Sie sind auf Seite 1von 7

Sobre a Carta de Caminha

Suzana Vargas - Antes de passar a palavra para o João Hansen, quero dizer que, após sua
intervenção, vocês podem encaminhar perguntas por escrito e os mais desinibidos podem
ocupar a tribuna. Depois, será feito entre as pessoas presentes um sorteio da Carta de Pero
Vaz de Caminha, numa edição da Lacerda, uma produção bem interessante.

Com a palavra o Sr. João Hansen.

João Adolfo Hansen - A minha fala, de algum modo, vai interceptar várias questões a que
o Alcir Pécora se referiu e provavelmente vai parecer, muitas vezes, redundante para vocês.
Pensei que talvez pudesse ser realmente interessante abordarmos dois aspectos citados
pelo Alcir, ou dois modos de aproximação da Carta do Caminha. Um deles é justamente o
modo dos usos históricos e historiográficos que vêm sendo feitos dessa Carta, desde o
século XIX, e o outro é uma tentativa de situação da Carta no seu tempo, tentando fazer
uma arqueologia das principais categorias de retórica ou de teologia política que informam
a visada do autor da Carta.
Lembro a vocês que desde que a nau sai do lugar, onde hoje é Porto Seguro, em 1500, e
chega a Lisboa, a Carta foi evidentemente mantida como um segredo de Estado, na medida
em que havia outras potências européias, como os reis de França, que vinham desde o
século XV — desde o Tratado de Tordesilhas — disputando com o Papa a possibilidade de
também a França ter pretensão na expansão. Nesse sentido, a Carta evidentemente foi
mantida como um segredo de Estado; havia uma cópia manuscrita, na segunda metade do
século XVIII, em 1773, e foi a partir dessa cópia manuscrita que o Padre Aires do Casal a
editou, em 1817.
Sabemos que, depois, em uma historiografia brasileira do século XIX, por exemplo, do
historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, ou então nas apropriações feitas pelos autores
românticos brasileiros então interessados num mito nacionalista que tomava por núcleo a
figura do índio, a Carta teria um papel muito importante na medida em que uma suposta
ingenuidade original do seu selvagem poderia ser apropriada ou caracterizada como um
traço da formação da nacionalidade brasileira.
Vocês também sabem que a Carta teria várias apropriações, no século XIX,
fundamentalmente nacionalistas, já referidas pelo Alcir, muitas vezes no sentido de ser
quase um documento de origem ibérica e católica da nacionalidade associada, por exemplo,
a uma tradição pacífica do contato, e dessa forma teríamos ainda apropriações críticas
dessa representação.
Lembro a vocês, por exemplo, que a Carta teve papel muito importante em todo o Movimento
Modernista brasileiro. Em Mário de Andrade há apropriações feitas, por exemplo, em
Macunaíma; aliás, tem um capítulo, a Carta pras Icamiabas, uma paródia à Carta de
Caminha.
Na teoria da antropofagia cultural do Oswald de Andrade também e como sempre há
referências muito fortes à Carta; inclusive no movimento tropicalista, na música Tropicália,
de Caetano Veloso, em 1968, havia uma intervenção quando um ator lia um trecho num
sentido bastante paródico sobre Pedro Vaz de Caminha escrevendo a Carta ou Pedro
Álvares Cabral descobrindo o Brasil, uma espécie de paródia de mitos nacionalistas.
Há hoje uma série de apropriações da Carta de Caminha numa chave de estudos chamados
culturais ou pós-coloniais que pressupõem, muitas vezes, uma idéia norte-americana do
politicamente correto na leitura desse primeiro contato.
É um tema que podemos discutir, porque um campo muito grande da história cultural vem
propondo uma história da leitura ou uma história dos usos feitos de um documento segundo
determinados modelos de inteligibilidade escrita ou então como hipótese, muitas vezes, de
reconstruir sistemas contemporâneos das leituras e das apropriações feitas segundo vários
sentidos políticos. Essa é uma hipótese de discussão que já foi mais ou menos referida aqui.
Não sei se seria interessante especificar alguns de seus pontos. Haveria várias conexões,
como, por exemplo, no interior da Igreja Católica com vários projetos ligados: revisão do
jesuitismo no Brasil, projetos políticos associados ao uso da Carta na representação de um
índio ingênuo, simples, selvagem, na revalorização da ação catequética do Padre Anchieta,
ainda neste momento, quando se pretende torná-lo um santo. O sentido da Carta são os
usos que ela pode ter. Nesse sentido, ela não é unívoca, não tem um sentido fechado,
acabado, mas é, por definição, um campo bastante contraditório de usos que, por definição,
são polêmicos à medida que a sociedade é um espaço polêmico.
Outra possibilidade é o funcionamento da Carta no seu tempo. Sabem vocês evidentemente
que a Carta não é um documento único no século XV, mas faz parte de uma enorme
produção letrada do século XV e ainda no XVI que poderíamos chamar uma literatura das
descobertas que envolve não só evidentemente o Brasil, mas também a conquista da África
e da Ásia, muitas vezes uma literatura muito maior relativa à chamada Carreira das Índias
ou aos reinos da África Oriental, os contatos com Mombaça, Sofala, Melinde, do que
propriamente com o Brasil, se levarmos em conta que o Brasil ficou esquecido pelo menos
até 1530, com o início de uma tentativa de Capitanias, ou mais esquecido ainda pelo menos
até 1549, com a tentativa do Governo Geral, na medida em que o Brasil aparentemente não
tinha interesse imediato no século XVI em termos de um projeto mercantil que já
encontramos na Carta.
Devemos lembrar que já no século XV encontramos, por obra do infante Dom Henrique e
depois pelo Rei Dom Afonso V, o africano, e ainda por Dom João II, de Portugal, uma
exploração sistemática da costa ocidental da África, desde antes vários contatos com o norte
da África, depois com a região das Canárias, Cabo Verde, Costa da Mina, Guiné, até
Bartolomeu Dias chegar ao Cabo das Tormentas, que vira o Cabo da Boa Esperança, e,
depois, a grande viagem de Vasco da Gama, como todos sabem, às Índias. Nesse sentido,
a hipótese de Cabral era evidentemente uma entre outras viagens.
Tenho aqui, por exemplo, um trecho da Carta de Cabral, porque aparentemente a expedição
pretendia ir às Índias, onde a tentativa desse contato fica bastante, acredito, evidenciada.
Quando diz a Carta que Cabral leva: "Ireis ancorar em Calicute com vossas naus juntas e
metidas em grande ordem, assim de bem armadas como de vossas bandeiras e estandartes
e as mais louçãs que opuderdes e, se acaso o Rei de Calicute, neste caso, se peja, em tal
caso não cureis de insistir. E aí, vós não sois mercador, mas sois o nosso Capitão e
principalmente por nós enviado com fundamento de muito amor, paz e amizade."
Quer dizer, a hipótese, pela Carta que Cabral leva do Rei Dom Manuel, é que Cabral vai à
Índia como um diplomata estabelecer contato com o Rei de Melinde em função justamente
das mercadorias, das especiarias. Agora, existe, envolvido nessa viagem também, nós
sabemos, hoje, um imaginário que era difundido, genericamente, na Europa, mas do qual
principalmente Portugal e Espanha se faziam porta-vozes, que seria o espírito de Cruzada,
porque se acreditava que a Índia, ou o Golfo de Aden, a Somália ou, então, os países até
mais míticos, o Cataio, a China, eram lugares habitados por primitivos cristãos.
Nós sabemos hoje e vocês sabem também que logo depois do início do Cristianismo grupos
de cristão primitivos, talvez no primeiro século da nossa era, encaminharam-se para a Ásia,
onde formaram pequenos grupos, muito pequenos no norte da China, ou na Índia, os
nestorianos. Alguns deles também devem ter habitado onde hoje nós conhecemos como a
Etiópia e, provavelmente, a representação que chegava no século XV desses cristãos
primitivos era a idéia, muito forte em Portugal, do Reino do Prestes João. A hipótese então
muito forte que há também é a idéia de que a armada vai à Índia não só evidentemente para
buscar as mercadorias então ameaçadas pela expansão turca na Europa, mas
principalmente também, associado a isso, a idéia de um contato com os cristãos primitivos
numa idéia de expansão do mundo cristão, do orbe cristão, como se diz então, porque todo
esse orbe é cristão ou deve ser cristão.
Nesse sentido, devemos pensar, quando Caminha escreve a Carta, que encontramos na
Carta uma experiência de algo que é o novo, e nós temos, justamente quando a lemos, uma
questão antropológica bastante interessante hoje, qual seja a visão do outro que Caminha
estabelece, por definição, uma visão situada historicamente.
Ao mesmo tempo em que a Carta nos informa bastante sobre a Nova Terra descoberta, ela
principalmente nos informa sobre o modo de ver do informante. É claro. E nesse sentido ela
é muito interessante se pensarmos o modo como fala Caminha, ou, melhor ainda, escreve,
como disse o Prof. Alcir Pécora. Não é absolutamente um modo natural, pressupõe a
mediação desse artifício, que é a Carta, como um gênero retoricamente codificado então.
Vocês sabem que Caminha não era absolutamente ingênuo nesse sentido se levarmos em
conta que, na sua formação de letrado, ele tinha aprendido técnicas que vinham da Idade
Média, técnicas da arte do ditado, técnicas da arte de escrever cartas. Simultaneamente
essa gente e ele têm como uma referência muito forte o livro de Marco Polo, que então
circula muito fortemente sobre o Império do Grão Cão, sobre o Império Mongol de Gengis
Khan ou do Tarmelão.
Ao mesmo tempo, sabemos que eles tinham também modelos antigos de viagens e de
itinerários, dos quais podemos citar, por exemplo, a Odisséia. E há outros modelos que a
nós encontramos referidos, por exemplo, a História Natural de Plínio, que ensinava um
sistema de classificação dos objetos naturais.
Agora, quando lemos a Carta de Pero Vaz de Caminha observamos justamente essas partes
anunciadas pelo Prof. Pécora. Elas apresentam uma divisão, uma saudação inicial, em que
ele, como escrivão, se dirige ao Rei de Portugal, Dom Manuel. Nessa saudação
imediatamente observamos uma regra retórica, como ele referiu, a idéia da manutenção de
um decoro necessário. Como o Rei é uma pessoa superior, o modo que Caminha se dirige
a ele é uma enunciação respeitosa, ele não poderia ser adverso.
Há, imediatamente, uma parte, um exórdio, onde ele afirma que vai escrever sem alindar
nem afear, ou seja, ele não utiliza um estilo que tenda para o alto, nem um estilo que tenda
para o baixo, mas ele vai trabalhar com um estilo médio, adequado à noticia a que ele vai
se referir na Carta.
Logo imediatamente começa — vocês sabem — a chamada narração. Essa narração ele
distribui, como o Pécora também enunciou — e vocês sabem também —, na forma de um
diário, em que cada dia que a expedição fica na baía, onde eles estão, não é a Bahia ainda,
mas chamamos de Bahia hoje, forma uma espécie de recorte cronológico e ao mesmo
tempo é um quadro em que simultaneamente encontramos uma técnica que eles
chamavam, por imitação dos poetas latinos, a idéia de que escrever é como pintar. E a idéia
de montar um cenário, no qual aparecem personagens agindo, ou aproximadas, segundo
uma técnica do retrato, também, como estou dizendo, é uma técnica.
Agora, percebemos o uso contínuo em toda a Carta desse artifício técnico de escrita que
imediatamente evidencia que, entre aquilo que o agente vê, ou diz ver, e o objeto visto, há
uma mediação que é esse artifício que o torna visível. Nós poderíamos dizer que, se existe
algo que é notável, existe algo que é anotado. Entre o notável e anotado há um notando,
um modo de anotar. Esse modo, evidentemente, como disse o Pécora, é retórico.
Existem outros modos também de entrarmos na Carta. Por exemplo, discutir a categoria de
experiência. Temos hoje uma hipótese baconiana, que talvez vem desde o século XVI, a
idéia de que a experiência consiste basicamente numa relação, sujeito e objeto, de
investigação, de prova e de observação do objeto, uma hipótese científica. Temos uma
possibilidade da experiência, uma hipótese expressiva, por exemplo, a idéia de que na
relação com o objeto eu expresso mais ou menos as minhas reações.
No caso de Caminha, encontramos um homem do século XV e uma mentalidade portuguesa
do século XV com uma organização mental, uma forma mental escolástica, ou seja,
Caminha pressupõe, por definição, segundo os modelos culturais que circulam no seu
tempo, a hipótese de que o novo, no caso a Nova Terra, quando ele dá a notícia do
achamento, é apenas análogo. O novo é apenas algo semelhante a algo que já se conhece,
porque o novo é criado por Deus. Então, acredita-se ser a causa primeira de tudo.
A questão que ele tem inicialmente é muito interessante, quando lemos a Carta, aquela idéia
de que os navios chegam no dia 21 e vêem a vegetação flutuante. Na quarta-feira, dia 22,
eles vêem a mancha da terra e imediatamente colocam nome no monte. Sem saber se aquilo
é ou não habitado, eles nomeiam cristãmente: "É o Monte Pascoal".
Essa operação de dar o nome da Páscoa a um monte desconhecido, quer dizer, nomear
cristãmente, evidencia a idéia cristã de reconhecimento de um sentido no novo, mas que é
um sentido dado quase que previamente. Eles chegam à tarde — vocês se lembram, às 6
da tarde —, numa quarta-feira, às 6 da tarde, véspera da chegada deles ao Brasil. Na manhã
seguinte, quinta-feira, lembramos da seguinte informação: dez navios grandes estão
reunidos, porque estão em conselho, os capitães com Cabral, e dois navios menores
percorrem a costa para fazer uma investigação, quando eles chegam avisando que existe
gente — não sabemos se é gente ainda — na praia.
A Carta de Caminha evidencia aqui uma questão, a definição dessa gente. Pela experiência
imediata da semelhança física, Caminha diz que são "mancebos" e que são "homens". É
claro. Mas ele imediatamente nota que "eles estão nus". O fato de eles estarem nus é um
critério físico, é uma descrição física. Mas há um outro critério, no caso, um dado que
encontramos na teologia católica e que vocês encontram na obra, por exemplo, de Santo
Agostinho, de que a nudez é uma evidência do não-conhecimento do pecado original. A
hipótese cristã é a idéia de que Adão e Eva sentiram, provavelmente, gozo no órgão, que
se torna, desde então, o órgão maldito na geração e que transmite hereditariamente o
pecado.
Nesse sentido, Santo Agostinho escreve que a roupa é decência civil e que o fato de
usarmos roupa indica que nós reconhecemos nossa natureza pecadora e que interiorizamos
a culpa do pecado original.
Assim, vários motivos se associam à idéia da nudez, ou à idéia da roupa, no caso do
Caminha. Quando ele diz que "há vários homens nus, mas, sem nenhuma vergonha de
mostrar as vergonhas", ele está dizendo que eles andam nus e que aparentemente eles não
têm nenhum conhecimento do pecado original. Isso é um problema para o homem do século
XV, porque, se aqueles seres são homens, provavelmente eles são filhos de Deus e,
portanto, de Adão e, portanto, também são pecadores. Mas, se eles andam nus e
aparentemente não têm vergonha de mostrar as vergonhas, aparentemente também eles
não conhecem o pecado.
Observamos, então, que a Carta, nas primeiras descrições desses "seres", nunca fala que
eles são índios. Esse é um termo sobre o qual Cristóvão Colombo se equivocou, não é
verdade? Quando ele pensou que a Terra era menor e, chegando às Antilhas, acreditava
serem as Índias e chamou àquela gente de índios. O Caminha não usa esse termo; ele diz
o tempo todo que são homens, inicialmente, e moças "gentis"— usou até mesmo um código
de etiqueta cavalheiresca.
Observamos inicialmente, então, que em todas essas descrições existe uma tentativa
sempre de reconhecimento do outro, que é esse novo, a partir daquilo que já é o conhecido.
Ele, então, pensa por analogia, ele pensa por semelhança.
Por exemplo, inicialmente, ele vai dizer que eles são pardos. Ao dizer que eles são pardos,
ele está dizendo "eles não são brancos". Logo depois, ele diz que eles têm bons rostos e
bons narizes. Principalmente, ao dizer que eles têm bons narizes — lembramos a
experiência portuguesa na África —, ele está dizendo "eles não são negros".
Quando, por exemplo, ele olha o sexo dos homens e diz "são como nós", ou seja, "não são
fanados". Fanar é um verbo português antigo que significa cortar e significa também
circuncidar. É um verbo usado, então, para nomear judeu. Então eles não são "fanados", ou
seja, eles não cincuncisos, não são judeus. Eles não são brancos, eles não são negros, eles
não são judeus.
Sabemos que, na armada, havia gente de todo o mundo e principalmente muita gente
falando árabe, mas aquela gente não fala árabe. Quando Nicolau Coelho chega com o batel
perto da praia, os senhores se lembram, e eles vêm nadando, o Caminha informa que eles
trocam um gorro vermelho e um sombreiro preto português pelo que ele chama, já é um
objeto ritual índio, um negócio de pena, um cocar, mas ele chama um sombreiro de penas.
Nesse momento, ele diz que eles não conseguem ouvir porque aquela gente faz uma
berbéria. E ao falar em berbéria, ele está falando em barbárie: "É uma voz que é uma
barbárie". Ele está citando os gregos, a idéia grega de que o bárbaro é o que balbucia, e,
portanto, ele é bárbaro, e também até uma associação com a berbéria, o bérbere, que ele
tenta talvez. Mas não é árabe, não é nenhuma língua conhecida deles. O que é?
Percebemos então que, nos vários contatos, temos uma espécie de reiteração desse
sistema de prova e de qualificação do outro a partir daquilo que já é conhecido. Eu creio que
a idéia máxima disso encontramos na noite em que Cabral convida os dois rapazes índios
nus para irem à nau capitânia. Cabral os recebe do mesmo modo como os portugueses na
costa oriental da África entravam em tabulação comercial com os potentados árabes.
O Cabral o que faz? Ele está sentado numa cadeira, um trono, está usando sua insígnia
real, seu colar de ouro, de aristocrata, de capitão da nau, mas também de diplomata. Existe
a moda que então é comum na época — às vezes, encontramos isso também nas pinturas
dos séculos XVI e do XV holandês: um tapete persa no chão, e eles estão todos sentados
à moda árabe. Eles se sentam de pernas cruzadas no chão, os outros capitães. Os dois
entram.
Os senhores se lembram, a primeira coisa que Caminha afirma é que eles não fazem
nenhuma menção de cortesia. Caminha percebe que eles não têm civilidade de maneiras
como se esperava que tivessem numa embaixada diplomática. Agora os dois estão nus e
observamos que essa nudez — que eles mostram sem nenhuma vergonha, nem de expor
nem de ocultar, é algo aparentemente muito natural para eles — ao mesmo tempo vai sendo
de novo qualificada.
Percebemos, por exemplo, a experiência de fazer com que eles vejam um animal. Então é
trazido para eles um carneiro. Podemos pensar: por que mostram um carneiro aos dois
homens estranhos que não conhecemos? Se pensarmos em termos de teologia, e é isto
que está ocorrendo: o carneiro nesse momento no século XV e também até hoje na teologia
cristã, o carneiro é Agnus Dei. E, segundo Santo Agostinho, que então forma a cabeça
desses letrados, não é a palavra carneiro que significa o Agnus Dei, Cristo, mas que o
próprio animal físico é uma encarnação natural, porque Deus usa o animal como Cristo.
Então, se alguém é capaz de reconhecer um carneiro, alguém reconhece Cristo. Agora eles
não reconhecem o carneiro, ou seja, eles não são cristãos. É já um critério de prova.
É claro, há uma tentativa de continuar a prova. Então dão vinho para eles beberem. Por que
vinho? Lemos, também nessa linha, a idéia de que o vinho é evidentemente um produto da
vinha, mas quem cultiva a vinha e quem inventou o vinho foi Noé. Então, todas as nações
que são filhas de Noé são nações que conhecem o vinho.
À medida que esse ser cospe o vinho com nojo, ele não conhece o vinho, a gente começa
a duvidar. Será que ele é filho de Noé? Supondo que Noé teve, pelo menos, três filhos que
formam, então, segundo ele, as raças conhecidas, a branca, a negra e a oriental, o que eles
são? Vamos observar que várias outras provas qualificantes nesse sentido vão sendo feitas
e vai sendo produzida uma espécie de buraco negro, na observação desses seres. O Prof.
Alcir Pécora falou aqui de uma representação que é cômica no sentido de ela apresentar
uma espécie de movimentação deformante desses seres. Mas há sempre uma espécie de
equívoco, uma espécie de duplicidade na representação. Então, a primeira qualificação
deles, quando Caminha diz: "Eles não lavram nem criam". Ou seja, é outro critério. Eles não
são, talvez, civilizados, porque todo o povo civilizado conhece a agricultura ou conhece
alguma forma, embora rudimentar, de pecuária. "Eles não lavram nem criam." Ele chega até
a fazer uma hipótese que os corpos deles são tão médios e tão roliços que provavelmente
eles se alimentem de ar. Eles vivem do ar, porque os ares são bons, etc.
Evidentemente, ele está fazendo todas as experiências que a cultura dele permite-lhe fazer,
e ele faz magnificamente bem. Ele só pode pensar aquilo que a cultura dele permita que ele
pense. E ele pensa bem, nesse sentido, quando entra em contato com esse ser. A primeira
qualificação que ele vai fazer desse ser, à medida que é difícil defini-lo, é: ele não é um
oriental, ele não é árabe, ele não é judeu, ele não é negro, ele não é branco. O que dizer
dele? "Vocês encontram pardais no cevador." Vem uma linguagem, vamos dizer assim,
biológica, vem uma linguagem do animal. "Eles são pardais do cevadouro", ou seja, pardais
que estão na ceva, pardais que recebem alimentos e provavelmente são até enganados
nisso, como ele usa a palavra "encarna", que as traduções modernas chamam de engodo
ou de engano, quando, por exemplo, há uma troca de manilhas, cascavéis, por objetos
deles. Caminha diz: "Eles são muito predispostos provavelmente a serem enganados.
Nesse sentido diz: "Eles são pardais no cevadouro". Logo adiante, depois novamente
aparecem todas as descrições das vergonhas, "as moças gentis, a comparação com a
vergonha cerradinha da índia", que a gente chama índia, "e a vergonha das portuguesas,
das européias, etc, etc, etc"; no que alguns viram até um traço erótico português muito
divertido — eu acho. O Caminha tem um senso de humor magnífico quando diz assim: "Uma
índia, muito gentil, estava na praia e a vergonha dela era toda depilada e totalmente
cerradinha". E que a vergonha que ela não tinha ele junta ao termo, isto é, a própria falta da
vergonha que ela não tinha, e com muita admiração. É interessante pensar, também, a
verticalidade do olho dele. Ele começa no rosto, mas ele sempre baixa para o Hemisfério
Sul. Ele está sempre muito interessado no Pólo Sul dos índios, não é? Isso é bastante
divertido. Alguns historiadores chegaram até a fazer hipóteses sexuais sobre a natureza do
português que fica vários meses em alto-mar, etc., etc. Eu penso que não precisamos fazer
essas hipóteses muito empiristas. Podemos pensar simplesmente no processo descritivo,
mas que é indicativo de uma sensibilidade muito refinada e muito sutil de Caminha; e, ao
mesmo tempo, muito divertida. Ele tem que passar isso ao rei e tem que passar
provavelmente de uma forma, ao mesmo tempo, agradável e, ao mesmo tempo, útil — não
é verdade? — e persuasiva. Imediatamente após essas várias qualificações, vocês
encontram uma outra representação do índio que é "cabritos monteses". Agora eles viram
cabritos. Mas são sempre associados à idéia do cabrito e à idéia do pardal, não só à idéia
da animalidade, mas à idéia do movimento. É uma gente que nunca pára. Vocês encontram,
inclusive, uma representação. Depois com Pierre Clastre parece-me que sai daqui, muito
forte, a idéia de um chefe, todo cheio de cabeleiras, todo velho e que fala, fala, fala e fala,
ordena e ordena, e ele fala, mas ninguém dá importância para ele. É a idéia de uma espécie
de uma representação muito forte, que depois a gente vai encontrar nos cronistas, a idéia
da inconstância do selvagem, a idéia de que o selvagem é uma alma absolutamente
inconstante. A gente vai encontrar isso até, por exemplo, no Padre Vieira.
Feita essa qualificação, encontramos uma última definição dessa gente que é "gente
bestial". Nesse momento, ele está se dirigindo, diretamente, ao rei; dizendo que é uma gente
bestial e, provavelmente, uma gente que vive com uma tábula rasa branca. E,
imediatamente, ele já indica um sentido que, depois, vai ser um sentido efetivo. Mas já está
contido na Carta a idéia de que o rei deve mandar missionários, porque essa gente,
provavelmente, é muito predisposta à missão e à catequização.
O fato de ele afirmar que eles são gente bestial produz uma espécie de contradição em
termos, porque, ao mesmo tempo, como um aristotélico e como um escolástico, quando ele
faz essas provas qualificantes, ele está o tempo todo preocupado em saber se esse ser
esquisito, novo, que ele está encontrando, tem as três faculdades que então definem a
pessoa humana: se ele tem memória, vontade e inteligência.
As provas que ele faz evidenciam que esse ser tem memória, inteligência, evidentemente,
vontade. Basta lembrar, por exemplo, como eles nunca querem que os degredados fiquem
com eles — não é verdade?
Então, nesse conceito de gente bestial, encontramos o reconhecimento que é uma gente
que tem as três faculdades. É gente, tanto pela semelhança física quanto pela semelhança
das faculdades que ele encontra. Mas há uma classificação que é política, que é esse
"bestial". Ou seja, esse "bestial" remete aquela gente para um duplo espaço de selvageria
no sentido político da idéia de que é selvagem aquilo que não é o civilizado. E, portanto, é
quase uma tábua branca esperando a nossa intervenção civilizadora, mas que, nos
cronistas do século XVI, vai se transformar no bárbaro, isto é, naquele contra o qual iremos
fazer guerras justas, por exemplo.
Nesse sentido, já encontraríamos na Carta os critérios que interessam muito hoje para
redefinição de categorias históricas do agente para a particularização da observação do
caminho que nos permita dizer que o modo como ele observa, evidentemente, não é um
modo neutro nem transparente, mas um modo histórico que se situa justamente nas práticas
intelectuais portuguesas desse período na circulação da escolástica, nos modelos
aristotélicos e latinos de compreensão e de inteligibilidade. É claro. Isso é fundamental
dizer.
Ao mesmo tempo, a Carta também indica uma espécie de primeiro contato, uma previsão
do que será a colonização depois quando os jesuítas chegam com o Nóbrega.
Quando ele diz que esse ser é gente bestial, já encontramos, de algum modo, uma coisa
que vai ser reiterada. Por exemplo, na primeira Carta que o Nóbrega escreve, em 1549, está
assim: "Esta terra é a nossa empresa e aqui não são necessárias letras, mas exemplos e
virtudes de Nosso Senhor".
Quer dizer, a Carta de Caminha acaba sendo um objeto etnográfico muito interessante, eu
acredito, não só pela informação que ele dá sobre o achamento dessa Terra Nova, ou sobre
esse ser que é hoje para nós o índio, mas, principalmente, porque ele dá informações sobre
o próprio modo contemporâneo dele e dos portugueses que viajavam para a Ásia, para a
África e para o Brasil de observar e de interpretar.
Devo parar por aqui, mas talvez a gente pudesse, se for o caso, discutir depois um pouco
mais.
Muito obrigado pela atenção. (Palmas.)

Das könnte Ihnen auch gefallen