seu verdadeiro
dever, Kṛṣṇa se torna necessário surgir diante deles.
Não se sabe ao certo se os textos védicos são fontes de estrutura primordial dessas
divindades. Eliade pondera que é preciso sempre levar em consideração que os hinos védicos
e os tratados bramânicos foram compostos para uma elite, a saber, a aristocracia e os
sacerdotes (ELIADE, 2010a, 207).
Ainda em Ṛgveda, além da várias dedicações aos deuses Indra, Varuṇa e Mitra,
encontram-se hinos que aludem os conflitos entre diferentes tribos arianas. Mas os dados
históricos desse Veda não aparecem em grandes quantidades. Alguns nomes das tribos
védicas, como o dos Bhārata, reaparecem, no entanto, em literatura posterior, o Mahābhārata,
composto pelo menos cinco ou seis séculos depois da época védica. Divindades como Indra,
que aparece com bastante relevância e importância nos hinos védicos, aparece também no
Mahābhārata.
5
Max Müller usa o termo deluge (cf. MÜLLER, 1882, 133); A. L. Basham usa o termo flood (cf. BASHAM,
2004, 304).
6
Max Müller usa o termo ship (cf. MÜLLER, 1882, 135).
7
Venerável = Kṛṣṇa.
8
Paraṃtapa = epíteto de Arjuna.
41
Fig. 17
Gaṇeśa
Dessa forma, vemos que quando encontramos palavras como Vedismo, Bramanismo
ou Hinduísmo, os teóricos e estudiosos se distinguem entre si quanto às divisões
(cronológicas e contextuais). No entanto, estamos na realidade observando partes integrantes
de algo maior que engloba um todo: o universo indiano. Esse universo está ricamente narrado
em Mahābhārata, como veremos no próximo capítulo. Podemos concluir este capítulo com a
seguinte observação de Louis Renou:
O grande combate dos Bhārata conta a terrível guerra travada entre os cinco irmãos
Pāṇḍavas e seus primos, os cem irmãos Kauravas, pelo reinado de Bhārata. Kṛṣṇa, avatāra do
deus Viṣṇu, fica ao lado dos irmãos Pāṇḍavas e no momento do grande conflito, dá a Arjuna,
o guerreiro Pāṇḍava, a lição filosófico-religioso, conhecido como Bhagavadgītā, inserido no
Livro VI de Mahābhārata.
Bhagavadgītā, por sua vez, está subdividido em dezoito capítulos (Livro VI-25 a 42).
É considerado por muitos (cf. ELIADE, 2011; RENOU, 1964) como o texto sagrado mais
importante do Hinduísmo. A grande batalha entre os dois clãs envolve não só os homens
mortais, mas também as divindades que tomam partidos dentro da guerra. É uma obra que
discute o conhecimento do ātman (“eu”, “alma humana”, “si-mesmo” ou “self”) perante o seu
Brahman (“o Absoluto” ou “o Supremo”), tendo como pano de fundo as peripécias das
divindades, dos sábios, dos reis, dos príncipes, enfim, de todos aqueles que estão envolvidos
no relacionamento entre a dualidade da criação e a harmonia deste Brahman. A presença de
elementos míticos não pode ser reduzida a uma simples ficção. São passagens de relevância
histórica que englobam contextos cosmológicos, religiosos, filosóficos e éticos, nos quais
nada escapa do intuito de elucidar o universo humano perante seu papel e existência neste
mundo.
A seguir veremos uma breve apresentação de quem foi o narrador/personagem Vyāsa,
de como a obra foi concebida, um panorama dos dezoito Livros e a localização de
Bhagavadgītā dentro desse complexo épico.
a.C. e tomando a forma como é apresentada atualmente entre V a.C. e IV d.C. (CAMPBELL,
1994, 259). Ou ainda, segundo Louis Renou: “(...) sua redação talvez esteja situada em uma
época entre o século II ou III antes de Cristo e o século I da era cristã” (RENOU, 1964, 107).
As aventuras são inspiradas em antigas lendas e fazem alusão aos dados históricos das
guerras. Por isso, Mahābhārata é às vezes traduzido como “A grande história da humanidade”.
A narração é interrompida aqui e ali por episódios a ela relacionados, fábulas e apólogos, ou
por dissertações políticas e morais que transformaram esse enorme poema numa espécie de
resumo geral dos valores principais do hinduísmo, resumo, entretanto, que dá mais espaço ao
dharma do guerreiro do que ao de um brâmane ou asceta (RENOU, 1964, 107).
Nos subcapítulos seguintes, veremos primeiro quem foi o autor dessa epopeia, seguido
de um pequeno enredo da obra para conhecermos os principais personagens e suas peripécias.
Na terceira parte, veremos em que contexto está inserido Bhagavadgītā.
Quando se credita a autoria de uma obra específica, existe na realidade uma atribuição
a um conceito não só de um indivíduo igualmente específico, mas também a um conceito de
poder. Existe algo como “o autor desta obra sou eu” ou “quem leva crédito desta obra?”. Em
Mahābhārata há essa autoria creditada historicamente, mas pela extensão da narrativa e pela
constatação de que o autor/narrador conversava com uma deidade, o Gaṇeśa, prova que ele foi
um “autor” e não um autor real. Louis Renou observa que a língua, o estilo, as contradições
internas, tudo denuncia uma irregularidade na redação, o que confirma a distância artística
entre as partes do texto e o autor (RENOU; FILLIOZAT, 1947, 385). Embora não haja
unanimidade na tradição indiana quanto à autoria, existe uma figura mítica popularmente
aceita e, portanto, uma cultura pautada no coletivo. Mas ele, enquanto elemento de
autenticidade, na realidade é secundário, ou seja, o relevante não é “quem” e sim “o quê”.
Jean-Claude Carrière faz uma interessante observação, segundo Georges Dumézil:
Será que é uma obra coletiva, uma coletânea de relatos sucessivos? Há quem sustente esta
hipótese. Georges Dumézil, que via o poema como uma transposição de um quinto Veda (hoje
desaparecido), acreditava, ao contrário, que era obra de um único autor, uma obra organizada,
em que os detalhes apresentados nas primeiras cenas encontram correspondência no final e,
sobretudo, porque a evolução de cada um dos personagens é precisa, a escrita poética é
coerente e, principalmente, não perde de vista, em nenhum momento, o sentido de conjunto
(CARRIÈRE, 2002, 267).
44
Fig. 18
Gaṇeśa escreve Mahābhārata
ter vida de celibato para assegurar que nunca tenha filhos que ameacem usurpar o trono dos
filhos de Satyavatī.
Fig. 20
Fig. 19
O rei Śāntanu apaixona-se por Satyavatī
Śāntanu tenta impedir que sua esposa, a deusa
Gaṅgā afogue seu oitavo filho, futuramente
conhecido como Bhīṣma
Fig. 21
Vyāsa narra ao Gaṇeśa as peripécias de Mahābhārata.
Fig. 22a
Mahābhārata - Templo de Hoysaleshwara, Índia
Fig. 22b
Mahābhārata - Templo de Kailash, Índia
47
Fig. 23
Distrito de Kurukṣetra
49
Para amenizar a rivalidade, Dhṛtarāṣṭra, após renuniciar o trono, decide dividir o reino
em duas partes, dando Hastināpura aos Kaurava e o reino de Indraprastha aos Pāṇḍava.
Fig. 24
Pāṇḍu e Kuntī
Fig. 25a
Duḥśāsana tenta despir Draupadī na frente de todos
Fig. 25b
Kṛṣṇa salva Draupadī da humilhação
52
ressuscite todos os irmãos. Esse animal não era ninguém senão Indra, o Senhor da Justiça.
Pela virtude de Yudhiṣṭhira, Indra concede-lhe benefícios.
Livro IV - Viratāparva
É o fundamento da vida e dos relacionamentos, no qual veremos a universalidade do
dharma. É o dharma como relacionamento entre ātman com ātman, e ātman com o outro.
É o décimo terceiro ano de exílio, no qual os Pāṇḍava foram ordenados a vivem
incógnitos. Passam os dias na corte do rei Viratā. Yudhiṣṭhira vive como um cortesão jogando
dados com o rei, Bhīma como cozinheiro, Arjuna como eunuco, Nakula como treinador de
cavalos, Sahadeva como treinador de vacas, Draupadī como criada da filha da rainha e Kṛṣṇa
como um criado. Todos eles são instruídos sobre como se comportar na frente de um rei. O
gerenal Kicaka do reino de Viratā tenta seduzir Draupadī, mas esta consegue escapar e pede
para que Bhīma o mate. Bhīma então, atrai Kicaka num salão e esmaga-o. Devido a este
incidente, parentes do rei exigem que Draupadī seja queimada, mas ela consegue se libertar
dessa punição.
Sob ameaça da invasão dos Kaurava em seu reino, Viratā alia-se aos Pāṇḍava após
estes revelarem as suas verdadeiras identidades. Droṇa sente maus presságios sobre os
Kauravas, mas tanto Duryodhana quanto Karṇa ignoram as palavras alarmantes de Droṇa e
preparam-se para o combate. Karṇa se prepara para lutar contra Arjuna, mas Aśvatthāmā,
filho de Droṇa, se recusa a lutar contra Arjuna. Bhīṣma recorda que a promessa de treze anos
de exílio foi cumprida e organiza seus soldados para a batalha. O rei Viratā oferece a sua filha
em casamento para o filho de Arjuna.
batalha, acaba por escolher os Pāṇḍava, rompendo assim, a última tentativa de pacificação em
Kurukṣetra. Bhīṣma, Droṇa e Kṛṣṇa, ou seja, sábios e divindades que antes eram conselheiros
e amigos dos Pāṇḍavas e dos Kaurava, agora precisam lutar uns contra outros.
Livro VI – Bhīṣmaparva
É a primeira parte da grande batalha, tendo como líder a divindade Bhīṣma que luta ao
lado dos Kaurava. É onde consta a passagem de Bhagavadgītā. Neste Livro veremos a
essência não só de Mahābhārata, mas também a essência da vida humana, pois cada
personagem possui um relacionamento com seu ātman, com suas particularidades entre seu
corpo e mente, cada qual com seus específicos desejos, motivos, ações e emoções. Cada
personagem possui um relacionamento também com seu outro, não só do ātman, mas com o
seu grupo, sua sociedade, sua nação, e de forma mais ampla, com sua terra, céu, fogo, vento e
tantos outros elementos do universo do qual ele/ela está rodeado. Assim, da mesma forma
como a vida está relacionada a todos esses atributos, a morte está igualmente presente.
brutal e pergunta a Saṃjaya, seu conselheiro e visionário, a respeito. Ele, então, explica-lhe
que o próprio Dhṛtarāṣṭra é responsável pelo que está ocorrendo.
Fig. 26
Karṇa mata Ghaṭotkaca, filho de Bhīma
Livro IX – Śalyaparva
É outro Livro que trata dos atributos humanos: o prazer e a dor como experiência dos
fatos. Por que há mais dor do que prazer? Quais as suas ligações?
Dhṛtarāṣṭra culpa o destino pela atrocidade. Śalya está no comando no último dia da
batalha. Kṛṣṇa pede a Yudhiṣṭhira que mate Śalya. Sahadeva acaba matando o filho de Śalya.
Em seguida, Śalya e Bhīma lutam com o bastão mausala. Bhīma consegue matar Duḥśāsana,
aquele que humilhou Draupadī no dia em que ela foi colocada como a última aposta de
Yudhiṣṭhira no jogo de dados.
56
Balarāma, irmão de Kṛṣṇa, chega à batalha para assistir. As divindades Vāruna e Agni
também assistem a batalha. É Balarāma quem diz a Bhīma e a Duryodhana para lutarem no
terreno de Samantapancaka. Bhīma recebe muitos golpes, por isso Kṛṣṇa, vendo a situação,
orienta Bhīma a lutar desonestamente para vencer, dizendo-lhe para quebrar ambas as coxas
de Duryodhana. Bhīma obedece e além disso chuta a cabeça de Duryodhana, o que faz com
que Yudhiṣṭhira repreenda severamente Bhīma. Balarāma também fica furioso ao testemunhar
a atitude covarde de Bhīma e por isso amaldiçoa-o. Kṛṣṇa retorna a Hatinapura e tenta
tranquilizar Gāndharī e Dhṛtarāṣṭra. Aśvatthāmā, filho de Droṇa, está agora no comando da
batalha.
Fig. 27
Duryodhana sendo morto por Bhīma
Fig. 28
Os últimos ensinamentos de Bhīṣma
Fig. 29
Sacrifício do Cavalo
59
Fig. 30
Gāndharī, vedada, ampara Dhṛtarāṣṭra e segue Kuntī no momento em que Dhṛtarāṣṭra torna-se velho e frágil,
retirando-se assim para a floresta
60
Vyāsa sugere a Dhṛtarāṣṭra, agora em idade bastante avançada, que se retire para as
florestas. Dhṛtarāṣṭra, então, dá a Yudhiṣṭhira instruções e conselhos de como se deve agir
uma pessoa da realeza e ensina-lhe sobre o significado de guerra e de paz. Terminada a sua
tarefa, Dhṛtarāṣṭra parte para a floresta juntamente com um grupo. Kuntī e Gāndharī decidem
segui-los.
Vyāsa ensina a Dhṛtarāṣṭra como se deve viver na floresta. Pāṇḍava, angustiados,
decidem visitá-lo e conseguem encontrar-se com ele, Kuntī e Gāndharī. Kuntī, então, fala
sobre seu sentimento de culpa em relação a seu primogênito Karṇa.
Após Vyāsa convocar as tropas para uma reconciliação, os Pāṇḍava retornam a
Hastināpura. Mas após alguns anos, Yudhiṣṭhira toma conhecimento de que Dhṛtarāṣṭra,
Gāndhārī e Kuntī morreram em um incêncio na floresta onde viviam. Todos os Pāṇḍava
lamentam o ocorrido e realizam rituais fúnebres.
Fig. 31
Yudhiṣṭhira e seu cão a caminho do svarga
Quando chega ao reino dos svarga, para sua surpresa ele encontra ali os seus piores
inimigos, os Kaurava. Não compreendendo o ocorrido, Yudhiṣṭhira desce novamente ao
encontro de Indra e demanda a presença de seus irmãos e de sua esposa. Indra encaminha-o,
então, ao naraka e lá, entre cheiro de putrefações de corpos mutilados e escuridão,
Yudhiṣṭhira reconhece seus fieis companheiros. Após ver o svarga e o naraka, Yudhiṣṭhira
depara em sua última provação: escolher viver no svarga junto com seus inimigos ou viver
com sua família no naraka, um lugar de sofrimento onde vivem também aqueles que
praticaram erros. Yudhiṣṭhira responde a Indra afirmando que jamais abandonaria seus aliados,
preferindo assim, permanecer no naraka. Indra, então, revela que tanto naraka como svarga
62
são māyā e que a provação era para testar a integridade de Yudhiṣṭhira diante das escolhas
que ele faz. Assim, Indra desfaz a cena, uma simples ilusão, concedendo a Yudhiṣṭhira, a seus
irmãos e a Droupadī a ascensão ao svarga. Com isso, encerra-se o Dvāparayuga e inicia-se o
Kaliyuga.
Ao final de toda a batalha, Janamejaya torna-se rei de Hastināpura ao longo de
sessenta anos, sucedendo Yudhiṣṭhira e Parīkṣit. Parīkṣit morre devido a uma maldição de um
brâmane, por ele tê-lo ofendido. Este brâmane faz com que Parīkṣit morresse com a mordida
de um naga (serpente). Janamejaya ao saber disso, decide fazer o ritual do Sacrifício das
Serpentes para se vingar de Takshaka, o rei do povo de naga. Durante este ritual, foi narrado a
epopeia Mahābhārata por Vaiśampāyana, discípulo de Vyāsa, a Janamejaya.
Fig. 32
À esquerda, com a coroa e arco-e-flecha, o rei Janamejaya. À direita, Vyāsa
grandes ações, mas sim a natureza da vida de um heroi. Mahābhārata sem dúvida deu vida
aos Pāṇḍava do início ao fim, mas também é possível perceber que o principal objetivo do
épico seja narrar as peripécias dos personagens, por isso a descrição detalhada das ações de
cada um. Vejamos a seguir umas das passagens centrais do épico: o diálogo entre Arjuna e
Kṛṣṇa.
Fig. 33
Bhagavadgītā, manuscrito do século XIX
9
“Sung by the Lord”
64
Nesta canção consta uma peculiar combinação entre o pensamento não bramânico e as
ideias védicas dos arianos. Ela nos mostra, como já vimos, a essência do pensamento hindu,
que não deve ser lida como um simples diálogo entre um mestre e seu discípulo. É acima de
tudo um diálogo que nos mostra como apreendemos de forma subjetiva o mundo externo que
projetamos segundo um conceito estabelecido baseado em uma realidade formulada pelo
nosso intelecto, como observa Heinrich Zimmer:
A estéril divisão do mundo em matéria e espírito resulta de uma abstração do intelecto e não
deve ser projetada sobre a realidade; porque é da natureza da mente estabelecer diferenças,
formular definições e discriminar. Declarar que “há distinções” é apenas constatar a atuação de
um intelecto que aprende. Os pares de opostos percebidos refletem não a natureza das coisas,
mas a da mente que os percebe. Daí que o pensamento e o próprio intelecto têm de ser
transcendidos se o que se quer é alcançar a verdadeira realidade. A lógica pode auxiliar nos
esclarecimentos preliminares, mas é um instrumento imperfeito e inadequado para o
conhecimento final (ZIMMER, 1986, 273).
Fig. 34
Saṃjaya narra ao rei Dhṛtarāṣṭra os acontecimentos em Kurukṣetra
(...) O pensamento bramânico no período das Upaniṣads estava bem equipado para absorver
não apenas as personalidades divinas do panteão védico primitivo, mas também as formulações
filosóficas e devocionais bem mais complexas, da tradição aborígine, não–ária. A
Bhagavadgītā é o documento clássico das primeiras etapas desta adaptação. (...) O texto (...)
não é, de modo nenhum, uma só composição. Críticos ocidentais assinalaram numerosas
contradições; para a mentalidade indiana, no entanto, são precisamente nestas contradições que
esse radica o valor do texto (ZIMMER, 1986, 274).
65
Quando o príncipe Arjuna está prestes a enfretar a batalha final contra seus inimigos,
ele é subitamente tomado por medo e por dúvida em derramar sangue. Qual seria o propósito
em aniquilar seus entes familiares, mestres, Bhīṣma, Droṇa, entre outros? Assim, inicia-se
Bhagavadgītā, a canção do venerável senhor, com o rei cego Dhṛtarāṣṭra pedindo a Saṃjaya10
que lhe conte o que está ocorrendo. Vejamos algumas passagens relevantes relacionadas ao
tema da pesquisa:
Capítulo 1
10
Saṃjaya = “de vitória total, de triunfo completo”; condutor do carro de Dhṛtarāṣṭra; é um bardo que tinha
também a função de difundir e conservar histórias na memória das pessoas.
11
Kapidhvaja = epíteto de Arjuna.
12
Hṛṣīkeśa = epíteto de Kṛṣṇa.
13
Acyuta = epíteto de Kṛṣṇa.
14
Guḍākeśa = epíteto de Arjuna.
15
Bhārata = aqui se refere a Dhṛtarāṣṭra.
16
Pārtha = filhos de Kuntī com Pāṇḍu, ou seja, Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna.
17
Kaunteya = “filho de Kuntī”, Arjuna.
18
Gâṇḍīva = nome do arco usado por Arjuna.
19
dhārtaraṣṭra = “filhos de Dhṛtarāṣṭra”.
20
Janārdana = epíteto de Kṛṣṇa.
66
Arjuna, diante da dúvida que o atormenta devido à atrocidade, questiona sua atitude e
pede ao seu fiel conselheiro Kṛṣṇa sobre sua hesitação e seu temor, pois ao se dar conta dessa
mente maligna de Duryodhana (1.23), Arjuna percebe a real intenção dos Kaurava. A piedade
(1.28 - kṛpā, em sânscrito) aqui presente possui conotação de ternura, compaixão e lamento,
mas também está no sentido de ser fraco (FONSECA, 2009, 33) e o sentimento de culpa
(1.36 - pāpa, em sânscrito) de Arjuna distingue-se do contexto cristão do sentimento de
pecado. Deve ser entendido aqui como um sentimento de angústia de comportamento mal
conduzido e incorreto perante um grupo social. Assim, o guerreiro Arjuna, confuso sobre seus
deveres, pede a Kṛṣṇa para ser seu mestre espiritual.
Capítulo 2
Saṃjaya disse:
A ele que estava cheio de piedade, e muito aflito, olhos agitados
e cheios de lágrimas, então Madhusūdana21 lhe disse um discurso. (2.1)
O Venerável disse:
Neste mometo tão adverso, de onde te vem esse desânimo, Arjuna,
digno de um anārya22, de má reputação e que não leva ao Svarga? (2.2)
Não te portes como um desmacho, ó Pārtha! Não te fica bem!
Arranca essa fraqueza vil do coração e levanta, terror dos inimigos! (2.3)
Fig. 35
O desânimo de Arjuna
21
Madhusūdana = epíteto de Kṛṣṇa.
22
anārya = não-ária.
67
Novamente temos a palavra piedade (2.1) que agora além de significar fraqueza, tem o
sentido de tormento. O desânimo (2.2) de Arjuna mostra-se no âmbito já do desespero e do
abatimento. Ele não sabe mais como lidar com seu comportamento e sentimento de tortura.
Por isso Kṛṣṇa repreende-o em tom severo.
Arjuna disse:
Como eu, Bhīṣma e Droṇa em batalha, ó Madhusūdana,
combaterei com flechas, dignos eles de veneração, ó Arisūdana23? (2.4)
Não matar os mestres seria menos honroso
que no mundo ter para comer apenas da tigela de um mendigo.
Matar os mestres, porém, só para obter artha e kāma,
só me daria o gosto de chafurdar em sangue. (2.5)
E nem sabemos o que seria mais grave para nós –
nós vencermos ou eles nos vencerem.
Se matarmos aqueles que não queremos que continuem vivos,
esses dhārtaraṣṭra, eles continuarão de pé na nossa frente. (2.6)
Impelido pela culpa de uma fraqueza, indeciso,
eu te peço, a mente completamente confusa quanto ao dharma,
dize-me o que seja positivamente meritório.
Sou teu discípulo, ensina este suplicante. (2.7)
Fig. 36
Arjuna pede conselho de Kṛṣṇa
23
Arisūdana = epíteto de Kṛṣṇa.
68
Kṛṣṇa, então, desperta em Arjuna a importância em exercer seu dharma para um bem
maior, sem apego aos resultados. O conhecimento é importante, mas ele deve estar atrelado à
ação desprendida do egoísmo. Kṛṣṇa revela que tem ensinado a importância de aceitar as
palavras de seu ensinamento, pois é dessa forma do chamado yôguica devocional é que o
homem encontra sua salvação. O homem deve, portanto, meditar para que através desse
processo possa atingir o samādhi e consequentemente a morada suprema. Samādhi significa:
O homem não deve, por fim, temer e lamentar pelo perecível nem tampouco pelo
imperecível. Kṛṣṇa, indestrutível e eterno, ensina a Arjuna que o homem não passa de um
corpo, uma matéria que pode ser destruída e dissolvida:
O Venerável disse:
Lamentas pelos que não merecem lamento. E falas com sabedoria.
Pânditas não lamentam pelos que respiram ou deixaram de respirar (2.11)
Além disso, nunca inexisti, nem tu nem esses chefes de homens;
nem cessaremos, todos nós, de nos tornarmos algo. (2.12)
Existe infância, juventude e velhice no corpo da criatura,
E na obtenção de outro corpo. Um mente-firme não se engana. (2.13)
E contatos materiais, Kaunteya, como frio/quente e alegria/tristeza,
Estão sempre indo e vindo, impermanente. Resite a eles. (2.14)
(...)
Diz-se que esses corpos sem-fim são matéria constante,
Indestrutível, imensurável. Por isso, Bhārata, luta! (2.18)
Quem afirma que ela mata e quem pensa que ela é morta,
esses dois nada sabem. Ela não mata nem é morta. (2.19)
(...)
Assim como, após tirar as roupas velhas,
um homem veste outras, novas,
assim também, após tirar as carnes velhas,
o homem se cobre com outras, novas. (2.22)
(...)
Indivisível ela, incalcinável também, e inumectável e irressecável;
ela eterna em toda parte, firme, estável, duradoura. (2.24)
Ela é dita indefinível, impensável, incambiável.
Por isso, sabendo que ela é assim, não deves ficar triste por ela. (2.25)
(...)
69
Kṛṣṇa inicia (2.11) afirmando que um homem sábio não lamenta pela morte ou pela
vida, como Arjuna está claramente fazendo pelos que estão morrendo na batalha, pois nenhum
deles irá morrer de fato. De acordo com o princípio de saṃsāra, apenas os corpos perecem. O
dharma é para sempre e duradoura, referindo-se ao próprio Sanātanadharma (2.24) e os seres,
bhūta, são aqueles sempre passíveis de transformações (2.28). Arjuna, de acordo com Kṛṣṇa,
deve cumprir o seu papel como guerreiro, pois não lhe cabe outra alternativa; como
verdadeiro kṣatriya, este é o seu dharma. Ele deve defender o caminho de seu dharma através
desta guerra. A vida e a morte são de pouca valia diante de algo muito maior, que é o valor
eterno, pois tanto uma quanto a outra são ilusórias e o corpo não passa de matéria perecível.
Não deve, portanto, ficar lamentando-se pelo inevitável, ou seja, a morte corpórea. Arjuna,
assim, deve saber diferenciar entre o corpo perecível e a alma eterna.
24
svadharma = conjunto de normas para o comportamento de cada sujeito.
25
buddhi = “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”.
70
Capítulo 3
O Venerável disse:
Neste mundo, ó Anagha26, desde tempos antigos refiro duas certezas:
o jñāna-yoga27 do Sāṃkhya, o karma-yoga dos yogin. (3.3)
Não é não iniciando uma ação que o homem consegue o naiṣkarmya28,
nem é pela renúncia a ela que chega ao estado siddhi29. (3.4)
Nem por um instante um ser-nascido não permanece sem agir por uma ação.
Pelas qualidades inatas de sua constituição, todos sem exceção cumprem ações. (3.5)
Aquele que controla a ação e os sentidos mas deixa a mente lembrando,
um ātman endoidecido pelos objetos dos sentidos – esse é dito de conduta falsa. (3.6)
Mas aquele que mantém os sentidos controlados pela mente, Arjuna,
E inicia, desapegado, o karma-yoga com a ação e os sentidos – esse é superior. (3.7)
Por constituição (3.5), ou seja, a prakṛti, Kṛṣṇa refere-se à matéria que se opõe ao
espírito. É dessa prakṛti que provém as atividades humanas. Assim, ao renunciar aos frutos de
seus atos, Bhagavadgītā dedica-se a ensinar que o desprendimento é o caminho para desfazer-
se dos sofrimentos. Portanto isso significa que o homem deve fazer esse sacrifício da renúncia
para não transtornar a ordem do universo. Para que se possa conservar essa ordem
supervisionada por Kṛṣṇa, o homem deve sacrificar e desprender-se de todos os seus atos. Por
esses atos deve-se entender como ação impessoal, desvinculada às paixões e desejos. É dessa
forma que o homem conseguirá sair de seu círculo do karma. Não deve, portanto, perder o seu
controle, tendo um ātman endoidecido (3.6) alguém que perdeu qualquer ação racional, pois
corre-se o risco de agir falsamente. Assim, o homem deve participar de sua vida cotidiana,
26
Anagha = “sem erro, não merecedor de críticas” – epíteto usual para Śiva, aqui referido a Arjuna.
27
jñāna = “conhecimento”.
28
naiṣkarmya = “estado ou condição resultante do fato de não se praticar uma ação”.
29
siddhi = “cumprir, chegar ao objetivo, obter sucesso num empreendimento”.
71
mas nunca esperando um retorno, uma gratificação, enfim, um resultado. Se Arjuna deixa de
seguir esses ensinamentos, deixará de cumprir seu dharma, acarretando consequentemente um
desequilíbrio no universo cósmico. Portanto, a ação de Kṛṣṇa deve ser imitada por Arjuna,
pois:
É nessa passagem que Kṛṣṇa enuncia as distintas obrigações designadas a cada varṇa.
Podemos observar aqui o dharma não só de um kṣatriya, mas também de todos do grupo
social bramânico que vimos anteriormente. Aurobindo analisa essa passagem comparando as
ações dos homens com a de um tigre ou de um fogo ou de uma tempestade (AUROBINDO,
1995, 65). Os homens não podem matar e justificar essa ação afirmando que agiu de acordo
com sua natureza. Tal afirmação não poderia ser feita porque ele não tem a natureza e,
30
saṃkara = “caos, confusão universal”; mais contextualmente “cruzamento de castas”.
31
guṇa = “qualidade”: “bondade” [sattva], “paixão” [rajas] e “trevas” [tamas].
32
prakṛti = “o que existe (ou se faz) antes”; “natureza, caráter, matéria original”.
33
ahaṃkāra = “o fabricador do eu”; “a ideia da individualidade de alguém”; “autoconsciência”.
34
mana = “pensar”; “mente”; “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos cinco sentidos”.
35
buddhi = “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”.
36
viguṇa = “sem guṇa”, “sem qualidade, imperfeito, deficiente, corrompido”.
72
Arjuna disse:
Então impulsionado por que o homem marcha para esse erro,
Contra sua vontade, ó Vārṣṇeya37, como se uma força o impelisse? (3.36)
O Venerável disse:
Isso é o kāma, isso é o krodha38– brotados do guṇa rajas39,
O que tudo-devora, o que tudo-desvirtua. Sabe-o: ela é o inimigo. (3.37)
Kṛṣṇa ensina que os erros são acometidos devido ao kāma que, apesar de ser uma das
quatro metas do homem hindu, ele é também o impulso que leva o homem ao engano. Kāma é,
segundo a mitologia, filho de Dharma, mas marido de Rati, o deus da luxúria. Tanto o kāma
quanto o krodha, filho de Lobha (“cobiça”) e Nikṛti (“fraude”), devem ser observados, pois
são enganadores e ao mesmo tempo sedutores.
Capítulo 4
37
Vārṣṇeya = epíteto de Kṛṣṇa.
38
krodha = “ira, cólera, raiva”.
39
rajas = “brilho, pulsação”.
40
kavi = no período védico designava o homem particularmente dotado de percepção e inteligência e
conhecimento, um sábio; nos períodos bramânico e clássico designa o cantor de textos, o poeta.
73
Capítulo 5
Segundo Kṛṣṇa, o desprendimento total revelado por ele no capítulo 4 deve ser
alcançado através da prática e domínio corpo-espírito que o yoga ensina. Somente quando o
discípulo concentra sua atenção no divino é que ele alcaçará esse objetivo. Kṛṣṇa ensina na
passagem do capítulo 5 que seu fim último é a união com o Brahman, ou a devoção a ele.
Todos os seres deste universo estão em Kṛṣṇa, tanto a fonte material quanto a espiritual.
Arjuna assim, aceita as palavras de Kṛṣṇa, colocando-se diante desse Ser Supremo como seu
guia. Diante de toda exposição do procedimento correto para devoção, Kṛṣṇa diz a Arjuna que
agora lhe foi ensinado o caminho para a perfeição máxima da vida do homem. Kṛṣṇa ensina a
Arjuna que a felicidade e a paz só podem ser atingidas se seguir os passos do desapego e
assim unir-se ao Brahman. A mente não deve seguir segundo percepções externas, pois elas
são antes de tudo uma ilusão. Aquele que renuncia à vida mundana e ao apego, Kṛṣṇa o
considera o verdadeiro renunciante, o sannyāsin, o verdadeiro praticante de yoga.
Capítulo 7
Praticando-se o yoga, com o māna (“mente”) voltado para o Kṛṣṇa, ele faz uma nova
ressalva a Arjuna. Não é qualquer um que consegue cumprir o siddhi (“tarefa”), pois o
sucesso não deve objetivar uma recompensa. Somente um dentre vários que tentam
conseguem compreender realmente as palavras de Kṛṣṇa. É através de buddhi, ou seja, o
discernimento, o ahaṃkāra (aquilo que compõe a autoconsciência), entre outros componentes
é que atingem a prakṛti expostas por Kṛṣṇa. Não se deve confundir a prakṛti imanente com a
prakṛti transcendente, pois a primeira é inferior, não elevada, enquanto que a segunda é
superior, transcendental (FONSECA, 2009, 118).
Capítulo 8
Da mesma forma que chega a noite, chega o dia. Assim como termina um yuga, outro
yuga se inicia. Eis o que Kṛṣṇa ensina a Arjuna a não temer, pois o inevitável não há como ser
impedido. Os praticantes de yoga são os que detêm a ciência desse evento. Por isso Kṛṣṇa diz
a Arjuna que é esse caminho que ele deve seguir.
41
kha = caos
42
mahātman = “grande alma”.
43
saṃsiddhi = “perfeição; êxito”.
75
Capítulo 9
Por isso a insistência constante de Kṛṣṇa para que Arjuna se dedique e confie em seu
mentor. Por pior que possa aparentar a ação de Arjuna, se ele seguir seu dharma, ele não
estará caminhando no erro, ou seja, no adharma.
Capítulo 10
O Venerável disse:
De novo, ouve minha fala suprema, Mahābāhu,
que te explanarei para teu bem por te querer bem. (10.1)
Nem as multidões de sura50 nem os grandes ṛṣi conheceram minha origem
- pois eu sou, de todos os modos, a fonte dos deva, dos grandes ṛṣi. (10.2)
Quem me sabe não-nascido, sem-começo, grande senhor do mundo,
ele, não-insensato entre os mortais, é liberado de todos os erros. (10.3)
Buddhi, jñāna, não-insensatez, paciência, veracidade, autocontrole, paz,
felicidade, infelicidade, tornância e destornância, medo e não-medo. (10.4)
Não-violência, equanimidade, contentamento, penitência, esmola, honra e desonra:
procedem de mim os variados e diversos modos de ser dos bhūta. (10.5)
Os sete grandes ṛṣi de antigamente e os quatro manu
procedem de mim: nascidos da mente dos quais procedem todos no mundo. (10.6)
Quem conhece essencialmente minha expansão e meu yoga,
ele com certeza é equipado com o yoga inabalável. (10.7)
44
śraddhā = “crença”; “fé”; “confiança”.
45
mṛtyu = “morte”.
46
bhūta = “os que são de determinado modo porque passaram a ser assim”.
47
bhāva = pronome de tratamento; “mestre”.
48
daiva = “divina”.
49
śānti = “apaziguamento, estado de felicidade espiritual”; “paz”.
50
sura = “brilhar, governar, possuir qualidade/poder sobrenatural”.
76
Os sete grandes ṛṣi (10.6) enunciados aqui são aqueles que foram salvos pelo primeiro
avatāra de Viṣṇu, Matsya, para que eles pudessem salvar o mundo após a grande inundação.
Kṛṣṇa demanda de Arjuna devoção à sua doutrina compreendendo-o e imitando-o, pois o que
Kṛṣṇa faz deve servir de modelo de comportamento no universo e na história. No plano
terrestre, onde se encontra a imperfeição, é impossível não se cometer erros, tanto no que
concerne à ignorância quanto no que concerne ao apego. Para alcançar a perfeição, o homem
deve dissolver o indivíduo no seu coletivo, ou seja, “estar” no anônimo. Isso não o isenta de
cumprir o seu dharma; muito pelo contrário: é pelo dharma que cumpre o seu papel no
coletivo. Guṇa (“qualidade”) está em herdar e agir no seu cumprimento. Assim, Arjuna
compreende seu verdadeiro dharma e decide retornar à batalha, agora sem hesitar. Kṛṣṇa não
tinha apenas a função de aconselhar e despertar seu principal discípulo; ele tinha também
como finalidade declarar a toda humanidade a sua doutrina de salvação do mundo pela ação
desinteressada (Karmayoga) e pela devoção (Bhaktiyoga). O Brahman e o ātman residem
dentro de cada um e devem sempre ser observados e refinados, ensina Kṛṣṇa.
Capítulo 11
Arjuna disse:
A fala que por ti foi dita em meu benefício, o supremo segredo
conhecido pelo adhyātman51, eliminou minha alucinação (11.1)
A origem e a dissolução dos bhūta foi ouvida por mim, elaborada por ti,
ó Olhos-pétala-de-lótus, e também teu māhātmyam. (11.2)
Tudo é como tu mesmo disseste, Parameśvara.
Quero ver tua forma soberana, Puruṣottama52. (11.3)
Se pensas que ela pode ser vista por mim, Prabhu,
ó Senhor do Yoga, mostra-me teu ātman imperecível. (11.4)
O Venerável disse:
Vê, Pārtha, minhas formas às centenas e aos milhares,
infinitamente diversas em formas e cores, divinas. (11.5)
Vê os āditya, os Vasu, os Rudra, os dois Aśvin e os Marut.
Vê inumeráveis maravilhas jamais vistas, Bhārata. (11.6)
Vê aqui agora inteiro o mundo em meu único corpo, tudo o que se move ou não,
no meu corpo, Guḍākeśa, e o mais que queres ver. (11.7)
Mas não me podes ver apenas com teus próprios olhos.
Dou-te o olho divya. Vê meu yoga soberano. (11.8)
51
adhyātman = “próprio; concernente ao próprio indivíduo, à personalidade individual”.
52
Puruṣottama = “Personalidade Suprema”.
77
Saṃjaya disse:
Tendo dito isso, ó rajá, então Hari, o Grande Senhor do Yoga,
fez ver ao Pārtha sua suprema forma soberana (11.9)
de bocas e olhos sem conta, espantosas aparências sem fim,
inumeráveis enfeites divinos, infindáveis armas divinas alevantadas, (11.10)
portando guirlandas e vestimentas divinas, ungido de perfumes divinos...
Feito de todos os prodígios, eis o deva infinito dando suas múltiplas caras (11.11)
(...)
O Venerável disse:
Sou o Tempo, que, avançando, faz a destruição do mundo.
Minha função aqui é a supressão das gentes.
Um dia, não importa o que façam todos
enfileirados como soldados em batalhas. (11.32)
Por isso, ergue-te, conquista a glória!
Vencendo os inimigos, delicia-te com um reino próspero.
É por mim que, antes de tudo, eles são mortos.
Sê, hábil arqueiro, apenas meu instrumento. (11.33)
Droṇa e Bhīṣma e Jayadratha
e Karṇa e os outros heróis de batalha:
eu os matarei! Mata também, não hesites!
Combate! Vencerás na luta os rivais! (11.34)
Fig. 37
Kṛṣṇa mostra sua forma universal a Arjuna
Tendo ouvido esses ensinamentos e tendo visto a sua forma universal, Arjuna agora
postado em reverência, submete-se aos ensinamentos de Kṛṣṇa. São então aqueles que se
78
devotam a ele, aqueles que meditam e aqueles que praticam o desapego aos frutos das ações
que merecem śānti, “a paz”. Kṛṣṇa afirma, enfim, que as mortes não são diretamente causadas
por Arjuna. Ele é o que age, mas não é o responsável pelas ações. Portanto, deve pegar as
armas e vencer a angústia que tanto o atormenta.
Capítulo 12
Por isso, Kṛṣṇa ensina que aqueles que creem nele e se aproximam dele deve chegar
prontificados à prática da meditação, à renúncia, libertos tanto da alegria quanto do temor,
dotados de fé e humildade, confiando nas palavras dele.
Capítulo 13
Arjuna disse:
O que é prakṛti e puruṣa, e o que é kṣetra53 e kṣetrajña54;
Quero saber o que é jñāna e jñeya, Keśava. (13.1)
O Venerável disse:
Este corpo, Kaunteya, é conhecido como kṣetra.
Quem o conhece é chamado de kṣetrajña. (13.2)
Mas sabe, Bhārata, que em todos os campo eu sou o ksetrajṭa.
O conhecimento do kṣetra e do ksetrajṭa – esse é o vero conhecimento. (13.3)
O que é o kṣetra a que ele é igual, de que se faz a mudança, e de onde vem
[o conhecedor do kṣetra] ouve isso de mim concisamente. (13.4)
(...)
Vou te dizer o que deve ser conhecido – com ele se consegue a imortalidade:
é o brahman supremo, que não tem começo e do qual não se diz ser nem não-ser (13.13)
(...)
Está no interior e no exterior dos bhūta, e é imóvel e móvel;
tão sutil que não pode ser conhecido, e está longe e está perto. (13.16)
53
kṣetra = “campo, terreno”.
54
kṣetrajña = “conhecedor do campo/terreno”.
79
Kṣetra, então, representa o campo de batalha, mas também aqui fica claro que é o
campo do corpo, onde reside o bem e o mal, onde reside o conflito da alma. A śānti e a
imortalidade da alma residem naqueles que são porque assim são, ou seja, “os que são de
determinado modo porque passaram a ser assim”, dentro do eu, o principal responsável por
conhecer o brahman supremo. As luzes (o bem) superam as trevas (o mal) assim que
despertarem a percepção da presença de Kṛṣṇa. Por isso, é importante que perceba a distinção
entre o corpo (não-eu) e o ātman (eu).
Capítulo 15
Tanto o prazer quanto a dor, tudo é parte necessária, pois são pelos pares de opostos
que ambos existem e resistem. Mas somente aqueles que tomam ciência dessa dualidade é que
são dignos de serem imperecíveis tal qual Kṛṣṇa.
Capítulo 16
O Venerável disse:
A destemeridade, a limpeza do sattva55, a firmeza na aquisição do conhecimento,
a generosidade, o autorrespeito e o sacrifício e o estudo e a auteridade e a retidão, (16.1)
a não-violência, a veracidade, a não-raiva, a renúncia, a calma, a sinceridade,
a piedade pelos bhūta, o desinteresse, a ternura, o pudor e a tranquilidade, (16.2)
55
sattva = “pureza, bondade”; “virtude, altruísmo”.
80
Herdamos todos nós, segundo Kṛṣṇa, o lado daiva e o lado āsura. Devemos, pois,
discerni-los através do conhecimento, praticando a retidão e todas as qualidades referentes aos
sattva. É com esse guṇa que se deve prestar atenção e se dedicar. Kṛṣṇa diz a Arjuna que as
qualidades de um āsura não estão somente no plano do submundo. Podem perfeitamente
serem encontrados entre os homens. Kṛṣṇa enfatiza aqui novamente a Arjuna quais as
qualidades de um daiva, pois os homens tendem a se esquecer constantemente sobre sattva.
Capítulo 17
O Venerável disse:
A crença de cada um está, Bhārata, em conformidade com o sattva.
O homem é feito de crença. Tal a crença, tal o homem. (17.3)
(...)
Culto dos deva, dos dvija, dos guru e dos prājña57, limpeza, retidão,
brahmacarya e não-violência – isso é chamado austeridade do corpo. (17.14)
Linguagem jamais ofensiva, que é confiável, agradável
e o auto-estudo-meditativo – isso é chamado austeridade da fala. (17.15)
A felicidade mental, a bondade, o silêncio, o domínio do ātman,
a pureza do bhāva – isso é chamado austeridade da mente. (17.16)
Essa austeridade tríplice praticada com crença extremada
pelos homens aplicados ao ganho sem-fruto é chamado sāttvika. (17.17)
Arjuna questiona sobre aqueles que, mesmo não seguindo os ensinamentos dos śāstra,
se continuariam dignos de serem homens de qualidade. Kṛṣṇa então lhe responde ensinando
quais são as atitudes austeras do corpo, da fala e da mente. Kṛṣṇa fala sobre a crença, onde ela
reside e quais as ações que levam enfim o homem ao sāttvika. O relevante são as ações
executadas conforme o sattva e é assim que torna o homem realizador de suas crenças.
Capítulo 18
Arjuna disse:
Desejo conhecer, Mahābāhu, a natureza do saṃnyāsa
e do tyāga58, ó Hṛṣīikeśa, respectivamente, ó Keśiniṣūdana. (18.1)
56
āsura = entidades malignas; geralmente traduzidas como demônios, espíritos maus.
57
prājña = sábios.
58
tyāga = “abandono"; “auto-entrega”.
81
O Venerável disse:
Para os kavi, o saṃnyāsa é a abstenção dos atos inspirados pelo kāmya59;
para aqueles esclarecidos o tyāga é a renúncia ao fruto de todos os atos. (18.2)
Para racionalistas, deve-se renunciar ao karma por ser um erro;
para outros, não se deve renunciar ao sacrifício, à doação e à austeridade. (18.3)
(...)
Cumpre o ato prescrito, Arjuna, apenas porque ele deve ser cumprido,
renunciando ao apego: eis a renúncia sāttvika. (18.9)
O renunciante dotado de sattva, de dúvidas afastadas, de pensamentos vigorosos,
não odeia a ação desagradável nem se deixa atrair pela agradável. (18.10)
Nem é capaz o mortal de renunciar completamente aos atos:
o renunciante ao fruto do ato é que se torna um renunciante. (18.11)
(...)
O conhecimento, o conhecível e o conhecedor são o estímulo triplo à ação;
o instrumento, a ação e o agente são o tríplice agregador da ação. (18.18)
(...)
Um ação dita sāttvika quando obrigatória, isenta de apego,
cumprida sem ódio ou desejo por alguém não motivado pelo fruto. (18.23)
(...)
O agente livre de apego, que não fala sobre si, dotado de firmeza e
cuidado, não movido pelo sucesso ou insucesso, é dito sāttvika. (18.26)
(...)
Melhor a própria ação sem qualidade que a ação de outro muito bem feita.
Quem cumpre o karma determinado por sua própria natureza não comete erro. (18.47)
Não seja abandonada, Kaunteya, a ação dada pelo nascimento, mesmo com erros.
Todos os resultados estão cercados de erros, como o fogo pela fumaça. (18.48)
A buddhi livre de todo apego, o ātman dominado, o desejo dispensado –
Com renúncia (saṃnyāsa) ele chega à suprema naiṣkarmyasiddhi60. (18.49)
(...)
Kṛṣṇa relembra a mesma obrigação de kṣatriya a Arjuna (18.47), como foi apresentado
no capítulo 3 (3.35). Se os seres devem seguir o seu dharma, então, não há razão para duvidar
nem hesitar em seguir sua prakṛti de acordo com seu guṇa.
Aurobindo afirma que o jīva (“espírito individual”) é, num contexto de auto expressão,
uma porção do puruṣottama (“Personalidade Suprema”) e que a lei da ação de cada indivíduo
determinado pelo svabhāva (“natureza própria para cada ser”) é nossa reta lei, na qual deve
ser auto lapidado e trabalhado, enfim, é o nosso svadharma (AUROBINDO, 1995, 269).
59
kāmya = “desejo”.
60
naiṣkarmyasiddhi = “perfeição da supressão do ato / perfeição da ação transcendente”.
82
A ação que, ligada a ti por nascimento, tu te recusares a fazer por causa de uma alucinação,
Kauteya, tu a cumprirás mesmo contra tua vontade. (18.60)
(...)
Abandonando todos os dharma, procura o único refúgio em mim –
eu te libertarei de todos os teus erros, não te inquietes. (18.66)
(...)
Arjuna disse:
Minha ilusão se foi, obtida a memória graças a ti, Acyuta;
estou firme, minhas dúvidas se foram. Cumprirei tua palavra. (18.73)
É por esse motivo que Kṛṣṇa se revela diante de Arjuna. É preciso conhecer o modelo
a ser seguido. Por isso Kṛṣṇa afirma que é preciso que conheça quem é e como age o Supremo.
Deve compreender tanto a essência da divindade como seus distintos modos de manifestação.
Condenado a agir, o homem necessita cumprir seu dharma, e nesse caso, cumprir como dever,
seguindo cada qual adequado à sua situação distinta. É dessa forma que o homem cumpre seu
papel na história atribuído a sua própria condição.
Fig. 38
Kṛṣṇa e Arjuna em Kurukṣetra
Isso equivale a dizer que Vishnu, na qualidade de ser supremo, é a realidade última; por
conseguinte, governa tanto a produção como a destruição dos mundos. Está além do bem e do
mal, como o estão, aliás, todos os deuses. (...) O Mahabharata, no entanto – mais exatamente,
em primeiro lugar, a bhagavadgita –, a torna acessível, e portanto popular, em todos os níveis
da sociedade indiana. (...) Desse ponto de vista, o Mahabharata pode ser considerado a pedra
angular do hinduísmo. (ELIADE, 2011, 210-211)
83
De acordo com a concepção hindu, a entrada de Deus na luta do Universo não significa a única
e assombrosa entrada da essência transcendental no tumulto das coisas mundanas (...), mas um
evento rítmico, conforme à pulsação das idades do mundo. O salvador desce como contrapeso
as forças do mal durante o decurso de cada declínio cíclico dos acontecimentos mundanos.
(ZIMMER, 1986, 279)
A rigor deveríamos reservar o termo símbolo para o caso dos símbolos que prolongam uma
hierofania ou que constituem, eles próprios, uma “revelação” inexprimível de outra forma
mágico-religiosa (rito, mito, forma divina). Em sentido amplo, no entanto, tudo pode ser um
símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo (...). O vocabulário corrente da etnologia, da
história das religiões e da filosofia admite os dois sentidos da palavra “símbolo” e (...) os dois
sentidos apoiam-se na experiência mágico-religiosa de toda a humanidade. (ELIADE, 2010b,
365)
Os símbolos têm como uma de suas funções remeterem o homem à sua identificação
por meio de uma linguagem, de forma que eles estejam e sejam acessíveis à maior parte de
uma determinada sociedade. Seja essa linguagem inserida num contexto histórico ou psíquico,
o diálogo entre Kṛṣṇa e Arjuna representa a comunicação que há entre um indivíduo e seu
universo particular, e a comunicação com a sociedade em que cada um faz parte. Assim,
Kṛṣṇa e Arjuna não são indivíduos particulares, mas sim um sujeito e seu universo próprio.
84
Esse simbolismo, seja de forma parcial ou total, é remetido através de matáforas a uma
experiência única num aspecto religioso e sagrado, pois a interpretação de cada um é remetida
também a uma realidade individual, realidade esta de forma transcendente, na qual ultrapassa
ou até mesmo anula os limites da realidade concreta. Segundo Eliade, “(...) todo simbolismo
aspira a integrar e a unificar o maior número possível de zonas e de setores da experiência
antropocósmica, (...) todo o símbolo tende a identificar a si próprio o maior número possível
de objetos, de situações e de modalidades” (ELIADE, 2010a, 371).
Fig. 39
Na parte inferior, a figura central é Yudhiṣṭhira; as duas figuras à sua esquerda são Bhīma e Arjuna; os gêmeos
Nakula e Shadeva estão à sua direita; Draupadī, a esposa dos cinco, encontra-se à direita de todos. Acima deles,
Kṛṣṇa envolvo por uma serpente – Templo de Desavatar, em Deogarh, Índia.
Duryodhana (que significa “aquele que é difícil de lutar contra”, “difícil de conquistar”
ou “difícil de ser vencido”) é o mais velho dos Kaurava. Dotado de grande força física e de
habilidade de grande guerreiro, sua principal arma era o manuseio do bastão. Ele é a
encarnação de Kali, a deusa do mal. Seu irmão Duḥśāsana (“aquele que é difícil de destruir”)
era igualmente cruel e foi o responsável pela humilhação que Draupadī sofreu na frente de
todos da corte após Yudhiṣṭhira perdê-la no jogo de dados (Livro II). Duryodhana representa
o egoísmo humano. Não é motivado a ser o filho perfeito tampouco se importa com a família.
É guiado por uma força da qual nenhum membro da família consegue controlá-lo. Por isso,
aqueles que estão ao seu redor são arrastados para a guerra. Ele é o símbolo daqueles que são
autoconfiantes em demasia. Ele se recusa a mostrar qualquer fraqueza; nem mesmo aceita a se
submeter às exigências de seus primos quando estes querem reaver suas propriedades após o
tempo de exílio.
A atitude de Duryodhana provoca oposição daqueles que estão próximos a ele,
principalmente de seu pai Dhṛtarāṣṭra. Seu capricho é fortemente criticado por ignorar os
laços familiares e é inclusive acusado de ser o “assassino da família” devido a este egoísmo e
ganância. Ele nem mesmo se preocupa em levar a família à destruição. Isso o torna o
86
verdadeiro vilão, o lado obscuro que leva um grupo às ruínas. Ele não só, portanto, representa
um rei mau, ele é também é o mal, como analisa Angelika Malinar (MALINAR, 2007, 45).
Ser o rei das terras que ele tanto demanda faz dele alguém que representa a perda do
autocontrole, portanto aquele que não sabe seguir os ensinamentos do Sāṃkhya-yoga. Esta
perda de Duryodhana desclassifica-o de governar um reino. Mas ele, de certa forma, é um
cumpridor de seu dever como kṣatriya – não ceder e lutar pelo seu status. Um dos principais
deveres de um guerreiro é jamais se submeter a alguém e nisso, ambiguamente, Duryodhana é
fiel. Duryodhana, ressalta Vaidya, possui de certa forma seu próprio encanto (VAIDYA, 1904,
51), por ele ser fiel à suas determinações e ambições.
Finalmente, há o Karṇa, filho bastardo de Kuntī, portanto meio-irmão dos Pāṇḍava.
Kuntī, ao gerar Karṇa com o deus do Sol, abandona seu filho num rio e só o reencontra anos
mais tarde. Karṇa é sombrio e amargo, mas dotado de uma incrível habilidade bélica, que se
equipara a de Arjuna. Apesar de ser um Pāṇḍava, torna-se aliado de Kaurava.
As ações dos dois grupos de irmão são evidenciadas não dentro exclusivamente do
entorno das disputas de reino. As rivalidades foram desencadeadas devido às ações de outros
personagens também. Podem estes a princípio parecerem secundários, mas sem eles a
narrativa não teria seguido em frente. Dhṛtarāṣṭra é um rei frágil, mas sempre com tendência a
agir corretamente. No entanto, é facilmente persuadido pelo mal. Por ele ter dividido o reino
em duas partes, foi desencadeada a principal fissura entre os dois clãs. Apesar de ser cego, ou
talvez justamente por sê-lo assim, observa as ações dos irmãos Pāṇḍava e dos irmãos Kaurava
à distância através de seu mentor e narrador Saṃjaya. Yudhiṣṭhira, Bhīma, Arjuna, Karṇa,
Draupadī, Droṇa, Bhīṣma e Kṛṣṇa são os modelos de virtude devido às suas ações e
determinações, mas todos eles, sem exceção, possuem fraquezas e cometem erros.
Na cultura hindu, as orações feitas aos deuses como Indra personificava o sacrifício no
qual tinha como objetivo, entre vários, manter o rta, ou seja, a força que mantinha a ordem
entre o universo cósmico e o homem. Os hindus creem que as manifestações do divino sejam
bastante abundantes. Nota-se esse fato pelas inúmeras divindades postas em templos e altares
domésticos. Essa crença acabou por resultar em numerosas manifestações em forma e figuras
variadas, seja ela em forma de animal ou homem / mulher, ou combinação parte animal, parte
humano. A maioria dos hindus acredita que essas manifestações surgem de tempos em tempos
na Terra no intuito de proteger o bem e destruir o que quer que seja que obstrua a harmonia
87
cósmica. É também fato que muitos hindus acreditam que todas as manifestações divinas
provêm de um único Ser supremo.
Em sânscrito, a palavra murti significa “forma” ou “encarnação”. São as “imagens”
que os hindus expõem em formato concreto para que possam cultuar suas divindades em
templos ou lares, apesar de que muitas vezes creem que não se deve impor as ideias humanas
que deus tenha gênero ou número. Assim, durante os rituais, para alguns hindus, mesmo o
deus personificado deixa por alguns instantes de ser uma matéria sólida e concreta para se
tornar algo além de um símbolo. É ele o Brahman, aquele que está além da compreensão
racional humana.
Embora os Upanixades suponham que brahman está para além da compreensão humana, os
textos chamados Puranas (“Antigas [compilações]”) afirmam que esta entidade divina assume
uma forma e um nome para tornar-se acessível à humanidade – e por isso os hindus referem-se
ao ser supremo como sendo ao mesmo tempo nirguna (“sem atributos”) e saguna (“com
atributos”, tais como graça e misericórica). Há textos que identificam o ser supremo de
diversas maneiras como Vishnu (“Onipresente”), Shiva (“Auspicioso”) ou a Deusa é uma de
suas muitas manifestações, como Shakti (“Energia”), Durga e Kali (NARAYANAN, 2009, 24).
O sentido desses deuses faz parte de um caráter específico do hindu, cujo contexto
expressado tanto nos textos quanto nos sentimentos e consciência dos indianos estão além da
aparência fenomenal. Essas anatomias simbólicas em sua natureza estão também em māyā,
mas não em um aspecto necessariamente negativo. Possuem, acima de tudo, um aspecto
qualitativo para expressar essa consciência e vivência do homem hindu.
Nas palavras de Gandhi, Kṛṣṇa é a personificação do verdadeiro conhecimento e da
perfeição. É uma perfeição imaginária, mas no Hinduísmo a encarnação é atribuída àqueles
que realizaram algum feito extraordinário à humanidade. Por isso Kṛṣṇa ensina a Arjuna a
segui-lo; a sua realização está em imitá-lo, pois segundo Bhagavadgītā, Kṛṣṇa é a própria
imagem da perfeição.
Em Mahābhārata as divindades estão presentes em toda a narrativa. Mas elas não são
uma presença inacessível, sem corpo, sem imagem. Elas se personificam, interagem com os
personagens, mas agem com o único propósito de mostrar, por vezes de forma aparentemente
cruel, os erros que os homens não percebem. Dentre os deuses hindus, Indra sem dúvida
ocupa um lugar permanente de honra em Mahābhārata. Era o executante dos atos da batalha,
combatia as trevas e matava os demônios.
No entanto, em uma das passagens de Mahābhārata, no Livro V (Udyogaparva),
vemos qual o papel de um deus. No Livro, Dhṛtarāṣṭra argumenta que os Pāṇḍava são
invencíveis porque os deuses estão do lado deles e que por isso Duryodhana estaria em
posição de desvantagem. Duryodhana não aceita esta teoria do “apoio divino” apontando para
88
isso uma falha de cunho lógico nas palavras de seu pai. Duryodhana rejeita sob a alegação de
que se deuses são deuses, é porque eles representam os valores da renúncia e deveriam estar
desapegados às emoções humanas; além disso, a divindade deveria estar conectada ao poder
do sacrifício.
Assim, os deuses não poderiam tomar o “terceiro partido” num conflito humano
porque os poderes deles são baseados em seus desapegos a todas as obrigações sociais e
inclinações pessoais. Eles possuem seus poderes desde que eles não os usem para propósitos
mundanos. No entanto, por outro lado, o poder dos deuses está restringido às dependências
ritualísticas porque ele é chamado durante o sacrifício executado por qualquer sacerdote que
conheça corretamente as invocações. Assim, Duryodhana se autoproclama o senhor de todos
os seres e que é capaz de lidar com problemas humanos tanto quanto um deus, e as divindades,
ao tomar partido entre os dois clãs, perde seu status divino, segundo argumento de
Duryodhana.
Kurukṣetra toma como metáfora tanto o corpo quanto a alma humana, uma batalha
entre os impulsos do bem e do mal. Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu são respectivamente “a escuridão” e
“a claridade”. A batalha seria em essência um conflito entre os filhos da escuridão, as trevas
(filhos de rei cego) com a luz (filhos de rei com olhos atentos). Mas há algo muito mais
elaborado nessa epopeia. Há “um jogo simbólico dos brâmanes, por quem foi concebida a
biografia fisicamente impossível de Vyāsa” (CAMPBELL, 1994, 263). Aparentemente a luz
deveria ser o oposto das trevas, mas nessa versão indiana não há o melhor ou o pior. Existem
ambos que devem ser equilibrados e refinados, estando, portanto, fora do patamar de um juízo
de valor. Vyāsa, filho de Satyavatī,interpreta assim, o papel das forças ambivalentes que não
tem como finalidade última determinar quem triunfará.
As metáforas dessa dualidade estão representadas já no início da epopeia, antes
mesmo da guerra efetivamente tomar forma. As viúvas Ambika e Ambalika, respectivamente
mães de Dhṛtarāṣṭra e de Pāṇḍu, já se mostraram serem a escuridão e a luz, mas ambas são
complementares no que concerne a fraqueza humana. O que as metáforas representam são o
desencadeamento e envolvimento do mundo ilusório de māyā.
(...) a figura da rainha Satyavati, que nesta lenda representa toda a ironia do jogo de māyā, é a
mãe tanto de Vyasa quanto dos dois jovens reis que morreram. O mistério cósmico de māyā
tem três poderes. O primeiro é o de obscurecer, tornar oculto brahman; o segundo, o de
89
O poema, de fato, representa a batalha entre o bem e o mal, ou seja, entre deva (deus) e
āsura (demônio), entre dharma e adharma. Dessa destruição de grandeza cósmica ressurge
um mundo novo simbolizado pelo retorno de Parīkṣit, neto de Arjuna, quando esse havia
morrido pelo impacto que sua mãe Uttarā recebeu em seu ventre (Livro 10).
Essa grande batalha de Kurukṣetra foi decidida por Brahmā, o deus da criação. Seu
propósito era aliviar a Terra de uma crescente multiplicação da população e porque eles já não
mais se recordavam de seu dharma. Assim, Brahmā pede aos deuses e aos demônios que
surgissem entre os homens para provocarem uma guerra escatológica. Mahābhārata descreve
portanto, o fim de uma era e de um pralaya (fim do mundo) para que possa emergir um
mundo novo. Yudhiṣṭhira e Parīkṣit, neto de Arjuna, seriam os representantes deste novo
reino. Essa criação e destruição ordenada por Brahmā simboliza o fim de uma idade cósmica,
uma conclusão do ciclo de uma era mítica, o yuga.
90
A estéril divisão do mundo em matéria e espírito resulta de uma abstração do intelecto e não
deve ser projetada sobre a realidade porque é da natureza da mente estabelecer diferenças,
formular definições e discriminar. Declarar que “há distinções” é apenas constatar a atuação de
um intelecto que apreende. Os pares de opostos percebidos refletem não a natureza das coisas,
mas a da mente que os percebe. Daí que o pensamento e o próprio intelecto têm de ser
transcendidos se o que se quer é alcançar a verdadeira realidade (ZIMMER, 1986, 273).
a Indra que o leve onde seus familiares estão. Não abandona seus familiares, mesmo eles
estando em agonia na escuridão do naraka, preferindo isto às maravilhas do svarga, sendo
esta a sua última provação.
Podemos dizer que, de forma ampla, Yudhiṣṭhira é aquele que através da longa
epopeia de Mahābhārata representa o que é o discernimento, o que é o cumprimento de um
dharma e consequentemente a luta para alcançar o bem-estar, e que Arjuna é aquele que,
representado pelo diálogo com Kṛṣṇa, mostra-nos essas mesmas buscas na passagem de
Bhagavadgītā.
Dharma deriva da raiz DHṚ “colocar, montar, dar forma”; com o sentido de “forma, fôrma,
modelo”, designa o conjunto de direitos e deveres a serem seguidos por todos aqueles que
pertencem a um determinado grupo social ou recortado na sociedade. Embora incluam
constrições e permissões coletivas, cada sujeito – conforme sua profissão, seu sexo, sua idade
etc. – tem suas particularidades a cumprir. Costuma-se traduzir a palavra por Norma, Lei,
Direito, Justiça, Costume, Tradição, Moral, Piedade, Religião. É tudo isso junto e mais alguma
coisa. Seu contrário é o a-dharma. Os dois conceitos fazem parte do fundo temático de todo o
Mahābhārata (FONSECA, 2009, 36).
A palavra dharma também significa “suster, sustentar, carregar, o que mantém unido
ou erguido” (ZIMMER, 1986, 128). Ou ainda “dever, retidão, ética” (NARAYANAN, 2009,
50). Como podemos notar, não há uma única tradução que possa definir com precisão este
termo. Este subcapítulo, portanto, não tem como objetivo mostrar a distinção entre os termos
“ética” e “moral”, pois dharma não se limita somente ao contexto da lei e do costume
construídos por um grupo de sociedade, como religião, modos de comportamento, deveres
sociais, virtude, mérito moral ou justiça. É tudo isso, mas inclui-setambém noções sobre
qualidade, caráter, função social e padrão de reta conduta.
Traçaremos aqui uma ideia sobre o dharma hindu, ou seja, uma ideia sobre uma “lei”
no contexto hindu, aquele que perdura enquanto o universo existir e que sucumbe no instante
em que o mundo extinguir. O dharma de um indivíduo é a manifestação de um ser enquanto
este é (sat). Isso significa que seria impensável ser um hindu sem um dharma. Sat
literalmente significa “ente ou existente”, ou também “verdadeiro, essencial, real”. Sat, enfim,
significa “bom, virtuoso, certo, adequado, o Bem” (ZIMMER, 1986, 130) e o próprio nome
da religião hindu Sanatanadharma significa dharma eterno ou universal, como já vimos.
Dharma, obrigações religiosas e sociais do bom homem hindu, segundo ordem
cósmica, é parte essencial do Hinduísmo. Como vimos no capítulo I dessa pesquisa, seu
93
conceito tem origem nos textos do Ṛgveda, no qual inicialmente usava-se a terminologia ṛta
para designar essa ordem. O tratado sobre dharma encontra-se fundamentalmente nos textos
de Manusmṛti, importante fonte sobre as leis e costumes hindus. De acordo com esses textos,
o varṇāśramadharma (capítulo I) enaltecia as obrigações (dharma) do homem hindu de
acordo com seu grupo (varṇā) e seu estágio de vida (āśrama).
O Manusmṛti tem uma forte ligação com o Mahābhārata, pois Mahābhārata descreve
dois pontos importantes do pensamento hindu: a luta entre o bem e o mal, e o dharma e
adharma, mas não só no patamar individual. O confronto desses opostos adquire uma
importância de proporção universal, pois a percepção de ambos rege tanto a vida cósmica
quanto todo o equilíbrio da existência social e pessoal. Quando o dharma se desequilibra, o
universo também se desequilibra; ele entra em caos. É o que vimos no capítulo I quando
mencionamos a degeneração do yuga. O homem, então, segundo o pensamento hindu, é o
responsável pela harmonia e desarmonia da existência, e também pela manutenção do
universo. Ao se esquecer de seu dharma (como estava prestes a acontecer com Arjuna no
meio da batalha), surge uma divindade (no caso, Viṣṇu reencarnado como Kṛṣṇa) para fazer
com que os homens se recordem dos seus verdadeiros papéis.
Nesse sistema (de castas), quem recebe as mais altas posições e honras não é o rei ou o
milionário e sim o sábio, o santo, o mahātma (que literalmente significa “magnânimo”:
Espírito ou Eu [ātman] grande [mahānt])”, (...) pois é dele que deriva toda a ordem da
sociedade. O rei, a bem dizer, é apenas o administrador dessa ordem; os agricultores e os
mercadores fornecem os materiais que dão corpo à forma; e os trabalhadores (śūdra) são
aqueles que contribuem com o necessário labor físico. Assim, todos estão harmonicamente
concatenados para revelar, preservar e experimentar a grande imagem divina. Dharma é a
doutrina dos deveres e dos direitos de cada indivíduo numa sociedade ideal e, como tal, é a lei
ou espelho de toda ação moral (ZIMMER, 1986, 41).
Brahmā cria, Viṣṇu preserva e Śiva destrói. Estes são os princípios básicos desses
deuses. Mas são os homens os principais responsáveis pela destruição do universo (destruição
esta diferente da destruição de Śiva). Essas três divindades observam de yuga em yuga o
comportamento dos homens. Ao perceberem que o dharma individual está entrando em
desequilíbrio, os deuses intervêm e “engolem” o universo de forma que ultrapassa a realidade
humana.
O mal em Bhagavadgītā se refere à carência de discernimento e ao excesso de avidyā
(“ignorância”), algo que não havia durante o Satyayuga. Não é um mal relacionado à
“maldade” que atinge fatores externos ao homem. Diferentemente de outros animais que
matam ou ferem por questões de sobrevivência e de preservação de sua espécie, a natureza do
homem não limita sua agressividade somente nesses itens. Sua agressão ultrapassa esse
94
campo, pois o orgulho e a ganância são partes inerentes da sua sobrevivência. Apesar dos
requisitos do dharma de cada indivíduo serem bastante claros e inflexíveis, o homem entra em
conflito com os seus deveres por ter um discernimento distinto do resto dos animais. O
homem quer saber o porquê dos acontecimentos de sua vida. Arjuna quer saber o motivo de
todo os eventos que ele está vivenciando. Esse questionamento leva-o a angústia, a um
“vacilo”, algo que não se nota nos animais por terem eles uma espontaneidade infalível,
observa Jean Delumeau (DELUMEAU, 2002, 350).
Mahābhārata narra esse esquecimento do homem, a falta de discernimento e a
ignorância como principal causa do Kaliyuga. Era preciso que os deuses interviessem
novamente no ciclo cósmico e assumissem seus avatāra para que o dharma pudesse ser
restaurado. O mokṣa e o sannyāsa, respectivamente a libertação e a renúncia, não foram feitos
para qualquer indivíduo, pois nem todos conseguem chegar a essa etapa, como vimos no
capítulo I. Mas são dois fatores que levam o homem a saírem do ciclo de saṃsāra. O homem
é uma engrenagem essencial para o funcionamento harmonioso do universo. Mas quando ele
começa a pensar como indivíduo e não como coletivo, acaba desencadeando esse
desmoronamento caótico do equilíbrio. O bem-estar não pode ter um fim individual nem
tampouco isolado. Kṛṣṇa bem afirma isso a Arjuna: a não ação dele e a sua dúvida será a ruína
de seu dharma.
Alf Hiltebeitel aponta algumas possibilidades sobre o dharma como sendo o foco
central do tema de Bhagavadgītā (HILTEBEITEL, 2010, 118): o primeiro e o mais simples é
considerar a euforia descrita por Arjuna sobre Kṛṣṇa como “o protetor do dharma eterno”. O
capítulo 11 revela esse mérito, mostrando ser o auge de Bhagavadgītā, quando Kṛṣṇa revela
suas diversas formas (Bhagavadgītā 11.5). O segundo ponto está no capítulo 18 quando Kṛṣṇa
ordena Arjuna a abandonar todos os dharma e a procurar Kṛṣṇa como único refúgio para que
assim consiga se libertar dos erros (Bhagavadgītā 18.66). Hiltebeitel afirma que no capítulo 9
há também um dos momentos em que Kṛṣṇa fala sobre dharma, no sentido de seu
ensinamento ou doutrina, quando Kṛṣṇa afirma (retomando parte do capítulo II desta
dissertação):
O Venerável disse:
Para ti, tão cândido, esse jñâna secretíssimo vou expor,
acompanhado do vijñāna – conhecendo-o te livrarás do inauspicioso. (9.1)
É a ciência régia, o segredo régio, a suprema purificação;
vinda com evidência, segundo o dharma, prazerosa de fazer, imperecível. (9.2)
Os homens que não põem śraddhā nessa doutrina-de-vida, ó Paraṃtapa,
não me alcançando caem nas trilhas do saṃsāra e da mṛtyu. (9.3)
95
Seguindo sua doutrina, portanto, Kṛṣṇa assegura a Arjuna que não cairá no submundo,
aqui interpretado como a prisão dentro do ciclo de saṃsāra e da eterna repetição de morte
(mṛtyu). Dos capítulos 12 a 16, Kṛṣṇa faz uma pausa para dizer a Arjuna alguma das mais
profundas implicações sobre Bhagavadgītā. Os capítulos 12 e 16 podem ser lidos de forma
contínua como uma discussão acerca da virtude e do vício inseridos nas pessoas de diferentes
naturezas. Kṛṣṇa, assim, descreve quem são as pessoas caras e quais ele considera pessoas de
erro. Os capítulos 13 e 15 são os que apresentam o campo de batalha como metáfora de nosso
corpo e que, portanto, é a morada do nosso dharma. É nesse kṣetra que tanto cultivamos
quanto destruímos o dharma. E é no capítulo 14 que Kṛṣṇa indica como atingir o verdadeiro
dharma e, portanto, consequentemente, a verdadeira felicidade:
O Venerável disse:
Luz, atividade e alucinação, Pāṇḍava:
presentes, não as odeia; ausentes, por elas não anseia. (14.22)
Quem, completamente indiferente, não é perturbado pelos guṇa;
quem, dizendo “os guṇa estão em processo”, fica à parte, imóvel; (14.23)
quem, o mesmo na alegria e na tristeza, em paz consigo, argila pedra ouro iguais,
o mesmo o agradável e o desagradável, firme, o mesmo a censura e o elogio, (14.24)
o mesmo na honra e na desonra, o mesmo para amigos e inimigos,
abandonado todo empreendimento – esse, dizem, ultrapassou os guṇa. (14.25)
E quem se serve, sem sair do caminho, com um yoga de devoção,
esse, ultrapassados os guṇa, se integra, pronto, no brahman. (14.26)
Porque eu o suporte do brahman, do imortal e do imperecível,
Da estrada do dharma e da felicidade final. (14.27)
Distintamente da ideia de uma reta conduta como nos é concebido no ocidente (não
matar, não mentir, não roubar, não agredir etc.), a ética hindu inserida em Bhagavadgītā nos
remete a um outro âmbito: a do cumprimento do dharma. A princípio, parece impensável
vermos alguém ferir e matar o próximo, como ocorre desde o princípio na narrativa de
Mahābhārata (a começar pela deusa Gaṅgā, que mata seus filhos por estar presa a uma
maldição). No entanto, cumprir uma tarefa e seguir rigidamente o seu dharma é em si ser
ético no Hinduísmo.
A ética hindu não deve ser limitada somente ao preceito da primeira ordem moral no
que concerne sobre as ações obrigatórias e proibidas construídas e impostas por uma
sociedade. Tais ensinamentos da ética hindu já aparecem no Dharmaśāstra e em outros textos
96
hindus. Ética hindu trata, segundo Roy W. Perrett, além desse primeiro preceito, basicamente
sobre duas outras questões: “o que devemos fazer?” e “por que devemos fazer isso?”
(PERRETT, 1998, 1). Deve-se em última instância, portanto, analisar sobre o que significa
ser correto e o que significa agir bem dentro do Hinduísmo e não em outro contexto. É nesse
contexto que Arjuna pergunta: “por que devo fazer isso?” e “o que devo fazer para seguir em
frente?”.
Perrett observa em primeiro lugar, que a justificativa do svadharma não precisa
depender exclusivamente na passagem de Bhagavadgītā. Ou seja, ele afirma que é verdade
que os autores do Hinduísmo clássico sustentam que dharma é comentado inicialmente e
essencialmente nos śruti (o que foi “revelado”), particularmente os Veda. Mas é sabido
também que mesmo todos os textos védicos não são suficientemente ricos em explicitar a
constituição adequada da ciência do dharma. Por isso é preciso que o sentido de dharma seja
complementado pelo corpo dos textos do smṛti (o que foi “memorizado”), ou seja, o grupo de
textos dos quais Bhagavadgītā pertence. Além disso, a ética hindu está relacionada
diretamente com outro conceito: o de responsabilidade. Embora o indivíduo seja o agente
intencional das ações, ele não é necessariamente responsável moralmente por elas. Em outras
palavras, embora Arjuna seja o condutor da ação, ele não é responsável pela sua ação e suas
consequências, desassociando-as, dessa forma, de sua responsabilidade. O que Bhagavadgītā
ensina é o caminho dessa dissociação das ações. Não se deve conduzir as ações associando-as
ao fim (ao fruto) delas. Deve-se, portanto, desresponsabilizar as ações éticas dos resultados
finais. Bhagavadgītā mostra que o corpo que age não é na realidade “meu” ou “eu”, ou seja,
as ações que fluem a partir dele não pertencem em última instância ao indivíduo:
Isso significa que é um engano crer que eu sou o meu corpo da ação. Se levar a
interpretação por esse caminho, significa que o indivíduo assume a responsabilidade moral
das ações corporais, o que seria oposto ao que Kṛṣṇa quer ensinar. Esse dualismo prakṛti
61
manas = “pensar”, “mente”, “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos cinco
sentidos”.
97
dos resultados. A morte, a vida, o svarga, o naraka são, em última instância, ilusórios: é o véu
de māyā que a ignorância humana insiste em usar. Considerar os Kaurava como inimigo, os
corpos mutilados como crueldade, angustiar-se pelas mortes de amigos e familiares, tudo isso
é resultado de māyā. Ao se livrar dela, o homem consegue discernir e perceber o que é afinal
um homem ético e também perceber que esse discernimento faz parte da condição humana.
2. A condição humana
(“atributos”) dos quais como essas coisas são conhecidas, reconhecidas e expostas. É um dos
principais pontos que Kṛṣṇa quer ensinar a Arjuna. Não é um conceito e sim um viver
segundo percepção dos atributos. É dessa forma que as discussões sobre o dharma e a verdade
procedem, enumerando esses lakṣaṇa da forma como eles são conhecidos ou como se
tornaram conhecidos.
A condição humana está na complexidade que existe quando discutimos sobre os
atributos e a sua relação com a questão de como eles se refletem no relacionamento com o seu
ātman e com a presença do outro. Diante desse relacionamento, de que forma uma pessoa
alcançaria sua meta final, o mokṣa e como seria, afinal, o relacionamento de um indivíduo
com a sua liberdade? Primeiramente, é necessário que se reconheça uma linha divisória que
determina onde começa e onde termina o que se compreende por liberdade e isso, de certa
forma, é bastante arbitrária. A complexidade da vida não nos fornece uma resposta clara e
definitiva. O que Mahābhārata nos sugere é que essa linha divisória e os limites não podem
ser quantificados porque a própria vida não se limita em conceitos ou linhas divisórias.
Badrinath exemplifica afirmando que a verdade, por exemplo, não é um conceito. Ela é, na
realidade, um entendimento.
O dharma, a verdade, a liberdade, a dor, e outros lakṣaṇa, nenhum deles pode existir
isoladamente como um simples conceito ou ideia. Qualquer um deles precisa na realidade de
um outro para poder existir. Esse relacionamento de codependência é que faz existir o
autoconhecimento e o conhecimento do outro, e isso é, enfim, parte integrante da condição
humana apresentada em Mahābhārata.
Além disso, Mahābhārata nos mostra que vida é para ser compreendida e vivida,
mesmo que paradoxalmente, pois assim é a vida humana: “a realidade é composta por
oposições”, afirma Badrinath (BADRINATH, 2007, 16). Para se equilibrar um lado, é
necessário que exista um outro para contrabalanceá-lo. Quando Dhṛtarāṣṭra propõe a divisão
de reinado igualitariamente entre os irmãos Kaurava e os Pāṇḍava, metaforicamente, o
equilíbrio entre o bem e o mal, Duryodhana, não se contentando, quer assumir todo o reinado
de Kurukṣetra quebrando assim, a ambivalência do universo. Há, acima de tudo, o paradoxo
da própria vida, que consiste na existência da morte, biologicamente, emocionalmente e
espiritualmente. Um não existe sem o outro. Por isso a morte foi criada. As manifestações dos
opostos são simultâneas e não consequências. O bem e o mal caminham juntos, assim como o
prazer e a dor.
100
“O corpo é dor porque é o lugar da dor; os sentidos, os objetos [dos sentidos] e as percepções
são sofrimentos porque conduzem ao sofrimento; o próprio prazer é sofrimento porque é
seguido de sofrimento” (ANIRUDHA, apud ELIADE, 2011, 50).
Gautama Buddha afirmava que tudo era dor. Ela é parte da experiência humana e o
sofrimento é parte da condição humana. Isso não implica necessariamente que essa dor tenha
um cunho pessimista. Ela faz parte do processo para se chegar ao mokṣa. Devido também a
esse princípio é que os sábios e os ascetas hindus retiram-se do mundo, isolando-se das
pessoas, praticando o desapego tanto aos bens materiais quanto às ambições. É a certeza de
que pela dor e com a dor o homem transcenderá sua condição. “Por outro lado, o homem não
é o único que sofre; a dor é uma necessidade cósmica” (ELIADE, 2011, 50). Mas, ao mesmo
tempo que ela é estimuladora, é também um fator impeditivo das ações.
Por isso Kṛṣṇa diz a Arjuna que a dor por ele sentida não deve ser angustiante a ponto
de fazê-lo descumprir seu dharma. Ela é necessária por impulsionar a propiciar o andamento
do curso do universo. E para que Arjuna consiga obter a sua superação e consequente
salvação, ele deve seguir as palavras de Kṛṣṇa e nada mais. “A ‘salvação’ implica a
transcendência da condição humana” (ELIADE, 2011, 51). Arjuna em seu momento de
tristeza desabafa:
como usualmente é caracterizado. Mas ser um sannyāsa significa a busca pelo estado do
conhecimento da verdadeira posição em que se encontram os atributos humanos na sua
natureza.
Existe em Mahābhārata muito mais passagens sobre dor, raiva, ódio, traição e
vingança do que amizade, ternura e amor. O que há é mais amor por violência do que a
vontade de libertar-se da violência. A ganância de Duryodhana, o ódio de Karṇa, a força bruta
de Bhīma, o orgulho de Yudhiṣṭhira e a covardia de Arjuna são todos forças destruidoras que
Mahābhārata constantemente narra como condição humana. Os personagens, na realidade,
ferem-se antes mesmo de ferirem os outros. Não é um autoflagelo. Essa ferida, nascida seja
do ódio ou da covardia, corroe por dentro todos aqueles que nutrem a vaidade. Mas também é
verdadeiro afirmar que essa ferida é a força motriz dos personagens da epopeia.
Vyāsa conta a Mṛtyu (“Morte”) que ela foi criada por Brahmā para aliviar a Terra do
peso intolerável que ela passou a carregar pelo crescente aumento descontrolado da população
dos seres vivos. Mṛtyu, portanto, veio a esse mundo com a tarefa de devorar esses seres. Mas
Mṛtyu não tolera essa dor, pois não quer ser considerada como assassina, e quando ela
lamenta e chora, Brahmā é que colhe suas lágrimas. Ela exige que Brahmā lhe dê explicação
sobre seu nascimento, pois para ela seria insustentável carregar o medo e o ódio que os filhos,
os parentes, os amigos e outros membros participantes da batalha teriam dela. Mṛtyu implora
que Brahmā a liberte desse seu dharma.
No entanto, Brahmā explica-lhe o quão importante é a sua presença. Assim, Mṛtyu
obedece às ordens de Brahmā, mas ela o adverte afirmando que a ganância, a raiva, a inveja, o
ciúme, a confusão das percepções, a vergonha, tudo isso devorará aqueles que incorporarem
esses sentimentos antes mesmo de ela agir. Brahmā diz a Mṛtyu que seu sentimento de
lamentação é inútil, pois parte das lágrimas que ele colheu caíram sobre a Terra e elas se
tornarão doenças que nascerão do próprio corpo dos seres vivos. A morte, portanto, será
causada pelo próprio corpo e não pela Mṛtyu. Brahmā, então, diz a ela que dessa forma não
estará cumprindo o adharma. Os homens serão, portanto, responsáveis pela deterioração dos
próprios corpos. Mṛtyu não será a causadora das mortes. Ela apenas trará a morte como
consequência àqueles que não souberam reconhecer e usar os bons atributos e refinar o seu
ātman.
Mahābhārata mostra que cada indivíduo possui um relacionamento com o seu ātman.
Sejam em forma de desejos, ações ou emoções, esse relacionamento possui suas
particularidades tanto no corpo quanto na mente de cada um. Mas esse relacionamento
abrange âmbitos individuais e coletivos. Novamente a morte possui igual peso nesse
102
relacionamento. A dor, a morte, a dor pela morte foram criadas para despertar no homem a
importância dos opostos. Assim, não há motivos para lamentação, pois todos os atributos
relacionados ao prazer são transitórios: a beleza, a juventude, a riqueza, a saúde. Nada é
estável: o acúmulo acaba em destruição, a subida em queda e a vida, em morte. Os esforços
humanos, portanto, são perecíveis. Essas são as razões pelas quais há mais dor do que prazer:
porque todos os objetos do prazer são transitórios; porque mesmo que tudo seja interminável,
o desejo em si criará mais dor do que prazer por ela provocar mais triṣṇā (“sede”), ou seja,
dor; e porque todas as coisas desejadas pelos homens são sementes que dão frutos da dor.
Eliade faz a seguinte colocação sobre a dor universal:
Para que se avalie o papel considerável da Bhagavadgita na história religiosa da Índia, cumpre
evocar as soluções propostas pelo sanquia, pela ioga e pelo budismo. (...) A descoberta da “dor
universal” e do ciclo infinito das reencarnações havia orientado a busca da salvação numa
direção precisa: a libertação devia implicar a recusa de seguir os impulsos da vida e as normas
sociais. (...) Em síntese, a salvação pressupunha um ato de ruptura: a desvinculação do mundo,
lugar de sofrimento e prisão amontoada de escravos (ELIADE, 2011, 216).
Quando Arjuna afirma que a dor resseca todos os seus sentidos, ele inclui, além dos
cinco sentidos físicos (olfato, paladar, tato, audição e visão), o sentido da mente. Ou seja, ele
não consegue nem mais dominar o seu manas (“mente”), tamanho é o seu sofrimento. Só
poderá se livrar dessa dor quando perceber que ela é apenas māyā. Quando o homem esquece-
se do seu ātman torna-se refém e prisioneiro do sofrimento, da dor e do mal. Mas uma vez
desperto, ele consegue obter a sua liberdade.
O homem pode ser tanto amigo quanto inimigo de si mesmo. Segundo Bhagavadgītā,
caso ele siga o caminho das tentações, seu ātman declinará para o mal, tornando-se, assim, o
inimigo de seus próprios interesses. Por outro lado, é dever dele próprio esforçar-se para
erguer-se dessa queda para poder alcançar o patamar do desapego dos prazeres. As dualidades
envolvidas entre amigo/inimigo, conquistador/conquistado, poder de ascenção/declinação
estão presentes nas distinções entre o ātman elevado e o ātman declinado. Somente quando o
ātman elevado domina o ātman declinado é que o homem se torna amigo de si mesmo. O
homem que fracassou na tarefa de dominar suas próprias paixões, prazeres e apegos, este se
tornará seu próprio inimigo. Kṛṣṇa ensina a Arjuna:
103
Assim, somente quando o ātman domina suas tendências inferiores e se eleva para o
plano superior é que ele dominará o mal. Um dos principais meios para conquistar esse nível,
ensina Kṛṣṇa na passagem acima de Bhagavadgītā, é tomando o caminho do yoga, ou seja, o
caminho da meditação que domina ao mesmo tempo o corpo e a mente.
Segundo pensamento indiano, quando o problema do mal aparece, surge na realidade
de ordem prática, ou seja, a afirmação de que tudo é na verdade sofrimento. No entanto, o mal
apresentado em Bhagavadgītā não deve ser interpretado nem tampouco compreendido como
algo que “prejudica o próximo” ou “fere si mesmo” no sentido mais restrito da expressão ou
no sentido do senso comum da palavra. Como vimos anteriormente, ele é tão necessário
quanto a dor. O mal em Bhagavadgītā não é senão o adharma do Hinduísmo, ou seja, o não
cumprimento do dever do homem segundo sua designação. Aquele que não age em
conformidade do seu dever estaria comprometendo não só o curso de sua vida, mas também o
curso existente relacionado com o outro, pois o homem não nasce como um indivíduo isolado.
Ele nasce para cumprir e agir seguindo seu dharma, pois só dessa forma ele estará
contribuindo com o percurso do vasto mundo complexo da humanidade. Mas antes de tudo,
ele precisa dominar o mal que existe em seu ātman.
Kṛṣṇa dialoga com Arjuna ensinando-lhe que através da devoção às palavras dele e
através do desapego às coisas mundanas como medo, dúvida, hesitação e angústia, é que
Arjuna, que alegoricamente representa as nossas próprias dúvidas, alcançará a realização
interna e consequentemente o encontro com seu ātman elevado. Enquanto o homem estiver
afastado do seu dharma ele estará causando o mal tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito
universal; enquanto ele estiver em estado de angústia e hesitação estará enfrentando adharma.
Pāpa, como vimos na introdução do capítulo III, é termo sânscrito que designa o mal
tanto moral (crueldade, vício, perversão etc.) quanto natural (doença, terremoto, tornado etc.),
ou até mesmo culpa (Bhagavadgītā 1.36). Aparece já nos Veda, mas com distinções de
conceito entre ambos (moral e natural), observa Wendy Doniger O’Flaherty. Por vezes é
traduzido também como cometer um pecado62 . Mas segundo pensamento indiano, o pecado é
possível de ser cometido mesmo sem a vontade do pecador. Se, portanto, o mal não é uma
62
“commit a sin” (cf. O’FLAHERTY, 1980, 7)
104
falta voluntariamente cometida pelo homem, então também é verdade que o karma não
resolverá o problema do mal. O mal, a princípio não é o que fazemos; é o que nós não
gostaríamos que faça a nós, afirma O’Flaherty (O’FLAHERTY, 1980, 6-7).
No Livro III de Mahābhārata (3.182)63 Vaiśampāyana, discípulo de Vyāsa, explica
para Yudhiṣṭhira através do sábio Markandeya64 como surge o mal entre os homens:
O senhor dos seres nascidos, ele mesmo surgido antes de todos, criou, para todos
os seres incorporados, corpos que eram imaculados, puros, e obedientes a
impulsos virtuosos, ó mais sábio dos descendentes de Kuru! Os homens antigos
tinham todos os seus desejos realizados, eram dados a modos louváveis de vida,
falavam a verdade, eram religiosos e puros. Todos eram iguais aos deuses,
podiam ascender ao céu à sua vontade, e podiam voltar novamente; e todos
passavam de um lugar para outro à vontade. E eles tinham sua morte e sua vida
também sob seu próprio controle; e eles tinham poucos sofrimentos; não tinham
medo; e tinham seus desejos realizados; e eles estavam livres de incômodos;
podiam visitar os deuses e os santos magnânimos; sabiam de cor todas as regras
virtuosas; eram auto-controlados e livres de inveja. E eles viviam muitos milhares
anos; e tinham muitos milhares de filhos. Então no decorrer do tempo eles vieram
a ser restringidos a andar somente sobre a superfície da terra, dominados por
luxúria e cólera, dependentes para subsistência de mentiras e truques, subjugados
pela cobiça e insensatez. Então aqueles homens pecaminosos, quando
desencarnados, por causa de seus atos injustos e profanos, iam para o inferno de
uma maneira tortuosa. Repetidas vezes eles eram atormentados, e, repetidas
vezes eles começaram a arrastar sua existência miserável neste mundo
admirável. E seus desejos não eram realizados, os objetivos não cumpridos, e seu
conhecimento tornou-se inútil. E seus sentidos estavam paralisados e eles se
tornaram receosos de tudo e a causa dos sofrimentos de outras pessoas. E eles
eram geralmente marcados por atos maus, e nascidos em famílias inferiores; eles
se tornaram maus e afligidos por doenças, e o terror de outros. E eles se tornaram
de vida curta e pecaminosos e eles colhiam os frutos de seus feitos terríveis. E
cobiçando tudo, eles se tornaram ímpios e indiferentes em mente, ó filho de Kunti!
O destino de cada criatura depois da morte é determinado por suas ações neste
mundo. Tu me perguntaste onde este tesouro de ações dos sábios e dos
ignorantes permanece, e onde eles desfrutam dos resultados dos seus atos bons
e maus! Escute às regras sobre este assunto! O homem com seu corpo sutil
original criado por Deus armazena um grande estoque de virtude e vício. Depois
da morte ele abandona seu frágil corpo (exterior) e nasce imediatamente outra vez
em outra ordem de seres. Ele nunca permanece inexistente por um único
momento. Em sua nova vida suas ações o seguem invariavelmente como sombra
e, frutificando, fazem seu destino feliz ou miserável. O homem sábio, por seu
discernimento espiritual, sabe que todas as criaturas estão determinadas a um
destino imutável pelo destruidor e que são incapazes de resistir à fruição de suas
ações em sorte boa ou má. Este, ó Yudhishthira, é o destino de todas as criaturas
mergulhadas em ignorância espiritual. Agora ouça sobre o caminho perfeito
alcançado por homens de percepção espiritual elevada! Tais homens são de
63
Cf. tradução de Eleonora Meier <http://www.shri-yoga-devi.org/textos.html>
64
Markandeya = sábio nascido na família de ṛṣi Bhrigu
105
um peixe (Matsya). Essa inundação não ocorre para punir os homens da sua fraqueza, mas é
simplesmente um evento natural inevitável que deve ocorrer para fazer dessa grande
inundação uma representação do fim de uma era, o yuga. Ela representa, na realidade, uma
grande “lavagem” ou “limpeza” que também é representado nos rituais de purificação. Mas a
inundação, assim como a chama que marca o fim do Kaliyuga, ocorre quando a fraqueza entre
os homens começa a prevalecer. Além disso, o Kaliyuga está quase sempre marcado por uma
superpopulação, o que denota também a necessidade de aliviar o peso através do extermínio
dos homens, seja por uma inundação, seja por uma batalha de grandes proporções.
Viṣṇu destrói o mal aflorado em Kaliyuga para prevenir uma ruptura iminente, uma
descontinuidade entre mal existente nos homens de Kaliyuga e o bem que virá a existir nos
homens de Satyayuga, a Era de Ouro. Kalkin, o último avātara de Viṣṇu, atua para antecipar
o inevitável retorno de Satyayuga, fazendo com que ocorra a natural passagem do mal para o
bem, que acontece no fim de Kaliyuga, assim como ocorre a natural passagem do bem para o
mal no final de Satyayuga. É necessário, portanto, que haja uma fase de transição entre eles.
Por isso, é nomeado ciclo de yuga. Não existe um hiato entre as eras. Quando Viṣṇu assume o
avātara de Kṛṣṇa, aponta essa mesma questão sobre o ciclo da era para Arjuna, no capítulo 11
de Bhagavadgītā, mostrando que Kṛṣṇa, e somente ele, é o senhor do tempo:
O Venerável disse:
Sou o Tempo, que, avançando, faz a destruição do mundo.
Minha função aqui é a supressão das gentes.
Um dia, não importa o que façam, todos
enfileirados como soldados em batalhas. (11.32)
Por isso, ergue-te, conquista a glória!
Vencendo os inimigos, delicia-te com um reino próprio.
É por mim que, antes de tudo, eles são mortos.
Sê, hábil arqueiro, apenas meu instrumento. (11.33)
A mitologia hindu sobre o mal e sobre a morte relaciona estreitamente essas duas
dimensões. Embora os deuses hindus ocasionalmente provem que são relutantes em
compartilhar a boa vida, parece que os hindus sempre consideraram a morte como uma
representação do mal, afirma O’FLAHERTY (O’FLAHERTY, 1980, 212). O tempo que
determina a morte é o fator que em muito dos mitos sobre a origem do mal representa uma
imagem destrutiva. Em Mahābhārata, morte é tempo destrutivo. Na ausência da morte, a terra
torna-se sobrecarregado e, devido a esse fato, os homens devem ser mortos. Da mesma forma
que Brahmā ensina a Mṛtyu que não se deve temer a morte dos homens, Kṛṣṇa ensina a
107
Arjuna na passagem abaixo que ele também justifica a morte desde que não mate sob
influência do desejo e da raiva.
Kṛṣṇa ao argumentar a importância que Arjuna tem em mãos para seguir o curso do
universo, convence-o a não temer o que não é real (a morte, a dor, o mal). Podemos dizer, por
fim, que Bhagavadgītā é a coluna vertebral de Mahābhārata e como tal explora, anuncia,
estuda e expõe principalmente o peso e a relevância que o homem hindu deve considerar
sobre dharma, karma, saṃsāra e yoga. O corpo é perecível, portanto não se deve lamentar
pela sua deterioração. O medo é tão necessário quando a dor o é, pois sem eles não se pode
existir a coragem (representada também por Arjuna). Deve se cumprir o dharma individual e
o coletivo universal, para não desencadear o caos. Aqueles que se esquecem de qualquer um
dos itens acima, estes sim, são os causadores do mal universal. O homem ético hindu precisa
sempre lembrar e ser lembrado disso. Mas a deterioração da memória do homem parece ser
inevitável, pois o ciclo de yuga sempre estará rodando e assim fazendo com que Mṛtyu
cumpra seu dharma: talvez a única divindade que nenhum homem jamais deixará de conhecer.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se faz uma tradução de termos estrangeiros deparamos com alguns problemas
que já explicitamos na introdução desta dissertação: o de cometermos impropriedades na
tentativa de fazer o leitor compreender um universo explorado por olhos estrangeiros.
Tradução ou retradução, leitura ou releitura, a tarefa não é fácil ainda mais quando se trata de
fazer uma análise comparativa entre dois mundos em duas épocas bastante distintas: a Índia
do séc. X a.C. e o “mundo ocidental” da nossa era. Ao analisarmos o termo dharma e a ética
hindu, o risco de expor contradições é grande, mas, ao mesmo tempo, talvez seja esse risco
que nos levará a querer conhecer e obter mais informações a respeito daquele universo tão
distante.
Quando os sanscritistas e hinduístas afirmam que a datação precisa dos fatos históricos
não é muito relevante, é provável que isso signifique que o contexto dos acontecimentos seja
sempre mais relevante do que na cronologia exata e o acúmulo de fatos. Tanto o
Mahābhārata quanto o Bhagavadgītā são documentos arqueológicos que, de forma poética,
expõem de forma bastante original um “era uma vez...” que perdura até os dias de hoje.
O que essa pesquisa propôs foi fazer uma exposição preliminar da história da Índia
antiga. Para tanto, fez uma breve apresentação da formação do país, seguida dos principais
itens que representam o Hinduísmo e a presença da literatura, que é a experiência que mais
representa a religião, a filosofia e o pensamento hindu: o Bhagavadgītā. Ao final, dentre
vários pontos elucidados pelos personagens Kṛṣṇa e Arjuna, surge uma ideia sobre dharma e
como este está envolvido no contexto das ações do bem e do mal como parte da condição
humana.
A partir da hipótese, a pesquisa levou à conclusão de que o conceito sobre o bem e o
mal no Hinduismo, mais especificamente, a passagem do Bhagavadgītā, possui uma
complexidade e uma gama de significados que não pode ser reduzido a um juízo de valor. O
bem e o mal, dharma e adharma, Pāṇḍava e Kaurava são partes inerentes e integrantes do
equilíbrio interno e externo do universo hindu. Para isso, a ideia sobre māyā tem também um
importante papel no diálogo, pois é o principal “vilão” do temor de Arjuna. A morte, o
inimigo, a batalha são sempre ilusórios, fruto da nossa ignorância. Portanto, não levemos o
termo “ignorância” de forma pejorativa. Como Kṛṣṇa ensina a Arjuna, ela também é parte da
condição humana, cuja finalidade não é nada além do que tornar o homem apto a buscar
conhecimento, sem se render a estagnação e desistência.
109
Este tipo de pesquisa acadêmica que lida com a construção do conhecimento através
da percepção (a percepção do desconhecido) acaba sendo inevitavelmente inconclusiva. Mas
pode apontar algumas questões que levam a refletir sobre grandes temas, como o tempo da
vida, o tempo da morte, a ética, a condição precária do ser humano e, talvez, aquilo que nos
faz sentir mais vulneráveis: os limites entre o bem e o mal. Nesse sentido, tanto Mahābhārata
quanto Bhagavadgītā são documentos arqueológicos que não lidam apenas com o passado,
mas com uma potência inesperada para alimentar a vida.
110
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
AUROBINDO, Sri. BHAGAVADGĪTĀ and Its Message. Edited by Anilbaran Roy. With Sri
Aurobindo’s text, translation and commentary. USA: Lotus Press, 1995.
BASHAM, Arthur Llewellyn. The Origins and Development of Classical Hinduism. New
York: Oxford University Press, 1991.
______________. O Herói de Mil Faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo:
Pensamento, 2007.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas I – da Idade da Pedra aos
mistérios de Elêusis. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2010a.
______________. Tratado de História das Religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010b.
FONSECA, Carlos Alberto da. A Literatura Sânscrita Épica. In: Revista BHĀRATA.
Cadernos de Cultura Indiana – Estudos de Literatura e Linguagem Sânscritas. Universidade
de São Paulo, No. 4, pp. 69-85, 1991.
GOODY, Jack. The Interface Between the Written and the Oral. New York: University of
Cambridge Press, 1987.
GRAHAM, William A. Beyond the Written Word - Oral aspects of scripture in the history of
religion. New York: University of Cambridge Press, 1993.
______________. The Ritual of Battle – Krishna in the Mahābhārata. New York: State
University of New York Press, 1990.
113
LIPNER, Julius J. The Rise of “Hinduism”; or, How to Invent a World Religion with Only
Moderate Success. Springer Science + Business Media B. V. International Journal of Hindu
Studies, 2006, Volume 10, Number 1, Pages 91-104.Disponível em: <http://
www.springerlink.com/content/?k=julius+j.+lipner>. Acesso em: 08-04-2012.
MATHUR, Suresh Narain; CHATURVEDI, B. K.. Deuses e Deusas Hindus – Sua hierarquia
e outros assuntos sagrados. Tradução de Selma Muro Borghesi. São Paulo: Madras, 2008.
MÜLLER, Friedrich Max. India – What Can It Teach Us? A Course Of Lectures Delivered
Before The University Of Cambridge, 1882. Disponível em: <http://
www.forgottenbooks.org/info/9781451017212> Classic Reprint. ISBN: 978-1-4510-1721-2.
Acesso em: 20-03-2012.
PENNINGTON, Brian K. Was Hinduism Invented? – Britons, Indians, and the Colonial
Construction of Religion. New York: Oxford University Press, 2005.
RENOU, Louis. Hinduísmo. Tradução de Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1964.
RENOU, Louis; FILLIOZAT, Jean. L’Inde Classique – Manuel des études indiennes. Tome
Premier. Paris: Payot, 1947.
SILVESTRE, Ricardo Sousa. Philosophical analysis and the Notion of Knowledge in the
Bhagavad-gītā. In: Revista de Estudos da Religião – dez/2008/pp.114-148. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/rever/rv4_2008/i_silvestre>. Acesso em: 08-04-2012
STONE, Jon R. (edited). The Essential Max Müller – On Language, Mythology, and Religion.
New York: Palgrave Macmillan, 2002.
TILES, J. E. Moral Measures – An introduction to ethics West and East. London: Routldge,
2000.
USARSKI, Frank. Os Enganos sobre o Sagrado – Uma Síntese da Crítica ao Ramo “Clássico”
da Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-Chave. In: Revista de Estudos da Religião –
no. 4 / 2004 / pp. 74-95. Disponível em: <http:// www.pucsp.br /rever /rv4_2004 /p_usarski>.
Acesso em: 01-09-2011.
WEBER, Max. The Religion of India – The sociology of Hinduism and Buddhism.Translated
edited by Hans H. Gerth and Don Martindale. The Free Press, 1958.
YOGANANDA, Paramahansa. God Talks with Arjuna – The Bhagavad Gita: The immortal
dialogue between soul and spirit. A new translation and commentary. Los Angeles,
California: Self-Realization Fellowship, 2010.
GLOSSÁRIO
kṣatriya: guerreiro
kṣetra: “campo, terreno”
kṣetrajña: “conhecedor do campo/terreno”
Kūrma: 2º avatāra de Viṣṇu
lakṣaṇa: “atributos”
Madhusūdana: epíteto de Kṛṣṇa
Mahāprasthana: a Grande Jornada
Mahātman: “grande alma”
Manas: “pensar”; “mente”; “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos
cinco sentidos”
Manu: lendário legislador, compilador do “Código de Manu” sobre o dharma
Matsya: 1º avatāra de Viṣṇu
mausala: bastão
māyā: “mudança”; “ilusão”
mokṣa: “libertação”
mṛtyu: “morte”
naiṣkarmya: “estado ou condição resultante do fato de não se praticar uma ação”
naiṣkarmyasiddhi: “perfeição da supressão do ato”; “perfeição da ação transcendente”
Narasiṁha: 4º avatāra de Viṣṇu
padma: “flor de lótus”; simboliza a pureza e a verdade que está por trás de māyā
pantchdjanya: concha de Viṣṇu; possui os cinco elementos da criação (ar, fogo, água, terra e
éter)
pāpa: “culpa”; “mal”; “erro”
Paraṃtapa: epíteto de Arjuna
Paraśurāma: 6º avatār de Viṣṇu
Pārtha: filhos de Kuntī com Pāṇḍu (Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna)
parva: livro
phala: “fruto da ação”
prājña: sábios
prakṛti: “matéria”; “o que existe antes”; “forma ou condição original ou natural de alguma
coisa”; “natureza, matéria original”;“forma natural, forma primitiva; “matéria original, oposta
ao espírito”
pralaya: “fim do mundo”
Purāṇas: coletâneas de mitos, lendas, instruções de adoração às divindades
119
puruṣa: “natureza espiritual”; “eu”; “homem”; nome do espírito como passivo e espectador
da prakṛti
puruṣottama: “Personalidade Suprema”
rajas: “brilho, pulsação”
Rāma: 7º avatāra de Viṣṇu
Ṛgveda: Veda dos hinos em forma de poema
ṛṣi: sábios-videntes
ṛta: “próprio, adequado”; “honesto, verdadeiro”; “lei, regra”; “adaptar-se”
sabhā: “corte”
Sāmaveda: Veda dos cantos e melodias
saṃhitā: coletâneas de hinos, organizados em dez maṃḍalas, recitados por sacerdotes
saṃkara: “caos”; “confusão universal”
saṃsāra: encarnação de uma alma preexistente em novos corpos
saṃsiddhi: “perfeição”; “êxito”
saṃskāra: disposição de repetir ações
sannyāsa: “aquele que abandonou os negócios mundanos”; o asceta que se dedica à
meditação e ao estudo dos textos filo-religioso, um religioso mendicante
śānti: “apaziguamento, estado e felicidade espiritual”; “paz”
śarīrin: “corpo”; “matéria que pode ser destruída/dissolvida”; “cadáver”
sattva: “pureza”; “ bondade”; “altruísmo”
Satyayuga: Era do Ouro
sauptika: “guerreiros adormecidos”
siddhi: “cumprir”; “chegar ao objetivo”; “obter sucesso num empreendimento”.
Śiva: deus da transformação e da destruição
śloka: estrofes de dois ou quatro versos
smṛti: o que foi “memorizado”
śraddhā: “crença”; “fé”; “confiança”
Śrautasūtra: ritual de sacrifício
śruti: o que foi “revelado”; “ouvido”
strī: “mulher”
sudarshana: roda de energia de Vishnu que representa o controle dos seis sentimentos
sura: “brilhar”; “governar”; “possuir qualidade, poder sobrenatural”
sūtra: “fio; tecido”; “frase; texto”; fórmula verbal de reverência e saudação a pessoas
insignes e aos deva”; “prece”
120
ILUSTRAÇÃO
Fig. 1
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Map_of_Vedic_India.png
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 2
http://asiahistoria.blogspot.com.br/2012/01/la-creacion-del-mundo-en-el-rig-veda-i.html
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 3
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Yugas-
Ages-based-on-Sri-Yukteswar.png
Acesso: 06.abr.2013
Fig. 4
http://sanathanadharmahinduismo.blogspot.com.br/2010/07/indra.html
Acesso: 06.abril.2013
Fig. 5
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Vayu_Deva.jpg
Acesso: 06.abril.2013
Fig. 6
http://www.gregorius.jp/presentation/page_57.html
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 7
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Matsya
_painting.jpg
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 8
http://krishna.by/pic/photos/krishna/avatar/
Acesso: 13.mar.2013
Fig. 9
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Varaha
_avtar,_killing_a_demon_to_protect_Bhu,_c1740.jpg
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 10
http://www.dollsofindia.com/product/folk-art-paintings/vishnu-as-narasimha-avatar-killing-
demon-hiranyakashipu-orissa-paata-painting-on-canvas-BZ34.html
Acesso: 10.mar.2013
122
Fig. 11
http://livehappyenjoylife.blogspot.com.br/2013/01/ten-famous-vishnu-incarnations-in.html
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 12
http://trustearthpulse.com/blog/the-hindu-deities-parāma/
Acesso: 10.abr.2013
Fig. 13
http://www.payer.de/somadeva/soma024.htm
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 14
http://www.divinebrahmanda.com/2010/05/lord-krishna-eighth-avatar-of-lord.html
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 15a
http://www.boekenanna.nl/homepage/show/pagina.php?paginaid=274090
Acesso: 27.mar.2013
Fig.15b
http://subhagmaharaj.com/residing-in-the-holy-dham/krishna-balarama/
Acesso: 27.mar.2013
Fig. 16
http://swamivishwananda-cz.blogspot.com.br/2011/01/o-kalki-avatarovi.html
Acesso: 13.mar.2013
Fig. 17
http://www.spanda-yoga.com/blog/index.html?gubun=2&PHPSESSID=
fd1ab02235368a33dc1262f451fcb7ec
Acesso: 30.abr.2013
Fig. 18
http://www.crystalinks.com/Mahabharata.html
Acesso: 13.mar.2013
Fig. 19
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Raja_Ravi_Varma,_Ganga_and_Shantanu_(1890).jpg
Acesso: 30.abr.2013
Fig. 20
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Ravi_Varma-Shantanu_and_Satyavati.jpg
Acesso: 30.abr.2013
123
Fig. 21
http://aulasdesanscrito.com/tag/simbolismo/
Acesso: 30.abr.2013
Fig. 22a
http://sandeepyc.blogspot.com.br/2013/01/hoysaleshwara-temple-halebid.html
Acesso: 25.maio.2013
Fig. 22b
http://www.flickr.com/photos/13289475@N05/4956997573/
Acesso: 25.maio.2013
Fig. 23
http://www.topnews.in/regions/Kurukṣetra
Acesso: 30.abr.2013
Fig. 24
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Pandu_and_Kunti.jpg
Acesso: 30.abr.2013
Fig. 25a
http://www.harekrsna.com/sun/features/12-12/features2659.htm
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 25b
http://vedang.me/weblog/Mahabharata/2012/09/21/draupadi-and-the-pandavas/
Acesso: 24.abr.2013
Fig. 26
http://en.academic.ru/dic.nsf/enwiki/1077746
Acesso: 30.mar.2013
Fig. 27
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bhima_Killing_Duryodhana.jpg
Acesso: 27.mar.2013
Fig. 28
http://krishnastore.com/bishmas-final-teachings-on-bed-of-arrows-h-krishna-1450.html
Acesso: 27.mar.2013
Fig. 29
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Krishna_Advising_on_the_Horse_Sacrifice.jpg
Acesso: 27.mar.2013
124
Fig. 30
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Kunti_Gandhari_Dhrtarashtra.jpg
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 31
http://readtiger.com/wkp/en/Yudhisthira
Acesso: 27.mar.2013
Fig. 32
http://en.wikipedia.org/wiki/File:The_sage_Vyasa_and_the_king_Janamejaya..jpg
Acesso: 30.mar.2013
Fig. 33
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bhagavad_Gita,_a_19th_century_manuscript.jpg
Acesso: 30.mar.2013
Fig. 34
http://bbtcomunica.com/galeria/ventanas/olympus-digital-camera-61/#main
Acesso: 20.abr.2013
Fig. 35
http://back2godhead.com/the-basic-scientific-guidebook-of-spiritual-realization-bhagavad-
gita-as-it-is/
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 36
http://www.actualitte.com/justice/russie-le-livre-sacre-hindou-bhagavad-gita-sauve-
30846.htm
Acesso: 10.mar.2013
Fig. 37
http://indianjourneys.wordpress.com/2009/12/06/deogarh/
Acesso: 20.abril.2013
Fig. 38
http://www.hoparoundindia.com/haryana/city-guides/Kurukṣetra.aspx
Acesso: 20.mar.2013
Fig. 39
http://indianjourneys.wordpress.com/2009/12/06/deogarh/
Acesso: 13.mar.2013