O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, assinado pelo seu heterónimo
Bernardo Soares, é a obra mais importante e mais profunda de Pessoa e a que mais reflete a complexidade da sua mente. É a obra do autor que mais se aproxima do género do romance, assemelhando-se a um diário íntimo, ficcionado, escrito por Bernardo Soares, um ajudante de guarda-livros, redigido a partir de um escritório da Baixa de Lisboa, num 4.º andar da Rua dos Douradores, no qual expõe as suas vivências, interrogações e reflexões. Esta característica torna o livro singular, já que não tem uma narrativa definida, com princípio, meio e fim. ...a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me engano, escrevo, somo, e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório. O Livro do Desassossego foi publicado pela primeira vez em 1982 (quase 50 anos depois da morte de Fernando Pessoa) e resulta da junção de textos avulsos encontrados no espólio de Fernando Pessoa. Esse espólio junta fragmentos autobiográficos, textos introspetivos, reflexões e pequenas descrições. O “autor”, Bernardo Soares, que assina esses textos, é o Heterónimo pessoano que mais se aproxima do Ortónimo Fernando Pessoa pois surge como um autorretrato do próprio autor. Não é por acaso que Bernardo Soares diz ser ajudante de guarda-livros de um escritório da baixa de Lisboa, pois o próprio Fernando Pessoa, foi correspondente de línguas num escritório nessa mesma zona e chega a colocar como personagens do Livro do Desassossego, pessoas do escritório onde trabalhava, mantendo alguns nomes e alterando outros como o do patrão Moitinho de Almeida, que na obra se chama Vasques. Fernando Pessoa, que gostava de se refugiar em personalidades inventadas para exprimir o que via e o que sentia, diz, imaginando, que conheceu Bernardo Soares numa “pequena casa de pasto” (café) frequentada por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando o seu “Livro do Desassossego”. Na verdade, Bernardo Soares é apenas uma máscara que Fernando Pessoa usa para fazer confissões pessoais, como um diário pessoal, que oscilam entre a inquietação, o tédio, a angústia e uma grande lucidez e capacidade analítica. É por isso que Bernardo Soares é considerado como um semi- heterónimo, porque, tal como seu próprio criador explica: “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.” Como é escrito sob a forma de diário sem datas, o Livro do Desassossego é uma obra fragmentária, sempre em estudo por parte dos analistas pessoanos, tendo estes interpretações diferentes sobre o modo como organizar o livro. A organização desses textos, deu origem a edições distintas que variam consoante os critérios utilizados pelos editores. É por isso que não é raro encontrar diferentes edições do Livro do Desassossego em que a disposição e a organização dos textos são diferentes. Os mais puristas defendem a publicação “ideal” do «Livro do Desassossego» em versão de folhas soltas, sem encadernação, o que, segundo os mesmos, permitiria manter a ideia original de Pessoa, deixando a cargo do leitor o encadeamento da leitura.