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A ORIGEM CRISTÃ DA CIÊNCIA MODERNA

Alexandre Kojève

Terra est stella nobilis.


Nicolau de Cusa
(De docta ign., 11, 17)
Tradução: Teresa Cristina Guedes de Paula Freire
Revisão: Antônio Teixeira

Foi necessário um verdadeiro forcing, uma predicação talvez mesmo impossível,


para que o Deus do cristianismo, encarnado por um pobre diabo crucificado entre
dois ladrões, pudesse sustentar o ideal de simplicidade da função simbólica. Se a
ciência moderna pôde se estabelecer sobre a frágil crença de que o real é racional,
de que o real pode ser integralmente determinado pelo simbólico, as condições
definitivas deste ato de fé só serão preenchidas, afirma Lacan, com o advento da
religião cristã. Somente o cristianismo confere um conteúdo pleno à morte de Deus,
instaurando a garantia divina no registro puramente simbólico que requer a ciência
moderna. Pois, mais do que duplicar a morte do Pai através do sacrifício do filho, “o
cristianismo encarna literalmente esta morte” na medida em que ele inscreve, pela
encarnação do Verbo, o próprio ser do Deus revelado na função formal do
significante em que Ele se apaga. Para que o Deus do cristianismo pudesse encarnar
o logos sobre o qual se sustentaria a nova ciência, foi preciso que ele se subtraísse
onticamente do corpus do conhecimento, que a verdade de sua revelação se reduzisse
à possibilidade mínima da articulação significante. Neste texto clássico de A. Kojève,
hoje quase inencontrável, o leitor desvelará os motivos que nos permitem
compreender, entre outros temas, porque Descartes terá sido o primeiro filósofo a
realmente extrair as conseqüências desta cristianização de Deus.
Antônio Teixeira

Poucos fatos históricos são tão dificilmente contestáveis quanto o da conexão entre
ciência e técnica modernas e a religião, em especial a teologia cristã.
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Para se convencer disso, basta constatar que o incrível desenvolvimento da técnica


contemporânea pressupõe de toda evidência uma ciência teórica de vocação universal, que admite
a possibilidade de apresentar todos os fenômenos perceptíveis a olho nu (ou com instrumentos)
como manifestações visíveis de relações não evidentes, e que correspondem de modo
absolutamente rigoroso não ao discurso a seu respeito, mas a fórmulas matemáticas que se
relacionam de maneira precisa. Pode-se, caso se queira, chamar essa ciência de Física
Matemática. Mas então é necessário precisar que essa Física não se limita a uma parte qualquer
do universo ou a um de seus aspectos particulares; supõe-se que ela deva e possa cobrir sem
qualquer exceção tudo que possa ser observado (ou seja, visto, pelo menos em última análise).

Ora, ninguém contesta que a Física Matemática de vocação universal nasceu no século
XVI na Europa Ocidental, e que ela não é encontrada nem antes nem em outro lugar. Sem
dúvida, em nossos dias a encontramos espalhada por todo o mundo. Mas deve-se notar que ela se
mantém ali onde o Cristianismo, senão enquanto religião, ao menos como civilização predomina.

Não é, sem dúvida, pela simples ausência de batismo que os aborígenes, sejam eles quais
forem, deixaram de aderir à Física Matemática. Mas o que impediu os sutis chineses de fazê-lo,
eles que conseguiram transmitir a enormes massas uma civilização altamente diferenciada e
refinada? Por que os indianos, que contribuíram para a arte e a civilização helenísticas e com elas
beneficiaram inúmeros povos, jamais tentaram ultrapassar os estreitos e milenares limites que
herdaram no domínio técnico e científico? Como pode ser que alguns dos grandes pensadores
hebreus, que bem quiseram integrar o judaísmo a alguns esforços intelectuais dos pagãos
civilizados, jamais tentaram uma contribuição, seja qual for, ao desenvolvimento de idéias que
poderiam tornar-se um dia uma ciência propriamente dita? E os árabes, aos quais o Islã não
impediu de contribuir ativamente para o desenvolvimento e a propagação da civilização
helenística, da qual foram os primeiros a promover o renascimento, por que nunca tentaram, por
exemplo, matematizar a química que eles mesmo descobriram, ao invés de se contentar em
assimilar as poucas matemáticas puras e celestes de seus ancestrais?

Em resumo, nenhum povo não-cristão pôde ou procurou superar os limites da ciência


helênica. Ora, o fato é que os gregos que não quiseram ou não puderam superar os limites de sua
própria ciência eram todos pagãos.

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Dado que é difícil sustentar que os gregos fossem pagãos por não trabalharem com a
física matemática, forçoso é supor (salvo se pretendermos que a civilização seja um conjunto
caótico de elementos disparatados sem qualquer nexo entre si) que eles não puderam elaborar
essa física porque lhes aprouvera permanecer pagãos (exceto que admitamos, o que pareceria
deslocado no contexto deste volume, que a ciência helênica e a teologia pagã sejam
manifestações independentes, embora complementares, de um mesmo fenômeno que teria um
caráter não discursivo, por pertencer ao domínio da ação).

Ora, a meu ver essa asserção é bem menos mistificadora do que poderia parecer à
primeira vista.

Sem dúvida seria necessário, para levar realmente a sério tal asserção, chegar-se
primeiramente a um acordo sobre o que vem a ser o paganismo clássico, ou, mais exatamente, a
teologia que serviu de pano de fundo à filosofia grega de Parmênides a Proclo, e portanto
também, quer se queira ou não, ao corpo da ciência helênica. Mas, diante da impossibilidade
evidente de tal acordo, contentar-me-ei em dizer brevemente o que deveria ser tal paganismo para
que a asserção em causa seja aceitável, ou mesmo aceita.

Por oposição à teologia cristã, a teologia pagã clássica deveria ser uma teoria de
transcendência, mesmo da dupla transcendência de Deus. Em outras palavras, não bastava ao
pagão, como basta ao cristão, morrer (obedecidas certas condições apropriadas) para se encontrar
face a face com o Divino. Mesmo desvencilhando-se completamente de seu corpo (do que o
cristão, ao contrário, não tem absoluta necessidade), o pagão é contido a meio caminho da sua
ascensão rumo a Deus por um véu, senão opaco, intransponível, que é, caso se queira, divino no
sentido de transmundano ou supraterrestre, mas que em relação ao qual o Deus propriamente dito
ainda é e permanece sempre transcendente. O do paganismo clássico não está apenas para
além do mundo onde vive o pagão. Esse  encontra-se irremediavelmente para além do Além
ao qual o pagão poderia eventualmente aceder após a morte. Partindo da terra, o pagão não estará
nunca no caminho que o poderia conduzir para próximo de seu Deus.

Pouco importa, aliás, que o véu que se supõe separar Deus do mundo onde vivem e
morrem os pagãos seja constituído, como para Platão, por um Cosmos ideal u-tópico ou, como
para Aristóteles, pelo Céu planetário e sideral etéreo, sem posição precisa no espaço vazio
infinito, mas todavia francamente espacial. O que deve ser considerado em ambos os casos é a

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impossibilidade absoluta de vencer aquela barreira ideal ou real tanto por parte do pagão quanto
de seu Deus. Pois, se a teoria (a contemplação) do Cosmos noetos platônico ou do Ouranos
aristotélico é um patamar que o homem pagão não saberia superar, nem em vida nem após a
morte, esses mesmos Ouranos e Cosmos são também para ele o limite extremo das manifestações
ou encarnações possíveis de seu Deus. Fora do que não se encontra em parte alguma, tanto como
para aquém do que é nos céus, tudo é em todo lugar e para sempre profano no mundo dos pagãos
clássicos.

Ora, se o  da teologia pagã é o nunc stans da eternidade pontual, ou o Uno-solitário


incomensurável, o mundo transcendente onde esse se manifesta ou se encarna não pode ser
outra coisa senão um conjunto bem ordenado de relações rigorosas, fixadas desde sempre entre os
números eternos e precisos (pouco importa que se tratasse de números ordinais, que Platão
sempre parece associar a cada uma das idéias, ou números cardinais que medem os raios das
esferas celestes eudoxo-aristotélicas). Inversamente, em relação a este mundo ainda (ou já)
divino, o mundo profano onde nós vivemos (pouco importa que seja o conjunto do cosmos ou
somente a sua porção sublunar) não poderia comportar as relações verdadeiramente matemáticas
ou traduzíveis em termos matemáticos. Longe de ser uno ou formado por unidades ordenáveis ou
enumeráveis, este mundo é constituído por elementos flutuantes que, seja se desdobrando sem
cessar de maneira indefinida, seja transformando-se insensivelmente sempre e em toda parte em
seus contrários, são, por definição, puramente qualitativos.

Assim do ponto-de-vista da teologia pagã clássica, não se pode encontrar leis


matemáticas, ou seja, relações proporcionais eternas e precisas, senão lá onde não existe matéria
alguma, ou, pelo menos, ali onde a matéria não é senão um puro éter inacessível aos sentidos. Do
ponto-de-vista de tal teologia, seria uma coisa ímpia sair em busca de tais leis na matéria vulgar e
grosseira da espécie que constitui os corpos viventes, servindo-nos temporariamente de prisão.
Eis porque, para pagãos convictos como Platão e Aristóteles, a busca de uma ciência como a
Física Matemática moderna seria não somente uma mera sandice, como para todos os gregos
civilizados e assim suscetíveis de se ocuparem das ciências, mas algo pior ainda, um grande
escândalo, no caso dos Hebreus.1

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Restaria, é verdade, o caso do Timeu. Mas disponho de excelentes razões para acreditar (embora provavelmente
seja o único a fazê-lo) que, como em todos os diálogos de Platão, as teorias desenvolvidas explicitamente no Timeu
não têm ainda nada a ver com as idéias do próprio autor. Em seus diálogos, Platão expõe as teorias em voga, que ele

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Admitamos que um pagão crente ou convicto não possa desenvolver a física matemática.
Admitamos também que não bastasse, para fazê-lo, não ser pagão ou deixar de sê-lo, visto que as
conversões de pagãos ao Budismo, ao judaísmo ou ao Islã foram pouco frutíferas do ponto-de-
vista científico. Porém, seria realmente necessário ser ou tornar-se cristão para aderir à Física
Matemática?

À primeira vista, seríamos tentados a responder negativamente. Primeiramente, porque


por quase quinze séculos a civilização cristã se manteve ao largo da física matemática. Por outro
lado, porque os promotores da ciência moderna não têm sido, de modo geral, bem vistos pela
Igreja. Mas esses dois argumentos não resistem a um exame um pouco mais atento.

Para começar, se os quinze séculos citados forem incontestavelmente cristãos, o


Cristianismo estava longe de haver penetrado na época em todos os domínios da cultura. Sem
dúvida, a teologia e em certa medida a moral (senão o Direito) foram mui rapidamente
cristianizados (sendo que a cristianização da própria teologia não era absolutamente total).

julga errôneas, até mesmo perniciosas e às quais se opõe decididamente. Sua oposição toma geralmente a forma de
um desdém irônico mais ou menos disfarçado, no qual a teoria criticada é levada as suas conseqüências mais
absurdas, ou mesmo grotescas (Cf., por exemplo, Tim., 91 d-e, no qual a famosa teoria “darwiniana” da origem das
espécies que Timeu expõe faz descender as aves dos astrônomos [do gênero de Eudóxio]: “Quanto à raça das aves
que possuem plumas em lugar de pêlos, provêm elas, após uma pequena [sic] modificação, desses homens
desprovidos de maldade, mas leves, que ocupam-se das aparências celestes mas crêem, em razão de sua
simplicidade, que as demonstrações que obtêm através da observação são as mais sólidas”). No diálogo de que nos
ocupamos, Timeu não é nem mais nem menos que Eudoxo (conhecido popularmente como Endoxos, dada sua
grande celebridade) que irritava prodigiosamente Platão não só por ter fundado em Atenas uma escola rival (onde a
teoria platônica das idéias era totalmente deformada em vista de uma aplicação física, e Platão mesmo era
maldosamente criticado por sua falta de cultura científica), mas sobretudo porque o cientismo megaro-eudoxiano se
impunha intensamente aos melhores alunos da Academia, a frente Aristóteles. (Cf. Phil., 62 a-d, onde se observa o
que Platão pensava realmente das ciências em geral e da Física Matemática eudoxiana em particular). Seja o que for,
a tirada ironicamente empolada que encerra o Timeu (e que Sócrates recebe com um silêncio visivelmente
reprovador [Tim. 92 c]) mostra claramente o que Platão não admite na teoria que persegue. Naquela teoria, e por ela,
o mundo em que vivemos é um Deus sensível (théos aïsthetos), o que vem a ser, para um bom pagão tal qual era
Platão, uma noção contraditória nos termos, do tipo das pseudo-noções como círculo quadrado. Ora, se Platão
afirma que a partir daquela teoria o mundo (sensível) é divino, é precisamente por pretender tal teoria encontrar nele
relações, verificar entidades matemáticas. Esta portanto é a idéia base da Física Matemática, a saber, a tentativa
eudoxiana de descobrir nos fenômenos sensíveis (espaço-temporais) relações precisas que subsistem entre as
entidades matemáticas ideais (eternas), que para Platão constituem a um só tempo uma sandice e um escândalo. Não
há dúvida que se poderia afirmar ser o próprio Eudóxio um pagão também. Mas, primeiramente, nada é mais certo
que afirmar que ele bem poderia ser ateu. Além disso, de sua Física Matemática não conhecemos senão a zombaria
propositadamente espalhafatosa que dela fez Platão. Enfim, como foi comentado com muita justiça, foi necessário
aguardar o século XVI para ver a primeira tentativa de dar uma seqüência científica às idéias esboçadas no Timeu
(senão por Platão-Sócrates, por Eudóxio-Timeu). Até lá, sendo geralmente levado a sério (com louváveis exceções,
todavia, como a do imperador filósofo Juliano), o Timeu teve apenas continuações místicas ou mágicas (sem falar
nas simples repetições, antigas ou modernas, nas quais está ausente qualquer tentativa de compreensão). - Além
disso, também Demócrito poderia ser ateu. Não obstante no mundo descrito por Demócrito só seja possível abrigar

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Porém, se quisermos enxergar no estilo gótico a primeira arte especificamente cristã (por ser
voluntariamente contrária à natureza da pedra e da madeira), não devemos nos esquecer dos dez
séculos que foram necessários aguardá-la. Quanto à filosofia, o enorme esforço de toda a Idade
Média teve, senão por meta, pelo menos como resultado único, redescobrir novamente o
Platonismo e depois o Aristotelismo mais ou menos autênticos (portanto, pagãos) que os Padres
da Igreja tendiam demasiadamente a neglicenciar em prol de sua nova teologia, essa sim, de
modo geral, autenticamente cristã (ao menos se nos abstrairmos dos erros tipicamente
neoplatônicos, embora bem intencionados, de um Orígenes ou um Mário Victorino, até dos
escritos apócrifos que Damáscio publicou sob o pseudônimo de Dionísio Aeropagita, ou dos
escritos irônicos do clássico filósofo pagão que foi Clemente de Alexandria). E a situação era
ainda pior no que tange à ciência propriamente dita.

Preocupada antes e sobretudo, com bons motivos e de forma eficaz, em manter a pureza
da fé, ou seja, a autenticidade dos dogmas teológicos cristãos, a Igreja lançava um olhar
displicente (e muitas vezes pouco competente) para as ciências e para a filosofia, onde o
paganismo cedo fez vestir a pele do capeta. Essa displicência dos serviços eclesiásticos
responsáveis levou-os por vezes a defender certas teorias filosóficas e científicas
incontestavelmente pagãs contra aqueles aparentemente bons cristãos que as queriam cristianizar.

Por conseguinte, queiramos ou não, os promotores da ciência moderna não eram via de
regra nem pagãos, nem ateus, nem mesmo anticatólicos (eles só o eram na medida em que a
própria Igreja Católica parecia-lhes ainda impregnada de paganismo). O que esses sábios
combatiam era a Escolástica na sua forma mais avançada, quer dizer, o Aristotelismo restituído a
toda sua autenticidade pagã, cuja incompatibilidade com a teologia cristã havia sido claramente
vista e mostrada pelos primeiros precursores da filosofia dos tempos modernos (que, com
Descartes, tentou pela primeira vez tornar-se igualmente cristã, o que foi efetivamente logrado
por Kant).

Em resumo, e sem sombra de dúvida para nós, senão para eles próprios, foi por haverem
combatido, na sua condição de cristãos, a ciência arcaica, enquanto pagã, que os diversos
Galileus, pequenos, médios e grandes, puderam elaborar sua nova ciência, que é ainda moderna
porque nossa.

um  pagão, ou seja, um Deus duplamente transcendente, pois que Deus necessariamente se situa para além

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Admitindo-se que a ciência moderna nasce de uma oposição consciente e voluntária à


ciência pagã, e constatando que tal oposição não aparece senão no mundo cristão (embora muito
tardiamente e restrita a alguns meios sociais), pode-se perguntar qual dogma particular da
teologia cristã seria, em última análise, o responsável pelo (relativo) domínio que os povos
cristãos (e somente eles) hoje exercem sobre a energia atômica (domínio este que, surgido no
período do fim da história, pode contribuir unicamente para o restabelecimento do Paraíso sobre a
terra, sem jamais fazer mal, pelo menos físico, a quem quer que seja).

Para responder a essa pergunta, parece bastar uma rápida revisão dos grandes dogmas
cristãos da unicidade de Deus, da criação ex nihilo, da Trindade e da Encarnação, em detrimento
de todos os outros (aliás derivados ou secundários, talvez só reflexo, em alguns casos, de
seqüelas do Paganismo).

Ora, no que concerne ao Monoteísmo, sua responsabilidade é visivelmente fora de


questão, posto que ele se encontra em estado puro tanto entre os pagãos esclarecidos quanto entre
os judeus e muçulmanos, irremediavelmente atrasados do ponto-de-vista científico. Quanto ao
criacionismo, o fato de também ser encontrado no Judaísmo e no Islã sob forma autêntica
certamente não é tampouco indicação de que seja responsável pela Ciência moderna. Como não o
é, além disso, o dogma da Trindade, que o (neo)platonismo pagão está longe de ignorar
completamente e que, mesmo entre os cristãos, leva muito mais à introspeção mística ou a
especulações metafísicas do que a uma observação atenta dos fenômenos sensíveis corpóreos ou
às experimentações com estes.2 Resta então o dogma da Encarnação, que é aliás o único dos
grandes dogmas da teologia cristã a ser, do ponto de vista da realidade histórica, ao mesmo tempo
autenticamente e especificamente cristão, ou seja, próprio ao pensamento cristão e somente a

não somente dos fenômenos sensíveis (aliás, puramente subjetivos), mas também da realidade (objetiva) atômica.
2
Bem entendido, a noção da Trindade cristã difere essencialmente da noção trinitária dita neoplatônica (que é, de
fato, puramente platônica por remontar pelo menos ao médio Platonismo, que é somente uma forma dogmatizada do
Platonismo autêntico) e a diferença entre essas duas noções tem uma carga filosófica (ou metafísica, caso se queira)
considerável. Mas essa diferença se prende unicamente ao fato da Encarnação da Segunda Pessoa. Ora, é evidente
que não foi o dogma da Encarnação que foi deduzido do dogma da Trindade. Pelo contrário, é o dogma cristão da
Trindade que é um dogma derivado, no sentido em que a noção trinitária pagã foi aqui radicalmente transformada
para se tornar compatível com aquilo que é para os cristãos o fato da Encarnação (assim como o do dom do Espírito
Santo, na realidade posterior à Encarnação e derivado para encaixar-se com ela).

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ele3. Se então o cristianismo é responsável pela Ciência moderna, é exclusivamente por causa do
dogma da Encarnação.

Ora, se é assim mesmo, a história ou a cronologia concorda perfeitamente com a lógica.

Com efeito, o que é a Encarnação, senão a possibilidade para o Deus eterno de estar
realmente presente no mundo temporal onde vivemos, sem que isto resulte no declínio de sua
perfeição? Mas, se a presença no mundo sensível não deteriora esta perfeição, é que o mundo é
(ou foi, ou será) por sua vez perfeito, ao menos numa certa medida (medida que nada impede de
estabelecer com precisão). Se, como os cristãos crentes o afirmam, um corpo terrestre (humano)
pode ser “ao mesmo tempo” o corpo de Deus e pois um corpo divino, e se, como pensavam os
sábios gregos, os corpos divinos (celestes) refletem corretamente as relações eternas entre
entidades matemáticas, nada mais impede de ir buscar estas relações tanto aqui embaixo quanto
no céu. Ora, é a esta busca que cristãos em número cada vez maior se entregam apaixonadamente
a partir do século XVI, sendo nos últimos tempos seguidos por alguns judeus, muçulmanos e
pagãos4.

Mas o que se passou precisamente durante o século XVI no domínio científico?

Kant foi provavelmente o primeiro a reconhecer o papel decisivo que a Revolução


Copernicana desempenhou na gênese da ciência moderna. Ora, que fez Copérnico, senão projetar
a Terra em que vivemos, com tudo que aqui se encontra, no Céu aristotélico? Já se tem repetido
inúmeras vezes que aquele cônego polonês desalojou a Terra do lugar privilegiado que lhe
designava a cosmologia pagã. Entretanto, tem-se sempre esquecido que aquele lugar não era

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O que a Encarnação é para o cristão nada tem a ver com as pretensas “encarnações” a que visam os mitos pagãos ou
as histórias bíblicas: tornar-se e ser Homem é absolutamente diverso de tomar uma forma (ou uma aparência)
humana (ou outra). Santo Agostinho compreendeu esse ponto perfeitamente, e o mostrou claramente aos cristãos (Cf.
por exemplo De Trin., II, VII, 12 e IV, XXI, 31), enquanto os adeptos do judaísmo nunca disso duvidaram.
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Sem dúvida as conseqüências científicas do dogma da Encarnação só foram extraídas aos poucos (aliás, sem
nenhum auxílio especial da parte das Igrejas). Assim, por exemplo, o paganismo científico pode se manter durante
bastante tempo no mundo cristão graças à persistência da distinção “democritiana” entre as qualidades ditas
“segundas” e “primeiras”, que pareciam anódinas do ponto de vista teológico. Mas a afirmação de que a cor dos
cabelos ou o som da voz de Jesus Cristo são somente fenômenos “puramente subjetivos” equivale com efeito ao
mesmo Docetismo teológico que a Igreja justamente e eficazmente combateu enquanto seqüela evidente do
Paganismo. Nenhuma surpresa, pois, que a Ciência cristã tenha terminado por colocar ela mesma um arranjo neste
deplorável assunto, de maneira que as instâncias eclesiásticas responsáveis e competentes não tiveram que intervir,
pelo menos explicitamente. Hoje, longe de fazer abstração das “qualidades segundas”, ao modo de um Demócrito
que as julgava desprezíveis, a Física matemática as trata com um profundo respeito e busca medi-las a fim de
matematizá-las, tanto elas quanto as que os cientistas pagãos consideravam nobres, ou mesmo divinas.

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privilegiado a não ser no sentido em que dele se esperava ser o lugar mais baixo no mundo (tanto
no sentido literal quanto no figurado dessas palavras).

Para todos os pagãos, assim como para todos os pretensos sábios anteriores a Copérnico, a
Terra e tudo aquilo que nela se encontra eram verdadeiramente um cá-embaixo, em relação ao
qual a Lua assumia a figura de um Transcendente irremediavelmente inacessível, em razão tanto
da perfeição etérea de tudo que fosse celeste quanto do evidente peso do que fosse terrestre, seja
lá o que isso fosse. Ora, essa forma pagã de encarar as coisas não poderia satisfazer um homem
que queria se dedicar à ciência, porém com a condição de permanecer cônego e, por
conseqüência, cristão. Contudo, não basta estar descontente com todos os modos antigos para
encontrar uma maneira nova. E se Copérnico obteve sucesso onde tantos outros bons cristãos
fracassaram (sem também se esforçar muito para superar), é por ter dado provas, não certamente
de imaginação, mas da enorme coragem (intelectual) que só é própria aos gênios.

Seja como for, Copérnico foi quem eliminou da Ciência todo traço de paganismo
“docetista”, fazendo surgir no Céu o corpo do Cristo ressuscitado pelo conjunto do mundo
terrestre, onde Jesus morreu, após aqui nascer. Ora, qualquer que seja esse Céu para os cristãos
fiéis, para todos os estudiosos da época foi um céu matemático ou traduzível em termos
matemáticos. Projetar a Terra nesse Céu eqüivalia então a convidar aqueles estudiosos a se
atirarem à imensa (mas não infinita) tarefa da elaboração da física matemática. Foi o que fizeram
efetivamente os estudiosos cristãos. E porque o fizeram num mundo já bastante cristianizado,
puderam fazê-lo sem suscitar a loucura; nem mesmo o escândalo.

Sem dúvida, a louca projeção copernicana da terra (a nossa) sobre os céus aristotélicos
provocou entre estes uma certa desordem, que teria causado escândalo a um pagão clássico. Mas
os estudiosos verdadeiramente cristãos não podiam mais se chocar, como de fato não o fizeram.
O importante para eles estava, com efeito, inteiramente preservado, a saber, a identidade
científica fundamental da terra e do céu.

Contudo, depois de um certo tempo, mais exatamente depois do tempo em que se


manifesta no mundo (científico ou outros) uma certa tendência ao ateísmo, começam a aparecer
fenômenos inquietantes no universo unificado terráqueo-celeste (aliás em boa – ou má – via de se
tornar paradisíaco, sem que se aguarde uma reconfirmação de seu caráter divino).

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É que o espaço (“de fases”) multidimensional, onde as leis matemáticas da física moderna
(não mais somente quantitativa, mas ainda quântica) são aplicadas necessariamente, mesmo nos
mínimos detalhes, lembra cada vez mais o famoso Cosmos noetos que certos pagãos
qualificavam como transcendente e chamavam de utópico, porque se tratava de um lugar que não
se podia situar, em relação a nós, em nenhum local. Ao passo que o mundo em que os
nascimentos, as vidas e as mortes dos homens se situam em lugares acessíveis e precisos parece
novamente estar fadado à mais completa desordem, regida pelo mero acaso.

Os estudiosos ateus de nosso tempo assistiriam assim a uma espécie de revanche do


antigo e pagão Platão... Mas se assim o fosse, seria uma outra história. Que seria, aliás, tanto mais
outra quanto o acaso novamente em discussão parece, ao encontrar-se com o acaso da
antigüidade, poder ser também traduzido em termos matemáticos e até divinizado no sentido
pagão, do termo: já que se supõe que ele seja perfeitamente mensurável e mesmo – a grosso
modo – preciso, sendo de toda forma eterno.

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