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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

A CONFIGURAÇÃO DAS INSTÂNCIAS NARRATIVAS EM TEXTOS INFANTIS ESCRITOS -


A INFLUÊNCIA DE OUTROS TEXTOS∗

Pascoalina Bailon de Oliveira SALEH (Universidade Estadual de Maringá)

ABSTRACT: This work studies the narrator, author and personage configuration in child written narratives,
focusing the influence of other texts in this process. The hyphotesis is that the author and personage
configuration depends on the narrator one.

KEY-WORDS: language acquisition; narrator; personage; author; incorporation.

1 - O interacionismo em aquisição de linguagem e o papel da fala do outro na fala/escrita infantil

Para a proposta interacionista (De Lemos, 1997, 2001, entre outros), a fala/escrita do outro é determinante
da aquisição da linguagem1 , por isso a presença de fragmentos da fala/escrita do outro nos enunciados da
criança ganha destaque na teoria 2 . Este trabalho tem como objetivo discutir, a partir dessa proposta, o processo
de configuração do narrador em textos infantis escritos. Em vários dos textos que compõem o corpus com que
trabalho, tal presença leva a configurações inusitadas que deixam à mostra o complexo processo de construção
do narrador. Porém, como espero poder mostrar, nos dados que trago para análise, a configuração das outras
instâncias narrativas, ou seja, do personagem e do autor, está estreitamente relacionada à do narrador3 .
O interacionismo, em seus desenvolvimentos mais recentes (De Lemos, 1997, 2001, entre outros), entende
o processo de aquisição da linguagem como mudanças de posição numa estrutura em que comparecem a
criança, o outro (o adulto), e a língua. A criança é “capturada pelo funcionamento da língua na qual é
significada por um outro”, e com isso é colocada em “uma estrutura em que comparece o outro como instância
de interpretação e o Outro como depósito e rede de significantes” (De Lemos, 2001: 29). De Lemos fala do
processo de aquisição como manifestação da predominância de um dos três elementos que compõem a
estrutura. Dessa forma, enquanto a primeira posição se manifesta pela dominância da fala do outro, a segunda e
a terceira o fazem, respectivamente, pela dominância do funcionamento da língua e da relação do sujeito com
sua própria fala. Observe-se que a noção de estrutura impede que se conceba que haja superação de posições
em determinado(s) momento(s) do processo de aquisição.
Assim, podemos dizer, de forma breve, que a presença de fragmentos de outros textos no texto infantil,
sejam eles orais ou escritos, denuncia a presença do outro nessa estrutura em que se move a criança. Já a forma
como esses fragmentos se apresentam na cadeia em que comparecem, ou seja, as relações que eles aí
estabelecem, relaciona-se com o papel da língua e do sujeito nesse funcionamento.

2 - O narrador nas narrativas infantis escritas

Uma discussão acerca do narrador, especialmente na aquisição da linguagem, envolve direta ou


indiretamente, outras instâncias narrativas. Neste trabalho procurarei, por um lado, dar visibilidade a essa
relação; por outro, mostrar que, nas narrativas infantis que trago para a análise, a incorporação de outros textos
interfere na configuração não só do narrador, mas também do personagem e do autor.


A comunicação que deu origem a este texto foi inscrita no evento com o título “ A configuração do narrador
nos textos infantis: a influência de outros texto”.
1
Estamos assumindo como texto inclusive os diálogos de que participam as crianças. Ver, nesse sentido, Pereira
de Castro (2001).
2
Diversas abordagens nos estudos sobre a linguagem reconhecem que, na composição do texto, entram
elementos que, de alguma forma, já apareceram em outras realizações lingüísticas e que, portanto, pré-existem
ao texto em configuração. O estatuto do “já-dito”, enquanto fato de linguagem, entretanto, é bastante
diferenciado nas diferentes abordagens. Exemplo flagrante disso são as noções de intertextualidade, no interior
da Lingüística Textual, e de interdiscurso, desenvolvida pela Análise do Discurso de linha francesa. As duas
noções dizem respeito à mobilização de relações de sentido, mas enquanto a primeira restringe-se à relação de
um texto com outros textos, na segunda o esquecimento é determinante dessa relação.
3
Note-se que não se trata de autor, narrador e personagem empíricos, mas de entidades de linguagem,
construídas pelo texto narrativo. Para uma discussão sobre o estatuto lingüístico e textual do narrador, ver Saleh
(2003).
1
Os episódios enfocados4 foram produzidos em ambiente escolar, a partir de uma instrução que sugere a
escrita de um relato: “Conte alguma coisa interessante que aconteceu com você”.

(1) “A VACA
Era uma vez eu laia na escola naora que eu voltei eu imprei debaixo da cerca eu
fiquei perto da cerca e o boi derudou a cerca em cima de im so que eu não maxuquei
quase nada.
So que um dia eles mataram a vaca e viveram todos feliz para semtre.
Fique muito feliz porque a vaca tinha norido porque eu cei torele eu não vou cer
nordido muito feliz para sempre.” TCS - 7 anos

(A vaca

Era uma vez eu laia para a escola. Na hora que eu voltei eu entrei debaixo da
cerca. Eu fiquei perto da cerca e o boi derrubou a cerca em cima de mim, só que eu
não maxuquei quase nada.
Só que um dia eles mataram a vaca e vivera m todos felizes para sempre.
Fiquei muito feliz porque a vaca tinha morrido, porque eu sei que por ela eu
não vou ser mordido. Muito feliz para sempre.)

O texto acima apresenta um título bastante peculiar: “A vaca”. Este, no entanto, não promove
estranhamento, considerando-se que a instrução sugeria um relato. A seguir, a abertura da narrativa com a
expressão cristalizada “era uma vez”, incorporada dos contos maravilhosos, promove uma certa quebra que
permanece com a entrada de um narrador de primeira pessoa. De fato, essa expressão convoca uma terceira
pessoa, uma expressão nominal do tipo “um rei”, “uma rainha”, “uma princesa”, etc. e cria a expectativa de um
conto de fadas 5 . Entretanto, os enunciados que se seguem conduzem à interpretação da narrativa não como
ficção, mas como o relato de um fato que diz respeito ao estilo de vida rural. A entrada de “e viveram todos feliz
para semtre” na seqüência de “So que um dia eles mataram a vaca” volta a provocar estranhamento, e mesmo
um efeito humorístico6 .
Para dar conta do funcionamento subjacente à configuração desse e dos outros textos que analisarei,
valho-me das noções de metáfora e metonímia, no sentido que Jakobson (1998) empresta a esses termos. O
autor os retoma da retórica e os alça à condição de leis de funcionamento da linguagem, concebendo os dois
pólos a partir dos processos de seleção e de combinação. A seleção refere -se à possibilidade de substituir um
termo por outro na cadeia, equivalente ao primeiro em algum aspecto e diferente em outro. Baseia-se, portanto,
numa relação interna de similaridade a partir da qual se dá a substituição. Já o processo de combinação diz
respeito à inserção de uma unidade lingüística mais simples em uma mais complexa. Sua base é, pois, uma
relação externa de contigüidade que une os constituintes de um contexto lingüístico.
Na composição de (1) a que me referi acima, fragmentos não ressignificados7 , ou em processo de
ressignificação, e construções oriundas dos textos do cotidiano apresentam-se em relação de contigüidade, ou
seja, constituem um arranjo metonímico que, no entanto, escancara os buracos em seu tecido, já que as
expressões cristalizadas têm origem tão marcada. Esse efeito de incompletude8 , promovido pelo acúmulo dessas
expressões, não retorna sobre a criança na sua relação com seu próprio texto. Porém, os movimentos de língua
também se fazem presentes e se deixam notar tanto no eixo da substituição, em que, por exemplo, “eu” ocupa a
posição do elemento nominal, como apontei acima, e na aproximação, na cadeia, de fragmentos de origem
discursiva distintas.
Voltando às instâncias narrativas, vale notar a relação de referência que se estabelece entre “eles” e
“todos”. Todos” remete ao mesmo tempo ao “eles” que o antecede no texto e ao “eles (personagens)” do conto

4
Assim como os demais que constituem o corpus com que temos trabalhado. Conferir, entre outros, Saleh
(2000, 2003 e a sair).
5
Mesmo nos textos contemporâneos, voltados ou não para o público infantil, essa expressão não deixa de
convocar uma expressão nominal. De qualquer forma, sempre que ela aparece, estabelece-se necessariamente
uma remissão ao conto maravilhoso.
6
Como atesta a reação de riso que a leitura desde dado provocou nos ouvintes em comunicações anteriores.
7
Trata-se de fragmentos incorporados como um todo, repetidos pela criança sem que “ela saiba o que está
dizendo”, ou seja, os movimentos da língua ainda não incidiram sobre esses fragmentos.
8
Sobre a noção de efeito de completude, conferir o capítulo “Texto e discurso” em Orlandi (1996).
2
maravilhoso, numa relação ao mesmo tempo de substituição e coexistência na expressão quase-cristalizada. Esse
cruzamento, conseqüentemente, produz um jogo entre referência interna (ao texto) e referência externa. Externa,
neste caso, não no sentido de que remete ao mundo extralingüístico, mas a personagens dos contos
maravilhosos, das narrativas ficcionais que insistem em fazer eco no texto. A entrada do fragmento do conto
maravilhoso consolida, ainda que provisoriamente, a mudança de perspectiva da 1ª para a 3ª pessoa. O
enunciado que resulta desse movimento exclui o narrador da cena narrativa, uma vez que nada diz a respeito
dele. Além disso, a seqüência inteira “So que um dia eles mataram a vaca e viveram todos feliz para semtre”
introduz um efeito, igualmente provisório, de fecho da narrativa.
Com isso, o que vem depois, Fique muito feliz porque a vaca tinha norido porque eu cei torele eu não
vou cer nordido.”, configura uma certa descontinuidade. Note-se que esse enunciado s recupera a perspectiva
inicial e retoma a linha narrativa interrompida: o texto volta a dizer algo do narrador. Vale ainda observar que o
referido enunciado é introduzido pela construção “fiquei muito feliz” que, embora retome elementos da
expressão cristalizada, não se apresenta como tal, compondo um arranjo que não produz estranhamento. Ao
final, entretanto, um novo deslizamento metonímico traz de volta a expressão cristalizada , “ muito feliz para
sempre, promovendo mais um furo nas amarras do texto. Apesar de tais deslizamentos, o movimento
interpretativo de retroarticulação, ainda que não apague as fissuras do texto, garante uma certa unidade a ele,
possibilitando que seja interpretado como um relato de experiências vividas. Textualmente, como vimos, a rede
correferencial não garante o efeito de permanência do narrador. Este, ao contrário, desliza da primeira para a
terceira pessoa. Para isso contribui a entrada dos fragmentos do conto maravilhoso. Vale a pena determo -nos
um pouco mais nessa oscilação do narrador para observar como ela se relaciona no texto em questão a outras
instâncias narrativas, o personagem e o autor.
A entrada súbita dos personagens não nomeados - “eles” - em “eles mataram a vaca” convoca “e
viveram (todos) felizes para sempre”. Essa relação metonímica não produz do ponto de vista gramatical,
nenhuma ruptura. O mesmo não acontece, entretanto, do ponto de vista textual. A entrada, num mesmo
enunciado, de dois universos discursivos distintos - um que diz respeito aos textos que falam do cotidiano de
uma criança do campo e outro aos textos dos contos maravilhosos que criam uma “realidade” peculiar -
remetendo a um mesmo personagem (ou personagens, já que se trata de “eles”), produz, juntamente com a
mudança de perspectiva, uma quebra no texto. Com isso, o autor que desponta no texto mostra-se também
oscilante.
Dessa forma (1) indica, por um lado, que a configuração das três instâncias narrativas - personagem,
narrador e autor - é solidária no texto infantil em questão; por outro, que a entrada de elementos não
ressignificados pode ser determinante nessa (des)configuração, isto é, os fragmentos incorporados podem
promover deslizamentos, rupturas que, por sua vez, podem comprometer a configuração das instâncias
narrativas. O narrador, entretanto, como instância fundamental da narrativa, parece deter, também no texto
infantil, o papel de conduzir a relação entre essas instâncias. Ou seja, um deslizamento na configuração do
narrador pode significar “fragilidade” na “composição” ou apresentação do personagem e do autor.
Dando continuidade a esta discussão, vou enfatizar, no texto abaixo, a ruptura que a entrada do segundo
e do terceiro “enunciados” promove no “texto”, o que me leva a deter-me na relação entre o narrador e a
estrutura sintática dos enunciados. Observe-se que (2) não configura uma narrativa, mas várias micro-
narrativas:

(2) “Eu dava na minha casa e cai laje.


Eu cai da cama
O menino cai e machuca
A menina cai de bicichata na rua
Neu cachorro morteu uma menina” (A - 8,9 anos)

Com efeito, ao contrário dos demais, o terceiro e o quarto “enunciados” não configuram eventos que
dizem respeito ao narrador, nem mesmo configuram um narrador. Além disso, correlativamente, nos dois
primeiros enunciados o narrador é também personagem; em Neu cachorro morteu uma menina tem-se o
cachorro do narrador como personagem, mas O menino cai e machuca e A menina cai de bicichata na rua não
garantem a “menino” e “menina” a condição de personagem, uma vez que esses dois enunciados não são
propriamente narrativos, ou seja, não produzem o efeito de relato. Inversamente, introduzem uma ruptura que
apaga a voz do narrador, quebra que se dá no ponto de entrada da terceira pessoa. Como se vê pela estrutura
sintática e textual do dado em análise, trata-se de construções que ecoam os textos de cartilhas, enunciados-
frase 9 , cujo “co-texto” não favorece que se estabeleça uma relação referencial com uma realidade

9
Em Saleh (a sair) forjo a denominação “enunciados-frase” para salientar a semelhança dessas construções
com aquelas do tipo cartilhesco “Vivi vê a uva”.
3
extralingüística. Vale observar, nesse sentido, a oposição dos tempos verbais que se verifica entre esses dois
“enunciados” e os outros três: enquanto naqueles o verbo está no presente - cai e machuca, nestes as formas
verbais são de perfeito - dava (tava) e cai (caí).
Aliás, o texto como um todo carrega a marca de cartilha na estrutura sintática recorrente nos enunciados,
mas a ruptura entre os dois enunciados iniciais e os dois seguintes dá visibilidade à estrutura cartilhesca
subjacente e sobre a qual se move o sujeito.
A volta para a primeira pessoa (pela retomada da perspectiva, pois gramaticalmente trata-se de terceira
pessoa) no último enunciado, que volta a exibir característica narrativa, é efeito do próprio material lingüístico.
Parece-me que o elemento “menina”, presente em “A menina cai de bicichata na rua”, somada à estrutura que
se mantém em todo o texto, promove a volta do narrador à cena, que no entanto, também não desempenha o
papel de personagem: “Neu cachorro morteu uma menina”.
O texto constrói-se, pois, a partir da repetição de uma mesma estrutura, compondo um paralelismo. Essa
estrutura, assim como no material lingüístico das cartilhas, promove dispersão. Entretanto, um tênue elo
permanece e impede que a deriva seja total, ou seja, a textualidade não se rompe por completo. O elo a que me
refiro é, paradoxalmente, a estrutura sintática que se mantém, o paralelismo que governa a construção do
“texto”.
O apagamento do narrador textual se dá no ponto de entrada dos enunciados-frase que introduzem o que,
por falta de denominação melhor, vou chamar de pseudo-personagens: “o menino” e, a seguir, “a menina”.
Assim as estruturas sintática e textual cartilhescas, e as fissuras delas decorrentes, sugerem um vir-a-ser-autor: a
instância narrativa não se realiza plenamente no “texto”.
Através desse “text o” o sujeito apresenta-se por um lado, sob o efeito do discurso da cartilha, que se
mostra pela estrutura incorporada - e reiterada – desse tipo de material lingüístico; por outro, sob o efeito da
língua, como indicam as substituições operadas no eixo paradigmático, ou como quer Jakobson, no eixo da
similaridade. Nas brechas dessas substituições, o autor, enquanto instância narrativa, se insinua muito
timidamente.
Bastante diferente é o estatuto dessas instâncias na narrativa abaixo:

(3) “Titulo: Eu não sou coisa para me esquecerem

Quando estava no pré, eu ia embora da escola com ônibus. Porque minha mãe
tinha que trabalhar.
Mas não era moça do ônibus que vinha me pegar para ir embora, era o meu irmão
Cesar, que estáva na 3ª série.
Era uma chatice, quando a gente chegava no ônibus, ele estáva quase saindo. Nem
dava tempo de comprar uma pipoca. Ainda mais quando o meu irmão tinha educação
física na última aula. Mas um dia, bateu o sinal, e ele não aparecia. Seis horas e nada
dele.
De repente eu fui com lagrimas nos olhos e disse para a professora:
_ Posso ir ver se os ônibus já foram?
Ai eu fui. Mas quando eu cheguei, surpresa!!!!! Não tinha nenhum ônibus !!
Fui correndo de volta! Chorando!
Ai eu disse há ela
_ Não tem nenhum ônibus!
Ela me levou para a sala de professores.
E lá estava a minha professora verdadeira!
Ela me deu pão de queijo, refrigerante e etc.
Ai ela ligou para o meu pai, ele disse que estáva vindo para lá
Quando ele chegou, ele disse que deu a maior bronca no César.
Depois p ediu para a moça do ônibus, me pegar na hora da saida
E foi assim que aconteceu minha história interessante!”
(Cps - 9 anos)

Esse texto produz o efeito de relato, não apresentando descontinuidade, ruptura. O narrador textual, em
primeira pessoa, dá voz aos personagens, tanto por meio do discurso direto como do indireto, e, a cada vez,
retoma o fio narrativo sem nenhum tropeço, fazendo a história avançar. É igualmente bastante bem
equacionado o duplo papel do narrador, já que ele figura também como personagem.
A fala do outro, os outros textos, não estão, obviamente, ausentes dessa narrativa. Veja -se, por
exemplo, o enunciado “Mas quando eu cheguei, surpresa!!!!!”. Entretanto, eles comparecem ressignificados,
compondo arranjos metonímicos e substituições no eixo metafórico que produzem completude, efeito de todo.

4
Esse efeito é ainda mais significativo pela presença, por um lado, do título “Eu não sou coisa para me
esquecerem”, que antecipa o que será configurado pelo resto do texto; por outro lado, pelo fecho “E foi assim
que aconteceu minha história interessante”, que retoma não só o que acabara de ser narrado, mas a instrução que
havia “motivado” o relato. Essa antecipação e essa retomada exigem um colocar-se fora da narrativa
propriamente dita, o que caracteriza o autor.
Neste ponto, alguns aspectos merecem comentário por ter implicações com a configuração do
narrador, já que estão diretamente relacionadas à perspectiva instaurada pela narrativa. O primeiro é a
expressão “vindo para lá”, que aparece quase ao final do texto, no enunciado “Ai ela ligou para o meu pai, ele
disse que estáva vindo para lá”. Na língua “vir” seleciona “cá”, enquanto “ir” seleciona “lá”, expressões sintática e
semanticamente relacionadas, mas de sentidos opostos - nos dois sentidos da palavra: semântico e de direção. Vê -
se, então, que as duas expressões se cruzam numa construção que evidencia a ação simultânea do duplo eixo de
funcionamento da linguagem: a seleção e a combinação, ou metáfora e metonímia (Jakobson, op. cit.).
Teria sido um mero erro ou um mero acaso esse cruzamento que, com Milner (1989), posso dizer que
resulta numa expressão materialmente atestada, mas impossível na língua10 . Não teria a presença material de “lá”
um pouco mais acima, no próprio texto, “E lá estava a minha professora verdadeira!”, favorecido o cruzamento?
De qualquer forma, a presença de “cá” permanece subjacente, pois na estrutura “ele disse que estava vindo para ...”
o seu lugar não foi apagado; ao contrário, permanece latente sob “lá”, o que garante a interpretação do enunciado.
O segundo aspecto tem a ver com o enunciado que se segue àquele em que aparece a expressão que acabei
de submeter à análise. Com efeito em “Quando ele chegou, ele disse que deu a maior bronca no César” percebe-
se a não conversão do tempo lingüístico do discurso direto para o discurso indireto, ou seja de “deu” para “tinha
dado”11 . Não se trata de uma (mera) questão normativa, como se pode pensar num primeiro momento. O discurso
relatado indireto é crucial não só para a aquisição da narrativa em especial, mas para a aquisição de linguagem em
geral, pois está relacionada à “capacidade” da criança de, a partir da sua própria perspectiva, deixar o outro falar
emprestando-lhe a sua voz. Isso significa, portanto, submeter a perspectiva do outro à sua própria. Nesse sentido, é
um aspecto privilegiado da narrativa, pois envolve não só a instância do narrador e do personagem, mas também do
autor. Com efeito, como comenta de Lemos (2001: 58) a propósito de uma narrativa infantil oral em que aparece
exclusivamente o discurso indireto:

“O que nele chama particularmente a atenção é a presença exclusiva do discurso indireto, apagando a voz
dos personagens e fazendo ouvir apenas a voz do narrador, uma voz hegemônica que põe em cena o
autor. Autor que não se faz ouvir no texto, mas que se mostra no título que encerra o texto em uma unidade
[...]”.

Essa citação me permite reforçar a atenção dada a esse aspecto do discurso indireto em (3). Afinal, através
da forma verbal, o narrador deixa escapar a voz do personagem, ainda que de forma sub-reptícia, já que se trata de
uma forma de terceira e não de primeira pessoa.
Essa presença da voz do personagem mostra a instância autor ainda “inacabada”, embora de forma muito
diferente de (1) e (2). Com efeito, nesses casos, especialmente em (2), é ainda muito tênue a figura do autor, que
talvez se mostre mais pela ausência que pela presença. A análise dos três dados sugere que a figura do narrador é
central na narrativa porque dela depende não só a configuração do autor, mas também do personagem.

10
O autor oferece um estatuto teórico às ocorrências consideradas desviantes ao estabelecer a distinção entre
possível lingüístico e possível material. Com isso ele quer dizer que o possível de língua, tal como descrita pela
lingüística, pode não coincidir com o que é efetivamente produzido pelo falante. Ou seja, podem ocorrer muitas
construções agramaticais se se tomam as descrições lingüísticas vigentes como parâmetro de análise. Por outro lado,
a repartição entre possível e impossível de língua não coincide inteiramente com o atestado e o não atestado. Pereira
de Castro (1997) traz as reflexões de Milner para a aquisição, com o objetivo de iluminar a questão da interpretação
“da função de excesso, do ‘erro’ ” na fala da criança. Para ela, são os enunciados gramaticalmente possíveis que
“garantem” algum sentido àqueles enunciados da criança que são materialmente possíveis, mas gramaticalmente
impossíveis. Também em Saleh (2000) mobilizo essas distinções.
11
Ou seja, o tempo de referência na narrativa é o tempo da narração. Assim, em português, os fatos anteriores
a esse tempo são expressos pelo dito perfeito simples. Porém, o narrador ao relatar, pelo discurso indireto, a fala
do personagem, passa a lidar com mais um tempo: o da fala do personagem. Na voz do narrador, os fatos
expressos na fala do personagem e a esta anteriores são expressos pelo perfeito composto. Assim: “Quando
chegou, o meu pai deu a maior bronca no Cézar”, configura fatos, tratados como simultâneos, que se deram
antes do momento da enunciação, ou seja, do tempo estabelecido na narrativa; já em“Quando ele chegou, ele
disse que deu a maior bronca no César”, disse” expressa um fato anterior aos fatos expressos por “chegar” e
“dar”. O perfeito composto expressa essa anterioridade de segundo grau: “Quando ele chegou, ele disse que
tinha dado a maior bronca no César”.
5
RESUMO: Este trabalho estuda a configuração das instâncias narrativas em textos infantis escritos, enfocando
a influência de outros textos nesse processo. A análise de dados levanta a hipótese de que a configuração do
personagem e do autor depende do narrador.

PALAVRAS-CHAVE: aquisição de linguagem; narrador; personagem; autor; incorporação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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