Sie sind auf Seite 1von 518

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Reitor: Prof. Jesualdo Pereira Farias


Vice-reitor: Prof. Henry de Holanda Campos

CENTRO DE HUMANIDADES

Diretora: Profa. Maria de Fátima Oliveira Costa


Vice-Diretora: Profa. Maria Aparecida de Paiva Montenegro

DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS

Chefe: Profa. Sandra Maia Farias Vasconcelos


Vice-chefe: Prof. Júlio César Rosa de Araújo

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

Coordenadora: Profa. Mônica Magalhães Cavalcante


Vice-coordenadora: Profa. Maria Elias Soares
ANAIS

Organização
Izabel Magalhães
Carmem Jená Machado Caetano
Décio Bessa
Denise Tamaê Borges Sato
José Ribamar Lopes Batista Júnior
Lissa Mara Saraiva Fontenele
Sandro Xavier
Tatiana Rosa Nogueira Dias

Revisão
Carmem Jená Machado Caetano
Décio Bessa
Denise Tamaê Borges Sato
Izabel Magalhães
José Ribamar Lopes Batista Júnior
Lissa Mara Saraiva Fontenele
Sandro Xavier
Tatiana Rosa Nogueira Dias

Diagramação e Projeto Gráfico


Denise Tamaê Borges Sato
José Ribamar Lopes Batista Júnior
Jackson Marques

FICHA CATALOGRÁFICA

C129 Seminário de Análise de Discurso Crítica (1. : 2010 maio. 27 e 28:


Fortaleza, CE)
Anais do Seminário de Análise de Discurso Crítica / organizadores,
Izabel Magalhães… *et al.+. Fortaleza, 2010.
... p. ; ... cm.

1- Análise do Discurso - Seminário 2- Crítica – Seminário. 2.


Linguagem e Línguas - Seminário. I. Magalhães, Izabel. II - Título

CDD.(21ª.ed.) 808.0014
ORGANIZAÇÃO E REALIZAÇÃO DO
SEMINÁRIO DE ANÁLISE DE
DISCURSO CRÍTICA

COORDENAÇÃO DO EVENTO
Carmem Jená Machado Caetano (UCB/UFC)
Décio Bessa (UNEB/Campus X; UFC)
Izabel Magalhães (UFC/UnB)

COMISSÃO ORGANIZADORA
Denise Tamaê Borges Sato (UnB)
José Ribamar Lopes Batista Júnior (CAF/UFPI; UnB)
Lissa Mara Saraiva Fontenele (UFC)
Sandro Xavier (UnB)
Tatiana Rosa Nogueira Dias (UnB)
APRESENTAÇÃO

Prezadas e prezados colegas,

A compreensão da relação intrínseca entre linguagem e sociedade, o intuito de investigar


problemas sociais a partir de dados semióticos (fala, escrita, imagem e som) em textos, o olhar
atento para as práticas sociais, o trabalho com a linguagem na busca de desmistificar ideologias
que sustentam relações injustas fazem da Análise de Discurso Crítica (ADC) um paradigma
estabelecido na Linguística.

A ADC avança no universo acadêmico internacional como um programa de pesquisa que realiza
um diálogo interdisciplinar com as ciências humanas e sociais e que caminha com o foco na
sociedade e em necessárias mudanças.

A Universidade Federal do Ceará, por meio do Programa de Pós-Graduação em Linguística,


promove o presente encontro: o Seminário de Análise de Discurso Crítica, em 27 e 28 de maio de
2010, com o objetivo de propiciar um intercâmbio
de pesquisas na área.

Vinte e duas Instituições de Ensino Superior estão


representadas no evento, brasileiros e brasileiras de
catorze estados, de quatro regiões de nosso país.

Constituem o Seminário: quatro conferências


(conferencistas de Santa Catarina, Bahia, Distrito
Federal e Ceará); cinco mesas redondas (envolvendo
dezenove participantes e diferentes Instituições);
vinte e sete comunicações.

Entre os temas abordados estão: mídia, identidade, representação, letramento, discurso,


interdisciplinaridade, Linguística Sistêmico-Funcional, educação especial, trabalho docente,
situação de rua, TIC, racismo, ideologia, violência, multimodalidade.

Como podemos ver, esse é um espaço privilegiado de debates por contar com a participação de
cada um/a de nós.

Cordialmente,

A Coordenação

Carmem Jená Machado Caetano


Décio Bessa
Izabel Magalhães

Fortaleza, 27 de maio de 2010.


SUMÁRIO

Programação................................................................ 07

Conferências................................................................ 11

Mesas Redondas.......................................................... 14

Comunicações Individuais............................................ 28

Anais............................................................................ 44

Autores(as).................................................................516
Seminário de Análise de Discurso Crítica

27/05 – QUINTA-FEIRA – CENTRO DE HUMANIDADES

8h00 Credenciamento
Maria de Fátima Oliveira Costa - Diretora do Centro de Humanidades (UFC)
Abertura
9h00 AUDITÓRIO DA Mônica Magalhães Cavalcante - Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFC)
BIBLIOTECA Izabel Magalhães – Professora (UFC/UnB) - Coordenação do Seminário

Conferência Débora Figueiredo (UNISUL) Em busca do corpo ‘perfeito’: a mídia e o gozo pelo consumo
9h20
10h20 Intervalo
MESA Waltersar José de Mesquita
REDONDA Profissional docente: identidades contraditórias
Carneiro (UEMA/UFC)
Letramento e
Discursos subjacentes à atuação do intérprete de língua de sinais na
ADC no Elcivanni Santos Lima (UnB/SEDF)
educação superior: um olhar crítico
contexto do
Ensino Regular Discurso e letramento: uma proposta teórico-metodológica de
Denise Tamaê Borges Sato (UnB)
10h40 e da Educação investigação do Espaço Educacional
Especial Múltiplos letramentos e a formação das identidades profissionais no
Lissa Mara Saraiva Fontenele (UFC) atendimento educacional especializado – uma pesquisa qualitativa
Coordenação: etnográfica
José Ribamar
Lopes Batista José Ribamar Lopes Batista Júnior Práticas de Letramento no Atendimento Educacional Especializado
(CAF/UFPI/UnB) (AEE)
Júnior

12h40 Intervalo para o almoço

Carmem Jená Machado Caetano Pesquisas interdisciplinares como superação da fragmentação do


14h00 Conferência
(UCB/UFC) conhecimento
Dina Maria Martins Ferreira
O discurso acadêmico: uma ‘república de bons sentimentos’?
(Unicamp/Sorbonne V)
Comunicações
AUDITÓRIO DA Ivia Alves (UFBA) Versos e reversos: representações de mulheres em séries televisivas
BIBLIOTECA
14h45 Coordenação: José Roberto Alves Barbosa (UERN) Análise crítica do ensino da pronúncia do inglês
José Ribamar Paulo Fernando de Carvalho Lopes Águas que matam: uma análise crítica dos discursos de jornais locais
Lopes Batista (UFPI) sobre o rompimento da barragem de Algodões (PI)
Júnior
Por uma análise crítica do cenário enunciativo contemporâneo:
Bruna Sola Ramos (UERJ/FAPERJ)
desdobramentos do “Admirável mundo novo”
Expedito Wellington Chaves Costa Norman Fairclough e a análise do discurso crítica: a linguagem
(UECE) como prática social.

Comunicações João Paulo Lima Cunha (UFS) Do aspecto linguístico à prática social: um retrato da valorização do
SALA 3 Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN) ethos discursivo nos Currículos Lattes dos estudiosos em Letras

José Raymundo Figueiredo Lins Homoafetividade e sociedades heteronormatizadas: vozes silenciadas


14h45 Coordenação: Júnior (UECE) em Brokeback Mountain
Lissa Maria Ivandilson Costa (UERN)
Saraiva A colonização publicitária no discurso político
Weslley Mayron Cunha Pacheco
Fontenele
(UERN)
Paulo Sérgio da Silva Santos (UFS) Divulgação científica ou distorção da ciência? O caso da revista
Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN) Superinteressante

7
Lucimar Bezerra Dantas da Silva As cartas de Helio Galvão numa perspectiva da Análise de
(UFC/UERN) Discurso Crítica
Comunicações Vicente de Lima-Neto (UFC)
SALA 4 Um olhar sobre os recados digitais comodificados
Elaine Cristina Forte Ferreira (UFC)
14h45 Recontextualização das tecnologias de informação e
Maria Inês Rocha de Sá (UERJ)
comunicação na educação: o discurso da comodificação
Coordenação:
Gustavo Cândido Pinheiro (UECE)
Denise Tamaê A violência no forró e a construção identitária do macho
Claudiana Nogueira de Alencar (UECE)
Borges Sato
Lucineudo Machado Irineu (UFC) Do conceito outrora dominante de alfabetização aos Novos
Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFC) Estudos do Letramento: uma retomada histórica
16h50 Intervalo

AUDITÓRIO DA
Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFC) Racismo e ideologia: algumas contradições discursivas
BIBLIOTECA –
MESA
REDONDA Reframming e mudança social: investigando ações linguístico-
Karina Falcone (UFPE)
Discurso, cognitivas no processo de deslegitimação do MST
17h20- Cognição e
19h00 Sociedade
Maria Valdênia Falcão do
Ideologia e Discurso Pedagógico
Coordenação: Nascimento (UFC)
Lívia Márcia
Tiba Rádis Considerações sobre a relação entre o “politicamente correto” e
Baptista Otávia Marques de Farias (UFC)
os Estudos Críticos do Discurso

28/05 – SEXTA-FEIRA – CENTRO DE HUMANIDADES

Luciana Andrade Cavalcante de


A apropriação da arqueologia foucaultiana e da dialogia
Castro (UFG)
bakhtiniana na abordagem discursiva de Norman Fairclough
Alexandre Costa (UFG)
Comunicações Kennedy Cabral Nobre (UFC)
Os parâmetros sintagmático e paradigmático da intertextualidade
AUDITÓRIO Mônica Magalhães Cavalcante (UFC)
8h00 JOSÉ ALBANO
Marco Antonio Lima do Bonfim
(CMLA/UECE) As Construções Identitárias dos/as Sem Terra a partir da Mística do
Coordenação: Claudiana Nogueira de Alencar MST: Uma Análise de Discurso Crítica Multimodal
Sandro Xavier (UECE)
Argus Romero Abreu de Morais Ideologia e mitigação no discurso da inclusão social do ProJovem
(UFC) Urbano
Guianezza Mescherichia de Góis
A construção do “eu” nas Cartas ao editor publicadas na revista
Saraiva (UFRN)
feminina Claudia
Comunicações Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)
SALA 3 Luciane Cristina Eneas Lira
Jovem e bela: identidade de garota na revista para adolescentes
(FAMA/UnB)
8h00
Coordenação: Sérgio Nunes De Jesus
Tatiana Rosa As materialidades discursivas nas práticas de violências contra a
(UFRGS/Capes)
Nogueira Dias mulher
Ana Zandwais (UFRGS)
Derli Machado de Oliveira (UFRN) Vinde após mim, e eu vos farei prósperos: a cultura “promocional”
Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN) ou “de consumo” nas práticas discursivas da Igreja Universal

8
Ruberval Ferreira (UECE) A construção discursiva dos agentes sociais nos discursos sobre o 11
Comunicações Maria Clara Gomes Mathias (UECE) de setembro na imprensa francesa
SALA 4 Imagens de si no discurso: a construção do ethos por meio de
Léia Cruz de Menezes (UFC)
Coordenação: expressões linguísticas modalizadoras.
8h00
Lissa Maria O poder midiático do gênero anúncio nas práticas discursivas sócio-
João Batista da Costa Júnior (UFRN)
Saraiva religiosas na cidade de AÇU/RN
Fontenele O processo de naturalização dos discursos dominantes em notícias:
João Paulo Eufrazio de Lima (UFC)
o caso da Política de Cotas

9h45 Conferência Décio Bessa (UNEB/Campus X; UFC) Linguagem e situação de rua

10h30 Intervalo

MESA Proposta teórica da Análise Crítica do Discurso: contribuição dos


Cleide Emilia Faye Pedrosa (UFRN)
REDONDA estudioss na área
Propostas Proposta prática de Análise Crítica do Discurso: a religião como uma
teoréticas e Derli Machado de Oliveira (UFRN)
mercadoria
práticas de
Análise Crítica
11h00 do Discurso
Taysa Mércia dos Santos Souza Proposta prática de Análise Crítica do Discurso: vozes acadêmicas
Coordenadora: Damaceno (UFRN) sobre o ensino de língua portuguesa
Cleide Emilia
Faye Pedrosa
12h15 Intervalo para o almoço
MESA
Contribuições da Análise de Discurso Crítica: discutindo identidade e
REDONDA Elenita Gonçalves Rodrigues (UPIS)
representação na imprensa e em Reality Shows
Contribuições
para a Análise
de Discurso O texto multimodal no livro didático de língua estrangeira: uma
Antonia Dilamar Araújo (UECE)
Crítica reflexão sobre multimodalidade, ensino e representações culturais.

Coordenação:
Antonia Dilamar A questão da representação na Análise de Discurso Crítica: algumas
14h00 Ruberval Ferreira (UECE)
Araújo questões para o debate

Pedro Henrique Lima Praxedes A contribuição da Gramática Sistêmico-Funcional para a Análise de


Filho (UECE) Discurso Crítica

15h40 Intervalo
16h00 MESA
REDONDA Luzia Rodrigues da Silva (UFG) As professoras: representação e identidades
Análise de
Discurso Crítica
e identidades
Sandro Xavier (UnB) O discurso do abuso sexual a crianças e adolescentes: poder e
Coordenação: identidade em discussão
Luzia Rodrigues
da Silva

Tatiana Rosa Nogueira Dias (UnB) Violência doméstica e familiar: representação e identidade

9
17h15 Conferência Izabel Magalhães (UFC/UnB) Discursos sobre a leitura e a escrita: Letramento e Análise de Discurso
Crítica (ADC)
18h15 Encerramento Mônica Magalhães Cavalcante - Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística – UFC
AUDITÓRIO Izabel Magalhães – Professora UFC/UnB - Coordenação do Seminário
JOSÉ ALBANO –
CENTRO DE
HUMANIDADES

18h30
Entrega de certificados para participantes ouvintes com base nas listas de presença

10
CONFERÊNCIAS

PESQUISAS INTERDISCIPLINARES COMO SUPERAÇÃO DA


FRAGMENTAÇÃO DO CONHECIMENTO

Carmem J. M. Caetano (UCB/UFC)

Palavras-chave: interdisciplinaridade, práticas sociais, Educação Especial.

Esta conferência apresenta uma reflexão acerca da interdisciplinaridade. Nela se tem como
proposta discutir que um projeto interdisciplinar não é ensinado, mas sim vivenciado; nele se
exige a responsabilidade individual e ao mesmo tempo um envolvimento com o projeto
propriamente dito, com as pessoas e com as instituições que fazem parte desse projeto. É essa
prática do diálogo com outras áreas do conhecimento que nos leva às relações e as conexões de
idéias, fazendo-nos perceber, sentir e pensar de forma interdisciplinar. Pensar a
interdisciplinaridade enquanto processo de integração recíproca entre vários campos de
conhecimento “capaz de romper as estruturas de cada uma delas para alcançar uma visão unitária
e comum do saber em parceria”, conforme afirma Palmade (1979), é sem dúvida, uma tarefa que
demanda, de nossa parte, um esforço de rompimento de uma série de obstáculos ligados a uma
racionalidade extremamente positivista da sociedade atual. Minha justificativa para esta palestra
esta ancorada em minha preocupação com as relações que envolvem as práticas sociais da
Educação Especial que tem sido alvo de questionamentos por parte de muitos/as
pesquisadores/as. A precarização social das instituições e a desmobilização social são freqüentes
em nosso país e são, por conseguinte, preocupações que têm motivado cientistas das mais
diversas áreas. Portanto, estudos interdisciplinares ultrapassam as fronteiras das ciências
positivistas e passam a inspirar trabalhos no âmbito da Ciência Social Crítica (CSC), perspectiva
cientifica que visa intervir ativamente na mudança social, assumindo uma posição crítica, sem as
amarras da ‘neutralidade científica’.

EM BUSCA DO CORPO ‘PERFEITO’: A MÍDIA E O GOZO PELO CONSUMO

Débora de Carvalho Figueiredo (PPGCL – UNISUL)

Palavras-chave: discurso, mídia, consumo, revistas femininas, corpo.

Nas sociedades contemporâneas é cada vez maior o poder da mídia, sobretudo da mídia de
massas, capaz de moldar, manter ou alterar conhecimentos, crenças, valores, relações e
identidades sociais, assim como de impactar governos, instituições e políticas públicas
(Chouliaraki; Fairclough, 1999; Fairclough, 2001). A mídia é também um elemento essencial na
criação e manutenção do discurso promocional ou de consumo (Wernick, 1991; Featherstone,
1991; Fairclough, 2001) que caracteriza os fenômenos culturais contemporâneos. Nessa fala,
defendo o uso dos modelos teóricos e metodológicos propostos pela Análise Crítica do Discurso
como ferramentas conceituais e analíticas para investigar e explicar, de uma perspectiva social
crítica, as convocações midiáticas ao consumo, muitas delas imperativas, presentes em revistas
para mulheres, especialmente no que diz respeito ao desenho de um corpo ‘canônico’ (magro,
longelíneo, com musculatura definida). Os enunciados midiáticos pressupõem uma falta na
11
leitora/receptora, falta essa que será suprida através do contrato midiático, com a oferta de
mapas e receitas de conduta, produtos e serviços. Mas essas ofertas não são apresentadas como
meras commodities, e sim como aquele elemento X que distinguirá a leitora/receptora, lhe trará
sucesso, status e acesso a um lugar de gozo e prazer idealizado nos mídia.

LINGUAGEM E SITUAÇÃO DE RUA

Décio Bessa (UNEB/Campus X; UFC)

Palavras-chave: discurso, situação de rua, práticas sociais, mudança.

Um grave problema social do nosso país é vivenciado por cidadãos e cidadãs: a situação de rua. A
indissociabilidade entre linguagem e sociedade torna-se evidente nas opções linguísticas para se
tratar da problemática social: o paradoxo da desigualdade em nosso país e sua naturalização
permite o paradoxo da naturalização de se “morar” na “rua”. Todavia, a dinâmica social e seus
conflitos provocam mudanças; mudanças que acontecem perpassando a linguagem e deixando
suas marcas. A condição supostamente fixa e o resultado de um fenômeno produz a identificação
de “morador de rua”, enquanto o resultado de um processo social que é temporário e ocasionado
pelo sistema capitalista produz a identificação de “pessoa em situação de rua”. A óbvia cidadania
dessas pessoas (embora questionada) vincula-se à compreensão da inexistência da exclusão social;
inexistência que não é tão óbvia nem para o senso comum, nem para perspectivas teóricas (Bessa,
2009). Com fundamentação em Chouliaraki e Fairclough (1999), e Fairclough (2003, 2009), este
estudo apresenta uma análise discursivo-crítica dessas transformações em práticas sociais,
enfocando as alterações que estão acontecendo (ou não) nos usos da linguagem. O corpus é
composto por notícias e reportagens vinculadas ao tema “situação de rua” no Ceará, nos Jornais
Diário do Nordeste e O Povo. Os resultados demonstram uma transição quanto à forma de abordar
o tema, realidade influenciada pela ação de movimentos sociais, de uma pesquisa do governo
federal e de um Decreto da Presidência da República.

DISCURSOS SOBRE A LEITURA E A ESCRITA:


LETRAMENTO E ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC)

Izabel Magalhães (UFC/UnB)

Palavras-chave: discursos, letramento, Análise de Discurso Crítica.

O propósito desta conferência é debater a relação entre letramento e análise de discurso crítica
(ADC), que defendo por entender que ela contribui para preencher uma lacuna no contexto do
ensino da língua portuguesa e, de modo mais geral, no ensino de línguas. Penso que a obra de
Freire (1987) foi marcante no estabelecimento de uma perspectiva crítica na educação, não
apenas no Brasil como também internacionalmente. Entretanto, as críticas ao autor são
negligenciadas. Ao contrário, é necessário explicitá-las à luz de novos debates. A publicação da
obra de Fairclough (2001) entre nós foi um momento importante na aproximação entre os estudos
do letramento e a ADC. Mais recentemente, Rios (2009) dá continuidade às discussões sobre a
relevância de adotar-se uma perspectiva crítica no ensino da leitura e da escrita em eventos de
letramento contextualizados na prática social. Embora haja diversas publicações recentes sobre
letramento, poucas se alinham à perspectiva de um letramento crítico, no sentido defendido por

12
Street (1995). Nesta apresentação, comentarei a respeito de diferentes discursos sobre a leitura e
a escrita (Ivanic, 2004) e defenderei a alternativa da mescla entre discursos (interdiscursividade)
como forma de direcionar questões sobre o ensino para um debate honesto, maduro e,
sobretudo, ético.

Referências
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coord. trad., revisão e prefácio à ed. bras. I.
Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
IVANIC, R. Discourses of writing and learning to write. Language and Education, 18 (3): 220-245,
2004.
RIOS, G. Literacy discourses. A sociocultural critique in Brazilian communities. Saarbrücken: Verlag,
2009.
STREET, B. V. Social literacies. Critical approaches to literacy in development, ethnography and
education. Londres: Longman, 1995.

13
MESAS REDONDAS
LETRAMENTO E ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA NO CONTEXTO
DO ENSINO REGULAR E DA EDUCAÇÃO ESPECIAL

Coordenação: José Ribamar Lopes Batista Júnior (CAF/UFPI/UnB)

Palavras-chave: letramento, Análise de Discurso Crítica, Ensino Regular, Educação Especial.

A mesa traz uma série de recortes sobre os avanços, as vitórias, as fragilidades e as repercuções
criadas no espaço do Ensino Regular e Especial, depois da Conferência Mundial de Educação para
Todos, realizada em Jomtien no ano de 1990. Desse advento, resultaram em profundas
modificações na estrutura educacional brasileira. As transformações, inicialmente, de
financiamento da educação, avançaram para as estratégias operacionais ante a nova proposta de
oferta: A Educação Especial estaria inserida em todos os espaços da educação formal,
transformando a educação brasileira. O debate científico sobre as mudanças promovidas na
educação, no âmbito dos estudos linguísticos, não permaneceu estagnado. Pelo contrário, esta
mesa aborda questões como a identidade docente, as práticas de letramento inerentes aos
contextos do Ensino Regular e Especial, bem como aborda o uso da Análise de Discurso Crítica,
como instrumental transdisciplinar capaz de dar conta da análise social dessas práticas. Os estudos
do Discurso, principalmente a ADC, se preocupam em fazer emergir as formas discursivas que
sustentam concepções hegemônicas. Por isso, apresentamos em quatro estudos, os achados em
pesquisas de campo, em que o foco na educação e no discurso permitiu a construção de um olhar
que parte do interior da prática rumo ao seu contexto sócio-histórico. Não se trata de estipular
bandeiras pró ou contra as estratégias adotadas para a educação, mas a assumpção de uma
postura científica para intervenção no entender e no pensar (crítica) acerca do processo
educacional atual. Neste sentido, também o debate a partir de diferentes práticas (Surdez, Down,
Ensino Regular, Ensino Especial), permeado pelos estudos do Discurso e do Letramento, traz o
desafio de colocar as ideias e ações que nascem dessa construção na pauta de discussão. E essa
construção terá que se dar por meio do aumento do volume e da força das pesquisas.

DISCURSO E LETRAMENTO: UMA PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA


DE INVESTIGAÇÃO DO ESPAÇO EDUCACIONAL

Denise Tamaê Borges Sato (UnB)

Palavras-chave: discurso, letramento, Down.

A Análise de Discurso Crítica, doravante ADC, constitui tanto uma teoria como um método. Em
outras palavras, enxergamos na ADC uma proposta em que “discurso” é considerado tanto como
objeto de análise como um conjunto de conceitos-chave, que lhe conferem a base teórica para seu
estudo. Na vertente de Fairclough (2003) há a recomendação para que o/a analista associe à
análise textual a pesquisa de campo etnográfica. Por meio do estudo dos textos são buscados os
elementos textuais capazes de desvelar as representações (discursos) e as identidades
(estruturas). Enquanto isso, a investigação etnográfica faculta o conhecimento de alguns dos
outros elementos da prática social (pessoas, instrumentos, objetos, tempo e espaço) articulados
14
ao elemento discurso. A visualização desses outros elementos em oposição ao discurso (texto)
precisa, contudo, estar esboçada no desenho da pesquisa e, necessariamente, na análise dos
dados gerados. Articulando-se a pesquisa etnográfica à análise de discurso, temos que o corpus se
amplia, passando a ser formado pelos dados gerados na observação in loccus e dos dados obtidos
na análise textualmente orientada. Neste estudo, apresentamos o trabalho desenvolvido nos anos
de 2007 e 2008, em que utilizamos essa articulação. O contexto da inclusão de alunos/as Down foi
limitado a uma escola pública de Brasília, onde foram investigadas as práticas de letramento
inclusivo (Sato, 2008) e as práticas discursivas de letramento (Magalhães, 1998). Para a análise,
integramos os estudos etnográfico e discursivo, com o fim de traçar aspectos das identidades
docentes que se formavam naquele contexto de prática. Por fim, enfatizamos que as estruturas,
segundo Fairclough (2003), no caso em tela, a identidade, deve ser o principal foco dos analistas
críticos de discurso, uma vez que a crítica deve promover a reflexividade e a mudança social.

DISCURSOS SUBJACENTES À ATUAÇÃO DO INTÉRPRETE DE LÍNGUA


DE SINAIS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: UM OLHAR CRÍTICO

Elcivanni Santos Lima (UnB/SEEDF)

Palavras-chave: discurso, intérprete, língua de sinais.

A atualidade dos debates sobre inclusão na educação traz à tona questionamentos sobre formas
acertadas de se prover acessibilidade às pessoas que dela necessitam. No espaço da educação
superior, um novo profissional é requisitado para atuar a fim de minimizar as barreiras de
comunicação que se colocam diante da pessoa com surdez. Neste contexto, diferentes discursos
permeiam a atividade do/a intérprete de língua de sinais. As implicações da inserção deste
profissional em sala de aula e o impacto que sua atuação provoca nos atores sociais envolvidos no
cotidiano acadêmico constituem o foco deste trabalho. À luz da Análise de Discurso Crítica, serão
analisadas entrevistas com intérpretes de língua de sinais, também incluídos nesse processo de
inclusão. A proposta é identificar os discursos subjacentes a esta prática social, a partir da análise
textual visando uma investigação aprofundada sobre a figura do intérprete de língua de sinais,
profissão emergente e ainda em construção. A identificação de tais discursos pode contribuir para
uma reflexão necessária, com vistas à percepção da necessidade de uma real inclusão das pessoas
surdas, partindo do reconhecimento do profissional que a serviço delas atua.

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO ATENDIMENTO


EDUCACIONAL ESPECIALIZADO (AEE)

José Ribamar Lopes Batista Júnior (CAF/UFPI/UnB)

Palavras-chave: letramento, Atendimento Educacional Especializado, etnografia.

Considera-se Atendimento Educacional Especializado (AEE) o conjunto de atividades, recursos de


acessibilidade e pedagógicos organizados institucionalmente, prestado de forma complementar
ou suplementar à formação dos alunos no ensino regular (MEC, 2008). Nesse sentido,
objetivamos, neste trabalho, investigar as práticas de letramento (práticas de leitura e escrita) das
equipes multiprofissionais de atendimento educacional à pessoa deficiente. A fundamentação

15
teórica da pesquisa, em andamento, está alicerçada nas contribuições da Etnografia (LOPES, 2004;
ANGROSINO, 2009) combinada a Teoria Social do Letramento (BARTON E HAMILTON, 1998;
BARTON, HAMILTON E IVANIC, 2000; BARTON, 2006; RIOS, 2009; BAYNHAM, 2009) e a Análise de
Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 1992, 2003). O corpus é formado pelas observações feitas nos
núcleos de atendimento pedagógico educacional de três cidades: Brasília (DF), Fortaleza (CE) e
Teresina (PI) e, também, pelas notas de campo.

MÚLTIPLOS LETRAMENTOS E A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES PROFISSIONAIS NO


ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO – UMA PESQUISA QUALITATIVA
ETNOGRÁFICA

Lissa Mara Saraiva Fontenele (UFC)

Palavras-chave: letramento, identidade, etnografia.

Esta pesquisa faz parte do Projeto Integrado de Pesquisa Múltiplos letramentos, Identidades e
Interdisciplinaridades no Atendimento Educacional à Pessoa Deficiente e conta com o apoio do
CNPq. A pesquisa tem como objetivo investigar a interdisciplinaridade no Atendimento
Educacional Especializado (AEE) à pessoa deficiente a fim de compreender um dos problemas
registrado no projeto anterior: o despreparo dos docentes para relacionarem-se com deficientes.
Uma das causas percebidas foi que os vários profissionais envolvidos na política de inclusão do
MEC na verdade trabalham de forma isolada, sem contato entre si. Isso acaba se mostrando
danoso para todos os envolvidos, pois além de não contribuir para o crescimento da pessoa com
deficiência, é altamente comprometedor para a política do governo. Assim, é fundamental nesta
pesquisa olhar para as interdisciplinaridades – focalizando a relação entre os conceitos de
múltiplos letramentos, de Brian Street, identidades e interdisciplinaridades – e investigar de que
forma múltiplos letramentos nas relações interdisciplinares contribuem para as identidades
profissionais no AEE. A metodologia de pesquisa será a Análise de Discurso Crítica (ADC)
(Fairclough, 1999) em conjunto com a pesquisa qualitativa etnográfica. Tendo como preocupação
primordial a ética, os métodos do trabalho de campo desta pesquisa serão a observação
participante, as entrevistas, as narrativas desenvolvidas com os profissionais do AEE, a coleta e o
registro de diários (GEERTZ, 1978, 1983; JONES, MARTIN-JONES, E BHATT, 2000; MAGALHÃES,
2006; RADHAY, 2008; RESENDE, 2009).

PROFISSIONAL DOCENTE: IDENTIDADES CONTRADITÓRIAS

Waltersar José de Mesquita Carneiro (UEMA/UFC)

Palavras-chave: trabalho docente, linguística aplicada, identidade.

A partir de uma percepção inicial da existência de um sentimento de desmotivação e de


desvalorização do trabalho do profissional docente (MORAES, 1997; FACCI, 2004), busco investigar

16
como as identidades profissionais docentes são performadas nas práticas discursivas e como elas
contribuem para a valorização ou para a desvalorização do profissional docente. Dessa forma,
objetivo criar inteligibilidade sobre esse processo. Esse estudo é realizado tendo por base as
orientações da Linguística Aplicada Indisciplinar, como propõe Moita Lopes (2006), numa interface
com as orientações metodológicas da Análise de Discurso Crítica, propostas por Chouliaraki e
Fairclough (1999). Nossa tese é que existe, no próprio discurso docente, uma coexistência de
discursos contraditórios, que valorizam e que desvalorizam o profissional docente, o que
demonstra existir uma tensão entre esses dois discursos, tensão característica do mundo
contemporâneo em que vivemos.

DISCURSO, COGNIÇÃO E SOCIEDADE

Coordenação: Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFC)

Palavras-chave: discurso, sociedade, cognição, ideologia.

Pretende-se, na mesa redonda intitulada “Discurso, cognição e sociedade”, explorar aspectos


ideológicos dos discursos, tendo em vista as contribuições epistemológicas de Teun van Dijk (2000,
2003, 2008), no que tange às estruturas linguísticas e sua relação com as representações sociais
dos diferentes grupos. Sendo assim, em torno dessa temática e consoante com uma perspectiva
dos estudos críticos dos discursos, objetiva-se problematizar as relações de poder, ideologia,
discurso e cognição na sociedade brasileira contemporânea. Com esse propósito, examinaremos
alguns aspectos linguísticos e discursivos ligados às questões ideológicas que permeiam a
constituição enunciativa do Discurso Pedagógico (DP) vigente na sociedade brasileira atual.
Interessará discutir as relações entre educação e escola, com o fim de analisar como se constituem
as ideologias construídas, reproduzidas e naturalizadas nesse espaço social. Outra temática
abordada é a da investigação, a partir das práticas discursivas, do processo de reconceitualização
sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), especificando a análise no caso do
massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará. O cerne da questão estudada será a relação
discurso ↔ cognição ↔ sociedade. Além dessas propostas, analisaremos a relação entre o
discurso politicamente correto e os estudos críticos do discurso, buscando observar até que ponto
o escopo da Análise do Discurso Crítica (ADC) está alinhado ao discurso politicamente correto.
Analisaremos, para tanto, os conhecimentos que atuam para a formação/manipulação dos
modelos mentais em textos nos quais identificamos o posicionamento politicamente correto. Por
fim, nos interessará discutir como se instaura o espaço da contradição discursiva em torno da
temática da inclusão e exclusão social, tendo em vista a política afirmativa do governo, as ações
políticas que visam promover, em um viés institucional e institucionalizante, a igualdade social de
direitos e como os grupos, ideologicamente constituídos, reagem diante das reivindicações dessa
igualdade.

17
REFRAMMING E MUDANÇA SOCIAL: INVESTIGANDO AÇÕES
LINGUÍSTICO-COGNITIVAS NO PROCESSO DE DESLEGITIMAÇÃO DO MST

Karina Falcone (UFPE – Nelfe)

Palavras-chave: reframing, Eldorado dos Carajás, cognição, mudança social.

O objetivo central deste trabalho é investigar, a partir das práticas discursivas, o processo de
reconceitualização sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), especificando a
análise no caso do massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará. O cerne da questão
estudada é a relação discurso ↔ cognição ↔ sociedade. Este estudo tem como base a Análise
Crítica do Discurso, em sua abordagem cognitiva, e a proposta de reframming de Lakoff (2004).
Para o desenvolvimento dessas reflexões, investigamos o discurso do domínio jornalístico sobre o
MST, durante o período de 1996 a 2006, caracterizando os dez primeiros anos de cobertura sobre
o massacre. A questão propulsora para essas análises é identificar as relações de constituição e
conflitos discursivos travados sobre o tema, e como tais discursos reverberam em sociedade,
identificando as vozes dominantes e as ações contrárias a tais vozes. Nesse ‘embate discursivo’,
interessa-nos a análise da ocorrência do processo de reframing, ou mudança conceitual, sobre o
caso de Eldorado dos Carajás e sobre o próprio movimento dos sem-terra. O conceito de
reframing se mostra relevante para um trabalho de natureza linguístico-cognitiva, pois levanta
importantes questões sobre como ocorre a mudança social. O jornal investigado é a Folha de S.
Paulo e os gêneros analisados são notícia e reportagem.

RACISMO E IDEOLOGIA: ALGUMAS CONTRADIÇÕES DISCURSIVAS

Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFC)

Palavras-chave: inclusão, políticas afirmativas, racismo, discurso, ideologia.

Pretende-se discutir como se instaura o espaço da contradição discursiva em torno da temática da


inclusão e exclusão social, tendo em vista a política afirmativa do governo, as ações políticas que
visam promover, em um viés institucional e institucionalizante, a igualdade social de direitos e
como os grupos, ideologicamente constituídos, reagem diante das reivindicações dessa igualdade.
Como exemplo dessas ações afirmativas cabe mencionar as iniciadas no governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso e que tiveram continuidade no do presidente Luis Inácio Lula da Silva
e que têm sido alvo de intensas discussões e levado a diversos estudos acerca das desigualdades
no país. Entre as ações afirmativas destacamos aquelas consideradas extremamente polêmicas
como o sistema de cotas para negros e negras em vestibulares e concursos públicos e as
justificáveis como o Estatuto do idoso e a Lei Maria da Penha. Temos examinado, em um viés
discursivo, essas ações afirmativas, problematizando a polêmica discursiva (Farias, 2007) e a
conformação identitária (Romero, 2010). Neste trabalho, em particular, nos voltaremos para a
política das cotas, com o objetivo de identificar nos posicionamentos cotidianos dos sujeitos
exemplos de contradições discursivas com respeito à inclusão dos negros na nossa sociedade. Com
esse fim nos centraremos nas relações entre discurso, ideologia e racismo a fim de observar com
sugere van Dijk (2000, 2003, 2008) que o racismo manifestado por meio do discurso obedece a
estruturas rígidas, em concreto a estruturas ideológicas, que são evidenciadas nas mais diferentes
práticas de linguagem. Deste modo, propomos mostrar que se faz necessário estudar esses

18
discursos e práticas cotidianas como forma de ação, de combate ao racismo, em especial, no que
tange à difusão das práticas discriminatórias em nosso país a fim de observar e contestar sua
reprodutibilidade bem como encaminhar para a superação dessas.

IDEOLOGIA E DISCURSO PEDAGÓGICO

Maria Valdênia Falcão do Nascimento (UFC)

Palavras-chave: discurso pedagógico, ideologia, sociedade, sujeito, língua.

Neste trabalho, tratamos de alguns aspectos ligados às questões ideológicas que permeiam a
constituição enunciativa do Discurso Pedagógico (DP) vigente na sociedade brasileira atual. Trata-
se de discutir as estreitas relações entre educação e escola (Bourdieu, 1974), (Orlandi, 2001),
(Coracini, 1999), objetivando analisar como se constituem as ideologias que são construídas,
reproduzidas e naturalizadas nesse espaço social (Van Dijk, 2005), (Hall, 1997). Nesse sentido,
importa estabelecermos, inicialmente, de que maneira definimos o conceito de ideologia, que
estamos assumindo como pressuposto teórico, para, em seguida, enfocarmos as relações que se
estabelecem entre esse e o Discurso Pedagógico reproduzido pelos protagonistas das ações que se
desenvolvem no âmbito escolar. Entre as questões que motivam nossa reflexão, destacamos as
que se seguem: 1. Como o discurso veiculado pelos sujeitos envolvidos com as práticas
educacionais (professores, alunos e administradores) adquirem, expressam e reproduzem
ideologias no espaço da sala de aula? 2. Qual o impacto que sofrem os sujeitos-alunos que
experienciam essas ideologias e como elas interferem nas representações formuladas sobre o
processo de ensino e aprendizagem? 3. Que espaço de atuação e resistência encontram
professores e alunos na tentativa de confrontar as “regras” e as relações de poder estabelecidas
pela escola, vista como um “aparelho ideológico do Estado” (Althusser, 1996)? Estas e outras
questões permeiam nossa reflexão em torno da problemática que envolve o DP e as ideologias
que lhe são subjacentes de forma constitutiva, tendo em vista que, segundo sustenta Dijk (2005),
as ideologias são gradualmente adquiridas e, às vezes, os sujeitos, de forma individual, podem
mudar suas crenças com o passar do tempo e com as experiências que adquire ao longo da vida.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O “POLITICAMENTE CORRETO”


E OS ESTUDOS CRÍTICOS DO DISCURSO

Otávia Marques de Farias (UFC)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, politicamente correto, cognição, ideologia, modelos


mentais.

A Análise do Discurso Crítica (ADC) define-se como uma abordagem que tem como objetivo
chamar atenção para relações de abuso de poder que se estabelecem através dos discursos. É uma
área de estudos com caráter militante, portanto, e suas análises se caracterizam pela preocupação
social, pela relação estabelecida com outras disciplinas, pela defesa das minorias e pela divulgação
de resultados de pesquisa como forma de denúncia. Diante disso tudo, um olhar sobre o que
costumamos chamar de discurso “politicamente correto”, bastante difundido nos meios sociais já
há algum tempo, acaba trazendo o seguinte questionamento: sabendo-se que o que se

19
convencionou socialmente agrupar sob a designação de “politicamente correto” está relacionado a
um tipo de atitude realizada por sujeitos que deixam bem clara sua intenção de “construir um
mundo melhor”, pode-se considerar a ADC como uma das manifestações do discurso
politicamente correto? Para observar até que ponto o escopo da ADC está alinhado ao discurso
politicamente correto, utilizamos como referencial teórico a visão de Teun van Dijk, que propõe
uma teoria sociocognitiva do discurso, de acordo com a qual o discurso precisa ser mediado para
se tornar prática social. Tal mediação, segundo o autor, seria realizada pela cognição, através de
modelos mentais, estruturas formadas a partir de discursos ideologicamente eficientes. Assim,
analisamos, a partir dessa perspectiva de van Dijk, textos (principalmente, peças publicitárias e
artigos) nos quais é identificado o posicionamento politicamente correto e observamos quais os
conhecimentos neles operacionalizados pelo enunciadores e de que modo esses conhecimentos
atuam para a formação/manipulação dos modelos mentais dos enunciatários. Analisamos, por fim,
a relação entre esses conhecimentos (e o modo como atuam) e os conhecimentos estabelecidos
pela ADC.

PROPOSTAS TEORÉTICAS E PRÁTICAS DE ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

Coordenação: Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, discurso religioso, discurso pedagógico.

Esta mesa tem como objetivo apresentar, em primeiro plano, uma visão teórica da Análise
Crítica do Discurso (ACD), para logo em seguida apresentar duas propostas de análise que foram
desenvolvidas com base nessa linha de investigação, especialmente, na que concerne à corrente
social desenvolvida por Fairclough (2003, 2008). Os que fazem ACD apontam os anos 90 como
uma década de consolidação dessa proposta teorética no panorama das ciências da linguagem.
Defendem ainda que para se fazer análise crítica do discurso é necessário uma teorização e
descrição dos processos e as estruturas sociais responsáveis pela produção de um texto e como os
sujeitos históricos, em sua interação com este texto, criam significações. Assim, trabalhar
conscientemente com textos/discursos em seus aspectos de produção, distribuição e consumo
pode mudar a realidade social porque necessariamente altera os entendimentos e as relações
entre os sujeitos sociais. Dentro desta proposta, que visa as transformações da prática discursiva e
consequentemente das práticas sociais, não se pode pensar em linguistas acríticos. Cabe, assim, a
(nós) investigadores neste campo, retratar a opacidade das práticas linguageiras a fim de
demonstrar que mesmo sendo sujeitos resultantes de ideologias, somos capazes de transformar
esta realidade que nos moldou. Na perspectiva prática, traremos, primeiramente, um trabalho que
investiga o discurso religioso, elaborado a partir da análise do “testemunho”. O eixo central das
discussões utiliza como suporte teórico e metodológico a Análise Crítica do Discurso, por meio do
conceito de comodificação. A outra pesquisa enfatiza a heterogeneidade dos textos de alunos de
Letras, evidenciado pelas vozes sobre o ensino de Língua Portuguesa, observando aspectos
intradiscursivos e interdiscursivos que marcam a formação do docente de Língua Materna.

20
PROPOSTA TEÓRICA DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO:
CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDIOSOS NA ÁREA

Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)

Palavras-chave: correntes da ACD, enfoque social, mudanças sociais, representantes.

Nessa palestra, faremos uma retrospectiva histórica do surgimento da Análise Crítica do Discurso.
Seus posicionamentos teóricos, suas correntes de pesquisas e métodos utilizados serão apontados
dentro de um contexto que abarque a ACD como ciência crítica e social. Dentre as correntes que
se consolidaram, apontam-se a microsociológicas; as teorias sobre a sociedade e o poder com
base na tradição de Michel Foucault; e as teorias do conhecimento social. A partir dessa
abordagem geral, será feito um recorte que isolará o enfoque social de Fairclough, observando
seletivamente sua proposta para a análise das práticas lingüísticas, discursivas e sociais
necessárias para se estudar textos/discursos, tendo em vista todo discurso ser historicamente
produzido e interpretado. Nesta concepção, o ponto central defendido é a relação irredutível
entre linguagem e sociedade que, por sua vez, traz como conseqüência as mudanças sociais
geradas a partir da luta social, operacionalizada no discurso com o fim de romper as estruturas
sedimentadas na vida social. Quando se definiu como abordagem crítica do discurso, a ACD,
segundo Fairclough (2008), pressupõe entender o posicionamento teórico de revelar a opacidade
da linguagem e pressupõe o propósito de intervir na sociedade a fim de gerar mudanças,
principalmente, a favor dos ‘perdedores’, dos menos favorecidos. Com isto se responde ao que
Rajagopalan (2003) destaca como sendo o clamor por um tratamento crítico em relação ao
fenômeno da linguagem.

PROPOSTA PRÁTICA DE ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: A RELIGIÃO COMO


UMA MERCADORIA

Derli Machado de Oliveira (UFRN)

Palavras-chave: mudança discursiva, comodificação, domínio discursivo religioso, Teologia da


Prosperidade.

Nesta palestra apresentamos os primeiros resultados da nossa pesquisa de mestrado que


investigou o discurso religioso da Igreja Universal do Reino de Deus, elaborado a partir da análise
do “testemunho” de fiéis dessa Igreja, veiculado na seção Superação do Jornal Folha Universal. O
eixo central das discussões desta pesquisa se situa na noção de mudanças nas práticas discursivas,
proposta por Fairclough (2008), segundo a qual algumas atividades sociais como a educação,
médica, e religião, estão sendo invadidas por práticas de “mercado”. Assim, elas estão cada vez
mais pressionadas para que se envolvam com novas atividades que são determinadas em grande
parte por novas práticas discursivas (como marketing). Utilizando-se como suporte teórico e
metodológico a Análise Crítica do Discurso, por meio do conceito de comodificação (FAIRCLOUGH,
2008), focalizamos, neste trabalho, as mudanças no domínio discursivo religioso, sua constituição
na heterogeneidade pós-moderna, e a forma como outros gêneros, especialmente o da
publicidade (na mídia), tem moldado seu estilo e identidade. Afetadas pelas transformações
econômicas e sociais, pouco a pouco as estruturas religiosas tradicionais foram substituídas e os
conteúdos ideológicos do discurso religioso passaram a refletir não só valores e crenças daquilo

21
que se denomina religioso, mas também expressam interesses midiáticos e mercadológicos. Estes
“novos conceitos” estão sendo propagados através da utilização massiva que fazem das mídias;
televisão, jornal, revista, rádio, internet entre outros meios. Os resultados apontam para a
indicação de que o uso da nova configuração do testemunho atende não só às demandas
espirituais, como também às exigências de mercado, estimulada que está pela cultura do consumo
propagada pela mídia. Usam o testemunho como mais um recurso para seus interesses, utilizando
as massas como fonte de consumo, audiência, manipulação, sujeição e exploração.

PROPOSTA PRÁTICA DE ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO:


VOZES ACADÊMICAS SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno (UFRN)

Palavras-chave: ensino de Língua Portuguesa, primado do interdiscurso, intertextualidade, Modelo


Tridimensional do Discurso.

O discurso se caracteriza pelos diferentes sentidos que cada falante atribui a uma palavra, a um
enunciado, a um texto, formando, assim, um conjunto ideológico, que incide sobre as
determinações culturais, linguísticas e subjetivas. Desse modo, os efeitos de sentido emergem das
imposições ideológicas e do trabalho mais ou menos consciente do sujeito sobre o sentido da
língua. O discurso também é uma prática social resultante dessas imposições e o posicionamento
de um sujeito crítico diante desse contexto é tema relevante de nossa análise. No presente
trabalho, partimos da análise discursiva dos textos de alunos de Letras, evidenciado pelas vozes
sobre o ensino de Língua Portuguesa, observando aspectos intradiscursivos e interdiscursivos que
marcam a formação do docente de Língua Materna. Seguimos o postulado teórico da Análise
Crítica do Discurso, sob a ótica da análise tridimensional de Norman Fairclough (2008): análise
textual, prática discursiva e prática social, contemplando assim o primado do interdiscurso.
Focalizamos a categoria da intertextualidade manifesta, enfatizando a heterogeneidade dos
textos. Desse esboço, depreendemos que identidades subalternas marcadas pela tradição e
renovação no ensino de LM caracterizam uma relação de linguagem e poder, uma vez que a
renovação é marcada pela democratização, pela língua diversa, e a tradição como marca de classe
dominante. Conclui-se que não se pode negar a importância de uma língua, mediante o
intermédio do idioma utilizado pelo sujeito crítico marcado por uma identidade, ideologias e
poderes, quando a questão é o ensino, retratando a instabilidade na formação docente, as várias
vozes que circulam na intenção de demarcar os espaços discursivos.

CONTRIBUIÇÕES PARA A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

Coordenação: Antonia Dilamar Araújo (UECE)

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, representação, multimodalidade, Gramática Sistêmico-


Funcional

Esta mesa propõe debater a Análise de Discurso Crítica, examinando os conceitos


de representação e multimodalidade. Representação é o foco dos trabalhos de Elenita Gonçalves
Rodrigues e Ruberval Ferreira; multimodalidade é abordada por Antonia Dilamar Araújo. O quarto

22
trabalho é o de Pedro Henrique Lima Praxedes Filho, que examina a contribuição da Gramática
Sistêmico-Funcional.

O TEXTO MULTIMODAL NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA


REFLEXÃO SOBRE MULTIMODALIDADE, ENSINO E REPRESENTAÇÕES CULTURAIS

Antonia Dilamar Araújo (UECE)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, Teoria Semiótica Social, gêneros multimodais

É consenso entre estudiosos que o mundo é semiotizado e que vivemos em uma era de
pluralidade de usos da linguagem em diferentes contextos sociais (KRESS; van LEEUWEN, 1996,
2001). Também é consenso que usamos a linguagem ao interagir interpessoalmente, ao expressar
experiências, ao construir identidades e ao desenvolver e reconstruir conhecimento
(FAIRCLOUGH, 1989, v 1992) em diversos gêneros orais e escritos. Com o avanço das tecnologias,
as práticas sociais conferiram novas configurações lingüísticas às formas de comunicação dando
ênfase aos textos multimodais utilizados largamente em diferentes esferas incluindo a educação.
A grande utilização de imagens, por exemplo, para a comunicação revela que o texto multimodal
se apresenta como fonte de investigação e análise para a Análise Crítica do Discurso (ACD) e para a
Teoria da Semiótica Social, porque mostra como esses textos reproduzem atitudes ideológicas e
com a linguagem pode ser usada para veicular poder na interação social pós-moderna (VIEIRA et
al, 2007). Considerando que o ensino de línguas estrangeiras têm se utilizado de modos semióticos
nas diversas atividades dos materiais didáticos e empregando uma abordagem integrada da ACD e
multimodalidade, este trabalho pretende analisar e discutir o papel dos textos multimodais em
gêneros diversos presentes em livros didáticos para o ensino de língua inglesa e espanhola, com
também verificar como a representação de sentidos é construída pelo produtor dos signos para
determinar como as representações culturais e ideologias são apresentadas aos aprendizes.

CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: DISCUTINDO IDENTIDADE E


REPRESENTAÇÃO NA IMPRENSA E EM REALITY SHOWS

Elenita Gonçalves Rodrigues (UPIS)

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, identidade, representação, imprensa, reality shows

À luz da Teoria Social do Discurso e do aparato metodológico da Análise de Discurso Crítica


(Fairclough, 1989; 1995; 1999; 2003; 2008; Fairclough & Wodak, 2001), discutirei dados da
imprensa escrita (Revista Veja, Jornal Campus entre outros) referentes à minha participação no
Programa Big Brother Brasil 10 (Rede Globo). A construção midiática da identidade da “primeira
doutora” a participar de um reality show no Brasil nos oferece elementos para o alcance da crise
paradigmática característica das Ciências Exatas e Humanas nos dois últimos séculos dentro da
academia e fora dela, contribuindo para um debate mais amplo sobre mídia, ideologia e
representação.

23
A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO NA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA:
ALGUMAS QUESTÕES PARA O DEBATE

Ruberval Ferreira (UECE)

Palavras-chave: representação; significação; ética; discurso

A questão da representação na Análise de Discurso Crítica, na perspectiva teórica elaborado por


Norman Fairclough, de acordo com a última formulação por ele proposta, vem sendo pensada a
partir da consideração de que o discurso é simultaneamente uma forma de ser, uma forma de agir
e uma forma de representar. No entanto, no que diz respeito ao significado representacional,
embora Faircough (2003) pense essa forma de significação como projeção, como construção
social, política e ideológica, ele não chega a entrar no mérito da questão da dimensão ética que as
formas de representar implicam. Este trabalho consiste, pois, na proposição de algumas questões
para uma melhor formulação dessa dimensão que as formas de representar implicam, a partir de
um diálogo com a Pragmática Cultural, na forma como venho pensando este novo campo,
juntamente com Alencar (2009), e com a Nova Pragmática, tal como proposta por autores como
Rajagopalan (2010).

A CONTRIBUIÇÃO DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL PARA A ANÁLISE


DE DISCURSO CRÍTICA

Pedro Henrique Lima Praxedes Filho (UECE)

Palavras-chave: Gramática Sistêmico-Funcional, Análise de Discurso Crítica, ideologia.

Mais genericamente, Martin (2000) argumenta sobre a necessidade quanto ao estabelecimento


de uma metalíngua universal e aponta que “o modelo *...+ que já está emergindo como lingua
franca [metalinguística] tendo em vista [a pesquisa] em Linguística Aplicada de orientação
discursiva é a Linguística Sistêmico-Funcional tal como desenvolvida por Halliday e seus colegas ao
redor do mundo” (p. 123). De modo mais específico, Martin; Rose (2002) afirmam que o fato de a
GSF ser “uma concepção de linguística como uma forma ideológica de ação social tem sido um
fator importante” (p. 263) no que diz respeito ao sucesso do diálogo entre a GSF e a ADC.
Portanto, pretendo, nesta apresentação, mostrar que aspectos ideológicos podem ser explicitados
e desnaturalizados através da análise microlinguística das orações livres e presas de um texto do
ponto de vista das seguintes áreas da lexicogramática: transitividade, modo, modalidade,
avaliatividade, tema e informatividade. Para finalizar, ilustrarei a relação entre a análise das
escolhas lexicogramaticais feitas pelo(a) autor(a) do texto – sistemas de transitividade, modo,
modalidade e tema – e seu posicionamento ideológico através de um estudo sobre o que disse a
mídia de esquerda americana, via a palavra de Noam Chomsky (Counter Punch, 12/09/2001) e a
palavra de Susan Sontag (The New Yorker, 24/09/2001), sobre os eventos de 11/09/2001 em Nova
York (PRAXEDES FILHO; QUEIROGA; SOUSA; PINHEIRO, 2009).

24
ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA E IDENTIDADES

Coordenação: Luzia Rodrigues da Silva (UFG)

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, discurso, identidades, gênero social.

Propomos levantar e debater questões relacionadas à discussão sobre gênero social e construção
identitária. A base teórica – e metodológica – que fundamenta nossos trabalhos é a Análise de
Discurso Crítica, conforme os estudos de Chouliaraki e Fairclough (1999) e de Fairclough (1992,
2003). Essa abordagem defende a linguagem como prática social e chama a atenção para o
sentido crítico que deve pautar as análises, o que implica o desnudamento e o questionamento
dos problemas sociais que afetam a vida das pessoas, bem como a indicação de contribuições para
sentidos de resistência e mudanças. Apresentamos análises voltadas para: a) o discurso de
professoras que atuam no Ensino Básico. Focalizamos os modos como elas se auto-representam e
representam as/os estudantes, bem como as implicações dessas representações para a construção
de suas identidades. Sugerimos que, mesclando-se aos discursos emancipatórios, há discursos que
expressam as relações sociais do domínio privado; b) os discursos relacionados à questão do
abuso sexual a crianças e adolescentes. Jogamos luz sobre o abusador e enfatizamos que ele
reconhece a criança e o adolescente como um indivíduo incapaz não somente de exercer a
responsabilidade social, mas até mesmo de ter voz ativa. Indicamos o que a sociedade pensa a
respeito do assunto e o que ela está fazendo para controlar essa prática hoje; c) os discursos
relacionados à prática social da violência doméstica e familiar. Focalizamos as implicações entre as
representações de gênero e a construção identitária, bem como destacamos aspectos de mudança
social, indicados com a implantação da Lei nº 11.340, Lei Maria da Penha.

AS PROFESSORAS: REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADES

Luzia Rodrigues da Silva (UFG)

Palavras-chave: discurso, identidades, professoras.

Com este trabalho, proponho-me a apresentar um recorte de uma pesquisa - de caráter


metodológico qualitativo e etnográfico - realizada em escolas do Ensino Básico. Analiso textos de
entrevista proferidos pelas professoras e indico os modos como elas se auto-representam e
representam as/os estudantes, bem como as implicações dessas representações para a construção
de suas identidades. Para essa investigação, como suporte teórico-metodológico, recorro à Análise
de Discurso Crítica (ADC), fazendo uso, principalmente, dos trabalhos de Chouliaraki e Fairclough
(1999) e de Fairclough (1992 e 2003). Parto da perspectiva de que a linguagem é prática social e,
como tal, configura-se um sistema aberto (Chouliaraki e Fairclough, 1999), que, dialeticamente,
interage com os vários domínios da vida social. Defendo que a construção do discurso das
professoras está associada aos significados do seu mundo social. Dessa maneira, enfatizo que elas
interiorizam valores, crenças, desenvolvendo modos de resistir ou de consentir aos efeitos do
poder (Foucault, 1979). Esse pressuposto está relacionado à concepção de que, ao realizar o
discurso em situações sociais, as pessoas, ativamente, constroem suas identidades. Na análise,
interpreto aspectos ideológicos, identificando como as ações e atividades humanas são
representadas no discurso, que realidade está sendo retratada e como as professoras posicionam-

25
se e são posicionadas. Indico que essas profissionais encontram-se entre os domínios dos mundos
público e privado, pois, apesar de assumirem discursos emancipatórios, ainda, interiorizam
discursos que expressam as relações sociais do domínio doméstico.

O DISCURSO DO ABUSO SEXUAL A CRIANÇAS E ADOLESCENTES:


PODER E IDENTIDADE EM DISCUSSÃO

Sandro Xavier (UnB)

Palavras-chave: pedofilia, identidade, poder, Análise de Discurso Crítica.

É tema atual a pedofilia em todo o mundo, especialmente por casos relacionados ao clero da
Igreja Católica Apostólica Romana. Contudo, esse não é um problema somente dessa agremiação
eclesiástica, posto que se encontra em toda a sociedade, assolando a vida de crianças e
adolescentes em todo o mundo, em família dos mais diferentes matizes. Muitas organizações não
governamentais e órgãos públicos têm trabalhado a questão e estimulado a sociedade a denunciar
casos existentes. Diante disso, muitas situações têm surgido e a população busca uma maneira de
se defender e punir os responsáveis. Por intermédio da Análise de Discurso Crítica (ADC),
estudaremos discursos relacionados à questão do abuso sexual a crianças e adolescentes.
Buscaremos a relação do abusador como aquele que reconhece a criança e o adolescente como
um indivíduo incapaz não somente de responsabilidade social, mas até mesmo de ter voz ativa. O
poder que o adulto tem sobre a criança, na ótica do cuidado, transforma-se em um abuso de
poder que se aproveita da condição da identidade da criança e do adolescente, por vezes apagada.
Nesse sentido, mostra-se importante, também, buscar a identidade do abusador. Dessa forma, o
Estado pode exercer sua obrigação de cuidar de cada cidadão e cidadã, inclusive as crianças e os
adolescentes, ao afastar do convívio com a sociedade – ou pelo menos acompanhar esse convívio
– os abusadores sexuais de menores. Assim, a análise de discursos relativos à prática da violência
pedófila pode demonstrar o que a sociedade pensa a respeito do assunto e o que ela está fazendo
para controlar essa prática hoje.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE

Tatiana Rosa Nogueira Dias (UnB)

Palavras-chave: violência doméstica, gênero social, Análise de Discurso Crítica.

A figura feminina ganha destaque, pois, por meio de questionamentos a respeito das diferenças
com ênfase na busca por uma equidade social, houve mudanças sociais que atentaram para o fato
da disparidade entre os gêneros sociais. Mas, ainda se evidenciam, e em muitos casos passam-se
despercebidas, ações que contribuem para uma visão da figura feminina submissa impedindo-a de
obter acesso social. A Análise de Discurso busca evidenciar e questionar linguisticamente
problemas sociais e, no caso de gênero, um fator importante se revela ao tratarmos das
representações feitas, porque, por meio de tais representações, identidades são moldadas,
contribuindo para um senso comum que pode contribuir para indicar questões relacionadas a
poder e a manutenção de determinados comportamentos relacionados à violência. A análise teve

26
como suporte teórico-metodológico a Análise de Discurso Crítica (ADC), seguindo a proposta de
Fairclough (trad. 2001), Chouliaraki & Fairclough (1999) e Fairclough (2003), que considera
aspectos de mudança social, que pode ser analisado no presente trabalho, com a implantação da
Lei nº 11.340, Lei Maria da Penha, que desencadeou reflexões a cerca do problema já explicitado.

27
COMUNICAÇÕES INDIVIDUAIS

IDEOLOGIA E MITIGAÇÃO NO DISCURSO DA INCLUSÃO SOCIAL DO PROJOVEM


URBANO

Argus Romero Abreu de Morais (UFC)

Palavras-chave: Discurso, mitigação, inclusão social.

Ancorados em Dijk (1980; 2003; 2005), pretendemos, neste trabalho, analisar o funcionamento
ideológico do discurso da inclusão social do ProJovem Urbano. Para tanto, selecionamos, do
corpus, constituído pela Resolução nº22 de 26 de maio de 2008, pelos Manuais do Educador e
pelos Guias de Estudo do ProJovem Urbano, seis excertos que denunciam as estratégias do
enunciador, que, ao propor a política pública ProJovem Urbano como meio para a inclusão,
estabelece relações de poder assimétricas entre os jovens incluídos e os jovens excluídos. A
diferenciação praticada pelos pronomes pessoais “nós” e “vocês” demonstram como o enunciador
cria padrões identitários diferenciados entre aqueles que estão sendo considerados incluídos (nós)
e aqueles que estão sendo considerados excluídos (vocês), estabelecendo os primeiros como
modelos a serem seguidos pelos segundos. Nesse viés, torna-se patente a presença de diferentes
discursos políticos para a afirmação do cidadão ideal para o discurso do Programa, como é o caso
dos discursos paternalista e do neoliberal. No entanto, conforme aponta Dijk (2003), em caso de
ocorrência de discursos com pouca aceitação social, torna-se necessário o uso de discursos “mais
respeitáveis”, em nosso caso, há a presença do discurso do Estado de Bem-Estar Social, que mitiga
os sentidos dos dois primeiros ao dissimular a proposta de inclusão mercadológica por meio de um
Estado paternal. Assim, as formas ideológicas do discurso da inclusão social do ProJovem Urbano
se materializam com o estabelecimento de padrões identitários antagônicos, expressos através do
nós e do vocês. Nesse processo, entram em cena diferentes discursos políticos, como é o caso do
neoliberal, do paternal e o do Estado de Bem-Estar Social.

POR UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CENÁRIO ENUNCIATIVO CONTEMPORÂNEO:


DESDOBRAMENTOS DO “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”

Bruna Sola Ramos (UERJ/FAPERJ)

Palavras-chave: sociedade contemporânea, tecnologias da informação e da comunicação,


linguagem, Análise Crítica do Discurso.

A relação homem-máquina, tecida a partir de imagens literárias “futurísticas” na obra Admirável


Mundo Novo, escrita por Aldous Huxley, em 1932, nos coloca diante de um panorama de
transformações bastante desafiador. Com a “exuberância tecnológica contemporânea (Gómez,
2006, p. 82) e os desdobramentos políticos, econômicos, culturais e sociais decorrentes de sua
disseminação, fragilizam-se cada vez mais as fronteiras que reduzem ficção científica e realidade a
polos opostos. É por isso que expressões do modo de vida do homem dito pós-moderno podem
ser reconhecidas nos habitantes do “mundo novo”, trazendo à tona problemáticas em torno do
consumo alienado, do trabalho flexível e da relação novo/velho na sociedade contemporânea. Tais

28
modos de vida são hoje associados às novas tecnologias do virtual e da informação, que, mais do
que instrumentos ou simples extensões dos nossos sentidos, constituem-se uma forma outra de
(inter)ação homem-máquina. Pensando no desenvolvimento tecnológico e seus efeitos para a
humanidade, Huxley nos presenteou com uma narrativa ficcional que, construída há mais de
setenta anos, encontra reflexos e desdobramentos em nossa própria realidade. No presente texto,
tomando por fundamento teórico-metodológico a Análise Crítica do Discurso, nos termos em que
formulada por Norman Fairclough, busco problematizar expressões do modo de vida “pós-
moderno”, em uma dinâmica analítica que parte do recorte de algumas cenas discursivas da
referida obra e busca interlocuções que as relacionem com as mudanças experimentadas no
cenário enunciativo contemporâneo.

VINDE APÓS MIM, E EU VOS FAREI PRÓSPEROS: A CULTURA “PROMOCIONAL” OU


“DE CONSUMO” NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DA IGREJA UNIVERSAL

Derli Machado de Oliveira (UFRN)


Cleide Emilia Faye Pedrosa (UFRN)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, discurso promocional, discurso religioso, Igreja


Universal.

Esta comunicação situa-se na Análise Crítica do Discurso (ACD), com vertente social, cuja ênfase
está na inter-relação entre discurso, poder, ideologia e mudanças nas práticas discursivas e sociais.
Atualmente o discurso mercantilista se alastra por diversos campos da sociedade. Como
consequência de tal “colonização”, observa-se que as práticas discursivas com finalidade
promocional vêm passando por um contínuo estado de mudanças no sentido de se aprimorarem
cada vez mais. De acordo com Fairclough (2001), a “função promocional” tem colonizado uma
variedade de discursos. Mergulhados num contexto sócio-histórico caracteristicamente neoliberal,
muitos domínios discursivos, não necessariamente lucrativos, como o religioso, vêem-se
investidos ideologicamente pelo discurso capitalista de modo que suas práticas sócio-discursivas
acabam refletindo crenças e valores tipicamente neoliberais. Assim, igrejas da era pós-moderna
recorrem a táticas de marketing para oferecer um produto em situação competitiva de mercado e
atrair cada vez mais novos fiéis. Diante desse quadro, valemo-nos da análise empírica de alguns
testemunhos publicados na seção Superação do Jornal Folha Universal da Igreja Universal do
Reino de Deus, demonstrando sua constituição eminentemente híbrida ao trazer o discurso
promocional camuflado. Os dados sinalizam para uma hipótese segundo a qual a atual tendência
de misturas de elementos do discurso promocional à ordem de discurso religioso propiciada pela
mídia é reflexo da tendência à comodificação discursiva apontada pelos estudos críticos do
discurso.

29
O DISCURSO ACADÊMICO: UMA “REPÚBLICA DE BONS SENTIMENTOS”?

Dina Maria Martins Ferreira (Unicamp/Sorbonne V)

Palavras-chave: ciência, saber comum, política e vitalismo

Elabora-se uma reflexão crítica sobre o discurso e a prática acadêmicas diante da vida comum. De
um lado um espaço reservado aos deuses olímpicos que não fazem mais parte do espaço dos
simples mortais. E nesse par dicotômico, “divino” acadêmico e “humano” mortal, constituem-se
vetores de força política, criando “socialidades” não mais da ordem de potências sociais, mas pela
total negação destas. “Para responder ao descompromisso e ao recuo, cuida-se da imagem. Fala-
se mais à paixão do que à razão, e, quando das reuniões, o espetáculo de variedades é muito mais
importante do que o discurso da personalidade política, que frequentemente deve contentar-se
com o papel da vedete do teatro rebolado” (Maffesoli, 2006). E pela violência dessa crítica,
propõe-se a possibilidade de um recuo de determinadas políticas, como forma de reabilitar o
vitalismo humano que parece estar sendo massacrado pelo espaço da intelligentsia. A discussão se
dirige para a identidade do acadêmico, que isolado no tatame de lutas políticas, não se integra aos
movimentos das potências revitalizadoras da sociedade em que habita. A reflexão se volta para
quatro categorias que constituiriam um par “duplo”: poder e política versus potência e vitalismo.
Na parceria poder e política semeiam-se terrenos férteis de atuação, regras, acordos e
combinações, sempre em combate e subordinação; e na potência e vitalismo humanos, a
cordialidade e a coordenação atuam em prol de uma “filosofia compreensiva” do dia a dia.

UM OLHAR SOBRE RECADOS DIGITAIS COMODIFICADOS

Elaine Cristina Forte Ferreira (UFC)


Vicente de Lima-Neto (UFC)

Palavras-chave: Comodificação discursiva, discurso publicitário, recados digitais.

Este trabalho tem como objetivo mostrar como as práticas socioculturais materializadas em alguns
recados digitais são influenciadas pelo discurso publicitário, ratificando o posicionamento de
Fairclough (1989; 1992; 2003) e Chouliaraki & Fairclough (1999) de que as mudanças socioculturais
ocorridas na Pós-modernidade são especialmente de ordem econômica, alargando-se as ordens
políticas, sociais e culturais. Para atingir determinado objetivo, valemo-nos da análise empírica de
alguns recados digitais, demonstrando sua constituição eminentemente híbrida ao trazer o
discurso publicitário camuflado em estilos e padrões genéricos que se materializam nessa forma
de interação. Baseamo-nos na Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1992; 2003;
CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999) para estabelecer diálogo entre as práticas sociais e os textos;
nos estudos de mídias e comunicação em massa (SANTAELLA, 2003) para dar conta das práticas
culturais estabelecidas em ambientes virtuais; e na perspectiva sociorretórica de gêneros (MILLER,
1984), para fundamentar a análise de gêneros efetuada no decorrer do trabalho. Em nossa
investigação, observamos que a atual tendência de misturas de elementos da ordem de discurso
publicitária à ordem de discurso cotidiana propiciada pelo site de relacionamentos Orkut é reflexo
da tendência à comodificação discursiva apontada pelos estudos críticos do discurso.

30
NORMAN FAIRCLOUGH E A ANÁLISE DO DISCURSO
CRÍTICA: A LINGUAGEM COMO PRÁTICA SOCIAL

Expedito Wellington Chaves Costa (UECE)

Palavras-chave: Discurso, análise, crítica, proposta.

O objetivo deste texto é apresentar a Análise de Discurso Crítica (ADC), que segundo Fairclough
(2001) está baseada em uma concepção de linguagem como aspecto imprescindível da vida social
dialeticamente conectada a outros elementos da prática social, como a ideologia. A ADC considera
o discurso como um momento de prática social, visto que todas as práticas incluem atividade
produtiva, meios de produção, relações e identidades sociais, valores culturais, consciência e
semioses. Para o autor, a ADC é uma disciplina capaz de mapear relações entre os recursos
linguísticos usados pelos atores sociais e os aspectos da prática nos quais a interação discursiva se
realiza. A proposta descrita aqui é a do modelo tridimensional, em que Fairclough (2001) explica
que qualquer discurso pode ser considerado, simultaneamente, um texto (análise linguística), uma
prática discursiva (análise da produção e da interpretação textual) e uma prática social (análise das
circunstâncias institucionais e organizacionais do evento comunicativo). Nessa proposta
tridimensional, focaliza-se a prática discursiva, porque ela reproduz os sistemas de conhecimento
e crença da sociedade e contribui para transformá-la. O que ocorre no contexto da ADC é a
aproximação das práticas textual, discursiva e social, tornando o discurso uma representação
significativa do mundo. No percurso da ADC, Chouliaraki e Fairclough (1999) apresentam o
enquadramento do discurso como um momento de práticas sociais para se refletir sobre mudança
social contemporânea em larga escala e sobre a possibilidade de práticas emancipatórias na vida
social, mas este não é foco do presente texto.

A CONSTRUÇÃO DO “EU” NAS CARTAS AO EDITOR PUBLICADAS NA


REVISTA FEMININA CLAUDIA

Guianezza M. de Góis Saraiva (UFRN)


Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, ethos, cartas ao editor.

A luta pela igualdade de direitos não é um fato recente na história da humanidade. Desde 1940, as
mulheres iniciaram o chamado Movimento Feminista, que tinha a função de denunciar as
desigualdades relativas a gênero. Com altivez e persistência, as mulheres conseguiram avanços
significativos, dentre eles o direito ao voto. Outra conquista de extrema importância foi a invenção
da pílula anticoncepcional, que permitiu o ingresso da mulher no mercado de trabalho. Nessa
perspectiva, o objetivo deste artigo é analisar a construção do “eu”, ou seja, a representação do
ethos nas leitoras/autoras de cartas ao editor, que são publicadas na revista feminina Claudia, no
intuito de compreender melhor os discursos que permeiam essas publicações e suas relações com
as diversas práticas sociais na contemporaneidade. Metodologicamente, o trabalho se configura
em uma comparação entre as intencionalidades de duas cartas ao editor, veiculadas na revista em
questão. Ao interpretarmos os significados existentes nas cartas em estudo, observamos que,
quando a autora de uma carta expressa seu ponto de vista, ela, de certa forma, poderá influenciar
as leitoras a refletirem sobre suas palavras, o meio em que ela vive e os padrões ideológicos

31
encontrados naquele contexto social. Teoricamente, a discussão respalda-se nas concepções de
ethos, carta ao editor e mídia, a partir dos pressupostos da Análise Crítica do Discurso, segundo a
perspectiva social desenvolvida por Fairclough.

A VIOLÊNCIA NO FORRÓ E A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO MACHO

Gustavo Cândido Pinheiro (UECE/FECLESC)


Claudiana Nogueira de Alencar (UECE/FECLESC)

Palavras-chave: gênero, violência, discurso, performatividade.

Este trabalho é parte de um projeto mais amplo intitulado "As construções dos sentidos da
violência nas práticas culturais do Sertão Central do Ceará" que pretende investigar as práticas
discursivas e práticas sociais da violência vivenciadas na região. O trabalho se propõe a refletir
sobre a construção da identidade do sujeito macho nordestino, construída historicamente
(ALBUQUERQUE, 1999) não apenas pela cultura popular, mas também no discurso vinculado pelo
chamado forró eletrônico. Foram observadas as letras de músicas das práticas supracitadas,
tentando perceber prováveis origens de discursos machistas ao supor que estes, muitas vezes, são
causa de violência no próprio ato de fala e constantemente estão relacionados às formas de vida
que se constituem nestes jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 1989). Como resultado,
percebemos que as nomeações e designações que são dadas para os gêneros comumente
corroboram para a legitimação e naturalização da violência e das relações assimétricas de poder.
Exploramos essa construção identitária em uma abordagem crítica do discurso com base nos
pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 1992, 2003,
RESENDE & RAMALHO, 2006) e nos estudos pragmáticos da linguagem que focam as identidades
como construídas assídua e repetidamente através de discursos, considerando pois as identidades
como performativizadas (PINTO, 2002).

A COLONIZAÇÃO PUBLICITÁRIA NO DISCURSO POLÍTICO

Ivandilson Costa (UERN)


Weslley Mayron Cunha Pacheco (UERN/CNPq)

Palavras-chave: Discurso político, discurso publicitário, colonização de ordens de discurso.

Vinculado a programa de Iniciação Científica (PIBIC/UERN/CNPq), este trabalho tem como


principal objetivo investigar como se dá a reestruturação da ordem de discurso político, sob o
impacto do movimento colonizador do discurso publicitário. Para tanto, ancora-se na teoria da
Análise Crítica do Discurso, partindo do pressuposto de que a comodificação se apresenta como
um processo em que domínios e instituições sociais vêm a ser redefinidos em termos de
produção, distribuição e consumos de mercadorias (FAIRCLOUGH, 2001). Toma-se, desse modo, a
linguagem como parte irredutível da vida social, tal como em Fairclough (2003) e Chouliaraki e
Fairclough (1999), projetando assim seu papel preponderante na elaboração da pesquisa social (cf.
RESENDE; RAMALHO, 2006; RESENDE, 2009). Para tal, focalizou-se o gênero guia eleitoral, para o
que se abordou um conjunto de edições de programas de campanha eletiva veiculadas na mídia
televisiva, em horário eleitoral gratuito. Os dados foram tratados de acordo com a natureza

32
qualitativa de pesquisa em ACD, considerando-se uma descrição e interpretação da realidade
social. Tais dados também foram analisados à luz de teorias focais, como a análise de gêneros
textuais enquanto fato social, de acordo com Bezerman (2005) e Marcuschi (2005; 2008); a
semiótica social, conforme Kress e van Leeuwen (1996); a linguística sistêmico-funcional, de
Halliday (2004). Como resultado, tem-se a evidência de tal colonização, trazendo uma reflexão
acadêmica e social para a compreensão das transformações e/ou manutenções de estruturas
sociais de dominação. O trabalho, nessa perspectiva, pretende se mostrar relevante para uma
área de destaque e ainda passível de mais estudos, os que envolvem discurso e mídia.

VERSOS E REVERSOS: REPRESENTAÇÕES DE MULHERES EM SÉRIES TELEVISIVAS

Ivia Alves (UFBA – CNPq)

Palavras-chave: gênero, discurso, seriados, representações de mulheres.

Se a Modernidade engendrou a mulher burguesa, normatizando suas ações e papeis, em pleno


século XXI observa-se, novamente, a modelização dos tipos de mulheres que têm aceitação e
visibilidade na sociedade. Acompanhar a representação de mulheres através de programas de
televisão ajuda a compreender os discursos e os contextos nos quais as práticas sociais se
inscrevem. Os seriados norteamericanos televisivos evidenciam como a ideologia da Modernidade
domina e se mantém por décadas, apesar de todos os movimentos que abalaram e transformaram
a sociedade entre os anos de 60 a 80. Em plena década de 70 (século XX) quando o movimento
feminista inflamava as mulheres e modificava sua visão e inserção no mundo, as séries televisivas
não cediam às práticas sociais, insistindo em representar suas personagens femininas como boas
donas de casa. Apenas um seriado de procedimento investigativo, Police woman (1974-1978)
tenta retratar essas modificações sócio-culturais, enquanto outros, mesmo sendo da mesma
linhagem, continuam com imagens de mulheres dentro dos padrões normatizados
tradicionalmente. A representação da mulher independente, profissional e livre demorou a ser
introduzido e essa representação só passou a circular sem restrições nos seriados dos anos 90,
quando não havia mais possibilidade de escamotear os novos modos de ser mulher nas práticas
sociais (NYPD Blue, JAG, CSI). Atualmente, observa-se o quase retorno ao padrão tradicional
(backlash), sem grandes hiatos entre as práticas sociais e as representações (The mentalist, Castle
e The Closer). É sobre esse discurso dominante sobre a mulher que esta comunicação vai se deter,
evidenciando como as relações de gênero ainda mostram as desigualdades de posição e poder.
(Projeto de pesquisa, financiado pelo CNPq, Representações e imagens de mulheres fragmentadas)

O PODER MIDIÁTICO DO GÊNERO ANÚNCIO NAS PRÁTICAS


DISCURSIVAS SÓCIO-RELIGIOSAS NA CIDADE DE AÇU/RN

João Batista da Costa Júnior (UFRN)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, discurso publicitário, gênero anúncio, estratégias


discursivas, relação de poder.

As práticas discursivas, constituídas por meio da linguagem, têm sido foco de muitas pesquisas,
suscitando considerações relevantes sobre a relação intrínseca entre linguagem e sociedade.
Neste sentido, este trabalho, ancorado no aporte teórico da Análise Crítica do Discurso (ACD),
33
segundo a perspectiva social, esboçada por Fairclough (2008), tem como objetivos identificar as
estratégias discursivas do gênero anúncio, evidenciando sua natureza sócio-comunicativa e
verificar como o gênero constitui relação de poder nas práticas discursivas sócio-religiosas na
cidade de Açu/RN, a partir de sua produção, distribuição e consumo. A abordagem metodológica
da pesquisa é de natureza qualitativo-interpretativista, assentando-se nos propósitos da
Linguística Aplicada conforme Moita Lopes (1996). O corpus foi constituído por meio de anúncios
publicitários afixados em panfletos. Os resultados mostram que o gênero anúncio publicitário
apresenta como estratégia discursiva a forte presença da heterogeneidade semiótica, a qual
sinaliza que o gênero manifesta-se como um feixe de propósitos comunicativos que se intricam
em uma teia que funde os propósitos do gênero e as intenções de seus produtores e
consumidores. Em relação ao poder constituído pelo anúncio, os dados evidenciam que o anúncio
como gênero do domínio publicitário atua sobre os indivíduos de forma a influenciar na mudança
de seu comportamento, impondo, nas linhas e entrelinhas, valores, mitos e ideais. Portanto, a
pesquisa autoriza-nos a inferir que as implicações ideológicas subjacentes ao discurso publicitário,
no emaranhado das relações sociais, caracterizam-se como atividades de linguagem imbuídas de
um caráter manipulador, legitimando todo um ato comunicativo intencional respaldado na
dimensão da linguagem enquanto prática social.

O PROCESSO DE NATURALIZAÇÃO DOS DISCURSOS DOMINANTES


EM NOTÍCIAS: O CASO DA POLÍTICA DE COTAS

João Paulo Eufrazio de Lima (UFC)

Palavras-chave: notícia, discurso, política de cotas.

Nosso trabalho é baseado no estudo de notícias publicadas por meio eletrônico nos sites G1 <
g1.globo.com/> e Vejaonline < veja.abril.com.br/> que tenham como tema a política de cotas do
governo federal. Nosso propósito foi investigar que discurso sustenta os textos analisados e como
esse discurso é mascarado por meio do gênero discursivo noticia, utilizando-nos para isso da
perspectiva teórico-metodológica da ADC (Chouliaraki & Fairclough, 1999), combinada com parte
da teoria e análise de gênero que tem preocupações sociais (MILLER, 1987; SWALES, 1990,
FOWLER, 1986, GRESS, 1979). Nesse intuito, selecionamos ao acaso três notícias e analisamos a
constituição do gênero notícia (BENASSI, 2009), percebendo as marcas textuais que nos
possibilitassem apreender a intencionalidade do autor e o discurso que sustenta tal texto. Nossos
dados permitem-nos concluir que o posicionamento do autor, suscitado pelos elementos
argumentativos das noticias analisadas, é camuflado pelo propósito original do gênero: noticiar
um evento, o que permite ao meios jornalísticos cooptar os leitores mascarando sua
intencionalidade por meio de diversas estratégias como, por exemplo, a estruturação do texto e a
seleção dos argumentos. Nesse sentido, tal gênero serve para a naturalização dos discursos
dominantes para o que esperamos contribuir em sentido contrário, tal como propõe a ADC
(Fairclough, 1989; 1992).

34
DO ASPECTO LINGUÍSTICO À PRÁTICA SOCIAL: UM RETRATO DA VALORIZAÇÃO DO
ETHOS DISCURSIVO NOS CURRÍCULOS LATTES DOS ESTUDIOSOS EM LETRAS

João Paulo Lima Cunha (NPGL - UFS)


Cleide Emília Faye Pedrosa (NPGL - UFS/ PPGEL/UFRN)

Palavras-chave: Ethos discursivo, Currículo Lattes, prática social, Análise Crítica do Discurso

O principal objetivo deste trabalho foi analisar a construção do ethos discursivo a partir da
autopromoção realizada nos currículos lattes de estudiosos de Letras. Por ser um objeto pouco
estudado, este estudo é de extrema valia tanto para a área de Letras, especialmente para
pesquisadores que trabalham com a construção e o funcionamento do ethos discursivo, quanto
para outras áreas do conhecimento. Os objetivos do trabalho se movimentam entre entender os
aspectos linguísticos e os da prática social do lattes. Tem-se o texto introdutório presente no lattes
como materialidade linguística utilizada para análise. Para tanto, o procedimento de análise foi
fundamentado no método de estudo da Análise Crítica do Discurso (ACD) e no modelo
tridimensional proposto por Norman Fairclough: análise textual, análise discursiva e análise social.
De forma aleatória, foram escolhidas 12 (doze) amostras de textos informados pelos
enunciadores. E coletado apenas 1 (um) texto gerado automaticamente pelo sistema da
plataforma lattes. Reservou-se apenas o direito de coletar os que fossem informados por
estudiosos da área de Letras, nos níveis de graduação e pós-graduação. Foi possível discutir os
pontos importantes sobre a ACD, isto é, seu processo histórico, as convergências teóricas,
conceitos aplicados e atualização dos estudos em Teun A. van Dijk, associando-os à categoria do
ethos como um todo, desde a origem dos trabalhos retóricos dos gregos às reformulações em
Dominique Maingueneau. Verificar o texto inicial do lattes como discurso é uma contribuição
desse trabalho, já que as relações hegemônicas/ideológicas construídas em torno da padronização
desse gênero disseminaram crenças e estereótipos que restringem a criatividade (competência
discursiva) dos sujeitos. O modelo proposto cumpriu sua prerrogativa de oferecer uma análise
desse discurso no contexto de uma prática social em suas instâncias de produção, distribuição e
consumo.

HOMOAFETIVIDADE E SOCIEDADES HETERONORMATIZADAS: VOZES SILENCIADAS


EM BROKEBACK MOUNTAIN

José Raymundo Figueiredo Lins Jr. (CMLA/UECE)

Palavras-chave: identidade, gênero, homoafetividade, heteronormatização, preconceito.

Analisar como os discursos constroem a realidade é a proposta maior deste estudo. Trazer à
discussão questões de gênero construídas a partir de uma perspectiva heteronormatizada é o
nosso objetivo. Partimos do ponto de que não se trata de uma representação e tomamos como
base, através da Análise Crítica do Discurso, a concepção de linguagem como prática social
(FAIRCLOUGH, 2003), que compreende as construções do social e suas transformações, a partir de
diferentes “jogos de linguagem”, termo que tomamos emprestado da Pragmática. Nosso corpus
compreende os discursos produzidos por Jack Twist e Ennis Del Mar, protagonistas do conto
“Brokeback Mountain” (PROULX, 1997/1999), a partir do filme homônimo, dirigido por Ang Lee,
em 2005. A partir das falas destes personagens, vamos perceber a construção de duas

35
homossexualidades distintas, expressas a partir de comportamentos hegemônicos, que se
alternam entre auto-afirmação, medo e reprodução de papéis, chegando à negação da própria
identidade homossexual – considerado neste estudo, como homofobia internalizada. Mas os
problemas deste estudo não findam no screenplay, eles adentram toda a questão de publicidade
do filme. Logo na tradução para o português, percebemos a inclusão da palavra “segredo”, como
algo que não deve ser conhecido – ou até mesmo significando inimigo, ou “o-amor-que-não-ousa-
dizer-o-nome”. Também na classificação de gênero percebemos uma postura social regulada por
uma sociedade heteronormatizada, quando, no Brasil, foi considerado drama – e não romance –
reforçando a ideia de algo “secreto”. As conclusões aqui apresentadas não encerram a questão da
representação/construção identitária homossexual a partir de práticas sociais, mas abrem as
discussões para que novos enfoques e propostas sejam levantadas a fim de trazer o tema para o
palco do cotidiano, a fim de incluir-lhe novas significações e (re-)ações.

ANÁLISE CRÍTICA DO ENSINO DA PRONÚNCIA DO INGLÊS

José Roberto Alves Barbosa (UERN)

Palavras-chave: análise, crítica, ensino, pronúncia, inglês.

O ensino da pronúncia ocupa lugar central nas aulas de inglês. Os professores desse idioma
dedicam várias horas das aulas objetivando fazer com que seus alunos sejam capazes de produzir
determinados sons. Analisamos criticamente, através dessa pesquisa, o discurso de professores
sobre o papel que a pronúncia exerce no ensino de inglês. Para tanto, partimos das discussões
teóricas de Phillipson (1992), Pennycook (1994), Crystal (1997) e Fairclough (1989; 2001). Essa
análise se inscreve em uma proposta crítica de análise da linguagem, uma vez que considera o
ensino da pronúncia numa perspectiva que transcende o mero domínio de sons, englobando,
constitutivamente, aspectos ideológico-hegemônicos. Para descrever e interpretar a prática social
no discurso dos professores, partimos dos pressupostos da etnografia, aplicando questionários,
gravando e transcrevendo aulas a fim de possibilitar a triangulação do material coletado. A análise
realizada demonstrou, tanto nas aulas quanto no depoimento dos professores, a predominância
de um paradigma imitacionista no ensino da pronúncia do inglês. Eles defendem a existência de
um padrão ideal, esse atrelado aos Estados Unidos e Inglaterra, países que, para os professores,
são os proprietários do idioma. Essa tendência no ensino da pronúncia do inglês resulta no
desempoderamento e no cerceamento das vozes dos aprendizes, e dos próprios professores
bilíngües, na medida em que se identificam como falantes secundários dessa língua em relação à
pronúncia do falante monolíngüe.

OS PARÂMETROS SINTAGMÁTICO E PARADIGMÁTICO DA INTERTEXTUALIDADE

Kennedy Cabral Nobre (UFC)


Mônica Magalhães Cavalcante (UFC)

Palavras-chave: intertextualidade paradigmática, intertextualidade sintagmática, dialogismo.

Nosso objetivo nesta comunicação é discutir as perspectivas sintagmática e paradigmática da


intertextualidade propostas por Fairclough ([1992] 2001), que dizem respeito, respectivamente, às
relações entre um texto e seus pares precedentes e subsequentes; e à organização das

36
configurações de elementos que constituem uma dada ordem de discurso (gêneros, discurso,
estilo, etc.). O estudo dos fenômenos intertextuais, no escopo da ACD, de um lado, nos permite
identificar aspectos relacionados à reprodução das convenções sociais e, de outro, se prestam à
percepção de contradições que podem levar à rearticulação dos elementos de uma ordem de
discurso por meio de uma contestação e de uma posterior luta hegemônica. Nossa hipótese é que
outros pressupostos e critérios de análise da Literatura (GENETTE, 1982) e da Linguística Textual
(KOCH, 2004; KOCH, BENTES E CAVALCANTE, 2008) podem colaborar para uma análise mais
criteriosa, especialmente da perspectiva sintagmática, uma vez que as categorias elencadas por
Fairclough (discurso relatado, negação, ironia, metadiscurso, etc.), provenientes da Análise de
Discurso de orientação francesa (MAINGUENEAU, 1988), já foram uma apropriação de conceitos
de outros referenciais teóricos, como a noção de polifonia (DUCROT, 1997) e heterogeneidades
enunciativas (AUTHIER-REVUZ, 1990), que não nos parecem suficientes para contemplar todas as
manifestações de intertextualidade e que pendem para relações dialógicas e, portanto,
constitutivas da linguagem. Por outro lado, acreditamos ainda que a perspectiva paradigmática da
intertextualidade possa contribuir para os estudos da Literatura e da LT, uma vez que dão conta
das configurações de gênero, discurso e estilo, histórica e temporariamente convencionados,
escolhidas quando da constituição de um texto.

IMAGENS DE SI NO DISCURSO: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS POR MEIO DE


EXPRESSÕES LINGUÍSTICAS MODALIZADORAS

Léia Cruz de Menezes (UFC)


Palavras-chave: discurso político, ethos, modalidades.

No modo argumentativo de discurso, o ethos (ou caráter) atua como importante expediente à
defesa de pontos de vista. Assim se dá porque imagens de si, uma vez construídas por aquele que
argumenta e aceitas pelo auditório, preenchem uma função na formação de uma disposição eu de
uma pré-disposição favorável ou contrária ao orador. No que diz respeito à construção do ethos,
esta se dá por meio de canais não-verbais e verbais. Quanto a esses últimos, destaca Dascal (2008,
p.62) que “A comunicação escrita serve-se de artifícios discursivos para veicular uma grande parte
do que é transmitido por outros canais na comunicação face a face. A contribuição comunicativa
desses artifícios deve, então, ser tratada como a de suas contrapartes não discursivas”.
Postulamos que as expressões linguísticas modalizadoras são artifícios discursivos que se prestam
à construção do ethos, tendo em vista que tais expressões caracterizarem-se como expedientes
por meio dos quais é possível aos falantes posicionarem-se em relação aos conteúdos
proposicionais de seus enunciados, ajustando a modalidade que marca seu enunciado em
consonância com as intenções comunicativas intentadas. Em nossa pesquisa de tese, em
andamento, empreendemos análise de discursos proferidos por Deputados Federais no plenário
da Câmara por ocasião das discussões envolvendo polêmica proposta de redução da maioridade
penal de 18 anos para 16, como medida de segurança nacional, proferidos entre 2007 e 2008.
Nesses, constatamos a alta produtividade de expressões linguísticas modalizadoras (dinâmicas,
deônticas, volitivas, epistêmicas) na construção do modo argumentativo de discurso. Entre as
imagens suscitadas pelo uso de tais expedientes linguísticos, destacamos “disposição no que
concerne a empreender tarefas”, “cumprimento de seus deveres” e “conscienciosidade”.

37
A APROPRIAÇÃO DA ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA E DA DIALOGIA BAKHTINIANA
NA ABORDAGEM DISCURSIVA DE NORMAN FAIRCLOUGH

Luciana Castro (UFG)


Alexandre Costa (UFG)

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, arqueologia, dialogia.

Esta comunicação pretende expor o processo de apropriação de aspectos da arqueologia


foucaultiana e da dialogia bakhtiniana no desenvolvimento da análise de discurso de Norman
Fairclough (a Teoria Social do Discurso), ao longo de suas três fases. Focalizam-se as noções
foucaultianas de ordem de discurso e formação discursiva e seu relacionamento com as categorias
derivadas por Fairclough do trabalho de Bakhtin, como gênero do discurso e intertextualidade,
bem como sua interação com os aportes de Pierre Bourdieu e Michael Halliday. Como parte dos
resultados da pesquisa, pretende-se demonstrar que a incorporação de tais categorias se dá pela
manutenção do tratamento dos fenômenos discursivos como sistemas de diferenças (estruturas),
ao mesmo tempo em que não são abandonados os aspectos dialógicos no estudo dos contextos de
interação. Nesse sentido, as referidas apropriações constituem-se, principalmente, a partir do
encontro entre arqueologia e dialogia sob as matrizes estruturalista-construtivistas da sociologia
de Pierre Bourdieu e do funcionalismo de Michael Halliday. Enfim, em cada um desses elementos
da abordagem de Fairclough, é possível perceber a tensão entre o viés estruturalista de caráter
ontológico – estruturas dadas a priori – e o de caráter epistemológico – estruturas postas pelo
pesquisador (Eco, 2001).

JOVEM E BELA: IDENTIDADE DE GAROTA NA REVISTA PARA ADOLESCENTES

Luciane Cristina Eneas Lira (FAMA/UnB)

Palavras-chave: identidade, revista de adolescente, discurso

O tópico da beleza constitui uma das principais editorias em revistas femininas em geral e do
mesmo modo, nas revistas destinadas às adolescentes, também é um dos temas de grande
abrangência, que colaboram para a caracterização desta mídia. A busca pela beleza, enquanto
forte imperativo no universo das revistas destinadas às garotas, está diretamente relacionado à
composição da imagem dos corpos, nos processos de construção da identidade da menina leitora.
Desse modo, a beleza é o lugar comum a que se destina a composição dos corpos e que, por sua
vez, constituem representações que constroem modelos de feminilidade e juventude nas revistas.
A partir de considerações teóricas de Halliday (1976, 1978 e 1994) e Fairclough (2003) sobre os
significados do discurso, este trabalho ocupa-se da análise do tratamento dado à constituição do
tema “beleza” em revistas destinadas a adolescentes brasileiras. Fazem parte do corpus de análise
edições das revistas femininas Atrevida, Atrevidinha, Capricho e Todateen. Os resultados
permitem identificar recursos que corroboram o caráter instrucional das edições e a tentativa de
projeção discursiva do mundo jovem e feminino. Por meio de um sistema de avaliação de
procedimentos sugeridos e resultados pretendidos é reforçado o caráter positivo e desejável das
recomendações de busca pela beleza no discurso da revista juvenil.

38
AS CARTAS DE HELIO GALVÃO NUMA PERSPECTIVA DA ANÁLISE DE DISCURSO
CRÍTICA

Lucimar Bezerra Dantas da Silva (UFC/UERN)

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, prática social, discurso, gênero discursivo.

Ao reunir análise linguística e teoria social, a Análise de Discurso Crítica (ADC) tem se mostrado
produtiva na análise e compreensão de questões relativas a problemas sociais a partir do ponto de
vista de pessoas que se encontram em situação de risco, seja pela pobreza, pelo preconceito de
gênero ou de raça, seja pela negação de direitos básicos como casa, educação, assistência médica,
assistência jurídica etc. Nesse enfoque, o discurso passa a ser tomado como uma prática social e
como uma das formas de agir no mundo. Segundo Fairclough (2001), a noção de prática social
envolve a ação social e discursiva de sujeitos que se encontram situados em um contexto
sociohistórico. Neste artigo, objetivamos discutir alguns dos conceitos que embasam a ACD, entre
os quais destacamos o de prática social, prática discursiva e gênero discursivo. Tais conceitos
deram suporte à análise das cartas de Helio Galvão como uma dimensão da prática social. Para
desenvolver a análise, selecionamos três cartas de um total de 127, originalmente publicadas no
jornal Tribuna do Norte em meados da década de 60 do século passado e depois reunidas em três
livros: Cartas da Praia, Novas Cartas da Praia e Derradeiras Cartas da Praia e Outras Notas sobre
Tibau do Sul. Na análise selecionamos o significado acional, que diz respeito ao conceito de
gênero, e o significado representacional, que diz respeito ao conceito de discurso (FAIRCLOUGH,
2003). A análise nos mostra que as cartas de Hélio Galvão se constituem em uma prática social
particular, na medida em que, de forma recorrente, interpretam e descrevem eventos que
caracterizam uma visão de mundo de moradores de Tibau do Sul-RN sobre racismo, questões
legais e inovações tecnológicas e científicas.

DO CONCEITO OUTRORA DOMINANTE DE ALFABETIZAÇÃO AOS NOVOS ESTUDOS


DO LETRAMENTO: UMA RETOMADA HISTÓRICA

Lucineudo Machado Irineu (UFC)


Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFC)

Palavras-chave: Linguística, alfabetização, letramento.

Este trabalho objetiva realizar uma retomada histórica de alguns conceitos-chave a respeito das
teorias de aquisição e ensino de línguas materna e estrangeira, perpassando a noção de
alfabetização (e alfabetismo/analfabetismo), letramento(s) e práticas letradas. Desde uma
perspectiva histórica, apresenta-se, nesta comunicação, um painel evolutivo-contrastivo de tais
conceitos e suas implicações, ao longo dos anos, para as questões didático-pedagógicas
brasileiras. Diante das mudanças vistas nos últimos anos desde os novos estudos do Letramento e
do Letramento Crítico, e suas implicações para as práticas de ensino vernaculares, este trabalho
apresenta uma visão panorâmica do assunto em pauta objetivando oferecer aos estudiosos das
questões linguísticas um quadro expositivo que põe em destaque o atual conceito de letramento
(e/ou letramentos), que acreditamos ser de fundamental importância para uma prática
pedagógica, por parte dos professores, consciente das novas tecnologias do ensino de línguas
(materna e estrangeira) surgidas nos últimos anos. Para tal, empreendemos em uma análise

39
bibliográfica (de base e aprofundada) contemplando os principais autores, brasileiros e
estrangeiros, que se debruçaram sobre o tema em questão. São exemplos de autores
contemplados: KATO (1983), SOARES (2002) e ROJO (2009), por exemplo. Como centro do
trabalho, apresentamos questões reflexivas sobre o conceito outrora dominante de alfabetismo,
presente durante muitos anos na cultura pedagógica brasileira, que apresentou, em sua história,
momentos de desgastes terminológicos frente às novas tendências pedagógicas em vigor,
perpassando um momento de apogeu dos estudos dos gêneros textuais, como ponto de chegada
nos novos estudos do Letramento (ou letramentos(s) (ROJO, 2009). Como resultado, obter-se-á
uma publicação que se proporá a refazer referida retomada histórica conceitual e bibliográfica que
servirá, espera-se, como ponto de partida para pesquisas futuras a respeito e servirá, acima de
tudo, como objeto de reflexão por parte de professores de línguas materna e estrangeira.

AS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DOS/AS SEM TERRA A PARTIR DA MÍSTICA DO MST:


UMA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA MULTIMODAL

Marco Antonio Lima do Bonfim (CMLA/UECE)


Claudiana Nogueira de Alencar (UNICAMP/UECE)

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, discurso multimodal, identidade, mística, MST.

O presente texto teve por objetivo estudar as questões identitárias apresentadas em uma das
místicas realizadas pelos/as Sem Terra do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) –
as místicas podem ser caracterizadas como um tipo de ritual teatral que os/as Sem Terra realizam
cotidianamente nos seus acampamentos e assentamentos com o intuito de fortalecer a luta pela
terra e pela transformação social no Brasil. Especificamente, analisei a mística “violência no
campo” – realizada em um Curso de Formação na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) –
procurando entender como os elementos lingüístico-discursivos se relacionam com os
componentes semióticos na construção identitária dos/das Sem Terra do MST. Para tanto, utilizei
uma abordagem de “Análise de Discurso Textualmente Orientada”, Fairclough (trad, 2001, 2003),
Chouliaraki e Fairclough (1999), Magalhães (2004, 2005) combinada com a proposta de
“Gramática do Design Visual” elaborada por Kress e van Leeuwen (1996). Percebi que o discurso
multimodal da mística do MST é composto por elementos discursivos (escolhas lexicais dos/as
Sem Terra) e imagéticos (textos multimodais) que se imbricam dialeticamente numa relação de
internalização/articulação na prática social da mística, e que através desse mesmo discurso o
referido Movimento social tenta construir um “estilo” de Sem Terra numa relação conflitante com
a identidade hegemônica dos/as Sem Terras inculcada na maioria dos brasileiros/as.

40
RECONTEXTUALIZAÇÃO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA
EDUCAÇÃO: O DISCURSO DA COMODIFICAÇÃO
Maria Inês Rocha de Sá (UERJ)

Palavras-chave: recontextualização, discurso, comodificação, Tecnologias de Informação e


Comunicação, educação.

Este trabalho pretende tratar da recontextualização das tecnologias de informação e comunicação


(TIC) na educação, sobretudo procura discutir como as TIC se inserem na lógica dos “negócios”, no
discurso comodificado. Adoto como caminhos: partir do conceito de recontextualização de Basil
Bernstein; o conceito de recontextualização das TIC na educação; as TIC inseridas na educação e
inscritas na tendência discursiva da 'comodificação', com base nas formulações de Norman
Fairclough.

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA OU DISTORÇÃO DA CIÊNCIA? O CASO DA REVISTA


SUPERINTERESSANTE

Paulo Sérgio da Silva Santos (UFS)


Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, divulgação científica, discurso midiático.

O trabalho faz um levantamento e análise das erratas veiculadas nas edições da revista
Superinteressante. Tomamos como hipótese o pressuposto de que o discurso científico sofre
alterações na transição entre o texto do cientista e a reescrita do jornalista, e por isso ocorrem os
erros. O suporte teórico desta análise é a Teoria Social do Discurso (TSD). A TSD é uma abordagem
de Análise Crítica do Discurso (ACD) que considera qualquer evento discursivo simultaneamente
como um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. Em nosso
recorte, analisamos 54 edições da Superinteressante. Desta forma, nosso corpus foi composto pela
seção que continha as “erratas” e pela matéria de origem. Não limitamos o levantamento dos
dados a um determinado período, apenas ao cumprimento dos objetivos do trabalho: verificar a
freqüência das erratas a fim de chegar a uma média; a natureza dos erros cometidos e o agente
responsável pela identificação do erro. A análise do corpus garantiu que os objetivos fossem
atingidos. Em primeiro lugar, ocorreram erros em todas as edições pesquisadas. Pudemos
confirmar também que, na maioria dos casos, os leitores encontram os erros que são corrigidos
pelas erratas. E por fim, chegamos à conclusão de que a editoração tem um papel importantíssimo
na ocorrência de erros. Mas acima de tudo, nossa análise demonstrou que nem todos os erros são
inofensivos, que muitas vezes eles estão relacionados a questões de saúde e de ética (ou a falta
dela). Assim, julgamos que este trabalho deu sua contribuição para o relevante esforço de
compreender melhor os mecanismos da linguagem e de seus usos sociais.

41
ÁGUAS QUE MATAM: UMA ANÁLISE CRÍTICA DOS DISCURSOS DE JORNAIS LOCAIS
SOBRE O ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE ALGODÕES (PI)

Paulo Fernando de Carvalho Lopes (UFPI)

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, local, jornais, poder, hegemonia.

No dia 27 de maio de 2009, por volta das 16:00h, após 48 horas seguidas de chuva, parte da
Barragem de Algodões I, no município piauiense de Cocal da Estação, rompeu causando mortes e
destruições. Este artigo toma por base conceitual-metodológica a proposta por Fairclough (2003).
Ele considera que o discurso figura de três modos nas práticas sociais: como modos de (inter)agir
através da fala e da escrita (e de outras semioses); como modos representar o mundo, outras
práticas sociais e a auto-representação reflexiva da própria prática; e como modos de ser,
constituindo identidades sociais e pessoais. A cada um desses modos de interação, articulado a
outros elementos, corresponde um tipo de significado. Assim, o significado acional enfoca o texto
como modo de (inter)ação em eventos sociais; o significado representacional focaliza a
representação de aspectos do mundo – físico, mental, social – em textos; e o significado
identificacional diz respeito à construção e à negociação de identidades no discurso. Diante do
exposto, procura-se mapear os sentidos ideológicos nos textos dos jornais Meio Norte, O Dia e
Diário do Povo do Piauí, sobre o acontecido, identificando o posicionamento ideológico dos
respectivos jornais e suas relações com o poder e práticas hegemônicas.

A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DOS AGENTES SOCIAIS NOS DISCURSOS


SOBRE O 11 DE SETEMBRO NA IMPRENSA FRANCESA

Ruberval Ferreira (UECE)


Maria Clara Gomes Mathias (UECE)

Palavras-chave: discurso, representação, interdiscursividade, agentes sociais.

Este trabalho se propõe lançar algumas considerações acerca da dimensão ética e política da
linguagem, tomando como ponto de partida as teorizações sobre o fenômeno lingüístico
propostas por Fairclough em sua Teoria Social do Discurso, vertente mais proeminente da Análise
de Discurso Crítica. Fairclough (2003) propõe uma análise de discurso orientada social e
lingüisticamente, para fornecer instrumental teórico-metodológico para a compreensão do
discurso como um elemento de práticas sociais dialeticamente interconectado a outros
elementos. Essa proposta desenvolve-se a partir de três tipos de significado, que consistem nas
três maneiras a partir das quais o discurso – enquanto linguagem – pode figurar em práticas
sociais: significado acional, significado representacional e significado identificacional. O significado
representacional é o tipo de significado apresentado por Fairclough que se relaciona com a
compreensão dos discursos enquanto modos particulares de representação de aspectos do
mundo. Este trabalho consiste na analise de textos de opinião sobre os atentados terroristas de 11
de setembro de 2001, publicados pelo jornal francês Le Monde no período imediatamente
subseqüente aos acontecimentos. A análise proposta procura investigar as representações postas
em cena na construção de sentidos para os agentes sociais envolvidos no acontecimento
mencionado e, para tanto, levam-se em consideração duas importantes categorias analíticas
propostas em Fairclough (2003) em sua abordagem do significado representacional das formas

42
discursivas: a interdiscursividade e a representação de agentes sociais. Para lançar considerações
acerca do objeto, essas categorias são analisadas principalmente em função de aspectos de ordem
lexical e semântica.

AS MATERIALIDADES DISCURSIVAS NAS PRÁTICAS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A


MULHER

Sérgio Nunes de Jesus (UFRGS/CAPES)


Ana Zandwais (UFRGS)

Palavras-chave: sujeito, aparelho policial, materialidades discursivas, violência contra a mulher.

A presente proposta de pesquisa fundamentar-se-á em pressupostos da Análise do Discurso:


Althusser (1985), Pêcheux (1987), e em pressupostos da Enunciação, Ducrot (1987), Guimarães
(1995) e Bakhtin (1997), para investigar como o sujeito que pratica atos de violência contra a
mulher, ele fala, ou seja, responde aos interrogatórios da Polícia, em virtude das acusações que
lhe são feitas pelas mulheres e por testemunhas de suas agressões. A metodologia a ser instituída
será a bibliográfica e de campo ao evidenciar as formas das distintas enunciações abordadas por
um sujeito que reclama uma ilusão de verdade contraditória em seus deslocamentos discursivos
na produção de um sentido que só existe na relação ao outro – pelas forças e seus imaginários
constituídos nessa relação. Discutiremos também a questão da violência contra a mulher e por
qual o motivo ela se multiplica na sociedade, principalmente nos seios das famílias menos
favorecidas – embora haja também um grande número desse tipo de violências em famílias de
classe média alta. Sendo assim, abordaremos também de que maneira as Práticas Sociais (ou seja,
praticada como aparelho ideológico de estado (AIE) de uma formação ideológica (FI) como:
Tomada do Depoimento – Intimações – Perícias – Diligências – Busca e apreensão) são ineficientes
pela falta de efetivo (pessoal) que não é investido por esse aparelho de Estado. E os Saberes
Sociais (que são próprios de uma formação discursivos (FD) e, ao mesmo tempo, identificados na
formação ideológica como: Zelar pela ordem – Zelar pelos bons costumes – Agir de maneira
preventiva – Fazer valer os deveres do cidadão – Cumprir a lei) - pois o papel da Polícia como AIE é
de se investir nas formas de cumprimentos/práticas (FI) e dos saberes (FD) desse aparelho. Os
resultados serão obtidos a partir das materialidades constituídas como ponto de vista lingüístico
ou relatado e ponto de vista discursivo ou referido.

43
ANAIS

44
POR UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CENÁRIO ENUNCIATIVO CONTEMPORÂNEO:
DESDOBRAMENTOS DO “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”

Bruna Sola Ramos


Doutoranda em Educação
(UERJ- FAPERJ)

A relação homem-máquina, tecida a partir de imagens literárias “futurísticas” na obra Admirável


Mundo Novo, escrita por Aldous Huxley, em 1932, nos coloca diante de um panorama de
transformações bastante desafiador. Com a “exuberância tecnológica contemporânea (Gómez,
2006, p. 82) e os desdobramentos políticos, econômicos, culturais e sociais decorrentes de sua
disseminação, fragilizam-se cada vez mais as fronteiras que reduzem ficção científica e realidade a
polos opostos. É por isso que expressões do modo de vida do homem dito pós-moderno podem
ser reconhecidas nos habitantes do “mundo novo”, trazendo à tona problemáticas em torno do
consumo alienado, do trabalho flexível e da relação novo/velho na sociedade contemporânea. Tais
modos de vida são hoje associados às novas tecnologias do virtual e da informação, que, mais do
que instrumentos ou simples extensões dos nossos sentidos, constituem-se uma forma outra de
(inter)ação homem-máquina. Pensando no desenvolvimento tecnológico e seus efeitos para a
humanidade, Huxley nos presenteou com uma narrativa ficcional que, construída há mais de
setenta anos, encontra reflexos e desdobramentos em nossa própria realidade. No presente texto,
tomando por fundamento teórico-metodológico a Análise Crítica do Discurso, nos termos em que
formulada por Norman Fairclough, busco problematizar expressões do modo de vida “pós-
moderno”, em uma dinâmica analítica que parte do recorte de algumas cenas discursivas da
referida obra e busca interlocuções que as relacionem com as mudanças experimentadas no
cenário enunciativo contemporâneo.

Palavras-chave: sociedade contemporânea, tecnologias da informação e da comunicação,


linguagem, análise crítica do discurso.

Introdução

“As rodas da máquina têm de girar constantemente, mas não


podem fazê-lo se não houver quem cuide delas. É preciso que
haja homens tão constantes como as rodas nos seus eixos,
homens sãos de espírito, obedientes, satisfeitos em sua
estabilidade”.

Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo.

A relação homem-máquina, tecida a partir de imagens literárias “futurísticas” na obra de


Huxley, nos apresenta um panorama de transformações bastante sintomático. De Frankstein a

45
Matrix, somos levados a reconhecer que a cultura contemporânea se faz cada vez mais próxima
dos temas e das questões projetadas sobre o real nas obras de ficção científica.
Com a “exuberância tecnológica contemporânea” (Gómez, 2006, p. 82) e os
desdobramentos políticos, econômicos, culturais e sociais decorrentes de sua disseminação,
fragilizam-se cada vez mais as fronteiras que reduzem ficção científica e realidade a polos opostos.
É por isso que expressões do modo de vida do homem dito pós-moderno podem ser reconhecidas
nos habitantes do “Admirável Mundo Novo”, já em 1932.
Estes modos de vida são hoje associados às novas tecnologias do virtual e da informação
que, mais do que instrumentos ou simples extensões de nossos sentidos, constituem-se como
uma forma outra de inter(ação) homem-máquina. Ferramentas digitais são criadas,
desenvolvem−se os espaços de comunicação virtual e, com eles, a possibilidade de
“adentramento” numa realidade imaterial: é a máquina instituindo-se como o novo ambiente de
nossas experiências. Em torno dela, o fascínio de uma apregoada “revolução digital e
informacional”, capaz de promover alterações sociais significativas. É, pois, no decurso de uma
“ciranda das feitiçarias tecnológicas” (Harvey apud MORAES, 2006, p. 12.) que as múltiplas
dimensões da incorporação das tecnologias da informação e da comunicação aos diferentes
processos e atos sociais devem ser pensadas. Isso significa focalizar, sobretudo, as relações que as
engendram, relações estas que não apenas são constituídas por práticas sócio-discursivas como
também as constituem.
Vivemos um momento em que as configurações e aplicações da informação se vêem
exploradas na magnitude de seu potencial expansivo, ao convergirem com o acelerado
desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Para Ramonet (apud
BAUMAN, 2008), se produziu mais informação no mundo nos últimos trinta anos do que nos cinco
mil anos anteriores. Esse excesso de informações inquieta Augé (2006), na medida em causa a
sensação de que a História se acelera. Entre uma e outra constatação, o fato é que, credenciada
como insumo de poder e recurso básico de gestão na nova ordem capitalista (MORAES, 2006), a
informação se revela como elemento de especial relevância na composição de nossa
temporalidade, alimentando, com o suporte de modernas tecnologias, as tendências e demandas
do modelo flexível de produção.
Com isso, toma fôlego um crescente determinismo tecnológico, aprisionado a uma visão
tecnicista e à crença nas “virtudes terapêuticas das tecnologias da informação e suas redes”
(MATTELART, 2006, p.234). Por outro lado, são engendradas mudanças no caráter estrutural da
própria informação. Disseminada e introduzida em todos os campos da vida, a informação é agora

46
entendida como “recurso intelectual” ou “novo capital cognitivo” (ibid, p.235). A fluidez que
envolve a noção de informação, conforme assinala Mattelart (2000, s/p), estaria relacionada aos
aspectos técnicos e estatísticos que buscam dar conta do caráter estritamente instrumental da
sociedade da informação, enquanto que a própria “utopia social do conceito”, orientadora do
“novo destino do mundo”, se vê negada. Para Barreto (2004, p. 1184), as TIC são, então,
descoladas de sua produção histórico-social, para serem atreladas à origem de mudanças que
sustentam uma concepção instrumental de “sociedade de informação”.
Nesse sentido, buscamos aqui problematizar o cenário enunciativo contemporâneo, num
tempo em que “a tecnologia remete (...) não a alguns aparelhos, mas, sim, a novos modos de
percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas” (MARTIN-BARBERO, 2006, p.54). O
que se busca, portanto, é compreender como esses novos modos de percepção e de linguagem
influenciam modificações nas cenas enunciativas, ao mesmo tempo em que são, por elas,
constituídos, assumindo a Análise Crítica do Discurso, nos termos em que formulada por Norman
Fairclough (2001), como arcabouço privilegiado nas discussões pretendidas. Isto se justifica pelo
campo de possibilidades que a ACD inaugura na busca de pistas do funcionamento discursivo,
levando-se em conta o estudo da linguagem nas sociedades contemporâneas.
A obra “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, será tomada como cena enunciativa
de referência, abrindo espaço para uma intertextualidade que nos permita pensar em modos de
perceber o cenário enunciativo contemporâneo a partir de imagens ficcionais construídas há cerca
de setenta anos.

Um breve panorama da Análise Crítica do Discurso


A Análise Crítica do Discurso (ACD) é uma abordagem transdisciplinar, o que significa
dizer que sua constituição está relacionada à operacionalização de outros estudos, dentre os quais
se pode destacar os de Bakhtin e os de Foucault. A perspectiva destes autores exerceu grande
influência sobre a ACD, em especial, pelas discussões que vinculam discurso e poder. A ACD
dedica-se à análise de textos, eventos discursivos e práticas sociais no contexto sócio-histórico, em
especial, no contexto das transformações sociais, propondo, dessa maneira, uma teoria e um
método para o estudo do discurso. Pelo fato de que focaliza relações dialéticas ente o evento
discursivo e outros elementos das práticas sociais, a ACD é orientada lingüística e socialmente. Nas
palavras de Fairclough (2001, p. 90), o enfoque é dado à “linguagem como forma de prática social,
não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais”.

47
Ao usar o termo ‘discurso’, proponho considerar o uso da linguagem como forma
de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de
variáveis institucionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o
discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o
mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de
representação. [...] Segundo, implica uma relação dialética entre o discurso e a
estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a
estrutura social: a última é tanto uma condição como um efeito da primeira (p.
91).

Em seus estudos, Fairclough (op. cit.) considera as relações entre discurso e mudança
social, apontando para a linguagem como forma de prática social. Como vimos, isso tem duas
implicações básicas: 1) o discurso é visto como um modo de ação, o que significa dizer que
Fairclough o percebe como algo mais do que um modo de representação; é também uma forma
de ação, um meio a partir do qual os sujeitos podem agir sobre o mundo e sobre os demais; 2) o
uso da linguagem é uma forma de prática social, o que implica necessariamente uma relação
dialética entre discurso e estrutura social. Sobre esta percepção, são esclarecedoras as palavras do
autor.
É importante que a relação entre discurso e estrutura social seja considerada
como dialética para evitar os erros de ênfase indevida; de um lado, na
determinação social do discurso e, de outro, na construção do social no discurso.
No primeiro caso, o discurso é mero reflexo de uma realidade social mais
profunda; no último, o discurso é representado idealizadamente como fonte do
social (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92)

Para Barreto (2009), a ACD, fundada nas relações entre relações entre discurso e
mudança social, está relacionada à tentativa de dar conta da reinscrição dos exemplares de
linguagem recortados (textos) no movimento dos sentidos, o que nos remete ao processo
histórico-discursivo. Segundo a autora, o objetivo da ACD é:

a aproximação dos sentidos (plurais, mas não quaisquer, porque historicamente


dimensionados) postos em circulação, ultrapassando o conteúdo (claro ou oculto)
do que é dito pela explicitação de seus pressupostos e implícitos, buscando a
compreensão dos efeitos de sentidos produzidos pelo dito em condições
determinadas, por meio de marcas detectáveis nos modos de dizer, a partir de
pistas encontradas na superfície linguística (p. 22).

48
Pensar o discurso como um modo de ação historicamente situado implica, de um lado,
considerar as estruturas que organizam a produção discursiva nas sociedades, e, de outro, significa
que cada enunciado novo é uma forma de ação sobre tais estruturas, podendo colaborar para
manter ou para transformar as formas de ação. Nas palavras de Fairclough, “a prática discursiva é
constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a sociedade
(identidades, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença como é, mas também para
transformá-la” (2001, p. 92).
Fairclough explicita, ainda, a importância fundamental que o discurso adquire nos
processos de reestruturação do capitalismo, em sua reorganização em nova escala, pois uma
economia baseada em informação e conhecimento implica necessariamente uma economia
baseada no discurso (apud RESENDE E RAMALHO, 2006). Isso significa dizer que o conhecimento é
produzido, circula e é consumido em forma de discursos. Para Barreto (2009), “é como se o
projeto neoliberal de remoção dos obstáculos à nova ordem econômica pudesse ser levado a cabo
apenas pela via do discurso” (p. 21). Por isso, refletir sobre a mudança social contemporânea, nos
termos das mudanças que se dão em larga escala, é primordial para os estudos que se ocupam de
uma abordagem crítica da linguagem.
De acordo com Chouliaraki e Fairclough (apud MAGALHÃES, 2004), a ACD deve ser
considerada como uma contribuição para a investigação crítica do pós-modernismo e dos
discursos derivados do neocapitalismo. Situa-se, portanto, em uma perspectiva contrária ao novo
idealismo, inscrito na matriz pós-moderna, e discutido por McNally (1999) no sentido de que
trabalha os signos apartados de sua natureza social, o que significa dizer que “os enfoques
idealistas da língua [...] são profundamente a-históricos” (p. 39).

Observamos hoje um novo idealismo, um idealismo que contaminou grandes


segmentos da esquerda intelectual e que transformou a língua não só em um
campo independente, mas em um campo que a tudo satura; uma esfera tão
onipresente, tão dominante, que virtualmente extingue a ação humana. Tudo é
discurso, entendam; e o discurso é tudo. Uma vez que os seres humanos são
criaturas lingüísticas, uma vez o que o mundo onde agimos é conhecido e descrito
através da língua, esse novo idealismo alega que nada existe fora dela. A língua, o
“discurso”, o “texto” o jargão varia, mas a mensagem não – define os limites do
que conhecemos, do que podemos imaginar, do que podemos fazer (ibid., p. 33)

Por isso, a adjetivação “crítica” da linguagem marca a inscrição da ACD na matriz do


realismo crítico, em oposição ao novo idealismo, que corresponde ao movimento de pensar a

49
linguagem desprovida de exterior (BARRETO, 2009). Para o realismo crítico, as práticas de
linguagem devem ser percebidas nas suas relações com o que lhes é exterior, como uma prática
social que não se pode dissociar das demais. Partindo deste princípio, a língua é percebida e
analisada no contexto histórico em que se dá o seu acontecimento, como forma de prática social,
exigindo, destarte, um trabalho sistemático com a dialética entre discurso e mudança social. É
nesse sentido que Fairclough se preocupa em caracterizar as formas pelas quais as questões
econômicas, culturais, políticas e sociais se materializam no discurso.

Desdobramentos do Admirável Mundo Novo: o cenário enunciativo contemporâneo


O “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, se passa no ano 632 d.F., contados a
partir do nascimento de Ford, o Messias, numa clara alusão a uma sociedade que se institui a
partir do acelerado avanço tecnológico. O mundo, sem fronteiras entre Oriente e Ocidente, um
“Estado Mundial”, é governado por dez dirigentes apoiados na máxima “Comunidade, Identidade,
Estabilidade”. A sociedade dividida em castas geneticamente programadas é composta por
pessoas despersonalizadas, padronizadas pelo grau de intelectualidade e funções produtivas,
escravizadas pelo condicionamento biológico e psíquico que as mantêm estavelmente felizes, em
harmonia com as leis e regras sociais.
A felicidade, como bem supremo, é também obtida pelo Soma, droga sem efeitos
colaterais aparentes, que controla quimicamente os desejos e ansiedades dos cidadãos. “O mal é
uma irrealidade se se tomam dois gramas” *de soma+ (Huxley,2009). Com a população calma e
imersa na aceitação garantia-se a estabilidade do mundo.
Numa visão maniqueísta, contrapondo-se ao “mundo novo”, civilizado, encontra-se o
reduto dos selvagens, da barbárie, “lugar, que, em razão de condições climáticas ou geológicas, ou
da pobreza dos recursos naturais, não se julgou conveniente realizar as despesas para civilizar”.
(Huxley, 2009). Percebe-se, portanto, um nítido contraste entre o cenário do mundo asséptico da
civilização, rodeado de aparatos tecnológicos, e aquele vivenciado pelos povos das reservas, sujo e
atrasado em termos do emprego da ciência e da tecnologia. O foco da narrativa é dado, então, ao
contraponto existente entre a visão de sociedade civilizada e as impressões humanas do selvagem
John, habitante da reserva.
No decorrer da leitura da obra, percebemos inúmeras possibilidades de se pensar o
“Admirável Mundo Novo” como “metáfora” do mundo contemporâneo. Procuramos, portanto,
construir uma dinâmica analítica que parte do recorte de algumas cenas enunciativas da obra,

50
buscando entendê-las em sua relação com o contexto vivenciado, para estabelecermos possíveis
relações com as mudanças do cenário enunciativo em curso na contemporaneidade.

Cena enunciativa 1

(...) Uma enfermeira levantou-se quando eles entraram e perfilou-se diante do Diretor:

− Qual é a lição esta tarde? – perguntou ele.

− Nós tivemos Sexo Elementar durante os primeiros quarenta minutos. Mas agora passamos para o curso elementar
de Consciência de Classe.

O Diretor percorreu lentamente a longa fila de pequenos leitos. Rosados e distendidos pelo sono, oitenta meninos e
meninas respiravam suavemente. Debaixo de cada travesseiro saía um murmúrio. (...)

“... se vestem de verde”, disse uma voz suave, mas bem nítida, começando no meio de uma frase, “e as crianças
Deltas se vestem de cáqui. Oh, não, não quero brincar com crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São
demasiado broncos para saberem ler e escrever. E, além disso, se vestem de preto, que é uma cor horrível. Como sou
feliz por ser um Beta”.

Houve uma pausa, depois a voz recomeçou:

“As crianças Alfas vestem roupas cinzentas. Elas trabalham muito mais do que nós porque são formidavelmente
inteligentes. Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta, porque não trabalho tanto. E, além disso, somos
muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Os Gamas são broncos. Eles se vestem de verde e as crianças Deltas se
vestem de cáqui. Oh, não, não quero brincar com crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São demasiado
broncos para saberem...”.

O Diretor repôs o interruptor na posição primitiva. A voz calou-se. Apenas o seu tênue fantasma continuou a
murmurar sob os oitenta travesseiros.

− Eles ouvirão isso repetido mais quarenta ou cinquenta vezes antes de acordarem; depois, outra vez na quinta-feira,
e novamente no sábado. Cento e vinte vezes, três vezes por semana, durante trinta meses. Depois disso, passarão a
uma lição mais adiantada. (p. 61 a 63)

Os habitantes da “civilização” dividiam-se em castas nomeadas pelo alfabeto grego.


Produzidos em laboratório, distinguiam-se pelo processo com que eram gerados. Alfas e Betas,
classes superiores, eram geradas a partir de um único embrião. Já Deltas, Gamas e Ipsilones
tinham seus embriões submetidos ao Processo Bokanowsky, caracterizado como um dos principais
instrumentos da estabilidade social e do progresso. Por meio dele, a fecundação de um único ovo
era capaz de gerar até noventa e seis seres humanos idênticos. Indivíduos produzidos em série
para ocupar as castas inferiores e manter a uniformidade do funcionamento social. Em uma das
passagens do livro, Huxley nos fala, por exemplo, de uma pequena usina que teve todos os seus
trabalhadores concebidos a partir de um único ovo.

51
Como vemos na primeira cena enunciativa em destaque, todos os indivíduos,
independente da classe que ocupavam, eram manipulados desde seu desenvolvimento
embrionário para se fazerem psicologicamente satisfeitos com sua posição social e com as regras
estabelecidas para o convívio em sociedade. Não haveria vontade livre, abolida pelo
condicionamento (ao bom estilo pavloviano!) e da hipnopedia, que consistia na repetição, durante
o sono, de frases previamente gravadas e incutidas no pensamento do homem desde seu
nascimento. (“Cem repetições, três noites por semana, durante quatro anos”, pensou Bernard
Marx, que era especialista em hipnopedia. “Sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade.
Imbecis!”). Dominadas e condicionadas, as pessoas não pensam, apenas repetem as frases que
veiculam as mensagens do regime social no qual estão inseridas.
O que se vê, baseando-nos em Fairclough, são ordens de discurso estáveis, reguladas por
mecanismos disciplinares explícitos, que vão inculcando nos indivíduos, por meio de palavras,
ortodoxias e ideologias próprias do Mundo Novo. Para os administradores deste Mundo Novo o
condicionamento sem palavras poderia ser considerado grosseiro e genérico, e incapaz de fazer
apreender as distinções mais sutis, de inculcar nos indivíduos formas de comportamento mais
complexas. Daí a importância das palavras, mas palavras que se estruturam fora de uma
explicação racional, considerando-se a hipnopedia a maior força moralizadora e socializante de
todos os tempos.
Até que finalmente, o espírito da criança seja essas coisas sugeridas, e que a
soma dessas sugestões seja o espírito da criança. E não somente o espírito da
criança. Mas também o adulto, para toda a vida. O espírito que julga, e deseja, e
decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas
são aquelas que nós sugerimos, nós! – O Diretor quase gritou, em seu triunfo. –
Que o Estado sugere.(HUXLEY, 2009, p.63-64)

Fundamentado em Archer, Fairclough (2003, p. 160) distingue os conceitos de “agentes


primários” e “agentes incorporados”. Involuntariamente, as pessoas são posicionadas como
agentes primários pelo modo como nascem, sendo inicialmente impossibilitadas de operar
escolhas (incluindo-se aí as noções de gênero e de classe social). É justamente a reflexividade que
está na base da capacidade de agentes sociais transformarem sua condição de agentes primários
em agentes incorporados, o que significa dizer que se mostram capazes de agir coletivamente e de
atuar na mudança social. Os indivíduos do Mundo Novo constituir-se-iam, nessa perspectiva,
como “agentes primários”, incapazes de operar escolhas, padronizados em grupos uniformes, de
acordo com o grau de intelectualidade e suas funções produtivas. Nascem massa de indivíduos

52
controlada pelo sistema e se vêem impossibilitados de transformarem-se em “agentes
incorporados”, vez que o condicionamento ao qual são submetidos impede que reflitam sobre sua
condição, o que impossibilita a atuação coletiva em busca da mudança social.
Interessa-nos, ainda, uma breve incursão no interior das categorias relacionadas ao
significado identificacional, propostas por Fairclough (2003), dentre as quais destacamos a
avaliação. Afirmações avaliativas são afirmações acerca do que é considerado desejável ou
indesejável, relevante ou irrelevante, estando sujeitas a uma escala de intensidade (RESENDE E
RAMALHO, 2006, p. 79). Na referida cena, tais afirmações relacionam-se ao juízo de valor de
classe, inculcado por meio de frases repetidas durante o sono (“Oh, não, não quero brincar com
crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São demasiado broncos para saberem ler e
escrever. E, além disso, se vestem de preto, que é uma cor horrível. Como sou feliz por ser um
Beta”). A avaliação inclui, ainda, afirmações com verbos do processo mental afetivo (como, por
exemplo, “amar”, “odiar”), fazendo-se marcadas subjetivamente, ou seja, explicitam-se na
afirmação do autor. Na cena em destaque, observa-se uma gradação dos verbos de processo
mental afetivo, pois as afirmações sugerem alta afinidade em termos da valorização de sua própria
classe e baixa afinidade em relação às demais (“Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta,
porque não trabalho tanto”. E, além disso, somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Os
Gamas são broncos”).

Cena enunciativa 2

Nos berçários, a lição de Consciência de Classe Elementar havia terminado; as vozes adaptavam a futura
procura à futura oferta industrial: “Como eu adoro andar de avião”, murmuravam, “como eu adoro andar de avião”,
como eu adoro ter roupas novas, como eu adoro...” (...)

“Mas as roupas velhas são horríveis” continuava o murmúrio infatigável. “Nós sempre jogamos fora as roupas
velhas. Mais vale dar fim que conservar, mais vale dar fim...” (...)

“Mais vale dar fim que consertar. Quanto mais se remenda, menos se aproveita. Quanto mais se remenda...”
(...)

− A ética e a filosofia do subconsumo... (...)

− Absolutamente essenciais quando havia subprodução; mas, na era das máquinas e da fixação do nitrogênio,
um verdadeiro crime contra a sociedade. (p.91-96)

A cena enunciativa apresentada nos mostra o tipo de condicionamento realizado em


bebês treinados para se tornarem futuros consumistas. Afinal, de que valeria tanto
desenvolvimento tecnológico se o consumo não acompanhasse o ritmo da oferta dos produtos

53
colocados à disposição do homem? Consumir e “jogar fora”. “Jogar fora” para consumir ainda
mais. Essa parece ter sido a lógica prevista por Huxley para uma sociedade que se viveria muitos
anos depois. Sociedade esta que se “explicita na lógica do mercado: o sujeito é sempre individual e
só existe socialmente enquanto tem algo para comprar ou vender” (Sodré, 2006, p. 29).
Parece mesmo que, hoje, a palavra de ordem é consumir, e junto a ela a máxima de que
se deve prontamente assimilar o “novo”, até que ele seja substituído, com a mesma rapidez com
que envelhece, por outro “novo” ainda mais inovador. É a dinâmica de uma sociedade “do
descarte”, como apelidada por Alvim Toffler já na década de 1970. Por certo, uma boa imagem-
narrativa para questionarmos a dinâmica de nossa própria opulência, em uma sociedade que
estimula a antecipação do descarte, “presenteando” seus cidadãos-consumidores com uma oferta
constante de produtos renovados no mercado. Para Harvey (2009), esse “descarte” significa mais
do que jogar fora bens produzidos, criando um gigantesco problema sobre o que fazer com o lixo;
significa “também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego
a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser” (p. 258). Esse efeito de
volatilidade é imediatamente sentido na dificuldade em se estabelecer qualquer planejamento a
longo prazo.
Como acontece em Leônia, cidade invisível de Calvino (2003), cuja opulência se mede
pelas coisas que diariamente são jogadas fora para dar lugar às novas, pode-se questionar “se a
verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o
ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente”. (p. 109) No cenário
contemporâneo, parece que o prazer pela novidade disfarça a impureza de um desejo sempre não
realizado de si mesmo, ou a indispensável condição de estar sempre em movimento. Erguendo o
valor da novidade acima do valor da permanência (BAUMAN, 2008, p. 111), a síndrome
consumista faz com que cada nova aquisição opere como uma espécie de renascimento.
“Aprendemos a renascer: novas carreiras, novas identidades, novos afetos; e a recomeçar
incansavelmente (COSTA, 2009, p. 36). Visões da narrativa “pós-moderna” que refletem a
experiência do tempo na nova economia política: “um eu maleável, uma colagem de fragmentos
em incessante vir a ser, sempre aberto a novas experiências”, adequado ao trabalho de curto
prazo (SENNET, 2005, p. 160).
Assim, flexível, deve o consumidor se ajustar para absorver o novo, exaltado nas
condições de vida postuladas na contemporaneidade. Destituído de sua posição de produtor, se vê
individualizado por seu poder de compra, parâmetro que garante a medida de uma vida bem-
sucedida (BAUMAN, 1998). Justamente neste ponto é que uma perversa realidade se impõe: como

54
o mercado precisa ser universal, anuncia, em seu discurso, que, nele, todos são iguais; quando, na
verdade, seleciona os que estão em condições de, em seu interior, exercer suas próprias escolhas
(SARLO, 2004). A sedução exercida pelo mercado consumidor traduz, desse modo, uma realidade
contraditória: “iguala”, na medida em que dispara, indiscriminadamente, em todas as direções e
através dos meios de comunicação, seus impulsos sedutores. Mas, aparta, quando estimula o
hiato entre os que desejam consumir e os que efetivamente podem satisfazer seus desejos
(BAUMAN, 2008).
Dessa forma, a aparência de liberdade é enganadora na perspectiva do consumo.
Atrelado à noção de pluralidade, enfaticamente anunciada pelos apologistas “pós-modernos”, a
lógica de um consumo segmentado, portanto, mais democrático, encontra coro na própria
diversidade dos produtos ofertados, prenúncio de uma pretensa liberdade dada aos diferentes
segmentos da sociedade, que poderiam “escolher” os bens de consumo mais adequados a seus
gostos, estilos e possibilidades. A democracia, então baseada no exercício das preferências do
consumidor, eleger-se-ia sobre a capacidade de “livre escolha” e de “eleição individualizada” dos
bens de consumo. Mas, ao contrário de revogar o imperativo básico da lógica do mercado, a
segmentação do mercado a reforça, diversificando para melhor submeter (SEVERIANO &
ESTRAMINA, 2006). Assim, graças ao expediente de apresentar o compromisso de escolher como
sendo a própria liberdade de escolha, a sociedade líquido-moderna de consumidores opera um
dever disfarçado de privilégio, e praticamente anula todas as formas de dissidência, resistência ou
revolta possíveis (BAUMAN, 2008).
Tão ou mais importante do que o próprio consumo de bens materiais, é, hoje, o consumo
de serviços e signos, nas suas mais diferentes modalidades semióticas. Basta olharmos, por
exemplo, para a torrente de imagens que se prenunciam sob inscrição da mídia e são avidamente
consumidas em nosso cotidiano.

Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo-poderosos não


fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o
numa fantasmagoria de jogos de espelhos - imagens que em grande parte são
destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como
forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de
significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve
imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não
se dissolve é uma sensação de estranheza e mal-estar. Mas talvez a
inconsistência não esteja somente na linguagem e nas imagens: está no próprio
mundo. (CALVINO, 1990, p. 72)

55
A advertência de Calvino nos faz atentar para a redução da imagem à matéria de jogos de
espelhos, que se servem da fluidez da imagem para “multiplicar” o mundo em representações. Sob
o escrutínio da mídia e com o suporte de avançadas tecnologias de comunicação, não há
fronteiras geográficas para as imagens (textos ou para outros materiais semióticos), que podem
facilmente se espalhar pelo globo, ao princípio da velocidade e ao sabor do mercado.
Mundialmente, passa-se a compartilhar um universo de objetos-signos de consumo, que
engendram novos referentes de identidade e implicam valores e comportamentos sempre
renovados. Espaços anônimos são serializados: bancos, shopping centers, aeroportos. Símbolos
são desterritorializados: o jeans, o tênis, a pizza express. Marcas são transnacionalizadas: Coca-
Cola, Nike, McDonald’s. Em torno desses símbolos, marcas e espaços, agregam-se grupos sociais
de “mundos” distintos, seja por diferenças de localidade, etnia, crença ou idioma. Os sentidos de
pertencimento, agora delineados por centros gestores de consumo, se desarticulam de lealdades
nacionais e os consumidores passam a ser visualizados em função de padrões similares de
comportamento e estilos de vida (MORAES, 2006). Sujeitos de consumo, somos interpelados por
discursos midiáticos que vendem imagens, ideias e modos de ser. Isso afeta diretamente a própria
cultura, fazendo girar, como nunca, as rodas da indústria cultural. É por isso que um caminho para
nos aproximarmos da inconsistência que Calvino acredita estar no próprio mundo, talvez seja
entendermos a potência da tríade imagem-mídia-espetáculo, quando engendradas no e para o
consumo.
No interior da discussão proposta, podemos divisar em Fairclough (2001) a tendência à
comodificação nos processos discursivos contemporâneos, definindo-a como “o processo pelo
qual os domínios e as instituições sociais, cujo propósito não seja produzir mercadorias no sentido
econômico restrito de artigos para venda, vêm, não obstante a ser organizados e definidos em
termos de produção, distribuição e consumo de mercadorias (p. 255). Como exemplo, Fairclough
cita a referência feita a setores da arte e da educação (como é o caso do teatro e do ensino de
língua inglesa) como “indústrias”, cujo principal objetivo seria produzir, comercializar e vender
mercadorias culturais e educacionais a seus clientes, também chamados “consumidores”. O
discurso educacional comodificado cria, assim, uma contradição nos termos da constituição dos
próprios aprendizes.
De um lado, são construídos no papel ativo de clientes ou consumidores
conscientes de suas ‘necessidades’ e capazes de selecionar cursos que venham
ao encontro de suas necessidades. Por outro lado, são construídos no papel
passivo de elementos ou instrumentos em processos de produção [...] que sejam
alvos para treinar ‘habilidades’ ou ‘competências’ requeridas, com cursos
concebidos em torno de ‘metas de realização’ precisas resultando em perfis de
56
aprendizes, ambos os quais são especificados em termos de habilidades bastante
precisas (idem, p. 256)

Dominado por um vocabulário de habilidades (no qual se incluem palavras associadas como
“competência”), o discurso educacional comodificado aparece para Fairclough (op.cit.) na perspectiva de
uma lexicalização completa dos processos de aprendizagem e ensino fundamentados em conceitos de
habilidade, treinamento de habilidades e outros. Obedecendo à lógica do mercado, a educação é elevada à
função de adaptar e instruir.

Cena enunciativa 3

− Mas por que é que ele está proibido? – perguntou o Selvagem. Na excitação de conhecer um homem que
havia lido Shakespeare, esquecera momentaneamente tudo o mais.

O Administrador deu de ombros.

− Porque é antigo; essa é a razão principal. Aqui não queremos saber de coisas antigas.

− Mesmo quando são belas?

− Sobretudo quando são belas. A beleza atrai, e nós não queremos que ninguém seja atraído pelas coisas
antigas. Queremos que amem as novas.

Cena enunciativa 4

-- Lembram-se todos – disse o Administrador, com sua voz forte e profunda –, lembram-se todos, suponho,
daquelas belas e inspiradas palavras de nosso Ford: “A História é uma farsa”. A História – repetiu pausadamente – é
uma farsa.

Agitou a mão; e dir-se-ia que, com um invisível espanador, sacudia um pouco de poeira (...), algumas teias de
aranha, que eram Tebas e Babilônia, Cnossos e Micenas. Uma espanada, depois outra – e onde estava Ulisses, onde
estava Jó, onde estavam Júpiter, Gotama e Jesus? Uma espanada – e essas manchas de lama antiga que se chamavam
Atenas e Romas, Jerusalém e o Império do Meio – todas haviam desaparecido. Uma espanada o lugar onde era a Itália
ficou vazio. Uma espanada – desaparecidas as catedrais; uma espanada, mais uma – aniquilados o Rei Lear e os
Pensamentos de Pascal. Uma espanada – desaparecida a Paixão; outra – morto o Réquiem; mais outra – acabada a
Sinfonia; mais outra... (p. 73)

Cena enunciativa 5

− Faltava apenas vencer a velhice. (...)

− Todos os estigmas filosóficos da velhice foram suprimidos. E com eles, naturalmente... (...)

− Com eles, todas as peculiaridades mentais do velho. O caráter permanece constante por toda a vida. (...)

57
− No trabalho, nas diversões; aos sessenta anos, nossas forças e nossos gostos são o que eram aos dezessete.
Os velhos, nos tristes dias de outrora, renunciavam, retiravam−se, dedicavam−se à religião, passavam o tempo lendo e
pensando, pensando! (...)

− Atualmente, tal é o progresso, os velhos trabalham, os velhos copulam, os velhos não têm um instante, um
momento de ócio para furtar ao prazer, nem um minuto para se sentarem a pensar; ou se, alguma coisa, por um
acaso infeliz, um abismo de tempo se abrir na substância sólida de suas distrações, sempre haverá o soma, o delicioso
soma, meio grama para um descanso de meio dia, um grama para um fim de semana, dois gramas para a excursão ao
explêndido Oriente, três para uma sombria eternidade na Lua; de onde, ao retornarem,se encontrarão na outra
margem do abismo, sem segurança na terra firme das distrações e do trabalho cotidiano, correndo de um cinema
sensível a outro,de uma mulher pneumática a outra, de um campo de Golfe Eletromagnético a...

Tomando por referência as três cenas enunciativas apresentadas, encontramos no


binômio novo-velho a possibilidade de múltiplas leituras que nos interessam aqui problematizar.
Na primeira delas, a figura dos dois personagens (o Administrador e o Selvagem) reflete o
antagonismo existente entre a nova (e “civilizada”) sociedade, e a velha, marcada pela liberdade e
instabilidade próprias da “barbárie”. Naquele “Novo Mundo”, qualquer elemento potencialmente
transgressor da ordem e da estabilidade seria considerado perigoso. Por isso, a proibição de
Shakespeare em função todo seu potencial de pensamento crítico/criativo.
Na segunda cena enunciativa, registra-se o sentido da perda da transcendência histórica e
de seu caráter emancipatório. “A História é uma farsa”, dizem, “manchas de lama antiga” que
devem ser aniquiladas. A campanha contra o passado proposta nessa sociedade futurista inclui o
fechamento de museus, a destruição de monumentos históricos e a supressão de livros “antigos”
(adjetivação utilizada para desqualificar a obra de Shakespeare).
No Admirável Mundo Novo era preciso impor à sociedade “amar o novo”, assumindo-o
como referencial. Contudo, um “novo” que bem cabe na lógica de mercado à qual nos vemos
também submetidos: prontamente assimilado e a ser substituído com a mesma rapidez com que
envelhece. É o novo que já nasce velho1, enunciado badalado em letra de música pela juventude
pop-rock contemporânea, que bem se poderia traduzir como uma importante dúvida filosófica,
presentificada no enfrentamento da “grande temporalidade” que nos demarca como indivíduos
históricos e sociais. Nos versos da música o enunciado se faz afirmação, denúncia de um tempo
que corre apressado, saturado por seus paradoxos: “se os velhos não podem criar suas rugas o
novo já nasce velho”.2 Travestida em uma lógica simples, a asserção nos permite, ao contrário, a
leitura de uma realidade complexa: a obsolescência planejada de objetos e equipamentos

1
“O novo já nasce velho” de O Rappa.
2
Verso da referida canção.

58
(especialmente os eletrônicos), que alimenta as engrenagens de uma ciranda consumista à qual
nos vemos submetidos em tempos de uma produção alienada. Produção esta que se sustenta em
grande medida pelos discursos midiáticos que estimulam a constante aquisição de novos
produtos, ao invés da manutenção dos usados, fazendo girar incessantemente as rodas do
consumo. Se se considera que o novo já nasce velho, o perigo é que nosso futuro inventado talvez
se faça tão efêmero quanto o próprio movimento do tempo.
Na “pós-modernidade”, fatos históricos perdem importância ante a exaustiva repetição e
reprodução midiática. A atitude presentista marca nossa contemporaneidade e o pressuposto de
uma nova era, em que estariam zeradas as múltiplas circunstâncias históricas que a
condicionaram, acaba se transformando em princípio explicativo (SEVCNEKO, 2001). Em uma
temporalidade para qual o passado pouco importa, e, talvez, por isso mesmo, esteja na moda, à
venda nos shopping centers (SARLO apud RAGO, 2005), há que se rediscutir, inelutavelmente, o
lugar do tempo histórico na relevância de sua composição visível.

Com a dispersão de sentidos e a fragmentação de identidades coletivas, não é


somente a autoridade da tradição que vai a pique; também se perdem as âncoras
que permitem viver o presente não como instante, ao qual se seguirá outro
instante que também chamaremos de “presente”, mas sim como projeto. O
passado, como pretendia o filósofo, já não pesa sobre nós; pelo contrário,
tornou-se tão leve que nos impede de imaginar “a continuidade de nossa própria
história”. (SARLO, 2004, p. 178-179).

Na terceira cena enunciativa, podemos divisar outro reflexo importante dessa relação. O
progresso traz possibilidades de se viver a “eterna juventude”, suprimindo os estigmas filosóficos
da velhice. A doença e o envelhecimento são vistos na sociedade de Huxley como faces da
imperfeição, da instabilidade, reveladores da fragilidade humana. Dessa forma, é preciso manter-
se ativo e preservar o corpo físico, garantindo uma aparência sempre jovem. Em nossos dias,
como na ficção do “mundo novo”, a ditadura do corpo perfeito, propagada pela mídia, rege a
busca pela manutenção da juventude, arquétipo de felicidade e adequação aos novos tempos.
Essa busca constante pelo “novo” atinge também os novos modelos de empresa em
tempos de “capitalismo flexível” (SENNETT, 2005). Os profissionais de hoje são continuamente
pressionados a se superar o que revitaliza o fracasso como “o grande tabu moderno” (ibid., p.141).
Devem ser ágeis, abertos a mudanças imediatas, e, cada vez mais independentes de leis e
procedimentos formais.. Dessa forma, a concentração nas capacidades imediatas leva a uma
negação da experiência passada, agora substituída por valores como a flexibilidade e a capacidade
de correr riscos. A lógica, portanto, é a da substituição dos profissionais com carreiras sólidas por
59
jovens recém-formados que já entram no mercado ganhando melhores salários. Tal quadro gera,
em Sennet um profundo incômodo, que se revela nas inquietações que, conosco, compartilha.

Como podem se buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto


prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser
humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa
sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia
alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar,
de emprego em emprego (p.27).

É nesse sentido que, no lugar da proclamada liberdade que o trabalho flexível traria às
pessoas para significarem suas vidas, são impostas novas estruturas de poder e de controle, a
partir das quais se observa uma “ácida erosão daquelas qualidades do caráter como lealdade,
compromisso, propósito e resolução, que são de longo prazo na natureza” (ibid., p.31). Tudo isso
indica que estamos diante de cenários de uma nova morfologia do trabalho que, sustentada no
discurso da emancipação ou da realização dos trabalhadores, acaba por significar uma
materialidade a eles adversa, em tempos de desemprego estrutural e precarização de suas
condições de trabalho (ANTUNES & ALVES, 2004, p.349).
Alocar o adjetivo flexível ao termo trabalho parece ter sido uma alternativa para enfatizá-
lo em seu caráter libertador, como se, com isso, se qualificasse a emancipação do homem em
relação ao tempo e espaço de sua própria atividade. Mas o que estão postas, mesmo, são
múltiplas formas de fetichizações e reificações, que permeiam o mundo do trabalho e evidenciam
sua hegemonia ao atravessarem a vida que acontece fora dele (ibid.).
Finalmente, uma leitura importante da relação novo-velho nos é apresentada a partir da
discussão do imaginário tecnológico, proposta por Felinto (2005). Segundo ele, as novas
tecnologias apresentam uma característica singular: não se apóiam mais sobre um sentido de
materialidade visual, o que significa dizer que a reverência à máquina não se sustenta mais a partir
de sua aparência e dimensões e, sim, de um sentimento oposto: “quanto menor, mais invisível e
misteriosa é a configuração da máquina, mais poderosa ela parece”. (ibid. p. 55). Contudo, o
imaginário tecnológico ao mesmo tempo em que se ancora no que há de mais moderno, no
poderio de uma tecnologia de “ponta”, indica um retorno ao que é mais tradicional, o que nos faz
entender que não basta desenvolver a novíssima tecnologia, ela precisa fazer referência a algo que
dê ao humano a segurança de que a história não se perdeu. É, pois, uma paradoxal combinação
entre a elaboração do mais novo sob a máscara do mais antigo.

60
(In)acabamentos...
Ao desenvolver um enredo centrado no processo de condicionamento humano, Huxley
nos faz atentar para a linguagem como forma de dominação e controle. A força moralizadora da
sociedade encontra-se justamente na repetição de enunciados que garantem a submissão do
sujeito às suas convenções. Dessa forma, submetendo os indivíduos à hipnopedia, o Estado
discrimina o que é dito de acordo com o papel que delega a cada uma das classes. Seus habitantes,
não conhecendo os múltiplos sentidos das palavras e não conhecendo outra realidade que não
aquela imediatamente imposta, desconhecem a força da linguagem enquanto instrumento de
uma possível “libertação”.
Ancorando-nos em Fairclough, percebemos a linguagem em seu duplo viés: como
elemento constitutivo da realidade social e como elemento constituído por essa mesma realidade.
Por um lado, conforme notado na novela de Huxley, a linguagem colabora com a manutenção das
práticas sociais, reforçando os discursos hegemônicos que as orientam. Assim, os indivíduos
civilizados do “Admirável Mundo Novo”, diante de um panorama ideológico unificador e coesivo,
compartilhavam a sensação de segurança e estabilidade. Por outro, a linguagem pode se
estabelecer como elemento transformador dessas mesmas práticas, alterando o panorama social
estabelecido. Contudo, não se pode esquecer que, atendendo ao propósito da manutenção ou da
transformação, a linguagem sempre acaba por incorporar traços dessas mesmas práticas.
Pensando no desenvolvimento tecnológico e seus efeitos para a humanidade, Huxley nos
presenteou com uma narrativa ficcional que encontra reflexos da nossa própria realidade e de
seus possíveis desdobramentos. Vanguardista, o livro denuncia aspectos desumanizadores do
progresso científico e material. Fatos que, por certo, podem ser lidos não apenas como valores de
uma realidade ficcional, mas como elementos extremos de nossa própria sociedade.
Neste artigo, ao trazermos recortes enunciativos da obra pretendíamos justamente
apontar algumas interlocuções que relacionam a cena enunciativa do “Mundo Novo” ao contexto
da sociedade contemporânea. Por certo, sensações paradoxais nos colocam diante das projeções
de Huxley para o futuro. Um futuro sem democracia, arte ou liberdade. Um futuro de linguagens
pré-programadas e disseminadas para a garantia da ordem. Resta-nos, então, buscar
compreender qual é o lugar que ocupamos numa sociedade dominada pela máquina. O medo e a
insegurança gerados pelo “Mundo Novo” levou o selvagem a suicidar-se. Para nós, ficam as
inquietações acerca do futuro, especialmente no sentido de alternativas construídas
coletivamente.

61
Referências

ANTUNES, Ricardo & ALVES, Giovanni. As mutações do mundo do trabalho na era da


mundialização do capital. In: Educ e Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004.

AUGÉ, Marc. Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã.


In: MORAES, Dênis (org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006, p.99-117.

BARRETO, R. G. Tecnologia e educação: trabalho e formação docente. Educ. e Soc. Campinas,


vol.25, n.89, p.1181-1201, Set./Dec. 2004.

________. Discursos, Tecnologias, Educação. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

________. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.

CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio - Lições Americanas. Companhia das
Letras: São Paulo, 1990.

________. As Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro: O GLOBO; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

COSTA, Maria Vorraber. Educar-se na sociedade de consumidores. In: ________ (org.). A educação
na cultura da mídia e do consumo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.

________. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003.

FELINTO, E. A religião das máquinas: ensaios sobre o imaginário da cibercultura. Porto Alegre:
Sulina, 2005.

GÓMEZ, G. O. Comunicação social e mudança tecnológica: um cenário de múltiplos


desordenamentos. In: MORAES, D. (Org). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 18ª ed. São Paulo: Loyola, 2009.

HUXLEY, A. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2009.

MAGALHÃES, Izabel. Teoria crítica do discurso e texto. In: Liguagem em (Dis)curso. Tubarão, v.4,
p. 113-131, 2004.

MARTÍN-BARBERO, J. Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da


comunicação no novo século. In: MORAES, D. (Org). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro:
Mauad, 2006.

62
MATTELART, Armand. A origem do mito da Internet. 2000. Disponível em:
<http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/noticia/noticia.asp?cod_noticia=3648&cod_canal
=37>. Acesso em: 20 de outubro de 2007.

________. História da sociedade da informação. São Paulo: Loyola, 2002.

McNALLY, D. Língua, história e luta de classe. In: WOOD. E. M. e FOSTER, J.B. (orgs). Em defesa da
história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 33-50.

MORAES, D. (Org). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

RAGO, Margareth. O Historiador e o Tempo. In: DE ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta
(orgs). Quanto tempo o tempo tem! 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005, p. 25-48.

RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto,
2006.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2000.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004.

SENNET, Richard. A corrosão do caráter. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

SEVERIANO, Maria de Fátima Vieira; ESTRAMINA, José Luis Álvaro. Consumo, narcisismo e
identidades contemporâneas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.

SODRÉ, M. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, D. (Org). Sociedade


midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

63
PESQUISAS INTERDISCIPLINARES UMA TENTATIVA DE SUPERAÇÃO DA
FRAGMENTAÇÃO DO CONHECIMENTO
Carmem Caetano (UCB; UFC)1

Esta conferência apresenta uma reflexão acerca da interdisciplinaridade. Nela se tem como
proposta discutir que um projeto interdisciplinar não é ensinado, mas sim vivenciado; nele se
exige a responsabilidade individual e ao mesmo tempo um envolvimento com o projeto
propriamente dito, com as pessoas e com as instituições que fazem parte desse projeto. É essa
prática do diálogo com outras áreas do conhecimento que nos leva às relações e as conexões de
idéias, fazendo-nos perceber, sentir e pensar de forma interdisciplinar. Pensar a
interdisciplinaridade enquanto processo de integração recíproca entre vários campos de
conhecimento “capaz de romper as estruturas de cada uma delas para alcançar uma visão unitária
e comum do saber em parceria”, conforme afirma Palmade (1979), é sem dúvida, uma tarefa que
demanda, de nossa parte, um esforço de rompimento de uma série de obstáculos ligados a uma
racionalidade extremamente positivista da sociedade atual. Minha justificativa para esta palestra
esta ancorada em minha preocupação com as relações que envolvem as práticas sociais da
Educação Especial que tem sido alvo de questionamentos por parte de muitos/as
pesquisadores/as. A precarização social das instituições e a desmobilização social são freqüentes
em nosso país e são, por conseguinte, preocupações que têm motivado cientistas das mais
diversas áreas. Portanto, estudos interdisciplinares ultrapassam as fronteiras das ciências
positivistas e passam a inspirar trabalhos no âmbito da Ciência Social Crítica (CSC), perspectiva
cientifica que visa intervir ativamente na mudança social, assumindo uma posição crítica, sem as
amarras da ‘neutralidade científica’.

Palavras-chave: interdiciplinaridade, pesquisa, práticas sociais

Apresentação
Este artigo apresenta uma reflexão acerca da interdisciplinaridade. Nele se tem como
proposta discutir que um projeto interdisciplinar não é ensinado, mas sim vivenciado; nele se
discute a responsabilidade individual e ao mesmo tempo um envolvimento com o projeto
propriamente dito, com as pessoas e com as instituições que fazem parte desse projeto. É essa
prática do diálogo com outras áreas do conhecimento que nos leva às relações e as conexões de
idéias, fazendo-nos perceber, sentir e pensar de forma interdisciplinar.
Pensar a interdisciplinaridade enquanto processo de integração recíproca entre vários
campos de conhecimento “capaz de romper as estruturas de cada uma delas para alcançar uma
visão unitária e comum do saber em parceria”, conforme afirma Palmade (1979), é sem dúvida,
uma tarefa que demanda, de nossa parte, um esforço de rompimento de uma série de obstáculos
ligados a uma racionalidade extremamente positivista da sociedade atual. Portanto, a justificativa

1
Doutora em Linguistica pela Universidade de Brasília – UnB. Pós-doutoranda pela Universidade Federal do Ceará –
UFC e docente na Universidade Católica de Brasília – UCB.

64
para este trabalho esta ancorada em minha preocupação com as relações que envolvem trabalhos
dialogizados, trabalhos nos quais se dê importância ao ouvir ao outro e pensar acerca do que o
outro tem a dizer.
Acredito que somente com esforço interdisciplinar poderemos dar conta de entender que
a precarização social das instituições e a desmobilização social são frequentes em nosso país e são,
por conseguinte, preocupações que têm motivado cientistas das mais diversas áreas. Portanto,
estudos interdisciplinares ultrapassam as fronteiras das ciências positivistas e passam a inspirar
trabalhos no âmbito da Ciência Social Crítica (CSC), perspectiva cientifica que visa intervir
ativamente na mudança social, assumindo uma posição crítica, sem as amarras da ‘neutralidade
científica’

Introdução
Uma primeira observação é que muito já se disse acerca da interdisciplinaridade.
Entretanto, ainda não foi possível formalizar um conceito capaz de unir epistemólogos e filósofos
em torno de um consenso. Talvez não seja mesmo preciso tê-lo, no momento atual. No Brasil, já
há uma tradição ampla e bem consolidada de trabalho interdisciplinar tanto na investigação como
no ensino. No entanto, não raras são às vezes, que o trabalho interdisciplinar é ‘boicotado’ pelas
posturas que Edgar Morin denomina de hiperespecializacionistas. Nesse sentido, as universidades
são instituições, particularmente, refletoras deste modo de agir. Segunda observação: a verdade é
que falar de interdisciplinaridade é tarefa árdua. Muitos são os autores que corroboram com esta
constatação, só para citar alguns, lembro-me dos trabalhos de Carlos (2008); Monfardini (2005);
Pombo (2004); Fazenda (1993) entre tantos outros.
O objetivo, neste artigo, é desenvolver um esforço explicativo capaz de permitir
compreender alguma coisa daquilo que se pensa sobre interdisciplinaridade. Tentar compreender
por que é que estamos trabalhando com interdisciplinaridade e por que pelo menos por
enquanto, não é necessário preocupar-se com uma definição de interdisciplinaridade, mesmo
porque definições tendem a realçar o caráter limitador de uma questão sendo muito mais
empobrecedora do que produtiva. Isto, no entanto, não significa que não seja importante
trabalhar com a interdisciplinaridade. Para exemplificar, comento a importância de uma
abordagem interdisciplinar expandindo as minhas considerações. Lembro que a
interdisciplinaridade constitui característica marcante da pesquisa acadêmica na Linguística
Aplicada, que se preocupa com as realidades sociais cada vez mais complexas.

65
Em pesquisa intitulada, “Questões identitárias no processo educacional de pessoas
deficientes: Análise de Discurso Crítica, Letramento e Teoria das Representações Sociais” foi
possível perceber, já nas primeiras observações participativas, que os modelos vigentes para a
inserção de crianças e jovens com deficiência no sistema educacional brasileiro oscilava entre as
dicotomias: integração/inclusão, normalidade/desvio, inclusão/exclusão, saúde/doença. Esses
modelos repercutem nas representações sociais da deficiência, dos/as professores/as e de todos
os atores atuantes nas instituições que acolhem pessoas deficientes.
Portanto, a pesquisa interdisciplinar levada a cabo por mim, teve como foco de interesse
estudos acerca do Atendimento Educacional Especializado à pessoa deficiente (doravante AEE).
Tratava-se de preocupar-se em compreender problemas já apontados por pesquisadores que vão
do despreparo de docentes para relacionarem-se com deficientes à falta de recursos e,
principalmente, à ortodoxia de disciplinas acadêmicas as tais especializações. Desta forma,
acredito que isso por si só, já bastaria para nos proporcionar convicção suficiente de que é preciso
avançar nas propostas que favoreçam a união de esforços de diversas áreas do conhecimento para
encarar estes desafios. Explico.
Estudos interdisciplinares estariam contribuindo, no caso específico de minha pesquisa,
para que atores sociais envolvidos nas práticas sociais discursivamente marcadas nas instituições
com Ensino Especial possam mobilizar e atualizar conhecimentos sobre o papel social da
linguagem, sobre o conhecimento conceitual, bem como o conhecimento de senso comum (o
saber fazer). Nesse sentido, no exemplo dado, a articulação teórica da Teoria das Representações
Sociais, e da Análise de Discurso Crítica pode ser encarada como uma ampliação de esforços para a
reflexão sobre as identidades em AEE. O atendimento educacional à pessoa deficiente demanda
estudos no contexto de múltiplas áreas científicas nos anos recentes em nível internacional.
Apenas para citar algumas: Linguística, Educação, Sociologia, Psicologia, cada uma comportando
campos diversos que concorrem para enriquecer o conhecimento dos processos educacionais no
Ensino Especial. Esse esforço multidisciplinar tem focalizado questões abrangentes, tais como a
reprodução e/ou modificação de representações sociais, àquelas localizadas no contexto
educacional, como a interação entre professores/professoras e alunos/alunas.
A Teoria das Representações Sociais, em sua interface com a Análise de Discurso Crítica,
apresenta pontos de intersecção. Essas duas abordagens se localizam em um movimento
histórico, no decurso da ciência, de mudança de paradigma. Em evidência estão o questionamento
do saber canonizado, da universidade, dos métodos quantitativos e instrumentos de pesquisa das

66
Ciências Naturais e a construção de teorias e metodologias de pesquisa mais adequadas à nova
compreensão dos múltiplos campos de estudos.
Nas duas teorias encontramos autores preocupados em realizar estudos interdisciplinares,
apenas para citar um exemplo, lembro de Fairclough (2003) na Análise de Discurso Crítica e
Jodelet (2004), na Teoria das Representações Sociais. Portanto, este é apenas o primeiro passo
para a aproximação destas áreas de saber. Mas, não caberia a este artigo tecer maiores
esclarecimentos a esse respeito por motivos óbvios. Passo, então, a tecer minhas considerações,
investigando a origem dos estudos de cunho interdisciplinar no Brasil e seus desdobramentos para
as pesquisas.

Primeiros passos
Segundo Bianchetti (1997), a interdisciplinaridade, no campo da filosofia do sujeito,
decorre de uma perspectiva vinculada à filosofia idealista, a qual evidencia a autonomia das idéias
ou do sujeito pensante sobre os objetos. Esse autor afirma que as discussões atualmente
existentes em torno do tema, são hegemônicas e remetem à “concepção a-histórica do objeto
científico denominado interdisciplinaridade” (p:11). Segundo ele, tal concepção “caracteriza-se
por privilegiar a ação do sujeito sobre o objeto, de modo a tornar o sujeito um absoluto na
construção do conhecimento e do pensamento” (op.cit: 23). Portanto, discutir acerca de
interdisciplinaridade, requer um pensar sobre outros domínios.
Ainda segundo Bianchetti, após participar do Congresso de Nice, na França em 1969,
Japiassú começa a introduzir as concepções de interdisciplinaridade no Brasil. Japiassú juntamente
com Ivani Fazenda são considerados responsáveis pela vinculação do tema no Brasil, sendo o
fulcro temático de Japiassú epistemológico, e o de Fazenda, pedagógico; entretanto, os dois
autores têm como base de suas teses a filosofia do sujeito. De acordo com eles, a
interdisciplinaridade é apontada como saída para o problema da disciplinaridade, que é
contextualizada como negativa, devendo, portanto, ser superada, por meio da prática
interdisciplinar. Para que isso aconteça, os autores indicam a presença de profissionais de várias
áreas como necessidade intrínseca ao projeto interdisciplinar. Trata-se da presença de equipes
multidisciplinares para o desenvolvimento de projetos de pesquisa. Segundo Japiassú (1976: 34):

Para a interdisciplinaridade é importante a intercomunicação entre as disciplinas,


de modo que resulte uma modificação entre elas, através de diálogo
compreensível, uma vez que a simples troca de informações entre organizações
disciplinares não constitui um método interdisciplinar.

67
Sem a preocupação de saber se o foco é o sujeito ou o objeto, o certo é que a
interdisciplinaridade é mesmo capaz de não ser qualquer coisa que se faça. Ela situa-se em algum
lugar, entre um projeto voluntarista, algo que nós queremos fazer, que temos vontade de fazer e,
ao mesmo tempo, qualquer coisa que, independentemente de nossa vontade, se está
inexoravelmente fazendo, quer queiramos quer não. E na tensão entre estas duas dimensões que
nós, indivíduos particulares, na precariedade e na fragilidade das nossas vidas, procuramos
caminhos para fazer alguma coisa que, por nossa vontade e porventura independente dela, se vai
fazendo.

Uma proposta a partir da palavra


Após, relatar a importância de estudos interdisciplinares e situar a inserção desse estudo
no Brasil, passo a uma pequena reflexão acerca da palavra “interdisciplinaridade”. Se prestarmos
atenção ao uso da palavra vamos verificar que há pelo menos uma família de quatro elementos
que se apresentam como mais ou menos equivalentes: pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade,
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. A partir desta observação, sentimo-nos um pouco
perdidos no conjunto destas quatro palavras. As suas fronteiras não estão estabelecidas, nem para
aqueles que as usam, nem para aqueles que as estudam, nem para aqueles que as procuram
definir. Há muita divergência quanto a nomenclatura.
Casos há em que estas palavras são utilizadas de forma banal. Às vezes, pensa-se que o
simples fato de as pessoas estarem ao lado umas das outras, sentadas em volta de uma mesa
(sobretudo se for “redonda”), permite dizer que a ação é interdisciplinar (cf. Gusdorf, 1990:20).
Ora, em geral, isto nada tem a ver com pluri, nem com a multi, nem com a trans, nem com a
interdisciplinaridade. Ao contrário, na esmagadora maioria dos casos, isso tem tudo a ver com a
disciplinaridade. Explico. Ora, o que acontece é que a palavra está lá, mas percebemos que a
experiência em causa é insuficiente, que, muitas vezes, se resume a um ato legítimo, por certo,
mas de pura animação intelectual. Não de interdisciplinaridade. Quero dizer com isso que a
palavra é ampla demais, que está sendo banalizada, aplicada a um conjunto muito heterogêneo de
situações e experiências. Esta utilização excessiva gasta a palavra, esvazia-a, tira-lhe o sentido.
Penso que é necessário refletirmos acerca da interdisciplinaridade como uma proposta que
está aí e que de repente, ficou sendo considerada quase que uma obrigação. Não discordo que
seja salutar utilizarmos a interdisciplinaridade como uma ferramenta. Ela realmente é importante,
o que falta é pararmos para pensar se aquilo que dizemos que é uma investigação interdisciplinar

68
realmente o é. Se for utilizar da interdisciplinaridade que o façamos com consciência e, não, por
modismo, mas que tenhamos claro com que objetivo.
Mas voltemos a refletir acerca da palavra. Minha proposta é que venhamos a reconhecer o
que está por detrás destas quatro palavras. Em multi, pluri, a idéia é a mesma: juntar muitas, pô-
las ao lado uma das outras. Ou então articular, pô-las inter, em inter-relação, estabelecer entre
elas uma ação recíproca. O sufixo trans supõe um ir além, uma ultrapassagem daquilo que é
próprio da disciplina.
Pombo (2004), aponta-nos sua proposta de entendimento desses conceitos. Sua proposta
é aceitar que há qualquer coisa que atravessa a pluridisciplinaridade ou multidisciplinaridade, a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. Que essa qualquer coisa é, em todos os casos, uma
tentativa de romper o caráter estanque das disciplinas. Mas que essa tentativa se pode fazer em
diferentes níveis, em diferentes graus. Para a autora, o primeiro é o nível da justaposição, do
paralelismo, em que várias disciplinas estão, simplesmente lado a lado uma das outras, que se
tocam, mas não interagem. Num segundo nível, as disciplinas comunicam umas com as outras,
confrontam e discutem as suas perspectivas, estabelecem entre si uma interação mais ou menos
forte; num terceiro nível, elas ultrapassam as barreiras que as afastam, fundem-se numa outra
coisa que as transcendem a todas. Haveria, portanto, uma espécie de continuum de
desenvolvimento. Entre o que é de menos – a simples justaposição – e qualquer coisa que é de
mais - a ultrapassagem e a fusão – a interdisciplinaridade designaria o espaço intermediário, a
posição inter-calar. O sufixo inter estaria lá justamente para apontar essa situação. A minha linha
de raciocínio é, então, bem simples. Explico. Partir da compreensão dos diferentes prefixos da
palavra disciplinaridade, do que eles têm para nos ensinar, das indicações que transportam
consigo, na sua etimologia.
No entanto, devo aclarar que o mais importante não é a questão nominal. O mais
importante é compreender o que se deixa pensar nessas várias palavras. Tentar perceber o que
por elas e através delas, se dá a pensar. Aliás, é importante notar, que apesar de gastas e mesmo
banalizadas, essas palavras são recorrentes, tenazes, persistentes. Esse seu constante uso é prova
de que alguma coisa de importante se está a tentar pensar por elas. Neste quesito estou
inteiramente de acordo com aqueles/aquelas que percebem a necessidade de produzirem
trabalhos interdisciplinares com o objetivo de repensar a resistência à especialização. Por isso, a
interdisciplinaridade é o lugar onde se pensa hoje a condição fragmentada das ciências e onde,
simultaneamente, se exprime a nossa nostalgia de um saber unificado.

69
O caso da especialização
Entendo por especialização, uma tendência da ciência moderna, exponencial a partir do
século XIX. Sabemos que a ciência moderna se constitui pela adoção da metodologia analítica
proposta por Galileu e Descartes. Isto é, se constitui justamente no momento em que se adotou
uma metodologia que se lhe permita “dividir” cada totalidade, cindir o todo em pequenas partes
por intermédio de uma análise cada vez mais fina. Ao dividir o todo nas suas partes constitutivas,
ao subdividir cada uma dessas partes até aos seus mais ínfimos elementos, a ciência parte do
princípio de que, mais tarde, poderá recompor o todo, reconstituir a totalidade. A idéia subjacente
é a de que o todo é igual a soma das partes.
O procedimento científico é este. Sempre foi este. Afirmo isto, baseada em meus dados de
pesquisa de doutorado: “Medicina Paliativa e Análise de Discurso Crítica: Identidade, discurso e
poder”. Depois de ter estudado as questões identitárias de pessoas envolvidas com a medicina
dita científico-tecnológica fica visível esta divisão de especialidades (cf. Caetano 2009, 2010).
Sob os nossos olhos, a ciência continua esse movimento em direção a uma cada vez mais
profunda especialização. Especialização que tem produzido resultados notáveis, magníficos. Não
podemos recusar nem menosprezar, nem esquecer, que foi este procedimento analítico da ciência
moderna que deu origem a todos os conhecimentos e a todo o bem-estar que lhe devemos. Talvez
não valha a pena reforçar aqui os seus aspectos positivos. Todos os conhecemos. A nossa vida
depende deles a cada instante. Porém, se não podemos esquecer, diminuir, negar os benefícios da
ciência moderna, tanto em termos de compreensão do mundo como de melhoria das nossas vidas
isso não pode ser impeditivo do reconhecimento dos custos que a especialização trouxe consigo.
Em primeiro lugar, custos ao próprio especialista que se transforma em uma criatura
estranha, alguém que sabe cada vez mais acerca de cada vez menos. Cito agora o comentário de
uma das participantes de minha pesquisa de pós-doutorado que exemplifica o que estou a
comentar.
O comentário de Alda2 é representativo disso:

“Veja bem Carmem, eu sou psicóloga, tenho uma formação na área, mas tenho
que ficar escutando o que a pedagoga diz. É chato demais. Eu sei do meu
trabalho. Entendeu?”

Ao comentário de Alda relembro o que diz Ortega Y Gasset, em páginas céleres de La


rebelion de las massas (1970), numa das mais sérias críticas à arrogância do especialista alguma
vez traçada:
2
É bom que se lembre que o nome da participante foi trocado por questões de ética em pesquisa.

70
“Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais
ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser
subsumido por nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio porque ignora
formalmente tudo quanto não entrou na sua especialidade; mas também não é
um ignorante porque é um ‘homem de ciência’ e conhece muito bem a sua
pequeníssima parcela no universo. Temos que dizer que é um ‘sábio-ignorante’,
coisa extremamente grave, pois significa que é um senhor que se comporta em
todas as questões, que ignora não como um ignorante, mas com toda a petulância
de quem, na sua especialidade, é um sábio”. (Gasset, 1970: 173-174)

Pouco depois, o mesmo tipo de diagnóstico começa a ser feito por grandes homens da
ciência, como por exemplo, Norbert Wienner.

Há hoje poucos investigadores que se possam proclamar matemáticos ou físicos ou


biólogos sem restrição. Um homem pode ser um topologista ou um acuticionista ou
um coleopterista. Estará então totalmente mergulhado no jargão do seu campo,
conhecerá toda a literatura e todas as ramificações desse campo mas,
frequentemente, olhará para o campo vizinho como qualquer coisa que pertença a
seu colega três portas abaixo no corredor e considera mesmo que qualquer
manifestação de interesse da sua parte corresponderia a uma indesculpável quebra
de privacidade” (Wiener, 1948:2)

E finalmente Oppenheimer, num texto de 1955, descreve nos seguintes termos esta
mesma situação:
“Hoje, não são só os nossos reis que não sabem matemática, mas também nossos
filósofos não sabem matemática e, para ir um pouco mais longe, são também os
nossos matemáticos que não sabem matemática. Cada um deles conhece apenas
um ramo do assunto e escutam-se uns aos outros com um respeito fraternal e
honesto. (...). O conhecimento científico hoje não se traduz num enriquecimento
da cultura geral. Pelo contrário, é posse de comunidades altamente especializadas
que se interessam muito por ele, que gostariam de o partilhar que se esforçam
por o comunicar. Mas não faz parte do entendimento humano (...). O que temos
em comum são os simples meios pelos quais aprendemos a viver, a falar e a
trabalhar juntos. Além disso, temos as disciplinas especializadas que se
desenvolveram como os dedos da mão: unidos na origem mas já sem contato.”
(Oppenheimer; 1955:55).

Em segundo lugar, como já nos ensinou Snow (1959), o século XIX estava já latente sob a
forma de oposição entre as ciências da natureza e ciências do espírito. Snow reencontra essa
ruptura no seu tempo, em termos de diagnóstico, na existência de duas culturas que deixam de
comunicar. “De um lado, os intelectuais literatos, do outro os cientistas. Entre os dois um hiato
mútuo de incompreensão e, às vezes, particularmente entre os jovens, de hostilidade” (Snow,
1959:4). A especialização é aqui, sobretudo, essa incomunicabilidade entre ramos fundamentais
do que era antes “a cultura científica”. Mas Snow vai mais além e aponta como raiz dessa

71
separação, o caráter incompleto dessas duas culturas. Diz ele: “os cientistas nunca leram uma obra
de Shakespeare e os literatos não conhecem a segunda lei da termodinâmica” (Snow, 1959: 15).
Cada grupo desconhece e ignora o que o outro faz, chegando mesmo, em alguns casos, a
considerar que o que o outro faz não tem qualquer interesse.
Portanto, uma abordagem disciplinar é típica de um olhar ambicioso, que valoriza apenas a
si mesmo, que teme a diferença, e supõe que seu objeto, seus métodos e sua linguagem são mais
adequados, e absolutamente capazes de responder às questões presentes no universo. Uma
abordagem interdisciplinar é característica de um olhar apaixonado, que compreende que o
universo é muito maior e mais complexo do que cabe em uma disciplina; que por mais que
conheçamos em profundidade nossa área de atuação, ainda assim existirão situações em que não
teremos respostas, pois não há disciplina que responda a tudo, e não há respostas prontas a todas
as questões que ainda virão a ser formuladas. Construir conhecimentos implica em construir
modos de ser, em exercitar a plasticidade que nos torna essencialmente humanos.
Seguindo esta linha de raciocínio, no que se refere à especialização, precisamos refletir,
também do ponto de vista institucional. A especialização tem consequências gravíssimas. Como se
sabe, a ciência é hoje uma enorme organização dividida internamente por inúmeras comunidades
de pares, de cada uma com os seus congressos, as suas revistas, as suas bibliotecas, os seus
territórios, os seus espaços institucionais. Essas comunidades constituem agregados competitivos
que lutam por apoios, subsídios, financiamentos, novos equipamentos, etc. Já não se trata de os
cientistas viverem de costas uns contra os outros, de desconhecerem o que estão a fazer os seus
colegas. Trata-se agora de competir naquilo que deveria ser de todos, de cada um procurar
defender os seus interesses particulares, se possível, retirando os benesses do colega ao lado.
Segundo Pombo (2004) , nem sempre foi assim. Sabemos que, por diversas vezes na
história da ciência, foram desenvolvidas pesquisas em simultâneo. Que diversos investigadores
podiam ter uma mesma idéia, mais ou menos na mesma época e que, quando isso acontecia,
estávamos perante um acontecimento festivo, um dos mais belos e significativos acontecimentos
da racionalidade imanente à produção cientifica. A existência dessas descobertas simultâneas
traduzia-se, em geral, no fato de os cientistas envolvidos serem consagrados em conjunto por uma
mesma descoberta. Hoje, é tudo isto que está em ruína. O projeto de investigação demarca seu
terreno antes de haver qualquer descoberta, antes mesmo de iniciar verdadeiramente a
investigação que se propõe a fazer. Para que outros não possam trabalhar no mesmo objeto, para
inviabilizar ou dificultar tanto quanto possível as descobertas simultâneas.

72
Em minha opinião tudo isto é uma consequência da especialização o que estou chamando
de ações hiperespecializacionistas. Não é certamente porque os investigadores sejam hoje mais
perversos do que antigamente, ou tenham maus instintos, ou falta de modéstia ou incapazes de
colaboração. Não! É porque, sendo a ciência cada vez mais cara, os investigadores precisam de
grandes financiamentos. E, para tal, precisam garantir lucros e ai, forma-se um círculo de
competitividade com foco em algo que esta inexoravelmente distante do resultado da pesquisa
com um fim em si mesma.
Obviamente, não podemos achar que é só isso ou estaremos correndo o risco do
reducionismo. Por outro lado, há além dos custos culturais e institucionais de uma ciência
especializada, outros tipos de custos que devem ser levados em consideração. A questão da
heurística é uma delas. Explico. É que paradoxalmente, no estado de enorme avanço em que
nossa ciência se encontra, o progresso da investigação se faz, cada vez mais, no cruzamento das
suas hipóteses e não tanto no interior de uma só disciplina. Ou seja, num número cada vez maior
de casos, o progresso da ciência deixa de ser pensado como linear ou como resultante de uma
especialização cada vez mais funda, mas ao contrário, e cada vez mais, depende da fecundação
recíproca de umas disciplinas por outras, da transferência de conceitos, problemas e métodos,
numa palavra do cruzamento interdisciplinar. Trata-se de reconhecer que determinadas
investigações reclamam a sua própria abertura para conhecimentos que pertencem,
tradicionalmente, ao domínio de outras disciplinas e que só essa abertura permite aceder a
camadas mais profundas da realidade que se quer estudar. Estamos perante transformações
epistemológicas muito profundas. É como se o próprio mundo resistisse ao seu retalhamento
disciplinar.
Ao perceber que todas as ciências que passam hoje por uma situação de crise necessitam
de uma reflexão profunda sobre suas categorias, sobre as relações com seus objetos, e sobre o
saber que é gerado, então é previsível que estes campos de saber questionem-se acerca de seu
caráter disciplinar, unidisciplinar e porque não dizer de “hiperespecialização”, o que impede uma
visão interacional do que existe nas distintas áreas do conhecimento, e esgota-se como modelo
explicativo do homem e de suas relações sociais passa a ser questionado.

Interdisciplinaridade e academia
Ampliando um pouco mais minhas considerações, penso que não há como não mencionar
a questão da interdisciplinaridade na nossa instituição – a universidade. É imprescindível levantar
esta questão, num momento em que o atual contexto histórico concreto coloca a necessidade

73
desta prática em todas as direções no tempo-espaço pós-moderno em que estamos inseridos. As
universidades são atingidas por forças de pressão, como por exemplo, aquelas advindas da
aceleração tecnológica, da competição intensificada e do globalismo. O que quero frisar é que
estas ‘pressões’ geram crises de “hegemonia, de legitimidade e institucional” de acordo com B.
Santos; o entendimento e a administração das mesmas, requer uma visão prática, uma visão
interdisciplinar.
Por outro lado, Silveira (1999) nos lembra que os órgãos avaliadores estão privilegiando a
interdisciplinaridade e exigindo dos cursos superiores sua implementação. Não obstante as
exigências externas e internas, a prática interdisciplinar continua ausente na universidade. A
efetivação da interdisciplinaridade depende de vários fatores, entre eles, humildade,
comunicação, criatividade, compromisso, trabalho em equipes. Estes fatores são limitados no
espaço universitário, principalmente pela compartimentalização do saber que é defendida
acirradamente por uma maioria que cultiva “todo o tipo de epistemologia da dissociação e do
esfalecimento do saber”, nas palavras de Japiassú. Isto faz com que o trabalho na universidade
seja organizado segundo princípios de estrita segmentação temporal, espacial e programática.
Embora esta situação seja comum à estrutura educacional como um todo, na universidade agrava-
se mais devido à rigidez funcional que de acordo com Boaventura Santos criou a “seu respeito o
mito da irreformabilidade” tornando-se uma instituição ‘avessa à mudança’. Como a
interdisciplinaridade exige mudança radical, e a flexibilidade para o novo é condição sine qua non
para a sua efetivação, logo a mesma é vista como ameaça, nunca uma possibilidade. Não se
percebe, por exemplo, as vastas possibilidades da prática interdisciplinar para se administrar as
dicotomias – cultura erudita-cultura popular; educação-trabalho; teoria-prática – que formam a
‘crise de hegemonia’ da instituição o que está resultando num processo de rápida decadência.
Para o autor, a ausência da prática interdisciplinar nos e entre os trabalhos de ensino-
pesquisa-extensão, gerou neste final de século, uma instituição cujo tempo e o espaço não
coincide com o tempo e o espaço da cultura atual, ou seja, uma universidade ‘descontextualizada’.
Autodeterminação, amplitude de planejamento, aptidão para as relações sociais e humanas,
variedades de comportamento e comunicação desenvolvida, são exigências que não podem ser
atendidas por instituições norteadas pelo paradigma da hiperespecialização. Acredito que a
mudança desse quadro, passa necessariamente pela ‘des-construção’do mito da irreformabilidade
para parafrasear Boaventura.

74
Considerações finais
Para finalizar, acredito que pensar a interdisciplinaridade enquanto processo de integração
recíproca entre vários campos de conhecimento “capaz de romper as estruturas de cada uma
delas para alcançar uma visão unitária e comum do saber em parceria”, conforme afirma Palmade
(1979), é sem dúvida, uma tarefa que demanda, de nossa parte, um esforço de rompimento de
uma série de obstáculos ligados a uma racionalidade extremamente positivista da sociedade atual.
O contexto histórico vivido nessa virada de milênio, caracterizado pela divisão do trabalho
intelectual, fragmentação do conhecimento e pela excessiva predominância das especializações,
demanda a retomada do antigo conceito de interdisciplinaridade que no longo percurso desse
século foi sufocado pela racionalidade a ponto de hoje nós não mais sabermos definir
interdisciplinaridade.
A necessidade de romper com a tendência fragmentadora e desarticuladora do processo
do conhecimento, justifica-se pela compreensão da importância da interação e transformação
recíprocas entre as diferentes áreas do saber. Essa compreensão crítica colabora para a superação
da visão do pensamento e do conhecimento, que vem colocando a pesquisa e o ensino como
processo reprodutor de um saber parcelado que consequentemente muito tem refletido na
profissionalização, nas relações de trabalho, no fortalecimento da predominância reprodutivista e
na desvinculação do conhecimento do projeto de uma sociedade mais justa.
A interdisciplinaridade enquanto aspiração emergente de superação da racionalidade
cientifica positivista, aparece como entendimento de uma nova forma de institucionalizar a
produção do conhecimento nos espaços de pesquisa, na articulação de novos paradigmas
curriculares e na comunicação do processo de perceber as várias disciplinas; nas determinações do
domínio das investigações, nas constituições das linguagens partilhadas, nas pluralidades dos
saberes, nas possibilidades de trocas de experiências e nos modos de realização das parcerias. Esta
realização integrativa-interativa permite-nos visualizar um conjunto de ações interligadas de
caráter totalizante e isenta de qualquer visão parcelada, superando-se as atuais fronteiras
disciplinares e conceituais.
Face à essas idéias, torna-se necessário repensar a produção e a sistematização do
conhecimento fora das posturas cientificas dogmáticas, no sentido de inseri-las num contexto de
totalidade. Dessa forma, a complexidade do mundo em que vivemos, passa a ser sentida e vivida
de forma globalizada e interdependente, o que coloca a necessidade de se recuperar o sentido da
unidade que tem sido sufocada pelos valores constantes do especialismo. A compreensão crítica
do mundo, da sociedade-cultura e do homem contemporâneo, depende da inter-relação entre as

75
disciplinas (ou ciências), pois, o isolamento e a fragmentação jamais darão conta da complexidade
do real.
Trabalhar a interdisciplinaridade não significa negar as especialidades e objetividade de
cada ciência. O seu sentido reside na oposição da concepção de que o conhecimento se processa
em campos fechados em si mesmos, como se as teorias pudessem ser construídas em mundos
particulares sem uma posição unificadora que sirva de base para todas as ciências, e isoladas dos
processos e contextos histórico-culturais. A interdisciplinaridade tem que respeitar o território de
cada campo do conhecimento, bem como distinguir os pontos que os unem e que os diferenciam.
Essa é a condição necessária para detectar as áreas onde se possa estabelecer as conexões
possíveis. Como observa Gusdorf (1976: 26), “a exigência interdisciplinar impõe a cada especialista
que transcenda sua própria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para
colher as contribuições das outras disciplinas”.
Finalmente uma ultima palavra para dizer que a interdisciplinaridade se deixa pensar, não
apenas na sua faceta cognitiva – sensibilidade à complexidade, capacidade para procurar
mecanismos comuns, atenção a estruturas profundas que possam articular o que aparentemente
não é articulável – mas também em termos de atitude – curiosidade, abertura de espírito, gosto
pela colaboração, pela cooperação, pelo trabalho em comum. Sem interesse real por aquilo que o
outro tem para dizer não se faz interdisciplinaridade. Só há interdisciplinaridade se somos capazes
de partilhar o nosso pequeno domínio do saber, se temos a coragem necessária para abandonar o
conforto da nossa linguagem técnica e para nos aventurarmos num domínio que é de todos e de
que ninguém é proprietário exclusivo. Não se trata de defender que, com a interdisciplinaridade,
se alcançaria uma forma de anular o poder que todo saber implica (o que equivaleria a cair na
utopia beata do sábio sem poder), mas de acreditar na possibilidade de partilhar o poder que se
tem, ou melhor, de desejar partilhá-lo. Como? Desocultando o saber que lhe corresponde,
explicitando-o, tornando-o discursivo, discutindo-o.
Ao contrário da fórmula repetida segundo a qual a nossa liberdade começa quando
termina a liberdade do outro, para arriscar fazer interdisciplinaridade é necessário perceber que
nossa liberdade só começa quando começa a liberdade do outro. Ou seja, temos que dar as mãos
e caminhar juntos.

76
Referências

BACHELARD, Gaston. La formation de l’esprit scientifique, contribuition à une psychanalyse de la


connaissance objective. Paris: Vrin, 1975.

CAETANO, Carmem. Medicina paliativa e análise de discurso crítica: identidades, ideologia e


poder. Brasília. Tese de doutorado. UnB. 2009.

_____Identidade e terminalidade. Um estudo linguístico das práticas discursivas em uma ala de


doentes terminais. Curitiba: Editora CRV, 2010.

CARLOS, Jairo Gonçalves. Interdisciplinaridade no ensino médio: desafios e potencialidades.


Brasília. Dissertação de mestrado. UnB. 2008

FAZENDA, Ivani. Práticas Interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1993.

GASSET, O. La rebelion de las massas. Madrid: Revista de Occidente, reedição de 1979.

GUSDORF, Georges. “Les modeles épistémologiques dans lês sciences humaines”. Bulletin de
psychologie, 397, 18 XLIII, 1990.

JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

_____. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

_____. A crise da razão e do saber objetivo: as ondas do irracional. São Paulo: Letras e Letras,
1996.

MONFARDINI, Clementina. Práticas interdisciplinares na escola. Espírito Santo do Pinhal, Educação


Resenha. v. 01, n3. 2005.

OPPENHEIMER, Julios. Science and the commom understanding, trad. Fran de Albert Colnat,
Paris: Gallimard, 1955.

POMBO, Olga. Interdisciplinaridade. Ambições e limites. Lisboa: Relógio d’Água, 2004.

SNOW, Charles. The two cultures and a second look. Na extended version of the two cultures and
the scientific revolution. London: Cambridge University Press, 1959.

77
PROPOSTA TEÓRICA DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: CONTRIBUIÇÃO DOS
ESTUDIOSOS NA ÁREA

Profa Dra. Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN, UFS/Pós-doutorado, UERJ)

Nessa palestra, faremos uma retrospectiva histórica do surgimento da Análise Crítica do Discurso
(ACD). Seus posicionamentos teóricos, suas correntes de pesquisas e métodos utilizados serão
apontados dentro de um contexto que abarque a ACD como ciência crítica e social. Dentre as
correntes que se consolidaram, neste campo, apontam-se a microsociológicas; as teorias sobre a
sociedade e o poder com base na tradição de Michel Foucault; e as teorias do conhecimento
social. A partir de uma abordagem geral, será feito um recorte que isolará o enfoque social de
Fairclough, observando seletivamente sua proposta para a análise das práticas linguísticas,
discursivas e sociais necessárias para se estudar textos/discursos, tendo em vista todo discurso ser
historicamente produzido e interpretado. Nesta concepção, o ponto central defendido é a relação
irredutível entre linguagem e sociedade que, por sua vez, traz como consequência as mudanças
sociais geradas a partir da luta social, operacionalizada no discurso com o fim de romper as
estruturas sedimentadas na vida social. Quando se definiu como abordagem crítica do discurso, a
ACD, segundo Fairclough (2008), pressupôs entender o posicionamento teórico de revelar a
opacidade da linguagem e pressupôs o propósito de intervir na sociedade a fim de gerar
mudanças, principalmente, a favor dos ‘perdedores’, dos menos favorecidos. Acreditamos que
esse posicionamento responde ao que Rajagopalan (2003) destaca como sendo o clamor por um
tratamento crítico em relação ao fenômeno da linguagem.

Palavras-chave: correntes da ACD, enfoque social; mudanças sociais; representantes.

Introdução
A constituição discursiva de uma sociedade decorre de uma prática social que está
seguramente arraigada em estruturas sociais concretas (materiais), que se orientam por elas e
para elas, não de um jogo livre de ideias na mente dos indivíduos (Pedrosa 2008a, b). Assim é que
estudos em análise do discurso têm assumido uma posição de relevância no campo de estudos da
linguagem, desde que o objeto da linguística foi ocupado por esses discursos que circulam
socialmente.
A linguagem é uma prática social. Isto implica entendê-la como sendo historicamente
situada e estabelecida socialmente e, por isso, importa compreendê-la como base da constituição
de identidades, relações sociais e de sistemas de conhecimento e crença.
Hanks (2008: 155) alerta para o fato de que tanto a produção quanto a recepção de
textos “podem mudar a realidade social ao alterar os entendimentos e as relações”. Esta recepção
de textos pode apontar para a reação de dominação que ocorre através da linguagem, tais como:
exercício de poder social, desigualdade política, cultural, discriminação de classe, sexo, etnia.

78
Por isso que cabe a ACD desnaturalizar as práticas discursivas, ou seja, tornar visível o
invisível, desvendando a opacidade da linguagem que se vê encharcada ideologicamente.
Relatando Pedro, com o fim de corroborar este aspecto, temos: “Um dos objetivos da ACD é o de
analisar e revelar o papel do discurso na (re) produção da dominação” (Pedro, 1998: 25).
Foi assim que surgiu, então, a Análise Crítica do Discurso (ACD) com fortes influências de
filósofos do iluminismo, de Marx, da Escola de Frankfurt, Habermas, Gramsci, Stuart Hall,
Linguística Crítica, Semiótica Social, Sociolinguística Crítica.
Em relação à organização escrita deste trabalho, nas partes subsequentes: exporemos um
histórico sobre a ACD e seus pressupostos; abordaremos os possíveis caminhos metodológicos;
destacaremos os autores internacionais; indicaremos alguns pesquisadores nacionais, incluindo
porfessores e alunos de pós-graduação; e por fim, teceremos alguns comentários conclusivos.

Análise critica do discurso: posicionamentos teóricos, método(s) de análise e correntes de


pesquisa
Não se consegue fugir do lugar comum para anunciar a gênese de um campo de estudo.
Assim sendo, podemos concordar com Foucault (2001: 26) quando atesta que “o novo não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Procuramos, portanto, o novo através do
acontecimento de sua volta. Assim é que voltamos afirmar o que se encontra em autores como
Wodak (2003), Resende (2009), Resende e Ramalho (2006), Pedrosa (2005a,b; 2008 a, b), qual
seja, a Análise Crítica do Discurso encontra sua identidade na heterogeneidade de abordagens. E
mais, de que “A ACD é um paradigma estabelecido no campo da linguística” (Wodak, 2003: 2)
(Tradução Nossa, de agora em diante: TN).
O termo Análise Crítica do Discurso (ACD) foi usado por Fairclough em artigo publicado
em 1985. Porém, foi com o apoio da Universidade de Amsterdam, em 1991, que Teun van Dijk,
Norman Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak estiveram dois dias juntos,
discutindo teorias e métodos de análises de discursos, especialmente no que refere a ACD. Esta
“reunião de Amsterdam supôs um começo institucional, um esforço tendente a começar um
programa de intercâmbio (ERAMUS, durante três anos)” (Wodak, 2003: 21) (TN).
A rede ERAMUS representa a cooperação entre pesquisadores de diferentes instituições:
Siegfried Jäger (Duisburg), Per Linel (Linköping), Norman Fairclough (Lancaster), Teun van Dijk
(Amsterdam), Gunter Kress (Londres), Theo van Leeuwen (Londres), Ruth Wodak (Viena). Desde a
primeira reunião, o grupo, embora internacional e heterogêneo, consolidou o novo paradigma.

79
Esta consolidação foi mais fruto de um agendamento “e programa de investigação que pela
existência de teorias e metodologias comum” (Wodak, 2003: 22) (TN).
Segundo Fairclough ([1992, 2001]2008), a ACD encontra seu espaço a partir de limitações
da Análise do Discurso (AD) e da Linguística Crítica (LC)1. Para o autor, a AD, ao enfatizar a
perspectiva social, relegou a análise linguística; enquanto a LC, ao evidenciar a análise linguística,
deu pouca ênfase aos conceitos de ideologia e poder. O autor sustenta que ambas apresentam
uma visão estática das relações de poder.
A ACD surge, deste modo como uma forma de ciência social crítica que tem o objetivo de
‘jogar luz’ sobre os problemas que as pessoas menos privilegiadas enfrentam como consequência
de formas particulares da vida em sociedade e, ao mesmo tempo, oferecer recursos pelos quais as
pessoas podem se valer com o fim de enfrentar e superar seus problemas (Fairclough, 2003).
“Linguagem como uma forma de prática social” vem a ser o grande passo teórico da ACD
e isto envolve três perspectivas/explicações: “Primeiramente, linguagem é parte da sociedade, e
não algo externo a ela. Segundo, que linguagem é um processo social. E terceiro, que a linguagem
é um processo condicionado socialmente” 2 (Fairclough, 1995a: 22) (TN).
Sendo assim, as perspectivas de socialização em que os seres humanos estão inseridos
são de grande relevância para estudos críticos:

Na Análise Crítica do Discurso (ACD), encontramos um processo analítico que julga


os seres humanos a partir da sua socialização, e as subjetividades humanas e o
uso linguístico como expressão de uma produção realizada em contextos sociais e
culturais, orientados por formas ideológicas e desigualdades sociais (Pedro, 1998:
21).

Na explicação de Wodak, uma análise ‘crítica’ do discurso requer teorização e descrição


dos processos e das estruturas sociais, bem como dos processos nos quais os sujeitos históricos
criam sentidos em sua interação com textos. Também se pode referir à noção de ‘crítica’,
conforme a mesma autora, como “o resultado de tomar certa distância em relação aos dados, em
marcar isto no social, adotar explicitamente uma postura política e centrar-se na autocrítica, como
corresponde a um estudioso que investiga” (Wodak, 2003: 29) (TN).
A concepção crítica assume que a ideologia é, por natureza, hegemônica, na acepção de
que serve tanto para estabelecer como para sustentar relações de dominação e convém,

1
Na década de 70, na Grã-Bretanha, um grupo de lingüistas desenvolveu uma “linguística crítica”, ao articular as
teorias e os métodos de análise textual da “linguística sistêmica” de Halliday com teorias sobre ideologia.
2
“Firstly, that language is a part of society, and not somehow external to it. Secondly, that language is a social process.
And thirdly, that language is a socially conditioned process.” (Fairglough, 1995a, p. 22 – versão original)

80
igualmente, para reproduzir a ordem social que beneficia indivíduos e os blocos dominantes nos
quais estão inseridos, perpassando suas ideias como fruto do senso comum (Fairclough, 1995a:
33; Resende e Ramalho, 2006: 49-50).
Teorias críticas, como a ACD, têm por objetivo “a produção de conscientização e da
emancipação”. Elas objetivam despertar nos sujeitos “a consciência de que, com frequência, eles
são enganados a respeito de suas próprias necessidades e interesses”. Por isso que um dos
objetivos da ACD é “‘desmistificar’ os discursos decifrando as ideologias” (Wodak, 2004: 30). De
Fairclough (1995b) temos também o reforço desta finalidade da ACD, ou seja, elucidar as
naturalizações advindas de práticas ideológicas tornando claro os efeitos que o discurso causa por
ser opaco aos participantes.
Esse aspecto de emancipação constitui uma característica marcante da ACD. Através da
investigação das relações existentes entre discurso e prática social, procura-se desnaturalizar
crenças que servem de suporte a estruturas de dominação, com a finalidade de favorecer a
desarticulação dessas estruturas. É dessa forma que a ACD vem se desenvolvendo e se
atualizando, ao buscar estreitar os laços com teorias sociais (Resende e Ramalho, 2004).
E para dar conta deste seu posicionamento, «investiga o interior de vários contextos,
incluindo o discurso político e econômico, o racismo, a propaganda e a mídia, e os ambientes
institucionais como a burocracia e a educação” (Hanks, 2008: 172, 173). Para isso, sua investigação
busca base teórica na linguística de Halliday, na sociolinguística de Bernstein, nas obras de críticos
literários e também de filósofos sociais como Pêcheux, Foucault, Harbemas, Bakhtin e Voloshinov.
Justifica-se essa análise interdisciplinar, ou melhor, transdisciplinar, por ser a relação entre
linguagem e sociedade complexa e multifacetada, defende Wodak (2003).

Método(s) de análise
A Análise Crítica do Discurso é uma disciplina que dialoga com a Linguística e a Ciência
Social Crítica e constitui um modelo teórico-metodológico aberto a pesquisas de diversas práticas
na vida social. Consoante Pedro (1998: 26): “a ACD procura centrar-se na análise das estratégias
discursivas que legitimam o controle, que ‘naturalizam’ a ordem social e, especialmente, as
relações de desigualdade”.
É por esta razão que as análises empíricas em ACD devem movimentar-se entre o
linguístico e o social, pois esta considera o discurso como uma forma de prática social, ou seja,
como um modo de ação sobre o mundo e a sociedade, apontando para as mudanças sociais
contemporâneas e as práticas emancipatórias. Isto justifica por que pesquisa, nesse campo,

81
requer uma visão científica de crítica social a fim de prover base científica para um
questionamento crítico da prática social (Resende e Ramalho, 2004).
Para a ACD, são necessárias as descrições e teorizações dos processos e das estruturas
sociais responsáveis pela produção de um texto (Pedrosa, 2005 a, b). O desenvolvimento deste
campo enfatiza o trabalho transdisciplinar buscando entender de que modo a linguagem funciona,
podendo, portanto, acompanhar as diversas facetas tanto na transmissão de conhecimento, na
organização das instituições sociais, quanto no exercício do poder.
Os que trabalham com esta concepção teórica orientam para que os métodos utilizados
sirvam para vincular a teoria à observação. Seu método indica as vias seguidas ou que serão
seguidas pela investigação. Pelo fato de os trabalhos em ACD seguirem vários enfoques, sua
metodologia, como não poderia deixar de ser, seguirá vários caminhos de acordo com os
‘approaches’ a serem evidenciados.

Por regra geral, se aceita que a ACD não deve entender-se como um método
único. Porém melhor, como um enfoque, isto é, como algo que adquire
consistência em vários planos, e que, em cada um de seus planos, exige realizar
um certo número de seleções (Meyer, 2003: 35) (TN).

Ainda segundo Meyer (2003: 38), é necessário que a ACD mantenha “uma contínua
retroalimentação entre a análise e a recolhida de dados”. Por isso, a seleção de dados não se
encerra quando do início da análise, ao contrário, o analista, diante de um fato novo, buscará, em
sua fonte de dados, exemplos que possam confirmar o que foi encontrado. O que poderia gerar
uma análise infinita é controlado pelo recorte estabelecido para a pesquisa. Assim, a coleta de
dados passa a ser um processo ‘permanentemente operativo’.
Dentre seus campos de pesquisa, podemos enumerar: mídia, enquadramento
profissional, contextos burocráticos, burocratização e tecnologização da linguagem, literatura,
discursos legais, discurso médico, da ciência, da economia, do racismo, da discriminação com base
no sexo, da desvantagem educativa, das situações multiétnicas, entre outros.
Trabalhos em ACD não delimitam as diferenças entre teoria, descrição e aplicação.

Correntes de pesquisa e representantes em ACD

82
Desde a primeira reunião, o grupo, embora internacional e heterogêneo, consolidou o
novo paradigma. Esta consolidação foi mais fruto de um agendamento “e programa de
investigação que pela existência de teorias e metodologias comum” (Wodak, 2003: 22) (TN).
Retornamos ao já afirmado no tópico anterior a fim de expor o que pretendemos com este.
Resende (2009: 12) traz para nós a informação (não nova) de que “Fairclough propõe uma
articulação entre Linguística Sistêmica Funcional e Sociologia (Fairclough, 2003); van Dijk (1989)
estabelece diálogo entre Linguística Textual e Psicologia Social; enquanto Wodak volta-se para a
Sociolinguística e a História (Wodak, 1996).” De Meyer (2003), podemos destacar as correntes
que sugiram em decorrência das escolhas do quadro teórico-metodológico assumido por alguns
pesquisadores em ACD: a microsociológica com Ron Scollon; as teorias sobre a sociedade e o
poder com base na tradição de Michel Foucault com Siegfried Jäger, Norman Fairclough e Ruth
Wodak; e as teorias do conhecimento social com Teun van Dijk.
Mapearemos abaixo alguns dos trabalhos de representantes internacionais e nacionais,
com ênfase para Fairclough, cuja corrente social, seguimos. A fim de que o discurso não se torne
dominante, também faremos uma amostragem de alunos pós-graduandos que desenvolvem
pesquisa em ACD.

Pesquisadores internacionais
a) Corrente microsociológica: Ron Scollon
Os dados são tomados com base em Wodak e Meyer (2003). Professor da Universidade
de Georgetown (Washington, DC), engloba em seu campo de pesquisa - El análisis mediato del
discurso (AMD): o discurso multimodal, a sociolinguística da leitura e da escrita, e as relações
entre as tecnologias da comunicação e a análise sociolinguística. No livro fonte acima, encontra-se
o capítulo de sua autoria: “Acción y texto: para una comprensión conjunta del lugar del texto em
La (inter)acción social, El análisis mediato del discurso y el problema de La acción social”. A AMD,
segundo Meyer (2003: 207, 208) (TN), “considera que seu interesse principal reside na análise, na
interpretação e na explicação dos problemas sociais – daí que a AMD centra-se na ação social”;
continuando, o autor explica que “as relações de poder na sociedade não são únicas ou
simplesmente discursivas, mas que, pelo contrário, estão embasadas na prática. Deste modo, a
AMD assume “que a prática discursiva é uma forma a mais de prática social, e não a forma
fundante ou constitutiva da prática a partir da qual surgirá o resto da sociedade e das relações de
poder resultantes”.

83
b) Corrente sociocognitiva: Van Dijk
Fontes: Wodak (2003); Pedro (1998). Um dos participantes da reunião histórica de
Amsterdam (1991). A teoria a que se filia é também conhecida por teoria do conhecimento social.
É professor na ‘Universitat Pompeu Fabra, Depto de Traducció i Ciències del Llenguatge’, em
Barcelona (fonte: e-mail pessoal em 30/09/2009, 10h40). Nos anos oitenta, centralizou suas
pesquisas nos estudos de notícias publicadas na imprensa e na reprodução do racismo, através de
vários tipos de discursos. Van Dijk e Kintsch “têm desenvolvido um modelo cognitivo da
compreensão do discurso pelos indivíduos, e o têm feito evoluir gradualmente até convertê-lo em
vários modelos cognitivos que explicam a construção do significado no plano societal” (Wodak,
2003: 25, grifo nosso) (TN). Ele desenvolve, deste modo, uma perspectiva sociocognitiva da ACD.
Seu foco está na tríade: o discurso, a cognição e a sociedade. É um dos analistas críticos do
discurso que mais visita o Brasil. Em 2009, apresentou palestra na UFPE (fonte: e-mail pessoal em
30/09/2009, 10h40) e em outubro de 2010 voltará a Recife para ALED (fonte: e-mail pessoal em
21/04/2010, 14h42). Em 2008, é lançado na Abralin (João Pessoa) seu livro “Discurso e Poder”,
coletânea de vários artigos publicados pelo autor e traduzidos por Judith Hoffnagel e karina
Falcone. Seu endereço na Internet: www.discourses.org
c) Corrente sociocognitiva da linguagem: Ruth Wodak
Wodak participou do congresso marco da ACD em Amsterdam (1991), é professora de
Linguística Aplicada (LA) e de Análise do Discurso (AD), no Departamento de Linguística da
Universidade de Viena. Suas áreas de investigação incluem o discurso e a política, a metodologia
da análise crítica do discurso, o racismo e o anti-semitismo, o gênero, o discurso da organização.
Assim como Van Dijk, a professora trabalha com o plano sociocognitivo. Ruth Wodak (e Martin
Reisigl) tem desenvolvido estratégias de análises em quatro fases: estabelecimento dos
conteúdos específicos, investigação das estratégias discursivas, exame dos instrumentos
linguísticos, e a exploração das realizações linguísticas específicas que dependem do contexto
(Meyer, 2003). Entre suas publicações, destaca-se a organização do livro: “Métodos de análisis
crítico del discurso” com Meyer, onde reúne nomes importantes da ACD: Meyer, Jäger,Van Dijk,
Fairclough e Scollon, entre outros.

d) Corrente social da linguagem: Gunter Kress


Fonte: Pedro (1998). Professor catedrático da Universidade de Londres, desde 1991. Seu
interesse pela crítica em linguagem passa primeiro por seus trabalhos em Linguística Crítica. Kress
(Wodak, 2003) aponta algumas considerações sobre essa nova perspectiva: a linguagem é um

84
fenômeno social; indivíduos, instituições e grupos sociais possuem significados e valores
específicos que se expressam de forma sistemática por meio da linguagem; os textos são as
unidades relevantes da linguagem na comunicação; os leitores ou ouvintes não são receptores
passivos em sua relação com os textos; existem semelhanças entre a linguagem e a ciência e a
linguagem de instituições. Seu capítulo no livro de Pedro (1998): “Considerações de caráter
cultural na descrição linguística”.

d) Corrente social da linguagem: Theo van Leeuwen


Professor de teoria da Comunicação, na School of Media of London College of Printing and
Distributive Trades, da Universidade de Londres. O também pioneiro da ACD participou do
congresso histórico de Amsterdam (1991). Leeuwen distingue dois tipos de relações entre o
discurso e as práticas sociais: o discurso como instrumento de poder e de controle, e o discurso
como instrumento da construção social da realidade. Em Pedro (1998), publica um excelente
estudo sobre os atores sociais, apresentando uma classificação bem extensa com exemplos
elucidativos que sustentam a classificação.

e) Corrente social da linguagem: Siegfried Jäger


Participou do primeiro congresso de ACD (Amsterdam, 1991). É professor na
Universidade Gehard Mercator de Duisburgo na Alemanha. Investiga nas áreas: atos de fala,
sociolinguística; teoria e análise do discurso. As temáticas abordadas, que justificam a relação
‘sociedade e poder’, englobam: extremismo de direita, racismo, militarismo e as energias de
biomassa. Em Wodak (2003), fonte dessas informações, há um capítulo do autor: “Discurso y
conocimiento: aspectos teóricos y metodológicos de La crítica del discurso y del análisis de
dispositivos”.

f) Corrente social da linguagem: Norman Fairclough


Norman Fairclough, professor de Língua e Vida Social, na Universidade de Lancaster,
Reino Unido, tem escrito extensamente sobre a ACD. Pioneiro desta proposta teórica, esteve no
congresso de Amsterdam (1991). Interessa-se pelos estudos críticos e interdisciplinares sobre a
prática discursiva e a sua relação com a mudança social e cultural. Atualmente, trabalha com a
língua do novo capitalismo, uma introdução à análise textual e da interação para investigadores
sociais, que aborda também a teorização do discurso no campo do realismo crítico. Ele define a
relação entre linguagem e sociedade de acordo com a teoria linguística multifuncional de Halliday

85
e com o conceito de ordem do discurso de Foucault. Publicou vários livros relevantes para a ACD:
em “Language and Power” (1995a), onde dá ênfase à relação entre discurso (como prática social)
e poder, ideologia e mudança social; em “Critical Discourse Analysis: the critical study of language”
(1995b) destaca mais uma vez a relação que há entre linguagem, ideologia e poder; bem como
trabalha com as categorias de marketização, comodificação, hegemonia, entre outras; e
“Discourse and social change” (1992), tratado mais adiante.
Em ‘Discurso e Mudança Social’ (2008), Fairclough delineia sua visão teórica com base no
conceito de discurso herdada da mesma fonte da AD, ou seja, na análise social a partir das
propostas de Foucault e nas teorias sociais de Althusser e Gramsci, bem como Bourdieu com a
teoria sociológica, entre outros. E apresenta como proposta um modelo que reúne análise
linguística e teoria social, “numa combinação desse sentido mais socioteórico de ‘discurso’ com o
sentido de ‘texto e interação’ na análise de discurso orientada linguisticamente” (Fairclough, 2008:
22). Sobre isto, Resende e Ramalho (2006, p. 11)3 afirmam:

A Teoria Social do Discurso é uma abordagem de Análise de Discurso Crítica (ADC),


desenvolvida por Norman Fairclough, que se baseia em uma percepção da
linguagem como parte irredutível da vida social dialeticamente entrecortada a
outros elementos sociais.

Quanto a este aspecto, Hanks (2008) relaciona texto a uma forma de capital cultural que
naturaliza e vulgariza realidades socais e, por isso, torna-se instrumento de autoridade e meio de
disputa política. Assim, faz-se necessário uma análise textual fundada linguística e criticamente
como forma de contribuir para a pesquisa na área das ciências sociais.
Para Fairclough (2008), a localização teorética da ACD está em ver o discurso como um
momento das práticas sociais, sabendo que todas as práticas incluem os elementos: atividade
produtiva, meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais, consciência e
semioses.
O modelo desenvolvido por Fairclough (2008) engloba três dimensões: o texto, a prática
discursiva e a prática social. Sobre este modelo, Hanks (2008: 172) expressa o que segue:
Nessa abordagem (ACD), o discurso é tratado sob três perspectivas: como texto
dotado de forma linguística, como ‘prática discursiva’ por meio da qual os textos
são produzidos, distribuídos e consumidos, e como ‘prática social’ que tem vários
efeitos ideológicos, incluindo normatividade e hegemonia.

3
As autoras Resende e Ramalho e outros utilizam o termo Análise de Discurso Crítica (ADC), preferimos utilizar ACD
como em Pedro (1998) e Wodak & Meyer (2003), entre outros.

86
No quadro teórico-metodológico tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008),
observam-se “três tendências principais de mudança discursiva que têm afetado a ordem do
discurso societal”, que podemos relacionar diretamente às mudanças social e cultural: a
democratização, a comodificação e a tecnologização. “A democratização tem a ver com a remoção
das desigualdades e assimetrias nos direitos, obrigações e prestígio discursivos e linguísticos de
grupos de pessoas”. A comodificação é a ação pela qual os domínios e as instituições sociais, que
não têm como objetivo produzir mercadorias, apropriam-se do discurso que caracteriza a
produção, a distribuição e o consumo de bens. “A tecnologização do discurso é uma extensão das
‘tecnologias’ ou ‘técnicas’ a serviço do ‘biopoder’”, de Foucault (Magalhães, 2001: 25-26). Nas
palavras de Fairclough (2008: 247): “As duas primeiras (tendências) referem-se a mudanças
efetivas nas práticas de discurso, enquanto a terceira sugere que a intervenção consciente nas
práticas discursivas é um fator cada vez mais importante na produção de mudança”.
Seguindo o desenvolvimento do pensamento de Fairclough (2003), verificamos que é
através dos passos descritivos e sua ordem que se prepara a análise em ACD. Como ele prefere um
enfoque pragmático e orientado para algum problema social, então, obviamente, seu primeiro
passo é identificar e descrever o problema social que se quer analisar.
Suas propostas expressam-se nos seguintes passos (Fairclough, 2003: 184):
1. Centralizar-se em um problema social que tenha um aspecto semiótico.
2. Identificar os elementos que lhe põem obstáculos com o fim de abordá-los,
mediante a análise: da rede das práticas em que estão localizados; da relação de semioses que
mantém com outros elementos da prática particular de que se trata; do discurso em análises:
estrutural, interacional, interdiscursiva, linguística e semiótica.
3. Considerar se a ordem social requer a abordagem do problema ou não.
4. Identificar as possíveis maneiras de superar os obstáculos.
5. Refletir criticamente sobre a análise.
Depois de seguir esses passos, considerados preparatórios, mas que também ajudam a
selecionar o material, “Fairclough sugere realizar antes que nada a análise estrutural do contexto,
e efetuar depois, em segundo lugar, a análise interacional, que se centra em características
linguísticas como” (Meyer, 2003: 55) (TN): os agentes, o tempo, a modalidade e a sintaxe. Assim,
finalmente, pode-se proceder à análise da interdiscursividade.
Para terminar, deve-se assinalar que, apesar de que não existe uma metodologia
coerente da ACD, muitas características são comuns a maioria dos enfoques da
ACD: em primeiro lugar, se concentram nos problemas e não em elementos
linguísticos específicos. Não obstante, é obrigatório possuir uma capacidade
linguística para selecionar os aspectos que se tornam relevantes para os objetivos

87
específicos da investigação. Em segundo lugar, tanto a teoria como a metodologia
são ecléticas: ambas vão unidas desde que seja útil para a compreensão dos
problemas sociais que se submetem à investigação (Meyer, 2003: 56) (TN).

Segundo Resende e Ramalho (2006: 37, 38), esse modelo de análise substitui o modelo
tridimensional apresentado em Fairclough (2008) e aponta para um caráter emancipatório da
disciplina, pois possibilita maior abertura nas análises; instiga, “mais que o modelo tridimensional,
o interesse de práticas problemáticas decorrentes de relações explanatórias”; e apreender melhor
a “articulação entre discurso e outros elementos sociais na formação de práticas sociais”.
Contudo, assumimos que este 2º modelo é mais uma retomada de alguns aspectos do primeiro –
o tridimensional, e o acréscimo de alguns outros aspectos. Não o vejo como uma substituição
completa das categorias desenvolvidas no modelo tridimensional.
Ainda, a Análise Crítica do Discurso proposta por Fairclough destaca as noções de um
sujeito transformador. Para que esse sujeito contribua para a mudança social, faz-se necessário
que ele consiga penetrar na opacidade do discurso, revelando suas ideologias e poder.
Esse conceito de sujeito transformador se coloca radicalmente contra o conceito de
sujeito-assujeitado, defendido por muitos teóricos da Análise do Discurso Francesa (AD). Segundo
Fairclough (2008), essa teoria do sujeito assujeitado (althusseriana) exagera a influência e
determinação da ideologia sobre os sujeitos, subestimando a capacidade destes de atuarem como
agentes tanto individual como coletivamente.

Pesquisadores nacionais
Vários pesquisadores do Brasil despontaram para consolidar a ACD aqui entre nós.
O livro de Fairclough “Discourse and social change” (1992) é traduzido no Brasil por Izabel
Magalhães com o titulo “Discurso e mudança social” em 2001, pela editora da UnB, passando a ser
uma referência da ACD para nós brasileiros. Este livro passou alguns anos esgotado, até que, em
2008, recebe nova reimpressão. É através dele que muitos pesquisadores entram em contato e se
identificam com as propostas deste tipo de análise linguisticamente orientada e algumas
aplicações começam a surgir em nosso meio acadêmico. A Profa Izabel Magalhães publica com
proposta crítica desde 1986 (‘Por uma abordagem crítica e explanatória do discurso’, Delta, v2).
Contudo, é a partir de 1997 que encontramos em seu lattes trabalhos específicos em ACD.
Da UnB, ainda podemos indicar um CD-ROM, reunindo pesquisas apresentadas no I
Simpósio internacional de Análise do Discurso Crítica (2004) e os livros organizados por Denize
Silva (“Nas instâncias do discurso: uma permeabilidade de fronteiras”, de 2005) e a mesma

88
organizadora, anteriormente, com Josênia Vieira (“Práticas de Análise do Discurso”, de 2003), as
obras reúnem pesquisadores em AD e ACD. Outras pesquisadoras ligadas a UnB são Viviane
Resende e Viviane Ramalho que juntas publicam “Análise de Discurso Crítica”, em 2006, pela
editora Contexto; e em 2009, Viviane Resende lança o livro “Análise de Discurso Crítica e Realismo
critico” pela editora Pontes. A autora Resende apresenta uma vasta publicação com o aporte
teórico da ACD ou ADC. Pelo mapeamento que procedemos em seu lattes, começa a publicar em
ADC a partir de 2004. Ainda nesta universidade, podem-se mapear diversas dissertações e teses de
doutorado que buscam na ACD seu aporte teórico: os trabalhos de mestrado e doutorado de
Décio Bessa Costa (apontados abaixo); Walkyria Wetter Bernardes: “A constituição identitária
feminina no cenário político brasileiro pelo discurso midiático globalizado: uma abordagem
discursiva crítica”, 2009; de Carmem Jená Machado Caetano: “Medicina paliativa e análise de
discurso crítica: identidade, ideologia e poder”, 2009; de Elcivanni Santos Lima: “Discurso e
identidade: um olhar crítico sobre a atuação do(a) intérprete de LIBRAS na educação superior”,
2006. Outras dissertações e teses podem ser consultadas na Biblioteca Digital da UnB4.
Da UFMG, citamos o nome de Célia Magalhães como organizadora do livro “Reflexões
sobre a Análise Crítica do Discurso” (2001), onde reúne alguns nomes do cenário nacional e
também inclui um capitulo de Fairclough, Pagano, Janaina de Oliveira, Sônia Pimenta, entre
outros. Seu projeto ‘Análise Crítica do Discurso: Mapeamento de um campo interdisciplinar
emergente’ tem por objetivo o mapeamento, à uniformização e ampliação do debate acadêmico
no campo de estudos da análise crítica do discurso, inicialmente nos grupos de pesquisa
brasileiros e portugueses. Com esta pesquisa, visa-se, em especial, ao fomento dos estudos de
Análise Crítica do Discurso nos cursos de graduação da FALE/UFMG, com vistas a expandir o leque
de opções de pesquisa para o(a)s aluno(a)s interessado(a)s em continuar seus estudos na pós-
graduação (fonte: lattes da autora). Site: http://letras.ufmg.br
Da UERJ, indicamos os nomes da Profa Dra. Gisele de Carvalho que, atualmente, “tem-se
dedicado a estudar gêneros opinativos veiculados em mídia impressa sob a perspectiva da Análise
Crítica do Discurso” e da Profa Dra. Anna Elizabeth Balocco que, entre 2002 e 2004, desenvolveu o
projeto ‘Avaliação e Interdiscurso em Narrativas de Identidade’, em que investiga a dimensão
discursiva de processos identitários em narrativas ficcionais e não-ficcionais à luz (...) da Análise
Crítica do Discurso.
Em 2008, Caldas-Coulthard e Scliar-Cabral (UFSC) organizam o livro ‘Desvendando
discursos: conceitos básicos’, o qual também envolve pesquisadores em ACD. Desta mesma

4
Agradecemos a Décio Rocha pela valiosa colaboração quanto a algumas das informações deste tópico.

89
universidade, ainda podemos apontar os nome de Débora de Carvalho Figueiredo que, em 2000,
defendeu sua tese com base na análise crítica do discurso jurídico sob a orientação do professor
José Luiz Meurer, e em 1995 já havia defendido sua dissertação com o mesmo aporte teórico sob
a orientação da professora Caldas-Coulthard.
Na UNISUL SC, a Profa Dra. Débora de Carvalho Figueiredo orienta pesquisas na pós-
graduação: 2005 “Análise crítica da identidade do professor de Língua Portuguesa da Rede
Municipal de Jaraguá do Sul”, de José Ediberto Torizani; em 2006, 3 trabalhos : “Análise crítica
das crenças dos professores de Língua Inglesa em processo de formação continuada no Estado do
Paraná” de Nilceia Bueno de Oliveira; “O discurso comodificado das instituições de ensino superior
– um estudo de caso no oeste do Paraná” de Kátia Simão Lazarini Oliveira; e “Análise Crítica do
Discurso Publicitário na promoção de livros didáticos de Língua Inglesa” de Richarles Souza de
Carvalho. Em 2009, Figueiredo publica na revista Delta o artigo: Linguagem e gênero social:
contribuições da análise crítica do discurso e da linguística sistêmico-funcional.
Da UNeB, apontamos o nome de Décio Bessa que, sob a orientação da professora Maria
Izabel Santos Magalhães, defende a dissertação (2007) “Charges eletrônicas das eleições 2006:
uma análise de discurso crítica”; e a tese (2009) “Cidadãos e cidadãs em situação de rua: uma
análise de discurso crítica da questão social”. Neste último trabalho, o pesquisador teve “como
propósito estudar o ‘discurso’ e sua atuação relativa a uma das manifestações da ‘questão social’ –
a problemática que envolve os ‘cidadãos e as cidadãs em situação de rua’”.
Na UFS, em 2008, três obras marcam a presença da ACD: “Análise Crítica do Discurso: do
linguístico ao social no gênero midiático”, autoria de Cleide Pedrosa; “Mapeando teorias e Práticas
Textuais”, co-organizada por Cleide Pedrosa, com capítulos específicos de ACD dos pós-
graduandos : Magliane Santos Nascimento e Marcus Éverson Santos; “Língua, cultura e ensino:
multidisciplinaridade em Letras”, organizado por Antonio Ponciano Bezerra e Cleide Emilia Faye
Pedrosa, com capítulo de ACD de Pedrosa, onde trata das perspectivas teóricas e apresenta
algumas sugestões de análise. As pesquisas em ACD continuam, nesta universidade, com os pós-
graduandos: Derli Machado de Oliveira, com o trabalho “Testemunho, mídia e prosperidade: o
evangelho segundo o capitalismo neoliberal (Sob o olhar da Análise Crítica Do Discurso)”; João
Paulo Lima Cunha, com a investigação “Ethos Discursivo: autopromoção nos currículos lattes de
pesquisadores em Letras”; Verônica Viana De Oliveira, com “Conceito de Ethos na divulgação da
imagem da Petrobras pelo discurso publicitário”; Paulo Sérgio da Silva Santos, com a pesquisa
“Divulgação Científica: um estudo sobre as erratas das revistas especializadas em ciência”. E na
UFRN, a professora Pedrosa orienta, em ACD, os trabalhos dos mestrandos: João Batista da Costa

90
Júnior, “O gênero anúncio publicitário: uma incursão pelas avenidas da Análise Crítica do Discurso”
e Guianezza M. de Góis Saraiva Meira, “Revistas femininas na pós-modernidade: efeitos de
sentidos na constituição identitária da mulher leitora”.
Na UFPE, o Prof. Dr. Antonio Marcuschi orientou trabalhos em ACD como os de Cleide
Emília Faye Pedrosa (2005) sobre o gênero textual “Frase” (já indicado) e o de Karina Falcone
(2008, co-orientação de Judith Hoffnagel e Teun Van Dijk): “(Des)legitimação: ações discursivo -
cognitivas para o processo de categorização social” sobre a ‘(des)legitimação de um movimento
social (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)) que tem resistido à força dos
grupos poderosos e conseguido mudar um dos conceitos caros à elite brasileira: o da propriedade.
A Profa Dra. Angela Paiva Dionisio também orientou trabalho de mestrado como o de Leonardo
Pinheiro Mozdzenski (2006), “A Cartilha Jurídica: aspectos sócio-históricos, discursivos e
multimodais” que teve como ‘objetivo central realizar um estudo crítico do gênero discursivo
cartilha jurídica (CJ), investigando a formação sócio-histórica desse gênero, bem como as
estratégias textuais verbais e não-verbais usadas pelos produtores das cartilhas para a construção
social da realidade a partir dos ‘estereótipos normativos’. Em 2007, Iran Ferreira de Melo, sob a
orientação da Profa Dra. Maria da Piedade Moreira de Sá, defendeu a dissertação “A concepção da
homossexualidade em textos jornalísticos: uma análise crítica da transitividade verbal”, que se
apoia nas concepções teórico metodológicas da Linguística Sistêmico-funcional desenvolvida por
Michael Halliday, a partir de seus postulados sobre a função ideacional da linguagem e nos
postulados teóricos da Análise Crítica do Discurso, especialmente nos estudos de Norman
Fairclough. Em 2008, Jaciara Josefa Gomes, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos dos
Santos Xavier, defendeu o trabalho “Discurso feminino: uma análise crítica de identidades sociais
de mulheres vítimas de violência de gênero”, cujo objetivo foi “compreender o processo de
construção de identidades sociais, estudando as justificativas usadas por essas mulheres para
explicar a sujeição ou a insurreição à violência”.
Na UFC, identificamos a tese de Hans Peter Wieser, sob a orientação da Profa .Dr.ª
Bernardete Biasi Rodrigues (2009), com o título “A produção discursiva da moral no gênero fofoca:
elementos para uma descrição micro e macrossocial da conversação cotidiana” com base em
conceitos etnográficos e sociointeracionais, na Linguística Sistêmico-Funcional e na Análise Crítica
do Discurso.
Na UECE, em outubro de 2010, realizar-se-á o VI ALSFAL – Congresso da Associação de
Linguística Sistêmico-Funcional da America Latina - que reunirá também pesquisadores em Análise
Crítica do Discurso.

91
Na USP, atualmente está em andamento a obra organizada por Michel Kahan Apt,
Solange Ugo Luques e Daniela da Silveira Miranda, trazendo capítulos de Michel Kahan Apt5 (USP,
Teoria Sociocognitiva do Discurso, na qual se baseia para desenvolver análise de discursos
produzidos na mídia impressa); Antônio Luiz Assunção (UFSJ, pesquisa voltada para a questão do
discurso político); Paulo Henrique Caetano (UFSJ, Mídia e Crítica da Cultura); Cláudio Márcio do
Carmo (UFSJ, Análise (Crítica) do Discurso e estudos lexicais, base para a análise de discursos
de/sobre minorias e grupos vulneráveis, mídia, representação, identidade, questão racial e
questão religiosa); Gisele de Carvalho (UERJ, gêneros opinativos veiculados em mídia impressa sob
a perspectiva da Análise Crítica do Discurso); Sumiko Nishitani Ikeda (PUC-SP, sua área de
interesse é a interface da gramática/discurso, com enfoque na análise do discurso crítica e nas
questões que envolvem as línguas portuguesa, inglesa e a japonesa); Derli Machado De Oliveira
(UFS/UFRN, com um trabalho sobre Teologia da Prosperidade, tendo como base teórica a ACD);
Solange Ugo Luques (EAD da Faculdade Drummond, sua área de estudo envolve discurso político e
metáfora); Daniela Miranda (PUC-SP, Desenvolve pesquisas em Teoria da Argumentação, Retórica
e Análise Crítica do Discurso aplicadas no discurso jurídico e político); Célia Magalhães (UFMG,
professora e pesquisadora em estudos da tradução e análise crítica do discurso na Universidade
Federal de Minas Gerais e pesquisadora do CNPq); Solange Maria de Barros Ibarra Papa
(Universidade do Estado de Mato Grosso /UNEMAT, desenvolve pesquisas que envolve a área de
formação de professores de línguas, em contextos de exclusão social); Cleide Emília Faye Pedrosa
(UFRN/UFS, suas publicações envolvem, principalmente, o aporte teórico da Análise Crítica do
Discurso numa interface com o discurso midiático e religioso); Marcelo Saparas (universidade de
Guarulhos, área de pesquisa (metáfora e appraisal (avaliatividade) em função da ACD); Paulo
Roberto Gonçalves Segundo (FFLCH-USP, desenvolve pesquisas em Linguística, com ênfase em
Análise Crítica do Discurso e Linguística Sistêmico-Funcional); Tânia Maria G. Shepherd (UERJ, atua
nas áreas de Semântica, Gramática Funcional e Linguística de Corpus); e Ruth Wodak (já apontada
neste texto).

Palavras finais (por enquanto)


Assumir pesquisas em ACD é assumir um posicionamento dentro das ciências criticas e
das ciências sociais. Os pesquisadores que se comprometem com este tipo de análise negam uma
postura neutra, mesmo no campo científico, pois a partir do momento que escolhemos um objeto

5
Entre parênteses informaremos Universidade a que se liga o pesquisador , seja na condição de professor seja na
condição de pós-graduando e em seguida o foco de estudo.

92
de análise, já estamos nos posicionando. Para corroborar este ponto de vista, vejamos como se
expressou Kress:

Os praticantes da ACD têm, de forma explícita ou implícita, o objetivo político


mais vasto de questionar as formas dos textos, os processos de produção desses
textos e os processos de leitura, juntamente com as estruturas de poder que
deram azo a esses textos (Kress, 1990: 85, apud Pedro, 1998: 24).

A própria Pedro afirma que as análises em ACD são capazes de produzir resultados em
leitura de textos que ultrapassam os significados palpáveis superficialmente e, deste modo,
oferece meios outros de acesso a organização socioculural, desnaturalizando práticas sociais
estabelecidas.
Quando se definiu como abordagem crítica do discurso, a ACD, segundo Fairclough
(2008), pressupôs entender o posicionamento teórico de revelar a opacidade da linguagem e
pressupôs o propósito de intervir na sociedade a fim de gerar mudanças, principalmente, a favor
dos ‘perdedores’, dos menos favorecidos. Com isto se responde ao que Rajagopalan (2003)
destaca como sendo o clamor por um tratamento crítico em relação ao fenômeno da linguagem.

Referências

HANKS; William. F. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a
partir de Bourdieu e Bakhtin. Tradução de Anna Christina Bentes et al. São Paulo: Cortez, 2008.

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. New York: Longman, 1995a

_____. Critical Discourse Analysis: the critical study of language. New York: Longman, 1995b.

_____ Discurso, mudança e hegemonia. In: PEDRO, Emília Ribeiro (org.). Análise Crítica do
Discurso. Tradução de Helena Medeiros. Lisboa: Caminho, 1998, p. 77-103.

_____. El análisis crítico del discurso como método para la investigación en ciencias sociales. In:
WODAK, Ruth; MEYER, Michel (eds.). Métodos de análisis crítico del discurso. Tradução de Tomás
Fernádez Aúz e Beatriz Eguibar. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 179-203.

_____.Discurso e mudança social. Tradução de Izabel Magalhães. Brasília: Universidade de


Brasília, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 7ª. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 2001.

MAGALHÃES, Célia.A Análise Crítica do Discurso enquanto teoria e método do estudo. IN: _____
93
(org). Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG,
2001, p. 15-30.

MEYER, Michael. Entre La teoria, El método y La política: La ubicación de los enfoques


relacionados com El ACD. IN IN: WODAK, Ruth. & MEYER, Michael (orgs.). Métodos de análisis
crítico Del discurso. Tradução de Tomás Fernádez Aúz e Beatriz Eguibar. Barcelona: Gedisa, 2003,
p. 35 – 59.

PEDRO, Emília R. Análise Crítica do discurso: aspectos teóricos, metodológicos e analíticos. IN:
PEDRO, Emília R. (org). Análise Crítica do Discurso. Lisboa: Caminho, 1998, p. 19 – 46

PEDROSA, Cleide Emília Faye. Análise Crítica do Discurso: introdução teórica e perspectivas de
análise. IN: BEZERRA, Antonio Ponciano; _____(orgs). Língua, cultura e ensino:
multidisciplinaridade em Letras. Aracaju: EDUFS, 2008a, p. 83 – 128.

______, Análise Crítica do Discurso: do linguístico ao social no gênero midiático. Aracaju: EDUFS,
2008b.

PEDROSA, Cleide Emília Faye et AL. Mapeando Teorias e Práticas Textuais. Aracaju: EDUFS\ Rio de
Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens escritores, 2008.

_____. Gênero textual ‘frase’: marcas do editor nos processos de retextualização


(re)contextualização. Tese de Doutorado, Recife:UFPE, 2005a.

_____. Análise Crítica do Discurso: uma proposta para a análise crítica da linguagem. In:
CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA, 9. Tomo 2: Filologia, Linguística e Ensino:
CiFeFil: Rio de Janeiro, 2005b, p.43 -70.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica. São Paulo: Parábola, 2003.

RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise crítica do discurso. São Paulo: Contexto.
2006.

_____. Análise de Discurso Crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas:


implicações teórico-metodológicas. Revista linguagem em (Dis)curso, vol 5. N 1, 2004,
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0501/00.htm
RESENDE, Viviane de Melo. Análise de Discurso Crítica e Realismo Crítico: Implicações
interdisciplinares. São Paulo: Pontes, 2009.

VIEIRA, Josênia Antunes; SILVA, Denize Elena Garcia da Silva (orgs). Práticas de Análise do
Discurso. Brasília: Plano Editora: oficina Editorial do Instituto de Letras, UnB, 2003.

WODAK, Ruth. De qué trata El análisis crítico Del discurso (ACD). Resumen de su historia, sus
conceptos fundamentales y sus desarrollos. IN: WODAK, Ruth. & MEYER, Michael (orgs). Métodos
de análisis crítico Del duscurso. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 17 – 34.

_____. Do que trata a ACD – um resumo de sua história, conceitos importantes e seus
desenvolvimentos. N. das Orgs.: Este artigo foi originalmente publicado em inglês In: WODAK, R.;
MEYER, M.(Orgs.). Methods of Critical Discourse Analysis. London: Sage, 2001. [Tradução de

94
Débora de Carvalho Figueiredo]. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 4, n.esp, p. 223-
243, 2004.

Sites:
http://letras.ufmg.br
www.discourses.org
http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/
http://lattes.cnpq.br/
www.ufpe.br/pgletras

95
EM BUSCA DO CORPO ‘IDEAL’: A MÍDIA E O GOZO PELO CONSUMO

Débora de Carvalho Figueiredo


(Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – UNISUL)

Nas sociedades contemporâneas é cada vez maior o poder da mídia, sobretudo da mídia de
massas, capaz de moldar, manter ou alterar conhecimentos, crenças, valores, relações e
identidades sociais, assim como de impactar governos, instituições e políticas públicas
(Chouliaraki; Fairclough, 1999; Fairclough, 2001). A mídia é também um elemento essencial na
criação e manutenção do discurso promocional ou de consumo (Wernick, 1991; Featherstone,
1991; Fairclough, 2001) que caracteriza os fenômenos culturais contemporâneos. Nessa fala,
defendo o uso dos modelos teóricos e metodológicos propostos pela Análise Crítica do Discurso
como ferramentas conceituais e analíticas para investigar e explicar, de uma perspectiva social
crítica, as convocações midiáticas ao consumo, muitas delas imperativas, presentes em revistas
para mulheres, especialmente no que diz respeito ao desenho de um corpo ‘canônico’ (magro,
longelíneo, com musculatura definida). Os enunciados midiáticos pressupõem uma falta na
leitora/receptora, falta essa que será suprida através do contrato midiático, com a oferta de
mapas e receitas de conduta, produtos e serviços. Mas essas ofertas não são apresentadas como
meras commodities, e sim como aquele elemento X que distinguirá a leitora/receptora, lhe trará
sucesso, status e acesso a um lugar de gozo e prazer idealizado nos mídia.

Palavras-chave: discurso, mídia, consumo, revistas femininas, corpo.

Introdução
Nas sociedades contemporâneas é cada vez maior o poder da mídia, sobretudo da mídia
de massas, capaz de moldar, manter ou alterar conhecimentos, crenças, valores, relações e
identidades sociais, assim como de impactar governos, instituições e políticas públicas
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2003). A mídia é também um elemento
essencial na criação e manutenção do discurso promocional ou de consumo (WERNICK, 1991;
FEATHERSTONE, 1991; FAIRCLOUGH, 2003) que caracteriza os fenômenos culturais
contemporâneos. Os enunciados midiáticos pressupõem uma falta na leitora/receptora 1, falta
essa que será suprida através do contrato midiático, com a oferta de mapas e receitas de conduta,
produtos e serviços. Mas essas ofertas não são apresentadas como meras commodities, e sim
como aquele elemento X que distinguirá a leitora/receptora, lhe trará sucesso, status e acesso a
um lugar de gozo e prazer idealizado nos mídia.
Essa é a promessa dos produtos midiáticos, como matérias de revistas, sítios da internet,
anúncios publicitários e reality shows, apenas para citar alguns: tornar a consumidora mais feliz e

1
Como nesse ensaio analiso revistas femininas, utilizo o feminino (leitora, receptora, etc.) como genérico.

96
satisfeita dando-lhe um acesso constante e imediato ao prazer, tudo isso amparado pelos
dispositivos midiáticos, pelos cientistas e tecnólogos do discurso.
Relações e laços sociais foram radicalmente alterados no século XX, e essas alterações
dependem intimamente da mídia (para criá-las, disseminá-las, legitimá-las e naturalizá-las), que
fornece sistemas de apoio ao exercício da autoridade, aqui entendida como fala constituidora de
vínculo social. Na perspectiva psicalítica, por exemplo, até recentemente considerava-se que a
legitimação da autoridade nas sociedades ocidentais dependia da limitação do gozo individual:
cada indivíduo cedia algo de seu prazer pessoal para a constituição do social. Como aponta Prado,
na modernidade tardia, entretanto, surge um uma nova possibilidade de laço social na qual o
prazer é aparentemente liberado,

podendo ser despertado por técnicas semióticas, fazendo com que muitos
teóricos apontem uma crise: com a queda dos lugares de forte autoridade,
como Deus, o Partido, a Ordem, o Pai, somente uma ficção pode sustentar a
construção da posição subjetiva. Os tecnólogos de discursos, entre
profissionais liberais das mais diversas áreas, apoiam o trabalho dos
jornalistas para construir essas ficções na televisão, nos meios impressos e na
internet (PRADO, 2010, p. 56).

Seguindo essa linha, nesse ensaio apresento algumas reflexões, baseadas na Análise
Crítica do Discurso e em teorias sociais críticas, sobre as convocações midiáticas ao consumo,
muitas delas imperativas, presentes em revistas para mulheres, especialmente no que diz respeito
ao desenho de um corpo ‘canônico’ (magro, longelíneo, com musculatura definida).

Estilos de vida e cultura do consumo

O contexto sociocultural contemporâneo é caracterizado, sobretudo, pela sobreposição


da esfera do consumo à da produção. Diferentemente do período até a primeira metade do século
XX, quando a sociedade girava em torno da produção, o consumo agora parece produzir a
sociedade. A expressão ‘cultura de consumo’ significa que, para compreender as sociedades da
modernidade tardia, é preciso compreender a estruturação do mundo das mercadorias. Na alta
modernidade a economia passou a apresentar uma dimensão cultural, no sentido em que os bens
e serviços, além de seu valor econômico e utilitário mais óbvio, agora possuem valor simbólico e
comunicativo (FEATHERSTONE, 1995).

97
No contexto da cultura de consumo, a comodificação 2 retrata a aparência como o
principal árbitro do valor individual, e o autodesenvolvimento só existe como exibição (aquilo que
pode ser visto a olhos nus). Daí a importância da aparência física (forma do corpo, pele, cabelos,
roupas, adereços, etc.). As diversas modalidades de culto ao corpo (e.g. atividade física, dietas,
cirurgia plástica, cosmetologia, vestuário) se tornam, então, formas de consumo material e
cultural no empório de estilos que é a modernidade tardia.
O capitalismo de consumo, ou capitalismo pós-industrial, tem um papel básico na
disseminação do narcisismo. A idéia inicial de que o capitalismo poderia gerar um público
consumidor educado e criterioso vem cedendo cada vez mais à penetração insidiosa do
consumismo, que Giddens define como “uma sociedade dominada pelas aparências”. Ele continua
dizendo que “o consumo apela para as qualidades alienadas da vida social moderna, e alega ser
sua solução: ele promete exatamente aquilo que o narcisista deseja – atração, beleza e
popularidade pessoal – através do consumo dos tipos ‘certos’ de bens e serviços” (GIDDENS, 1991,
p.172). Em resumo, é através do consumo que os sujeitos constroem seus estilos de vida na
contemporaneidade.
Embora afirme que os indivíduos negociam seus estilos de vida entre uma diversidade de
opções, Giddens admite a existência de “influências padronizadas *...+ – especialmente na forma
da comodificação, uma vez que a produção e a distribuição capitalistas constituem componentes
centrais das instituições da modernidade” (1991, p.5).
O consumo pressupõe a manipulação ativa de signos, ou seja, não devemos
compreender esse fenômeno apenas como o consumo de bens materiais, mas basicamente como
o consumo de signos ou símbolos gerados e disseminados pela mídia de massa, a publicidade, as
marcas. Segundo Featherstone, estamos vivendo “o triunfo da cultura de representação
simulacional, na qual a proliferação dos signos e imagens aboliu a distinção entre o real e o
imaginário” (1995, p. 122). Daí a noção de que, na modernidade tardia, mercadoria e signo teriam
se juntado, formando a mercadoria-signo. A beleza corporal, por exemplo, é vista como um signo
com valor de troca (BAUDRILLARD, 1985; 1995), que reduz o próprio corpo a um bem de consumo,
cujo valor é aumentado através de sua combinação com outros bens. Ou seja, a liberação do corpo
resultante de certas conquistas sociais das últimas quatro décadas (métodos contraceptivos,

2
A comodificação, ou mercantilização, é definida por Fairclough (2001, p.44) como “a incorporação de novos
domínios no mercado de bens de consumo (e.g. as indústrias de cultura) e a reconstrução geral da vida social numa
base mercadológica – e de uma mudança relativa na ênfase, dentro da economia, da produção para o consumo”. Em
termos discursivos, podemos aliar esse fenômeno à generalização da promoção como função comunicativa, i.e., o
discurso passa a funcionar como um veículo para a ‘venda’ de bens de consumo, serviços, organizações, idéias ou
pessoas.

98
maior liberdade sexual, avanços na medicina, etc.) é apropriada e reduzida, na modernidade
tardia, pela transformação do corpo em objeto funcional – de desejo, de consumo, consumidor.
Como afirma Baudrillard (1985, p.141-143):

A ética da beleza, que também é a da moda, pode definir-se como a redução


de todos os valores concretos e dos ‘valores de uso’ do corpo (energético,
gestual e sexual), ao único ‘valor de permuta’ funcional que, na sua abstração,
resume por si só a idéia de corpo glorioso e realizado [...] Da higiene à
maquiagem, passando pelo bronzeamento, pelo desporto e múltiplas
‘libertações’ da moda, a redescoberta do corpo passa antes de mais nada
pelos objetos. Parece que a única pulsão verdadeiramente libertada é a
‘pulsão da compra’.

Comodificação identitária: sujeitos sociais como mercadorias


Segundo Bauman (2008), nas sociedades contemporâneas globalizadas, as redes de
relações sociais entre seres humanos foram invadidas, conquistadas e colonizadas por visões de
mundo e padrões de comportamento (incluindo aqui os padrões de comportamento discursivo)
inspirados pelos e ‘customizados’ para os mercados de produtos. Isso é o que o autor chama de
fetichismo da subjetividade: a representação dos sujeitos como produtos que estabelecem
relações comerciais entre si, minimizando ou ignorando completamente suas características
humanas:

A “subjetividade” numa sociedade de consumidores, assim como a


“mercadoria” numa sociedade de produtores, é (para usar o oportuno
conceito de Bruno Latour) um fatiche – um produto profundamente humano
elevado à categoria de autoridade sobre-humana mediante o esquecimento
ou a condenação à irrelevância de suas origens demasiado humanas,
juntamento com o conjunto de ações humanas que levaram ao seu
aparecimento e que foram condição sine qua non para que isso ocorresse.
(BAUMAN, 2008, p. 23).

Para Baudrillard (1985; 1995), a pós-modernidade é o período da hiperrealidade, na


qual “imagens da realidade substituem a realidade a tal ponto que a fronteira entre as duas torna-
se imprecisa ou [...] desaparece inteiramente: a cultura pós-moderna é a cultura do ‘simulacro’, da
cópia perfeita que não pode ser diferenciada do original” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p.
77).

Essa substituição da realidade por signos como resultado de mudanças tecnológicas


contemporâneas permite a ‘implosão do social’, ou a destruição de fronteiras, sobretudo das
fronteiras entre imagem e realidade. Nas palavras de Chouliaraki e Fairclough, na modernidade
99
tardia “sistemas semióticos gerados pela mídia oferecem modelos para a condução da vida diária.
Esses sistemas são conjuntos de oposições binárias que eliminam a diferença e criam,
essencialmente, um sistema único que posiciona os indivíduos numa ordem de ‘simulacro’. A
experiência social só é possível na forma de ‘espetáculo’ – ela é passageira e obsoleta” (1999, p.
90).
A hiperrealidade também alcança as subjetividades: a concepção comodificada dos
sujeitos surgida no capitalismo pós-industrial abre espaço para um mercado onde se pode
comprar e vender os símbolos empregados na construção da identidade (estilos de vida, modelos
de corporeidade, idéias, tendências), gerando formas de expressão pública do “eu” como o
simulacro proposto por Baudrillard, ou seja, “colocando a representação no lugar daquilo que ela
deveria representar”, como afirma Bauman (2008, p. 23-4). A transformação das subjetividades
em produtos a serem ‘montados’, negociados, comprados e vendidos permitiu uma
‘neutralização’ a priori das subjetividades em muitas das relações humanas contemporâneas
(como, por exemplo, as relações digitais de amor ou amizade)3, ou seja, a idéia é que já não
lidados com sujeitos mas com objetos.
Segundo Bauman, na sociedade de consumidores a dualidade sujeito-objeto está
embutida na dualidade consumidor-mercadoria. No contexto pós-moderno, a soberania do sujeito
é resignificada e apresentada como a soberania do consumidor, enquanto que qualquer
resistência do sujeito-objeto (inevitável, uma vez que sua soberania rudimentar está apenas
suprimida) é requalificada e ressignificada como inadequação, baixa qualidade, inconsistência ou
imperfeição de uma mercadoria humana ‘mal escolhida’ (BAUMAN, 2008, p. 30).
Assim como nossos ancentrais foram moldados e treinados para serem produtores, no
capitalismo pós-industrial somos cada vez mais moldados e treinados como consumidores, ao
ponto de atributos antes considerados desejáveis nos produtores (aquisição e retenção de
hábitos, lealdade aos costumes estabelecidos, tolerância à rotina e a padrões de comportamento
repetitivos, disposição para adiar a satisfação, rigidez de necessidades) serem hoje vistos como
‘pecados’ ou ‘vícios’ no que se refere aos consumidores. E a mídia de massas – por exemplo, as
revistas “temáticas” que prometem identificar e resolver os “problemas da vida” através do

3
A transformação das subjetividades em mercadorias gerou um efeito colateral que podemos chamar de
“desabilitação social”, um processo semelhante, porém da ordem do simbólico, ao processo corporativo de deskilling,
“pelo qual a mão de obra especializada é eliminada pela introduçãode tecnologias operadas por trabalhadores
semiqualificados ou sem qualificação” (BAUMAN, 2008, p. 25). Ao recorrermos à sítios de encontros virtuais para
encontrarmos amantes ou amigos, por exemplo, nos desabilitamos como sujeitos sociais competentes e capazes de
estabelecer relações diretas e face a face com outros sujeitos sociais, ao mesmo tempo que permitimos que a lógica
dos sistemas regule nossas relações sociais mais íntimas.

100
recurso à voz de especialistas e celebridades - é uma das instituições sociais mais atuantes nesse
processo de “educação vitalícia” do novo consumidor (BAUMAN, 2005, p. 73)

Análise Crítica do Discurso: abordagem transdisciplinar para estudos críticos da linguagem


Na medida em que os produtos de mercado assumem uma natureza cada vez mais
cultural, eles também se tornam cada vez mais semióticos e linguísticos, e a própria linguagem
torna-se comodificada, isto é, sujeita a processos de intervenção e desenho motivados pela
economia (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 77). Dada a centralidade da linguagem nas
sociedades contemporâneas, Chouliaraki e Fairclough propõem uma agenda de pesquisa para a
ACD tendo como pano de fundo os estudos interdiciplinares sobre a modernidade tardia. Mais
especificamentge, esses autores lançam mão de teorias críticas sobre a modernidade tardia, como
as propostas por Harvey (1990), Giddens (1991, 1995) e Habermas (1984), a partir de uma
perspectiva linguística, para investigar o papel da linguagem na contemporaneidade. Os temas
centrais nessa agenda de pesquisa são: hibridismo discursivo (a mistura de diferentes gêneros e
discursos); globalização; identidade; reflexividade; e comodificação.
As próprias formas de interação entre sujeitos sociais e o mercado de produtos vêm
mudando radicalmente na contemporaneidade. O ato de comprar um produto/serviço era, até
uma geração atrás, uma forma de interação pertencente ao domínio das ações comunicativas.
Entretanto, apenas uma geração depois, comprar se tornou um ato muitas vezes solitário (em
lojas de departamentos, em supermercados, em lojas virtuais, etc.), uma atividade instrumental
“deslinguistificada”4, como afirmam Chouliaraki e Fairclough (1999), ou seja, uma atividade
destituída de práticas linguísticas que funcionem efetivamente como formas de ação e interação
social.
Entretanto, num contexto contemporâneo onde tudo, desde produtos e serviços até
valores, conceitos, relações sociais e identidades, é extremamente volátil e efêmero, o
planejamento a longo prazo se torna um problema para o capitalismo pós-industrial, cuja reação é
tanto se tornar mais flexível quanto controlar as comunicações públicas, como a mídia de massas,
para alcançar um certo grau de controle dessa volatilidade.
Vale lembrar aqui que, apesar das críticas à comodificação simbólica que caracteriza a
modernidade tardia, não devemos perder de vista que esse período histórico abriu um novo
campo de possibilidades no que diz respeito a desenhos de mundo, relações interpessoais e

4
Minha tradução para o termo em inglês “delinguistified”.

101
identidades públicas, tanto em termos de inovação quanto de conservadorismo. No que diz
respeito às identidades, a contemporaneidade desestrutura subjetividades pré-existentes, mas
também oferece recursos para o estabelecimento de novas subjetividades. Se considerarmos a
globalização, podemos dizer que ela oferece recursos para a criação de um sujeito
verdadeiramente ‘universal’, ao mesmo tempo em que fomenta a diferenciação e fragmentação
das identidades, por exemplo através do rompimento das barreiras tempo-espaço e da
comodificação das subjetividades.
Segundo Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 96), “a luta para encontrar uma identidade é
um dos temas mais disseminados da modernidade tardia, e um dos principais focos da
reflexividade pós-moderna”. Porém, não devemos esquecer que a luta pela identidade também
inclui construções coletivas e individuais ‘calculadas’ de imagens disseminadas nas sociedades
contemporâneas de consumo – afinal, forjar uma identidade é essencial para a segurança
ontológica dos sujeitos sociais, mas também é central para os propósitos comerciais do
capitalismo pós-industrial.

Alguns exemplos
Como aponta Prado, o apelo midiático contemporâneo ao sujeito-consumidor é feito “por
meio de textos sincréticos, que apelam ao sensível do corpo. O jornalismo incorpora cada vez mais
esses textos convocadores [ou exortativos, como diria Longacre (1983; 1992)], que integram
informação e modalização, fornecendo mapas cognitivos e estésicos, numa época em que as
posições discursivas de autoridade se deslocaram e a biopolítica passou a gerir a saúde das
populações” (PRADO, 2010, p. 54). Utilizando as palavras de Prado, para “gozar total no topo,
gozar por inteiro”, promessa da ideologia e do discurso do consumo, basta saber o que os
enunciadores midiáticos nos trazem na mídia impressa, falada, televisiva e digital, como podemos
ver nas seguintes chamadas de capa e nos sumários de três revistas femininas de grande
circulaçào no mercado editorial brasileiro, publicadas em maio de 2010: Corpo a Corpo, Boa Forma
e Nova.

Corpo a Corpo, maio 2010


 Cabelo hollywoodiano: copie os looks incríveis das estrelas do Oscar
 Seguindo esse cardápio, você derrete 4 kg de gordura e reduz até 12 cm de cintura.
 Treino de 30 minutos ajuda a manter as curvas que você suou para ganhar!

102
 Barriga lisinha, braços definidos, pernas torneadas, culote zero: Conquiste o corpo de seus
sonhos com os novos métodos em cirurgia plástica.
 A prova da gravidade: Conheça os últimos tratamentos, cremes, exercícios e alimentos que
ajudam a combater a flacidez.
 A linda Christine Fernandes: Os segredos desta silheta enxuta são as aulas de boxe
tailandês (confira a série e faça em casa)
 Faça você mesma: domine a franja.

Boa Forma, maio de 2010


 Uau! Olha as curvas de Paula Oliveira: o cardápio, o treino, todos os segredos para você
copiar.
 Desafio da corrida: comece a praticar e perca 2 números do manequim!
 Conheça o melhor exercício para mudar seu corpo aos 20, 30, 40+
 Bem estar: menos é mais – aprenda a limar os excessos que estão atrapalhando sua vida.

Nova, maio de 2010


 50 maneiras de ser adorada pelos homens e invejada pelas mulheres
 Como consertar ou deletar um gato que bota você para baixo: coloque o seu na linha.
 É novo! Cirurgia plástica – técnicas seguras e pouco invasivas para você ficar linda

As chamadas de capa e os títulos das seções e matérias encontrados nos sumários dessas
revistas femininas apresentam um caráter instrumental que se materializa no léxico, na estrutura
dos atos de fala e nos modos oracionais, estabelecendo relações assimétricas de poder entre
revista e leitora. As revistas prescrevem e proscrevem comportamentos para as leitoras, e essa
relação de prescrição/proscrição é marcada tanto em nível lexical (manter as curvas; o corpo de
seus sonhos; silhueta enxuta; limar os excessos; adorada pelos homens e invejada pelas
mulheres; você linda) quanto em nível gramatical, seja através de ordens claras (demandas
abertas) dadas no modo imperativo (copie, conquiste, faça, conheça, aprenda), seja através de
demandas mitigadas, feitas no modo declarativo (você derrete 4 kg de gordura e reduz cintura; [o
treino] ajuda a manter as curvas; para você copiar). Em todos esses casos, a promessa midiática é
a mesma: tudo será belo, simples e fácil, contanto que você consuma para se aprimomar e
também se transformar em um produto mais consumível.

103
As mudanças econômicas advindas da cultura de consumo trazem profundas
consequências culturais, como o fato de as sociedade contemporâneas serem dominadas pelo
volátil, o efêmero e o descartável, não apenas no que tange aos bens materiais, mas também em
termos de “valores, estilos de vida, relações estáveis e apego a coisas, edificações, lugares,
pessoas e formas pré-determinadas de fazer e de ser” (HARVEY, 1990, apud CHOULIARAKI;
FAIRCLOUGH, 1999, p. 77), como num grande mercado de ‘commodities’ simbólicas. O capitalismo
pós-industrial nos convoca a adotar modos de vida pautados pela lógica do consumo: o cartão de
crédito subtituiu o tempo de espera entre consumidor e mercadoria, e se transformou num ícone
da contemporaneidade, em que imperativos culturais como ‘saber esperar’, ‘o prazer vem depois
do trabalho’, passaram a conviver com outros imperativos culturais da ordem do efêmero, como‘o
futuro é agora’, ‘mude seu corpo em quatro semanas’, etc (LEITE, apud, PRADO, 2010). As
seguintes chamadas de capa ilustram essa mudança discursiva e cultural que valoriza a rapidez, a
‘facilidade’, o efêmero e o descartável:

Corpo a Corpo, maio 2010


 Firmeza já: tratamentos e alimentos que acabam com a flacidez do rosto.
 Menos de 30 minutos para manter seu corpo: com este treino fácil e rápido, você conserva
suas curvas até o próximo verão.

Boa Forma, maio de 2010


 Dieta do corpo sexy: perca 5 quilos em um mês e ganhe curva incríveis.
 Como conseguir um cabelão sexy em minutos? Aqui, essas e outras dicas de cabelereiros
top.
 Consulta express [seção de cartas]

Nova, maio de 2010


 Magérrima com as dietas do chá e do sorvete sem sacrifício!
 Curvas express [título de seção]

A curta expectativa de vida de um produto na prática e na utilidade proclamada está


incluída nas estratégias de marketing e no cálculo de lucros: tende a ser preconcebida, prescrita e
instilada nas práticas dos consumidores mediante o que Bauman chama de apoteose das novas
ofertas (de hoje) e difamação das antigas (de ontem). Como afirma o autor,

104
O “modo consumista” requer que a satisfação precise ser, deva ser, seja de
qualquer forma instantânea, enquanto o valor exclusivo, a única “utilidade”,
dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação. Uma vez
interrompida a satisfação (em função do desgaste dos objetos, de sua
familiaridade excessiva e cada vez mais monótona ou porque subtitutos
menos familiares, não-testados, e assim mais estimulantes, estejam
disponíveis), não há motivo para entulhar a casa com esses objetos inúteis.
(BAUMAN, 2005, p. 70).

A promessa de satisfação através do produto “novo” (que inclui o descarte do antigo) é


ilustrada nos exemplos a seguir:

Nova, maio de 2010


 É novo! Cirurgia plástica – técnicas seguras e pouco invasivas para você ficar linda
 Cirurgia plástica: Novidades – menos hard, mais wow.
 Esta é Nova! Esta é velha *seção que elenca atitudes ‘in’ e ‘out’+

Boa Forma, maio de 2010


 As novas máscaras para curvar, alongar e dar mais volume aos cílios
 Vitrine lançamentos – produtos para você ficar mais bonita

Corpo a Corpo, maio 2010


 Você de cara nova *seção no formato ‘antes e depois’+
 Conheça os últimos tratamentos, cremes, exercícios e alimentos que ajudam a combater
a flacidez.
 Cabelereiros top elegeram as cores que estarão em alta neste inverno. Você só tem de
copiar
 A nova aula, Ballast Ball, queima muitas calorias e ainda fortalece braços, abdome, glúteos
e coxas.

Palavras finais
Alguns teóricos argumentam que, na modernidade tardia, as estruturas sociais
tradicionais estão sendo substituídas por estruturas informacionais e comunicacionais, e que,
como conseqüência, as identidades sociais estão sendo definidas mais em termos da posição e do
acesso à informação do que em termos de produção (LASH, 1994, apud CHOULIARAKI;
105
FAIRCLOUGH, 1999, p.44). Entretanto, a relação dos indivíduos com as formas de comunicação e
de informação não é pacífica nem inócua. Nas sociedades contemporâneas, as atitudes dos
indivíduos leigos em relação à ciência, à tecnologia, e a outras formas mais esotéricas de
conhecimento tendem a expressar a mesma mistura de reverência e reserva, aprovação e
preocupação, entusiasmo e antipatia, que os filósofos e os analistas sociais adotam (GIDDENS,
1991). Ainda assim, a voz de autoridade e as relações assimétricas de poder que caracterizam os
sistemas e os discursos peritos tendem, em última análise, a prevalecer. Segundo Chouliaraki e
Fairclough (1999, p.44), nas sociedades contemporâneas:

[Os indivíduos] têm acesso, via quase-interação mediada, a vastos recursos de


conhecimento, práticas, formas de ser, e assim por diante, os quais podem
utilizar. Mas esses recursos são moldados em outro lugar, eles provêm de
sistemas sobre os quais [as pessoas] não têm controle. Assim, a autonomia
sem precedentes dos indivíduos é combinada com uma dependência também
sem precedentes de recursos simbólicos mediados pela cultura de massa.

Como aponta Prado, o espaço vazio criado pela queda dos lugares de forte autoridade
social é ocupado no terceiro milênio pelos discursos midiático e publicitário, acoplados a
mercados que

oferecem não mais somente produtos, mas pacotes semióticos. [...] Eu compro
o signo, e com ele vem um pacote de coisas que os tecnólogos nos ajudam a
instalar para gozar com o produto. Se antes era uma perda ou renúncia ao
gozo o que movia o social, agora é justamente a busca de um gozo total o que
faz com que uma nova economia imaginária se constitua ao redor de uma
montagem perversa. Aqui, perverso não quer dizer maligno, mas a recusa do
negativo, que aponta imaginariamente à emancipação da falta, como se nos
dirigíssemos doravante à construção de um sujeito de corpo pleno, pela via de
um liberalismo solto de amarras (PRADO, 2010, p. 56-7).

E por que não podemos aceitar o negativo? Para Prado, somos construídos como sujeitos
pela diferença, porém no contexto de uma sociedade contemporânea em que devemos ser
diferentes num espaço homogêno de consumo. Dessa forma, se não atingimos o status de “corpos
plenos e liberados para o gozo”, a culpa é inteiramente nossa, inteiramente individual. “Disso
resulta a fetichização do sujeito pleno idealizado pelos subsistemas midiático e publicitário”
(PRADO, 2010, p. 57). Entretanto, o ideal do corpo consumidor pleno nos cobra seu preço, como
alerta Prado: “se, por um lado, o sujeito se vê liberado de uma série de proibições, por outro ele as
internaliza e daí advém uma série de sintomas, como a frustração, a insegurança, a ansiedade e a
depressão, para os quais a indústria farmacêutica propõe remédios de venda milionária. Como
dizia Lacan, o enunciado ‘goze!’, em vez de libertar, reforça a culpa” (PRADO, 2010, p. 57). E aqui

106
eu encerro minhas reflexões com uma advertência de Leite sobre a promessa da felicidadade e do
prazer via consumo:

Convém destacar que a lógica do consumo favorece uma espécied de


hedonismo ingênuo que crê que o prazer e a felicidade podem aumentar de
modo contínuo e sem limites. [...] Tem-se uma concepção que faz da felicidade
mais uma obrigação do que uma possibilidade que se experimenta vez ou
outra no laço com o outro. [...] Num mundo assim estabelecido, a política é
substituída pelo elogio da administração; narrativas lentas ou que exigem ser
completadas pela subjetividade do espectador seriam insuportáveis; corpos
seriam solicitados como matéria de alta plasticidade. (LEITE, apud PRADO,
2010, p. 57).

Referências

BAUDRILLARD, J. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São
Paulo: Brasiliense, 1985.

__________. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.

BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

__________. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CASTRO, A.L. Culto ao corpo e sociedade: mídia, estilos de vida e cultura de consumo. São Paulo:
Annablume, 2003.

CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999.

FAIRCLOUGH, N. A análise crítica do discurso e a mercantilização do discurso público: as


universidades. In: C. MAGALHÃES (Org.) Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo
Horizonte: FALE-UFMG, 2001.

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Routledge, 2003.

FAIRCLOUGH, N. Language and globalization. London: Routledge, 2006.

FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

FOUCAULT, M. Discipline and punish. (Alan Sheridan, Trad.). London: Penguin, 1991[1975].

GIDDENS, A. Modernity and self-identity. Cambridge: Polity, 1991.

GIDDENS, A. Living in a post-traditional society. In: BECK, U; GIDDENS, A; LASH, S. Reflexive


modernization: Politics, tradition and aesthetics in the modern social order. Cambridge: Polity
Press, 1994.

HABERMAS, J. Theory of communicative action, Vol. 1. London: Heinemann, 1984.

107
HARVEY, D. The condition of postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990.

LONGACRE, R. The grammar of discourse. New York: Plenum Press, 1983.

__________. The discourse strategy of an appeals letter. In: W.C. MANN; S.A. THOMPSON (Eds.),
Discourse description: Diverse linguistic analyses of a fund-raising text. Amsterdam:
Benjamins,1992.

PRADO, J.L.A. A mídia e o gozo pelo consumo. Cult, ano 13, no. 144, 2010.

RAMALHO, V.C.V.S. Discurso e ideologia na propaganda de medicamentos: Um estudo crítico


sobre mudanças sociais e discursivas. Tese (Doutorado em Lingüística) – Universidade de Brasília
(UnB), 2008.

WERNICK, A. Promotional culture. London: Sage, 1991.

108
PROPOSTAS PRÁTICAS DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: A RELIGIÃO
COMO UMA MERCADORIA

Derli Machado de Oliveira, doutorando em Linguística Aplicada


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Neste trabalho apresentamos os primeiros resultados da nossa pesquisa de mestrado que


investigou o discurso religioso da Igreja Universal do Reino de Deus, elaborado a partir da análise
do “testemunho” de fiéis dessa Igreja, veiculado na seção Superação do Jornal Folha Universal. O
eixo central das discussões desta pesquisa se situa na noção de mudanças nas práticas discursivas,
proposta por Fairclough (2008), segundo a qual algumas atividades sociais como a educação,
médica, e religião, estão sendo invadidas por práticas de “mercado”. Assim, elas estão cada vez
mais pressionadas para que se envolvam com novas atividades que são determinadas em grande
parte por novas práticas discursivas (como marketing). Utilizando-se como suporte teórico e
metodológico a Análise Crítica do Discurso, por meio do conceito de comodificação (Fairclough,
2008), focalizamos, neste trabalho, as mudanças no domínio discursivo religioso, sua constituição
na heterogeneidade pós-moderna, e a forma como outros gêneros, especialmente o da
publicidade (na mídia), tem moldado seu estilo e identidade. Afetadas pelas transformações
econômicas e sociais, pouco a pouco as estruturas religiosas tradicionais foram substituídas e os
conteúdos ideológicos do discurso religioso passaram a refletir não só valores e crenças daquilo
que se denomina religioso, mas também expressam interesses midiáticos e mercadológicos. Estes
“novos conceitos” estão sendo propagados através da utilização massiva que fazem das mídias;
televisão, jornal, revista, rádio, internet entre outros meios. Os resultados apontam para a
indicação de que o uso da nova configuração do testemunho atende não só às demandas
espirituais, como também às exigências de mercado, estimulada que está pela cultura do consumo
propagada pela mídia. Usam o testemunho como mais um recurso para seus interesses, utilizando
as massas como fonte de consumo, audiência, manipulação, sujeição e exploração.

Palavras-Chave: mudança discursiva, comodificação, domínio discursivo religioso; teologia da


prosperidade

"Está escrito, minha casa será chamada casa de oração, vós, porém, a
fazeis covil de salteadores"
Jesus Cristo (Mateus 21:13)

Das considerações preliminares

A epígrafe apresentada no início deste trabalho nos dá uma indicação de que, no período
bíblico, práticas de teor mercantil já se apoderavam ou, no mínimo, influenciavam o domínio
religioso. O texto bíblico, registrado nos quatro evangelhos, é uma reprovação de Jesus feita aos
vendedores e cambistas, que faziam do templo em Jerusalém local de comércio. Ele os expulsou a
chicotadas, afirmando ser aquele um local inadequado a tal prática.

109
Atualmente, maximizadas pelo contexto capitalista, ações de natureza mercantil e suas
práticas sócio-discursivas se alastram em diversos campos da sociedade não mercadológicos em
suas essências, como a educação, a cultura e, nesse caso específico, o religioso.
Fairclough (2008) argumenta que as práticas mercantilistas são uma característica cada vez
mais marcante da pós-modernidade. A essa tendência1 contemporânea de mudança discursiva
que afeta a sociedade ocidental de uma maneira geral, o pesquisador britânico denominou
“comodificação” (do inglês commodity, mercadoria).
Em decorrência da ampla disseminação, as práticas discursivas comodificadas estão cada
vez mais naturalizadas. O referido autor afirma que “ideologias embutidas nas práticas discursivas
são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’
(Fairclough, 2008:117).
Desse modo, afetadas pelas transformações econômicas e sociais, pouco a pouco as
estruturas religiosas tradicionais foram substituídas e os conteúdos ideológicos do discurso
religioso passaram a refletir não só valores e crenças daquilo que se denomina religioso, mas
também expressam interesses midiáticos e mercadológicos. Estes “novos conceitos” estão sendo
propagados através da utilização massiva que fazem das mídias; televisão, jornal, revista, rádio,
internet entre outros meios.
Assim, a partir das mídias modernas, temos uma reconfiguração dos princípios do
Cristianismo tradicional. A mais relevante pode ser indicada como o embaralhamento entre
mercado e fé. Os testemunhos, publicados nos jornais e veiculados nos programas de rádio e TV,
podem ser percebidos como o mais exemplar registro dessa atitude religiosa-midiática-
mercadológica. Daí a necessidade de pesquisas que possam oferecer novas abordagens a esse
respeito.
Visando contribuir com o estudo desse fenômeno, objetivamos, neste trabalho, descrever,
caracterizar e discutir as práticas discursivas comodificadas no discurso religioso, especificamente
na Igreja Universal do Reino de Deus2, focalizando mais precisamente os relatos de fiéis
(testemunho) publicados na seção Superação do Jornal Folha Universal.

1
Fairclough (2008) chama a atenção também para outras tendências as quais ele chamou de tecnologização e
democratização discursivas.
2
Utilizaremos aqui também os termos Iurd, Universal e discurso Iurdiano normalmente empregados para referir-se à
instituição.

110
Igreja Universal: um império religioso-midiático
Desde sua fundação em 1977, pelo bispo Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus
(Iurd), atualmente a maior igreja neopentecostal3 no Brasil, tem investido pesadamente nos meios
de comunicação, que é sem dúvida o fator de peso na divulgação e crescimento de seus trabalhos.
Pode-se dizer que a Iurd atua em todos os níveis de comunicação: impresso, televisado,
radiofônico e digital. Isso faz com que a propagação de suas doutrinas seja cada vez mais eficaz.
Conforme aponta Mariano (1999), a Iurd representa um grande fenômeno religioso no
Brasil e no exterior, cujo poder ultrapassou os limites do campo religioso, tendo reflexo na
economia (possui um conglomerado de empresas que atuam em vários ramos), na mídia (é
detentora de um grande império midiático) e na política.
“Império Religioso”. Esse é o título de um dos capítulos do livro O Bispo: a história revelada
de Edir Macedo, uma obra biográfica, lançada em 2007. Nele lemos:

A Igreja Universal é hoje uma força que se retroalimenta. Quanto mais cresce,
menos pára de crescer. Os números aumentam a cada instante. [...] Até o
fechamento deste livro, eram 4.748 templos e 9.660 pastores apenas no Brasil. A
igreja já tinha se instalado em 172 países de quatro continentes. [...] A quantidade
exata de fiéis é imprecisa. A estatística oficial do IBGE calcula 2 milhões, mas, de
acordo com a liderança da Igreja, não computa com precisão os brasileiros
moradores de áreas carentes, como favelas e morros, onde se concentra uma das
forças da Universal – o que pode fazer esse número saltar para até 8 milhões
(Tavolaro, 2007:243).

Além de “império religioso”, a Iurd também tem se transformado num poderoso “império
midiático”: é proprietária da Rede Record de rádio e TV e do canal televisivo jornalístico Record
News. Na Internet, há o Portal Arca Universal. Na mídia escrita, há o Jornal Folha Universal que,
segundo o próprio jornal, com tiragem de 2.300.000 exemplares por semana e a Revista Plenitude,
de tiragem mensal. Há também o jornal Hoje em Dia, de Minas Gerais, que não tem cunho
religioso. A Editora Gráfica Universal é responsável pela publicação de livros escritos ligados à Iurd.
O Jornal Folha Universal, objeto de análise deste trabalho, chegou às bancas pela primeira
vez em 15 de março de 1992. Na ocasião de seu lançamento, o jornal tinha uma tiragem de
aproximadamente 40 mil exemplares – que eram distribuídos no eixo Rio-São Paulo – número que

3
As igrejas evangélicas costumam ser divididas em protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Congregacional,
Anglicana, Metodista etc.), em pentecostais (Congregação Cristã do Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho
Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor etc.) e neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Internacional da
Graça de Deus, etc.).

111
cresceu estrondosamente e hoje supera a marca de 2,3 milhões de exemplares distribuídos
semanalmente por todo o Brasil. A distribuição é gratuita e ocorre na frente dos templos.
Há um link no site da igreja4, atuação na mídia, que apresenta assim o jornal Folha
Universal:

Forte aliada no processo de evangelização, desde 1992 a Folha Universal é o jornal


evangélico de maior circulação no Brasil e no mundo. [...] apresenta uma linha
editorial heterogênea voltada para a evangelização e o fortalecimento espiritual
dos membros da igreja, sem deixar de lado a preocupação do cotidiano dos
leitores [...] A Folha, hoje, é um jornal politizado, que acompanha o seu tempo e
permite aos seus leitores uma visão analítica e crítica do que está acontecendo no
Brasil e no mundo.

Ficou bem destacado, nessa autoapresentação, que a Folha Universal possui uma linha
editorial heterogênea, de caráter secular e religioso, cujos objetivos, também variáveis, visam
desde a informação, evangelização, diversão e até mesmo a politização dos seus leitores, os quais
pertencem a todos os níveis sociais.
Atualmente o jornal é disposto em dois cadernos. O primeiro deles coloca à disposição do
leitor os fatos políticos, econômicos e científicos. Contempla ainda as editoriais cultural e
esportiva, internacional e regional e comentários dos bispos da Iurd. O segundo caderno,
denominado Folha IURD, destaca os fatos relacionados à Igreja Universal, entre eles a coluna
Superação, objeto de nossa análise.

Testemunho religioso em mídia impressa5: um gênero do discurso sob nova configuração


O conceito de gênero do discurso é usado recorrentemente nos trabalhos em Análise
Crítica do Discurso, e corresponde, de acordo Fairclough (2008:161) a “um conjunto de
convenções relativamente estável que é associado com, e parcialmente representa, um tipo de
atividade socialmente aprovado *...+”. Além disso, o autor postula que um gênero implica não
somente um tipo particular de texto, mas também processos particulares de produção,
distribuição e consumo de textos. Cada gênero, portanto, ocorre em determinado contexto e
envolve diferentes agentes que o produzem e consomem.
Magalhães (2001:19,20), apresentando os conceitos chaves da ACD, enfatiza que “as
mudanças da prática social refletem-se na linguagem através das mudanças nos sistemas de
gêneros, ao mesmo tempo que são introduzidas por estas últimas”. Portanto, as mudanças da

4
Fonte: < http://www.igrejauniversal.org.br/midia-impressa.jsp>. Acesso em 30.09.2009
5
Nomeamos nosso objeto de análise de gênero testemunho religioso em mídia impressa, para fazer distinção do
testemunho religioso veiculado na mídia não impressa (radiofônica, televisiva e outras).

112
prática social não só determinam as mudanças no sistema de gêneros como também são
determinadas pelo mesmo.
Vale destacar que, é cara a ACD a afirmação, emprestada de Bakhtin (1992), de que os
sistemas de gêneros discursivos ao mesmo tempo refletem e introduzem mudanças na prática
social, numa relação dinâmica e histórica.
Por se tratar de fenômenos históricos, atrelados ao contexto cultural e social, os gêneros
discursivos, mesmo que alinhados a um formato “padrão”, apresentam-se igualmente flexíveis,
assumindo contornos, por diversas vezes, bem diferenciados. Assim, é possível percebermos o
surgimento de um conjunto consideravelmente grande de novos gêneros, principalmente os
relacionados à era tecnológica com novos suportes de comunicação, que possibilitam o
aparecimento de novos gêneros, que em sua maioria são herdeiros de gêneros pré-existentes,
comprovando uma das principais características genéricas, a herança sócio-histórica.
O gênero testemunho, objeto de nossa investigação, uma vez que está presente em
diferentes instâncias da vida social, é um gênero que perpassa diferentes domínios discursivos.
Exatamente por isso encontramos diferentes testemunhos, em diferentes domínios, como no
domínio jurídico, publicitário, religioso dentre outros.
Tradicionalmente, no campo religioso cristão, além de servir como elo de comunicação
entre os cristãos e Deus, o ato de testemunhar, em sua versão primária, visava também contribuir
para a divulgação do Cristianismo. A princípio essa prática se deu da forma direta de comunicação
interpessoal, seja do testemunho partilhado a uma outra pessoa, ou ainda na forma pública em
reuniões informais nas casas ou formais (cultos, missas) nos templos.
Na sua configuração original, o gênero testemunho cristão estava somente no domínio
religioso e na modalidade oral. Cabe aqui ressaltar que, ultimamente, na liturgia da missa católica
tradicional e igrejas históricas protestantes, quando não desapareceu completamente, o
testemunho tem pouco destaque. O neopentecostalismo, porém, ressitua o testemunho e faz dele
o centro de uma liturgia presenteísta. Nossa pesquisa constatou que esses depoimentos têm cada
vez mais ocupado os espaços nos cultos e programas de TV das igrejas neopentecostais, formado
assim uma “cultura do testemunho”. O testemunho está presente em todos os programas da
igreja Universal na TV Record, chegando até mesmo a tomar a maior parte da transmissão. O
programa Fatos da Bíblia, que é transmitido aos sábados de manhã pela Record News, termina
sempre com um testemunho.

113
A midiatização do testemunho religioso dotou-lhe de uma nova vida: libertou-se das
limitações da interação face a face e se revestiu de novas características. Acerca do testemunho
nos meios de comunicação, Cruz (2004:12) comenta:
A religião tem ganho uma enorme publicidade, particularmente no Brasil. [...] ao
invés de fato privado, a religião mostra a sua face pública. Ao invés de demonstrar
acanhamento, as pessoas usam os meios de comunicação para falar de suas
experiências religiosas com enorme desembaraço.

Assim, o testemunho, na atual configuração, principal produto na conquista de novos adeptos, é


contado nos púlpitos dos templos das igrejas neopentecostais, mas também é transmitido pelo rádio e pela
televisão, publicado em jornais e veiculado na internet, lugares estes anteriormente não associados a este
gênero de discurso.
Uma visita aos sites das instituições neopentecostais oferece alguns exemplos. Na página virtual da
Iurd a coluna de testemunhos é divida em categorias: saúde, família e sentimental, prosperidade e
transformação de vida. O jornal Folha Universal tem duas colunas permanentes sobre depoimentos dos
fiéis, Superação e Minha primeira vez na Iurd.
No lado direito da página da Igreja Internacional da Graça de Deus6, logo abaixo do título “Igreja”,
há um acesso aos testemunhos. Clicando no link “testemunho” abre-se a página com a opção “lista”, na
qual os testemunhos são separados pelas seguintes categorias: Patrocinador (146 testemunhos); Benção
financeira (189); Cura (523); Libertação (172); Livramento (129); Outros (380).
Já no portal da igreja Renascer em Cristo7, considerada a segunda neopentecostal por número de
templos e de fiéis no Brasil, o internauta é convidado a se prostrar diante de um altar: o Altar dos
testemunhos.

Caso você tenha participado de algum de nossos cultos, tenha assistido via Rede
Gospel de TV, pela Internet através do Portal iGospel ou em uma de nossas Igrejas
Renascer em Cristo e sentiu o milagre e a mão de Deus operando na sua vida,
conte aqui o seus testemunho de cura, poder e unção, para que o nome do
Senhor seja engrandecido entre as nações, clique aqui e escreva-nos já, pois seus
testemunho ficará aqui guardado em nosso Altar de Testemunhos.

Em suma, na asseguração de novas práticas litúrgicas, o papel do testemunho é basilar.


Não somente porque o testemunho pode ser utilizado como recurso de sobrevivência da ideologia
neopentecostal profundamente mercadológica, mas também como fonte de propagação do
ideário cristão na pós-modernidade.

6
Disponível em: www.ongrace.com.br
7
Disponível em: www.igospel.com.br

114
Para Fairclough (2008), os textos produzem determinados efeitos sobre as pessoas,
oriundos da e determinados pela relação dialética entre o próprio texto e o contexto social em
que está inserido.
As práticas sociais, dentre elas a religião, enquanto formas mais ou menos estáveis de
atividades sociais, são formadas por diversos elementos, dentre os quais figura o discurso como
um elemento que ajuda na estruturação social e se materializa nos textos que, em ACD,
constituem a principal categoria de análise.
Conforme explicita Magalhães (2001), em cada contexto de situação específico relacionado
a determinado evento discursivo de determinada instituição, os participantes do evento lançam
mão de escolhas, de acordo com o campo, as relações e o modo desse contexto específico,
produzindo textos que se vinculam aos gêneros dos discursos os quais, por sua vez, reproduzem
e/ou constroem relações de poder e ideologias nas instituições.
A seguir, discorremos acerca do conceito de comodificação discursiva para depois
analisarmos empiricamente alguns exemplos, que nos autorizam afirmar que o discurso
mercantilizado é legitimado por meio das práticas discursivas da Iurd materializadas no gênero
testemunho religioso em mídia impressa.

Comodificação: o discurso mercantilizado da religião


Segundo Fairclough (2008), a comodificação é um processo que configura-se na
organização de domínios sociais diversos – cujo alvo não é a produção de bens de consumo – em
estruturas de produção, distribuição e consumo: discursos associados com a produção de bens de
consumo colonizam outros discursos institucionais.
O exemplo de comodificação que o autor apresenta é o discurso educacional que oferece
cursos vendidos pela publicidade. Tal como a educação, os “produtos” e “serviços” religiosos
seriam apenas um de uma série de domínios cujas ordens de discurso são colonizadas pelo gênero
publicitário. O resultado é uma proliferação de textos que conjugam aspectos de publicidade com
aspectos de outros gêneros de discurso.
Na concepção de Fairclough (2008), o aparecimento de novos gêneros e a transformação
dos já existentes estão relacionados com mudanças discursivas mais amplas na sociedade
contemporânea.
Um aspecto fundamental dos gêneros é sua mobilidade e tendência à mudança em
processos interdiscursivos. Destacado por Bakhtin (2000), esse aspecto também é enfatizado na
obra de Norman Fairclough (2003, 2008), que aponta a transformação dos gêneros discursivos

115
contemporâneos sob a influência dos processos sociais de desencaixe das práticas
operacionalizado pelo capitalismo globalizado. O foco na interdiscursividade é uma recomendação
que o teórico britânico faz em suas obras publicadas a partir de 1989, em análises de reportagens
de jornais, consultas médicas, textos publicitários, entrevistas políticas e documentos do governo
(institucionais), mostrando a mescla entre o oral e o escrito para firmar uma posição de poder. A
tendência à mudança nos gêneros discursivos atuais se deve, em grande parte, às relações
interdiscursivas, e esse ponto é muito bem lembrado nas práticas sociais globalizadas, como é o
caso da publicidade.
Na ACD a intertextualidade é noção-chave para desvelar a tessitura dos discursos. Para
Fairclough (2008), a relevância do conceito de intertextualidade dentro da teoria proposta pela
ACD está em perfeita harmonia com o foco sobre o discurso na mudança social. Ele comenta que

A rápida transformação e reestruturação de tradições textuais e ordens do


discurso é um extraordinário fenômeno contemporâneo, o qual sugere que a
intertextualidade deve ser um foco principal na análise do discurso [...] O conceito
de intertextualidade aponta para a produtividade dos textos, para como os textos
podem transformar textos anteriores e reestruturar as convenções existentes
(gêneros, discursos) para gerar novos textos (Fairclough, 2008, p.135, destaque do
autor).

A ACD faz distinção entre intertextualidade manifesta e interdiscursividade


(intertextualidade constitutiva). Na primeira se recorre explicitamente a outros textos específicos
em um texto, já na segunda trata-se de como um tipo de discurso é constituído através de uma
combinação de elementos de ordens do discurso (Fairclough, 2008).
Para Fairclough (2008), entre os elementos que estabelecem relações complexas nas
ordens de discurso (gênero, tipo de atividade, estilo e discurso), o gênero é o elemento que
precede em hierarquia aos outros.
Para Bakhtin (2000, p. 282), é indispensável para qualquer pesquisa linguística uma
concepção clara da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso.
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade
do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a
historicidade do estudo, enfraquece o vínculo entre a língua e a vida.
O autor esclarece a estreita relação entre gênero e sociedade utilizando a linguagem
metafórica: “Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso, são as
correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua” (Bakhtin, 2000, p.
285).

116
O testemunho é uma prática bastante antiga e largamente conhecida; é aquilo que se
declara a respeito de uma pessoa ou de um fato, com o objetivo de produzir convicção.
Atualmente o conceito de testemunho se desdobra em vários domínios discursivos, sendo
vastamente tratado no discurso publicitário, no discurso jurídico, no discurso jornalístico, e em
várias teorias da área da Linguagem, dentre estas, a escrita literária denominada “literatura de
testemunho”.
O “testemunho” na propaganda é a melhor e mais eficaz forma de promoção que um
produto ou serviço pode ter, pois é revestida de extraordinária força, principalmente quando este
testemunho é transmitido por alguém de confiança, carrega toda a credibilidade de quem o
propaga. Se um ator ou atriz, um atleta ou até mesmo uma autoridade recomendam o uso de um
produto em um comercial veiculado na mídia escrita ou televisiva, o leitor ou telespectador, que
admira um ou outro, vai passar a comprar o produto.
Cientes do enorme poder de persuasão do testemunho, agências de propaganda, empresas
e instituições passam a “vender” conceitos sobre produtos e serviços utilizando cada vez mais esse
gênero.
No campo jurídico ou do Direito é preciso haver a garantia da verdade do testemunho, pois
dele depende a condenação ou absolvição do réu. A toda testemunha é exigido jurar dizer “a
verdade, nada mais que a verdade”. Este gênero também tem sustentado a fé de fiéis das mais
diversas denominações religiosas.
Por se tratar de fenômenos históricos, atrelados ao contexto cultural e social, os gêneros
discursivos, mesmo que alinhados a um formato “padrão”, apresentam-se igualmente flexíveis,
assumindo contornos, por diversas vezes, bem diferenciados. Assim, é possível percebermos o
surgimento de um conjunto consideravelmente grande de novos gêneros, principalmente os
relacionados à era tecnológica com novos suportes de comunicação, que possibilitam o
aparecimento de novos gêneros, que em sua maioria são herdeiros de gêneros pré-existentes,
comprovando uma das principais características genéricas, a herança sócio-histórica.
Carmo (2001:157), por exemplo, analisando testemunhos veiculados no programa da Igreja
Universal chamado Pare de Sofrer, transmitido pela rede Record de televisão, aponta que os
propósitos deste gênero acabam sendo ressignificados em decorrência dos aspectos publicitários a
que se prestam, transformando-se num nítido caso de comodificação discursiva. Ele afirma: “A
articulação de narração e descrição a partir de uma história ‘empírica’ constitui argumentos que
põem a Igreja Universal como capaz de libertar as pessoas de qualquer mal e instaurar um
ambiente de alegria, saúde e paz [...].

117
Essa tendência à comodificação do discurso explica o caráter híbrido, interdiscursivo do
gênero discursivo testemunho religioso em mídia impressa que é composto por configurações de
diferentes gêneros e discursos. Algumas das mudanças já efetuadas refletem-se na aparência física
dos “testemunhos”: uma configuração de texto multimodal, utilizando várias linguagens ou
semioses – a verbal, a imagética, as cores etc.
A seção ocupa uma página do jornal e organiza-se da seguinte forma: Título: Superação –
Localizado no centro superior, escrito em letras capitais. Abaixo do título, um subtítulo (dá à seção
um caráter de testemunho pessoal): “aconteceu COMIGO”.
Abaixo do subtítulo, em caixa de texto colorida, uma indicação daquilo que o leitor irá
encontrar acima de tudo em toda a seção e em todas as semanas (a intenção é fomentar a
curiosidade do leitor.): “TODA SEMANA VOCÊ VAI ACOMPANHAR, AQUI, HISTÓRIAS
EMOCIONANTES E DRAMÁTICAS DE QUEM ENFRENTOU E VENCEU DESAFIOS”.
Note-se que a marca de primeira pessoa (aconteceu comigo) no início da chamada traz
uma ilusão de veracidade do que se diz. Esse recurso é uma estratégia do locutor para garantindo
à coluna maior força de persuasão, testemunho e veracidade. O fato é que o texto jornalístico
veiculado sob ícone de um depoimento, terá mais credibilidade e legitimidade perante os leitores.
No segundo enunciado, a personalização dos leitores (você), e a direção individualizada a
fiéis potenciais (você e não vocês), simulam uma relação conversacional e, portanto,
relativamente pessoal, informal, íntima, solidária e igual entre a instituição (Folha Universal/Igreja
Universal) e o leitor, a quem ela deseja persuadir. Desse modo, com o uso do pronome “você”, o
locutor encena um diálogo com o leitor e o convida a ler a seção todas as semanas.
A referência direta é usada convencionalmente como marcador de informalidade na
publicidade moderna. A esse respeito, Fairclough (2008) afirma que os textos comodificados,
construídos sobre modelos de publicidade, manifestam comumente aspectos democratizantes
como a informalidade e o discurso conversacional.
Porém, o pesquisador ressalta que essa retirada funciona apenas como uma maquiagem e
mostra sua preocupação com a eliminação de marcadores explícitos de hierarquia e assimetria de
poder em tipos de discurso institucional nos quais as relações de poder são desiguais. Nas palavras
do autor, “detentores de poder e ‘sentinelas’ de vários tipos estão simplesmente substituindo
mecanismos explícitos de controle por mecanismos encobertos” (Fairclough, 2008:251).
Para incrementar um trabalho provocativo e sensacionalista, recursos estratégicos com
fórmulas gráficas são utilizados pelos editores do jornal Folha Universal para provocar reações

118
emocionais e assim atrair a atenção do leitor, seguindo princípios básicos de toda propaganda:
persuadir.
Assim, a seção Superação é formada de um texto escrito mais uma ou até duas fotografias
que chegam a ocupar mais da metade de todo o seu espaço. A reportagem da edição 845,
publicada em 15 de junho de 2008 na página 2i do caderno Folha IURD é um exemplo. A primeira
foto traz como legenda: “CONQUISTA: Depois de tomar conhecimento do poder de Deus,
Alciminio usou a fé, deixou a vida de derrotas e conquistou muitas vitórias”. Apresenta, no
primeiro plano, um senhor de meia idade, em pé, provavelmente em frente a sua casa. Seu corpo
está ereto e ele olha diretamente para a lente da câmera que o fotografa. Em segundo plano,
vemos uma grande piscina, uma casa bem construída, um sobrado com jardim. Temos aí
elementos que compõem o espaço em que o testemunhante se insere.
A segunda fotografia, que ocupa um espaço bem menor, mostra o pátio de uma empresa
de siderurgia, com a seguinte legenda: “NEGÓCIOS: Empresário investe no ramo de siderurgia em
cinco estados”.
As imagens em questão, em harmonia com o título da reportagem “Devia mais de R$ 4
milhões: Participar da Fogueira Santa foi decisão de empresário para mudar de vida” e as legendas
das fotos, deixam pressuposto que o empresário citado na reportagem adquiriu aqueles bens
(mansão, empresa) como resultado de sua participação na campanha da Fogueira Santa 8.
Trouxemos outro exemplo. O texto ocupa um quarto de uma página do jornal, o resto é
ocupado por duas fotos (com legendas que remetem à matéria interna) onde uma senhora
aparece sorridente num escritório e na outra pousa entre dois carros novos em frente a uma
garagem. Na legenda da primeira o destaque em negrito “CONQUISTA: Representação da marca
de perfumes onde Izilda recebe distribuidores”, na segunda sobressai: “CARROS: Bênçãos
conquistadas através da Fogueira Santa” (Edição 843 - 01/06/2008, p. 2i).
Das duas citações feitas do corpus acima, vejamos uma sequência de enunciados
codificados dentro do mesmo campo semântico: “conquista”; “negócios”; “carros” e “conquistou
muitas vitórias”; “empresário investe”; “bênçãos conquistadas”.
Esses enunciados remontam ao mercado, à economia e são incorporados pelo discurso
religioso. Constatamos, portanto, que tal gênero discursivo, de maneira sutil, incita os leitores a
um estilo de vida, despertando neles antes uma necessidade ou desejo de ter algo (carros,

8
Ritual no qual os fiéis são convocados a sacrificar o “seu tudo”. Realizada duas vezes no ano, a campanha é
considerada uma grande prova, em que o fiel tem a oportunidade de testar a sua fé. Envelopes são preenchidos com
ofertas de sacrifício e pedidos e são depositados no “monte Sinai”, representado nas igrejas da Universal (como foi
anunciado no site da Universal ). Disponível em: http://www.igrejauniversal.org.br. Acessado em 30/08/2009.

119
empresas, mansões etc.). Assim, o espaço para o depoimento dos fiéis deixa de ser um simples
relato e passa a ser persuasivo, mercantilista. Essa estratégia discursiva de sedução fica bem
evidenciada nos exemplos abaixo.

Título: “A pobreza tentou apagar meu sonho”


[...]
“Atribuo nosso sucesso profissional aos propósitos de fé que sempre participamos na
IURD”. Além do consultório, o casal alcançou outra vitória: o nascimento do filho. (Edição
832, 16/03/2008)

Título: Determinação é essencial para o sucesso


Subtítulo: Mergulhado em dívidas, médico encontra o verdadeiro caminho para os
objetivos
[...]
Hoje, ele é proprietário de centros clínicos nos municípios de São Gonçalo, Itaboraí e
Araruama, no interior do Rio de Janeiro, e de um consultório próprio na capital, oferecendo
serviços em diversas áreas médicas, contando com uma equipe de aproximadamente 30
especialistas. (Edição 837, 20/04/2008)

Título: Idéia redentora


Subtítulo: Após duas falências e muitas derrotas, empresária faz sucesso em outros países
“Superamos as duas falências que tivemos e as derrotas se tornaram conquistas”, conta.
Tais resultados satisfatórios, segundo Selma, foram alcançados após participar do propósito
da Fogueira Santa (campanha realizada na IURD), do qual ela faz questão de não ficar de
fora até os dias de hoje. “A cada Fogueira Santa, Deus me dá novas inspirações.
Recentemente, adquiri um salão de beleza e estética num dos bairros de alto nível de
Curitiba”, relata. (Edição 858, 22/09/2008)

Nos fragmentos selecionados acima, o sucesso profissional e a prosperidade financeira


detém importante centralidade. Os exemplos comprovam os propósitos comunicativos
comodificados dos editores e evidenciam a lógica eminentemente capitalista que procura
contextualizar a “fé” ao mercado consumidor. A seção Superação, espaço reservado (em tese) aos
testemunhos de fiéis, na prática funcionaria como um mecanismo camuflado para a Iurd divulgar
seus produtos, veiculados sob ícone de depoimentos (ACONTECEU COMIGO), para ter mais
credibilidade e legitimidade perante os leitores do jornal.
Segundo Fairclough (2008:151),

Textos do tipo informação e publicidade ou falar e vender são comuns em várias


ordens de discurso institucionais na sociedade contemporânea. Eles
testemunham um movimento colonizador da publicidade do domínio do mercado
de bens de consumo, num sentido estrito, para uma variedade de outros
domínios.

120
Dessa forma, as pessoas são atraídas para os templos com a promessa de algum ganho,
seja ele de caráter físico, emocional ou financeiro. Com isso até mesmo a “fé” tem se
transformado em um bem de consumo, um objeto de leilão: leva quem dá o maior lance. Ou um
tipo de “título de capitalização celestial”: sua oferta rende juros e correção monetária e se tiver
sorte alguns prêmios extras, do tipo: carros importados, apartamentos na praia, sítios e fazendas,
e uma empresa, é claro. Campos (1999:362) afirma:

Nos templos da Iurd, os consumidores religiosos escolhem aqueles produtos que


mais se relacionam com suas necessidades e arquiteturaram em sua própria
cabeça o produto desejado, conforme as suas aspirações. Isto é, a Igreja Universal
oferece um Kit contendo os ingredientes de um produto retrabalhado no
imaginário do ‘consumidor’. O preço a ser pago para a satisfação dos desejos na
Iurd é monetarizado. Daí a importância em sua pregação de temas como
‘sacrifício do dinheiro’, ‘ofertas de amor’, pois ‘dar o dízimo é candidatar-se a
receber bênçãos sem medida’, repete o fundador (destaques do autor).

A mescla de informações sobre o depoimento e publicidade pode ser interpretada como


um modo de reagir ao dilema que instituições como igrejas enfrentam no mercado moderno. Nos
testemunhos, os fiéis ressaltam frequentemente a importância de terem encontrado a Igreja
Universal, e com isso terem as suas vidas transformadas, atingindo a prosperidade financeira. A
lógica do mercado (concorrência) fica evidenciada quando implicitamente Cristo salva, cura, faz
prosperar os que o aceitam na Iurd. O leitor, portanto, deve ir lá para ser abençoado. Se o leitor
seguir “hoje” os exemplos apresentados nas reportagens da seção Superação do jornal Folha
Universal, o seu “amanhã” será o tempo de apropriação das promessas. Esta estratégia é muito
usada na publicidade: “Eu sou você amanhã”.
Para Fairclough (2008:151),

Setores da economia fora da produção de bens de consumo estão, de modo


crescente, sendo arrastados para o modelo dos bens de consumo e para a matriz
do consumismo, e estão sob pressão para “empacotar” suas atividades como bens
de consumo e “vendê-las” aos “consumidores”.

A comodificação, de acordo com o autor supracitado, não é um processo particularmente


novo, mas recentemente ganhou força e intensidade como um aspecto da “cultura empresarial”.
Observa-se que essa cultura vem se concretizando cada vez com maior força no campo religioso, à
medida que os fiéis passam a ser vistos como clientes. Isso tem feito com que as instituições
religiosas se tornem cada vez mais atrativas, e seus serviços precisam agradar cada vez mais os
consumidores, acirrando a concorrência no mercado religioso cada vez mais. No intuito de atrair

121
uma determinada “clientela”, as instituições tendem a mostrar que a religião pode ser algo
lucrativo, bastando que os fiéis frequentem regularmente a igreja, que se “vende” através do
discurso “marketizado” como uma instituição diferenciada, e contribua financeiramente.

Considerações finais
Tradicionalmente, o testemunho consistia no relato de alguma benção alcançada.
Continha, portanto, informações relativas ao problema enfrentado pelo depoente e a sua solução.
O objetivo era a glorificação do nome de Deus. No modelo comodificado, o objetivo seria divulgar
uma marca (instituição) e “vender” seus produtos.
Trata-se, portanto, de um tipo de texto jornalístico com propriedades publicitárias, ou seja,
expõe um fato, relata um acontecimento com intenções explícitas de promoção mercantil. Assim,
podemos dizer que o gênero discursivo testemunho religioso em mídia impressa tem como
propósito comunicativo divulgar algum produto ou serviço, no caso específico, a própria Iurd e
seus produtos (Fogueira Santa etc.), aproveitando-se de algumas propriedades da linguagem
jornalística, com intenções explícitas de promoção mercantil. Portanto, a função comunicativa
deste gênero é híbrida: informa para vender e vende para informar. Essa dubiedade confere ao
depoimento/produto uma nova forma de ação e interação com o público, despertando o desejo
pelo produto/serviço anunciado, impelindo o leitor/consumidor à ação (procurar a Iurd).
Essa prática discursiva liga o discurso religioso ao discurso ideológico do capitalismo de
mercado, fazendo surgir, como resultado desta fusão, a Teologia da Prosperidade, cuja ênfase
principal está na barganha com Deus, em que o fiel contribui e Ele o devolve com juros, correção
monetária e muito lucro.
Os resultados apontam para a indicação de que o uso da nova configuração do testemunho
atende não só às demandas espirituais, como também às exigências de mercado, estimulada que
está pela cultura do consumo propagada pela mídia. Usam o testemunho como mais um recurso
para seus interesses, utilizando as massas como fonte de consumo, audiência, manipulação,
sujeição e exploração.
Em suma, a recente evolução dos “testemunhos” é um reflexo das “pressões” sofridas
pelas igrejas no sentido de se adequarem às condições do mercado “vendendo” os seus “cultos” e
fazendo uso de técnicas discursivas provenientes da área da publicidade.

122
Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.
______. Estética da criação verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CAMPOS, Leonildo Silveira. A Igreja Universal do Reino de Deus, um empreendimento religioso


atual e seus modos de expansão (Brasil, África e Europa). Lusotopie, 1999. pp. 355-367

CARMO, Cláudio Márcio do. A hibridização e a constituição do discurso evangélico na mídia


televisiva. IN: MAGALHÃES, Célia (org.). Reflexões sobre a Análise Crítica do Discurso. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, 2001.

CRUZ, Eduardo Rodrigues da. A persistência dos deuses: religião, cultura e natureza. São Paulo:
UNESP, 2004.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Izabel Magalhães Brasília: Editora
UnB, 2008.

MAGALHÃES, Célia (org.). Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo Horizonte: Faculdade
de Letras, UFMG, 2001.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo,


LOYOLA, 1999.

TAVOLARO, Douglas. O bispo: a história revelada de Edir Macedo. São Paulo: Larousse do Brasil,
2007.

123
VINDE APÓS MIM, E EU VOS FAREI PRÓSPEROS: A CULTURA “PROMOCIONAL” OU
“DE CONSUMO” NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DA IGREJA UNIVERSAL

Derli Machado de Oliveira (UFRN)


Doutorando em linguística aplicada

Dra. Cleide Emilia Faye Pedrosa (UFRN)

Esta pesquisa situa-se na Análise Crítica do Discurso (ACD), com vertente social, cuja ênfase está
na inter-relação entre discurso, poder, ideologia e mudanças nas práticas discursivas e sociais.
Iremos discutir como a prática discursiva religiosa – tomando como foco de observação e análise a
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), acabou por ser "colonizada" pelos discursos e valores
típicos do mercado. Apoiamo-nos principalmente nos estudos de Fairclough (2001), a propósito
dos aspectos de “promoção”, e mais especificamente da “autopromoção”. O corpus do trabalho é
constituído por dois testemunhos publicados na seção Superação do jornal Folha Universal em
2008, nos quais o tema central é a prosperidade financeira dos fiéis. Verificamos que as
estratégias de promoção da imagem da instituição na seção são bastante recorrentes e apontam
para a intenção da IURD em destacar sua importância como prestadora de um serviço à
população: a intermediação entre Deus, o fiel e retorno material abundante.

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, discurso pomocional, discurso religioso, Igreja


Universal

Introdução
Atualmente, o discurso mercantilista se alastra por diversos campos da sociedade. Como
consequência de tal “colonização”, observa-se que as práticas discursivas com finalidade
promocional vêm passando por um contínuo estado de mudanças no sentido de se aprimorarem
cada vez mais. De acordo com Fairclough (2001), a “função promocional” tem colonizado uma
variedade de discursos.
Mergulhados num contexto sócio-histórico caracteristicamente neoliberal, muitos
domínios discursivos, não necessariamente lucrativos, como o religioso, vêem-se investidos
ideologicamente pelo discurso capitalista de modo que suas práticas sócio-discursivas acabam
refletindo crenças e valores tipicamente neoliberais. Assim, igrejas da era pós-moderna recorrem
a táticas de marketing para oferecer um produto em situação competitiva de mercado e atrair
cada vez mais novos fiéis.
Diante desse quadro, valemo-nos da análise empírica de testemunhos publicados na seção
Superação do Jornal Folha Universal da Igreja Universal do Reino de Deus, demonstrando sua
constituição eminentemente híbrida ao trazer o discurso promocional camuflado. Os dados

124
sinalizam para uma hipótese segundo a qual a atual tendência de misturas de elementos do
discurso promocional à ordem de discurso religioso propiciada pela mídia é reflexo da tendência à
comodificação (do inglês commodity, mercadoria) discursiva apontada pelos estudos críticos do
discurso.
Segundo Fairclough (2008), a comodificação é um processo que configura-se na
organização de domínios sociais diversos – cujo alvo não é a produção de bens de consumo – em
estruturas de produção, distribuição e consumo: discursos associados com a produção de bens de
consumo colonizam outros discursos institucionais.

A sociedade do consumo e as tentações do mercado da fé


Fairclough (2008), discutindo a relação entre discurso e mudança social, argumenta que as
ordens do discurso estabelecidas hoje pelas instituições são as do consumo, tecnologia e
democracia. Levando em conta esse quadro, o autor argumenta, por exemplo, que a nova ordem
sócio-econômica baseada no domínio social do consumo influencia, sobremaneira, todas as
esferas sociais, causando uma relexicalização da linguagem e novas formas de agir e interagir
socialmente, resultando numa cultura promocional do discurso. A matriz dessa nova linguagem
promocional é o evento discursivo tratado como bem de consumo, elaborado com base no
discurso estratégico do marketing publicitário.
Desse modo, a sociedade contemporânea pode ser caracterizada pela cultura do consumo.
De acordo com Marshall (2003: 100),

A sociedade capitalista atinge um estágio em que o consumo torna-se quase uma


religião, que condiciona e organiza a vida econômica, com reflexos gerais em
todas as outras esferas da vida privada. Numa época em que se acirram
novamente os fundamentalismos, o modo de vida consumista assume ares muitas
vezes de devoção e fanatismo.

Dessa forma, o consumismo pode ser concebido como uma prática social. Conforme a
análise de Bauman (1998: 222), “*...+ na sociedade pós-moderna e orientada para o consumidor,
os indivíduos são socialmente formados sob os auspícios dos papéis de quem procura o prazer e
acumula sensações *...+”.
Segundo o mesmo autor, na pós-modernidade as pessoas buscam “produtos simbólicos”,
adaptados a sua situação peculiar. Procuram também a satisfação de necessidades materiais e

125
típicas de uma sociedade consumista. Dessa forma, “as pressões culturais pós-modernas
intensificam a busca de “experiências máximas” (BAUMAN, 1998: 223).
Portanto, o homem pós-moderno, ávido por “experiência máxima”, tornou-se o grande
filão do mercado. Atento a isso, líderes religiosos criaram novos movimentos, e com eles uma
nova mentalidade religiosa. Nessa nova formatação, não é mais necessário aguardar os bênçãos
num paraíso futuro, a preocupação básica agora é com prosperidade, saúde e felicidade aqui e
agora.
Nessa perspectiva, as leis da religião passam a praticar o idioma da mercadoria e a
submeter tudo a essa engrenagem mercantilizadora. A publicidade, por sua vez, portadora dos
interesses do capital, pressiona a religião a operar na mesma lógica, submete-a as mesmas regras
e valores.
Segundo Marshall (2003:99),

Uma das molas desse processo vem da publicidade, que otimiza o mundo
simbólico criado pelos meios de comunicação, principalmente a televisão e a
internet. Junto com as araras e os balaios de produtos, os consumidores passam a
adquirir também imagens, símbolos e fantasias, embrulhados pelo mundo virtual
da supracultura midiática.

Inseridas nessa sociedade do consumo, as igrejas pós-modernas acabam impregnadas por


“produtos” integrantes da engrenagem do consumo. A indústria da fé precisa oferecer
diariamente um cardápio sempre renovado, marcado permanentemente pela novidade. Num
primeiro momento, o evangelho vira mercadoria, oferecido em outdoors, faixas, propagandas e
outras formas de mídia. Num segundo momento a fé vira mercadoria, que submete seu valor de
uso ao valor de troca. Num terceiro momento o próprio Jesus vira mercadoria. E num momento
final, os próprios fiéis viram mercadorias, através das notícias, dos testemunhos.

As práticas discursivas com intuito promocional


Cultura “promocional” ou “de consumo: assim alguns estudiosos têm caracterizado a
cultura contemporânea (Wernick, 1991; Featherstone, 1991, apud Fairclough, 2001). Segundo
Fairclough (2001), a “função promocional” tem colonizado uma variedade de discursos.
Mas o que é cultura promocional? O conceito de cultura promocional, na concepção do
referido autor

126
pode ser entendido em termos discursivos como a generalização da promoção
como função comunicativa *...+ o discurso como um veículo para a “venda” de
bens de consumo, serviços, organizações, idéias ou pessoas – através das ordens
do discurso (FAIRCLOUGH, 2001: 44).

Para Fairclough, as consequências da generalização da promoção para as ordens de


discurso contemporâneas são radicais. Ele alerta para o fato do gênero de propaganda de
consumo estar colonizando as ordens de discurso do serviço profissional e público em grande
escala. Ele cita como exemplo o gênero dos prospectos universitários contemporâneos.

A mercantilização das práticas discursivas das universidades é uma dimensão da


mercantilização da educação superior num sentido mais geral. As instituições de
educação superior vem cada vez mais operando (sob a pressão do governo) como
se fossem negócios comuns competindo para vender seus bens de consumo aos
consumidores. (FAIRCLOUGH, 2001:47, destaque do autor).

Ressalta ainda o mesmo autor sobre os efeitos patológicos que a colonização do discurso
pela promoção pode produzir nos sujeitos além de implicações éticas importantes.

Estamos, é claro, todos constantemente sujeitos ao discurso promocional, a ponto


de haver um problema sério de confiança: posto que muito do nosso meio
ambiente discursivo é caracterizado por uma intenção promocional mais ou
menos aberta, como podemos ter certeza do que é autêntico? (FAIRCLOUGH,
2001:45).

Como consequência patológica o autor enfatiza a dificuldade cada vez maior que as
pessoas têm de não se envolverem em promoção, não só porque a autopromoção tem se tornado
parte do trabalho, mas também porque ela está se tornando parte integrante da autoidentidade.
Fairclough sugere que “o alastramento colonizante do discurso promocional produz, assim,
problemas sérios para o que poderíamos razoavelmente chamar de ética da linguagem e discurso”
(FAIRCLOUGH, 2001:46).
O caráter mercantil e promocional da religião, apesar de sempre existente na história das
religiões, acirrou-se sobremaneira com o advento do “capitalismo”, sobretudo recentemente com
as igrejas neopentecostais. Neste sentido, a IURD constitui-se em um exemplo de grande eficácia
na utilização das estratégias de marketing, sendo este um dos principais motivos de seu sucesso
no “mercado religioso”.

127
Segundo Campos (1997), o elemento novo que o movimento iurdiano trouxe para o
fenômeno do pentecostalismo foi a estratégia de marketing que, até então, somente era utilizada
de uma forma muito reduzida e não sistemática.
Ao trazer para o campo da religião as estratégias de marketing, a Igreja Universal não fez
mais do que realizar um procedimento familiar a todas as atividades sociais que produzem coisas
(mercadorias), tangíveis ou intangíveis, que tenham como objetivo, em última instância, a venda.
Desta forma, tal como uma empresa, a igreja também deve lançar mão de técnicas de
administração e marketing que a torne mais eficiente. Do contrário, uma igreja concorrente
poderá as utilizar, tomando o seu espaço no mercado.
Analisando a proposta de marketing da Igreja Universal, Campos (1997:224) observou que:

Cada produto iurdiano, embora faça parte de uma “família de produtos”, é uma
espécie de iceberg que aponta para uma visão de mundo, consubstanciada num
grupo de idéias centradas ao redor da expressão “Cristo salva, cura, faz prosperar
os que o aceitam na Igreja Universal do Reino de Deus”. O produto básico é uma
idéia operacionalizada por intermédio do despertar da fé, fato possível de
acontecer, principalmente nos templos, onde todos os ritos ofertados objetivam
ativar nos indivíduos, sentimentos já presentes, porém nem sempre capazes de
gerar atitudes e comportamentos, tais como otimismo, esperança, certeza.

Desse modo, o marketing utilizado pela Igreja Universal introduziu uma série de
ingredientes e estratégias responsáveis por um novo surto de expansão do campo religioso, mais
particularmente do pentecostalismo, entres estas: 1) o cálculo no planejamento das novas
comunidades; 2) uma segmentação do mercado por meio de uma classificação de acordo com
suas diferentes necessidades e desejos dos consumidores; 3) a apresentação de produtos
simbólicos padronizados, adaptáveis aos vários segmentos; 4) o desenvolvimento de uma retórica
de modo a diferenciar os produtos vendidos; 5) a consideração das necessidades do consumidor,
realizando o produto de acordo com as mesmas; e 6) a utilização dos meios de comunicação de
massa, como o rádio e a TV, entre outros. (CAMPOS, 1997).

Apresentação e análise do corpus


Tendo discorrido sobre a teoria, passemos à apresentação e a consequente análise do
corpus. Serão analisados dois textos completos (edição 847 de 29/06/2008; edição 852 de
8/08/2008) e um fragmento da edição 851 de 27/07/2008. Todos são de testemunhos publicados
na seção Superação do Jornal Folha Universal. Junto com a TV Record e a Rádio Aleluia, a Folha

128
Universal completa uma tríade de grandes meios de comunicação muito eficazes utilizados pela
Igreja Universal. O jornal, que hoje supera a marca de 2,3 milhões de exemplares, é distribuído
semanalmente por todo o Brasil, gratuitamente.
Com uma linha editorial heterogênea, de caráter secular e religioso, a Folha Universal
possui também objetivos variáveis, visam desde a informação, evangelização, diversão e até
mesmo a politização dos seus leitores, os quais pertencem a todos os níveis sociais.
Atualmente o jornal é disposto em dois cadernos. O primeiro deles coloca a disposição do
leitor os fatos políticos, econômicos e científicos. Contempla ainda a seção cultural e esportiva,
internacional e regional e comentários dos bispos da IURD. O segundo caderno denominado Folha
IURD destaca os fatos relacionados à Igreja Universal, entre eles a coluna Superação, objeto de
nossa análise, destinada aos testemunhos de fiéis que afirmam haver prosperado em
consequência da sua fé.
Os exemplos se apresentam estruturados como texto jornalístico assinado por jornalistas
(Anna Carolina Devay e Ana Carolina Sousa, respectivamente).
Há dois tipos de linguagem presentes na seção: verbal e não-verbal. A parte verbal
propriamente dita se compõe de textos bem objetivos, com títulos atraentes, que aludem ao
conteúdo informacional. Os títulos são grafados em negrito e essa forma de apresentação aguça a
curiosidade e provoca interesse no leitor. Os enunciados estão ligados por uma relação
cronológica e lógica; há uma transformação entre uma situação ou estado inicial e a situação ou o
estado final. A tessitura textual alterna discurso direto e indireto.
É impossível dissociar intencionalidade de apresentação, sendo assim, convém
ressaltarmos que, em se tratando de seção cuja intenção é relatar um fato e persuadir o leitor, a
interlocução com o não-verbal é importante, trazendo maior credibilidade à informação
transmitida. Daí os recursos semióticos da publicidade como a apresentação de fotos legendadas
(carros, casas, empresas etc.) ocuparem uma grande parte da seção. No exemplo 1 (abaixo), o
testemunhante aparece numa foto ao lado de um carro de luxo.

Exemplo 1
TÍTULO - Reviravolta: Empresário supera perdas financeiras e aumenta ainda mais seu
patrimônio
Por Anna Carolina Devay
redacao@folhauniversal.com.br
Conforme as declarações do empresário Amandio Soares Ferreira, participar da Fogueira Santa
de Israel (campanha realizada na Igreja Universal) e de propósitos de fé em favor da vida
financeira, foi primordial para que ele desse uma reviravolta nos negócios (1). A iniciativa,

129
segundo ele, surgiu depois que os empreendimentos começaram a degringolar (2). “Eu tinha
sete postos de gasolina e caí para dois, tinha carros, barcos, só faltava ter avião, mas os
negócios não estavam bem e perdi o que possuía”, lembra (3). Amandio nasceu num lar
tradicional católico, mais tarde passou a freqüentar igrejas evangélicas, mas, como disse, não
sabia lutar através da fé inteligente para atingir o objetivo desejado, fato que aprendeu na
Igreja Universal (4).
Resultados
Hoje, como resposta da perseverança e fé que tem, ele é proprietário de postos de gasolina
em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro (4). “Os resultados não acontecem
como um toque de mágica, mas, sim, gradativamente (5). Não fosse a força que o Senhor Jesus
nos dá, nada conseguiríamos (6). Posso dizer que obtive uma transformação significante em
minha vida, consegui vencer e, hoje, só tenho a agradecer”, conclui Amandio, que freqüenta a
Catedral Mundial da Fé, em Del Castilho (7).
(Edição 847, 29/06 – 05/07/2008, destaques nossos)

Começaremos nossa análise pelo título. A manchete “Reviravolta: Empresário supera


perdas financeiras e aumenta ainda mais seu patrimônio” traz uma associação lexical entre
vocábulos que pertencem ao campo semântico do mercado: “empresário”; “perdas financeiras” e
“patrimônio”. Esses traços textuais marcam uma mudança histórica importante na natureza e nos
objetivos dos “testemunhos religiosos”, alinhada com as mudanças maiores da religião cristã que
discutimos anteriormente: o caráter mercantil da religião. Esse quadro de mudanças sociais
propicia o aparecimento de novas atividades por meio de novas práticas discursivas.
Entre as novas tendências discursivas, merece destaque a "relexicalização" (FAIRCLOUGH,
2008), que consiste na utilização de termos historicamente associados a outras atividades e
relações, como estratégia de legitimação de deslocamentos de sentido, na maioria das vezes
inscritos no movimento de "comodificação",

Processo pelo qual os domínios e as instituições sociais, cujo propósito não seja
produzir mercadorias no sentido econômico restrito de artigos para venda, vêm
não obstante a ser organizados e definidos em termos de produção, distribuição e
consumo de mercadorias (FAIRCLOUGH, 2008:255).

Para a Análise Crítica do Discurso, além da análise dos aspectos gramaticais, é crucial
examinar as escolhas lexicais, as lexicalizações selecionadas na produção textual, e se há
atribuição de novos significados as palavras já existentes (relexicalização) ou criação de palavras.
Criar novas palavras significa construir novos significados e codificar novos itens lexicais.
Fairclough (2008:237) apresenta o exemplo da cirurgia cosmética, com um vocabulário inovador

130
(melhoria de rugas, afinamento do nariz). É em parte o vocabulário técnico que confere à cirurgia
cosmética “o status prestigiado de uma terapia com base científica”.
Na prática discursiva da Igreja Universal é possível observar a relexicalização do termo
“culto”. O fiel não vai mais à igreja para cultuar, adorar a Deus, vai para participar de
“campanhas”, “correntes”, “propósitos”, por exemplo.
O primeiro enunciado da reportagem, o qual traz alguns termos grifados propositadamente
por nós, apresenta explicitamente elementos do gênero de propaganda prestigiosa ou de
corporação: “Conforme as declarações do empresário Amandio Soares Ferreira, participar da
Fogueira Santa de Israel (campanha realizada na Igreja Universal) e de propósitos de fé em favor
da vida financeira, foi primordial para que ele desse uma reviravolta nos negócios”.
Como recurso de linguagem, o texto utiliza o discurso indireto para introduzir a fala do
testemunhante. A escolha do tipo de discurso (direto, indireto) é motivada por propósitos
comunicativos. Nesse caso, a presente estratégia persuasiva (de marketing) visa conferir mais
credibilidade a quem quer vender (promover) um produto: o testemunho real dá uma sensação de
“comprovação”.
Uma vez que os “cultos” da IURD são oferecidos como serviços (campanhas, propósitos), a
prática discursiva promocional proclama o nível de excelência da instituição em causa – dirigida,
sobretudo, à sociedade como um todo - e oferece seus serviços como caminhos melhores, mais
eficientes, pelos quais o fiel-consumidor dará uma “reviravolta” na sua vida emocional, física e
material (muito mais nessa última, evidentemente).
A “Fogueira Santa de Israel”, tema principal do excerto destacado acima, é um ritual no
qual os fiéis são convocados a sacrificar o “seu tudo”. Realizada duas vezes no ano, a campanha é
considerada uma grande prova, em que o fiel tem a oportunidade de testar a sua fé. Como foi
anunciado no site da Universal1, envelopes são preenchidos com ofertas de sacrifício e pedidos e
são depositados no “monte Sinai”, representado nas igrejas da Universal.
Agora, observemos o enunciado (4), que também traz alguns termos grifados por nós:
“Amandio nasceu num lar tradicional católico, mais tarde passou a freqüentar igrejas evangélicas,
mas, como disse, não sabia lutar através da fé inteligente para atingir o objetivo desejado, fato
que aprendeu na Igreja Universal”.
Neste excerto, estão, entre outras, pressupostas as seguintes construções ideológicas:
a) A fé católica não é inteligente
b) A fé de outras igrejas evangélicas também não é inteligente

1
Disponível em: http://www.igrejauniversal.org.br. Acessado em 30/08/2009.

131
c) A fé inteligente só está disponível na IURD
d) Assim como Amandio, o leitor também precisa frequentar a IURD para aprender a ter fé
inteligente.
Podemos observar neste recorte a evidência na competitividade entre a IURD e as outras
instituições do ramo (igreja católica e demais igrejas evangélicas), quando a primeira tenta
mostrar-se superior. Em sintonia com o referido enunciado, a foto que ilustra este exemplo, na
qual o empresário posa ao lado de uma camioneta importada, foi publicada com a seguinte
legenda:

VITÓRIAS: DAS PERDAS AS RECONQUISTAS. O EMPRESÁRIO AMANDIO FERREIRA ATRIBUI


TUDO AO USO DA FÉ INTELIGENTE (grifo nosso).

As palavras em destaque acima parecem evidenciar um dos mais novos produtos


oferecidos pela IURD: a “fé inteligente”. Esse novo conceito de fé (relexicalizada) tem sido
veiculado também nas pregações e em outras publicações. Sob o título “Orientação Necessária:
cuidar do corpo é sinal de fé inteligente” (grifo nosso), a coluna Ciência da revista A Visão da Fé,
publicada pela IURD, edição n 06, ano 1 – janeiro 2008, pg. 16, Anna Carolina Devay, a mesma
colunista que redigiu o texto usado no primeiro exemplo, orienta o leitor a ter qualidade de vida
cuidando bem da saúde com visitas periódicas ao médico.
Quando cita a expressão “fé inteligente”, nota-se que não se admite qualquer crença
religiosa ou qualquer religião. Essa nova modalidade de fé (uma tipologia da lei de Gerson: “gosto
de levar vantagem em tudo, certo”) só está disponível nas “prateleiras” da IURD, afinal, o sucesso
depende restritamente à Igreja Universal. Nenhuma outra, pois, só a IURD dispõe da “fé
inteligente”. Neste caso, remete-nos ao discurso utilizado pela propaganda. Seria a restrição a um
determinado produto e aponta aquele como o objeto responsável por transformar o sujeito em
um ser “inteligente” caso o produto seja adquirido.
No excerto abaixo, extraído de outra edição, é possível observar a mesma estratégia
discursiva:

Ela tentou solucionar os problemas buscando ajuda nas religiões, mas garante que todas as
tentativas foram em vão.
(Edição 851, 27/07/2008)

132
O exemplo supracitado ressalta implicitamente e explicitamente a ineficiência de outras
religiões. Quando cita “outras religiões”, por trás disso existe a questão ideológica, que é o ataque
a possíveis adversários. A IURD desqualifica a eficácia desses cultos para buscar neles “fatias” de
fiéis do mercado religioso para ampliar seu domínio. Dessa forma, o enunciador constrói o seu
“receptor alvo”, e que é aquele que lança mão dos serviços espirituais dessas religiões.
Nesse caso, a instituição IURD toma o testemunho como pretexto para atacar outras
manifestações de religiosidades, como por exemplo, a igreja Católica e igrejas evangélicas
tradicionais, que se constituem em práticas de religiosidades concorrentes.
Ao usar o testemunho, a fala do outro, o enunciador IURD, enquanto parte interessada,
distancia-se do protagonismo, no qual poderia caracterizar seus interesses de mercado. Assim,
delega o processo de desqualificação das outras religiões a uma operação enunciativa, uma
produção jornalística que é confiada a alguém nomeado pela instituição para tal fim, os próprios
fiéis testemunhantes.
Dando prosseguimento à análise do primeiro depoimento, o texto destaca, num primeiro
momento, a história do testemunhante que acaba de experimentar uma transformação,
qualificada como “reviravolta”. A ênfase se dá em dois tempos: no “passado” e no “presente”, no
“ontem” e no “hoje”, no “antes” e no “depois”. O “antes” é sinônimo de miséria econômica: “Eu
tinha sete postos de gasolina e caí para dois, tinha carros, barcos, só faltava ter avião, mas os
negócios não estavam bem e perdi o que possuía”, lembra (3). E o “depois” apresenta o sucesso
material sob o título resultados.
Trazemos, com o intuito de situar o leitor, fragmentos do texto usado como exemplo até
aqui.
Resultados
Hoje, como resposta da perseverança e fé que tem, ele é proprietário de postos de gasolina
em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro (4). “Os resultados não acontecem
como um toque de mágica, mas, sim, gradativamente (5). Não fosse a força que o Senhor Jesus
nos dá, nada conseguiríamos (6). Posso dizer que obtive uma transformação significante em
minha vida, consegui vencer e, hoje, só tenho a agradecer”, conclui Amandio, que freqüenta a
Catedral Mundial da Fé, em Del Castilho (7).

Percebemos no exemplo supracitado marcas cronológicas explícitas (no corpus, com


destaque nosso, a palavra hoje totalizou duas ocorrências), encaminhando o leitor para a
importância do tempo em sua consideração.
A importância dos advérbios é evidenciada pela sua significação, a escolha semântica
quanto ao vocabulário que o editor empregou. O uso dos advérbios vai dar a tônica de um dos

133
tópicos cruciais desse discurso quando o editor chama a atenção para a transformação da vida dos
fiéis. As narrativas começam sempre com uma dificuldade e terminam com um final feliz.
O contraste temporal ontem-hoje é usado no texto de forma estratégica para ressaltar as
mudanças na vida do testemunhante, e o “hoje” possui os ganhos e benefícios prometidos como
recompensa.
Cabe aqui ressaltar que esse “depois” só acontece após a entrada do “depoente” na Igreja
Universal do Reino de Deus. A frequência de algumas palavras, principalmente os adjetivos –
depreciativos quando se fala sobre a vida anterior à “conversão” e positivos após a conversão,
conforme exemplo acima, é ponto que também merece destaque, pois são termos que buscam
sempre a persuasão.
As narrativas começam sempre com uma dificuldade. No exemplo, o testemunhante teve a
iniciativa de procurar a IURD “depois que os empreendimentos começaram a degringolar (2) [...]
os negócios não estavam bem e perdi o que possuía” (3). Portanto, o cenário é de total derrocada
financeira.
E quando tudo parece perdido, a IURD entra em ação, tornando o final da história feliz,
conforme o enunciado: “Posso dizer que obtive uma transformação significante em minha vida,
consegui vencer e, hoje, só tenho a agradecer”, conclui Amandio, que freqüenta a Catedral
Mundial da Fé, em Del Castilho (7).
Dessa forma, o testemunho-publicidade, neste viés, passa a estimular as necessidades e
interesses do leitor/consumidor, tendo como argumento atributos, vantagens, benefícios, como
também pode ser verificado no segundo exemplo.

Exemplo 2
Título: Vida sem dívidas
Subtítulo: Casal sofre fracasso financeiro mas participa de propósitos e recupera as perdas
Por Ana Carolina Sousa
redação@folhauniversal.com.br

São inúmeros os motivos que levam uma pessoa à Igreja Universal do Reino de Deus [01]. Um
deles é o fracasso na vida financeira [02]. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Marlene José
Cabral Soares e Élcio Aparecido Soares, ambos de 37 anos [03]. (FATO, ACONTECIMENTO)
Quando o casal de trabalhadores autônomos chegou à IURD (PROMOÇÃO) não possuía nada
além de dívidas [04]. Marlene relembra aquele momento difícil da vida [05]:
“Trabalhávamos muito e não crescíamos *06+. Morávamos de favor em apenas dois cômodos e
nossos filhos adoeciam constantemente [07]. Com isso, o pouco dinheiro que entrava era
gasto com médicos e remédios [08]. Nosso casamento também estava desgastado por brigas e
traições” *09+.

134
A mudança aconteceu quando chegaram à IURD (PROMOÇÃO) [10]. Aprenderam sobre a
importância do dízimo e participaram de campanhas e propósitos (PROMOÇÃO) [11]. Hoje, a
família comemora o casamento feliz, os filhos saudáveis e a próspera vida financeira [12].
“Somos muito abençoados em todos os sentidos *13+. Nossa família é unida e não temos
doenças [14]. Conquistamos quatro caminhões, pois trabalhamos com comércio de frutas
(PROMOÇÃO). Temos casa própria, um lote e carro de passeio”, conclui Marlene *15+.
(EDIÇÃO 852, 8 de agosto de 2008, destaques nosso)

Percebemos no exemplo acima que o texto traz a mesma estrutura temática: fracasso e
sucesso; como era antes e como é agora.
O texto traz informações acerca dos fiéis, mas procura, neste cenário informativo, divulgar
produtos oferecidos pela IURD: “Aprenderam sobre a importância do dízimo e participaram de
campanhas e propósitos” *11+.
Embora veiculadas no espaço para o depoimento do fiel, no exemplo fica evidenciado a
promoção de produtos ou serviços, como a divulgação das campanhas oferecidas pela IURD e suas
vantagens e benefícios, em destaque nos enunciados [13], [14] e [15], despertando o interesse do
público leitor/consumidor: “Somos muito abençoados em todos os sentidos. Nossa família é unida
e não temos doenças. Conquistamos quatro caminhões, pois trabalhamos com comércio de frutas.
Temos casa própria, um lote e carro de passeio”, conclui Marlene.
A mescla de informações sobre o depoimento e publicidade pode ser interpretada como
um modo de reagir ao dilema que instituições como igrejas enfrentam no mercado moderno.
Segundo Fairclough (2008:151),

setores da economia fora da produção de bens de consumo estão, de modo


crescente, sendo arrastados para o modelo dos bens de consumo e para a matriz
do consumismo, e estão sob pressão para 'empacotar' suas atividades como bens
de consumo e 'vendê-las' aos 'consumidores'.

A concorrência no mercado religioso está cada vez mais acirrada. Isso tem feito com que as
instituições religiosas se tornem cada vez mais atrativas, e seus serviços precisam agradar cada vez
mais os consumidores. As pessoas são atraídas para os templos, com a promessa de algum ganho,
seja ele de caráter físico, emocional ou financeiro. Com isso até mesmo a “fé” tem se
transformado em um bem de consumo, um investimento do tipo “título de capitalização celestial”:
sua oferta rende juros e correção monetária e se tiver sorte alguns prêmios extras, do tipo: carros
importados, apartamentos na praia, sítios, fazendas, e uma empresa, é claro.

135
Considerações finais
Na seção Superação da Folha Universal os argumentos autopromocionais ficam evidentes.
Há uma manchete no estilo de propaganda chamativa. Além dos elementos gerais de propaganda
de bens de consumo, há elementos do gênero de propaganda prestigiosa ou de corporação.
Nas marcas desses recortes percebemos a interferência na natureza religiosa (e mesmo em
sua narrativa) feito por técnicas de propaganda. Implicitamente o leitor ficará persuadido a entrar
na Igreja universal para ver sua história de vida transformada.
Nos testemunhos, os fiéis ressaltam frequentemente a importância de ter encontrado a
Igreja Universal, e com isso ter a sua vida transformada, atingindo a prosperidade financeira. O
que se destaca é a estratégia da coluna Superação, justamente aquela que é organizada pela
redação, que é nomear as “causas” que conferiram ao fiel a prosperidade, a cura, a libertação,
enfim, a reviravolta em sua vida.
O leitor, portanto, deve ir lá para ser abençoado. Se o receptor seguir “hoje” os exemplos
apresentados nas reportagens da coluna Superação do jornal Folha Universal, o seu “amanhã”
será o tempo de apropriação das promessas. Esta estratégia é muito usada na publicidade: “Eu
sou você amanhã”.
Desse modo, o testemunho, uma forma antiga e espontânea de compartilhar a fé, carrega
atualmente em seu bojo a intenção intrínseca de promoção. A instituição toma o testemunho
como pretexto para divulgar seus “produtos”.
Esse misto de testemunho-publicidade, produzido pelos editores ou pela área de redação,
objetiva diretamente a busca da divulgação da instituição. A evocação de um espaço jornalístico
consegue dar foro de credibilidade e legitimidade ao testemunho e à marca, à empresa, ao
serviço, ao produto, propagado no depoimento.
Cabe aqui ressaltar que, durante a nossa pesquisa, observamos que a seção Superação
apresenta os depoimentos de pessoas que entraram na igreja e prosperaram, mas não diz quantas
entraram e ainda continuam no mesmo estado de penúria.
Constatamos, portanto que o “testemunho” deixou de ser uma prática espontânea para
ser algo manipulado por essas instituições, transformando-se em “testemunho-propaganda”, um
verdadeiro marketing religioso. A IURD utiliza o “testemunho” como uma poderosa arma de
disseminação da sua principal ideologia: a Teologia da Prosperidade, cujo principal apelo é: “Vinde
após mim, e eu vos farei prósperos”.

136
Referências

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.

CAMPOS, L.S. Teatro, Templo e Mercado: Organização e Marketing de um Empreendimento


Neopentecostal. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.

FAIRCLOUGH, Norman. A análise Crítica do discurso e a mercantilização do Discurso Público: as


Universidades. In. MAGALHÃES, Célia (org.). Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, 2001, p. 31-82.

______. Discurso e Mudança Social. Tradução de Izabel Magalhães Brasília: Editora UnB, 2008.

MARSHALL, Leandro. O jornalismo na era da publicidade. São Paulo: Summus, 2003.

137
O ESPAÇO ACADÊMICO E SEUS CONFLITOS: UMA ‘REPÚBLICA DOS BONS
SENTIMENTOS’?

Dina Maria Martins Ferreira (Unicamp/Sorbonne V)

Elabora-se uma reflexão crítica sobre o discurso e a prática acadêmicas diante da vida comum. De
um lado, um espaço reservado aos deuses olímpicos que não fazem mais parte do espaço dos
simples mortais. E nesse par dicotômico, ‘divino’ acadêmico e ‘humano’ mortal, constituem-se
vetores de força política, criando “socialidades” não mais da ordem de “potências” sociais, mas
pela total negação destas: “Para responder ao descompromisso e ao recuo, cuida-se da imagem.
Fala-se mais à paixão do que à razão, e, quando das reuniões, o espetáculo, que frequentemente
deve contentar-se com o papel da vedete do teatro rebolado” (Maffesoli, 2006). E pela violência
dessa crítica, propõe-se a possibilidade de um recuo de determinadas políticas, como forma de
reabilitar o vitalismo humano que parece estar sendo massacrado pelo espaço da intelligentsia6. A
discussão se dirige à identidade do acadêmico, que isolado no tatame de lutas políticas, não se
integra aos movimentos das potências revitalizadoras da sociedade em que habita. A reflexão se
desenvolve em três temáticas que se entrecruzam para um discurso crítico sobre a Academia: a
primeira trata da dialética de um par ‘duplo’: poder e política versus potência e vitalismo; a
segunda sobre a relação do pesquisador com a vida comum; e a terceira pela prática científica que
aponta dois tipos de conflitos − o atulhamento do saber refletindo-se no amontoado de papéis e a
relação entre prática e teoria.

Palavras-chave: espaço acadêmico, vitalismo e poder, ciência e vida comum, teoria e prática

Fazer ciência não é apenas estabelecer-se


nos centros das abstrações,
que apenas privilegiam a razão.
Ciência pode (e deve) ser
um modo de intervenção no mundo [...]
(Kanavillil Rajagopalan e Dina Ferreira, 2006: 7).

De fato, são poucos os acadêmicos [...] que tentam


escapar ao peso intelectual de suas castas e
que recusam o mimetismo dos preconceitos estabelecidos.
Poucos, pois é difícil, até mesmo
perigoso, não ter o cheiro da matilha.
A exclusão ameaça sempre aqueles
que não marcham na mesma cadência
ou aqueles que pensam de viés.
Ortodoxia, quanto nos dominas!
(Michel Maffesoli, 2009:24)


2º pós-doutoramento (2009/2011), IEL/UNICAMP, Brasil, e Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, França; 1º
pós-doutorado pela UNICAMP/IEL (2002-3003); doutora pela UFRJ (1995), mestre pela PUC/RJ (1983). É membro
pesquisadora da Unicamp, IEL, Departamento de Linguística e da Sorbonne V, Centre d’ Études sur les Actuels et le
Quotidien). dinaferreira@terra.com.br
Este artigo reflete parte das pesquisas do 2º pós-doutoramento, algumas delas já apresentadas em outros congressos.
6
Intelligentsia é o termo utilizado por Maffesoli (2009) para indicar as comunidades acadêmicas, políticas e
jornalísticas, mas que nesse estudo apenas se refere ao espaço acadêmico.

138
Um esquecimento vaidoso
Quando se propõe perguntar se o discurso acadêmico se realiza em uma “república dos
bons sentimentos”, localizo o pensador sociólogo-antropólogo Michel Maffesoli que se faz
presente não só pelo título de sua obra, edição brasileira, A república dos bons sentimentos
(2009), como também pela posição crítica em relação ao mundo da ortodoxia, do racionalismo e
das teorias. Evidentemente, nesse título o sentido de ‘república’ se esvai um pouco para o mundo
platônico (apesar de não nos atermos à sua filosofia), por ironizarmos sobre a constituição de uma
comunidade ideal e perfeita. Pela atitude irônica, procura-se levantar algumas reflexões que deem
conta de uma “república” que não tem nada de bons sentimentos, cujos conflitos intra-muros
refletem o distanciamento da academia frente o lá-fora da vida comum.
A inteligibilidade, sendo o vetor constitutivo da identidade acadêmica, transforma essa
própria inteligibilidade em majestade provida de vaidade exacerbada: “Somos capazes de ‘ver
roupas mágicas’ apenas para sermos ‘inteligentes’ aos olhos dos outros, mesmo que isso nos torne
ridículos” (Reis, 2006: 4). E nessa exacerbação a relação entre vida comum e ciência se esfacela.
Nega-se a potência do vitalismo em prol do exercício do poder e da política.
Em negando o vitalismo, nesse espaço, constituem-se “tribalismos” (Maffesoli, 2006) como
motivo de identidade e de pertença a um grupo, que se configuram por articulações de forças, em
que as de “poder” anulam as “potências” sociais que ali poderiam estar circulando.
A crítica violenta de Maffesoli chega à derrisão, ou seja, “composição de *...+ traços físicos,
práticas presumidas, pretexto para formulações deselegantes, jogos de contraposição [que] ferem
a manutenção da existência” (Courtine citado em Martins Ferreira, 2006: 147). E Courtine (2003:
24) complementa a violência irônica formadora da derrisão, pois ela vem “qualificar e
desqualificar os conteúdos, medir seu impacto, soldar seus efeitos”. Instaura-se, assim, a
dicotomia entre o ‘divino’ acadêmico e o ‘humano’ mortal da vida comum, como se a prática
científica fosse apropriação de deuses olímpicos que não fazem mais parte do mundo dos simples
mortais. Como diz Maffesoli (2006: 95),

para responder ao descompromisso e ao recuo, cuida-se da imagem. Fala-se mais à


paixão do que à razão, e, quando das reuniões, o espetáculo de variedades é muito mais
importante do que o discurso da personalidade política, que frequentemente deve
contentar-se com o papel da vedete do teatro rebolado (itálicos acrescidos).

139
Segundo a filosofia desse pensador, muitas vezes, seria ideal um recuo de determinadas
políticas, esperando eu que isso seja possível, como forma de reabilitar o vitalismo humano que
parece estar sendo massacrado pelo espaço da intelligentsia (Maffesoli, 2006: 94). A discussão se
dirige à identidade do acadêmico, que isolado no tatame de lutas políticas, não se integra aos
movimentos das potências revitalizadoras da sociedade em que habita.
Na realidade, teríamos quatro categorias que constituiriam um par ‘duplo’: poder e política
versus potência/vitalismo. De um lado, no duplo poder-política não se pode delinear qual é a
locomotiva de seus movimentos, porquanto entraríamos na velha história: Quem vem primeiro? O
ovo ou a galinha? Poder se estabelece pelo jogo político e é no jogo político que o poder se
instaura. Ambos semeiam simultaneamente o terreno fértil de atuação, com suas regras, acordos
e combinações. De outro lado, o par potência e vitalismo humanos se completam e se amalgamam
para uma perspectiva compreensiva e ad infinitum do dia a dia.
O paradoxo que se estabelece entre o par duplo – poder e política / potência e vitalismo –
está no esquecimento ‘vaidoso’ de que tal par ‘duplo’ são encenações que só podem montar o
seu palco se os atores estiverem em vida. Ou melhor, querendo ou não, a pessoa-ator formador
da ciência respira o vitalismo social, que, ao negá-lo, exclui as potências que poderiam nutri-lo. Aí,
talvez, a construção da grande aporia do poder acadêmico, já que “competência e apetência
caminham lado a lado” (Maffesoli, 2005: 29), ou seja, o saber científico (competência) é
construído por pulsão vital (apetência); afinal o cientista reside no exterior social que sobrevive
pela potência intrínseca.

Poder político acadêmico e o tribalismo


Para entender o movimento do poder acadêmico e o esvaziamento da potência vitalista,
recorro à língua inglesa para mostrar que tipo de política é essa que atravessa o poder da
intelligentsia. Os termos que sustentam nossa argumentação são: “politics” e “policy”, que
explicam o “espetáculo de variedades” (Maffesoli, 2006). “Policy” estaria para um plano de ação e
“politics” referir-se-ia a opiniões, valores ou princípios políticos que vão reger o plano de sua ação.
Logo, o que chamamos de política tanto é uma práxis, quanto políticas de representação que
advêm de sua ação, ou seja, valores, interesses e acordos que vão reger as práticas (Martins
Ferreira, 2006).
O que até então chamei de intelligentsia expando para “tribalismo acadêmico”, mas aquele
tribalismo em que a “vedete” encontra o seu lugar de pertença. De um lado, podemos entender
tribalismo como “agregações que vão acentuar a dimensão afetiva e sensível” (Maffessoli,

140
2006:127), e de outro, “associações contratuais e racionais [...] com estratégias e finalidades
(Maffesoli, 2006:127). E nos parece que é no segundo tipo de tribo que podemos designar o
agrupamento acadêmico, já que estratégias e finalidades podem tender às articulações políticas
do poder. E por essa categorização tribal pode-se justificar a anulação da potência no espaço do
poder. Enquanto o poder se enclausura no político, a potência é movimento de vida, que se
esparge na massa ignorada pelo poder. A potência estaria na vida comum, no cotidiano em que
indivíduos se movimentam independentemente do poder político. E fica o questionamento: como
“vedetes” políticas podem aderir ao saber comum das massa? No Olimpo, a tribo acadêmica
delineia sua identidade pelas guerras entre egos divinos. A divindade científica nega até seu lado
antropomórfico, pois o que importa são as “personae” imortais, com seus papéis e funções. E,
como habitam um espaço estratosférico (senão olímpico), prescindem do vitalismo, afinal são
imortais. Não é à toa que os intelectuais da Academia de Letras no Brasil, por exemplo, são
condecorados como Imortais – mas ‘morríveis’1 – como se a atemporalidade dos tratados
científicos não estivessem situados no tempo e espaço de suas subjetividades narrativas.

Isolamento acadêmico e o saber comum


Se a ciência só habita no tratado, o produtor do tratado mora dentro da intellgentsia
esquecendo o lá-fora das potências sociais. E como fica o saber comum diante do saber científico?
É no tatame da luta pelo hegemômico que a ciência em seu papel de pensar sobre a vida, sobre a
língua(gem), sobre os fenômenos sociais esquece que está em vida. E nessa exclusão de vida, o
saber comum vira a ‘lata de lixo’ da ‘nobreza real’ do mundo acadêmico:

É preciso escutar mais o leigo e prestar atenção à sabedoria popular, se quisermos


manter um diálogo profícuo no qual contextos aparentemente diferentes − leigo e
acadêmico − possa mostrar sua interação − que, aliás, existe, apesar de algumas
controvérsias. A ciência pensa a vida, e como tal, pensar sobre a vida não elimina
pensar em vida. É um engodo criar um espaço estratosférico para a vida da
ciência, pois sem o oxigênio vital que nos cerca podemos parar de respirar e de
nos alimentar da vida (aliás, não é este o objeto maior da ciência?). Pensar sobre
indica distanciamento, pensar em indica mergulho. No entanto, ambas as
posições comungam no pensar: não há como excluir ramos de uma mesma teia
(Rajagopalan, 2003:13).

1
O termo ‘morrível’ decorreu de uma brincadeira, em um jantar com o Prof. Evanildo Bechara, da Academia Brasileira
de Letras, em um evento sobre Lusofonia (2010). Perguntando eu, para ele, como se sentia como imortal, me
responde: imortal mas ‘morrível’. Os risos se espalharam.

141
Ao se fixar apenas em descrever e não em sentir e olhar para fora sobre o que descreve,
muitas vezes, o cientista vai perdendo contanto com o cotidiano da vida, e, consequentemente,
diluindo os referentes, sejam fenomenológicos, sejam pragmáticos ou empíricos. O que se
estabelece fora do cogito é considerado “impuro”, já que na academia só referentes “puros”
podem constituir o universo da ciência (Rajagopalan, 2003). O que se chama de mundo “puro” é o
mundo da abstração, que, como o próprio termo em latim abstraher indica, significa separação:
“Abstrato é o que está separado. Portanto, abstrato é o que está separado da referência, isto é, da
realidade concreta” (Dolhnikoff, 2007:serial). Não é a toa que Walter Benjamim (1992) pontua
sobre uma linguagem original a qual chama de linguagem adâmica, cuja perda corresponde à
perda do paraíso. Já Hegel (citado em Forster, 1992) reforça a questão de pureza, pois alia ao
adâmico da ciência a propriedade de um saber absoluto, cujo pensamento também absoluto não
leva em conta as contingências da finitude que nos cerca no espaço e tempo sociais em que nos
situamos.
Um fragmento ilustra tal problemática: Einstein aponta o desgosto diante da pretensa
superioridade da ciência e seus amontoados de saberes:

A comunidade dos pesquisadores é uma espécie de órgão do corpo da


humanidade. Esse órgão produz uma substância essencial à vida que deve ser
fornecida a todas as partes do corpo, na falta da qual ele perecerá. Isso não quer
dizer que cada ser humano deva ser atulhado de saberes eruditos e detalhados,
como ocorre frequentemente em nossas escolas nas quais [o ensino das ciências]
vai até o desgosto. Não se trata também do grande público decidir sobre questões
estritamente científicas. Mas é necessário que cada ser humano que pensa tenha
a possibilidade de participar com toda lucidez dos grandes problemas científicos
de sua época, mesmo se sua posição social não lhe permite consagrar uma parte
importante de seu tempo e de sua energia à reflexão científica. É somente
quando cumpre essa importante missão que a ciência adquire, do ponto de vista
social, o direito de existir (Einstein, citado em Tageblatt, 2005:5) (itálicos
acrescidos).

Einstein denuncia o profissional que se perde na quantidade de saberes, sem dirigir seu
olhar para a potência social, restringindo-se apenas a dados necessários para alçar o Olimpo
acadêmico. Surge aí, como denuncia Einstein, um dos efeitos da asfixia da ciência que se opera no
espaço acadêmico: o “atulhado” do quantitativo. Na problemática do quantitativo três
perspectivas podem ser abordadas. Primeiro, o acadêmico é avaliado pelo volume de papéis que
fabrica, pois há que legitimar a multiplicação do conhecimento, o que o faz mergulhar no mundo
da paráfrase, sem produzir o novo. Nesse amontoado parafrástico, houve-se ironicamente a piada
de corredor: se eu ganhasse na proporção de papéis que manejo, estaria rico. Segundo, a
correlação da quantidade de escritos à quantidade de objetos de saber; a cada escritura
142
parafrástica, criam-se pretensamente múltiplos objetos de saber. No entanto, cada escritura não é
necessariamente um novo objeto de saber, pode ser uma releitura do objeto. Roland Barthes
(1974) nos auxilia com a idéia de que cada releitura é uma primeira leitura, ou seja, ressignificar o
texto não é obrigatoriamente apresentar um novo objeto, mas possivelmente apresentá-lo sob
nova ótica. Por esse foco, atingimos a terceira perspectiva da valoração do quantitativo, que se
avoluma ao propiciar a cada objeto de saber novas representações. O atulhamento do saber
ganha um lamento frente a um desejo não realizado:

A tese do representacionalismo é, ao mesmo tempo, uma lamentação e uma


expressão de desejo. Ela é um gesto de lamentação porque afirma a incapacidade
dos seres humanos de apreenderem o mundo numenal tal e qual [...] Por outro
lado, ela também é uma expressão de um desejo,
pois elege como condição ideal da linguagem a total transparência (Rajagopalan,
2003:31) (itálicos acrescidos).

Apesar de (a) representacionalismo ater-se à teoria de linguagem, sua dinâmica


conceitual pode ser aqui reutilizada para explicar o pesquisador que dá a seu objeto de
pesquisa aparência de ciência, ou seja, derivações representacionais que se agrupam em
montes aleatórios. Ele quer de qualquer maneira que seu objeto apresente-se; mas, como essa
epifania científica nem sempre é possível ou alcançada, constrói ilusoriamente um amontoado
de representações.
Derrida (1999) nos possibilita continuar nessa reflexão de amontoado representacional ao
oferecer o que chama de “metafísica da presença”, ou seja, nenhum texto pode aspirar a um
sentido estável, o sentido está sempre em decentramento, pois o rompimento entre
significante e significado é constante; pensa-se que há uma essência do significado, quando
apenas temos a ilusão de suas presença. E por esse caminho, o pesquisador pensa que seu
objeto de estudo é o centro essencial do saber, que, na realidade, é a ilusão de sua presença.
Ou seja, a busca de representação configura o desejo da total transparência, que,
impossibilitada de ser alcançada, torna-se a lamentação de um desejo não realizado.
E de uma forma mais violenta em termos retóricos Maffesoli (2009:22) denuncia nesse
mundo parafrástico o estabelecimento de uma ‘ordem’ imposta à produção científica:

[...] quando alguém acredita, com toda boa-fé, estar propondo uma análise
original, não faz mais do que servir uma sopa requentada, talvez temperada com
algumas côdeas de pão de sua própria fatura. No conjunto, nada de muito
apetitoso. [...] Tudo isso é de um tal conformismo que qualquer espírito, por
pouco informado que seja, esforça-se por desobedecer as imposições das
patronesses que as proferem (itálicos acrescidos).

143
Pelo amontoado de saber – remanejamento parafrástico de papéis escritos, atulhamento
de objetos e inúmeras representatividades do objeto – talvez Roland Barthes (s/d) nos ofereça
um conforto dentro dessa ilusão:

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em
que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a
idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o
remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos
saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem,
creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem
complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum
poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, o máximo de sabor
possível. (Barthes, s/d: 47).

Parece-me que, se o cientista aceitar que sua ciência está na produtibilidade e não na
reprodutibilidade, o vitalismo poderia emergir no espaço da intelligentsia.

Conflitos na prática científica


Continuamos na dicotomia do puro e do impuro, do absoluto e da contingência. Só que
estamos agora nas políticas de uma relação dialética entre a dissenção entre o saber acadêmico e
as questões que afetam as pessoas na vida comum, ou seja, entre o mundo das teorias e a prática
da vida.
Para ilustrar tal dissenção, utilizamo-nos de dois fragmentos discursivos. Primeiro o texto
de Gilberto Dimenstein, jornalista da Folha de São Paulo, intitulado “Paulo Mesquita contra a
Violência”, que relata sobre a experiência do cientista político Paulo Mesquita na Universidade
Columbia, por ocasião de seu doutoramento. O tema de sua pesquisa, inicialmente, era o papel
dos militares na transição democrática no Brasil. Mas..., como diz um fragmento do texto
jornalístico,
a Universidade Columbia ficava perto do Harlem, bairro negro e hispânico, em
cuja década de 80, era símbolo da violência nova-iorquina”. *O doutorando+
começou a vivenciar que o mundo dos livros estava distanciado do mundo
cotidiano que o rodeava. E naquele enorme cenário de testes em questões de
segurança, Paulo Mesquita foi alterando o seu foco de interesse e acabou
estudando mais intensamente a polícia (Dimenstein, 2004: 19) (itálico acrescido).

Segundo, o fragmento de Rajangopalan (2003:79) que aborda a luta identitária entre áreas
do conhecimento,
144
Há quem entenda que a declaração de autonomia da linguística aplicada deve ter como
contrapartida uma perfeita divisão de trabalho entre aqueles que trabalham na
linguística “pura” e os que optaram pela nova disciplina, recém-inaugurada. Além da
conotação indesejável de “impura” (pela simples exclusão) que tal oposição engendra,
há um perigo de que isso leve alguém a concluir que a lingüística aplicada não precisa
se preocupar mais com o trabalho teórico.

Pergunta-se o que tem a vida acadêmica com a vida cotidiana, e porque a ‘briga’ pelo
hegemônico entre teoria pura apregoada na linguística a impura a que a linguística aplicada muitas
vezes é considerada. Os pares se constituem pelos próprios estereótipos que se acumulam em
suas paralelas. Academia e teoria atuam no mundo abstrato, da mente, do universo olímpico; e o
cotidiano e a prática no mundo concreto, do corpo, da experiência, do universo comum. Trata-se
de um impasse para muitos de nós, acadêmicos, que visam quebrar fronteiras, na busca de ‘entre-
espaços’2:

[Paulo Mesquita pelas calçadas do Harlem] saiu, portanto, do mundo asséptico


dos livros e das leituras acadêmicas para colocar ideias em prática. A experiência
já lhe está ensinando como é difícil fazer a ponte entre a vida acadêmica e ação.
‘No mundo acadêmico, dizem que estou muito pragmático. No mundo
‘pragmático’, dizem que sou muito acadêmico (Dimenstein, 2004:19).

Por que não um tertium quid? Não com o sentido de ficar em cima do muro, sem agência
efetiva, mas um percurso, em que “puro” e “impuro” possam caminhar juntos, cujo primeiro lugar,
ou seja, quem veio primeiro, dependerá da posição em que se encontra o sujeito científico.
O mundo das leituras acadêmicas e dos livros não precisa ser considerado asséptico, mas,
mesmo que o consideremos como tal, é este atributo asséptico que faz o cientista intervir; e, se a
leitura e conhecimento fazem intervir, deve-se requalificar o que Dimenstein (2004) chama de
asséptico. Talvez o que o jornalista chame de mundo asséptico seja o do império da teoria, no qual
liturgias escravizam dados a modelos teóricos, quando estes poderiam instrumentalizar uma
posição de organização da desorganização dos dados da vida, que solicitam subsídios operacionais
para sistematizá-los, possibilitando seu trânsito no mundo da ciência. O império da teoria não é
proprietário do universo adâmico e da inteligibilidade, ou seja, o saber acadêmico não é um centro
abstrato e vagante no mundo. Este mundo adâmico é utopia, tanto que Paulo Mesquita, o
habitante da academia, é mordido e sacudido pelo vírus do cotidiano, a violência do Harlem, ou
seja, a violência que o cercava à época de seu doutoramento. Dimenstein (2004:19) completa ao
dizer que “ a experiência já lhe está ensinando como é difícil fazer a ponte entre a vida acadêmica
2
‘Entre-espaços’ é uma alusão ao termo “entre-lugar” de Homi Bhabha (1998), que vai ser abordado mais adiante.

145
e ação”. Verifica-se, então, a impossibilidade de separar a vida acadêmica, com suas abstrações
teóricas, da vida cotidiana, com sua prática e experiências vividas.
Se delimitamos as liturgias acadêmicas aos centros teóricos, por uma questão de espaço,
as práticas de vida habitariam as bordas? Ou simplesmente nem existiriam? E mesmo que
déssemos à linguística aplicada, por exemplo, novos norteamentos, como disse Rajagopalan
(2003) para adquirir, talvez, o status de “pura”, nem assim centro e bordas deixam de se
comunicar.
Dois exemplos justificam o movimento da teoria à prática e da prática à teoria. O primeiro
relata que a partir de uma sentença teórica resolvo uma questão prática. Na volta do trabalho, em
um ônibus fretado, um cheiro desagradável exala dos fundos onde se localiza o banheiro. De tão
desagradável, um cientista renomado diz: − já que não posso mudar a referência altero o sentido
−; abre sua pasta de trabalho, segura um vidro de VickVaporUbi e passa em suas narinas,
oferecendo o paraíso aos demais passageiros. O referente era a escatologia que ali se fazia
presente, o primeiro sentido era o odor desagradável, que foi transformado em outro sentido pelo
uso da pasta de hortelã, agora o segundo sentido. O segundo exemplo é a lei de Newton da
gravitação universal: a experiência ‘simplória’ de uma maçã caindo no chão e não voando
culminou em teoria que a seu tempo tornou-se revolucionária.
Esses dois exemplos nos remetem à pergunta: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? A
indagação e os exemplos nos indicam que a postura de exclusão − ou da teoria em relação à
prática ou da prática em relação a teoria − é uma questão de posição de olhar o mundo ou, senão
até, de posicionamento identitário: criam-se centros hegemônicos que refletem políticas de
representação de acordo com os interesses do transeunte-cientista, que se aloca em determinado
tempo e espaço.

Exclusão e inclusão
Primeiramente, acho importante indicar que não estamos em nossas indagações criando
hostilidades e muito menos um estardalhaço: “não há nada verdadeiro, sábio, humano ou
estratégico em confundir hostilidade à injustiça e à opressão, [...] com hostilidade à ciência e à
racionalidade, o que é uma tolice” (Albert, citado em Sokal & Bricmont, 1999:13).
O leitor deve naturalmente estar se perguntando se os abusos de paráfrases, se o volume
de produção sem inovação de conhecimento “nascem de uma fraude consciente, de autoengano
ou de uma combinação de ambos” (Sokal & Bricmont, 1999:20). Essas questões específicas sobre
atitude e intenções de determinados pesquisadores não são parte de nossa proposta. Não

146
estamos no embate proposto por Sokal e Bricmont (1999) em relação a intelectuais de renome. A
nossa proposta é um ‘pensar crítico’ sobre a postura acadêmica do pesquisador em relação ao
saber, ou seja, desvelar o cotidiano acadêmico, no qual estamos incluídos e do qual somos
testemunhas de fazeres realizados às escuras nos intra-muros.
Se o sujeito se encontra submerso nas tentativas de representação, como fica o fazer
conhecimento? Será que o mundo da paráfrase não está criando uma estagnação do
conhecimento, ou seja, um universalismo antiprodutivo em que o paradigma epistêmico se
assentaria? Será que a cisão entre prática e teoria não esconde a potência da vida que alimenta as
construções das próprias teorias? Parece que hegemonias trabalham para a exclusão. O termo
“epistemicídios” (Boaventura (2006, p. 313) revela justamente um “paradigma epistemológico
assente numa versão extrema de universalismo antidiferencialista”, em que as diferenças de
conhecimento e de objetos de saber são excluídos em prol da hegemonia da quantidade de
celulose escrita e da abstração científica. O sistema inclusivo só admite a quantidade e abstração
teórica. De ambos os lados dizeres cáusticos:  Publico, logo existo, Penso, logo teorizo, Penso,
logo tenho inimigos.
Se não priorizarmos as hegemonias, optando pelo “renversement” (Derrida, 1999), talvez
possamos chegar à ecologia do saber: convívio entre teoria e prática e entre o saber comum e
saber científico. Uma coisa é optar por um caminho (ou vários, quem sabe?), posição que não
exclui, até pelo contrário, coloca o conhecimento no universo saudável das diferenças. Contestar e
não concordar com determinada posição teórico-prática é admitir a diferença; negar sua
existência é habitar o mundo do antidiferencialismo.
Uma outra perspectiva em prol do diferencialismo é pensar o

conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da ação


humana projetada no mundo a partir de espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo
é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica.” (Santos,
2006:77),

ou seja, fazer do conhecimento um percurso de inovação, permitir-se a transgressões


metodológicas, cujo processo discursivo resulte em uma “personalização do trabalho científico”
(Santos, 2006:79). A paráfrase e o amontoado do saber ou só prática ou só teoria atendem ao
estilo unidimensional, pois a dinâmica do conhecimento está na possibilidade diferencialista.
Parece-me que essas brigas estão muito mais para políticas de representação tanto da
identidade do sujeito acadêmico quanto do movimento do conhecimento. O pesquisador se vê

147
dentro de um stock identitário em que uma das identidades é assumida, ou de produzir papel, ou
de estar no mundo da paráfrase, ou estar submisso a teorias, ou ser um livre pensador, ou ser um
pensador comedido e assim vai. E diante de tais identificações acadêmicas, muitas vezes uma das
identidades é reivindicada pelas circunstâncias do salve-se-quem-puder carreirista.
Pode-se, então, equacionar esta questão entre pesquisador e conhecimento como um jogo
político de exclusão e inclusão. Se o pesquisador se mantém no centro da produção de paráfrase,
dá-se a exclusão do conhecimento e se o pesquisador não aderir à quantidade pode ser ele o
excluído; se um saber teórico admite sua prática deixa o seu status científico e se a prática faz
parte da teoria, esse se torna “impura”. São as escolhas do pesquisador, as circunstâncias
acadêmicas que vão caucionar o que/quem se inclui e se exclui. O que se percebe é que esse
movimento de inclusão e de exclusão no que tange o pesquisador e o conhecimento é uma
dinâmica política em que os fatores são determinados pelos interesses e habilidades de momento.

O ‘bonde-andando’ no “entre-lugar”
Ampliando as lutas do tatame acadêmico, duas colocações aqui se presentificam: “bonde-
andando”3 e “entre-lugar” (Bhabha, 1998). Trata-se de uma construção metafórica, sem dúvida,
mas proposital, como forma de construir desconstruindo dicotomias, porquanto ao usar uma
linguagem do cotidiano argumento pelo mundo abstrato da ciência.
A expressão “bonde-andando” conteria duas idéias. Primeiramente, o “bonde” seria o
lugar histórico em que o pesquisador-cientista se insere: o tempo e o espaço em que habita, o
território de sua agência e de sua pertença enquanto sujeito. Segundo, é também um bonde entre
tantos outros bondes que esse lugar histórico oferece − escolho um ou outro para subir e viajar,
troco de bonde, logo troco minha posição e meu olhar. No emaranhado de movimentos, ou seja,
no espaço histórico de pertença identitária há outras redes de movimentos para além de uma
macro cronologia histórica. O sujeito pesquisador-cientista está sempre situado, e seu olhar sobre
o objeto do saber depende em qual bonde sobe, que, por sua vez não para, e acolhe outros
sujeitos, com outros olhares e posições. Segundo, o termo “andando”, justamente, ratifica que
esse(s) lugar(es)-bonde(s) não são fixos e sim contingenciais. A presença do cientista no bonde
depende do lugar onde se encontra quando o bonde passa. E dependendo de seu lugar e de seu
assento, escolhidos e disponíveis, o olhar do cientista ou foca a prática que o leva à teoria, ou
carrega a teoria que o faz focar determinada paisagem de vida que o vidro da janela oferece.

3
A categoria “Bonde-andando” é um neologismo de caráter metafórico, criada pela autora para dar conta de que
tempo e espaço fazem parte da posição do cientista-pesquisador, ou seja, sua inscrição no momento histórico e seus
movimentos contingenciais.

148
No entanto, o lugar acadêmico, muitas vezes, está no lamento do representacionalismo,
pois não consegue alcançar e fazer de seu bonde um espaço epifânico centralizador, pois esquece
que ele balança na contingência das histórias e de muitos outros “bondes-andando”.
E é na luta pela hegemonia, por exemplo, entre teoria e prática que o “entre-lugar” atua.
Para Bhabha (1998, p. 20), o “entre-lugar” é o lugar dos sujeitos que “são os excedentes da soma
das partes das diferenças”, um lugar do

além [que] significa distância espacial, [que] marca um progresso, [ e que] promete o
futuro; no entanto, *...+ − o próprio ato de ir além − são incognoscíveis, irrepresentáveis,
sem um retorno ao “presente” que, no processo de repetição, torna-se desconexo e
deslocado (Bhabha, 1998: 23).

E talvez aí estejam as razões das hegemonias que habitam os pares conflituosos −


academia/vida comum e teoria/prática −, em que sujeitos, com sua bagagem de saber, são
excluídos, porquanto são considerados excedentes no descompasso das diferenças.

Ponderações
Talvez precisemos ler ou reler O Deus de Pequenas Coisas (Roy, 1998) para aprender com
Rahel e Estha: eles descobrem que as coisas podem mudar num só dia, que as vidas podem ter seu
rumo alterado e até assumir novas formas. São representantes do vitalismo geridos pela potência
cotidiana. É uma obra que justamente nos mostra que os olimpos do absoluto não têm lugar na
potência social, local dos mais ínfimos e frágeis pormenores.
Junto com Rahel e Estha, intervenho na cisão que se estabelece entre academia e saber
comum, pela expressão de Beaudrillard (1985) “eletricidade estática” ao conceituar a massa
silenciosa da sociedade, onde talvez se encontre o saber comum da vida ordinária. Se mudarmos a
posição do olhar – do lá-fora social para o olimpo acadêmico −, os simples mortais também não
classificariam a academia como uma “eletricidade estática”? Se aceitarmos a inversão das lentes,
os pesquisadores e o saber científico se constituiriam de uma massa desconhecida e silenciosa
pelos simples mortais. De tanto de autovalorar pelas inteligibilidade, o acadêmico põe a venda nos
olhos para a vida comum, esquecendo as águas dos rios da vida que os alimentam. Essa
reinterpretação de “eletricidade estática” explicaria a cisão entre a ‘nobreza científica’ em
detrimento do ‘lixo cotidiano’, pois simbiotiza dois sentidos que, em princípio, constituem uma
aporia. Como “eletricidade”, que pressupõe movimento, pode ter o atributo “estático”, algo que

149
não se mexe? Por que não sermos uma ‘eletricidade elétrica’, ou seja, aderir ao vitalismo das
potências que podem traduzir conhecimento, quebrando o silêncio da ciência?
Alguns pensadores, inclusive Einstein, Maffesoli e Rejagopalan, lutam pelas potências
que deveriam habitar a ciência. Mas a aporia manifesta-se, pois a crítica precisa do fetiche para
combatê-lo. A expressão na citação anterior de Einstein – substância essencial  tenta deslocar o
centro do saber pelo processo de “renversement” (Derrida, 1999), ou melhor, apontar o que foi
recalcado e valorizá-lo: decentramento da ‘realeza’ olímpica da ciência, como um lugar
excludente do saber comum. Será que a relação entre ciência e saber comum é (ou ainda só é)
uma questão do “indecidível” (Derrida, 1999)? Seja qual for o caminho do decentramento,
evitemos a já mencionada expressão de Boaventura Santos (2006:332), “epistemicídios”
(epistem(e) + (su)icídios), e encaremos o conhecimento como “condições de possibilidade da
ação humana projetada no mundo” (Santos, 2006: 77), condições de possibilidade
transformadas no vitalismo das potências que todos temos dentro de nós.

Referências

Barthes, Rolan. Aula. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. São Paulo: Cultrix, s/d.

Baudrillard, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas, o Fim do Social e o Surgimento das Massas.
Trad. Suely Bastos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Benjamim, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política (pref. Theodor W. Adorno). Trad.
Afonso de Dinis Lisboa. Lisboa: Relógio d’Àgua, 1992.

Derrida, Jacques. Gramatologia. Trad. Renato Janine Ribeiro e Miriam Chnaiderman. São Paulo:
Perspectiva, 1999.

Gilberto Dimenstein, Gilberto. “Paulo Mesquita contra a Violência”, Folha de São Paulo, de 31 de
agosto de 2004, no Caderno Sinapse, p. 19.

Dolnikoff, Luis. A arte difícil de Moacir Amêncio. Revista 18 – Centro Cultura Judaica, VII, no. 27,
2007. Disponível: www.revista18.uol.com.br , último acesso em junho de 2009.

Forster, Michael N. Hegel’s Idea of a Phenomenology of Spirit. London: The University of Chicago
Press, 1998.

Maffesoli, Michel. A República dos Bons Sentimentos. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo:
Iluminuras/Observatório Itaú Cultural: 2009.

_____. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa. 4.ed. Tradução
de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Universitária, 2006.

150
_____. Elogio da Razão Sensível. Tradução de Albert Cristophe Migueis. Petrópolis/Rio de Janeiro,
Brasil: Vozes. 2005.

Martins Ferreira, Dina Maria. In: Rajagopalan, Kanavillil e Martins Ferreira, Dina Maria. Políticas
em Linguagem: perspectivas identitárias. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2006.

Rajagopalan, Kanavillil. Por um linguística crítica. São Paulo: Parábola, 2003.

Reis, Humberto “A roupa nova do rei, reflexões sobre o que não queremos ver”. 2006. Disponível:
www.hrconsultoria.com.br , último acesso em junho 2009

Roy, Arundathi. O Deus das Pequenas Coisas. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.

Santos, Boaventura de S. Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez: 2006.

Tageblatt, Berliner. “Veja o que Einstein pensava sobre a relevância da divulgação científica”.
Jornal de Ciência e Tecnologia. São Paulo, Abril 2005, p.4.

151
NORMAN FAIRCLOUGH E A ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA: A LINGUAGEM
COMO PRÁTICA SOCIAL

Expedito Wellington Chaves Costa – Mestrado em Educação pela UECE

O objetivo deste texto é apresentar a Análise de Discurso Crítica (ADC), que segundo
Fairclough (2001) está baseada em uma concepção de linguagem como aspecto
imprescindível da vida social dialeticamente conectada a outros elementos da prática
social, como a ideologia. A ADC considera o discurso como um momento de prática social,
visto que todas as práticas incluem atividade produtiva, meios de produção, relações e
identidades sociais, valores culturais, consciência e semioses. Para o autor, a ADC é uma
disciplina capaz de mapear relações entre os recursos linguísticos usados pelos atores
sociais e os aspectos da prática nos quais a interação discursiva s e realiza. A proposta
descrita aqui é a do modelo tridimensional, em que Fairclough (2001) explica que qualquer
discurso pode ser considerado, simultaneamente, um texto (análise linguística), uma
prática discursiva (análise da produção e da interpretação textual) e uma prática social
(análise das circunstâncias institucionais e organizacionais do evento comunicativo). Nessa
proposta tridimensional, focaliza-se a prática discursiva, porque ela reproduz os sistemas
de conhecimento e crença da sociedade e contribui para transformá-la. O que ocorre no
contexto da ADC é a aproximação das práticas textual, discursiva e social, tornando o
discurso uma representação significativa do mundo. No percurso da ADC, Chouliaraki e
Fairclough (1999) apresentam o enquadramento do discurso como um momento de
práticas sociais para se refletir sobre mudança social contemporânea em larga escala e
sobre a possibilidade de práticas emancipatórias na vida social, mas este não é foco do
presente texto.

Palavras-chave: discurso, análise, crítica, proposta.

Introdução
Antecedentes da Análise do Discurso Crítica (ADC)
A expressão “análise do discurso” tem provocado muitos debates, em função da sua
multiplicidade de significados em circulação. Diversos campos de estudo utilizam esta expressão
para identificar sua prática analítica.
Sobretudo a partir da década de 1960, o estudo da língua por ela mesma – o formalismo –
começa a ser questionado por novas propostas, que se opõem a esta abordagem segundo a qual a
linguagem é um objeto autônomo cujas funções externas não influenciariam a sua organização
interna. Para os formalistas, o discurso é uma unidade acima da sentença e, portanto, não contido
nela.
Em oposição a essa corrente teórica, surge a preocupação com o uso da linguagem enquanto
complexo ato de interação carregado de ideologias e de significados, estende-se a análise para

152
além da estrutura da frase, introduzem-se novos componentes pragmáticos (interpretação dos
enunciados em contexto) e a dimensão social começa a fazer parte do estudo da língua com o
objetivo de combater o formalismo, dando lugar ao surgimento de diferentes práticas sob o rótulo
de análise de discurso.
Esta tendência investigativa é o funcionalismo, para quem a linguagem tem funções externas
ao sistema lingüístico, que são responsáveis pela organização interna dele. Como o funcionalismo
define o discurso como a linguagem em uso, torna-o perfeitamente aplicável, uma vez que o foco
da investigação discursiva não está apenas na interioridade do sistema lingüístico, mas também na
forma de organização dos eventos discursivos, na constituição das relações sociais e na
estruturação, confirmação ou contestação de hegemonias nas relações de saber/poder em
discursos diversos.
Da pluralidade de práticas analíticas, apresenta-se aqui a Análise do Discurso Crítica (ADC)
proposta por Norman Fairclough (2001), cujo principal conceito é o de discurso como prática
social. Entender o uso da linguagem como prática social implica dizer que ele é um modo de ação
historicamente situado, ou seja, é formado socialmente e ao mesmo tempo formador de
identidades e relações sociais e sistemas de conhecimento e de crença.
É da década de 1970 a forma de análise do discurso que identifica o papel da linguagem na
estruturação das relações de poder na sociedade (Fairclough, 2001). Contudo, não se pode deixar
de registrar que, na década anterior, alguns movimentos consolidavam estudos sobre a
importância das mudanças sociais como perspectiva de análise. Na Grã-Bretanha, um grupo de
lingüistas desenvolveu o que se chamou de lingüística crítica, ao articular as teorias e os métodos
de análise textual da lingüística sistêmica, de Halliday, com teorias sobre ideologias. Na França,
Michel Pêcheux e Jean Dubois desenvolveram uma abordagem da análise de discurso, tendo por
base, especialmente, o trabalho do lingüista Zellig Harris e a reelaboração da teoria marxista sobre
a ideologia, feita por Althusser, que ficou conhecida como Análise do Discurso Francesa (ADF).
Fairclough (2001: 20) esclarece que

nos primeiros [estudos da lingüística crítica], a análise lingüística e o tratamento


de textos lingüísticos estão bem desenvolvidos, mas há pouca teoria social, e os
conceitos de ‘ideologia’ e ‘poder’ são usados com pouca discussão ou explicação,
enquanto no trabalho de Pêcheux a teoria social é mais sofisticada, mas a análise
lingüística é tratada em termos semânticos muito estreitos. (...) Prestou-se pouca
atenção à luta e à transformação nas relações de poder e ao papel da linguagem
aí. Conferiu-se ênfase semelhante à descrição dos textos como produtos acabados
e deu-se pouca atenção aos processos de produção e interpretação textual, ou às
tensões que caracterizam tais processos. Como conseqüência, essas tentativas de
síntese não são adequadas para investigar a linguagem dinamicamente em

153
processos de mudança social e cultural.
Decorrente das limitações acima referidas, já em 1990 surge a Análise do Discurso Crítica
(ADC). Um marco para o estabelecimento dessa nova corrente na Lingüística foi a publicação da
revista de Van Dijk, “Discourse and Society”, em 1990. Entretanto, é importante acrescentar
publicações anteriores, como os livros: “Language and power”, de Norman Fairclough, em 1989;
“Language, power and ideology”, de Ruth Wodak, em 1989; e a obra de Teun van Dijk sobre
racismo, “Prejudice in discourse”, em 1984.

As propostas da Análise do Discurso Crítica.


A Análise do Discurso Crítica (ADC) propõe-se a estudar a linguagem como prática social e,
para isso, considera o importante papel do contexto para atingir este objetivo. Esse tipo de análise
se interessa pela relação que há entre a linguagem e o poder. É possível defini-la como um viés
que se ocupa, fundamentalmente, de análises que dão conta das relações de dominação,
discriminação, poder e controle, na forma como elas se manifestam através da linguagem (Wodak,
2003). Nessa perspectiva, a linguagem é um meio de dominação e de força social, servindo para
legitimar as relações de poder estabelecidas institucionalmente. É para atingir esse objetivo que a
ADC recorre ao contexto social da enunciação em busca das realizações do processo comunicativo
e daquilo que o realiza dialeticamente, isto por considerar os discursos como fatos históricos,
portanto socialmente instituídos e ideologicamente constituídos.
Para a Análise do Discurso Crítica, são necessárias as descrições e teorizações dos processos e
das estruturas sociais responsáveis pela produção de um texto “como uma descrição das
estruturas sociais e os processos nos quais os grupos ou indivíduos, como sujeitos históricos, criam
sentidos em sua interação com textos” (Wodak, 2003: 19, tradução nossa). Não obstante, a
relação entre o texto e o social não é vista de maneira determinista.
Assim, devido aos diferentes enfoques seguidos por analistas críticos do discurso, aceita-se a
Análise do Discurso Crítica não como um método único, mas como um método que tem
consistência em vários tipos de pesquisa.
Trabalhar com a Análise do Discurso Crítica implica considerá-la como uma teoria ou como
um método ou, até mesmo, como uma perspectiva teórica que versa sobre a linguagem. Desse
modo, a referência a essa análise como teoria, método ou perspectiva teórica é totalmente
aceitável entre os analistas críticos do discurso.

A ADC é uma forma de ciência crítica que foi concebida como ciência social
destinada a identificar os problemas que as pessoas enfrentam em decorrência de

154
formas particulares da vida social e destinada, igualmente, a desenvolver recursos
de que as pessoas podem se valer a fim de abordar e superar esses problemas
(Fairclough, 2003: 185, tradução nossa).

A Análise do Discurso Crítica destaca a necessidade do trabalho interdisciplinar, objetivando-se


uma compreensão adequada do modo como a linguagem opera. Assim se poderá compreender a
manifestação da linguagem na constituição e na transmissão de conhecimento, na organização das
instituições sociais e no exercício do poder. Esse tipo de análise busca uma teoria da linguagem
que incorpore a dimensão do poder como condição capital da vida social.
O marco analítico da ADC envolve os seguintes passos (Fairclough, 2003: 184):
a. Centralizar-se em um problema social que tenha um aspecto semiótico.
b. Identificar os elementos que lhe põem obstáculos com o fim de abordá-los, mediante a análise:
b1. da rede das práticas em que estão localizados;
b2. da relação de semiose que mantém com outros elementos da prática particular de que se trata;
b3. do discurso;
b4. da estrutura – a ordem do discurso;
b5. da interação;
b6. da interdiscursividade;
b7. da lingüística e da semiótica.
c. “Considerar se a ordem social (a rede de práticas) ‘reclama’ em certo sentido o problema ou não”
(pág. 184, tradução nossa, destaque do autor).
d. Identificar as possíveis maneiras de superar os obstáculos.
e. Refletir criticamente sobre a análise.

Os termos-chave da Análise do Discurso Crítica (ADC)


1. Discurso
Esse termo corresponde mais ou menos às dimensões textuais que, tradicionalmente, têm
sido tratadas por “conteúdos”, “significados ideacionais”, “tópico”, “assunto” etc.

Há uma boa razão para usar “discurso” em vez desses termos tradicionais: um
discurso é um modo particular de construir um assunto, e o conceito difere de
seus predecessores por enfatizar que esses conteúdos ou assuntos – áreas de
conhecimento – somente entram nos textos na forma mediada de construções
particulares dos mesmos (Fairclough, 2001: 164, destaque do autor).

A relação entre discurso e estrutura social tem natureza dialética, resultando do contraponto
entre a determinação do discurso e sua construção social. No primeiro caso, o discurso é reflexo

155
de uma realidade mais profunda; no segundo, ele é representado, de forma idealizada, como
fonte social. A constituição discursiva de uma sociedade decorre de uma prática social que está,
seguramente, arraigada em estruturas sociais concretas (materiais), e, necessariamente, é
orientada para elas, não de um jogo livre de idéias na mente dos indivíduos.
Fairclough (2001) defende o discurso como prática política e ideológica. Como prática
política, o discurso estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas
em que existem tais relações. Como prática ideológica, o discurso constitui, naturaliza, mantém e
também transforma os significados de mundo nas mais diversas posições das relações de poder.
2. Contexto
Trata-se de uma noção de relevância ímpar para ADC, “já que explicitamente inclui elementos
sociopsicológicos, políticos e ideológicos e, portanto, postula um procedimento interdisciplinar”
(Meyer, 2003: 37, tradução nossa). Os discursos são históricos e, assim, só podem ser entendidos
se em referência a seus contextos (Fairclough, 2003).
3. Sujeito
Dada a relevância deste termo para a ADC, ele será apresentado aqui a partir das concepções
de Pêcheux (1995) e de Fairclough (2001). Para este os sujeitos discursivos podem reagir às
imposições da ideologia, afastando-se de determinada formação discursiva e inserindo-se em
outra, portanto transformando as relações de poder. As abordagens de Pêcheux são importantes
pela clareza com que define o sujeito discursivo e pela influência do seu pensamento nos estudos
de outros autores, como o próprio Fairclough.
Na perspectiva tradicional da Análise do Discurso, o sujeito produz seu discurso a partir de
posições-sujeito pré-determinadas dentro das formações discursivas (FD), que determinam o que
pode e deve ser dito, porque as posições-sujeito, da mesma forma que este sujeito (da AD) são
socialmente construídas. O sujeito é descentrado porque situa seu discurso em relação a outros
discursos, que histórico e socialmente já constituídos reaparecem na sua fala. Assim, na fala do
sujeito, outras vozes também falam.
As posições-sujeito possíveis são vistas em sua relação com a formação discursiva dominante
(que determina a forma-sujeito), apontando para a determinação do sujeito a partir de uma
instância ideológica que tem sua materialidade disseminada na formação discursiva e
materializada no discurso, mostrando assim o seu funcionamento na constituição do sujeito:

É nesse reconhecimento que o sujeito se ‘esquece’ das determinações que o


colocaram no lugar que ele ocupa - entendamos que, sendo ‘sempre-já’ sujeito,

156
ele ‘sempre-já’ se esqueceu das determinações que o constituem como tal
(Pêcheux, 1995: 170).

Pêcheux (ibidem) mostra que existem três formas pelas quais essa relação pode se dar: a de
identificação, a de contra-identificação e, finalmente, a de desidentificação.
Na primeira dessas possibilidades, a de identificação, o que se tem é um sujeito do discurso
que pode ser caracterizado como um “bom-sujeito”, ou seja, uma posição-sujeito coincidente com
a forma-sujeito que regula os sentidos dominantes de uma formação discursiva.
Na segunda delas, a da contra-identificação, o que temos é um trabalho do sujeito do
discurso sobre a forma-sujeito, resultando na tomada de posições não-coincidentes, divergentes,
discordantes. Ou seja, não é mais possível pensar o sujeito enquanto uma noção autocentrada e
monolítica; deve-se, portanto, ter em mente os seus desdobramentos.
A desidentificação, por fim, vem dar conta daquilo que sucede quando o trabalho na e sobre
a forma-sujeito (realizado pelo sujeito do discurso) conduz a uma ruptura tão grande em relação
ao conjunto dos saberes da formação discursiva que a posição-sujeito daí resultante não mais está
contida nesta. A desidentificação faz com que o sujeito do discurso migre para outra formação
discursiva, na qual o sujeito do discurso vai identificar-se com a forma-sujeito a ela
correspondente.
Para Fairclough (2001), os sujeitos podem contrapor e, de forma progressiva, reestruturar a
dominação e as formações mediante a prática, isto é, os sujeitos sociais são moldados pelas
práticas discursivas, mas também são capazes de remodelar e reestruturar essas práticas. Na
Análise do Discurso Crítica (ADC), rejeita-se firmemente o ‘sujeito assujeitado’ da Análise do
Discurso (AD), ou seja, aquele levado a assumir lugares preestabelecidos e a obedecer a regras
(modais, lingüísticas etc) que o obrigam a se pronunciar desta ou daquela maneira e não de outra,
conforme o lugar.
Por esta concepção de Fairclough, o sujeito é capaz de assimilar discursos anteriores aos que
ele se encontra inserido e constituir significados que o colocarão numa determinada formação
discursiva. A partir disto, o sujeito é, então, capaz de, em estabelecendo novas relações
significativas, aderir a uma nova proposta ideológica. Note-se que o sujeito não deixa de ser
marcado pela ideologia e de estar situado no contexto histórico; a sua capacidade, segundo
Fairclough (2001), é a de reação ao modelo imposto pela formação discursiva, a ponto de, pela
prática discursiva, assumir novos posicionamentos e migrar de uma formação discursiva para
outra. Assim o sujeito não é submetido permanentemente às imposições da formação discursiva.

157
4. Identidade
A identidade tem a ver com origem social, gênero, classe, atitudes e crenças de um falante e
é expressa a partir das formas lingüísticas e dos significados que esse falante seleciona, passando-
se à maneira como o produtor de um texto (editor) retextualiza a fala de um locutor, atribuindo-se
uma identidade e outra para esse locutor.

5. Intertextualidade e interdiscursividade
As categorias intertextualidade e interdiscursividade são bastante exploradas pela ADC, pois
ela analisa as relações de um discurso, considerando outros que lhe são recorrentes. É apropriado
lembrar, aqui, o posicionamento de Bakhtin (2000) segundo o qual os textos “respondem” a textos
anteriores e, também, antecipam textos posteriores.

6. Crítica, ideologia e poder


As noções de crítica, ideologia e poder são básicas para a ADC. Entende-se a crítica, segundo
Wodak (2003), como o resultado de certa distância dos dados, considerados na perspectiva social
e mediante uma atitude política e centrada na autocrítica. Já ideologia é um termo utilizado para
indicar o estabelecimento e a conservação de relações desiguais de poder. Ela “se refere às formas
e aos processos sociais em cujo seio, e por cujo meio, circulam as formas simbólicas no mundo
social” (Wodak, 2003: 30, tradução nossa). Por isso, a ADC indica, como um de seus objetivos, a
desmitificação dos discursos por meio da decifração da ideologia.
A linguagem classifica o poder e expressa poder. Esse poder se manifesta segundo os usos
que as pessoas fazem da linguagem e suas competências para tanto. Ele pode ser, em alguns
casos, negociado ou mesmo disputado, pois é rara a ocasião em que um texto é obra de uma
pessoa só.
É bom se entender que o poder não se origina da linguagem. Entretanto, é possível, na
linguagem, valer-se do próprio poder para desafiá-lo ou, mesmo, subvertê-lo, alterando-lhe as
distribuições em curto ou longo prazo. O poder não somente se efetiva no interior do texto,
através das formas gramaticais, mas, também, no controle que uma pessoa é capaz de exercer
sobre uma situação social, através do texto (Wodak, 2003).

A proposta de Norman Fairclough com a Análise do Discurso Crítica


O trabalho de Fairclough é baseado na lingüística funcional de Halliday, teoria que considera
a linguagem na forma como ela é configurada pelas funções sociais que deve atender.

158
Para Fairclough (2003), a localização teórica da ADC está em ver o discurso como um
momento de prática social, sabendo que todas as práticas incluem os seguintes elementos:
atividade produtiva, meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais,
consciência e semioses (produção de significados). Esses elementos se acham relacionados
dialeticamente, isto é, não são elementos discretos, embora sejam diferentes.
O foco de Fairclough é a mudança discursiva em relação à mudança social e cultural. Como
as mudanças ocorrem nos eventos discursivos, as origens e as motivações imediatas que as geram
no evento comunicativo estão nas problematizações das convenções para os produtores ou
intérpretes, o que pode ocorrer de diversas formas. Os produtores enfrentam os dilemas ou
problematizações criativamente e, assim, geram mudanças discursivas. Mudanças envolvem
formas de transgressão e cruzamento de fronteiras, também a reunião de convenções existentes
em combinações novas ou sua exploração em ocorrências que comumente se coíbem. Em relação
à dimensão textual do discurso, as mudanças deixam marcas no texto que podem ser mesclas de
estilos formais e informais, vocabulários técnicos e não-técnicos, marcadores de autoridade e
familiaridade e formas sintáticas típicas da escrita e da oralidade. Quando a mudança é
estabelecida, não é mais percebida pelos intérpretes como uma “colcha de retalhos”,
estabelecendo-se novas hegemonias no discurso.
Já o discurso é tanto um modo de ação (como as pessoas agem sobre o mundo e sobre as
outras) como um modo de representação (há uma dialética entre ele e a estrutura social). O
discurso, ainda, é tanto moldado como restringido pela estrutura social. “Os eventos discursivos
específicos variam em sua determinação estrutural segundo o domínio social particular ou o
quadro institucional em que são gerados” (Fairclough, 2001: 91). Eles são, também, socialmente
constitutivos. O discurso é uma prática de representação e de significação do mundo, constituindo
e construindo esse mundo em significado.
Para trabalhar com o discurso, Fairclough (2001) sugere uma análise tridimensional,
explicando que qualquer evento ou exemplo de discurso pode ser considerado, simultaneamente,
um texto (análise lingüística), um exemplo de prática discursiva (análise da produção e
interpretação textual) e um exemplo de prática social (análise das circunstâncias institucionais e
organizacionais do evento comunicativo).
Para atender a esse modelo tridimensional, deverão ser consideradas três perspectivas
analíticas, a multidimensional, a multifuncional e a histórica: a primeira, para avaliar as relações
entre mudança discursiva e social e, também, para relacionar as propriedades particularizadas de
textos às propriedades sociais de eventos discursivos; a segunda, a multifuncional, para averiguar

159
as mudanças nas práticas discursivas que contribuem para mudar o conhecimento, as relações e
identidades sociais; finalmente, a histórica, para discutir a “estruturação ou os processos
‘articulatórios’ na construção de textos e na constituição, em longo prazo, de ‘ordens de discurso’”
(Fairclough, 2001: 27, destaques do autor).
A análise de um discurso, tomado como exemplo particular de prática discursiva, focaliza os
processos tanto de produção e de distribuição como de consumo textual. Esses processos são
sociais, por isso exigem referência aos ambientes econômicos, políticos e institucionais
particulares, nos quais o discurso é gerado.
Enfim, a concepção tridimensional do discurso reúne três tradições analíticas. Observa-se
que nem sempre é nítida a distinção entre “descrição” (análise textual) e “interpretação” (prática
discursiva). O critério recomendável, segundo o próprio Fairclough, é considerar como “descrição”
os casos em que mais se destaquem os aspectos formais do texto. Realçando-se mais os processos
produtivos e interpretativos, há de ter-se em conta a análise da prática discursiva, embora se
envolvam, também, os aspectos formais do texto.

O modelo tridimensional de Fairclough


O modelo tridimensional é visto a seguir, de acordo com as categorias de análise.

Análise textual
Essa primeira dimensão é baseada na tradição de análise textual e lingüística, denominada de
“descrição”. É a dimensão que cuida da análise lingüística. A análise textual deve ser feita
conjuntamente com as outras dimensões.
A análise textual envolve quatro itens, apresentados em escalas ascendentes: vocabulário
(lexicalização); gramática, coesão e estrutura textual. O vocabulário cuida, principalmente, de
palavras isoladas; a gramática trata das palavras organizadas em orações e frases; a coesão, da
ligação entre orações e frases; e a estrutura textual, finalmente, cuida de todas as características
organizacionais dos textos.
Vocabulário
Um importante ponto de análise é referente a lexicalizações alternativas e sua significação
tanto política quanto ideológica. “Os significados das palavras e a lexicalização de significados são
questões que são variáveis socialmente e socialmente contestadas, e facetas de processos sociais e
culturais mais amplos” (Fairclough, 2001: 230). Em nível de vocabulário, é interessante constatar
que a criação de itens lexicais gera novas categorias culturalmente essenciais.

160
Outro aspecto produtivo no estudo do vocabulário é o das metáforas, acompanhando-se suas
implicações políticas e ideológicas e identificando-se os conflitos entre metáforas alternativas.
Quando determinada metáfora é escolhida para significar coisas, constrói-se uma realidade de
uma maneira específica, e não de outra. As metáforas estão naturalizadas de tal forma nas
culturas, que se torna difícil identificá-las ou, mesmo, escapar delas.
Gramática
Toda oração é resultado da combinação de significados ideacionais, interpessoais
(identitários e relacionais) e textuais. Quando as pessoas escolhem suas orações em termos de
modelo e estrutura, selecionam, também, o significado e a construção de identidades sociais, de
relações sociais, de crenças e conhecimentos. Alguns aspectos da gramática (influência da
Lingüística Crítica) podem ser observados com produtividade. Por exemplo, uma oração
declarativa pode conter a forma do presente que é, categoricamente, autoritária. Pode-se
trabalhar com o significado interpessoal. Outros aspectos que podem ser listados são: a
identificação do tema e do tópico, as relações entre as construções ativas e passivas e a omissão
do agente nas construções passivas.
Há uma motivação social para analisar a transitividade. Pode-se tentar estabelecer que
fatores sociais, culturais, ideológicos, políticos ou teóricos decidem como um processo é
significado num tipo de discurso particular (ou mesmo em diferentes discursos) ou em um dado
texto. Por exemplo, há motivação para escolher a voz passiva. Seu uso permite a omissão do
agente por ser irrelevante, por ser evidente por si mesmo ou por ser desconhecido, mas, também,
a omissão pode ter razões políticas ou ideológicas, a fim de ofuscar o agente, a causalidade e a
responsabilidade.
A dimensão da gramática que corresponde à função ideacional da linguagem é vista pela
modalidade. Alguns itens gramaticais são utilizados para modalizar a oração: verbos auxiliares
modais, tempos verbais, conjunto de advérbios modais e seus adjetivos equivalentes. Além desses
elementos, outros aspectos da linguagem também indicam a modalização, como padrões de
entonação, fala hesitante, entre outros. Na modalidade, temos mais que um comprometimento
do falante com suas proposições, um comprometimento que passa, também, pela interação com
os interlocutores.
Coesão
Na coesão, pode-se considerar como as orações são ligadas em frases e como essas são
ligadas para formar unidades maiores nos textos. Pode-se utilizar vocabulário de um mesmo

161
campo semântico, repetição de palavras, uso de sinônimos próximos. Os mecanismos são variados
em termos de referência e substituição. Isso vai formar a arquitetura do texto.
Os marcadores coesivos não podem ser vistos apenas como propriedades objetivas dos
textos, mas “têm de ser interpretados pelos intérpretes de textos como parte do processo de
construção de leituras coerentes do texto” (Fairclough, 2001: 220). Esses marcadores também
necessitam ser tomados dinamicamente e segundo a visão do produtor do texto: os produtores de
texto situam ativamente relações coesivas de determinados tipos no processo de posicionar o
intérprete como sujeito. A coesão pode tornar-se um modo significativo de trabalho ideológico
que ocorre em um texto.
Estrutura textual
A estrutura textual também diz respeito à arquitetura do texto, principalmente no que se
refere a aspectos superiores do planejamento de diferentes tipos de texto. A forma como o texto
se organiza pode expandir a percepção dos sistemas de crenças e conhecimentos e alargar,
também, a percepção dos pressupostos sobre as relações sociais dos tipos de texto mais diversos.
A comunicação verbal é também uma relação social e, por isso, ela está submetida às regras
de polidez. Não respeitar uma regra do discurso é se expor e ser considerado mal-educado. “Esses
fenômenos de polidez estão integrados na teoria denominada ‘das faces’” (Maingueneau, 2001:
38, destaque do autor).
Todo indivíduo possui duas “faces”: negativa e positiva. A negativa corresponde ao espaço ou
“território” de cada um. Nele, as pessoas não querem ser incomodadas, impedidas ou controladas
por outros. A face positiva tem a ver com a imagem que passamos socialmente para as outras
pessoas.
O ethos tem a ver com a construção do ‘eu’ e sua identidade social no enunciado. “A imagem
discursiva de si é [...] ancorada em estereótipos, um arsenal de representações coletivas que
determinam, parcialmente, a apresentação de si e sua eficácia em uma determinada cultura”
(Charaudeau; Maingueneau, 2004: 221). Esses estereótipos culturais circulam nos mais diversos
domínios, como literatura, cinema e publicidade. (Maingueneau, 2001). O posicionamento de
Fairclough (2001) é o de que o ethos pode ser considerado como parte de um processo mais
amplo de “modelagem” em que o tempo e o lugar de uma interação e seus participantes, assim
como o ethos desses participantes, são constituídos pela valorização de ligações em certas
direções intertextuais de preferência a outras.

162
Análise discursiva
A prática discursiva (produção, distribuição e consumo) está baseada na tradição
interpretativa ou microssociológica de levar em conta a prática social como algo que as pessoas,
ativamente, produzem e apreendem com embasamento em procedimentos compartidos
consensualmente. Trata-se, portanto, de uma análise chamada de “interpretativa”, pois é uma
dimensão que trabalha com a natureza da produção e interpretação textual.
Alguns aspectos podem ser observados nessa análise, envolvendo as três dimensões da
prática discursiva: produção do texto – interdiscursividade e intertextualidade manifesta;
distribuição do texto – cadeias intertextuais; consumo do texto – coerência. A essas três
dimensões, Fairclough (2001) acrescentou as “condições da prática discursiva” com a finalidade de
apresentar aspectos sociais e institucionais que envolvem produção e consumo de textos.
a. Produção do texto
Por interdiscursividade e intertextualidade, os aspectos considerados no tópico, entende-se a
propriedade que os textos têm de estar repletos de fragmentos de outros textos. Esses
fragmentos podem estar delimitados explicitamente ou miscigenados com o texto que, por sua
vez, pode assimilar, contradizer ou fazer ressoar, ironicamente, esses fragmentos.
De acordo com o processo considerado, a intertextualidade pode ser vista diferentemente.
No processo de produção, a intertextualidade acentua a historicidade dos textos, sendo sempre
acréscimo às “cadeias de comunicação verbal” (Bakhtin, 2000). No processo de distribuição, a
intertextualidade é útil para a “exploração de redes relativamente estáveis em que os textos se
movimentam, sofrendo transformações predizíveis ao mudarem de um tipo de texto a outro”
(Fairclough, 2001: 114). No processo de consumo, a intertextualidade é proveitosa ao destacar
que não é unicamente “o texto” (ou os textos intertextualizados na constituição desse texto) que
molda a interpretação, porém, também os outros textos que os intérpretes, variavelmente,
trazem ao processo de interpretação.
Bakhtin (2000) destaca a falta que faz a perspectiva de um estudo sobre como os textos
“respondem” a textos anteriores e, por sua vez, antecipam textos posteriores. É dessa forma que
se entende a citação do autor, em que “cada enunciado é um elo na cadeia da comunicação”.
Nossa fala é constituída com palavras de outros em variáveis graus de alteridade e em variáveis
graus do que é nosso. Isso ocorre, obviamente, em diferentes graus de consciência e de
afastamento.
A intertextualidade pressupõe a inclusão da história em um texto e, portanto, desse texto na
história. Em outras palavras, os textos absorvem e são construídos de textos do passado,

163
assimilando-os, respondendo-lhes, reacentuando-os e retrabalhando-os. Assim, cada texto ajuda a
fazer história, contribuindo para que ocorram processos de mudança mais amplos, já que também
antecipa e molda textos subseqüentes.
Observar se há relação entre intertextualidade e hegemonia é importante e produtivo como
pista para a interpretação, para explicar as mudanças. O conceito de intertextualidade liga-se à
produtividade dos textos, pois aponta para como os textos transformam textos anteriores e
reestruturam as convenções existentes a fim de originar novos textos.
A intertextualidade divide-se em intertextualidade manifesta, quando o texto recorre
explicitamente a outros textos específicos (o texto constitui-se heterogeneamente através de
outros textos), e intertextualidade constitutiva ou interdiscursividade, constituição heterogênea
através de elementos das ordens do discurso.
No campo da intertextualidade, estão implicados alguns fenômenos, tais como:
pressuposição, negação, metadiscurso e ironia.
As proposições, quer sejam baseadas em textos anteriores do produtor, quer sejam de outros
textos, tanto podem ser manipulativas (o produtor do texto pode estabelecer uma proposição
desonestamente, com intenção manipulativa) quanto sinceras (o produtor do texto pode
apresentar uma proposição como dada por outro). As proposições funcionam como formas
efetivas de manipular as pessoas por serem, geralmente, difíceis de desafiar.
As frases negativas, via de regra, são utilizadas com objetivos polêmicos, pois veiculam ou
carregam tipos especiais de pressuposições, que funcionam intertextualmente, pois incorporam
outros textos apenas com o objetivo de contradizê-los ou rejeitá-los.
O metadiscurso caracteriza-se por ser uma forma típica de intertextualidade manifesta. Nele,
o produtor distingue diferentes níveis em seu texto e causa um efeito de distanciamento de si
mesmo em relação a alguns níveis desse texto, abordando o nível distanciado como uma outra
produção, como se fosse um texto externo (Maingueneau, 1997). Apontam-se vários recursos para
obter-se essa estratégia discursiva: utilização de expressões evasivas (“espécie de”, “tipo de”); uso
de expressões de um outro texto ou convenção particular, ou metafóricas (“em termos científicos”,
“falando metaforicamente” etc); uso de paráfrase ou de reformulação de uma expressão (“cultura
empresarial” por “empreendimento”).
O metadiscurso sugere que o falante está acima ou fora de seu discurso. Essa posição oferece
condições de o falante controlar ou manipular seu discurso. A conseqüência dessa prática é
interessante na leitura que se faz da relação entre discurso e identidade (subjetividade) porque,

164
de certa maneira, parece contrariar a visão de que a identidade social de uma pessoa é uma
questão de como essa pessoa está situada em tipos específicos de discurso.
A questão acima apresenta dois lados. Primeiro, a probabilidade de o sujeito distanciar-se do
próprio discurso cria a ilusão de que ele controla esse discurso. O “eu” assumiria uma posição de
controle. O segundo lado diz respeito à visão dialética da relação entre discurso e subjetividade: os
sujeitos são posicionados e constituídos no discurso, mas também são transformadores à medida
que se envolvem na prática contestadora e redefinidora das estruturas discursivas (ordem do
discurso) que os posicionaram.
Nas definições tradicionais de ironia (dizer uma coisa e significar outra), falta uma abordagem
intertextual desse recurso (Fairclough, 2001). Em um enunciado irônico, ecoa um outro enunciado
ou uma outra voz, pois não há relação entre o significado, ou função real do enunciado, e o que foi
ecoado. Na ironia, os intérpretes exercem uma função muito importante: eles devem ser capazes
de perceber o outro sentido que está velado nas estruturas lingüísticas. Vários fatores contribuem
para essa identificação: explícita falta de combinação entre o significado aparente e o contexto
situacional, indicações sobre o tom de voz do falante ou pistas no texto escrito e pressupostos dos
intérpretes acerca das crenças e dos valores do produtor do texto.
b. Distribuição do texto
As cadeias intertextuais são seqüenciais, ou seja, são sintagmáticas, em contraste com as
relações intertextuais, que são paradigmáticas. Quando se especificam as cadeias intertextuais em
que entra um tipo particular de discurso, está-se, na verdade, especificando sua distribuição. O
número de cadeias intertextuais é limitado pelo número de cadeias reais, ou seja, pelo número de
instituições e de práticas sociais.
As cadeias intertextuais podem ser muito complexas, como ocorre, por exemplo, quando se
transforma um discurso presidencial em outros textos, pertencentes a diferentes gêneros
(reportagens, análises e comentários, artigos acadêmicos etc), ou podem ser muito simples, pois
uma contribuição a uma conversa informal não poderá gerar tantas cadeias intertextuais como no
exemplo anterior; provavelmente será apenas modificada por formulações dos co-participantes.
“Assim, os diferentes tipos de textos variam radicalmente quanto ao tipo de redes de distribuição e
cadeias intertextuais em que eles entram, e, portanto, quanto aos tipos de transformação que eles
sofrem” (Fairclohgh, 2001: 167).
c. Consumo do texto
A coerência deixa de ser abordada como propriedade do texto para ser tratada como
propriedades de interpretação, pois um texto só faz sentido para alguém, quando lhe é possível

165
interpretá-lo, ao gerar leituras coerentes. Contudo, não se deve esquecer que há a possibilidade
de fazerem-se leituras diferentes, como resistência à proposta pelo texto. De qualquer modo, a
fim de que um texto faça sentido, é necessário que os intérpretes encontrem uma maneira de
convencionar seus vários dados em uma unidade coerente, conquanto não necessariamente
unitária, determinada ou não-ambivalente. O conceito de coerência é o cerne de muitas
explicações sobre a interpretação. Fairclough assevera:

Os textos postulam sujeitos intérpretes e implicitamente estabelecem


posições interpretativas para eles que são ‘capazes’ de usar suposições de sua
experiência anterior, para fazer conexões entre os diversos elementos
intertextuais de um texto e gerar interpretações coerentes. Não se deve entender
com isso que os intérpretes sempre resolvam plenamente as contradições de
textos (Fairclough, 2001: 171, destaque do autor).

d. Condições de práticas discursivas


A fim de compreender as condições de práticas discursivas, é necessário perceber que os
textos são produzidos de maneira particular e em contextos sociais particulares. Reforçando essa
afirmação, Charaudeau e Maingueneau (2004) ratificam que o sujeito discursivo pode ocupar
diversos posicionamentos, formando uma identidade enunciativa, que não diz respeito apenas aos
conteúdos, mas às diversas dimensões do discurso.
Semelhantemente à produção, os textos são consumidos diferentemente em variados
contextos sociais. A produção e o consumo podem ser individuais ou coletivos. Os textos podem
ser caracterizados por distribuição simples (conversa casual) ou complexa. Eles podem apresentar
resultados variáveis, de natureza extradiscursiva e, ainda, discursiva (os atos de fala).
O consumidor também pode ocupar um conjunto de posições, e cada uma dessas posições
pode também ser ocupada de forma múltipla: receptores (aqueles para quem os textos se
dirigem), ouvintes ou leitores (aqueles para quem o texto não está dirigido diretamente, mas são
incluídos) e destinatários (aqueles que não são considerados leitores ou ouvintes legítimos,
contudo são reconhecidos como consumidores de fato).

Análise social
O objetivo geral dessa prática é especificar “a natureza da prática social da qual a prática
discursiva é uma parte, constituindo a base para explicar por que a prática discursiva é como é; e
os efeitos da prática discursiva sobre a prática social” (Fairclough, 2001: 289), porque “a prática
social (política, ideológica etc) é uma dimensão do evento comunicativo, da mesma forma que o
texto” (idem, p. 99). Essa é uma análise de tradição macrossociológica e com características

166
interpretativas. É uma dimensão que verifica as questões de interesse na análise social, ou seja,
analisa as circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discursivo e de que maneira
elas moldam a natureza da prática discursiva.
Em relação ao tema, é difícil o tratamento por tópico, segundo parecer do próprio
Fairclough. Então ele será abordado como um todo, inter-relacionando as partes.
O discurso, como prática social, tem por objetivo, especialmente, trabalhar ideologia e
hegemonia.
Conforme Fairclough, ideologias são construções ou significações da realidade (mundo físico,
relações sociais, identidades sociais) que se fundamentam em diferentes dimensões das formas e
dos sentidos das práticas discursivas e que colaboram para a produção, a reprodução ou a
transformação das relações de poder.
As ideologias implícitas nas práticas discursivas são por demais eficazes quando se tornam
naturalizadas e conseguem atingir o status de senso comum (repositório dos diversos efeitos de
lutas ideológicas passadas e constante alvo de reestruturação nas lutas atuais). Contudo, essa
propriedade aparentemente estável e estabelecida das ideologias pode ser subjugada pela
transformação, ou seja, pela luta ideológica como dimensão da prática discursiva, conseguindo-se,
assim, remodelar as práticas discursivas e as ideologias que nelas foram construídas, no contexto
das redefinições das relações de dominação.
A ideologia é uma propriedade tanto de estruturas nas ordens dos discursos (que constituem
o resultado de eventos passados) quanto de eventos (ou condições de eventos atuais e nos
próprios eventos). Nas palavras de Fairclough (2001: 119), “é uma orientação acumulada e
naturalizada que é construída nas normas e nas convenções, como também um trabalho atual de
naturalização e desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos”.
Fairclough afirma que os sujeitos, mesmo sendo posicionados ideologicamente, têm
capacidade de agir criativamente, no sentido de executar as próprias conexões entre as diversas
práticas e ideologias a que são expostos e, também, de reestruturar tanto as práticas quanto as
estruturas posicionadoras. “O equilíbrio entre o sujeito ‘efeito’ ideológico e o sujeito agente ativo é
uma variável que depende das condições sociais, tal como a estabilidade relativa das relações de
dominação” (op. cit., p. 121). O autor considera que nem todo discurso é irremediavelmente
ideológico. As ideologias caracterizam as sociedades que são estabelecidas numa relação de
poder, de dominação. Assim, à medida que os seres humanos transcendem esse tipo de
sociedade, transcendem também a ideologia.

167
O segundo ponto a ser tratado na análise da prática social é a hegemonia, conceito
procedente dos estudos de Gramsci (apud Fairclough, 2001) sobre o capitalismo ocidental e da
estratégia revolucionária da Europa Ocidental. A seguir, estão relacionadas algumas concepções
de hegemonia aceitas por Fairclough (2001: 122):

a) É tanto liderança como exercício do poder em vários domínios de uma


sociedade (econômico, político, cultural e ideológico).

b) É, também, a manifestação do poder de uma das classes economicamente


definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais sobre a
sociedade como um todo, porém nunca alcançando, senão parcial e
temporariamente, um ‘equilíbrio instável’.

c) É, ainda, a construção de alianças e integração através de concessões (mais do


que a dominação de classes subalternas).

d) É, finalmente, um foco de luta constante sobre aspectos de maior volubilidade


entre classes (e blocos), a fim de construir, manter ou, mesmo, a fim de romper
alianças e relações de dominação e subordinação que assumem configurações
econômicas, políticas e ideológicas.

Ideologia, a partir dessa visão de hegemonia, é “uma concepção do mundo que está
implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e nas manifestações da vida
individual e coletiva” (Gramsci apud Fairclough, 2001: 123).
A produção, a distribuição e o consumo de textos são, na realidade, um dos enfoques da luta
hegemônica que contribui, em diferentes graus, para a reprodução ou a transformação da ordem
de discurso e das relações sociais e assimétricas existentes.
Conforme a proposta de análise de discurso apresentada neste dispositivo, vê-se a
necessidade de equilíbrio entre as dimensões da forma e da função nos estudos de linguagem.
Isso para não se reduzir a linguagem à condição de ferramenta social e nem limitá-la ao caráter
apenas formal do sistema lingüístico. O equilíbrio na análise é uma significativa contribuição da
Análise do Discurso Crítica (ADC), por se tratar de uma abordagem social e lingüisticamente
orientada.

Questões finais
Os que fundamentam suas pesquisas na Análise do Discurso Crítica orientam para que os
métodos utilizados sirvam para vincular a teoria com a observação. Seus métodos indicam as vias
seguidas ou que serão seguidas pela investigação. Pelo fato de os investigadores seguirem vários
enfoques, a metodologia adotada, como não poderia deixar de ser, seguirá, também, vários
caminhos, de acordo com os enfoques ressaltados.

168
Segundo Fairclough (2001), há três itens principais que dariam conta de um trabalho com
base na ADC: os dados, a análise e os resultados.
a. Os dados
Podem ser abordados com base nos tópicos: definição de um projeto, corpus, ampliação do
corpus e codificação e seleção de amostras no corpus.
a1. Definição do projeto – O autor propõe que o discurso deve ser analisado segundo uma
perspectiva interdisciplinar (Lingüística, Psicologia, Psicologia Social, Sociologia, História e
Ciência Política), pois a concepção de discurso envolve os seguintes fatores: propriedades dos
textos, produção, distribuição e consumo; processos sociocognitivos de produção e
interpretação dos textos; relacionamento da prática social com as relações de poder; e
projetos hegemônicos no nível social. A Sociologia, a Ciência Política e a História deveriam ser
consideradas em primeiro plano para a definição dos projetos de pesquisa.
a2. Corpus – A seleção dos dados, a construção do corpus e a coleta de dados suplementares
dependerão da perspectiva adotada pelo pesquisador, contudo há certos parâmetros gerais
que deverão ser seguidos. O corpus sempre deve ser considerado como aberto à ampliação,
mesmo depois que se inicie a análise.
a3. Ampliação do corpus – A ampliação do corpus pode ocorrer através de julgamento de outras
pessoas que estão em algum tipo de relação significativa com a prática social que se analisa,
considerando-se os aspectos da amostra, ou através de entrevistas, a fim de que as pessoas
envolvidas com as amostras do corpus possam emitir suas interpretações sobre o problema
social em análise.
a4. Codificação e seleção de amostras no corpus – O pesquisador pode codificar o corpus inteiro
ou parte dele. Em outras palavras, pode resumir o discurso ou codificá-lo em tópicos ou,
mesmo, pode decompô-lo em classes particulares de traços.
b. A análise
Segundo Fairclough (2001), em termos de análise, fica difícil definir o que fazer primeiro, se a
análise textual, se a discursiva, se a social; pois essas três dimensões vão sempre estar superpostas
na prática. Sendo assim, o autor sugere que adotar uma seqüência é sempre útil para coordenar o
resultado.
c. Resultados
Os resultados de uma pesquisa em ADC nem sempre podem ser controlados pelo analista,
pois, dificilmente, ele poderá ter um controle de como eles serão utilizados depois que caírem no
domínio público. Para Fairclough, os resultados devem ser apropriados por quem trabalha com a

169
“tecnologização do discurso”, já que essa é uma prática que estabelece uma ligação íntima entre o
conhecimento sobre a linguagem, o discurso e o poder.
Pelo exposto, considera-se a ADC um campo de saber capaz de mapear relações entre os
recursos linguísticos usados pelos atores sociais e os aspectos da prática nos quais a interação
discursiva se realiza.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo:


Contexto, 2004.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

______. El análisis crítico del discurso como método para la investigación en ciencias sociales. In:
WODAK, Ruth; MEYER, Michel (eds.). Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa,
2003.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

MEYER, Michel. Entre la teoría, el método y la política: la ubicación de los enfoques relacionados
con el ACD. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michel. Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona:
Gedisa, 2003.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso – Uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Pulcinelli
Orlandi [et al.] 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995.

WODAK, Ruth. De qué trata el análisis crítico del discurso. Resumen de su historia, sus conceptos
fundamentales y sus desarrollos. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michel (orgs.). Métodos de Análisis
Crítico del Discurso. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 17-34.

170
A CONSTRUÇÃO DO “EU” NAS CARTAS AO EDITOR PUBLICADAS NA REVISTA
FEMININA CLAUDIA

Guianezza M. de Góis Saraiva (UFRN)


Drª. Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)

A luta pela igualdade de direitos não é um fato recente na história da humanidade. Desde 1940, as
mulheres iniciaram o chamado Movimento Feminista, que tinha a função de denunciar as
desigualdades relativas a gênero. Com altivez e persistência, as mulheres conseguiram avanços
significativos, dentre eles o direito ao voto. Outra conquista de extrema importância foi a invenção
da pílula anticoncepcional, que permitiu o ingresso da mulher no mercado de trabalho. Nessa
perspectiva, o objetivo deste artigo é analisar a construção do “eu”, ou seja, a representação do
ethos nas leitoras/autoras de cartas ao editor, que são publicadas na revista feminina “Claudia”,
no intuito de compreender melhor os discursos que permeiam essas publicações e suas relações
com as diversas práticas sociais na contemporaneidade. Metodologicamente, o trabalho se
configura em uma comparação entre as intencionalidades de duas cartas ao editor, veiculadas na
revista em questão. Ao interpretarmos os significados existentes nas cartas em estudo,
observamos que, quando a autora de uma carta expressa seu ponto de vista, ela, de certa forma,
poderá influenciar as leitoras a refletirem sobre suas palavras, o meio em que ela vive e os
padrões ideológicos encontrados naquele contexto social. Teoricamente, a discussão respalda-se
nas concepções de ethos, carta ao editor e mídia, a partir dos pressupostos da Análise Crítica do
Discurso, segundo a perspectiva social desenvolvida por Fairclough.

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, Ethos, Cartas ao editor

Introdução
Este trabalho acadêmico apresenta um estudo sobre a construção do “eu”, ou seja, a
representação do ethos nas leitoras/autoras de cartas ao editor, que são publicadas na revista
feminina “Claudia”. Para uma melhor compreensão da temática, apresentamos um breve conceito
de cartas ao editor. Esta, configura-se como um gênero da mídia impressa, cujos espaços são
destinados, em revistas ou jornais, aos leitores para que possam expressar pareceres pessoais,
favoráveis ou não, sobre matérias publicadas. Conforme o próprio nome sugere, essas cartas são
endereçadas ao editores, que após efetuarem uma seleção prévia, seguindo critérios específicos
de cada empresa jornalística, publicam-nas.
Neste artigo, primeiramente é relatado de forma sucinta, como e onde surgiu a revista
feminina. Quais eram seus objetivos, as primeiras titulações e a importância deste meio de
comunicação na sociedade também são ressaltados. Em seguida, descreve-se a luta das mulheres,
as tentativas de conquistar seu espaço na sociedade, sua inclusão no mercado de trabalho e o
reconhecimento da igualdade de direitos. Em decorrência dessa mudança social, é necessário

171
compreender como se formam as identidades femininas na contemporaneidade e como suporte
teórico, apresentamos os pressupostos de Hall.
Posteriormente, apresentamos algumas teorias da Análise Crítica do Discurso, posto que, a
análise das cartas ao editor, veiculadas na revista feminina “Claudia”, se configura como uma
prática social, que tem como propósito, investigar os processos ideológicos e hegemônicos
imbricados nas leituras dessas cartas. Paralelo a essas teorias, algumas categorias, como as
concepções de ethos e mídia, sustentadas teoricamente por Maingueneau e Charaudeau,
respectivamente, são relevantes para compreender a construção do “eu”, a partir das duas cartas
analisadas.

Surgimento da revista feminina


O fenômeno da revista feminina nasceu e cresceu na Europa. O primeiro registro de uma
publicação voltada para mulheres foi em 1554, intitulada de Il libro della bella donna, de F. Luigi,
que circulava em Veneza.
A primeira publicação com circulação regular voltada para o público feminino surgiu na
Inglaterra em 1963, chamada Ladies´ Mercury. Naquela época, a revista já possuía uma
característica que também é identificada na imprensa feminina contemporânea, o caráter
“conselheiro”, que consistia o lado sentimental e o relato das desilusões amorosas. Na segunda
metade do século seguinte, na Alemanha, Itália e Áustria já circulavam vários periódicos femininos
que abordavam aspectos literários e previsões astrológicas. Em 1800, a moda se destacou e
obteve publicações exclusivas. Outra grande novidade propiciou a explosão nas vendas em 1869,
eram moldes de roupas de papel, que passou a fazer parte do conteúdo destas revistas. A partir
daí, a revista feminina se tornou um fenômeno de ascensão rápida, conquistando seu espaço.
O que a princípio era considerada um luxo e de pouco acesso, logo se expandiu por toda
Europa e Estados Unidos. Na França, as revistas surgiram após a Revolução; na Itália, junto com a
luta pela independência do país. Na Alemanha, os periódicos traziam conteúdos políticos, onde os
revolucionários clamavam pelos direitos das mulheres, defendendo causas como: proteção da
mulher trabalhadora, direitos civis das mulheres, restabelecimento do divórcio, ação de
investigação da paternidade, direito de exercer determinadas profissões e direito ao voto.
Foi somente em 1827 que as revistas femininas chegaram ao Brasil, com uma publicação
chamada O Espelho Diamantino. A moda e a literatura compunham as bases principais que
sustentavam as publicações femininas brasileiras. A Revista da Semana, lançada em 1901 no Rio

172
de Janeiro, inaugurou a novidade da utilização da fotografia. Lançada em 1914 por Virgínia de
Souza Salles, a Revista Feminina foi a maior revista brasileira até então.
Nos dias atuais, a mulher contemporânea dispõe de uma grande variedade de revistas
femininas, como: Claudia, Nova, Elle, Borde Fácil, Faça e Venda, Boa Forma, Viva Mais, Capricho,
TPM, Manequim, Tititi, Contigo, Ana Maria, Estilo, Atrevida, Carícia, Chiques e Famosos, Caras,
Corpo a Corpo, Toda Teen, Marie Clair, Criativa, Agulha de Ouro, Uma, Única, Gloss, dentre outras.
Atualmente, essas publicações detêm a posição de segundo lugar no ranking de revistas, ficando
atrás somente das tiragens de revistas de informações semanais.
A revista feminina tem um conjunto de elementos que se caracterizam por linguajar
afetivo, ilustração colorida, presença marcante de textos ilustrados por diferentes tipos de
imagens, variedade de assuntos, temas e segmentos. Hoje, essa imagem é composta quase que
exclusivamente por recursos fotográficos.
A revista é uma mídia onde as leitoras a enxergam como uma amiga íntima e particular, a
quem demonstra segurança, confiança e simpatia. É uma companheira em todas as horas ou em
qualquer lugar. Com ela pode se estabelecer uma relação de companheirismo, que muitas vezes
vira objeto de coleção e motivo de orgulho ao exibi-la. A revista tem um formato idealizado para
que ela possa estar junto à leitora atuando no ideário e imaginário, sendo capaz de manipular
através de seus comentários a formação dos modos de ver e de ser de quem a lê. Essa é a questão
colocada por Sodré (1966, p.2), quando diz que:

A história da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade


capitalista. O controle dos meios de difusões de idéias e de informações que se
verifica ao longo do desenvolvimento da imprensa é reflexo da sociedade
capitalista e o traço que comprova esta ligação dialética se constata na influência
que a difusão impressa exerce sobre o comportamento da massa e dos indivíduos.

Como vemos na citação, a mídia exerce uma forte influência nos consumidores, seja no
consumo de produtos, seja na aquisição de comportamento. As revistas femininas estimulam o
imaginário, “induzem” a mulher leitora, que cada vez mais busca a independência financeira e
emocional. Anseiam o reconhecimento e a valorização das suas virtudes e lutam pela igualdade de
direitos diante da sociedade. . “Ela pode ser vista como um produto, um negócio, uma marca, um
objeto, um conjunto de serviços, uma mistura de jornalismo e entretenimento, segundo Scalzo
(2004, p.12)”.
As revistas femininas têm como objetivo fundamental provocar algumas reflexões sobre a
representação da mulher brasileira, solidificando conceitos e estereótipos que buscam enraizar
padrões estéticos e comportamentais idealizados no público feminino. Elas atuam como um

173
marco significativo da história contemporânea, que documenta tanto a evolução da imprensa na
modernidade, quanto da história social da mulher.
Lembramos ainda que a revista feminina, entendida como um “evento comunicativo”
(FAIRCLOUGH, 1995)1 é uma prática representativa de outras práticas sociais. Em função disso,
está sujeita às pressões econômicas, políticas e culturais e, portanto, tem caráter ideológico.
Funcionando como um veículo ideológico de construção de conhecimento, a revista
feminina marca sua presença na arena de lutas pela imposição de significados aos diferentes
grupos sociais. Inferimos que ela pode ser considerada um artefato cultural que trabalha a
produção e o consumo dos seus “textos” na tentativa de impor uma regularidade de conduta de
um determinado grupo social – o das mulheres.

Elas realmente não fogem à luta


A luta pela igualdade de direitos não é um fato recente na história da humanidade. Desde
1940, as mulheres iniciaram o chamado Movimento Feminista, que tinha a função de denunciar as
desigualdades de gênero.
Com altivez e persistência, as mulheres conseguiram avanços significativos, dentre eles o
direito ao voto, somente permitido em 1927. A luta pelo voto feminino foi o primeiro passo a ser
alcançado no horizonte feminista. Outra conquista de extrema importância foi a invenção da pílula
anticoncepcional, que permitiu o ingresso da mulher ao mercado de trabalho. Paralelo a esse
acontecimento, no fim do século XIX, as mulheres começaram a ocupar os bancos das
universidades e os interesses não estavam mais exclusivamente voltados ao lar.
Todas essas transformações sociais ocorreram paralelamente ao desenvolvimento dos
meios de comunicação de massa, que refletem o universo feminino e, ao mesmo tempo,
influenciam as mulheres. O que antes se limitava a “romances açucarados”, à culinária e às
questões relacionadas aos filhos, com o decorrer do tempo, transformaram-se em interesses
voltados à beleza, à moda, ao comportamento e ao sexo. As revistas femininas em especial, têm
papel decisivo nessa integração entre os desejos e as necessidades das mulheres. Heller (1995, p.
519) relata essa evolução feita pelas mulheres na citação abaixo:

Às vezes mais sutis, outras vezes mais diretos e sem tantos disfarces, revelaram a
preocupação em torno da leitura para a mulher: perigosa, se os romances fossem
de “má qualidade” ou inspiradores de idéias avançadas; difícil e cansativa, se as
obras tivessem um conteúdo considerado mais complexo, mas necessária para

1
De acordo com Fairclough (1995), toda e qualquer instituição produtora de “textos” (escritos ou falados, sons ou
imagens) voltada para a comunicação de massa, é considerada um evento comunicativo.

174
que as mulheres pudessem educar seus filhos de forma conveniente. (...) Como
ser mulher significava ser mãe e conseqüentemente estar familiarizada com o
universo infantil, a autoria bem-sucedida de livros escolares infantis era
interpretada como uma decorrência natural ao sexo feminino. Os mesmos
motivos desqualificavam-na como leitora. Confinada e distante do mundo do
trabalho remunerado e de seus problemas, a mulher vivia num universo muito
reduzido, do qual a leitura fazia parte, mas em pequenas porções. Folhetins,
revistas e alguns romances eram tudo do que dispunham para ler. Por isso, ao
lerem obras consideradas de maior complexidade, muitos autores imaginavam
que elas teriam dúvidas, facilmente resolvíveis por seus maridos.

Atualmente, mesmo que a mulher não signifique mais ser unicamente esposa, mãe e dona
de casa, algumas publicações dirigidas ao público feminino acabam mantendo esse perfil através
dos textos publicados. Até o século XIX, a leitura era concebida como um perigo até mesmo físico,
perigo esse que era ainda mais eminente para as mulheres que poderiam ser manipuladas pelos
romances, deixando-se levar por tais histórias, tornando-se negligentes com suas tarefas e
obrigações. As palavras de Abreu (2001, p.51) sustentam tais idéias sobre os romances e as
mulheres nesse período:

Eles foram vistos, até o século XIX, como um forte perigo para a moral,
especialmente a das mulheres e moças. Supunha-se que a leitura de romances
levava ao contato com cenas reprováveis, estimulando a significação com
personagens envolvidos em situações pecaminosas como as mentiras, as paixões
ilícitas e os crimes. (...) Também perigoso era o impulso de imaginar-se no lugar
dos personagens envolvidos em situações criminosas: supor-se no lugar de uma
adúltera era tão grave quanto praticar o adultério.

Com a inclusão da mulher no mercado de trabalho e a invenção dos métodos


contraceptivos, a mulher passou a ter “livre arbítrio”, inclusive na leitura. Essas evoluções no
quadro comportamental das mulheres devem-se em parte ao feminismo. Na verdade, essa luta
teve início em 195 d.C, época em que, na Grécia, as mulheres ocupavam posição semelhante à dos
escravos. Algumas representantes do sexo feminino, que tinha como principal função reproduzir,
cozinhar e tecer para a subsistência do homem, começou a exigir no Senado Romano o direito ao
uso dos transportes públicos. A partir de 1940, os movimentos feministas passaram a se expressar
mais intensamente no mundo. Hoje, além de denunciar as desigualdades sociais, políticas e
trabalhistas entre homens e mulheres, as organizações feministas passaram também a questionar
as raízes dessas desigualdades. Basta um olhar em nossa volta para percebemos a presença
marcante das mulheres nas universidades, nos bancos, nos bares e restaurantes, lojas, postos de
gasolinas, escolas e até mesmo nas delegacias.
Diferentemente daquela visão machista, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, as mulheres conquistam seu espaço, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o

175
indivíduo moderno. Como observa o crítico cultural Mercer (1990, p.43) “A identidade somente se
torna uma questão quando está em crise, como algo que se supõe como fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”. A esse respeito Hall (1987) discute que esse
processo de transformação se torna tão fundamental que, não sabe se devemos nos perguntar se
não é a própria modernidade que está sendo transformada.
Segundo van Dijk (2008), as diferenças de poder entre as mulheres e os homens e suas
manifestações na linguagem foram objetos de vários estudos, principalmente durante a última
década, e especialmente por meio de pesquisadoras feministas, onde se pode encontrar uma
extensa bibliografia sobre o assunto.

Identidades na pós-modernidade
Podemos afirmar que as revistas femininas influenciam na construção da identidade
feminina?Será que seu comportamento se constitui a partir das leituras nelas contidas? As revistas
femininas têm atrativos especiais que convidam as mulheres à sua leitura. É imensuravelmente
fascinante como se compõe o visual de uma banca de revistas. São tantos títulos, tantas cores,
formas, texturas, manchetes e os mais variados assuntos que tendem a “definir” o
comportamento dessas mulheres leitoras.
A magia de abordar diversos assuntos desperta cada vez mais o interesse em adquirir esses
“manuais”. Afinal, a mulher contemporânea é propensa a estar inteirada sobre temas que compõe
o cotidiano como: saúde, beleza, amor, sexo, comportamento, tatuagem, plásticas, moda,
dinheiro, astrologia, decoração, diversão, maquiagem, trabalho, independência, ginástica, novelas,
cabelo, crianças, negócios, etc. Enfim, é um conjunto de elementos que fazem parte da nossa
realidade ou que povoam o nosso imaginário.
Para melhor compreender a formação identitária, apresentamos as três concepções de
identidade, propostas por Hall (2005), que retratam a realidade do sujeito em momentos diversos
da nossa história, são eles: “sujeito do iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno”.
Propomo-nos discorrer o que caracteriza cada sujeito.
O sujeito do iluminismo era visto como pronto, fechado e acabado. Um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão. O sujeito iluminista nascia e se
desenvolvia permanecendo essencialmente o mesmo. Considerada uma concepção muito
individualista. A segunda concepção de identidade, o sujeito sociológico, reflete a crescente
complexidade do mundo moderno. Essa concepção retrata um momento que o sujeito não se
constitui por si só, individualizado, e sim, através do convívio e da relação com as outras pessoas.

176
Dessa forma, o “eu” se desenvolve na troca de experiências e na diversidade de identidades no
mundo ao redor. A terceira e última concepção, a do sujeito pós-moderno, surge a partir de
transformações sociais, políticas e econômicas. “O sujeito, antes dotado de uma identidade
unificada e estável, se torna fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2005, p.15). O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático.
Segundo Hall (2005), a identidade torna-se uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Essa é uma concepção definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas. A identidade plenamente identificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia. A respeito dessas transformações que ocorrem na
construção da identidade, Marx (1973) professa idéias que conceituam a modernidade tardia. A
saber:

É o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas


as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas as relações
fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e
concepções, são dissolvidas, todas as relações recém formadas envelhecem
antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar.
(Marx e Angel, 1973, p.70).

A criação dessa ilusão é um recurso discursivo que fica evidente nos textos da mídia. Como
o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e
a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que
permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade
concreta. Nesse sentido, a mídia participa ativamente, na sociedade atual, na construção do
imaginário social, no interior do qual os indivíduos percebem-se em relação a si mesmos e em
relação aos outros. Dessa percepção vem a visualização do sujeito como parte de uma
coletividade.
Para Baczko (1984) é por meio do imaginário que se podem atingir as aspirações, os medos
e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades esboçam suas identidades e objetivos,
detectam seus inimigos e, ainda, organizam seu passado, presente e futuro. “O imaginário social

177
se expressa por ideologias e utopias, que se materializam em símbolos, alegorias, rituais e mitos. A
percepção de uma “identidade”, que aglutina os indivíduos em aspirações e sonhos comuns,
constrói-se por meio desses símbolos que circulam no espaço social. Podemos considerar a revista
feminina como um símbolo, capaz de “concretizar” nossos sonhos e aspirações.
Os conteúdos culturais da mídia e suas mensagens, produzidas sob a forma de espetáculo,
consolidaram-se como um sistema capitalista e influenciaram o modo como as pessoas pensam e
se comportam. Muitas mulheres se deixam influenciar pelas doutrinas das revistas femininas.
Imaginam-se modernas, belas e autoconfiantes. Em seu cotidiano, aplicam os conhecimentos
adquiridos através desta leitura, formando assim sua personalidade. A identidade é realmente
algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente
na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre
sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo
formada”.
A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2005). É justamente essa
preocupação da forma como são vistas que as mulheres almejam o padrão estereotipado pela
sociedade. Atender a critérios como estar em boa forma física, vestida com roupas da moda, ter
alguns dotes culinários, além de conhecer técnicas que inovam o sexo e a educação dos filhos
parece tão primordial quanto existir. Ser mulher para as revistas femininas é ser antes de tudo
consumidora, seja de produtos, seja de modos de vida apresentados como ideais.

Análise crítica do discurso: perspectivas teóricas e metodológicas


Teoricamente, este artigo será embasado pelas teorias advindas da Análise Crítica do
Discurso, com foco na corrente social desenvolvida por Fairclough.
A Análise Crítica do Discurso é, ao mesmo tempo, uma teoria e um método de análise do
discurso. Seu “universo” teórico-metodológico caracteriza-se por uma forte preocupação social e
deriva de abordagens multidisciplinares ao estudo da linguagem. Dessa forma, ao analisar textos
criticamente não estão interessados apenas nos textos em si, mas em questões sociais que
incluem maneiras de representar a “realidade”, manifestação de identidades e relações de poder
no mundo contemporâneo (MEURER, 2005).
O texto, tanto escrito como em forma de ilustrações, produzidos pela imprensa estudada, é
composto de enunciados que se constituem como discurso acerca do que se pretende transmitir a

178
respeito da representação da mulher. Os textos das revistas femininas informam, interagem,
dialogam, instigam a reflexão porque são constituídos de enunciados prescritivos e
normalizadores do que é considerado ideal para a vivência da feminilidade.
A ACD desenvolvida por Fairclough atribui grande relevância à compreensão da linguagem
na condição da vida social no mundo atual. Assim, convém-nos apresentar as perspectivas gerais
da fundamentação teórica da Análise Crítica do Discurso, na visão de Fairclough:
a) O discurso é uma forma de prática social em relação dialética com estruturas sociais;
b) O discurso tem poder constitutivo, ou seja, cria formas de conhecimentos e crenças,
relações sociais e identidades;
c) Os textos contêm traços e pistas de rotinas sociais complexas, mas os sentidos são muitas
vezes naturalizados e não percebidos pelos indivíduos;
d) Os textos são perpassados por relações de poder;
e) A ACD privilegia o estudo da interligação entre poder e ideologia.
f) Os textos formam correntes: respondem a, e podem provocar ou coibir, outros textos;
g) A ACD cultiva uma perspectiva emancipatória.
A revista feminina ocupa um certo papel na (trans) formação da identidade de sua leitora.
Esse processo de (trans) formação é analisado por Fairclough como parte do que o autor chama de
prática social. Dessa forma, dois conceitos parecem centrais: “hegemonia” e “ideologia”, tendo em
vista que, estas são as duas categorias que estão inseridas no contexto da prática social.
A hegemonia representa a liderança através de domínios econômicos, políticos, culturais e
ideológicos de uma sociedade. É o poder de uma determinada classe, porém temporário, com um
equilíbrio instável. Fairclough trabalha com o conceito de hegemonia como poder intelectual e
moral obtido por meio do consenso social, onde a visão de um grupo social particular é
recontextualizada, como senso comum (FAIRCLOUGH, 2008).
A ideologia envolve significações da realidade (o mundo físico, as relações sociais e as
identidades sociais), que são construídas por práticas discursivas e que contribuem para a
produção, reprodução e transformação de relação de dominação. Um dos mais significantes
efeitos da ideologia é a constituição do sujeito, em que instituições como educação e mídia têm
um papel decisivo.
A preocupação maior de Fairclough é desenvolver um aparato teórico-metodológico que
possibilite estudar não apenas os textos em si, mas também sua interação com as estruturas
sociais. Dessa forma, o vocabulário típico de muitos estudiosos da ACD apresentará noções como
“poder”, “dominação”, “hegemonia”, “ideologia”, “classe”, “gênero”, “raça”, “discriminação”,

179
“interesses”, “reprodução”, “instituições”, “estrutura social” e “ordem social” além das noções
analíticas do discurso mais familiares (van Dijk, 2008).

A construção da imagem de si: o discurso feminino nas cartas ao editor


Para analisar as cartas ao editor veiculadas na revista “Claudia” e consequentemente
verificar a construção do “eu”, faz-se necessário que se apresente, mesmo que superficialmente, a
noção do ethos e mídia.
Maingueneau aponta que um dos maiores obstáculos com que deparamos quando
queremos trabalhar com a noção de ethos é o fato de ela ser muito intuitiva. A idéia de que, ao
falar, um locutor ativa em seus destinatários uma certa representação de si mesmo, procurando
controlá-la, é particularmente simples, é até trivial.A noção de ethos remete a coisas muito
diferentes conforme seja considerada do ponto de vista do locutor ou do destinatário: o ethos
visado não é necessariamente o ethos produzido.

O ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma
“imagem” do locutor exterior a sua fala; O ethos é fundamentalmente um
processo interativo de influência sobre o outro; é uma noção fundamentalmente
híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não
pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela
mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU, 2008,
p.17)

Na citação, o autor afirma que o ethos é identificado a partir de um dado discurso e que o
seu foco é influenciar o outro, no caso em estudo, as leitoras da revista feminina “Claudia”, que
previamente se identifica com o assunto abordado na carta ao editor e ao mesmo tempo, avalia
como aquelas palavras influenciam seu comportamento, seja ele estereotipado pela sociedade ou
não.
Essa influência exercida nas leitoras da revista “Claudia” pode ser explicada pelo poder
midiático, como veremos nas palavras de Charaudeau.

As mídias manipulam tanto quanto manipulam a si mesmas. Para manipular, é


preciso um agente de manipulação que tenha um projeto e uma tática, mas é
preciso também um manipulado. Como o manipulador não tem interesse em
declarar sua intenção, é somente através da vítima do engodo que se pode
concluir que existe uma manipulação. A questão, então, é saber quem é o
manipulado, fato que, para as mídias, remete à questão de saber quem é o alvo
da informação. (CHARAUDEAU, 2009, p.18)

Nessa instância, é necessário conhecer o perfil das mulheres leitoras da revista em


questão. A revista Claudia surge em abril de 1961 e consolida a imprensa feminina no Brasil, num

180
momento de forte discursividade de identidade nacional. Seguindo uma fórmula de revista
feminina que era aplicada nos Estados Unidos e na Europa, essa revista se desenvolve ao mesmo
tempo em que se constitui, no país, a chamada sociedade de consumo. Dessa forma, como a
própria Editora Abril definiu, é uma revista onde a leitora não sonha, consome. Exibem em todas
as matérias produtos que a mulher encontraria facilmente em qualquer lugar do Brasil,
funcionando como um verdadeiro guia de compras, influenciando suas leitoras a adotarem
determinado padrão de consumo, associando o ato de consumir ao de ser moderno.
Seu grupo editorial foi sensível às metamorfoses urbanas e à explosão da classe média.
Assim, procurou adaptar a dona de casa ao ritmo da vida moderna, com uma linguagem direta,
urbana e coloquial. A leitora de Claudia busca construir uma identidade e administrar seus
problemas pessoais e familiares.
As revistas femininas acham-se, pois, na contingência de dirigir-se a um grande número de
mulheres, ao maior número, a um número planetário, se possível. Como fazê-lo a não ser
despertando o interesse e tocando a afetividade do destinatário de informação? As mídias
estariam se violentando e, sem se darem conta disso, tornam-se manipuladoras. Daí que, num
efeito de retorno, tornam-se automanipuladas, formando um círculo vicioso, “o da mídia pela
mídia”.
Charaudeau (2009) afirma ainda que, comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente
escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas adequadas para estar de
acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha de efeitos de sentido para
influenciar o outro, isto é, no fim das contas, escolha de estratégias discursivas.
A esse respeito, Van Dijk (2008) diz que manipular pessoas envolve manipular suas mentes,
ou seja, as crenças das pessoas, tais como seus conhecimentos, suas opiniões e suas ideologias, os
quais por sua vez controlam suas ações. Constatamos, entretanto, que há muitas formas da
influência mental baseadas no discurso, tais como informar, ensinar e persuadir, o que também
modela ou muda os conhecimentos e as opiniões das pessoas.
É justamente com intenção de persuadir as leitoras que a revista “Claudia” criou este
espaço, para que, estas leitoras ao se identificarem com as matérias exibidas a cada edição,
possam expressar seus pareceres, passando de leitoras a autoras e dessa forma, prender a
atenção do seu público-alvo, pelo simples motivo da sensação de igualdade. Elas se imaginam
naquelas palavras, ou melhor, percebem suas opiniões retratadas em um espaço que é voltado
para milhares de mulheres.

181
Análise das cartas ao editor na revista feminina “claudia”
As cartas selecionadas para análise foram publicadas na revista feminina “Claudia”, na
edição de abril/2010. Examinaremos os trechos com olhos críticos, procurando levar em
consideração as relações intrínsecas entre o texto e o contexto, com o intuito de buscar evidências
que possam sinalizar como os aspectos ideológicos, as “visões de mundo” de cada leitor/escritor
moldam a forma discursiva das cartas, e, também, como esses leitores/escritores identificam-se,
estabelecem relações sociais e posicionam-se diante do fato abordado nas cartas.

Carta 1 - AGENDA FEMININA


“Sou uma empresária bem-sucedida, tenho um marido participativo e jamais sofri discriminação
pelo fato de ser mulher. Por isso, ao ler a “Agenda das mulheres no século 21”, me senti inserida
no movimento. Não podemos nos resignar às diferenças impostas pela sociedade”. Claudia
Malotti.
Na carta em análise, percebemos que a autora/leitora expressa nitidamente a sua
satisfação profissional, pois se identifica como empresária bem-sucedida, como também a
satisfação pessoal, quando afirma ter um marido participativo. Um fato muito importante é que
ela menciona jamais ter sofrido discriminação pelo fato de ser mulher. Essa importância deve-se
ao fato da conquista do espaço feminino na sociedade, outrora machista e conservadora. Claudia
Malotti, afirma na carta que leu a matéria intitulada “Agenda das mulheres no século 21”, onde a
própria temática aguça a curiosidade da mulher pós-moderna. Para finalizar a carta, a
autora/leitora deixa uma espécie de “recado” para as demais leitoras – que as mulheres do século
XXI não podem se resignarem às diferenças impostas pela sociedade – ou seja, devem buscar cada
vez mais seu espaço na sociedade, até sentirem que atingiram um grau de igualdade ao sexo
masculino, principalmente no que se refere ao setor profissional.

Carta 2 - REINVENÇÃO PESSOAL


“Tenho 30 anos e uma pós-graduação, mas estou desempregada desde dezembro. A matéria “A
hora de reinventar é agora” me trouxe a motivação necessária para dar um up na minha carreira.
Obrigada!”. Juliana Silveira.
Nesta carta, a autora/leitora Juliana Silveira faz uma breve descrição da sua atual situação
profissional. A autora começa mencionando sua idade – 30 anos – e em seguida sua formação – já
concluiu uma pós-graduação. O maior choque para as leitoras refere-se à informação que a autora
está desempregada desde dezembro, ou seja, há cerca de quatro meses (até a publicação da carta

182
ao editor). Tal informação tende a causar estranhamento pelo fato de que, pessoas qualificadas –
possui curso superior e pós-graduação – têm maiores facilidades de estarem empregadas e
satisfeitas com a profissão que exercem, tornando-se até inimaginável a situação oposta. A
matéria exibida na edição anterior da revista Claudia, intitulada “A hora de reinventar é agora”,
propiciou à leitora/autora a motivação para dar um up na carreira (palavras da leitora/autora).
Juliana finaliza a carta agradecendo a equipe responsável pela edição da revista “Claudia”. Esse
agradecimento deixa claro para todas as leitoras que, as matérias exibidas na revista em questão,
auxiliam na resolução dos problemas diários das mulheres, além de motivá-las a vencer desafios
na qual se julgavam incapazes de solucionar.

Considerações finais
A discussão realizada tratou de questões relativas à construção do “eu”, ou seja, a
representação do ethos nas leitoras/autoras da revista feminina “Claudia”. Ao estudar a evolução
da mulher na sociedade, a fragmentação da identidade e a formação do comportamento
feminino, depreendemos, mesmo que preliminarmente, que a revista em questão,
intencionalmente objetiva influenciar e tornar estereótipo um determinado padrão estético e
comportamental, veiculados nessa mídia.
A partir dos pressupostos teóricos da Análise Crítica do Discurso, revelamos como a revista
feminina “Claudia” concebe a interação com as leitoras, criando um tipo particular de
envolvimento, chegando mesmo à cumplicidade. Importa observar também as relações de poder
que o enunciador exerce sobre as leitoras e como as cartas ao editor formam e propagam um
conceito de comportamento social feminino que perpassa toda revista, trabalhando como a
linguagem empregada constitui uma estratégia de persuasão que legitima os padrões ideológicos
existentes em nossa sociedade neste início de século XXI.

Referências

ABREU, Márcia. Diferentes formas de ler. Campo Grande, 2001.

BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Trad. Ângela S. M. Corrêa. 1ª Ed., 2ª reimpressão. São
Paulo: Contexto, 2009.

DIJK, Teun A. Van. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008.

FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989.

183
______. Media discourse. London: Edward Arnold, 1995.

______. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª. Edição. Tradução de Tomaz Tadeu
da Silva e Guaraciara Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP e A, 2005

HELLER, Bárbara. Tuteladas ou letradas? Imagens de mulheres em textos escolares e literários de


1800 a 1930. Natal, RN. UFRN: Editora Universitária, 1995.

MAINGUENEAU, Dominique. “A propósito do ethos”. In: MOTTA & SALGADO (org.). Ethos
discursivo. São Paulo: Contexto, 2008.

MERCER, Kobena. Marginalization and contempory cultures. Ney York: Cambridge, 1990.

MEURER, J. L; BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée. Gêneros: teorias, métodos, debates. São
Paulo: Parábola Editorial, 2005.

SCALZO, Marília. Jornalismo de Revista. 2ª. Edição. São Paulo. Contexto, 2004.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro, RJ. Civilização Brasileira,
1966.

WWW.claudia.abril.com.br. Acesso em 10. Abril. 2010.

WWW. reposcom.portcom.intercom.org.br. Acesso em 15. Jan. 2008.

184
A COLONIZAÇÃO PUBLICITÁRIA NO DISCURSO POLÍTICO

Ivandilson Costa1 (UERN)


Weslley Mayron Cunha Pacheco2 (UERN/CNPq)

Vinculado a programa de Iniciação Científica (PIBIC/UERN/CNPq), este trabalho tem como


principal objetivo investigar como se dá a reestruturação da ordem de discurso político, sob o
impacto do movimento colonizador do discurso publicitário. Para tanto, ancora-se na teoria da
Análise Crítica do Discurso, partindo do pressuposto de que a comodificação se apresenta como
um processo em que domínios e instituições sociais vêm a ser redefinidos em termos de
produção, distribuição e consumos de mercadorias (Fairclough, 2001). Toma-se, desse modo, a
linguagem como parte irredutível da vida social, tal como em Fairclough (2003) e Chouliaraki e
Fairclough (1999), projetando assim seu papel preponderante na elaboração da pesquisa social (cf.
Resende e Ramalho, 2006; Resende, 2009). Para tal, focalizou-se o gênero guia eleitoral, para o
que se abordou um conjunto de edições de programas de campanha eletiva veiculadas na mídia
televisiva, em horário eleitoral gratuito. Os dados foram tratados de acordo com a natureza
qualitativa de pesquisa em ACD, considerando-se uma descrição e interpretação da realidade
social. Tais dados também foram analisados à luz de teorias focais, como a análise de gêneros
textuais enquanto fato social, de acordo com Bezerman (2005) e Marcuschi (2005; 2008); a
semiótica social, conforme Kress e van Leeuwen (1996); a linguística sistêmico-funcional, de
Halliday (2004). Como resultado, tem-se a evidência de tal colonização, trazendo uma reflexão
acadêmica e social para a compreensão das transformações e/ou manutenções de estruturas
sociais de dominação. O trabalho, nessa perspectiva, pretende se mostrar relevante para uma
área de destaque e ainda passível de mais estudos, os que envolvem discurso e mídia.

Palavras-chave: discurso político, discurso publicitário, colonização de ordens de discurso.

Introdução
O presente trabalho insere-se em uma proposta de investigação no contexto do projeto de
iniciação cientifica (PIBIC/UERN/CNPq) intitulado “A Política Publicizada: análise da colonização de
ordem de discurso”. A pesquisa encontra-se fundamentada nos pressupostos teórico-
metodológicos da Análise Crítica do Discurso, que concebe ser o discurso marcado pelas
estruturas sociais que, ao mesmo tempo em que o determinam, produzem-no. Há, portanto, que
se considerar uma interdependência entre linguagem, ideologia, discurso e poder, sendo aquela
tomada como uma prática social, processo por meio do qual as pessoas interagem dentro de um
contexto social tendo o discurso determinado pelas estruturas sociais, ideológicas por excelência
que o (re)produzem.
Há, sob esse pano de fundo, um paralelismo entre todas as formas de opressão. Essas

1
Professor do Departamento de Letras da UERN. Mestre em Linguística pela UFPE.
2
Aluno da graduação em Letras pela UERN. Bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UERN/CNPq).

185
relações se refletem na língua, não apenas pelo uso diferenciado que se faz desta, mas, sobretudo,
por sua estrutura mesma e, especialmente, pelos elementos do domínio lexical. A língua nos
projeta, por conseguinte, uma certa imagem da sociedade e das relações de força que a regem.
No âmbito de tal discussão, a publicidade se demonstra como sendo, antes de tudo, um
discurso, uma linguagem, sustentando uma argumentação icônico-linguística com fins de
convencimento consciente ou inconsciente do público-alvo. Assim, relevante é a manutenção de
todo um conjunto de recursos estilísticos, relações semânticas e seleção lexical que operam na
tessitura da mensagem publicitária.
Sob esse prisma, temos que a comodificação se apresenta como um processo pelo qual os
domínios e as instituições sociais vêm a ser organizados e definidos em termos de produção,
distribuição e consumo de mercadorias. Em termos de ordens de discurso, podemos entender a
comodificação, junto com Fairclough (1990; 2001), como a colonização de ordens de discurso
institucionais e mais largamente da ordem de discurso societária por tipos associados à produção
de mercadoria.
Além disso, é acima de tudo possível enxergar, junto com Carvalho (1996), o fato de que a
onipresença da publicidade na sociedade de consumo cria um ambiente cultural próprio, um novo
sistema de valores, co-gerador do espírito de seu tempo.
É importante situar também no âmbito da pesquisa que a produção de gêneros textuais,
como ressalta Bazerman (2005), é acima de tudo a produção de fatos sociais; os textos consistem
em ações sociais significativas realizadas mediante a linguagem. Os gêneros, defende Marcuschi
(2003), são, dessa forma, atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais
variados tipos de controle social e até mesmo ao exercício de poder: são a nossa forma de
inserção, ação e controle social (Marcuschi, 2005: 19).
É relevante, por outro lado, estudar gêneros midiáticos, uma vez que cumpre contribuir
para um debate teórico acerca dos gêneros textuais, além de tomar a mídia como um importante
pêndulo de como as práticas sociais estão estruturadas.
Com as reflexões teórico-metodológicas da análise crítica do discurso e as demais
contribuições dos estudos de gênero e multimodalidade textual, para uma análise mais
abrangente do discurso considerando-o como um produto semiótico, este trabalho tem o objetivo
de analisar a interpenetração do discurso publicitário na ordem de discurso político, tomando
como material de análise todo o conjunto do guia eleitoral do candidato ao cargo majoritário da
cidade de São Paulo, Gilberto Kassab, no segundo turno de disputa, veiculado durante o mês de
Outubro de 2008, no que se refere aos elementos estruturais, linguísticos, discursivos e

186
multimodais.

A Análise Crítica do Discurso


A Análise Crítica do Discurso (ACD) é uma abordagem que tomou como base uma
percepção da linguagem como parte irredutível da sociedade, interconectada a outros elementos
da vida social (Resende e Ramalho, 2006; Resende, 2009). Assim, a ACD abrange uma abordagem
teórico-metodológica que atribui grande relevância à compreensão da linguagem na condução da
vida social e preenchendo uma lacuna quanto à atenção até então dada ao discurso como
elemento que molda e é moldado pelas práticas sociais (Wodak, 2004). A ACD, nesse sentido,
considera o contexto de uso da linguagem como um elemento crucial, propondo, por exemplo,
pesquisas voltadas para relações sociais de luta e conflito, materializadas por discursos como o
institucional, político, em gêneros da mídia.
Neste contexto de análise social, as instituições midiáticas são fundamentais para apontar
as classes dominantes e favorecê-las e, desse modo, as concepções de ideologia, poder e
hierarquia são fundamentais para a constatação do elitismo existente em certas classes sociais:

as instituições midiáticas costumam se considerar neutras por que acreditam que


dão espaço para o discurso público, refletem os estados de coisas de forma
desinteressada, e expressam as percepções e os argumentos dos jornalistas.
Fairclough demonstra a falácia dessas presunções, e ilustra o papel mediador e
construtivo da mídia através de uma variedade de exemplos. (Wodak, 2004: 231).

Nesse contexto, a ACD procura uma teoria adequada à ideologia, na perspectiva de como
esta se processa na sociedade. Segundo Wodak (2004: 225), a ideologia é o fator de manutenção
para que a sociedade e as classes sociais continuem com o ‘poder’, manipulando toda a massa
social bem como usufruindo de certos benefícios sociais.
Por sua vez, a noção de ‘poder’ para a ACD consiste na manipulação de práticas sociais
sediadas por classes dominantes em detrimento de classes menos favorecidas (Fairclough, 2001),
o que traz uma reflexão sobre a hierarquia também considerada pela ACD como fundamento para
a análise das instituições midiáticas. A hierarquia, segundo Fairclough (2001), deve-se a práticas
discursivas integrantes de práticas sociais. Estas práticas discursivas se apropriam da ideologia
para estabelecer e manter a hierarquia:

Minha formulação da análise na dimensão da prática discursiva está centrada no


conceito de intertextualidade. Entretanto, minha formulação da análise na
dimensão da prática social está centrada nos conceitos de ‘ideologia’ e

187
essencialmente de hegemonia, no sentido de um modo de dominação que se
baseia em alianças, na incorporação de grupos subordinados e na geração de
consentimento. As hegemonias em organizações e instituições particulares, e no
nível societário, são produzidas, reproduzidas, contestadas e transformadas no
discurso. (Fairclough, 2001: 28)

Além dessas teorias analisadas e particularmente formuladas para um estudo sócio-


discursivo, a ACD leva, ainda, em conta os pressupostos de que: (a) o discurso é estruturado pela
dominação; (b) cada discurso é historicamente produzido e interpretado, isto é, está situado no
tempo e no espaço; (c) as estruturas de dominação são legitimadas pelas ideologias dos grupos
que detém o poder (cf. Wodak, 2004). Van Dijk (2001), a esse respeito, assim se posiciona:

A Análise Crítica do Discurso é um tipo de pesquisa analítico-discursiva que


primordialmente estuda o modo como o abuso, domínio e desigualdade do poder
social são estabelecidos, reproduzidos e mantidos pelo texto/discurso em dado
contexto sócio-político. (van Dijk, 2001: 352).

Fica claro na afirmação de van Dijk (2001) e na reflexão que se fez nesta seção que a ACD
não é apenas uma teoria linguística contemporânea, mas, ao passo que procura embasamento
teórico para um estudo sócio-discursivo, também é um método de investigação social com fins
práticos para a sociedade e classes sociais menos favorecidas nas práticas sociais. Resende e
Ramalho (2006: 23), estudando a obra de Fairclough, concluem a respeito da ACD: “a visão e a
análise linguística e semiótica, por sua vez, auxiliam a prática interpretativa e explanatória tanto a
respeito de constrangimentos sociais sobre o texto como de efeitos sociais desencadeados por
sentidos de textos”, que possibilitam externar classes dominantes e discursos para a manutenção
de tais classes, e, em contra partida, provocar a produção de discursos que possibilitem mudanças
sociais.
Em suma, para a ACD, o discurso é tido como uma forma de prática social, realizada por
intermédio de gêneros textuais. Isto tem as seguintes implicações (Fairclough, 2001):
(a) os indivíduos realizam ações por meio da linguagem;
(b) há uma relação bidirecional entre o discurso e as estruturas sociais, na exata medida
em que o discurso é simultaneamente influenciado pelas estruturas sociais e as
influenciam;
(c) há uma preocupação com os recursos empregados na produção, distribuição e consumo
dos textos, recursos sociocomunicativos, porquanto perpassados por discursos e
ideologias.

188
Resenhando o trabalho de Fairclough, a esse respeito, Meurer (2005: 82-3) nos deixa bem
a par da abordagem crítica de análise de discurso, pela exposição das seguintes perspectivas
teóricas:
a) o discurso é uma forma de prática social em relação dialética com estruturas sociais;
b) o discurso tem poder constitutivo;
c) os textos contêm traços e pistas de rotinas sociais complexas, mas os sentidos são
muitas vezes naturalizados e não percebidos pelos indivíduos;
d) os textos são perpassados por relações de poder;
e) a ACD privilegia o estudo da interligação entre poder e ideologia.
f) os textos formam correntes: respondem a, e podem provocar ou coibir, outros textos.
g) a ACD cultiva uma perspectiva emancipatória.

O discurso da mídia
Fairclough (1995: 33-4) propõe uma lista de metas para uma adequada análise crítica do
discurso da mídia:
 Um foco de análise deve ser mais amplo sobre a forma como mudanças na sociedade e na
cultura são manifestos na mudança de práticas de discurso midiático. A seleção dos dados deve
refletir proporcionalmente áreas de instabilidade e variabilidade, bem como áreas de
estabilidade.
 A análise de textos da mídia deve incluir uma atenção detalhada a sua linguagem e ‘textura’. Ela
deve também incluir uma análise detalhada da imagem visual e efeitos sonoros.
 A análise de textos deve ser complementada pela análise da produção e consumo de textos,
incluindo uma atenção para as transformações a que os textos estão submetidos pelas redes de
práticas discursivas.
 A análise de textos e prática deve ser mapeada pela análise do contexto institucional e sócio-
cultural mais amplo das práticas midiáticas, incluindo as relações de poder e as ideologias.
 A análise textual deve incluir tanto análise textual quanto intertextual em termos de gêneros e
discursos.
 A análise linguística de textos deve ser concebida multifuncionalmente, e ser orientada a partir
da representação e constituição de relações e identidades como processos simultâneos nos
textos, bem como as importantes relações entre eles.
 A análise linguística de textos envolve a análise de um certo número de níveis de linguagem,
fônico, lexical, gramatical e macro-estrutural e esquemático.

189
 A relação entre textos e sociedade/cultura deve ser vista dialeticamente. Textos são moldados
socioculturalmente, mas eles também constituem a sociedade e a cultura de modo que podem
ser tanto transformadores como reprodutivos.

O discurso publicitário
De certo modo, são as condições sociais que tornam a publicidade um construto possível e
nas quais se efetua seu elemento motriz, o consumo. Assim, são condições imprescindíveis à
matraca publicitária primeiramente o supérfluo e em segundo lugar a existência de um mercado
de massa. A esse respeito Vestergaard e Schrøder (1988: 3-4) lembram que “a superprodução e
subdemanda tornam necessário estimular o mercado, de modo que a técnica publicitária mudou
da proclamação para a persuasão.” Sob essa perspectiva, o conjunto de necessidades materiais e
sociais dá a tônica da relação informação/persuasão na publicidade: os objetos que usamos e
consumimos deixam de ser meros objetos de uso para se transformarem em veículos de
informação sobre o tipo de pessoa que somos ou gostaríamos de ser.
A publicidade, nesse sentido, reflete muito de perto as tendências do momento e os
sistemas de valores da sociedade. Como já acentuam Vestergaard e Schröder (1988: 74),

Os anúncios [publicitários] devem preencher a carência de identidade de cada


leitor, a necessidade que cada pessoa tem de aderir a valores e estilos de vida
que confirmem seus valores e estilos de vida e lhe permitam compreender o
mundo e seu lugar nele; há um processo de significação, no qual um certo
produto se torna a expressão de determinado conteúdo (estilo de vida e valores).

A rigor, podem ser apontadas como cinco as tarefas básicas do publicitário (Vestergaard e
Schröder, 1988: 47):

1. Chamar a atenção;
2. Despertar o interesse;
3. Estimular o desejo;
4. Criar convicção;
5. Induzir à ação.
Tais metas funcionam em coadunação com os elementos constitutivos do anúncio,
segundo a concepção de Vestergaard e Schröder (1988: 49): (a) título; (b) texto; (c) assinatura; (d)
slogan. Assim, funções como a da atenção e do interesse têm como elementos responsáveis um
consórcio entre título, ilustração e slogan.

190
Sells e Gonzalez (2003) concebem uma divisão da publicidade em três componentes
básicos: o texto, a imagem e a organização desses elementos.
O texto figura como o elemento que fornece informação acerca do produto e mais
propriamente fornece ancoragem para a imagem. Sob a categoria geral de texto, podemos
encontrar uma informação descritiva acerca do produto, enunciados para cativar a atenção do
leitor, bem como, tipicamente, frases curtas que encerram a função de slogan e finalmente o
nome da empresa e/ou produto anunciado. São, quanto a esse aspecto, dignas de nota
propriedades físicas do texto como fonte (forma, tamanho), cor, formato etc.
A par disso, a publicidade possui um componente icônico, uma imagem que é tipicamente
uma cena que fornece um pano de fundo para o conjunto da peça publicitária. Usualmente, ela
funciona como um componente interpretacional que guia o leitor para certos aspectos de sentido,
possivelmente em uma relação bidirecional com o texto.
Imagem e texto estão dispostos articuladamente sob determinada organização que passa a
ser um importante componente para o conjunto da peça publicitária. A organização pode sugerir
coerência, algum modo de ordem em que as partes são interpretadas e a relevância que
determina o modo particular de sentido que a publicidade possui.
Tal atividade consumidora, enfatiza Campos (1987), passa, portanto, da consideração dos
objetos em seu valor-de-uso (determinado pelas propriedades materialmente inerentes à
mercadoria) à agregação de um valor-de-troca simbólico. Se o primeiro se pode definir em termos
individuais, este último é estritamente social, por promover o relacionamento entre diversos
produtores.
Valor-de-uso e valor-de-troca não mantêm, dessa forma, mais vínculo algum em nosso
sistema de consumo: enquanto um perde sua funcionalidade prática, o outro transforma os
objetos em conotadores de posição social, em portadores de significação social. O valor do
objeto, nesse sentido, não mais é definido pelo trabalho nele corporificado, mas pelo sistema
social que faz dele signo de seus valores básicos – status, felicidade, amor, segurança. É, com
efeito, através primordialmente de objetos que os homens se relacionam uns com os outros.
A publicidade desloca, portanto, o objeto de sua função de uso para uma função de signo,
promovendo a acumulação e proliferação dos objetos, numa política do supérfluo, numa extinção
planejada daqueles através de sua reciclagem/perecibilidade, gerando necessidades e desejos que
levam a um consumo recorrente e praticamente forçado.

191
Cabe ao publicitário, para criar verdadeira convicção sobre a superioridade de um produto
em relação aos concorrentes, o desenvolvimento daquilo a que Vestergaard e Schröder (1988: 65)
chamaram de Proposta Única de Venda (PUV):

O mais provável é que as PUV sejam essencialmente estéticas como o sabonete


transparente ou a pasta de dentes com listas; a inovação estética em grande caso
e revelada por uma inovação de estética linguística. [grifo nosso]

A par disso, o discurso publicitário, segundo Carvalho (1998: 59), “tem as características
específicas da sociedade na qual se insere e é o testemunho autorizado dos imaginários sociais do
contexto envolvente, revelando o funcionamento cultural”, ajudando a configurar a publicidade
enquanto um grande instrumento da sociedade de consumo no sentido de tornar imóveis os
códigos sociais existentes, colocando cada um dos indivíduos em seu devido lugar.
Campos (1987) argumenta que, na publicidade, tanto a mensagem, em sua dimensão
sedutora e persuasiva, quanto o produto subordinam-se em grau de importância ao destinatário.
A decodificação da mensagem está, portanto, vinculada à ideologia do receptor: seu cabedal de
conhecimentos e o de seu grupo; seus sistemas de expectativas psicológicas; suas atitudes
mentais, sua bagagem cultural, seus valores.
É a ideologia, nesse campo, um instrumento de dissimulação e ocultação da existência de
divisões de classes, propondo como sendo de interesse comum os interesses de uma classe
dominante, razão pela qual ela surge como um modo ilusório pelo qual se representam o aparecer
social como se este fosse a própria realidade social.
Nesse âmbito, a publicidade se mostra como esteio no qual a ideologia garante sua
existência material: ela é responsável pela relação imaginária que os indivíduos mantêm com as
condições reais em que vivem.
Nesse sentido, a publicidade, para promover o produto, objetiva seduzir o consumidor a
aderir à mensagem proposta, apresentando, para tanto, uma visão parcial e deformada da
realidade, privilegiando objetos ao invés de pessoas. Dilui-se, assim, a percepção do todo e
mantêm-se com o momento histórico relações parciais e incongruentes, desembocando na
criação de um mundo ideal ou, mais propriamente, numa “desrealização do real”, processo pelo
qual os componentes são reais (cenários, pessoas, objetos, ações), mas o conjunto – a mensagem
que transmitem – não.
Um dos aspectos concretizados por tal fator, argumenta Campos (1987), é o da
personalização, pela qual relações estritamente comerciais são transformadas em relações

192
pessoais em que objetos e serviços oferecidos se revestem de calor, assediam afetiva, amistosa e
amorosamente o consumidor para quem se insurgem apelos salientes para suprir carências de
proteção e gratificação (realizados sob uma dada instância maternal). Na promessa de satisfação
desse tipo de falta, a sociedade de consumo – pela publicidade – cria um movimento circular de
demanda, garantindo sua reprodução e sobrevivência.
Assim, no discurso publicitário, a instância do real se dilui cada vez mais num simulacro,
que se constitui na ordem que se adapta ao consumidor, o qual tem de se adaptar a uma ordem
bem real de dominação e exploração.
A alienação do homem com o objeto de seu trabalho – caracterizada pela sociedade de
consumo e o modo de produção capitalista – é recuperada na proposta de relação personalizada
entre o consumidor e os objetos de consumo, para os quais são deslocadas as relações do homem
consigo mesmo e com os outros. Dá-se lugar à individualidade, à conformidade do indivíduo a si
mesmo.
Esses modos de relação são propostos ao indivíduo sob a forma da liberdade. Ele é incitado
a pensar, a comparar, a escolher. Nesse jogo de ilusória liberdade de escolha, a publicidade
aparece como o substituto de uma participação social ativa.
A publicidade também se caracteriza como um ponto de intercruzamento de diversas
superfícies textuais, uma rede de relações de intertextualidade, com o objetivo de diminuir
distâncias entre o produto e o consumidor. Nesse âmbito, ela se nutre do universo cultural destes,
utilizando-lhes as várias linguagens, léxicos, discursos. Entretanto, essa interdiscursividade está
sempre a serviço da lógica dominadora quando a publicidade quase sempre subverte os discursos,
a serviços do produto ou imagem da marca que promove.
Assim, o publicitário pode escolher como protagonista da mensagem o próprio conjunto de
consumidores potenciais. Ele lhes dá – na realidade ou por simulacro – o poder sobre os fatos
relatados. E pode adotar o ponto de vista do usuário-consumidor, deixando de lado a ótica do
fabricante, ou ainda, enaltecer o objeto em um registro funcional, enfatizando-se suas
performances concretas, seus usos práticos, seu valor abordável, suas facilidades materiais.
Também para Campos (1987), a enunciação no discurso publicitário se dá de forma
bastante complexa, podendo detectar-se diversos emissores e vários níveis de enunciação. Um
emissor1 é representado pelo publicitário, que não se coloca como sujeito do discurso: elabora
dados exteriores fornecidos por pesquisas de mercado e opinião. Um emissor2 é representado
pelo narrador ou personagem que se dirige ao receptor. Um emissor3 é representado pelo
produto/empresa que assina o anúncio. Um emissor4 é representado pela sociedade de consumo,

193
dimensão menos perceptível e, portanto mais complexa. Esse jogo enunciativo leva ao caráter de
inexpectatividade do discurso publicitário, quando este, embora se caracterize por formulações
novas, tem como objetivo a formação de hábitos, o automatismo.

Gênero e estrutura genérica


Há espaço demarcado para a concepção de gênero e estrutura genérica na ACD. Fairclough
(2003: 65) toma os gêneros como “particularmente aspectos discursivos de modos de interação no
curso de eventos sociais”
Marcuschi (2002: 19) põe os gêneros como entidades que são: fenômenos históricos,
profundamente vinculados à vida cultural e social de uma comunidade; fruto de trabalho coletivo,
contribuindo para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia; entidades sócio-
discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa; eventos
textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos que surgem emparelhados a necessidades e
atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas.
A produção de gêneros textuais, ressalta Bazerman (2005), é acima de tudo a produção de
fatos sociais; os textos consistem em ações sociais significativas realizadas mediante a linguagem.
Os gêneros, defende Marcuschi (2003), são, desta forma, atividades discursivas socialmente
estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de controle social e até mesmo ao exercício
de poder: são a nossa forma de inserção, ação e controle social. Eles, lembra o autor, estão muitas
vezes imbuídos de valores, sendo mais do que guias neutros para a realização de certas atividades
comunicativas. E tais valores são também sistemas de coerção social. Os gêneros, portanto,
ajudam a organizar o poder na sociedade e, como tal, não são um reflexo da estrutura social, mas
parte da própria estrutura, contribuindo para a manutenção e para o surgimento de relações
sociais e relações de poder social, “devem ser vistos na relação com as práticas sociais, os aspectos
cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias, as atividades discursivas e no
interior da cultura” (Marcuschi, 2005: 19).
Bazerman (2005) acredita que a produção, circulação e consumo ordenados de textos
constituem a própria organização dos grupos sociais. Assim, as pessoas criam novas realidades de
significação, relações e conhecimento fazendo uso de texto. Nessa perspectiva, caracteriza os
gêneros textuais como:
a) fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de atividades socialmente
organizadas: são o que nós acreditamos que eles sejam;
b) fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar;

194
c) fenômenos que emergem nos processos sociais em que as pessoas tentam
compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e
compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos;
d) elementos que tipificam muitas coisas além da forma textual, sendo parte do modo
como os seres humanos dão forma às atividades sociais;
e) processos que se configuram e se enquadram em organizações, papéis e atividades mais
amplas pelos conjuntos de gêneros, sistemas de gêneros e sistema de atividades3

Metodologia
Em um primeiro momento da pesquisa, foi feita uma revisão da literatura, a fim de situá-la
teoricamente, categorizando tal aparato em três campos, teoria de fundo, teoria focal e teoria dos
dados, para o que serão chamados pressupostos operacionais básicos da Análise Crítica do
Discurso, da Teoria/análise de Gêneros Textuais e, por fim, da Semiótica Social, esta quando do
tratamento da multimodalidade discursiva. Importante ainda é colocar que a pesquisa é de cunho
qualitativo, pois a partir dos pressupostos das teorias expostas acima, pode-se descrever e
interpretar as práticas discursivas e sociais que produzem a estruturação social bem como a
mudança dessas estruturas (Resende, 2009).
Para a concepção do universo da pesquisa, consideramos todo o conjunto de edições do
guia eleitoral do candidato ao cargo majoritário da cidade de São Paulo, Gilberto Kassab, no
segundo turno de disputa, veiculado durante o mês de outubro de 2008. A escolha por este
material se deve à representatividade do pleito, por se referir ao principal centro urbano do país,
bem como à facilidade de acesso ao material, amplamente divulgado tanto na página oficial do
candidato na Internet, como em sites de divulgação de material videográfico. Do montante, foram
tomados como representativos para a constituição do corpus, oito programas, que servirão para a
análise.
Em seguida, passamos à transcrição dos dados, codificação e dando tratamento à amostra.
Importa nesse ponto que na investigação seja tratado o corpus, codificando-o em tópicos,
decompondo-o em classes particulares de traços (cf. Fairclough, 2001: 281). Podemos agrupar, por
conseguinte, a urgência de alguns procedimentos com foco no texto (Motta-Roth, 2005: 192): (a)
identificar que problema ou contexto social está associado à linguagem que se quer estudar, que
3
Compreende-se por conjunto de gêneros a coleção de tipos de textos que uma pessoa num determinado papel
tende a produzir; já os sistemas de gêneros apontam para seqüências regulares com que um gênero segue um outro
gênero, dentro de um fluxo comunicativo típico de um grupo de pessoas; por fim, a noção de sistema de atividade
aponta para o fato de que, ao definir o sistema de gêneros em que as pessoas estão envolvidas, o indivíduo também
identifica um frame que organiza o seu trabalho, sua atenção e suas realizações (BAZERMAN, 2005: 31-34).

195
atividade ou interação humana a linguagem medeia; (b) revisar a literatura em busca de pesquisa
prévia sobre o assunto; (c) tentar identificar padrões ou tendências de estrutura, de elementos
linguísticos, de conteúdo ideacional, de discurso; (d) identificar os estágios do texto, os
movimentos retóricos.
Também procedimentos com foco no contexto devem ser observados (Motta-Roth, 2005:
192-3): (a) identificar o problema, o contexto social, a atividade ou interação humana que se quer
estudar; (b) identificar que textos estão associados ao problema, que linguagem perpassa esse
contexto social e medeia essa atividade ou interação humana que se quer estudar; (c) situar o
gênero em contexto de situação e no contexto da instituição/de cultura para perceber sua função.

Balanço
O principal objetivo deste trabalho foi compreender como se dá a restruturação
penetrante da ordem de discurso político, sob o impacto do movimento colonizador do discurso
da publicidade. Como resultado, tem-se a evidência de tal colonização, trazendo uma reflexão
acadêmica e social para a compreensão das transformações de estruturas sociais de dominação.
O discurso publicitário encontra-se inserido na campanha eleitoral do candidato Gilberto
Kassab, pela criação mesma de uma “marca” ou “produto” que é distribuída em termos de prática
discursiva para a sociedade através do gênero analisado. Tem-se, por conseguinte a formulação de
um produto, transformado em significante de valor para dado grupo da sociedade e, mais
insidiosamente, para uma sociedade de consumo.

Fig. 1: Logomarca da campanha Kassab 2008.

196
Fig. 2: Avatar da campanha Kassab 2008.

Um exemplo da corporificação desse movimento pode ser tomado pela criação de


produtos simbólicos como a logomarca de campanha (fig. 1) e o avatar (fig. 2) que vem
demonstrar sociossemioticamente posicionamentos como a manutenção da imagem de homem
público e zelador de sua cidade.

Considerações finais
Pelo presente trabalho, procuramos expor os principais aspectos de uma pesquisa em
andamento, cuja meta primordial tem sido a de descrever a interpenetração do discurso
publicitário na ordem do discurso político, levando em conta os aspectos estruturais e
principalmente os sociocomunicativos.
Assim, do ponto de vista da prática sociodiscursiva, constata-se a interpenetração do
discurso publicitário na ordem do discurso político por meio de um mecanismo semiótico
publicitário presente no guia analisado. Especificando as relações e as estruturas sociais e
hegemônicas que constituem a matriz da instância particular da prática social e discursiva, além de
como essa instância aparece em relação a essas estruturas e que efeitos ela traz, em termos de
sua representação ou transformação, bem como em face do controle do acesso discursivo.
A partir desta análise sociodiscursiva tem-se o desvelamento de relações sociais de
dominação por meio da prática do discurso político presentes no guia eleitoral em dados
momentos das práticas sociais relacionadas a tal discurso. Ainda é valido aqui considerar que em
nossa sociedade cada vez mais se é sensível à combinação de material visual com a escrita. Trata-
se de uma sociedade cada vez mais visual.
Nessa perspectiva, a prática de letramento da escrita vem atrelada à prática de letramento
da imagem. Há, por conseguinte, uma discussão relativamente atual em relação a gênero e design

197
visual (Kress e van Leeuwen, 1996; Stöckl, 2004).
A presente proposta de pesquisa põe primordialmente uma possibilidade de
desenvolverem-se, no âmbito de nosso contexto, estudos de análise crítica, que têm tido bastante
relevância nos principais centros universitários, cujos estudiosos têm sido cada vez mais
motivados a examinar como o funcionamento da língua, a constituição dos atores humanos e a
produção discursiva são expressões de contextos e situações sociais, históricas e culturais, que
tomam por base formações ideológicas dadas, conflitos /desigualdades sociais e a manutenção
das relações sociais de poder (Fairclough, 2001).
Com o projeto realizado, espera-se, por um lado, contribuir para um estudo sistemático de
temas como discurso e mídia, analisando principalmente o lugar do discurso político na
publicidade da modernidade tardia (Fairclough, 2001); e, por outro, fomentar a pesquisa no
campo da interpretação e produção de texto, subsidiando a prática de ensino-aprendizagem de
língua, nos diversos ciclos e níveis de aplicação educacional.

Referências

BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005.

CAMPOS, Maria Helena. O canto da sereia: uma análise do discurso publicitário. Belo Horizonte,
Ed. UFMG/PROED, 1987.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996.

______. O batistério publicitário. Alfa – Revista de Lingüística, São Paulo, v. 42. n. esp., 1998, p. 57-
70.

FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. 2. ed. London: Longman, 1990.

______. Media discourse. London: Oxford University Press, 1995.

______. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UnB, 2001.

______. Analysing discourse: textual analysis for social research. London/New York: Routledge,
2003.

HALLIDAY, Michael.; MATTHIESSEN, Christian. An introduction to functional grammar. London:


Arnold, 2004.

KRESS, Gunter.; VAN LEEUWEN, Theo. Reading images: the grammar of visual design.
London/New York: Routledge, 1996.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. O papel da atividade discursiva no exercício do controle social. Recife:

198
UFPE/SBPC/ABRALIN, 2003. Mimeo.

______. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI, A.; BRITO, K.;
GAYDEZKA, B. Gêneros textuais: reflexão e ensino. Palmas/União da Vitória: Kaygangue, 2005.

MARCUSCHI, Luiz Antônio.Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.;


MACHADO, A.; BEZERRA, M. (Org.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

MEURER, José L. Gêneros textuais na análise crítica de Fairclough. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.;
MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005.

MOTTA-ROTH, Désirée. Questões de metodologia em análise de gêneros. In: KARWOSKI, A.;


BRITO, K.; GAYDEZKA, B. Gêneros textuais: reflexão e ensino. Palmas/União da Vitória: Kaygangue,
2005.

RESENDE, Viviane de Melo. Análise de Discurso Crítica e Realismo Crítico. São Paulo: Pontes,
2009.
______; RAMALHO, Viviane. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.

SELLS, Peter & GONZALEZ, Sierra. Language of advertising. Stanford, University of Stanford, 2003.
Disponível em: < www.stanford.edu/class/linguist34 >

STÖCKL, Hartmut. Between modes. Language and image in printed media. In: CHARLES, C.;
KALTENBACHER, M.; VENTOLA, E. Perspectives on multimodality. Amsterdam/ Philadelphia: John
Benjamins, 2004.

VAN DIJK, Teun A. Critical Discourse Analysis. In: TANNEN, D.; SCHIFFRIN, D. HAMILTON, H. (Ed.)
Handbook of Discourse Analysis. London: Blackwell, 2001.

WODAK, Ruth. Do que trata a ACD – um resumo de sua história, conceitos importantes e seus
desenvolvimentos. Linguagem em Dis(curso), Tubarão, v. 4., n. esp., p. 223-243. 2004.

199
VERSOS E REVERSOS: NOVAS REPRESENTAÇÕES DE MULHERES EM SÉRIES TELEVISIVAS

Ivia Alves(UFBA/PPGLitC/PPG NEIM/CNPq)

Se a Modernidade engendrou a mulher burguesa, normatizando suas ações e papeis, em pleno


século XXI observa-se, novamente, a modelização dos tipos de mulheres que têm aceitação e
visibilidade na sociedade. Acompanhar a representação de mulheres através de programas de
televisão ajuda a compreender os discursos e os contextos nos quais as práticas sociais se
inscrevem. Os seriados norteamericanos televisivos evidenciam como a ideologia da Modernidade
domina e se mantém por décadas, apesar de todos os movimentos que abalaram e transformaram
a sociedade entre os anos de 60 a 80. Em plena década de 70 (século XX) quando o movimento
feminista inflamava as mulheres e modificava sua visão e inserção no mundo, as séries televisivas
não cediam às práticas sociais, insistindo em representar suas personagens femininas como boas
donas de casa. Apenas um seriado de procedimento investigativo, Police woman (1974-1978)
tenta retratar essas modificações sócio-culturais, enquanto outros, mesmo sendo da mesma
linhagem, continuam com imagens de mulheres dentro dos padrões normatizados
tradicionalmente. A representação da mulher independente, profissional e livre demorou a ser
introduzido e essa representação só passou a circular sem restrições nos seriados dos anos 90,
quando não havia mais possibilidade de escamotear os novos modos de ser mulher nas práticas
sociais (NYPD Blue, JAG, CSI). Atualmente, observa-se o quase retorno ao padrão tradicional
(backlash), sem grandes hiatos entre as práticas sociais e as representações (The mentalist, Castle
e The Closer). É sobre esse discurso dominante sobre a mulher que esta comunicação vai se deter,
evidenciando como as relações de gênero ainda mostram as desigualdades de posição e poder.
(Projeto de pesquisa, financiado pelo CNPq, Representações e imagens de mulheres fragmentadas)

Palavras-chave: Gênero. Discurso. Séries. Representações de mulheres. Ideologia.

Deixando de lado as pessoas altamente sofisticadas que ainda hierarquizam a cultura


colocando um valor positivo ao lado da literatura erudita e apondo um sinal negativo em qualquer
veiculo de comunicação de massa, venho aqui desenvolver mais um estudo sobre seriados
televisivos norte-americanos, sempre buscando, através das teorias de gênero, analisar as
representações de mulheres7.
Para me aproximar e analisar tais representações, as teorias de gênero poderiam deixar
lacunas ou hiatos. Então, articulei-as com a teoria da Análise Crítica do Discurso (ADC), a vertente
inglesa de Fairclough que, com sua metodologia interdisciplinar, contempla desde o estudo de

7
Este ensaio faz parte dos produtos do Projeto Imagens e representações de mulheres... fragmentadas (2007...)
financiado pelo CNPq.

200
imagens até a própria linguagem oral. Como decorrência, pude “decupar”8 as principais
personagens femininas das séries policiais de investigação objetivo do meu projeto.
Não vou me deter nas especificidades da televisão nem na sua programação que seguem o
modelo da produção industrial. Também não vou discutir as implicações entre a indústria e o
comércio, que sustentam, financiam, através dos comerciais e propagandas, os programas
difundidos pelo veículo. Mas os meios de comunicação de massa têm, nesse tempo atual, um
grande poder não só de comunicação como também de trazer a audiência a pensar muito próximo
ao seu ponto de vista sobre o mundo.
A televisão, como outros meios de comunicação, com o poder que adquiriu vem atuando
para moldar e/ou forjar comportamentos, o modelo de corpo, fazer a seleção do vestuário das
mulheres; informar qual a moda atual, o que já está ultrapassado, mesmo observando a
diversidade. E esse discurso dominante se impõe sem que haja outros discursos alternativos para
se contrapor ou interpor e sem deixar espaço para o telespectador comum refletir e saber se o
que ele acata é sua escolha ou é a escolha do outro, na aventura de uma busca de identidade ou
de um nicho de aceitação.
A estudiosa de mídia televisiva, Lavina Madeira Ribeiro, demonstra que existe grande
diferença na noção de lazer/entretenimento, entre os séculos XIX e início do XX e o século XXI:

A noção de entretenimento obscurece processos formativos de valores,


identidades, de objetivação da experiência cotidiana e de aprendizado e
padronização de estilos de vida presentes na complexa e dinâmica estrutura dos
diversos gêneros presentes nas atuais produções televisivas de expressiva
audiência no ambiente da televisão fechada no Brasil. O entendimento destas
produções e de suas lógicas performativas requer a apropriação de um leque
sofisticado de conceitos cujos atributos esclarecem os termos de sua estruturação
e eficácia junto ao público assinante. Todavia, o que se conceberia genericamente
como entretenimento, mais do que um discurso voltado para a diversão,
configura-se, cada vez mais, como um espectro variado de proposições sobre a
experiência contemporânea, desde o âmbito da intimidade individual ao do
funcionamento das instituições sociais. Está intimamente associado a novos
campos semânticos e explicativos, onde noções como consumo, identidade,
reflexividade, risco, diferença, insegurança ontológica e comunidade tendem a

8
Decupar tem seu campo semântico articulado ao cinema, como indica Houaiss no verbete: “1 Rubrica: cinema,
televisão. dividir (roteiro) em cenas, seqüências e planos numerados, para facilitar a gravação [...] 2 Derivação: por
extensão de sentido. partir e reorganizar (texto) para facilitar a compreensão [...] 3 Rubrica: cinema, radiofonia,
televisão. fazer levantamento detalhado de (material, p.ex., imagens e/ou sons, gravado ou filmado), indicando a
posição e o tempo de duração de cada trecho, para servir de referência ao trabalho de edição”. (DICIONÁRIO
HOUAISS...). No meu caso, uso o termo no sentido de fazer um levantamento detalhado da
configuração/caracterização de cada personagem principal, agrupando cenas e seqüências que estão distribuídas e
fragmentadas ao longo da temporada e da série inteira, recriando a “bíblia” do personagem.

201
explicar com maior clareza a proposta e dinâmica destas produções. (Ribeiro,
Lavina, 2008; 1)

Embora o caráter formativo e perfomativo atinja toda a programação da televisão, a


incidência de levar o público a abraçar um discurso dominante passa a ser modelado por parte da
programação que concretiza, através de uma narrativa encenada por personagens, a vida
cotidiana. As séries, como as novelas brasileiras, podem servir de exemplo.
O foco de minha pesquisa são as representações de mulheres nas séries estrangeiras e
falar de séries é falar de produtos eminentemente norte-americanos9. Quero dizer com isso que
os EEUU se especializaram tanto na técnica quanto nas infinitas possibilidades de narrativas
seriadas, dentro de cada gênero ou mesmo os embaralhando, alcançando um produto enxuto.
Considerado por muitos estudiosos como um produto de grande competência conforme sintetiza
uma narrativa completa em, no máximo, 45 minutos ou em 25 minutos e por poder liberar
sentidos e significados em vários patamares o que permite que sejam assistidas por auditórios de
países variados e por uma audiência indiferenciada10, nessa era globalizada. Aceitando que tais
narrativas são bastante diversificadas, quero dizer que as séries norte-americanas podem ter uma
audiência muito variada, porque o público, a depender de sua formação e da cultura do seu país,
pode construir diversos sentidos (significados) no plano simbólico em um único episódio ou ao
longo de uma temporada da série.
Ao lado disso, esse público vai se segmentar de várias formas. Aqueles/as que apenas
buscam o sentido na própria ação; outro tipo de público vai, na mesma série, poder identificar
segmentos de discursos alternativos; haverá mesmo aqueles/as que irão ver questões éticas ou
políticas que atravessam o cotidiano da sociedade e que estão ali representadas. Há ainda outros
que percebendo os arcos narrativos que cimentam a série e configuram os personagens fixos se
sentirão instigados a acompanhá-las por simples identificação com o ou os personagens. Como já
escrevi, um pouco acima, essas narrativas seriadas chegam a ser bastante complexas
desencadeando diversos sentidos em patamares de significados conforme o tipo de audiência.
É por esses caminhos e desvãos que procuro analisar as representações das mulheres e sua
correlação com o contexto histórico e cultural no qual a série foi produzida. E isso se dá
precisamente, porque tais programas, principalmente, os dramas policiais procuram dar um
mínimo de veracidade ao tomar as situações acontecidas na vida social como base.

9
Todas as referências das séries podem ser consultadas no site http://www.imdb.com.
10
Independente de gênero, raça/etnia, geração e classe social.

202
A narrativa policial investigativa
A escolha do gênero dramático, subgênero designado de policial investigativo
(procedural police) se deu porque me interessou verificar como as relações de gênero se dão
dentro de uma instituição social eminentemente masculina e que só começou a abrir suas portas
para uma carreira feminina na década de 1960.
Ainda é muito recente o advento do estudo de séries pela academia, mesmo nos países
que o produzem. No entanto, há um consenso em classificar historicamente as séries conforme
seu ano de produção, observando, plenamente, as condições de produção, inclusive o contexto
histórico e cultural. Maior ou menor poder de liberdade de expressão, inclusive criar narrativas
alternativas, fora do padrão estabelecido, utilizar-se de um gênero por outro para discutir e
refletir sobre situações éticas, políticas ou outras, trazer para a discussão certos modelos ou
comportamentos que estão emergindo na sociedade. Por outro lado, temos a considerar as
próprias transformações da tecnologia em função da televisão. Nesse caso, conforme a televisão
se afirma como meio de lazer nos lares, as séries vão se transformando, incorporando tecnologia
de ponta e técnicas de outros meios, inclusive do cinema. Basta observar as séries produzidas em
1950/60 para o momento atual. E toda essa transformação também adentra pelo formato das
narrativas. No drama policial que tem sua origem na literatura do final do século XIX, também vai
se perceber modificações agudas.
Assim, temos as séries chamadas clássicas, no início da televisão, quase sempre lineares,
seguidas, nos anos 70 em diante, das séries fechadas, que são aquelas que contam uma estória em
cada episódio. Esse tipo de formato se tornou mais denso e mais complexo (na narrativa bem
como na técnica de filmagem) entre os anos 80 e 90, quando passou a ter dois focos de interesse
narrativo, um voltado para a estória do episódio e outro mais longo, um arco de episódios que
procura configurar psicologicamente os personagens fixos, seu elenco âncora, obrigando a difusão
cronológica da temporada (CSI, Jag, NCIS, House, Law & Order: SVU). Também aumentou o
número de cenas externas, fora do ambiente fechado de uma delegacia, bem como situando-se
nos tipos de crimes mais comuns daquela paisagem urbana da cidade. Assim, os crimes e pessoas
envolvidas nele são mais específicas. Uma série que se passa em Las Vegas terá estórias bem
diferentes daqueles crimes que acontecem em Nova York e assim por diante.
Finalmente, na primeira década dos 2000, aparece um novo formato, que são as séries
serializadas, as quais interligam todas as ações e que, para serem compreendidas, devem ser
acompanhas episódio por episódio. São séries como 24 horas, Lost, Prison Break, Damages, Dexter
etc.

203
Na minha pesquisa dou maior atenção às séries fechadas, dentro do formato dos anos
80/90, pois é quando começam a aparecer as representações de mulheres que desenvolvem
carreira na polícia como detetives ou chefes de alguma divisão. Detive-me nas personagens do
elenco fixo, porque vão sendo construídas ao longo das temporadas, e são personagens
complexas psicologicamente, que vão sendo pouco a pouco demonstradas pelas suas atitudes,
decisões pessoais e profissionais, derivadas de uma complexa elaboração psicológica.
A escolha também por séries policiais também exporia mais claramente as relações de
gênero e poder, visto que a policia é uma instituição eminentemente masculina e hierárquica,
podendo exibir como a corporação acata ou não a inserção em cargos de comando pelas
mulheres. Em outros tipos de séries as assimetrias e relações de poder poderiam passar
despercebidas ou possivelmente justificáveis, mas não em corporações militares e policiais.
Embora existam várias diferenças entre os dramas policiais produzidos para a televisão
aberta e para a televisão fechada ou paga, sendo a primeira mais conservadora, como elas
incorporam a realidade seria impossível não representar a inserção da policial mulher e as suas
dificuldades. Pode-se verificar até hoje como os profissionais da televisão não querem modificar
ou apresentar qualquer coisa que fuja demais dos paradigmas da sociedade burguesa. Segundo
texto de Heloisa Buarque de Almeida,

“ (...) uma afirmação muito usada por profissionais da mídia e da publicidade*é+ a


de que não querem incomodar ninguém, e que só podem oferecer ao público
aquilo que lhe agrada – referem-se assim à noção de que precisam se adequar à
“realidade” para manter seu mercado consumidor (Buarque de Almeida, 2006; 1)

Pode-se, portanto, perceber a dificuldade de se inserir e dar visibilidade à mulher fora do


seu papel no ambiente privado e fazer a representação dessa mulher policial, independente
financeiramente e livre sexualmente nessas séries policiais investigativas.
Embora o contexto cultural e histórico desses últimos 50 anos tenha se transformado
inteiramente, de uma tradicional sociedade com vestígios da era vitoriana para os agitados anos
de lutas políticas e de reivindicações sociais (das minorias), inclusive a luta feminista por igualdade
de direitos, esse contexto de transformação se concentrou em 15 anos. Mas o novo
comportamento da mulher demorou muito menos tempo para agitar a sociedade do que na sua
representação em séries televisivas11.

11
Estou me dedicando a explorar a configuração das personagens femininas principais em um arco de quase
quarenta anos, isto quer dizer, desde Police woman, produzida na década de 70 (1974-1978) até as mais novas

204
A mulher que vai para o espaço público, se profissionaliza e luta pelos seus direitos, desde
o direito ao seu corpo até a igualdade de empregos, de tratamento no espaço público e sua
independência financeira não poderá mais ser negada nos anos 90 e é nessa década que ela é
inserida, efetivamente, nas séries policiais12.
Por outro lado, o gênero policial (além de ter uma tradição na literatura escrita de ter
personificado por detetives homens como foco de deduções, de um raciocínio dedutivo e
detalhista), na televisão sempre foi identificado ou destinado a um público masculino. Na medida
em que a corporação policial inclui mulheres e essas passam a alcançar popsições mais elevadas, o
drama policial investigativo se modifica. Só em 1990 é que, realmente, a incorporação das
mulheres vai ser registrada seja como chefe ou participando de parcerias ou duplas de homens e
mulheres. No entanto, antes da explosão dos anos 90, houve algumas tentativas de mudança,
para alcançar de um público diferenciado, no qual a mulher já formava grande parte da audiência
e não se contentava, apenas, com comédias ou dramas mais “açucarados”, voltados para as
peripécias amorosas. È com o seriado Police Woman, produzido em 1974, que aparece a primeira
efetiva representação de mulher, incorporada a uma equipe de detetives.

Uma inovação: police woman


Police Woman foi produzida em pleno tempo da luta pela igualdade de direitos da mulher
e a personagem principal já é configurada como uma mulher que integra essa nova massa de
mulheres que trabalham, mas não só por necessidade financeira e sim como uma forma de
liberdade e independência. Sargento Suzanne “Pepper” Anderson, ou como a equipe a chama
Pepper13 integra uma equipe masculina composta por mais três integrantes. Embora pareça lógico
que, para ser uma detetive, essa mulher não poderia ser uma jovem de 20 anos, a escolha da
personagem recaiu em uma bela atriz (de cinema) que estava na faixa etária dos 40
(precisamente, 43 anos quando a série iniciou). Aqui, a categoria geracional começa a construir
sentidos, por exemplo, a distanciar as jovens da época de certas escolhas profissionais nas quais

Saving Grace (2007), In plain sight (2008), The mentalist (2008) e Castle (2009), passando pelas produções dos anos
noventa, como Jag, NYPD Blue (Nova York contra o crime) e aquelas que, embora produzidas em 2000, ainda
guardam o formato anterior, como Third watch, NCIS, CSI), não esquecendo de The Closer (2005), que embaralha
as representações.Além de fazer incursões, esporádicas, em ficções seriadas do subgênero de dramas familiares e
sitcoms
12
Sabendo-se que a TV produz programas para veicular as propagandas que a financia e sabendo-se que seu
interesse é essencialmente comercial e que toda a programação está submetida a esse vetor, busquei analisar as
séries investigativas que foram produzidas para os canais abertos dos Estados Unidos. Por ser uma instituição
eminentemente masculina, repito, a entrada de mulheres se deu mais ou menos na década de 60 e as relações de
gênero, a perceber por esses seriados, muitas vezes foram tensas. Vide NYPD Blue (Nova York contra o crime) de
1992 a 2005.
13
Não esquecer que o significado de pepper em inglês é pimenta.

205
para alcançar estabilidade no emprego, precisa de anos de trabalho e, segundo, a profissão é tão
absorvente, que não há espaço para uma vida afetivo-amorosa, nem familiar. Afastando as
mulheres, Pepper era uma boa isca para a audiência masculina.
Embora a série revelasse um comportamento igualitário nas relações de poder entre os
componentes da equipe, e ela estivesse configurada como uma mulher inteligente, decidida,
capacitada a agir nas situações pesadas e a se defender sozinha, Pepper, quase sempre, trabalhava
sob disfarces. As escolhas mostram como esse personagem foi construído para a “delícia” dos
homens: travestida de stripper ou de prostituta, sua principal função era atrair os contraventores
pela sedução. Pepper é a mistura da mulher convencional, normal, comprometida eticamente com
o bem e o dever, somada à figura de Gilda, a sedutora do filme do mesmo nome 14. Segundo a
divulgação da série nos anos 70, Sargent Pepper era “uma heroína absolutamente lógica, racional,
urbana e dura, ao mesmo tempo que bela e feminina, onde seus conflitos e poderes eram reais.” 15
Operando sempre como uma marginal à sociedade civil e ordeira, seu corpo era explorado
pelo uso de vestidos decotados ou com fendas ou curtos demais, associados a gestos sensuais e
com uma liberdade de comportamento com os homens que não seria “a norma” para uma mulher
séria da sociedade (daquela época). Portanto, Pepper foi a primeira mulher a ocupar o lugar de
investigadora e, ao mesmo tempo, ideologicamente, colocada como transgressora (pelo
comportamento, pelo vestuário, gestual e uso do corpo).
A apresentação e entrada dos créditos já evidenciavam o lugar da contradição de Pepper.
Como estrela principal, a apresentação dedica cerca de um minuto para ela. Entre cenas paradas
de Pepper com o revólver, em luta, ou cenas em movimento, focalizando-a vestida de vermelho
indiciando uma prostituta, a maior cena mostra parte do corpo, ou melhor, da cintura até os pés:
Pepper descendo uma escada e mostrando parte de sua perna e coxa.
Mas esse formato de série, de concentrar a narrativa no percurso de uma mulher ou nas
suas ações, não vai ter sucessores. Só duas décadas depois, com a revitalização do gênero policial,
voltam a aparecer as parcerias e, consequentemente, a ser encenadas situações que mostram as
desigualdades ou não de gênero e de poder entre os parceiros e entre todos os componentes da
delegacia. Todas as séries apresentam essa nova mulher por diversos ângulos.
No plano histórico-cultural, entrava-se em um momento de aceitação ou de uma certa
anuência à mulher ocupar espaços públicos, regida pelo posicionamento do politicamente correto.
Se ainda temos demonstração de preconceitos, eles são casos esporádicos e não um discurso da

14
“Nunca houve uma mulher como Gilda!” era a propaganda do filme, produzido em 1946.
15
http://retrotv.uol.com.br/guiadatv/retrochannel.html

206
Corporação16, precisamente, porque os binarismos que caracterizavam mulheres e homens na
Modernidade estavam se diluindo, enquanto o imaginário dessas mulheres jovens ultrapassava as
normas tradicionais do que era característico para o “azul ou rosa”. Eram os anos noventa17.

Rapidamente, a década de noventa


A década de noventa apresenta quase cem por cento de produções com personagens
femininas como principais e realçadas; cerca de 30% delas têm personagens femininas como
protagonistas da narrativa e de seu percurso profissional.

O número de produções estreladas por personagens femininas aumenta, trazendo


um nível de complexidade e desenvolvimento de personagens cada vez mais
profundo. Há uma grande variedade de profissões à disposição das atrizes:
repórteres, relações-públicas, [...] promotoras, juizas, legistas, cientistas,
especialistas em computadores e até capitães de astronaves. (FURQUIN, 2008, p.
167).

São séries como Profiler, com sua psicóloga de perfis criminosos (1996-2000), Bones e sua
antropologista forense (2005), Crossing Jordan, com sua médica legista (2001-07), Karen Sisco
(2003-04), Cold case (2003-10), The inside (2005), Women’s murder club (2007-2008), além dos
dramas jurídicos (investigativos) que acompanham o percurso de uma protagonista, como
Reasonable doubts (1991-93), The client (1994), Judging Amy (1999 a 2005), Close to home (2005-
07). É, também, nessa década que são produzidas as comédias, Just shoot me (1997-2003) Susan
(1996-2000) Ally McBeal e Sex and the city, que irão inspirar uma outra representação de
mulheres de trinta anos18.
Quanto ao perfil construído para a representação das policiais detetives percebe-se que
são escolhidas, geralmente, para interpretar as protagonistas mulheres altas, esguias, mas sólidas,
com corpos magros, mas sem exuberância de atributos (para que não criem o sentido de um
corpo erótico) e passem como mulheres comuns. Um corpo adestrado, forte, sem curvas
exuberantes  voltando-se mais para a configuração psicológica, demonstrando as suas angústias
existenciais pelas situações vivenciadas. São mulheres fortes em suas atitudes, decisões, raciocínio

16
Corporativos, relativos à corporação, que tem o sentido no campo da administração: conjunto de pessoas que
apresentam alguma afinidade profissional, de idéias etc., organizadas em uma associação e sujeitas ao mesmo
estatuto ou regulamento.
17
A estética e a dramaturgia das séries passam por uma grande mudança. “Elas passam a apresentar, em maior
número, um visual mais cinematográfico e uma estrutura de roteiro mais complexa, tanto para construção e
desenvolvimento da trama quanto para os personagens” (FURQUIN, 2008, p. 167).
18
Idem, idem.

207
e independência em casos de perigo com relação ao parceiro. Equilibradas emocionalmente,
reconhecem-se como pessoas iguais ao outro e rejeitam qualquer discriminação e desigualdade de
tratamento entre eles. Têm a mesma capacidade de ação, de luta e de observação de seus
parceiros.
Essas representações de mulheres são diversificadas, embora algumas características
sejam constantes. São naturais dos EEUU, brancas em geral, solteiras, mas também existem
casadas e divorciadas, com ou sem filhos, não religiosas (pelo menos, não há interdição nem
interferência de sua crença na atividade profissional), têm em comum algum trauma ou situação
anterior que as impulsionou para o trabalho de investigação. Apesar de ser um espaço
considerado “de homens” ou formado majoritariamente por homens, elas se impõem, muito
embora hajam algumas referências discriminatórias que remetem às relações de gênero, de poder
ou de maior ou menor credibilidade19.
Na terceira temporada do excelente seriado NYPD Blue, o episódio 16, intitulado “Girl
Talk”, cujo tema é o estupro e a morte de crianças, traz como subtema o estupro de uma mulher
adulta. A acusação feita por ela na delegacia de que fora estuprada por um homem que ela
conhecera em um bar e que convidara para sua casa ficou passível de dúvida. No atendimento à
denúncia, realizado por um par de detetives (homem e mulher), ocorre plenamente uma divisão
sobre a credibilidade da vítima. Para o homem, ela não tinha sido estuprada, enquanto sua
parceira acredita na situação. Passando por cima dela, visto ser o acusado professor e casado, o
detetive, em vez de interrogá-lo, apenas toma algumas informações. Sua parceira, inconformada
pelo encaminhamento da investigação, não admite essa atitude e passa a falar do caso com outras
policiais e com a promotora, que têm todas a mesma opinião. Da mesma maneira, o detetive
conversa com outros colegas, que são unânimes na descrença. Finalmente, aparece outra vítima
do acusado e só assim os detetives (homens) se convencem do estupro.
Em CSI, pode-se observar, ao longo da terceira e quarta temporadas, a dificuldade de Cathy
(protagonista) em compatibilizar sua convivência com a filha menor, seu trabalho e o ex-marido.
Ela se vê ameaçada de perder a tutela da filha por não a estar acompanhando, denuncia o ex-
marido, justamente na hora de seu trabalho (horário noturno). São pequenas cenas que, à medida
que se vai agrupando, passam a ter sentido e evidenciam as dificuldades das mulheres em se
manter no espaço público.

19
Vai depender muito do seriado e dos vários planos de sentidos que a série desdobra. Aparecem mais claramente,
nas séries inglesas, o preconceito contra as mulheres e as relações de desigualdade.

208
As detetives solteiras aparecem em maior número, indicando que muitas delas estão mais
voltadas para construir sua própria vida do que interessadas em constituir família, embora se
entreveja, esporadicamente, sua vida amorosa. Geralmente, estão na casa dos trinta anos e se
originam de meios urbanos. Essas representações de mulheres (fortes e equilibradas
emocionalmente) vão ser o foco da reviravolta na década seguinte. No entanto, outro modelo
para as mulheres vinha se fazendo encenar em outro formato, o tipo de narrativa de situações
(sitcom) e nas comédias.

E as comédias mudam a clave


Insinuando-se através de comédias, vai começar a ser questionada e, gradualmente,
desconstruída a representação da mulher solteira, na faixa final dos vinte ou começo dos trinta
anos, Aparecendo de maneira explícita em 1996, essas séries começam a desconstruir a
representação das mulheres resolutas, firmes, independentes, herdeiras de uma tradição de lutas
feministas e pela igualdade de direitos.
As primeiras, e que não fizeram sucesso mundial, foram Just shoot me (1997-2003)20,
Suddenly Susan (1996-2000)21. A configuração das mulheres vai se deslocando da mulher moderna
(dos anos 60/70) para uma nova modelagem, mais rígida, mais limitadora da figura da mulher,
voltando-se agora a exigir perfis fragilizados, “feminilizada”. De mulheres profissionais
independentes e seguras para o tipo de mulheres irremediavelmente frágeis, desestabilizadas
emocionalmente e que buscam, na idade em que estão, o casamento e a constituição de uma
família, com filhos. Muda, também, o tipo físico dessas personagens, escolhendo-se atrizes muito
magras e de aparência delicada e frágil. Sua aparência fisica se torna o ponto alto, corpos
educados pela dieta e pela ginástica, saltos altos, vestidos e muitos acessórios e maquiagens.

20
“Nomeada para seis Emmys e sete Globos de Ouro, ‘Just shoot me’ é uma daquelas séries fáceis de ver, divertidas
e inteligentes [...] Num ambiente profissional, na série de Steven Levitan (criador de ‘Back to You'/’Juntos de
Novo’) *...+ ao longo de sete temporadas, *...+ acompanhamos o dia-a-dia de uma revista de moda, onde Maya
Gallo (Laura), a jornalista que se formou em Stanford, tenta em vão dar profundidade aos temas superficiais que
atraem o público feminino. Há um romance entre Maya e Elliot DiMauro (Colantoni) que termina no hospital, com
um ataque de ansiedade provocado pelo medo do compromisso. Já Dennis Finch (David Spade) é uma espécie de
menino no corpo de um “homem" que, numa noite, quase cai nas garras de Nina Van Horn (Wendie), uma ex-top
model especializada em one night stands e divórcios [...]. (JUST SHOOT ME..., 2008, grifos do autor).
21
“(Sinopse): Jovem chamada Susan descobre, no dia de seu casamento, que não gosta do noivo e tampouco da sua
vida. Desiste do casamento e volta a trabalhar em seu antigo emprego, a redação de uma revista cujo dono é
justamente o ex-cunhado. Ele é Jack, que para sorte de Susan, não se dá muito bem com o irmão. Por isso ele dá a
ela uma coluna na revista chamada "Suddenly Susan". Seus artigos tratam sobretudo de suas experiências pessoais
e do relacionamento com os colegas de trabalho”. (e-pipoca).

209
Dentro dessa perspectiva, consolida-se o perfil das “mulheres fragilizadas”, que aparecem nas
séries de grande sucesso, Ally Mcbeal (1997-2002)22 e Sex and the city (1998-2004).
Talvez seja possível datar essa mudança do discurso e a reversão da representação das
mulheres entre 2001 e 2004, com a eleição pelo público e as altas bilheterias mundiais dos filmes
de Bridget Jones23, que introduz um outro tipo de lógica e de inserção da mulher na sociedade.
Diferenciando-se do padrão de representação das mulheres anteriormente traçado, as
profissionais que aparecem nas séries a partir de 2005 aprofundam os questionamentos sobre a
mulher-mãe, cuidadora de seus filhos e as dificuldades de ser casada e enfrentar as solicitações de
seu trabalho24. É provável que o contexto histórico e cultural tenha ajudado, com a profusão de
religiões fundamentalistas que se consolidam, a emergência de consumo da moda tanto para
homens quanto para mulheres, a ameaça advinda da destruição das “torres gêmeas” e as levas de
crises financeiras que abatem o Ocidente. Além da efetiva convergência do poder e tecnologia da
mídia, fatores que se tornam propícios para a entrada dessa mulher mais voltada para a sua
performance, sua apresentação pessoal e menos reflexiva com as coisas do mundo.
A modelagem de Sex and the city se impõe e dá o tom do cotidiano: conversas triviais e
superficiais modelam essas mulheres. Para o “videouvinte”25 os modelos de vida, de
comportamentos e de atitudes das mulheres passam pela mediação da série. Talvez essa “virada”,
a grande transformação do corpo (exigindo academia), do vestuário (roupas ajustadas ao corpo),
saltos altos e bolsas grandes para o trabalho, não tenha sido demonstrada claramente para a
audiência, porque as séries mesclaram temas discutidos nos anos noventa (as novas profissões
relacionadas com a indústria cultural) com uma mulher menos reflexiva, menos politizada, mais
superficial e mais interessada em sua aparência, e a impressão que isso causa nos outros.26
Por outro lado, a presença da família (pais, avós) começa a girar em torno dos personagens
e ganha espaço, muitas vezes influindo nos comportamentos das protagonistas.
Para verificar a diferença das ficções narrativas anteriores em relação às que passam a ser
produzidas a partir de 2005, elegemos como exemplos desse atual discurso dominante as
narrativas seriadas The Closer, In plain sight, Saving Grace.

22
“A advogada graduada em Harvard, Ally McBeal, acha-se à vontade nos tribunais, mas, longe do trabalho, vacila,
desajeitadamente, como uma mulher jovem e solteira à procura da felicidade pessoal. As hesitações e ansiedades
de Ally são trazidas à luz por meio de seqüências de fantasia, vozes em off”. (oyo.com.br).
23
Já havia sido assinalado pela própria imprensa que, desde o meado dos anos noventa, havia começado uma
literatura para mulheres tipo cor-de-rosa. Mas a emergência dessa literatura vai se dar na virada do século até
chegar ao cinema.
24
Encontra-se neste caso Third watch, produzida em 1999 a 2005.
25
Denominação empregada por alguns estudiosos do gênero .
26
Vide vários estudos, inclusive de Márcia Rejane Messa (Mulher solteira procura: um esboço de crítica diagnóstica de
Sex and the city,2006; Jane Arthurs. Sex and the city and consumer culture: remediating Postfeminism Drama (2005);

210
A reversão, além disso, parece mais completa quando as séries produzidas atualmente,
apesar de ainda apresentarem parcerias, focalizam mais o protagonista, deixando a parceira como
coadjuvante. Esse retorno ao personagem principal masculino em seriados policiais vem
acompanhado pela mistura de gêneros, drama e comédia, pela própria escolha do protagonista,
que não faz parte da corporação policial e que apenas ajuda nas investigações. São personagens
vulneráveis, com defeitos, e que não integrando a corporação não seguem os protocolos,
deixando-se levar pela intuição e observação. Eles acompanham os passos da chefe do
departamento e sua equipe, dando idéias as mais desconexas (sem seguir uma linha de raciocínio
lógico , mas, sempre evidenciando sua acuidade de observação e seu bom humor. Com isso, retira
o peso do drama e assassinatos, voltando a narrativa mais para os atos e suas vidas particulares do
que para o crime. Nessa esteira estão as narrativas das séries The mentalist (2008) e Castle (2009).

Consolidação das reversões


A construção e disseminação de uma imagem de "mulher sexualmente desejável",
que, além de ser identificada como "aquilo que todos os homens devem aspirar e
possuir", pode ser incorporada pelas mulheres como aquilo que elas devem ser ou
se tornar para obter alguma valorização social.(ADELMAN, M. 2005, 229)27

As séries policiais produzidas a partir de 2005 não só carreiam para dentro de suas
narrativas esse novo modelo de mulher como agregam outros eixos, que giram em torno dessa
nova mulher: a casa, o homem “ideal”, e a família parental. O novo olhar leva a transferir para
dentro da Corporação mulheres competentes, de aparência frágil e emocionalmente instável. O
outro é a inserção da família, criando situações cômicas, como se houvesse uma barreira entre os
dois mundos, onde pais e irmãos circulam ocasionalmente. Essa visão tradicional, trazendo a
família para dentro do drama policial tende a deixá-lo mais leve, misturando drama e comédia,
além de instalar personagens cômicas que desviam a ação para as situações pessoais das
personagens centrais. Provavelmente, o surgimento desse novo formato, está relacionado com o
contexto. Diante das crises que abalam os EEUU, principalmente, a financeira, a qual se estende
até o momento, os criadores e roteiristas de séries escolheram desconstruir as barreiras os
formatos clássicos. Assim, subvertem ou desconstroem as barreiras, e neste caso, entre os dramas
policiais e a comédia, entre o mundo do crime e o envolvente, mas desastroso, como sempre é
retratado, o ambiente privado, pessoal e afetivo, a fim de obter uma narrativa leve. A ênfase está
muito mais centrada nas vidas dos personagens-fixos, deixando em um segundo plano o crime e

27
ADELMAN, Miriam. Vozes, olhares e o gênero do cinema. In: FUNK, Susana; WIDHOLZER, Nara (orgs). Gênero em
discursos na mídia. Florianópolis: Ed. Mulheres e EDUNISC, 2005 .

211
sua investigação. Basicamente, essa estrutura narrativa vinha sendo tentada desde o inicio da
década, mas começou a ter sucesso com a protagonista de The Closer.
A personagem principal, Brenda Lee, está muito próxima da nova configuração de
mulheres (das comédias) pela aparência frágil, pelas excentricidades (a obsessão por doces),
instabilidade e frustrações, pela incapacidade de lidar com sua afetividade.

Figura 1  The Closer Figura 2 


Fonte: http://thetvbay.info/media/images/TheCloser.jpg Fonte: http://www.textually.org

Ao analisar as imagens de divulgação de The Closer (2005) percebe-se que a personagem é


a principal, pois vem em primeiro plano, mas há uma mudança no perfil físico da protagonista.
Embora ela ainda guarde a racionalidade e seja incisiva em seus interrogatórios, conseguindo a
confissão do acusado, além de ser um tipo frágil, de pequena estatura, ao sair do espaço público,
Brenda Lee se transforma em uma mulher insegura, carente, “viciada” em açúcar e chocolate,
emocionalmente desequilibrada. Apear de já ter 40 anos, ainda a presença ocasional dos pais
(personagens estereotipados: pai alto, forte, gordo e “mandão” e mãe magra, pequena e frágil,
conciliadora) a desestabiliza fazendo com que ela tome atitudes de adolescente com eles. Os pais
exercem suas “funções” de controle e de intromissão na vida da delegada, esquecendo-se de que
ela é adulta e tem poder sobre si. Para não contrariá-los, ela limita-se a esconder e mentir sobre as
situações ou simplesmente evitá-los. Em geral, suas visitas coincidem com o crime e eles
atrapalham suas investigações. Novamente aparece o conflito de gerações e podemos dizer de
papéis (pais e filhos), pois a delegada especial não consegue se desvencilhar do controle da figura
do pai, embora o considere um estorvo por interferir diretamente em sua vida pessoal, inclusive
na sua vida afetiva. Inicialmente, tendo que esconder que mora com o noivo, depois com a

212
exigência dos pais que casem (ela vestida de noiva) com todos os rituais como se fosse o primeiro
casamento dela, finalmente, interferindo e atrapalhando a vida profissional dos dois.
A “idealização” da personagem chega ao ponto de transformar a aparência física de uma
“chefe” na profissão policial: ela sempre usa vestidos e saltos altos( embora participe de
investigações em locais com muros, cercas, declives e aclives de terra batida) mas sempre está
composta, seus cabelos são bem cuidados e a única coisa que lembra uma policial são os
casaquinhos e blazer usados sobre os vestidos, aparência e atitudes que constroem um discurso
sobre Brenda dentro de uma configuração de “feminilização”. Incorpore-se ao conjunto, uma voz
delicada, de meio tom.28
Por outro lado, as representações da mulher independente acentuam gestos e atitudes
impositivas, desafiantes e seu corpo se define como de uma ginasta ou desportista. Corpo com
musculatura fortalecida e aparente que evidenciam força, agilidade. Correlato a essa aparência, as
personagens são destemidas pela linguagem corpórea, como também indicam atitudes
determinadas, desafiantes. As duas modelagens estão bastante distantes das representações
femininas que aparecem nas séries da década de 90. A configuração das atuais solteiras quase
sempre apresenta uma aparência descuidada, vestindo blusas de malha ou de esporte e de calças
compridas jeans, acompanhada de uma jaqueta. Seu vestuário é simples e informal bem como
sua linguagem corporal indica o comportamento de mulher decidida. Uma leitura rápida das fotos
de divulgação de In plain sight (2008) demonstra a incisiva representação da mulher solteira.
Mary Shannon é uma agente federal de proteção a testemunhas. Independente, com
profissão perigosa e que, muitas vezes, a leva a se disfarçar, tem relações afetivas confusas com
sua família (que resolve ir morar em sua casa) e mesmo com seu namorado, o latino Raphael. Nas
relações com seu parceiro, Marshall, há uma desigualdade de poder, porque ela é a que decide,
ele apenas a acompanha29.

28
Brenda Lee é interpretada por uma atriz loura, de 45 anos (nascida em 1965), estatura de 1.65m; Mary, por uma
atriz loura, de 40 anos (1969), que tem estatura de 1.73. Já Grace é interpretada por uma atriz de 50 anos (1958),
de 1.57m de estatura. http://www.imdb.com/
29
http://pt.wikipedia.org/wiki/In_Plain_Sight. Acesso 23 de abril de 2010

213
Figura 3  In plain sight Figura 4 
Fonte: Fonte:
www.popculturemadness.com/interview/pics www.usanetwork.com/series/inplainsight/theshow/chara
cterprofiles/

Sua postura nas fotos é sempre de desafio. E na série, tanto seu chefe de operações como
seu parceiro seguem as suas decisões ou quando a família parental cria problemas, inclusive que
podem levar até à polícia, eles intervêm, acobertando os pequenos delitos para que a trajetória de
Shannon não seja manchada. A colocação do poder nas mãos de Shannon corrobora a idéia de que
uma mulher firme e racional, submete os outros (homens) novamente criando uma assimetria das
relações de gênero. Essa interpretação de que as relações de gênero não podem se dar de forma
igualitaria, serão assimétricas, é um resquício da leitura da agenda da primeira onda feminista e
que sempre está latente e emerge em tempos de uma visão conservadora. É uma maneira sutil de
lembrar uma possível “catástrofe” se houver a subversão do “paradigma vigente”! Mas essa
ideologia não parte apenas de criadores homens, também é compartilhada por escritoras. A
criadora de Saving Grace é uma mulher, a também produtora da série, Nancy Miller.

Outra representação, pelo menos intrigante, é a da protagonista de Saving Grace30 (2007),


Grace Hanadarko. Grace representa a independência e a liberdade sexual, mas, tudo isso levado

30
“The closer” é criação de James Duff; “Saving Grace”, de Nancy Miller e “In plain sight” de David Maples

214
ao hiper, ao excesso, traduzindo-se como uma mulher fora do “paradigma de atitudes e aparência
feminina” para as normas contemporâneas.
A mulher independente, de relações afetivas casual, que é uma detetive competente e
atilada, financeiramente independente vai ser construída com significados negativos. O discurso
de abertura da série nos dois minutos iniciais do Episódio Piloto coloca a representação da mulher
solteira em sério questionamento. E, ainda mais, a religião cristã subjaz o tema dessa narrativa
policial. A apresentação da detetive indicia um discurso intolerante (da diversidade) e
preconceituoso. Mas, basta analisar as imagens de divulgação da série, que comparadas com
outras produzidas na mesma época, evidenciam, pelo menos, uma visão ideológica ambígua em
relação aos padrões da mulher atual (que serão bem mais aceitos pelo discurso dominante). Além
das imagens de divulgação, acho conseqüente trazer a abertura da respectiva série para análise.

Saving grace: abertura da série


É pelo menos curiosa, para não dizer ambígua, a apresentação desta personagem. Logo na
abertura do Episódio Piloto, temos os vários sentidos que constroem Grace:

Figura 5  In plain sight Figura 6 


Fonte: www.the-trades.com/pictures/S/SavingGraceS3Ca Fonte:
www.tvshowsondvd.com/graphics/news3/

Cena 1
A câmera em movimento focaliza um quadro na rede e ultrapassa abrindo o cenário. É uma
estrada na área rural, descampada, no qual o céu escuro e cheio de nuvens que passam depressa
indicam a formação de um vendaval e tornados.

215
A cena é acompanhada por música cantada.
Duração  17,06 segundos.
Cena 2
A câmera passeia por um ambiente de uma casa, deslizando por uma sala desarrumada,
decorada com muitos objetos desencontrados formando uma decoração “sem sentido”.
Continuando, a câmera mostra, no quarto, à distância, um casal fazendo sexo.
A câmara aproxima-se do casal que dialoga:
H. Ahh! Oh, Grace!
(...)
H. Eu não posso fazer mais isso... Eu não posso fazer mais isso.
M. O quê?
H. Está errado, Grace. Olha, acabou. Já acabou. É a ultima vez. Falo sério.
G. Droga, Ham! Se é a última vez, podemos, ao menos, terminar?
H. Olha... olha. Quero que me prometa, jura para mim, por Deus. Que nunca mais faremos
isso de novo.
(Grace rindo, cinicamente)
G. Não acredito em Deus, mas prometo que nunca mais farei sexo“doidona”. Feliz? Tudo
bem?
Ele se levanta e pega suas roupas espalhadas pelo quarto e vira para ela que está recostada
e nua.
H. Não se sente mal com isso?
M. Não sou eu que sou casado.
Duração da cena  1:02 m.
Cena 3
Grace, ainda na cama, acende um cigarro, pega uma lata de bebida e assiste ao noticiário
na TV. A noticia informa o desaparecimento de uma menina de dez anos.
Ela veste o roupão e volta para a cama. O cachorro sobe em cima da cama. Enquanto isso,
ouve-se o agradecimento do pai da garota à comunidade pela noite de vigilia e oração. Grace
toma comprimidos com o líquido de uma garrafa.
Pai. Minha família e eu podemos sentir as suas preces e sabemos que o senhor irá trazer
Maddy para casa.
Da cama, Grace retruca:
G. E irá acabar com a guerra e a fome...

216
Duração  49 segundos.

Todas essas informações são passadas em 1:56 minutos, tempo da cena de abertura da
série.
Assim, Grace tem sua representação pelo viés de atitudes incorretas, pois infringe todas as
normas da sociedade atual: sexo casual, transgredindo as normas da família e do casamento,
conflitos familiares, bebida, fumo, casa desarrumada, comportamentos e aparência física –
cabelos, roupas informais e casuais – além de atitudes explosivas, céticas, liberalidades com o
corpo que a colocam fora dos limites da normalização atual. As cenas demonstram uma
continuidade de sua vida cotidiana, evidenciando que seu comportamento é o rotineiro, inclusive
ultrapassando o protocolo da polícia que obriga a não existir vinculo afetivo entre a equipe que
trabalha, Grace leva ao ponto de desrespeito às normas, tendo um caso com seu parceiro, que por
sinal, é casado. Por tudo isso, ela deverá ter uma segunda chance, graças a Deus e à vinda de um
anjo que informa ser sua missão a de resgatá-la (dos pecados?). Das estórias fundadas na
realidade, a série mistura ficção, sobrenatural, mesclando gêneros distintos, e incorporando,
ainda, indagações filosóficas e religiosas em torno da vida e da morte, da salvação e de Deus.
Pesquisando o seriado, encontrei na web uma descrição que traduz muito bem a
protagonista e confirma minha análise da ideologia que subjaz a narrativa:

Saving Grace gira em torno de uma detetive de Oklahoma de comportamento


autodestrutivo, que vê sua vida mudar quando recebe a visita de um anjo.
Holly Hunter faz o papel de Grace, uma detetive cínica, bêbada, e que transa com (quase)
qualquer um que aparece. Até o dia em que, dirigindo bêbada, Grace atropela e mata um
cara e pede a ajuda de Deus. E para a sua supresa Deus realmente manda um anjo, um anjo
bem esquisito, com cara de bêbado, e que masca tabaco, mas ainda sim um anjo, com asas
e tudo.31

O momento atual, de fundamentalismos e crises, de descrenças, vai operando mudanças


nesses seriados, acompanhando as mudanças drásticas da sociedade, e permitindo, através do
backlash, mostrar uma sociedade submetida a normas e modelos conservadores. E por acaso vale
a pena sinalizar que a série obteve 11 indicações ao longo das duas primeiras temporadas e 4
Golden Globe, muito provavelmente pela interpretação de sua protagonista, que é a atriz de
cinema premiada Holly Hunter.

31
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Saving_Grace>. Acesso em: 2 abr. 2010. As noticias recentes informam
o cancelamento da série.

217
No entanto é importante evidenciar que há filmes e séries, atuais, que vão na contramão
desse ideário conservador, demonstrando que tais modelos não foram tão bons como parecem.
Nos últimos anos, basta lembrar de Mad Men e Revolutionary road entre outros. A leveza e a
superficialidade do momento contrasta com a reflexão crítica da sociedade dos últimos quarenta
anos, quando se deu a desconstrução dessas normas.

Referências

ADELMAN, Miriam. Vozes, olhares e o gênero do cinema. In: FUNK, Susana; WIDHOLZER, Nara
(orgs). Gênero em discursos na mídia. Florianópolis: Ed. Mulheres e EDUNISC, 2005

ALMEIDA, Heloisa Buarque de. “A mídia só oferece o que agrada a seu público?” In:
www.fazendogenero7.ufsc.br/programação,html.

ALVES, Ivia. Uma leitura dos novos seriados policiais: a mulher no comando. In: MOTTA, Alda
Britto da; AZEVEDO, Eulália Lima; GOMES, Márcia Q. de Carvalho (Orgs) Dinâmica de gênero em
Perspectiva geracional. Salvador: UFBA, 2005.

ALVES, Ivia. Mulheres em ação; parte 8: gênero em movimento. In: SACRAMENTO, Sandra (Org.).
Gênero, identidade e hibridismo cultural: enfoques possíveis. Ilhéus: Editora da UESC, 2009. p.
243-252.

BRANDÃO, Izabel (Org.). Corpo em revista; olhares interdisciplinares. Maceió: EDUFAL, 2005.

CORBIN, Alain et al. (Dir.). História do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. v. 3. As mutações do
olhar: o século XX.

DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>.

FALUDI, Susan. Backlash; O contra-ataque da guerra não declarada contra as mulheres. Rio de
Janeiro: Rocco, 2001.

FURQUIN, Fernanda. As maravilhosas mulheres das séries de TV. São Paulo: Panda Books, 2008.

HEBERLE, Viviane Maria; OSTERMANN, Ana Cristina; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho (Orgs.).
Linguagem e gênero; no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: UFSC, 2006.

MCROBBIE, Angela in CURRAN, James; MORLEY, David. Media and Cultural Theory. London/ New
York: Routlege, 2006, p. 59-69. Trad.: Márcia Rejane Messa. Disposto na internet
http://www.pucrs.br/famecos/pos/cartografias/artigos/mcrobbie_posfeminismo.pdf. Acesso
24/10/2008.

MESSA, Márcia Rejane. As mulheres só querem ser salvas: Sex and the city e o pós-feminismo. E-
Compòs. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação.
Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos>. Acesso em: jan 2009.

218
JUST SHOOT ME (1997-2003) EM REVISTA. dez. 2008. Disponível em: <http://serial-
bloggers.blogspot.com/search/label/Just%20Shoot%20Me>.acesso 23/4/2010.

E-PIPOCA. SUDDENLY SUSAN (Suddenly Susan, EUA, 1996). Disponível em:


<http://epipoca.uol.com.br/filmes_detalhes.php?idf=19181>. Acesso em: 23 abr. 2010.

OYO.COM.BR. Seriados e TV. Ally McBeal . Disponível em: <http://www.oyo.com.br/seriados-e-


tv/seriado/ally-mcbeal/>. Acesso em: 23 abr. 2010.

RESENDE, Viviane; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto. 2006.

RIBEIRO, Lavina Madeira. Televisão fechada no Brasil: identidade e alienação. In: IV ENECULT -
Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 28 a 30 de maio de 2008 . Faculdade de
Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14413.pdf.
Consultado em maio de 2008.

SILVEIRINHA, Maria João. Editorial. Revista EX AEQUO: representações mediáticas de mulheres.


Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, Portugal, n. 14, 2006. Disponível em:
<http://www.apem-estudos.org/?page_id=80>. Acesso em: 23 abr. 2010.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 9-39.

Sites específicos utilizados para o artigo:

http://www.imdb.com/title/tt0106079/episodes#season-3

http://pt.wikipedia.org/wiki/Saving_Grace

http://www.imdb.com

http://retrotv.uol.com.br/guiadatv/retrochannel.html

http://www.textually.org/tv/archives/archives/images/set2/5685.jpg

http://thetvbay.info/media/images/TheCloser.jpg

219
O PODER MIDIÁTICO DO GÊNERO ANÚNCIO NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS SÓCIO-
RELIGIOSAS NA CIDADE DE AÇU/RN

João Batista da Costa Júnior (UERN e UFRN)1


Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)2

As práticas discursivas, constituídas por meio da linguagem, têm sido foco de muitas pesquisas,
suscitando considerações relevantes sobre a relação intrínseca entre linguagem e sociedade.
Neste sentido, este trabalho, ancorado no aporte teórico da Análise Crítica do Discurso (ACD),
segundo a perspectiva social, esboçada por Fairclough (2008), tem como objetivos identificar as
estratégias discursivas do gênero anúncio, evidenciando sua natureza sócio-comunicativa e
verificar como o gênero constitui relação de poder nas práticas discursivas sócio-religiosas na
cidade de Açu/RN, a partir de sua produção, distribuição e consumo. A abordagem metodológica
da pesquisa é de natureza qualitativo-interpretativista, assentando-se nos propósitos da
Linguística Aplicada conforme Moita Lopes (2006). O corpus foi constituído por meio de anúncios
publicitários afixados em panfletos. Os resultados mostram que o gênero anúncio publicitário
apresenta como estratégia discursiva a forte presença da heterogeneidade semiótica, a qual
sinaliza que o gênero manifesta-se como um feixe de propósitos comunicativos que se intricam
em uma teia que funde os propósitos do gênero e as intenções de seus produtores e
consumidores. Em relação ao poder constituído pelo anúncio, os dados evidenciam que o anúncio
como gênero do domínio publicitário atua sobre os indivíduos de forma a influenciar na mudança
de seu comportamento, impondo, nas linhas e entrelinhas, valores, mitos e ideais. Portanto, a
pesquisa autoriza-nos a inferir que as implicações ideológicas subjacentes ao discurso publicitário,
no emaranhado das relações sociais, caracterizam-se como atividades de linguagem imbuídas de
um caráter manipulador, legitimando todo um ato comunicativo intencional respaldado na
dimensão da linguagem enquanto prática social.

Palavras-Chave: Análise Crítica do Discurso, discurso publicitário, gênero anúncio, estratégias


discursivas, relação de poder.

Uma incursão pelas avenidas da Análise Crítica do Discurso


A Análise Crítica do Discurso (ACD) fundamentada nos trabalhos do linguística Norman
Fairclough assenta-se no aporte teórico-metodológico que concebe a linguagem como prática
social, um modo de ação historicamente situado que tanto é constituído socialmente como
também é constitutivo. A perspectiva social da linguagem esboçada por Fairclough (2008) estuda o
texto não somente a partir de sua estrutura linguística, mas também na perspectiva de sua
interação com as práticas discursivas que socialmente definem papéis aos sujeitos nos contextos

1
Professor substituto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus Avançado Prefeito Walter de Sá
Leitão – Açu/RN. Mestrando em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.

220
reais de uso.
Assim, Pedrosa (2008:117) comenta que “a linguagem é um meio de dominação e de força
social, servindo para legitimar as relações de poder estabelecidas institucionalmente”.
Seguindo essa mesma vertente dialógica, Meurer (2005:81) aborda que “o estudo de
questões linguístico-discursivas com base na ACD pode revelar aspectos importantes da vida social.
O mesmo autor ainda registra que “ao analisar textos criticamente não estão interessados apenas
nos textos em si, mas em questões sociais que incluem maneiras de representar a ´realidade`,
manifestação de identidades e relações de poder no mundo contemporâneo” (Meurer, 2005: 81)
Diante das relações entre linguagem e sociedade, os sujeitos se constituem atores de ações
sócio-discursivas intencionalmente produzidas pelas necessidades de comunicação de um em
relação ao outro, que, ao utilizar a palavra, quer seja através de enunciados orais, quer seja
escritos, participam de uma dinâmica ideológica, uma vez que a ideologia subjacente às práticas
sociais é veiculada pela linguagem.
Assim, a língua para os sujeitos é um instrumento de ação interativa, na qual locutor e
interlocutor buscam exercer papel preponderante no que concerne às conquistas de seus
objetivos, bem como no que se refere à transformação da realidade histórico-social de vida na
qual estão inseridos.
Considerando tais ideias, é salutar mencionar que, sendo o anúncio publicitário um gênero
que joga com uma forte linguagem persuasiva, os sujeitos devem analisá-lo criticamente, uma vez
que a linguagem que o anúncio expressa revela toda uma intencionalidade, quer seja através da
linguagem verbal, quer seja pela presença de imagens.
Ao produzir anúncios, os sujeitos buscam operacionalizar seus propósitos comunicativos
através de palavras que insinuam e provocam uma conquista nos seus receptores/consumidores.
Em síntese, a visão panorâmica da proposta de Fairclough é importante para o nosso
trabalho porque, ao relacionar as ideias desse autor com o discurso publicitário, entenderemos
melhor toda força ideológica que marca o poder e hegemonia subjacente ao gênero anúncio.
Parafraseando Meurer (2005), sumariamente podemos destacar que os postulados gerais
da ACD adotados por Fairclough podem ser assim compreendidos:
i. a linguagem é uma forma de prática social;
ii. a linguagem, em suas diferentes manifestações discursivas, tem poder constitutivo;
iii. os textos contêm traços e pistas de rotinas sociais complexas;
iv. os textos são perpassados por relações de poder;

221
v. as formas de poder se articulam com trabalho ideológico realizado em diferentes
discursos;
vi. todo texto se acha em uma corrente contínua de outros textos e é localizado
historicamente;
vii. a ACD busca conscientizar os indivíduos a respeito das características mencionadas.

O modelo tridimensional de Fairclough


Fairclough (2008) sugere três paradigmas analíticos em relação ao estudo de um discurso:
i. análise textual: descrição dos aspectos linguísticos materializados na superfície textual;
ii. análise da prática discursiva: focaliza os aspectos produção, distribuição e consumo do
texto;
iii. análise da prática social: análise de questões inerentes à sociedade, por exemplo
ideologia, cultura, etc., que substanciam as circunstâncias das esferas sociais e
solidificam as práticas discursivas.
A abordagem de Fairclouch nos permite compreender o estatuto genérico do gênero
anúncio , uma vez que por meio do modelo tridimensional podemos estudar os aspectos
linguístico-discursivos desse gênero bem como sua inserção na prática social.

Gêneros Textuais: uma breve abordagem conceitual


Os gêneros textuais têm sido foco de muitas discussões. Caracterizá-los é, ao mesmo
tempo, tecer comentários acerca das práticas comunicativas que os sujeitos realizam nas diversas
relações sociais, uma vez que estas, inevitavelmente, têm contribuído para o surgimento cada vez
acelerado de uma infinidade de gêneros.
As ações discursivas que os indivíduos mobilizam trazem em si toda uma profunda ligação à
sua vida social, organizada mediante a realização de atividades verbalmente constituídas em
coletividade, sobretudo, em função do caráter comunicativo que elas revelam.

Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as


atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de
ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa (Marcuschi, 2002:
19).

Neste sentido, as atividades sociais que os indivíduos desempenham nas diversas esferas
de comunicação têm exigido cada vez mais a ocorrência de ferramentas para intensificar e
promover ações humanas. Marcuschi (2002) comenta que o surgimento dos gêneros textuais é um
222
fenômeno intimamente relacionado à dinâmica da vida cultura e social. Ele afirma que,
considerando as sociedades anteriores à comunicação escrita,

A história do surgimento dos gêneros revela que, numa primeira fase, povos de
cultura essencialmente oral desenvolveram um conjunto limitado de gêneros.
Após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII a.C., multiplicam-se
os gêneros, surgindo os típicos de escrita. Numa terceira fase, a partir do século
XV, os gêneros expandem-se com o florescimento da cultura impressa para, na
fase intermediária de industrialização iniciada no século XVIII, dar início a uma
grande ampliação (Marcuschi, 2002: 19).

Nessa perspectiva marcuschiana, a criação de novas formas de comunicação, quer seja


oral, quer seja escrita, confere condição de surgimento aos mais diversos gêneros textuais. A esse
respeito, acrescentamos que o desenvolvimento da cultura impressa, da tecnologia eletrônica
etc., tem sido uma grande marca do aparecimento de gêneros, uma vez que sempre permitirá e
facilitará a troca de informações entre sujeitos, sobretudo na cibercultura, a qual parece permitir
“novas formas de construção de sentido” (cf. MARCUSCHI & XAVIER, 2004) e “novas formas de
usar a linguagem” (ARAÚJO & BIASI-RODRIGUES, 2005).
Neste sentido, estudos sobre gêneros textuais vêm crescendo substancialmente,
provocando nos estudiosos da linguagem uma profunda motivação em desvendar os segredos da
língua subjacentes à prática social, uma vez que, como define Bakhtin, (*1929+ 1992: 17), “a língua
é a expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao
mesmo tempo, de instrumento e de material”. Isso tem sido foco de muitas pesquisas, sobretudo,
na área da Linguística (cf. ARAÚJO, 2004; MARCUSCHI, 2004, PEDROSA 2008) e da Linguística
Aplicada (cf. MEURER, 2000; MOTA-ROTH, 2008; MOITA LOPES, 2009; ROXANE ROJO 2005, entre
tantos outros).
Nesta mesma linha, Meurer (2000: 152) afirma que

Dentro do contexto de investigações recentes em Linguística Aplicada, trabalho de


pesquisas sobre gêneros textuais vêm recebendo atenção como uma opção
atraente de se produzir conhecimentos que respondam de maneira mais
adequada a questões relativas aos diferentes usos da linguagem e sua interface
com o exercício da cidadania, isto é, o exercício de compreender a realidade e agir
sobre ela, participando de relações sociais e políticas cada vez mais amplas e
diversificadas.

Ao estudar os gêneros textuais, o pesquisador não pode ignorar a intenção comunicativa


que organiza a produção destas ferramentas de comunicação. Por este motivo, no próximo
contexto de reflexão, focalizaremos uma discussão a respeito das estratégias discursivas do

223
gênero anúncio e a relação de poder que este gênero constitui nas práticas discursivas,
procurando evidenciar como se processa a natureza sócio-comunicativa do gênero em estudo.

A multimodalidade no gênero anúncio: uma estratégia discursiva que constitui relação de poder
Como destaca Dionísio (2005: 159), “imagem e palavra mantêm uma relação cada vez mais
próxima, cada vez mais integrada”. Neste sentido, entendemos que, nas práticas comunicativas do
ser humano, a multimodalidade discursiva presente nos gêneros textuais se alia para constituir
sentidos.
Em nosso caso específico, sendo o anúncio um gênero multimodal, a heterogeneidade
semiótica exerce fortemente a função de induzir os sujeitos para uma determinada ação de
compra, negociando um ato comunicativo intencional, construído em função do ouvinte ou do
receptor/consumidor ideal.
As semioses que se entrelaçam em alguns gêneros são relevantes, porque como diz
Komesu (2005: 101), “a multissemiose é o traço que se define pela possibilidade de estabelecer
conexão simultânea entre a linguagem verbal e a não verbal (imagens, animações, som) de
maneira integrativa”.
A multimodalidade discursiva configura-se, no anúncio, como uma estratégia discursiva, a
qual evidencia a natureza sócio-comunicativa desse gênero, constituindo uma prática discursiva
que permite ao gênero anúncio o poder de atuar sobre os indivíduos de forma a influenciar na
mudança de seu comportamento, impondo, nas linhas e entrelinhas, valores, mitos e ideais.
Portanto, a multimodalidade confere uma estratégia discursiva ao gênero anúncio, materializando
as implicações ideológicas subjacentes ao discurso publicitário, no emaranhado das relações
sociais, o quel caracteriza-se como atividades de linguagem imbuídas de um caráter manipulador,
legitimando todo um ato comunicativo intencional respaldado na dimensão da linguagem
enquanto prática social.

Discurso publicitário: mídia e manipulação


Fairclough (2008) sinaliza que o discurso publicitário constitui efeitos ideológicos e marcas
hegemônicas que se materializam em suas mensagens, produzindo e agenciando valores ao
mesmo tempo em que tornam naturalizadas as aspirações consumistas, as quais são convertidas
em necessidades básicas.
A todo instante os seres humanos têm sido convidados a participar de um jogo de idéias
disseminado pela prática sociointeracioninal que a linguagem publicitária provoca, pois a

224
publicidade é um tipo de discurso que está maciçamente presente no nosso cotidiano. Sua
linguagem apresenta toda uma criatividade no que se refere aos recursos linguísticos e estilísticos
usados como forma de convencimento do público-alvo.
Neste sentido, palavra e imagem, bem como outros recursos fundem-se, em função das
estratégias discursivas de sedução. Assim, o texto publicitário traz em si uma questão de
dominação e persuasão de sujeitos, pois sua produção, distribuição e consumo decorrem da
necessidade de comercialização e aquisição de um produto.
Acerca da heterogeneidade semiótica que marca o discurso publicitário, Carvalho
(1996:13) realça que

Toda a estrutura publicitária sustenta uma argumentação icônico-lingüística que


leva o consumidor a convencer-se consciente ou inconscientemente. Tem a
forma de um diálogo, mas produz uma relação assimétrica, na qual o emissor,
embora use o imperativo, transmite uma expressão alheia a si própria. O
verdadeiro emissor permanece ausente do circuito da fala; o receptor, contudo,
é atingido pela atenção desse emissor em relação ao objeto.
A respeito da argumentação icônico-lingüística que aborda Carvalho entendemos ser uma
grande marca do anúncio publicitário uma vez que é notório a ocorrência de sequências
enunciativas acompanhadas de ícones que expressam verbalmente ações intencionalmente
provocadas pelos seus produtores.
Muitas vezes um consumidor de anúncio é atraído fortemente pelo caráter argumentativo
que simbolizam as imagens de um anúncio do que pela simples abordagem de sequências
enunciativas.
Neste sentido, os atos discursivos subjacentes à publicidade não só têm a função de
informar, mas também atuar sobre os indivíduos de forma a influenciar na mudança de seu
comportamento consciente ou inconscientemente.
Quanto à organização linguística dos gêneros publicitários, é pertinente frisar que as
mensagens publicitárias, em seus aspectos organizacionais, estão revestidas de fatores que
expressam toda uma questão ideológica. A esse respeito, (Carvalho: 1996:13) comenta

Organizada de forma diferente das demais mensagens, a publicidade impõe, nas


linhas e entrelinhas, valores, mitos, ideais e outras elaborações simbólicas,
utilizando os recursos próprios da língua que lhe serve de veículo, sejam eles
fonéticos, léxico-semânticos ou morfossintáticos.

Desta forma, todos os elementos que constituem um anúncio devem ser explorados, uma
vez que eles carregam toda uma intenção comunicativa. Nesta perspectiva, o ato comunicativo

225
anunciado nas mensagens publicitárias transforma-se numa interação verbal, constituindo sentido
pela participação ativa de seus produtores-consumidores.
Os gêneros da publicidade comportam três planos: a identificação, a denotação e a
conotação. Em relação a eles, Carvalho (1996: 14-15) aponta a seguinte caracterização

O primeiro consiste na própria identificação do gênero publicitário, ou seja, é a


função classificatória da mensagem, baseada na necessidade de se reconhecer o
caráter publicitário da informação. No plano denotativo está incluído o conjunto
de informações inscritas no texto e na imagem. O aspecto lingüistico preenche,
assim, uma função semântica essencial: favorecer a inteligibilidade da proposição
publicitária, desempenhando, junto com a imagem, um papel informativo. O
plano conotativo engloba as predicações adicionais – ou seja, a afirmação de
qualidades exclusivas – que se inferem da denotação.
Com base nesta caracterização, entendemos que o plano conotativo é mais inspirador de
ideologia, uma vez que ele confere maior sentido que o plano denotativo. Em relação aos
mesmos, os aspectos linguísticos em companhia do aspecto icônico potencializam a mensagem,
materializando-a num ou noutro gênero textual publicitário. No caso específico do anúncio, o jogo
ideológico acontece muito mais no plano figurativo do que no denotativo.
Desta forma, “o discurso publicitário é um dos instrumentos de controle social e, para bem
realizar essa função, simula igualitarismo, remove da estrutura de superfície os indicadores de
autoridade e poder substituindo-os pela linguagem da sedução” (Carvalho, 1996: 17). Nesta
mesma direção, Laurindo (2005), embora não negue o caráter autoritário que marca o discurso
publicitário, destaca as suas possibilidades paradoxais, já que admite que a publicidade pode ser
marcada por marcas de subversão.
Neste caso, o lúdico ganha espaço como uma forma de induzir os sujeitos ao consumo de
algum produto. A subversão, assim, não tem a função de quebrar o autoritarismo, bem como a
forte presença de ações persuasivas que constituem as mensagens publicitárias, mas uma forma
diferente de se conquistar consumidores através de articulações menos dominantes e através de
uma acentuada estratégia persuasiva.
Dialogando com o pensamento de Laurindo e de Carvalho, Orlandi (2002: 87) destaca que
“não há nunca um discurso puramente autoritário, lúdico ou polêmico”. Assim, é mister que
consideremos que nos gêneros da publicidade podemos encontrar estratégias interdiscursivas
com o intuito de fomentar ainda mais a venda de um produto. Por esta razão, Laurindo (2005: 84)
defende que

Embora o sujeito publicitário tenha que legitimar o discurso do anunciante (e


legitimar outros), ele precisa, para vender o produto, manipular o sujeito
consumidor de forma a tentá-lo, intimidá-lo, seduzi-lo, provocá-lo, e essa

226
manipulação se dá, preferencialmente, pela via do lúdico, sendo, por vezes,
marcada pela subversão de textos e discursos.

Desta forma, ao trabalhar o lúdico nos textos publicitários seus produtores conferem maior
possibilidade de despertar nos sujeitos consumidores interesse ao consumo do produto de uma
forma menos dominante e mais sedutora através da criatividade humana. Na verdade, a
publicidade trabalha com textos nos quais um locutor faz-se presente, primando pelo fator de
manipulação que comanda o texto, entretanto, ao abordar isso, faz de maneira disfarçada, mas
não ingenuamente.
Neste sentido, a finalidade do discurso publicitário processa-se por três vias: psicológica,
antropológica e sociológica. Carvalho (1996: 17) destaca que

A via psicológica, reconhecida a partir de Freud, revela que a eficácia publicitária


do jogo de palavras resulta do fato de que esse jogo, para o receptor do anúncio,
é erótico no sentido psicanalítico do termo. A via antropológica parte da
proclamação da irracionalidade do receptor. O jogo simbólico dos signos reaviva
arquétipos coletivos ocultos que são fundamentais, de tal modo que um verbo
aparentemente insignificante induz à compra, escamoteando a barreira da
consciência. A via sociológica parte do fato de que, não se dirigindo a ninguém
em especial, a publicidade dá a cada um a ilusão de que dirige-se a ele
individualmente e, ao mesmo tempo, o faz ter consciência de ser membro de
uma pólis.
Diante desta discussão, é salutar mencionarmos que a força ideológica presente na
publicidade é um fenômeno instigante ao estudo da linguagem humana, permitindo a descoberta
do poder que a palavra exerce nas relações sociais mediante sua utilização através da interação
verbal.
Desenvolvendo uma análise
Muitas vezes, a linguagem publicitária aparece-nos de forma disfarçada, já que seu
propósito comunicativo parece ser o de “convencer e seduzir o receptor, não deixar transparecer
suas verdadeiras intenções, ideias e sentimentos” (Carvalho 1996: 10).
Na visão desta autora, este fingimento da mensagem publicitária assenta-se em três
formas principais de convencimento: a ordem, a persuasão e a sedução. No primeiro caso, a
mensagem tem o objetivo de provocar uma determinada atitude autoritária em seus
interlocutores, levando-os a agir. No segundo, o objetivo da mensagem é fazer com que o
interlocutor creia no que está sendo divulgado. E no último caso, a mensagem tem o caráter de
provocar nas pessoas a busca pelo prazer. Na verdade, os três planos convergem para o mesmo
propósito comunicativo, que é o de tornar conhecido aquilo que alimenta a mensagem
publicitária, produtos, marcas, ideias, etc.

227
Com base no aporte teórico que fundamenta este artigo, desenvolveremos uma análise
dos exemplares de anúncios seguintes.

Figura 01: Anúncio Publicitário NetSystem

Com base na discussão de Carvalho (1996), podemos mencionar que o anúncio acima
constitui uma cena enunciativa que exemplifica as duas últimas formas de convencimento: a
persuasão e a sedução, uma vez que a mensagem publicitária gerada por ele apresenta em sua
construção todo um jogo ideológico que busca fascinar seus consumidores através do caráter
lúdico que o anúncio expressa. A fascinação é constituída principalmente pela heterogeneidade
multissemiótica, marcada pela integração imagem e escrita, cujo amálgama prende e conquista a
atenção de seus consumidores.
Outra característica marcante da mensagem publicitária expressa na figura 1 é a força
subjacente às palavras para compor a mensagem. Elas contribuem para persuadir e seduzir seus
interlocutores. Basta que olhemos para as palavras em destaque Net System (NetSystem) para
constatarmos que elas não estão sendo simplesmente empregadas para nomear o
estabelecimento comercial e sim para insinuar toda uma funcionalidade que perpassa o simples
conteúdo informativo que elas pressupõem . Isto ocorre porque, nos gêneros da esfera
publicitária “a palavra deixa de ser meramente informativa, e é escolhida em função de sua força
persuasiva, clara ou dissimulada. Seu poder não é simplesmente o de vender tal ou qual marca,
mas integrar o receptor à sociedade de consumo” (Carvalho,1996: 18).
Neste sentido, vejamos como é fortemente intencional o jogo com as palavras NetSystem
no anúncio em análise. Elas foram selecionadas em função de seu caráter conquistador,
provocador e convidativo. O caráter persuasivo é tão intuitivo que além da intersemiose
imagem/escrita, é perceptível também a mistura de vocábulos pertencentes a idiomas diferentes.
Os produtores deste anúncio recorreram à língua inglesa para adquirir o chamado
empréstimo vocabular. O emprego dos vocábulos em ingleses Net e System reflete e confirma
inevitavelmente a correlação simultânea entre a linguagem verbal e a não verbal de maneira a
enfatizar a área da cena discursiva do anúncio: a informática. Esta correlação parece insinuar uma

228
intenção comunicativa que apela para uma língua de prestígio internacional, como o Inglês, para
evidenciar uma estratégia discursiva de sedução.
Considerando as ideias focalizadas até o presente contexto de discussão, podemos
ressaltar que a figura 1 operacionaliza estratégias discursivas que parecem direcionar o anúncio
para a natureza sócio-comunicativa arraigada na tentativa de atrair a atenção dos consumidores a
um estabelecimento comercial no qual eles terão a oportunidade de conhecer uma grande
variedade de acessórios relacionados ao mundo da informatização.
Daí residir a intenção provocadora de seus produtores, uma vez que o anúncio se compõe
de imagens de um computador e outras ferramentas da área da informática insinuando aos
consumidores que, ao se tornarem usuários destes equipamentos, terão “o futuro ao seu
alcance”. Todo este jogo de palavras e imagens com o qual opera o anúncio em análise constitui
uma prática sociocomunicativa que se ambienta em uma esfera de comunicação muito complexa
já que tem o poder de gerar em seus consumidores desejos pelo produto. Isso ocorre porque é
próprio do propósito comunicativo desse gênero seduzir, escamoteando o seu caráter
manipulador.
Analisando a frase que sintetiza a característica geral do estabelecimento, O futuro ao seu
alcance, de forma implícita, percebe-se que por trás deste enunciado há a pressuposição de que é
somente na loja Netsytem que as pessoas irão ter a oportunidade de alcançar o futuro a partir do
momento em que elas começarem a usufruir dos produtos de informática que são oferecidos pela
empresa. Esta questão confere ao anúncio o poder de deslegitimar outros estabelecimentos que
vendem também acessórios de informática, uma vez que o futuro das pessoas consumidoras de
produtos de informática somente será alcançado na loja NetSystem. Desta forma, cria nos sujeitos
um certo repúdio por outros estabelecimentos que comercializam produtos de informática.
Ainda em relação às formas de convencimento em que as mensagens publicitárias
assentam-se de forma disfarçada, podemos considerar que a mensagem publicitária da figura 1
está voltada para o plano da sedução porque ela tende a aderir à credibilidade de pessoas ao
consumo dos produtos oferecidos pela loja e isto é feito através da mutissemiose que provoca a
confiança nas pessoas que o futuro é algo que pode estar próximo de cada uma basta se deslocar
até a Netystem.
Assim, podemos considerar que o propósito comunicativo do anúncio em análise consiste
em provocar nos seus receptores/consumidores uma ação consumista pertinente a uma questão
marcante em nossos dias atuais: a aceitabilidade das pessoas aos recursos informatizados tendo
em vista a forma prática e dinâmica que os mesmos organizam as práticas sócio-comunicativas

229
dos sujeitos. Verifica-se, então, que tal intenção comunicativa reclama uma estratégia sócio-
discursiva voltada para o prisma psicológico, uma vez que o evento comunicativo do anúncio
aborda atividades de linguagem que os sujeitos mobilizam para atuar de maneira intencional no
comportamento de outras pessoas.
Passemos agora à análise da figura 2 que apresenta um anúncio associado a uma loja de
perfume.

Figura 02 – Anúncio Publicitário L’acqua di Fiori

O anúncio da figura 2 se apropria de uma cena enunciativa alusiva ao Natal, pois foi criado
a partir de uma mensagem publicitária que deveria circular no período natalino. Como qualquer
outro anúncio, o exemplo acima se inscreve no caráter autoritário do discurso, manifestando
como salienta Laurindo (2005:48) “a própria razão de ser da publicidade”. No exemplo, é relevante
pensar no enunciado Desperte o Natal em você, pois o verbo no modo imperativo revela uma
ação de seu produtor destinada a uma atitude persuasiva e impositiva, manifestada pela forma de
convencimento da ordem e da sedução.
A leitura que fizemos do anúncio no parágrafo acima vem ao encontro do que também
percebe Carvalho (1996: 13), já que, de acordo com ela, o uso do modo verbal imperativo tem a
função de “persuadir o receptor a realizar uma ação predeterminada”. Nesta perspectiva é
230
pertinente considerar que ao utilizar o verbo no imperativo o produtor deste anúncio convida o
receptor/consumidor para uma ação de compra como requisito a despertar o espírito natalino.
Dito de um outro modo, não há como despertar o natal nas pessoas se elas não se dispuserem a
comprar um perfume da L`acqua di Fiori.
Quanto à imagem do anúncio, é possível compreender que a exploração da imagem da
mulher nos sugere, em primeiro momento, uma leitura que antecede a da frase convidativa do
enunciado: Desperte o Natal em você. Outro aspecto que nos chama a atenção é o jogo
ideológico e ambíguo com que lida a mensagem com o número 25. Está claro que este número, ao
mesmo tempo em que se refere aos 25 anos da loja, remete os consumidores para a data em que
se comemora o Natal. Ainda em relação a esta discussão, podemos depreender que os 25 anos
que a empresa faz questão de anunciar transmite a ideia de que a L’acqua di Fiori é uma empresa
séria, posto que já lança no mercado produtos há 25 anos, portanto, sua larga experiência pode
deixar tranquilidade aos consumidores.
A seguir, faremos a análise da figura 03. Para tanto, selecionamos um exemplar de anúncio
o qual diz respeito à festa de São João Batista na cidade de Açu, o qual circulou durante o mês de
junho de 2009. Aqui, apontaremos como o anúncio constitui relação de poder nas práticas sócio-
religiosas, a partir de sua produção, distribuição e consumo.

Figura 03 – Anúncio da Festa de São João Batista

231
O exemplar do anúncio inscreve-se no caráter autoritário do discurso publicitário,
apontando cenas enunciativas que contemplam uma argumentação icônico-linguística, a qual nos
sugere principalmente a preocupação de seus enunciadores, Prefeitura Municipal e a Igreja
Católica, na fabricação, distribuição e consumo da marca ideológica da festa “Venha viver o São
João mais antigo do mundo”, como forma de criar atitude persuasiva e impositiva nos seus
consumidores.
Neste sentido, o poder midiático que o gênero exerce nas práticas sócio-religiosas é
representado pelo controle que pretende atuar sobre os festeiros da festa de São João, levando os
receptores a aceitarem a informação principal do anúncio, o slogan.
Considerações Finais
À luz da experiência aqui relatada, podemos concluir que o anúncio publicitário é um
gênero textual fundamentalmente constituído de imagem e palavra, uma entidade sócio-
discursiva que tenta seduzir as pessoas para uma determinada ação de compra, revelando atos
discursivos que marcam atitudes sedutoras nos seres humanos. Por outro lado, constituindo-se
através de uma multiplicidade de fatores semióticos, portadores de desejos e aspirações, o gênero
anúncio provoca nas pessoas atitudes consumistas, promovendo o “vazio”, ao mesmo tempo que
os seduz e os manipula ao consumo de algum produto que satisfaça uma necessidade básica e/ou
o desejo de acompanhar atitudes modistas, para não se sentir excluídos socialmente.
Constatamos também que o anúncio, quer seja pela linguagem verbal quer seja pela
semiose imagem encena interlocuções que reclamam uma relação dialógica entre sujeito e
produto anunciado, legitimando todo um ato comunicativo intencional que se constitui na
interação entre sujeitos.
Neste sentido, comprovamos que realmente ao produzir anúncio publicitário os sujeitos
utilizam a língua não de forma ingênua e sim com o propósito de influenciar o comportamento do
outro, o que nos lembra as palavras de Bakhtin, (*1929+ 1992: 17), “a língua é a expressão das
relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de
instrumento e de material”.
Assim, o nosso estudo corrobora as palavras de Carvalho (1996: 17), para quem a
linguagem publicitária “é um dos instrumentos de controle social e para bem realizar essa função,
simula igualitarismo, remove da estrutura de superfície os indicadores de autoridade e poder,
substituindo-o pela linguagem da sedução”.
Nossa análise nos ajuda a perceber que o anúncio mostra que, para manipular os sujeitos,
as mensagens dissimulam seu caráter autoritário.

232
No que diz respeito ao propósito comunicativo, percebemos que embora o anúncio
publicitário socialmente seja identificado com o propósito de divulgar uma ideia, a marca de um
produto ou o nome de uma empresa, verificamos que os dados tendem a revelar que o gênero
anúncio não se presta a um único propósito e sim a uma constelação de propósitos que se
intricam em uma teia que funde as intenções de seus produtores com os propósitos socialmente
reconhecidos.
Desta forma, podemos dizer que os propósitos comunicativos dos anúncios que circulam
em Assú/RN se inscrevem no prisma da Psicologia, uma vez que os sujeitos realizam atividades de
linguagem para atuar de maneira intencional no comportamento de outras pessoas. A esse
respeito, (BHATIA 1993 apud ARAÚJO, 2006), comenta que o propósito comunicativo engloba
ações intencionalmente multidisciplinares associadas tanto à área da Lingüística como voltadas ao
prisma da Psicologia e da Sociologia.
Finalmente, sobre os aspectos semióticos que ponteiam o gênero em foco, poderíamos
assinalar que a heterogeneidade semiótica, escrita e imagem, nos anúncios publicitários tem sido
uma eficaz estratégia discursiva que corrobora para destacar a natureza sócio-comunicativa do
anúncio. Ela, constituindo-se como uma importante arma de persuasão de sujeitos, gera cenas
enunciativas, conferindo todo um jogo ideológico permeado pela produção de sentidos que
produz a escrita, bem como, a imagem. Os aspectos semióticos revestem o anúncio de intenções
comunicativas cada vez mais fascinantes, misteriosas, sobretudo, convidativas em relação às
múltiplas facetas da linguagem humana, pois tudo que é veiculado por eles reclama um jogo
ideológico entre os sujeitos.
Entende-se, desta forma, que a presença de imagens nos gêneros textuais da esfera
discursiva publicitária , associada à escrita, tem uma pertinente influência para como o propósito
comunicativo dos gêneros publicitários, uma vez que é através do jogo intersemiótico que os
produtores conferem sentidos às mensagens veiculadas nos anúncios constituindo relação de
poder nas práticas sócio-discursivas.

Referências

ARAÚJO, J. C. & BIASI-RODRIGUES, B. (Orgs.). Interação na Internet: novas formas de usa a


linguagem. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

ARAÚJO, J. C. A conversa na web: o estudo da transmutação em um gênero textual. In:


MARCUSCHI, L. A. & XAVIER , A. C. (Orgs.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de
construção de sentido. Rio de Janeiro: Pontes, 2004. PP. 91-109.

233
ARAÚJO, J. C. Oceano de interações na Internet: tsunami digital na escola? Revista Vida &
Educação. 2006

ARAÚJO, J. C. Os chats: uma constelação de gêneros na Internet. Tese (Doutorado em Linguística).


Fortaleza: Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará (UFC),
2006.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2000. PP 277 – 326.

CARVALHO, N. de. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996.

DIONÍSIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.;


BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas e União da Vitória, Paraná, PR:
Kaygangue, 2005.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.

KOMESU, F. Pensar Hipertexto. In: ARAÚJO, J. C. & BIASI-RODRIGUES, B. (Orgs.).Interação na


Internet: Novas Formas de usar a linguagem. Rio de Janeiro: Lucerna: 2005. PP. 87-108.

LAURINDO,, h. a. Subversão: uma marca do lúdico no discurso publicitário. In. COSTA, N. B. (ORG.).
Práticas discursivas: exercícios analíticos. São Paulo: Pontes, 2005. pp 83 – 95.

MARCUSCHI, l. a.. Gêneros textuais: Definição e funcionalidade. In: Dionísio, a. p.; Machado, a. r. &
BEZERRA,, m. a. (Orgs.). Gêneros Textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. pp. 19-36.

MEURER, J. L. O conhecimento de gêneros textuais e a formação do profissional da linguagem. In:


FORTKAMP, M. B & TOMITCH, L. M. B. (Orgs.). Aspectos da Linguística Aplicada: estudos em
homenagem ao professor Hilário Inácio Bohn. Florianópolis: Insular, 2000. pp. 149-166.

MOITA LOPES, L. P. Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2002.

PEDROSA, C. E. F. Análise crítica do discurso: do linguístico ao social no gênero midiático. São


Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.

234
DO ASPECTO LINGUÍSTICO À PRÁTICA SOCIAL: UM RETRATO DA VALORIZAÇÃO DO
ETHOS DISCURSIVO NOS CURRÍCULOS LATTES DOS ESTUDIOSOS EM LETRAS

João Paulo Lima Cunha – Especialista (NPGL - UFS)


Cleide Emília Faye Pedrosa - Doutora (NPGL - UFS/ PPgEL/UFRN)

O principal objetivo deste trabalho foi analisar a construção do ethos discursivo a partir da
autopromoção realizada nos currículos lattes de estudiosos de Letras. Por ser um objeto pouco
estudado, este estudo é de extrema valia tanto para a área de Letras, especialmente para
pesquisadores que trabalham com a construção e o funcionamento do ethos discursivo, quanto
para outras áreas do conhecimento. Os objetivos do trabalho se movimentam entre entender os
aspectos linguísticos e os da prática social do lattes. Tem-se o texto introdutório presente no lattes
como materialidade linguística utilizada para análise. Para tanto, o procedimento de análise foi
fundamentado no método de estudo da Análise Crítica do Discurso (ACD) e no modelo
tridimensional proposto por Norman Fairclough: análise textual, análise discursiva e análise social.
De forma aleatória, foram escolhidas 12 (doze) amostras de textos informados pelos
enunciadores. E coletado apenas 1 (um) texto gerado automaticamente pelo sistema da
plataforma lattes. Reservou-se apenas o direito de coletar os que fossem informados por
estudiosos da área de Letras, nos níveis de graduação e pós-graduação. Foi possível discutir os
pontos importantes sobre a ACD, isto é, seu processo histórico, as convergências teóricas,
conceitos aplicados e atualização dos estudos em Teun A. van Dijk, associando-os à categoria do
ethos como um todo, desde a origem dos trabalhos retóricos dos gregos às reformulações em
Dominique Maingueneau. Verificar o texto inicial do lattes como discurso é uma contribuição
desse trabalho, já que as relações hegemônicas/ideológicas construídas em torno da padronização
desse gênero disseminaram crenças e estereótipos que restringem a criatividade (competência
discursiva) dos sujeitos. O modelo proposto cumpriu sua prerrogativa de oferecer uma análise
desse discurso no contexto de uma prática social em suas instâncias de produção, distribuição e
consumo.

Palavras-chave: Ethos discursivo, Currículo Lattes, prática social e Análise Crítica do Discurso

Introdução
Analisar a construção do ethos discursivo a partir da autopromoção realizada nos
currículos lattes de estudiosos de Letras é o principal objetivo a que se propõe esse trabalho. A
fundamentação teórica da pesquisa está no método de análise do discurso de linha anglo-
saxônica, a Análise Crítica do Discurso (ACD). Contudo, há um maior destaque para a categoria do
Ethos Discursivo: a imagem discursiva que o co-enunciador constrói a partir dos aspectos
revelados pelo texto do enunciador. Por se tratar de um objeto pouco pesquisado, a pesquisa se
revela altamente relevante, possuindo assim extrema valia tanto para a área de Letras,
especialmente, para pesquisadores que trabalham com a construção e o funcionamento do ethos
discursivo, quanto para outros pesquisadores que trabalham de forma direta ou indireta com a

235
autopromoção. Os objetivos do trabalho são entender os aspectos linguísticos e os da prática
social do lattes. Ou seja, compreender como são utilizados os recursos gramaticais, coesivos e
vocabulares para construção do texto e como se processam a produção, a distribuição e o
consumo dos textos e suas marcas hegemônicas/ideológicas do gênero no contexto específico. A
construção de ethos valorizado perpassa pelo aproveitamento desses recursos, compreendê-los é
o principal foco de estudo.

ACD: histórico, convergências, conceitos e atualização


Toda análise linguística necessita e busca uma fundamentação teórica ou um método de
pesquisa que se adéque ao que pretende averiguar, isto é, ao corpus de análise. A escolha da
Análise Crítica do Discurso (ACD) para ser o método de análise desse trabalho foi, dentre tantas
razões, por acreditar que essa ‘teoria’ se enquadra como uma abordagem que busca estudar a
linguagem nas sociedades contemporâneas (Resende; Ramalho, 2006: 07). Levando-se em conta o
tempo de surgimento da Linguística como ciência, a ACD é uma disciplina relativamente nova.
Entretanto, o número de trabalhos efetivos tem crescido abundantemente, principalmente no
Brasil (Meurer, 2005). Apesar de ter crescido a participação de pesquisas englobadas nessa
disciplina, a ACD precisa ser, ainda estudada e divulgada com mais frequência.
A ACD possui ligação teórica aproximada com a Linguística Sistêmica Funcional (LSF) e
Análise do Discurso (AD), entretanto com alguns pontos divergentes (Resende; Ramalho, 2006:
21). Embora se diga que alguns fundamentos da ACD já se encontravam na teoria crítica da escola
de Frankfurt (Van Dijk, 2008: 113), é com a Linguística Crítica (LC) e Análise do Discurso Francesa
(AD) que a ACD passa a ter um vínculo maior.
Foi porque a LC e AD deixaram algumas lacunas em suas abordagens que a Análise Crítica
do Discurso iniciou seu processo de formação, atuando em espaços deixados pelas necessárias
reflexões da modernidade (Fairclough, 2008). A LC destaca a análise linguística, contudo, com
pouca ênfase nos conceitos de ideologia e poder, e a AD enfatiza a perspectiva social, relegando a
análise linguística. A ACD vai configurar uma análise que dê conta tanto da parte textual,
lingüística quanto das ideologias/ hegemonias.
Há registros de que houve publicações em 1984 de Teun van Dijk e em 1989 de Ruth
Wodak e Norman Fairclough dando conta de uma teoria em ACD, entretanto, tem-se como marco
inicial no mundo a publicação da revista de Teun van Dijk, “Discourse and Society”, em 1990.
Todavia, o encontro desenvolvido em Amsterdã, Holanda, em janeiro de 1991, é o grande passo
para o desenvolvimento da ACD (Pedrosa, 2008: 116). O evento contou com a presença dos que

236
hoje são os grandes expoentes da perspectiva da linguagem que surgia, Teun van Dijk, Norman
Faicrlough, Gunter Kress, Theo van Leeuven e Ruth Wodak. Os diferentes enfoques teóricos com
caráter heterogêneo e caráter internacional presentes no evento em Amsterdã deram o tom de
como seria a ACD a partir de então.
Definir a Análise Crítica do Discurso nem é tarefa fácil e nem esgotável. Contudo é possível
apresentar algumas definições defendidas pelos grandes expoentes da ACD. “O termo Análise de
Discurso Crítica1 foi cunhado pelo linguista britânico Norman Fairclough, da Universidade de
Lancaster, em um artigo publicado em 1985 no periódico Journal of Pragmatics” (Resende;
Ramalho, 2006: 20).
É possível definir a ACD como:

[...] um tipo de investigação analítica discursiva que estuda principalmente o


modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados,
reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político
(Van Dijk, 2008: 113).

As abordagens em ACD são, necessariamente, multidisciplinares, rompendo fronteiras


epistêmicas, transformando-as em favor de uma abordagem sócio-discursiva (Resende; Ramalho,
2006: 14). Dessa forma é possível relacionar trabalhos de teóricos da AD com outros da ACD.
Entretanto, é preciso resguardar os cuidados que algumas categorias requerem.
A ACD é concebida com diversas caracterizações, conforme postulou Pedrosa (2008: 118).
Alguns a consideram como uma teoria, outros como uma espécie de método. O fato é que as
múltiplas caracterizações (e não denominações) são aceitas pelos que a fazem, sem nenhum
desconforto acerca disso. Os enfoques teóricos diferentes de cada analista crítico do discurso é a
principal causa da aceitação, pois não há uma concepção unívoca de um método em ACD.
O Discurso e a Prática Social são os dois principais conceitos na formulação da Análise
Crítica do Discurso. O conceito de discurso leva em consideração três dimensões possíveis: a
Prática Social, a Prática Discursiva e a Prática Textual. Já em relação à Prática Social, conceber o
discurso como prática política e ideológica é vê-lo como um momento da prática social. Nesse
momento, estão sendo inclusos a atividade produtiva, os meios de produção, as identidades, os
valores culturais e outros.
Van Dijk ratifica que:

1
As autoras citadas preferem utilizar o termo “Análise do Discurso Crítica”, conforme na citação. Porém, devido aos
respaldos e aos posicionamentos de alguns autores utilizados nesse trabalho, e às preferências sonoras, utilizar-se-á a
nomenclatura “Análise Crítica do Discurso”.

237
A Análise Crítica do Discurso não é, na verdade, uma diretriz, uma escola, nem
uma especialização semelhante a tantas outras “abordagens” nos estudos
discursivos. Antes a ACD objetiva oferecer um “modo” ou uma “perspectiva”
diferente de teorização, análise e aplicação ao longo de todos os campos. [...] Para
os analistas críticos do discurso, é fundamental a consciência explícita do seu
papel na sociedade (Van Dijk, 2008: 114).

A ideologia tem sido o ponto central da discussão nos estudos do discurso. Para a ACD as
ideologias representam o mundo físico, as relações sociais e as identidades sociais construídas
através da prática discursiva (Fairclough, 2008: 117). O conceito de hegemonia faz parte da ideia
central do trabalho de Gramsci sobre o capitalismo ocidental. Em hegemonia há a relação de
dominação e poder de classes sociais de prestígio sobre as que não são.

Hegemonia é liderança tanto quanto dominação dos domínios econômico,


político, cultural e ideológico de uma sociedade. [...] Hegemonia é a construção de
alianças e a integração muito mais do que simplesmente a dominação de classes
subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu
consentimento (Fairclough, 2008: 122).

Os estudos discursivos, ao longo dos anos, têm sofrido algumas atualizações. Teun A. van
Dijk delineia uma atualização da Análise Crítica do Discurso. Ele apresenta a denominação Critical
Discourse Studies (Estudos Críticos do Discurso) em substituição ao termo Análise Crítica do
Discurso. O que van Dijk postula, reforça a posição de uma teoria em ACD heterogênea,
multidisciplinar. Para ser considerado um estudo ‘crítico’ é necessário:
1. Estudar a dominação na perspectiva do grupo dominado ou de seu interesse;
2. Utilizar as experiências dos grupos dominados como proeminentes;
3. Demonstrar como as ações discursivas do grupo dominante são ilegítimas;
4. Formular opções discursivas aceitáveis a ambos os grupos.
Ao contrário do que muitos pensam, as pesquisas em ECD não deixam de ser mais ou
menos científicas por assumir tais posições (Van Dijk, 2008: 16). Van Dijk contribui ainda com os
tipos de reprodução social: acesso, controle do discurso e controle da mente.

Um breve percurso histórico-conceitual do ethos discursivo


Nos currículos lattes, há uma criação de imagem ideal, um conceito sobre uma pessoa.
Para fazer parte dos intelectuais/pesquisadores a pessoa tem que possuir uma formação
acadêmica sólida, repleta de cursos, tanto de graduação, pós-graduação, extensivos, quanto de
apresentações de trabalhos, em eventos científicos, dentre outros. Todas essas especificações são
favoráveis para uma estereotipação que é construída através do texto divulgado na plataforma

238
lattes. Essa imagem (conceito) sobre cada pessoa, quando elevada a instância de consideração
sobre o linguístico e socio-histórico, é o ethos discursivo.
Após ser cunhado pela retórica, onde Aristóteles definia os ethé como um meio das
provas, juntamente com o logos e pathos, foi na década de 80, do século XX, em decorrência da
evolução das condições do uso da palavra publicamente através das mídias, que o ethos passou a
interessar aos estudos pragmáticos. Logo depois, os estudos discursivos, em especial com
Dominique Maingueneau, também se interessaram por tal categoria. Em oposição ao conceito do
ethos retórico, o intelectual francês afirma que o ethos discursivo ultrapassa a ideia de eloquência
jurídica, implantado na retórica, perpassando por todas as instâncias dos discursos, com isso tanto
textos orais quanto escritos foram incluídos nessa abordagem.
A imagem discursiva não é o que é falado sobre o mesmo enunciador, mas o que o
enunciatário constrói sobre o que o enunciador deixou posto, em textos orais ou escritos. “Ethos é
o que por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador” (Maingueneau, 2008b:
97-98). As obras de Maingueneau se aprofundam no ethos, destrinchando as categorias
componentes do ethos: Fiador, Tom, Caráter e Corporalidade. Incluiu ainda como noções
importantes para constituição do ethos a Incorporação, a Maneira de Dizer, a Maneira de Ser, o
Ethos pré-discursivo e o Anti-ethos.

Análise do ethos discursivo e aplicação do modelo teórico tridimensional da ACD


Análise textual
Um dos aspectos criticados pela ACD em relação AD é que essa, de certa forma, exclui o
texto como item de análise. A análise textual é definida, pela ACD, como a análise que toma o
texto como materialidade de observação, entretanto deve ser um texto de interesse discursivo e
social. A análise linguística proposta no método analítico é a esfera mais técnica do modelo
tridimensional. Tanto por ser uma área de conhecimento linguístico apurado (núcleo duro),
quanto pela diversidade de abordagens técnicas e teóricas sobre o mesmo campo. Dentre os
campos linguísticos que são estudos nessa investigação do lattes estão o vocabulário (seu valor
lexical), a gramática (sua parte sintática e temática), e a coesão (distribuição entre as frases) e a
estrutura textual.

Vocabulário no Lattes
Os valores lexicais presentes nos textos fornecidos pelos autores nos currículos lattes
pertencem a um dos pontos mais importantes para análise linguística. Nesse momento não se

239
quer tratar do valor dicionarista da palavra, mas sim de uma possível lexicalização (re-
lexicalização) das palavras. Por se tratar de um texto com forte apelo promocional, a escolha do
vocabulário pode contribuir para uma boa ou má promoção, já que se sabe que as palavras
socialmente possuem ‘valores’ (positivos ou negativos).
O primeiro ponto presente nos lattes dos pesquisados é a escolha de palavras, ou
sintagmas lexicais, que possuem valores institucionais fortes. Dentre os textos escolhidos para
análise, todos se valeram desse artifício promocional.

Fragmento 1:

CL2 – possui graduação em Língua e Literatura Portuguesas pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (1981), mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília
(1988) e doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo (2001).

CL3 – Participou das atividades do Centro de Pesquisa Interuniversitário Experiência,


Recursos Culturais, Educação EXPERICE da Universidade de Paris 8 e Paris 13 e do Instituto de
Pesquisas e de Estudos Superiores em Turismo IREST da Universidade de Paris I PANTHÉON-
SORBONNE.

Ao valer-se da utilização do nome de diversas instituições educacionais nacionais e


internacionais, em seu currículo lattes, o enunciador busca incorporar ao seu fiador (corpo
enunciativo) o respeito, a credibilidade e a importância que essas instituições possuem
socialmente. O autor se vale do valor da ‘logomarca’, dentre outros aspectos, como fonte de
propaganda prestigiosa. A logomarca de uma instituição, isto é, o ‘nome’, a ‘bandeira’, a
representação institucional, possui para qualquer gênero discursivo, quando inscrito no ambiente
contextual específico, um valor qualitativo, conforme descreveu Fairclough (2001).
Reservadas as formas de aplicação publicitária para a análise de Maingueneau (2008b) o
estudioso caracteriza o nome de uma marca como um conjunto variável de representações
sedimentadas ao longo do tempo, uma “imagem de marca”, sobre a qual a empresa deve agir
constantemente. Os nomes das instituições de ensino funcionam como uma grande ‘marca’ que
oferece seus produtos (cursos, aperfeiçoamento, títulos) aos clientes (estudantes, pesquisadores,
funcionários e sociedade). Existe uma incorporação para os que possuem esses produtos, ou
passam a tê-los. A marca introduz uma identidade por intermédio do discurso.
Essas escolhas lexicais reforçam a construção de um caráter do ethos de cada
enunciador. Os traços psicológicos, que são formados pelo co-enunciador da pessoa do
enunciador (fiador), formam-se pela maneira de dizer nos textos produzidos por cada sujeito. No
lattes, a utilização de palavras de valores edifica uma maneira de ser do enunciador.

240
Outra escolha lexical que vale uma observação é a possível utilização de palavras do
mercado empresarial nos currículos lattes. No campo empresarial, os discursos sempre privilegiam
os meios de liderança e promoção. No lattes, devido à necessária autopromoção do ethos
discursivo, algumas palavras do campo empresarial migraram para outro campo discursivo,
fazendo parte também do discurso promocional no lattes. Isso ocorreu com as palavras que
pertencem ao campo semântico do vocábulo “liderança”.

Fragmento 2:

CL3 - Em 2002, chefiou o Departamento de Ensino da Uned-Eunápolis. De 06.2003 à


08.2004 coordenou os Cursos Técnicos na Área de Turismo e Hospitalidade. De 09.2004 à 02.2006
chefiou o Departamento de Relações Empresariais DIREP do CEFET-BA.

Apenas um currículo apresentou a característica empresarial dentre os currículos


analisados. Outros optavam sempre por fazer uso de palavras/verbos com pouca evocação
promocional.

Fragmento 3:

CL6 - Atua como pesquisador num espaço de transição téorica sobre as relações da praxis
literária com as artes de dispositivos técnicos, sobretudo cinema e fotografia.

Apenas o currículo do fragmento 2 apresentou a característica empresarial dentre os


currículos analisados. A presença dos itens ‘chefiou’ e ‘coordenou’ denotam um aspecto de ação
em um processo. Ser líder é “está à frente de todos e sobressaindo-se aos outros, em seu
cotidiano familiar e, principalmente, em seus projetos profissionais” (Farias; Pedrosa, 2008: 107).

Gramática do Lattes
Quando se falou em vocabulário, citou-se que esse tratava, principalmente, da
investigação de palavras separadas, individuais. Complementar a essa investigação, a análise da
gramática de um texto em Fairclough vai refletir sobre a combinação que essas palavras, que
anteriormente eram tratadas isolamentos, possuem nas orações e frases. No modelo
tridimensional, a gramática se preocupa com a transitividade, o tema e a modalidade. Com a
transitividade é possível verificar as ações de processos e as vozes utilizadas em determinados
seguimentos. Para análise do tema, busca-se o que é posto em evidencia, ou seja, o que é
temático nas orações do texto. Já a modalidade se preocupa com os graus de afinidades expressas
com proposições padronizadas (Pedrosa, 2008: 131).

241
Os currículos analisados não possuem, materialmente, marcas de subjetividade. Isto é, os
enunciadores não utilizaram verbos ou pronomes pessoais em primeira pessoa em suas
construções oracionais. A orientação por esse tipo de escrita está presente nos trabalhos de
artigos científicos e acadêmicos de um modo geral como nessa monografia.

Fragmento 4:

CL11 - Tem experiência na área de Linguística, atuando no ensino de língua portuguesa,


de leitura e de produção textual (oral e escrito) sob a perspectiva sócio-interacionista. Tem
concentrado seus estudos e pesquisas na área de educação e tecnologia, em especial na produção
de jogos digitais para crianças em fase de aquisição da língua escrita.

Produzir textos em terceira pessoa é uma convenção social que se construiu por acreditar
que esse tipo de escrita se torna impessoal, ou seja, não há um posicionamento explicito no texto
daquele que o fez. Há nessa orientação uma falsa modéstia, já que mesmo não aparecendo
marcas linguísticas em primeira pessoa como verbos e pronomes, aparecem, no caso do lattes,
aspectos de autopromoção destacados nessa análise. Não se pode negar, também, a possível
influência dos textos que são gerados de forma automática pela Plataforma Lattes, já que a
mesma possibilita tal recurso.

Fragmento 5:

CL2 - possui graduação em Curso de Licenciatura Plena Vernáculo e Francês pela


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1970) , doutorado em Letras (Literatura Portuguesa) pela
Universidade de São Paulo (1982) e pós-doutorado pela Universidade de Coimbra (1993) . Tem
experiência na área de Letras , com ênfase em Outras Literaturas Vernáculas.

Explicitando melhor tal característica de escrita, existe um possível aspecto cultural. Os


acadêmicos brasileiros possuem essa peculiaridade na escrita. Talvez por achar que as escolhas
em primeira pessoa possuem um grau de ‘esnobismo’ (superioridade exacerbada). Contudo, na
Grã-Bretanha, Fairclough (2001), ao analisar seu próprio curriculum vitae (CV), apresentado em
uma seleção profissional, traz como exemplos excertos sempre colocados em primeira pessoa. A
justificativa para tal atitude é principalmente por querer colocar o ‘eu’ como tema.

Fragmento 6:

CV – Fui Chefe de Departamento [...]. Atualmente sou membro [...]

2
Esse texto pertence a um currículo gerado automaticamente pelas informações do locutor, por isso não segue a
numeração adotada até então para análise. O texto está no anexo 13.

242
Os acadêmicos brasileiros não utilizam o recurso do ‘tema pessoal’ conforme acima, mas
utilizam, em pequena escala, outro recurso onde colocam o locutor/pessoa como tema: a
utilização de orações na voz passiva. Apesar de se saber que esse recurso é de extrema valia para
a autopromoção em qualquer gênero, é quase extinta a utilização de voz passiva no lattes. Com a
voz passiva, a proeminência da informação é colocada em primeiro plano. Foi encontrado o
recurso sintático descrito somente em um dos currículos analisados, dentre os doze pertencentes
à pesquisa.

Fragmento 7:

CL3 - A partir de 18.08.2009 foi nomeado para a Assessoria para Assuntos Internacionais
- IFBahia International.

Por vezes, em alguns lattes, as orações declarativas possuem um sentido predicativo. Não
obstante possuir a mesma construção clássica das orações predicativas, no lattes, nos casos
analisados, foram omitidos os verbos da oração, apresentando apenas a palavra com valor
adjetival.

Fragmento 8:

CL6- Graduado em Letras - Língua e Literatura Alemã (2003) e Língua Portuguesa e


Literaturas Portuguesa e Brasileira (2006) [...].

CL7 - Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade (1986) e mestre em


Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001) [...]..

O título educacional passou a ser o tema do assunto, o foco, como na construção das
orações passivas, ao tornar a palavra com valor de adjetivo o termo primeiro, principal, da oração.

Estrutura Textual
A estrutura de um texto é capaz de disseminar costumes e crenças, por relações sociais
de diversos gêneros. A representação das relações sociais é mantida por regras que são
construídas socialmente. Romper a essas regras de polidez pode fazer com que o sujeito seja
considerado um infrator mal-educado.
Em apenas um currículo, há a quebra do padrão estrutural do lattes já solidificado em
torno de títulos, experiências e outros. Nele há a inclusão de dois, do que se pode chamar,
endereços eletrônicos, informando sobre as páginas profissional e acadêmica do enunciador.

Fragmento 9:

243
CL5 - Trabalhou por mais de 5 anos no Sistema Arquidiocesano de ensino com turmas de
5ª ao 3º ano e atualmente é o professor de Inglês do Colégio São Paulo, um dos mais tradicionais
de Belo Horizonte. Página Profissional: http://aulasbh.googlepages.com Página Acadêmica:
prof.newtonrocha.multiply.com Email: prof.newtonrocha@gmail.com.

A construção acima é definida por Fairclough (2001) como itens de anúncio de emprego.
Nos anúncios de emprego, é comum encontrar no texto uma referência a informações fora do
próprio gênero (se houver necessidade de maiores informações, as pessoas devem procurar os
elementos subsidiários no endereço informado no anúncio).

Prática Discursiva
Produção do Lattes
O campo inicial do lattes, o texto de apresentação, pode ser preenchido com as
informações julgadas necessárias pelo enunciador. Sendo assim mesmo que haja uma prescrição
quanto às informações que devem ser inseridas, há também uma possível liberdade no tocante ao
que informar no campo citado acima. Entretanto, o processo de produção de um texto é
estimulado por diversos aspectos que de alguma forma influenciam o autor/escritor. Com isso,
mesmo sendo conhecedores dessas influências, os autores preferem escrever um texto que esteja
abalizado em informações básicas. Dentre os recursos mais utilizados para produção do lattes está
a intertextualidade.
De forma simplificada, a intertextualidade é o que um texto possui de outros textos.
Dentro de uma cadeia intertextual, um texto está intimamente ligado a outro texto anterior. Ele
responde, reacentua e trabalha outros textos. A intertextualidade pode se apresentar de forma
explícita (manifesta) ou implícito (constitutiva).

Fairclough utiliza o termo intertextualidade de forma generalizada, tanto para a


manifesta quanto para a constitutiva, quando a distinção não está em questão. E
utiliza o termo “interdiscursividade”, substituindo intertextualidade constitutiva,
quando é necessário estabelecer distinção a fim de enfatizar a intertextualidade
através das convenções discursivas (Pedrosa, 2008: 142).

Não há texto que não mantenha algum aspecto intertextual, ou seja, não há um texto que
se ache isolado, solitário (Marcuschi, 2008: 129), mesmo que pareça o contrário como se pensou
no primeiro contato com o lattes. Os textos analisados sempre são escritos em terceira pessoa,
textualmente é uma pessoa que fala de outra, mesmo que a pessoa que relata seja a pessoa
relatada. Sendo assim o texto está respondendo a outro texto anterior. O autor está “transpondo
a voz” de um texto inicial “para sua moldura” (Fairclough, 2008: 142). Há também a presença de
outros discursos. Anteriormente, quando se falou no vocabulário utilizado no lattes, foram

244
apresentadas palavras que pertenciam ao discurso empresarial que no lattes passaram a cumprir a
função de promover o caráter de liderança que os sujeitos desempenhavam. A presença de outro
discurso é uma marca de intertextualidade manifesta, pois é possível perceber de onde é
reportado tal fragmento. O exemplo é uma espécie de metadiscurso.

O metadiscurso sugere que o falante está acima ou fora de seu próprio discurso.
Essa posição oferece condições de o falante controlar ou manipular seu discurso.
A consequência dessa prática é interessante na leitura que se faz da relação entre
discurso e identidade (subjetividade). Porque, de certa maneira, parece contrariar
a visão de que a identidade social de uma pessoa é uma questão de como essa
pessoa está situada em tipos específicos de discurso (Pedrosa, 2008: 144).

O Fragmento 9 é outra manifestação da intertextualidade nas condições expostas pela


citação acima, em que o enunciador coloca um endereço eletrônico. O falante está fora do seu
próprio discurso, oferecendo condições para controlar ou manipular o discurso.
A intertextualidade constitutiva, ou interdiscursividade como prefere Fairclough é outra
característica intertextual. A interdiscursividade está mais relacionada com as convenções
discursivas. É o espaço das lutas hegemônicas, em que a ordem do discurso é influenciadora direta
e da constituição de discursos particulares/específicos. Os elementos heterogêneos ou
intertextuais são articulados e desarticulados para constituição do discurso, em uma relação
mútua. (Fairclough, 2008: 159).

Distribuição do Lattes
Os textos são formados por cadeias intertextuais. Essas cadeias pertencem a tipos
específicos de discursos que ajudam a entender e formar outros discursos. As instituições e as
práticas sociais possuem discursos diversos que de alguma forma podem se unir para forma outro
discurso novo.
Os discursos podem ser de distribuição complexa ou simples. Para fazer essa distinção,
Fairclough (2008) utiliza dois exemplos, classificando uma conversa casual como um gênero de
distribuição simples, já que pertence a um contexto imediato (efêmero); e como de distribuição
complexa um discurso presidencial, porque o discurso é assimilado, processado e transformado
através das relações construídas com outros contextos paralelos (jornalístico, conversacional,
reuniões governamentais, dentre outros).
O currículo lattes não possui uma cadeia intertextual vasta. Poucos currículos analisados
mantiveram uma relação estrita com outro texto. Mesmo assim, os textos podem ser classificados
como de distribuição complexa já que o discurso possibilita a introdução desses textos dentro de

245
uma cadeia de redes intertextuais mais complexas. Podendo ser utilizados como dados para uma
reunião setorial de uma determinada instituição técnica universitária, ou de fomento a pesquisa,
ou, ainda, como base de uma pesquisa acadêmica, como esta que doravante está se
desenvolvendo. Os currículos dos fragmentos 2 e 9 reportam ainda a uma rede intertextual,
conforme dito anteriormente, quando foi tratado sobre a manifestação da intertextualidade.
De alguma forma “O produtor de um texto sempre procurará prever as prováveis cadeias
por que seu texto poderá passar e, dessa forma, procurará constituí-lo de uma maneira em que se
antecipem as respostas das principais audiências” (Pedrosa, 2008: 146). Nesse momento, é
importante entender que as cadeias intertextuais possibilitam, dentre outras coisas, uma
interpretação coerente no momento em que haverá o consumo dos textos.

Consumo do Lattes
Criar uma estereotipação de um leitor para um texto é o que necessariamente o autor faz
ao produzir seu texto. Em uma linguagem simples, é possível afirmar que o texto foi escrito para
ser “consumido”.
O consumo dos textos pode ser realizado em diversos contextos sociais, dependendo do
limite interpretativo ao qual se propõe. O consumo pode ser individual ou coletivo. Fairclough
compara o consumo de uma carta de amor e um registro administrativo como forma de mostrar
as diferenças entre um e outro. Podem-se haver também diferentes formas de consumo de
textos. Estes podem ser lidos, relidos, preservados, transcritos (entrevistas oficiais, poemas
importantes) ou podem não sofrer nenhum desses processos e ser repentinamente esquecidos
(como as conversas informais). É o que ocorre com textos diversos que podem ser ainda
transformados em outros textos específicos.
No currículo lattes, todos esses processos, em relação ao consumo, podem haver. Ele
pode ser lido, relido, preservado, transcrito ou esquecido. O lattes em si já é uma adaptação
ocorrida da releitura de outro gênero, assim, quando o co-enunciador tem contato com o texto
lattes de alguém, haverá a utilização do texto lido em seu favor, transformando-o de acordo com
suas expectativas.
O processo de consumo também sofre, como a produção, com as restrições sociais. Os
principais consumidores do currículo lattes são as instituições de pesquisa, as agências de fomento
à pesquisa, as universidades e os centros tecnológicos de educação. São as pessoas que
pertencem a esses grupos, com o respaldo das instituições, que mantém a hegemonia do gênero

246
dentre os pesquisadores. É nesse instante que se deve preocupar com o processo interpretativo.
Este está ligado ao consumo dos textos, igualmente ao processo produtivo.
Interpretar o texto do lattes como, meramente, algo informativo é algo comum para os
que consomem o lattes, quando lêem sobre quem possui título de doutor ou mestre e outro não
possui; que desempenha suas atividades na área de literatura/linguística ou não, dentre outros
itens. Poucas vezes, é possível verificar o caráter autopromocional desenvolvido nos textos. Deve-
se deixar claro “que a coerência está muito mais na mente do leitor e no ponto de vista do
receptor do texto que no interior das formas textuais” (Marcuschi, 2008, p.122).

Análise Social
A análise social está voltada para especificação da prática social da qual a prática
discursiva faz parte. Ela é a terceira dimensão do modelo tridimensional. A fim de compreender
como o discurso, tratado como prática social, trabalha com a ideologia e a hegemonia de grupos
específicos são analisados, nesse tópico, os efeitos da prática discursiva sobre a prática social.
Há alguns anos, a ideologia tem sido o foco de vários estudos discursivos. Fairclough
enumera algumas limitações da teoria ideológica de Althusser e postula uma ideologia que é
formada pelas significações e construções da realidade como o mundo físico, as relações sociais e
as identidades sociais. Sendo assim, “as ideologias surgem nas sociedades caracterizadas por
relações de dominação com base na classe, no gênero social, no grupo cultural e assim por diante
(Fairclough, 2008: 232)”.
Nos currículos lattes estudados, as ideologias se fundamentaram a partir de uma classe
de estudiosos (pesquisadores) que propagaram o gênero, numa relação de poder institucional. As
identidades sociais estereotipadas foram possibilitadas pelas relações sociais estabelecidas com o
gênero. Os que participam do lattes se inserem no status dos intelectuais. Deixam de fazer parte
de uma grande massa e incluem-se na pequena classe dos estudiosos (diferenciados). Dessa
forma, é possível entender o porquê dos sujeitos interpelados por essa ideologia, no caso
específico dos currículos analisados, não conseguirem romper um padrão estabelecido pela classe
dominante do lattes, embora se saiba da capacidade de transcender tal ideologia.
A ideologia de autopromoção perpassa o processo produtivo e interpretativo do lattes,
fundamentada para a criação da identidade ideal. A ideologia diz respeito ao que o enunciador
precisa fazer para se autopromover: “vender-se”. Desse jeito, é possível ter alguma chance de
sucesso na vida acadêmica. Tal pensamento serve da mesma forma para os que irão consumir o

247
texto, pois terão a autopromoção como um parâmetro avaliativo para selecionar ou não o
candidato, enunciador do lattes (Fairclough, 2001).
Quando se tornam naturalizadas, as ideologias nos processos discursivos conseguem ser
totalmente eficazes. Elas atingem um status de senso comum, situação perfeita para sua ação e
manutenção. Em relação ao lattes, as ideologias citadas tornaram-se naturalizadas (ou mais ou
menos naturalizada), fazendo os sujeitos participarem da prática discursiva sem um breve
‘questionamento’ das atividades que a reveste. Romper tal barreira ideológica só seria possível
através da criatividade dos sujeitos (competência linguística). A restrição quanto à exploração da
criatividade é acentuada devido à presença estável da hegemonia, pois quando “há uma
hegemonia relativamente estável as possibilidades de criatividade são provavelmente fortemente
restrita” (Fairclough, 2001, p.38).
Infere-se, a partir dos currículos analisados, que os autores sabem da possibilidade de
ultrapassar as ideologias no lattes, entretanto não a faz por querer participar da hegemonia
dominante, já que os enunciadores possuem conhecimentos analíticos da língua.
O grupo hegemônico do lattes é formado pela aliança entre o discurso acadêmico dos
enunciados e o CNPq. É por intermédio de concessões entre as classes de pesquisadores que é
possível conceber um poder instituído. Nessa concessão não se trata de uma dominação sobre
uma classe inferior, mas de meios ideológicos de consentimento, isto é, um aluno poderá fazer
parte da hegemonia dominante, assim que ele possuir as características desejadas. A conjuntura
em torno dessa aliança favorece a construção hegemônica, pois os textos são consumidos nos
ambientes convenientes.
No momento em que se pode detalhar a prática discursiva, anteriormente, foi possível
verificar a presença do discurso empresarial fazendo parte do lattes. Conforme Fairclough,
“hegemonia é liderança”, por isso a existência desse “discurso de liderança” ressalta a presença de
uma hegemonia de dominação e o ligeiro interesse com a manutenção dessa situação favorável ao
grupo.
O sistema de valores implantado pela obtenção dos títulos acadêmicos conquistados
pelos enunciadores reforça a hegemonia dos que possuem um título sobre os que não possuem.
Assim, um pesquisador que possui o título de doutor exerce influência sobre o que possui apenas
o título de graduação ou sobre o que não possui graduação (Van Dijk, 2008).
Entender melhor o processo de produção, distribuição e consumo do gênero,
pertencentes ao processo discursivo é compreender como o lattes se recobre em questões
ideológicas e hegemônicas.

248
Considerações Finais
A primeira contribuição desse trabalho é observar o texto inicial do lattes como discurso,
porque as relações hegemônicas/ideológicas que são construídas em torno da padronização desse
gênero disseminaram crenças e estereótipos que restringem a criatividade (competência
discursiva) dos sujeitos. ACD como método de estudo da análise do discurso enriqueceu o trabalho
por ser essa teoria multidisciplinar. Dentre os resultados encontrados, percebeu-se que os
pesquisados não conseguiam estender a valorização no texto inicial do lattes, devido à
padronização a que o texto era submetido. Julgamos que não tenha sido por falta de habilidade
com escrita textual que a maioria dos enunciadores não alcançou, pois os sujeitos que
participaram da análise possuíam conhecimentos analíticos sobre a escrita textual. Não obstante a
falta de liberdade dos produtores dos textos analisados, eles podem conseguir os propósitos
autopromocionais traçados, já que se tornou convencional também a leitura feita por aqueles que
consomem os textos. O modelo de análise proposto cumpriu sua proposta de oferecer um estudo
que pudesse dar conta de uma prática social e suas instâncias de produção, distribuição e
consumo. Almeja-se, apenas, com essa pesquisa que novos estudos sobre ACD e o currículo lattes
possam nascer, fortalecendo tanto o método de estudo quanto o gênero em questão.
Referências

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução Izabel Magalhães. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2008.

______. A análise critica do discurso e a mercantilização discurso público: as universidades. In:


MAGALHÃES, Célia M. Reflexões sobre a análise do discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras,
UFMG, p.31-81. 2001.

FARIAS, Silvia Margarida dos Santos; PEDROSA, Cleide Emília Faye. As imagens de si no gênero
editorial. In. PEDROSA, Cleide Emília Faye; CORRÊA, Leda Pires. Linguística Aplicada ao ensino em
línguas materna e estrangeiras. São Cristovão: Ed. UFS, 2008.

PEDROSA, Cleide Emília Faye. Análise crítica do discurso: do linguístico ao social no gênero
midiático. São Cristovão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.

RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise do discurso crítica. São Paulo: Contexto,
2006.

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do Ethos. In: Motta, Ana Raquel; SALGADO, Luciana.
Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008a. p.11-29.

249
______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2008b.

______. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, R. Imagens de si no discurso: a construção


do ethos. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 69-92.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Editora Parábola, 2008.

MEURER, José L. Gêneros textuais na análise Crítica de Fairclough. In. MEURER, José L.; BONINI,
Adair; MOTTA-ROTH, Désirée [orgs]. Gêneros teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola,
2005.

VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008.

250
PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO

José Ribamar Lopes Batista Júnior, Doutorando em Linguística


Colégio Agrícola de Floriano (CAF/UFPI)
Universidade de Brasília (UnB)

Considera-se Atendimento Educacional Especializado (AEE) o conjunto de atividades, recursos de


acessibilidade e pedagógicos organizados institucionalmente, prestado de forma complementar
ou suplementar à formação dos alunos no ensino regular (MEC, 2008). Nesse sentido,
objetivamos, neste trabalho, investigar as práticas de letramento (práticas de leitura e escrita) das
equipes multiprofissionais de atendimento educacional à pessoa deficiente. A fundamentação
teórica da pesquisa, em andamento, está alicerçada nas contribuições da Etnografia (LOPES, 2004;
ANGROSINO, 2009) combinada a Teoria Social do Letramento (BARTON E HAMILTON, 1998;
BARTON, HAMILTON E IVANIC, 2000; BARTON, 2006; RIOS, 2009; BAYNHAM, 2009) e a Análise de
Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001, 2003). O corpus é formado pelas observações feitas nos
núcleos de atendimento pedagógico educacional de três cidades: Brasília (DF), Fortaleza (CE) e
Teresina (PI) e, também, pelas notas de campo.

Palavras-chave: Letramento, Atendimento Educacional Especializado, etnografia.

Introdução
Pretendemos neste trabalho apresentar os resultados preliminares do estudo piloto do
projeto de doutoramento intitulado Discurso, identidade e letramento no Atendimento
Educacional Especializado (BATISTA JR, 2009). Especificamente, objetivamos investigar as práticas
de letramento (práticas de leitura e escrita) das equipes de Atendimento Educacional
Especializado (AEE). A motivação para esta pesquisa está na necessidade de continuar a investigar
o Ensino Especial, iniciada no Mestrado1, em escolas regulares inclusivas, nesse novo contexto de
inclusão promovido, principalmente, a partir da Conferência de Jontien (1990), da Declaração de
Salamanca (1994) e das novas políticas públicas de inclusão do Ministério da Educação (MEC),
principalmente, a Resolução Nº. 42 (ver Seção 1.2). Para isso, inicialmente, faz-se necessário
compreender as políticas públicas sobre a inclusão, desde a legislação internacional até a
legislação dos contextos pesquisados (ver Seção 1).
Dessa forma, esta pesquisa amplia o foco do estudo desenvolvido no mestrado na
abordagem crítica dos conceitos de ‘identidade’, ‘(múltiplos) letramentos’ e ‘interdisciplinaridade’
– à luz do arcabouço teórico-metodológico da Análise de Discurso Crítica (ADC) e dos Novos
Estudos do Letramento (STREET, 1984, 1995, 2001). Os conceitos adotados são aqueles alinhados

1
Pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília, intitulada “Os
discursos docentes sobre a inclusão de alunas e alunos surdos no Ensino Regular: identidades e letramentos”, sob
orientação da Profa. Dra. Izabel Magalhães.
2
Resolução CNE/CEB 4/2009. Diário Oficial da União, Brasília, 5 de outubro de 2009, Seção 1, p. 17.

251
com a proposta de Fairclough (2003), em que o discurso (como um dos elementos da prática
social) é visto como forma de representação, ação e identificação, por isso o foco na investigação
das identidades profissionais dos indivíduos, por entendermos que elas são construídas nos
discursos e nas práticas sociais, nas interações com os demais atores sociais nos contextos em que
se encontram. Os discursos e as identidades profissionais estão situados em práticas de
letramento (STREET, 1984; MAGALHÃES, 2008).
A metodologia adotada será a etnográfico-discursiva, combinada com o estudo de
narrativas (MAGALHÃES, 2006a) para o conhecimento em profundidade das identidades e das
práticas das equipes de atendimento educacional especializado à pessoa deficiente. A pesquisa
está sendo realizada em três cidades: Brasília (DF), Fortaleza (CE) e Teresina (PI).
Políticas Públicas na Educação Inclusiva
Nos últimos cinco anos, especificamente, o Brasil tem adotado uma política de inclusão da
pessoa deficiente no âmbito escolar, da seguinte forma, segundo a nova Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB) – nº. 9394/96 –, no capítulo V, quando trata da Educação Especial:

A escolarização de educandos com necessidades especiais deverá ser feita


“preferencialmente na rede regular de ensino” (Art. 58), que deverá haver,
“quando necessário, serviço de apoio especializado, na escola regular” (§ 1ª do
mesmo artigo), que o atendimento educacional em classes, escolas e serviços
especializados somente deverá ser efetivado quando “não for possível a sua
integração nas classes comuns do ensino regular” (§ 2º do mesmo artigo) e serão
assegurados aos educandos com necessidades especiais “professores com
especialização adequada em nível médio e superior, para atendimento
especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a
integração desses educandos nas classes comuns” (inciso III, do Art. 59)3.

Entretanto, observa-se que essa política de inclusão não tem atingido níveis satisfatórios,
conforme apontam algumas pesquisas (LIMA, 2006; GÓES E LAPLANE, 2007; BATISTA JR, 2008;
SATO, 2008; SILVA E NEMBRI, 2008; MAGALHÃES, 2008, 2009), devido à falta de preparo docente
e recursos. Por outro lado, percebemos uma maciça matrícula de alunas e alunos deficientes nas
escolas regulares inclusivas. Diante disso, é preciso questionar essa “vitória”, visto que o processo
de inclusão ainda não adota princípios democráticos plenos (BATISTA JR., 2008, 2009a, 2009b).
A legislação brasileira garante, sem distinção, a todos o direito à escola, em qualquer nível
de ensino, e prevê, além disso, o atendimento educacional especializado às pessoas deficientes.

3
Blattes (2006, p.90-91).

252
Com base nisso, descrevo, a seguir um panorama da legislação internacional, federal e local 4 sobre
a Educação Especial, principalmente, nos últimos dez anos.

Marcos legais: até 2001


A referência legal à educação especial, de âmbito nacional, apresenta-se na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDB n.º 4024/61, que no capítulo III, reservou dois artigos, 88 e
89, para a educação do portador5 de deficiência (BRASIL, 1991):

A educação de excepcionais6 deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema


geral de ensino, a fim de integrá-lo na comunidade.(art. 88)

Toda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos estaduais, receberá


dos poderes políticos tratamento especial mediante bolsas de estudos,
empréstimos e subvenções.(art. 89)

O objetivo do Estado era de enquadrar as pessoas com necessidades especiais (PNE) nos
serviços de educação comum, enquanto se propunha a auxiliar, com repasse de verbas, a iniciativa
privada. O Estado passou a formalizar a educação de PNE, no plano nacional, com a LDB, mas não
garantiu a especificidade do atendimento, já que o discurso era o de promover a integração.
Entre as décadas de 50 e 70, surgem várias discussões sobre a Educação Especial. A partir
disso, o Ensino Especial, no Brasil, começa a ter um cunho educacional, apesar de ainda manter
características assistencialistas.
É importante ressaltar que a escola inclusiva, no contexto brasileiro, busca seu espaço
desde a Constituição Federal de 1988. Além da Constituição, muitas outras leis, decretos e
portarias, que garantem a todos e todas direitos à educação, procuram mostrar a importância das
instituições adequarem seus currículos, métodos, técnicas, entre outros, para atender às
necessidades individuais dos educandos, ou seja, estabeleceram os direitos das pessoas com
deficiência no nosso país.
Em 1990 é lançado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – lei nº. 8.069/90 – que
dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. O estatuto garante o direito à
igualdade de condições para o acesso e à permanência na escola, sendo o Ensino Fundamental

4
Legislação das cidades pesquisadas.
5
Hoje, o termo pessoas com deficiência tem sido preferido ao conhecido termo “pessoas portadoras de deficiência”,
conforme recomendação mais recente da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
– CORDE. Conforme Sassaki (2005), o termo ‘pessoas portadoras de deficiência’ tem sido rejeitado por organizações e
entidades representativas de pessoas com deficiência desde 1990.
6
Os termos usados em cada época são compatíveis com os valores vigentes na sociedade de então.

253
obrigatório e gratuito (também aos que não tiveram acesso na idade própria; o respeito dos
educadores; e “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 54). E para isso, o ECA determina que “os pais
ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”
(art. 55)
No ano de 1990, foi realizada na Tailândia, a Conferência Mundial de Educação para Todos,
organizado pela UNICEF, pela UNESCO e pelo Programa de Desenvolvimento da ONU e
patrocinada pelo Banco Mundial. A conferência teve a participação de 155 governos e 1.500
delegados de organizações não-governamentais e resultou na publicação da Declaração Mundial
sobre Educação para Todos (LIMA, 2006, p. 33).
O termo inclusão foi oficializado na Conferência Mundial de Educação Especial, em 1994,
na cidade de Salamanca, organizada pela UNESCO e pelo governo espanhol. Dessa conferência
mundial resultou a Declaração de Salamanca, documento que definiu os princípios, a política e a
prática da educação para pessoas com necessidades especiais, consolidando ações educacionais
capazes de reconhecer a diversidade das crianças e atender suas necessidades independentes de
quais sejam:
escolas deveriam acomodar todas as crianças independentes de suas condições
físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. (...) incluir crianças
deficientes e super-dotadas, crianças de rua e que trabalham, crianças de origem
remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias lingüísticas,
étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos desavantajados ou
marginalizados (BLATTES, 2006, p. 330).

Essa declaração teve grande repercussão mundial, inclusive no Brasil.


A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – nº. 9394/96 –, no capítulo V,
trata da Educação Especial. Consta que a escolarização de educandos com necessidades especiais
deverá ser feita “preferencialmente na rede regular de ensino” (Art. 58), que deverá haver,
“quando necessário, serviço de apoio especializado, na escola regular” (§ 1ª do mesmo artigo), que
o atendimento educacional em classes, escolas e serviços especializados somente deverá ser
efetivado quando “não for possível a sua integração nas classes comuns do ensino regular” (§ 2º
do mesmo artigo) e serão assegurados aos educandos com necessidades especiais “professores
com especialização adequada em nível médio e superior, para atendimento especializado, bem
como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes
comuns” (inciso III, do Art. 59).
O ano de 2000 foi um período de grande investimento para a consolidação da inclusão e,
principalmente, da acessabilidade. A lei nº. 10.048 garante atendimento prioritário de pessoas

254
com deficiência nos locais públicos e a lei nº. 10.098 estabelece normas sobre acessibilidade física.
Com a Resolução CNE/CNB Nº. 2, de 11 de setembro de 2001, que instituiu as Diretrizes Nacionais
para a educação de alunos e alunas que apresentam necessidades educacionais especiais, na
Educação Básica, em todas as suas etapas e modalidades, houve um pequeno avanço na
perspectiva da universalização e atenção à diversidade.
Em 2001, o decreto nº. 3.956, denominado Convenção de Guatemala, põe fim as
interpretações confusas da LDB, deixando clara a impossibilidade de tratamento desigual com
base na deficiência. O acesso ao Ensino Fundamental é, portanto, um direito humano e privar
pessoas em idade escolar dele, mantendo-as unicamente em escolas ou classes especiais, fere a
convenção e a Constituição.

Marcos legais: a partir de 2002


Nos últimos cinco anos, a educação especial, no Brasil, passou por uma série de
transformações significativas com novas políticas adotadas pelo MEC. Em 2007, o decreto nº 6.571
dispõe sobre o Atendimento Educacional Especializado(AEE), bem como estabelece que os
estudantes público alvo da educação especial serão contabilizados duplamente no FUNDEB7,
quando tiverem a matrícula em classe comum de ensino regular da rede pública e matrícula no
AEE.
No ano de 2009, dois documentos importantes foram divulgados: a Resolução nº 4
CNE/CEB8 que instituiu diretrizes operacionais para o AEE na Educação Básica, modalidade
Educação Especial; e o Parecer CNE/CEB nº 13 que, também, instituiu diretrizes operacionais para
o AEE na Educação Básica na modalidade Educação Especial.
Assim, observamos todas as iniciativas do MEC em definir as políticas de inclusão,
principalmente, relacionadas ao AEE, objeto de estudo deste trabalho. Além disso, é preciso
constatar de que forma os estados absorvem essa políticas. Para isso, traço abaixo as leis locais
sobre a educação inclusiva. Pelo fato da pesquisa estar em andamento, não consegui, ainda,
identificar os marcos legais do Estado do Ceará sobre as políticas de inclusão. Logo, apresento,
apenas, os do Distrito Federal e do Piauí.
Com relação à política de inclusão do Distrito Federal e do Piauí, os documentos legais mais
significativos para esse processo são:

7
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação.
8
CNE significa Conselho Nacional de Educação e CEB significa Câmara de Educação Básica.

255
Distrito Federal Piauí32

Lei Orgânica do Distrito Federal, de 08 de Lei 5.390 de 25 de maio de 2004


junho de 1993.
Lei 5.374 de 10 de fevereiro de 2004
Lei n° 2.352, de 26 de abril de 1999
Lei 4.548 de 29 de dezembro de 2002
Dispõe sobre o atendimento aos estudantes
portadores de altas habilidades. Lei 4.843 de 21 de junho de 1996

Decreto nº 22.912, de 25 de abril de 2002 Lei 4.835 de 23 maio de 1996


Regulamenta a Lei nº 2.698/2001. Dispõe sobre Lei 4.831 de 18 de março de 1996
atendimentos especializados aos estudantes
portadores de deficiência na Educação Básica Lei 5.329 de 24 de setembro de 2003
em estabelecimentos públicos e particulares do
DF. Lei 5.454 de 30 de junho de 2005

Lei n° 3.218, de 05 de novembro de 2003 Lei 5.583 de 11 de junho de 2006

Dispõe sobre a universalização da educação Decreto 12.229 de 24/05/06


inclusiva nas escolas da rede pública de ensino
do Distrito Federal. Decreto 12.569 de 16/04/07

Lei nº 4.317, de 09 de abril de 2009

Institui a Política Distrital para Integração da


Pessoa com Deficiência, consolida as normas de
proteção e dá outras providências.

Quadro 1 – Resumo da Legislação referente à Educação Inclusiva no Distrito Federal e no Piauí

Entretanto, podemos observar que, dependendo do contexto, esse processo de inclusão


acontece de maneira bem diferente dentro daquilo que as leis, portarias e decretos propõem,
visto que no Distrito Federal o atendimento educacional especializado começou no ano de 2002,
bem antes da Resolução nº 4 CNE/CEB e do Parecer CNE/CEB nº 13, publicados em 2009 e, no
Piauí, ainda não encontrei nenhuma legislação específica sobre a educação especial e suas
respectivas diretrizes. As leis enumeradas acima, em relação ao Estado do Piauí, institui diretrizes
em diversos âmbitos (bancos, edifícios públicos, concessão de passe livre, dentre outros) com
exceção do âmbito educacional.

32
Fonte: http://www.seid.pi.gov.br/legislacao.php (Acessado em 10 de agosto de 2010). É preciso esclarecer que as
pesquisas sobre as legislações locais foram feitas no sites das secretarias de educação dos estados, em que não foi
possível encontrar toda a legislação referente a inclusão de pessoas deficientes.

256
Fundamentação Teórica
Para a realização desta pesquisa, que busca relacionar os conceitos de ‘(múltiplos)
letramentos’, ‘interdisciplinaridade’ e ‘discurso’, apóio-me nos seguintes pressupostos teóricos:
estudos sobre (múltiplos) letramentos (STREET 1984, 1995, 2001; GEE, 1990,1992; BARTON, 2006;
BAYNHAM, 1995; KLEIMAN, 1995; KLEIMAN E MATENCIO, 2005; MAGALHÃES, 1996, 2009;
PRINSLOO E BREIER, 1996; BARTON E HAMILTON, 1998; BARTON, HAMILTON E IVANIC, 2000;
MARTIN-JONES E JONES, 2000; RIOS, 2009); Teoria Social do Discurso (FAIRCLOUGH, 2001, 2003;
CHOULIARAKI E FAIRCLOUGH, 1999; MAGALHÃES, 2004); estudos sobre interdisciplinaridade
(KLEIMAN E MORAES, 1999; COSTA, 2008).
Segundo os Novos Estudos do Letramento (NLS), o letramento é visto como variável no que
diz respeito às suas formas, funções, usos e valores em contextos sociais, portanto, diferentes em
seus significados e efeitos sociais (BAYNHAM, 2009, p. 2). Por outro lado, a Teoria Social do
Letramento (TSL) compreende o letramento como usos da leitura e da escrita em contextos
situados, considerando-o como prática social em que estão envolvidas questões ideológicas e
disputas hegemônicas (BARTON E HAMILTON, 1998; SATO, 2008).
Nessa teoria, os autores articulam os conceitos de práticas de letramento (STREET, 1984) e
eventos de letramento (HEATH, 1983). As práticas de letramento são também práticas sociais,
podendo ser tratadas como práticas discursivas (MAGALHÃES, 1995), nas quais estão imbricadas
concepções ideológicas que nortearão as relações entre os atores sociais. As relações entre esses
atores são relações que ocorrem em um contexto social textualmente mediado (CHOULIARAKI E
FAIRCLOUGH, 1999), e podem ser relações de poder influenciadas por representações históricas e
sociais e pelas posições que os/as participantes podem construir para outras e outros, tomando a
si próprios/as como referência. Nesse sentido, conforme Oliveira (2009, p. 6),

Entender que o letramento é mediado por textos implica naturalmente ter


consciência de que o uso de determinados textos depende do sistema de
atividades nas quais as pessoas estão inseridas, noutros termos, depende dos
papéis que as pessoas [os profissionais da equipe multidisciplinar de AEE, nesta
pesquisa] exercem e do que elas necessitam fazer por meio desses textos em
determinadas situações [como é o caso da deficiência].

No AEE, diversas ações do Ministério da Educação (em especial, a Secretária de Educação


Especial – SEESP) demandam a articulação entre profissionais da área de educação, saúde,
psicologia, assistência social e outros. Entretanto, cada área apresenta uma formação com
letramentos específicos. Sendo assim, será que esses diversos letramentos contribuem, então,

257
para uma inclusão efetiva das pessoas deficientes? A resposta para esse questionamento pode ser
a interdisciplinaridade na formação profissional e no AEE, levando em consideração não apenas
como uma meta a ser alcançada no ambiente educacional, por força da lei, como aparentemente
tem acontecido. Pelo contrário,

Pressupõe uma organização, uma articulação voluntária e coordenada das ações


disciplinares orientadas por um interesse comum... uma maneira eficaz de se
atingir metas educacionais, por exemplo, previamente estabelecidas e
compartilhadas pelos/as profissionais da unidade escolar. (CARLOS, 2007, p. 164).

Em consonância ao conceito de ‘(múltiplos) letramentos’ e ‘interdisciplinaridade’, utilizo o


de ‘discurso’, com base na perspectiva da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001, 2003;
CHOULIARAKI E FAIRCLOUGH, 1999; MAGALHÃES, 2004). Como parte da Teoria Social do
Discurso33, a ADC propõe:

O incentivo à pesquisa lingüístico-discursiva voltada para causas sociais e a favor


das minorias.Propõe investigações que configurem a busca de soluções para
problemas decorrentes de discursos que envolvem questões de
educação,letramento, bem como assimetrias de poder, de gênero social e de
hegemonia, entre outros, razão pela qual estimula estudos que envolvam desde
discursos institucionalizados, de âmbito educacional, religioso, político,
econômico e midiático, até os que envolvem relações implícitas e explícitas de
lutas de classe, conflitos interétnicos e de discriminação, tais como uma forma de
pesquisa social, e como tal, equivale a uma prática teórica crítica,principalmente
porque leva em conta a premissa de que situações opressoras podem ser
mudadas, uma vez que decorrem de criações sociais passíveis de ser
transformadas socialmente (SILVA E RAMALHO, 2008, p. 266 e 267).

Os discursos, atuando nas ações e nas identidades podem ser instrumentos para guiar o
mundo concreto, estabelecer padrões e posições. Por outro lado, os discursos são fluidos,
modificam-se, e o estudo de suas articulações permite-nos perceber como estão organizados os
elementos sociais e como esse arranjo concorre para que ocorra determinada realidade, neste
caso, as práticas das equipes multiprofissionais de atendimento à pessoa deficiente. Essa teoria se

33
A teoria social do discurso considera a linguagem com uma forma de prática social, um modo de representação e
um modo de ação sociohistoricamente construído e o texto como uma tessitura social, em que estão sugeridas as
estruturas e práticas e de onde é possível distingui-las. (FAIRCLOUGH, 2001; MAGALHÃES, 2004; LIMA, 2006; BATISTA
JR, 2008)

258
aplica com base em uma análise de discurso textualmente orientada (ADTO) na qual os textos são
analisados para a compreensão das práticas sociais (MAGALHÃES, 2004).
Outro aspecto a ser enfatizado neste projeto é a formação identitária da equipe
multiprofissional de AEE. As identidades sociais e, principalmente, profissionais serão
manifestadas por meio das entrevistas e das narrativas, em que podem ser constituídas enquanto
os/as participantes representam a si mesmos e a outrem. Além disso, conforme Louro (1997), há
uma tendência no contexto de ensino de predominância de profissionais do sexo feminino e, no
Ensino Especial (seja ele nas escolas regulares inclusivas, nas escolas especiais ou nos centros) essa
tendência é mais nítida, provavelmente pela necessidade de cuidados especiais associados à
deficiência. Assim, esses aspectos das identidades (inclusive de gênero) manifestam-se
textualmente na forma como as professoras falam sobre alunas e alunos, ao utilizarem, por
exemplo, palavras que representam uma relação de afeto (MAGALHÃES, 2008; SATO, 2008).
Portanto, a relação entre ‘discurso’, ‘identidade’ e ‘letramento’ pode contribuir
teoricamente trazendo à luz também a discussão das práticas de letramento inclusivas nos centros
de atendimento educacional especializado, como um passo a mais em direção à investigação do
cotidiano das pessoas deficientes.
Consideramos como práticas de letramento inclusivas as articulações entre os elementos
sociais para que ocorram as atividades que envolvem ou resultem de textos escritos que visam
tornar a pessoa deficiente incluída no contexto escolar. Tais arranjos envolvem diferentes
conjuntos de práticas, podendo integrar parte da prática burocrática (textos legais), da atividade
pedagógica (textos de atividades de sala de aula), práticas científicas (produção bibliográfica),
práticas comerciais (livros didáticos), práticas de treinamento (cursos para professores,
professoras e diversos profissionais).
Enfim, as práticas de letramento inclusivo diferenciam-se em decorrência do ambiente em
que estão situadas, mas tudo recai sobre a escola, e nela podemos perceber a profundidade e a
penetração de cada uma. Logo, um olhar atento e crítico que se lança sobre uma realidade pouco
analisada não só apontará relações provavelmente desiguais e preconceituosas, mas poderá
sinalizar com propostas mais sólidas e um caminho para mudanças significativas nas políticas
públicas de inclusão das pessoas deficientes, principalmente, no setor educacional.
Por fim, a prática social da inclusão parte de pressupostos e de pilares ideológicos, tais
como a adoção da escola tradicional como fator isolado de desenvolvimento cognitivo (modelo
autônomo). Nesse sentido, também acopla interesses camuflados que vão desde a economia por
parte do governo à abertura de novos campos de consumo. Para tanto, tecem construções

259
ideológicas que formam as identidades dos agentes, mantendo-os submissos à dominação do
governo e funcionais para o status quo.
Assim, a articulação da TSL com a TSD demonstra como os discursos estão nos textos
situados, questionando esses pilares e oferece mecanismos para a mudança social no campo da
inclusão e da formação identitária dos/as profissionais que realizam o atendimento educacional
especializado à pessoa deficiente. Além disso, postulam as articulações sociais, compartilham da
visão crítica para a mudança e, principalmente, encaram o texto como fundamental para a
compreensão das relações sociais (SATO, 2008).

Aporte Metodológico
O presente estudo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa (BAUER E GASKELL, 2002;
FLICK, 2004, 2009; DENZIN E LINCOLN, 2006) que consiste na escolha correta de métodos e teorias
oportunos, no reconhecimento e na análise de diferentes perspectivas, nas reflexões dos
pesquisadores a respeito de sua pesquisa como parte do processo de produção de conhecimento
e na variedade de abordagens e métodos.
A abordagem qualitativa é “indicada quando se pretende focar representações de mundo,
relações sociais, identidades, opiniões, atitudes, crenças ligadas a um meio social” (RESENDE,
2009, p. 57). Essa abordagem tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o
pesquisador ou a pesquisadora como seu principal instrumento, isto é, supõe o contato direto e
prolongado desse/a com o ambiente e a situação que está sendo investigada.
Sendo assim, a metodologia adotada é um desenvolvimento do Projeto Integrado
Discursos, Identidades e Práticas de Letramento – DISC (CNPq) sob coordenação da Profa. Dra.
Izabel Magalhães34. Num primeiro momento do estudo piloto, selecionei os locais para a
realização da pesquisa: Teresina (PI), por ser o local onde moro, pelo estado ser conhecido,
nacionalmente, como um dos mais pobres e, principalmente, porque o processo de inclusão é
recente e com os meus estudos, pretendo contribuir cada vez mais; Fortaleza (CE), cidade base do
projeto integrado e, a meu ver uma cidade bastante desenvolvida, turística e com características
bem diferentes de Teresina, por mais que as duas cidades se encontram na mesma região; e
Brasília (DF), pela facilidade de acesso, por conhecer a realidade e por ser a cidade onde se
encontrar o poder público.
Em seguida, iniciei um trabalho de campo com base nos pressupostos da etnografia, “a arte
e a ciência de descrever um grupo humano – suas instituições, seus comportamentos

34
A minha pesquisa de mestrado (BATISTA JR., 2008) fez parte do Projeto Integrado DISC.

260
interpessoais, suas produções materiais e suas crenças” (ANGROSINO, 2009, p. 30). Nessa etapa
da pesquisa, conversei, primeiramente, com a Gerente da Educação Especial do Ceará e do Piauí35
com o objetivo de conhecer o processo de inclusão nos respectivos estados, os principais serviços
ofertados, bem como selecionar as escolas que oferecem o AEE, consequentemente, instituições a
serem pesquisados. Depois, com a carta de encaminhamento, diriji-me às escolas, conversei com
os/as profissionais que formam as equipes de AEE.
Em Teresina, até o presente momento só foram realizadas observações, registradas em
notas de campos. Já em relação a Fortaleza, no estudo piloto, foram realizadas duas entrevistas,
assim como foram feitas diversas observações, ao longo do primeiro semestre de 2010 e registros
em notas de campo da realidade pesquisadas. A partir do segundo semestre do corrente ano, com
a aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa iniciarei a pesquisa, semestralmente, em
cada cidade pesquisada.
Os/as participantes deste estudo serão profissionais de diversas áreas (educação, saúde,
psicologia, assistência social) que realizam atendimento às pessoas deficientes. Na pesquisa de
doutoramento está previsto entrevistas com 30 profissionais (10 em cada cidade) e com 15
familiares (5 em cada cidade) no intuito de compreender os múltiplos letramentos, as identidades
e interdisciplinaridades no AEE e compará-los nas três cidades a serem pesquisadas.
Os critérios adotados para participar da pesquisa são: a) atender alunos e alunas com
deficiência (no caso dos/as profissionais) ou ter filho/a deficiente (no caso das famílias); b) aceitar
ser participante, com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (em
conformidade com a resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Saúde
que dispõe sobre pesquisas que envolvem serem humanos e após aprovação da pesquisa no
Conselho de Ética). Trata-se de participação sem ônus. O consentimento em participar é livre,
podendo o/a participante desistir a qualquer tempo, sem necessidade de exposição de motivos.
Além disso, é possível obter do pesquisador informações que forem julgadas necessárias em
qualquer etapa da pesquisa. Por fim, vale ressaltar que os nomes dos/as participantes não são
divulgados, pois adoto pseudônimos.
Dessa forma, ao articularmos a etnografia (como metodologia de geração e coleta de
dados) e a análise de discurso crítica (para a análise de dados) com o objetivo de investigar as
práticas de letramento, focalizando discursos e identidades profissionais, pretendemos, então,
contribuir para análise de momentos de uma prática social (no caso da pesquisa, o atendimento

35
Nesta etapa, a cidade de Brasília não foi contemplada porque de acordo com o cronograma, pretendo pesquisar nas
cidades em que ainda não conheço o processo de inclusão, bem como pela questão de deslocamento.

261
educacional especializado a pessoa deficiente), da relação entre eles e entre diferentes práticas
(práticas de letramento profissional e a prática de letramento inclusivo – MAGALHÃES, 2009a;
BATISTA JR, 2008, 2009b; SATO, 2008).

Atendimento Educacional Especializado: concepção, discursos e práticas de letramento


Concepção
Considera-se Atendimento Educacional Especializado (AEE) o conjunto de atividades,
recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucionalmente, prestado de forma
complementar ou suplementar à formação dos alunos no ensino regular.

Discursos e Práticas de Letramento


Barton e Hamilton (2000) mostram que “ao observamos os eventos, é possível perceber
que há diversos letramentos. Nas escolas pesquisadas, durante a observação, principalmente, das
salas de atendimento, constatei que os/as participantes utilizam-se de diversos letramentos no
decorrer das suas atividades e práticas. O atendimento educacional especializado em Teresina e
Fortaleza tem profissionais em comum, porém diferentes em relação a Brasília. Com relação aos
serviços, Fortaleza e Brasília apresentam uma grande variedade. Esses dados podem ser
conferidos na tabela abaixo:

Tabela 1 – Atendimento Educacional Especializado nas cidades pesquisadas 36


Cidade Serviços Profissionais
Brasília (DF) Classes comuns do Ensino Regular Professores/as do Ensino Regular
Classes especiais Professores/as Especialistas em AEE
Classe de educação bilíngüe Pedagoga
Sala de recursos – AEE Psicóloga
Centro de Ensino Especial de Orientadora Educacional
Deficientes Visuais
Centro de Apoio Pedagógico (CAP)
às Pessoas com Deficiência Visual
Fortaleza (CE) Classe comum (inclusão) Professores/as
Classe especial Pedagogos/as
Sala de recursos multifuncionais Psicólogos/as
Sala de Apoio pedagógico específico Terapeutas Ocupacionais
Escola especial e/ou instituições Assistentes Sociais
especializadas
Itinerância
Professor intérprete de Libras
36
A pesquisa está em andamento. No ano de 2010, estou coletando dados em Fortaleza, por isso uma maior
quantidade de informações. Os dados de Brasília e Teresina serão coletados, de maneira detalhada, em 2011.

262
Instrutor de Libras
Oficinas pré-profissionalizantes
Núcleo de atendimento pedagógico
especializado
Teresina (PI) Sala de recursos multifuncionais Professores/as
AEE Pedagogos/as
Psicólogos/as
Terapeutas Ocupacionais
Assistentes Sociais
Fonte: Pesquisa direta, primeiro semestre de 2010

Além disso, os letramentos, no ambiente escolar das cidades pesquisadas, são bastante
parecidos, em que predominam os seguintes letramentos: a) acadêmico: com a afixação de
diversos cartazes e folderes no mural com informações de cursos para atualização,
aperfeiçoamento; b) institucional: quando presencio um contato direto entre administração
escolar, professores/as, equipe multiprofissional, alunos/as, visitantes e a entrega de circulares,
comunicados vindo da Secretaria de Educação e de outros órgãos; c) informal: frases, mensagens
de reflexão e incentivo, conforme imagem 1; d) burocrático: quando a equipe do AEE preenche
fichas, relatórios, pareceres, dentro outros documentos pertencentes a prática do AEE,
demonstrado nos anexos 1 e2.

Figura 1 – Letramento Informal – Fonte: Pesquisa direta, primeiro semestre de 2010

Nos observações que fiz na escola de Fortaleza, durante o estudo piloto, procurei observar
além dos letramentos, que discursos são veiculados pela equipe do AEE, visto que pretendo,

263
também, compreender a relação interdisciplinar entre os/as profissionais que fazem parte dessa
equipe. Inicialmente, observo que o discurso da inclusão está muito presente, pois as profissionais
desta escola, desde o primeiro encontro, nas conversas informais e nas entrevistas comentam
sobre a importância de trabalhar as potencialidades dos/as alunos/as, como bem demonstra
Denise, apesar de reproduzir o termo “portadora37”:

Na educação especial, é ver a pessoa portadora de necessidade especial como um


sujeito de direitos, que tem seus direitos e que precisam ser garantidos, porque
ele (sujeito) faz parte da nossa sociedade e tentá-lo incluí-lo não só na escola,
como na sociedade. E tentar sensibilizar outras pessoas pra essas questões sociais
e mostrar que essas pessoas (limitadas) têm direitos também, que ele é um ser
como outro qualquer, que tem as suas limitações, mas que também tem as suas
potencialidades e que dentro dessas limitações trabalhamos essas
potencialidades (Denise).

Nas suas falas, as profissionais deixam claro que há características que são próprias dos
homens e outras, exclusivas das mulheres, por isso a predominância das mulheres no Ensino
Especial, principalmente, quando Izabel traz o discurso científico e o discurso machista/patriarcal
para justificar essa predominância ao se referem às mulheres como ‘mais sensíveis’, ‘olhar
sensível’, ‘então essas atitudes torna a mulher mais sensível’. Enquanto que o homem é caracterizado
como ‘enveredaram pra parte burocrática’, ‘os homens quando se vêem não se abraçam’.

Eu acho que se interessam por outras coisas, acham trabalhoso, talvez estejam
em outros ramos. As mulheres são mais sensíveis, sei lá, (risos), mais pacientes
pra se trabalhar com a educação especial e como eu já lhe disse, tem que ter um
olhar sensível, e repito, tem que ter um olhar diferenciado (Denise38).

Eu acho que a capacidade, eu penso assim, que existem estudos que diz que o
lado direito é o da mulher e o lado esquerdo é o do homem que é desenvolvido e
isso ai pode variar de uma pessoa pra outra, não é uma constância. Mais o
estudo neurológico fala que o homem desenvolve mais para as artes e cálculo
matemático, então muitos homens se desenvolvem na área da matemática, da
física, na parte da questão lógica da matemática, toda faculdade que envolve a
parte da matemática lógica e da física e da química também e também aparte
artística do homem de uma forma geral, que seria o canto, que seria utilizar um
violão ou qualquer outro instrumento musical e já a mulher, ela desenvolve o
outro lado, seria a parte da ciência humana, o contato com o outro (Izabel).

37
Hoje, o termo pessoas com deficiência tem sido preferido ao conhecido termo “pessoas portadoras de deficiência”,
conforme recomendação mais recente da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
– CORDE. Conforme Sassaki (2005), o termo ‘pessoas portadoras de deficiência’ tem sido rejeitado por organizações e
entidades representativas de pessoas com deficiência desde 1990.
38
Todos os nomes registrados são pseudônimos.

264
Eu acho que os homens enveredaram pra parte burocrática e pra esse cálculo
matemático, que seria a parte administrativa de uma forma geral
(Administração, essa parte do Tribunal, Direito) que seria um escritório, uma
empresa, um comércio, compra e venda [...]39 Eu acho que nos “lares” cerebral
as mulheres têm essa capacidade de ter essa sensibilidade maior com o outro,
de ouvir e de se colocar no lugar do outro e elas amam mais intensidade e
dedicação. [...] ai geralmente tem aquela política de que os homens pelo o
próprio histórico, pela vivência paternal, geralmente os homens quando se vêem
não se abraçam, você não ver um homem dando beijinho no rosto de outro
homem, ou se abraçando[...] já as mulheres, elas tem mais proximidade de falar
abertamente, de abraçar uma a outra quando se encontram, de beijar no rosto,
então essas atitudes torna a mulher mais sensível e é um item muito importante
pra ela trabalhar com a educação, porque você está ali e o aluno vai com
dificuldades na família, a família muitas vezes não dá apóio ao aluno, não
conversa, então se você for com autoritarismo, realmente não funciona essa
idéia de educação autoritária (Izabel).

Por fim, procurei observar a relação interdisciplinar entre os/as profissionais da equipe do
AEE. Para esta análise é preciso explicar o processo de AEE, conforme descreve Denise:

[...] em primeiro lugar chega o responsável e fala da queixa do aluno. Nós


marcamos uma entrevista e realizamos essa entrevista com ele, e posteriormente
marcamos a avaliação. Nessa avaliação a equipe, que tem pedagoga, psicóloga,
fonoaudióloga e terapeuta ocupacional vão avaliar esse aluno e ver as
dificuldades que ele tem. Não vamos dar o laudo médico, isso quem faz é o
medico, não vamos dizer que deficiência ele tem, isso não é nosso papel. Fazemos
essa avaliação pedagógica pra ver as dificuldades do aluno e realizar
posteriormente os atendimentos dentro das dificuldades que ele tem, não é um
atendimento clínico, é bom deixar bem claro isso. Nosso atendimento é todo
educacional. Tanto a pedagoga, a psicóloga, a fonoaudióloga e a terapeuta
ocupacional fazem uma avaliação direcionada para a área educacional.

De início, observamos que há uma grande interação, reforçada nos discursos das
participantes (descrita nos trechos abaixo), entretanto a prática é diferente, visto que na
elaboração do parecer não há uma interação. Após a avaliação, cada profissional elabora o seu
diagnóstico e, em seguida, entregam para a Assistente Social que faz a leitura dos pareceres,
determinando como será o atendimento da pessoa deficiente.

Considerações Finais
A partir das perspectivas analisadas no estudo piloto e levando em consideração as
demandas atuais do Atendimento Educacional Especializado, esta pesquisa pode vir a constituir

39
Trecho não transcrito.

265
um ponto de partida para desacomodar certas tradições às quais estamos tão acostumados/as.
Como resultados preliminares, a partir das observações feitas, principalmente, na cidade de
Fortaleza, observamos que os letramentos informais e burocráticos são predominantes. E como
esse processo recentemente ganhou força no Brasil, fica evidente, após a análise das entrevistas e
das observações, a presença dos seguintes discursos: o tradicional, contra-hegemônico (discurso
da inclusão), da diferença de gênero (justificado por meio do discurso científico e machista).
Apesar disso, percebemos uma reflexão por parte dos profissionais ao perceberem a importância
de não reforçar as limitações, mas trabalhar as potencialidades, resultando assim uma mudança
da prática. Por fim, a interdisciplinaridade só ocorre na ficha de encaminhamento (via Assistente
Social) e no cartão de frequência (via criança). Além disso, o processo de integração da criança e
da família à sociedade não passa pela integração da equipe, uma vez que o poder não está
compartilhado.

Referências

ANGROSINO, M. Etnografia e observação participante. Trad. José Fonseca. Porto Alegre: Artmed,
2009.

BARTON, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language. 2nd. ed. Oxford,
Cambridge: Blackwell Publishers, 2007.

______; HAMILTON, M. Local literacies. Londres and New York: Routledge, 1998.

______; HAMILTON, M. e IVANIC, R. (Orgs.). Situated literacies: reading and writing in context.
Londres, New York: Routledge, 2000.

BATISTA JR, J. R. L. Os discursos docentes sobre inclusão de alunas e alunos surdos no Ensino
Regular: identidades e letramentos. 2008. 151 p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Curso de
Pós-Graduação em Linguística, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

______. Discursos, identidades docentes e práticas de letramento no contexto do Ensino Especial


em escolas públicas brasileiras. In: ABRALIN – Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Linguística, 6, 2009, João Pessoa – PB. Anais do VI Internacional da Associação Brasileira de
Linguística. João Pessoa: Idéia, 2009a. p. 2086-2095.

______. Gêneros discursivos nas práticas de letramento inclusivo. In: SIGET, Simpósio
Internacional de Estudos de Gêneros Textuais, 5, 2009, Caxias do Sul – RS. Anais do 5º Simpósio
Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Caxias do Sul: Editora da UCS, 2009b. p. 1-20.

BAUER, M. W. e GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático.
Trad. Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

266
BAYNHAM, M. Literacy practices. Investigating literacy in social contexts. Londres/Nova York:
Longman, 1995.

______; PRINSLOO, M. The future of literacy studies. England: Palgrave Macmillan, 2009.

CARLOS, J.G. Interdisciplinaridade no Ensino Médio: desafios e potencialidades. 2007. 172p.


Dissertação (Mestrado Profissionalizante em Ensino de Ciências) – Curso de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências, Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse


analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.

COSTA, A. Interdisciplinaridade e transversalidade. Considerações sobre a epistemologia do


trabalho escolar brasileiro. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Nelis/Ceam//Unb, 9 (2): 25-44,
2008.

DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2.


ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coord. trad. revisão e prefácio à ed. brasileira Izabel
Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

______. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003.

FLICK, U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.

______. Qualidade na pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009.

GEE, J. Social linguistics and literacies: ideology in discourses. Londres: Falmer Press, 1990.

______. The social mind: language, ideology and social practice. Nova York: Bergin & Garvey,
1992.

GÓES, M. C. R. e LAPLANE, A. L. F. (Org.) Políticas e práticas de Educação Inclusiva. 2. ed.


Campinas: Autores Associados, 2007.

HEATH, S. B. Ways with words. Language, life, and work in communities and classrooms.
Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

KLEIMAN, A. B. (Org.) Os significados do letramento. Uma nova perspectiva sobre a prática social
da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

______; MORAES, S. E. Leitura e interdisciplinaridade. Tecendo redes nos projetos da escola.


Campinas, SP: Mercado de Letras, 1999.

______; MATENCIO, M. L. M. (Orgs.) Letramento e formação do professor. Práticas discursivas,


representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.

267
LIMA, E. S. Discurso e identidade. Um olhar crítico sobre a atuação do(a) intérprete de Libras na
educação superior. 2006. 163 p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Curso de Pós-Graduação
em Linguística, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis:


Vozes, 1997.

MAGALHÃES, I. Práticas discursivas de letramento. A construção da identidade em relatos de


mulheres. In A. B. Kleiman (org.) Os significados do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras,
1995.

______. Linguagem e identidade em contextos institucionais e comunitários. Cadernos de


Linguagem e Sociedade, Nelis/Ceam/UnB, 2 (1): 42-61, 1996.

______. Teoria crítica do discurso e texto. Linguagem em (Dis)curso. v.4, n. especial, Tubarão: Ed.
Unisul, 2004.

______. Projeto integrado “Discursos, identidades e práticas de letramento no Ensino Especial”.


NELiS/Ceam/UnB, 2006a.

______. Discurso, ética e identidades de gênero. In: MAGALHÃES, I.; GRIGOLETTO, M.; CORACINI,
M. J. (Orgs.) Práticas identitárias. Língua e discurso. São Carlos, SP: Claraluz, 2006b, p. 71-96.

______. Discursos e identidades de gênero na alfabetização de jovens e adultos e no Ensino


Especial. Calidoscópio, vol. 6, n.2, 2008, p. 61-68.

______. Discursos, identidades e práticas de letramento no Ensino Especial. Comunicação


apresentada no Congresso Internacional da Abralin. João Pessoa, Universidade Federal da Paraíba,
2009.

MARTIN-JONES, M.; JONES, K. (Orgs.) Multilingual literacies. Amsterdã/Filadélfia: John Benjamins,


2000.

OLIVEIRA, M. S. Gêneros textuais e letramento. In: SIGET, Simpósio Internacional de Estudos de


Gêneros Textuais, 5, 2009, Caxias do Sul – RS. Anais do 5º Simpósio Internacional de Estudos de
Gêneros Textuais. Caxias do Sul: Editora da UCS, 2009. p. 1-20.

PRINSLOO, M.; BREIER, M. (Orgs.) The social uses of literacy. Bertsham, África do Sul/Amsterdã:
John Benjamins, 1996.

RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica e realismo crítico. Campinas, SP: Pontes, 2009.

RIOS, G. Literacy discourses. A sociocultural critique in Brazilian communities. Saarbrücken: Verlag


Dr. Müller, 2009.

SATO, Denise Tamaê Borges. A inclusão da pessoa com Síndrome de Down. Identidades docentes,
discursos e letramentos. 2008. 149p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Curso de Pós-
Graduação em Linguística, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

268
SILVA, D. E. G. da; RAMALHO, V. Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia. In:
LARA, G. M. P., MACHADO, I. L.; EMEDIATO, W. (orgs.) Análise do discurso hoje, v. 2. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira/Lucerna, 2008.

SILVA, A. C.; NEMBRI, A. G. Ouvindo o silêncio: educação, linguagem e surdez. Porto Alegre:
Mediação, 2008.

SILVA, T. T. (Org.) Identidade e diferença. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

STREET, Brian V. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
______. Social literacies. Londres e Nova York: Longman, 1995.

______. Literacy and Development: ethnographic perspectives. London and New York: Routledge,
2001.

269
ANEXOS

1 – Roteiro de Anamnese

270
2 – Parecer Técnico

271
ANÁLISE CRÍTICA DO ENSINO DA PRONÚNCIA DO INGLÊS

José Roberto Alves Barbosa (GPELL/UERN)1

O ensino da pronúncia ocupa lugar central nas aulas de inglês. Os professores desse idioma
dedicam várias horas das aulas objetivando fazer com que seus alunos sejam capazes de produzir
determinados sons. Analisamos criticamente, através dessa pesquisa, o discurso de professores
sobre o papel que a pronúncia exerce no ensino de inglês. Para tanto, partimos das discussões
teóricas de Phillipson (1992), Pennycook (1994), Crystal (1997) e Fairclough (1989; 2001). Essa
análise se inscreve em uma proposta crítica de análise da linguagem, uma vez que considera o
ensino da pronúncia numa perspectiva que transcende o mero domínio de sons, englobando,
constitutivamente, aspectos ideológico-hegemônicos. Para descrever e interpretar a prática social
no discurso dos professores, partimos dos pressupostos da etnografia, aplicando questionários,
gravando e transcrevendo aulas a fim de possibilitar a triangulação do material coletado. A análise
realizada demonstrou, tanto nas aulas quanto no depoimento dos professores, a predominância
de um paradigma imitacionista no ensino da pronúncia do inglês. Eles defendem a existência de
um padrão ideal, esse atrelado aos Estados Unidos e Inglaterra, países que, para os professores,
são os proprietários do idioma. Essa tendência no ensino da pronúncia do inglês resulta no
desempoderamento e no cerceamento das vozes dos aprendizes, e dos próprios professores
bilíngües, na medida em que se identificam como falantes secundários dessa língua em relação à
pronúncia do falante monolíngüe.

Palavras chave: análise, crítica, ensino, pronúncia, inglês.

Considerações iniciais
Ao longo da história dos métodos de ensinar e aprender outras línguas, a pronúncia
ocupou, dependendo da abordagem, maior ou menor espaço nas atividades de sala de aula.
Sempre que o enfoque imitacionista foi adotado, o resultado foi a opção por algum padrão
idealizado, geralmente atrelado a algum país, tido como o proprietário do idioma, cuja proposição
ideológica se instaura hegemonicamente, cerceando as outras possibilidades de pronunciar.
Partindo desse pressuposto, pretendemos, com este artigo, analisar criticamente o discurso de
dois professores de inglês em relação ao ensino da pronúncia. Na parte inicial do texto, trataremos
a respeito das rupturas teóricas que se preocupam com um ensino da pronúncia dessa língua
dentro de um paradigma que perceba a diferença enquanto aspecto constitutivo, bem como de
empoderamento do falante “não-nativo”. Na segunda parte, analisaremos como se posicionam
dois professores de inglês diante do que consideram ser “erros” de pronúncia dos aprendizes.

1
Doutor em Lingüística pela UFC e Mestre em Lingüística Aplicada pela UFRN. É líder de Grupo de Pesquisa em
Lingüística e Literatura (GPELL). Atua na área de ensino crítico de línguas no Departamento de Letras Estrangeiras
(DLE), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

272
O ensino/aprendizagem da pronúncia do inglês na era pós-método.
Os teóricos do ensino/aprendizado de línguas, após o movimento comunicativista, se
referem ao momento atual como Era Pós-Método (RICHARDS & RODGERS, 2001). Essa
denominação surgiu a partir da constatação de que, após anos de tentativa de se encontrar o
melhor método para ensinar línguas, chegou-se à conclusão que nenhum deles pode,
efetivamente, garantir o aprendizado de qualquer língua (PRABHU, 1990). Em conseqüência dessa
realidade, não faz mais qualquer sentido defender dogmaticamente qualquer método, acreditando
que um deles, em detrimento dos demais, apresenta o caminho mais apropriado para o domínio
da língua.
Em decorrência dessa percepção, o ensino da pronúncia passa a requerer rupturas. Isso
porque diferentemente do que se tem proposto até agora. Há uma demanda pela desconstrução
de alguns mitos cristalizados na história de ensino/aprendizado da oralidade. As propostas
apresentadas pelos antigos métodos/abordagens de ensinar/aprender línguas não mais satisfazem
aos anseios da sociedade contemporânea, fundamentada nos pressupostos pós-modernos. Com
Jenkins (2000, p. 195) concordamos que, “no que tange à pronúncia, provavelmente mais do que
qualquer outra área do ensino de língua inglesa há uma necessidade urgente de um paradigma
completamente novo”.
Consoante a essa alternativa, entra em pauta as discussões a respeito dos aspectos
identitários que envolvem o ensino de línguas, e, inevitavelmente, o da pronúncia. É preciso ir
além do que propôs o comunicativismo e perceber que muito mais do que ensinar sons
segmentais e/ou suprassegmentais de uma determinada língua, é necessário também atentar para
os aspectos sociolingüísticos dessa prática. De modo que, a menos que atentemos para esse
componente crítico, incorreremos no grave risco de, como bem ressalta Moita Lopes (1996, p. 43),
levar os aprendizes a buscar “uma pronúncia tão perfeita quanto a do nativo e a incorporação de
hábitos culturais, ou seja, a cópia xerox do falante nativo”. A conseqüência dessa prática, diz ainda
esse mesmo autor, “não podem ter outro motivo senão o de domínio cultural”.
Há uma tendência no ensino/aprendizado de línguas marcada, historicamente, pela
crença na homogeneidade e no imitacionismo como procedimentos para se alcançar a
“perfeição”. Essa visão, na prática escolar, estimula a igualdade e rechaça a diferença. A ausência
de uma percepção crítica que conceba a variedade sociolingüística resulta em atitudes
equivocadas a respeito da língua e do seu processo de aquisição. Uma ruptura, nesse sentido,
deve passar, irremediavelmente, pelo professor, já que esse, no contexto da sala de aula, na

273
maioria das vezes, dita os padrões de experiências com a língua. Esse, ainda que
inconscientemente, atua na formação da abordagem de ensinar e de aprender dos seus alunos.
Sem uma abordagem crítica no ensino de L2, o professor vê-se diante do dilema
paradoxal de não ser um falante “nativo” da língua que está ensinando. O preconceito começa por
ele mesmo já que não pode ser o que gostaria de ser. Sua prática docente está fundamentada
num sentimento de frustração por não falar como um americano e/ou inglês. Para esses
professores, e talvez, para os seus alunos, o domínio da língua será sempre algo inatingível, um
desejo inalcançável, uma vontade que não terá como se completar. Apesar de todo o esforço
empreendido, os aprendizes, e ele mesmo, enquanto modelo, não passarão de imitadores
“imperfeitos” de um padrão almejado.
Essa concepção nos remete à clássica propensão epistemológica de Chomsky (1965, p. 3),
quando postula a existência hipotética de um “falante-ouvinte ideal numa comunidade de fala
completamente homogênea”. Em oposição a essa idéia, o que se vê, tanto dentro quanto fora da
sala de aula, são falantes reais, os quais, no contexto interacional, convivem com as diferenças,
pausas, hesitações, em suma, com as diferenças. No caso específico da L2, é inevitável que haja
influências da L1 na L2, resultando no fenômeno interlingüístico (SELINKER, 1972). Ao invés de
negar essa condição, os professores necessitam repassá-la aos seus alunos, ressaltando a
possibilidade de empoderamento identitário dos aprendizes. Em relação à pronúncia, isso precisa
ser bem delineado, considerando que os falantes costumam ser rotulados de acordo com sua
(im)possibilidade de pronunciar ou não determinados sons da língua.
Isso acontece porque o ensino de inglês, nos moldes imperialistas que predominaram o
cenário educacional latino nas últimas décadas (PHILLIPSON, 1992), esteve atrelado não apenas ao
domínio da língua, mas também a um processo de aculturação no qual os professores de inglês
defendiam – e em alguns contextos ainda defendem - uma visão equivocada do que seja cultura.
Resultante dessa visão, supervalorizam a cultura anglo-americana, dedicando, a essa, um maior
poderio. Por isso, é comum ouvirmos professores de inglês adjetivando o inglês. Dizem que esse, e
não qualquer outro, é mais “belo”, “rico” e que um outro é mais “feio” ou “pobre”.
Atitudes desse tipo, ainda difundidas no imaginário dos professores de inglês, geram uma
refração de identidade social que pode ser percebida na manifestação lingüística, quando se
refere tanto a sua própria fala quanto à dos seus alunos. O inglês “belo”, “bonito”, “perfeito”,
nunca é o do falante “não-nativo” ou de um país com pouca expressão econômica mundial. Isso
acontece porque, conforme destaca Rajagopalan (1998, p: 41,42),

274
A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela. Isso significa
que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora da língua. Além disso,
a construção da identidade de um indivíduo na língua e através dela depende do
fato de a própria língua em si ser uma atividade em evolução e vice-versa. Em
outras palavras, as identidades da língua e do indivíduo têm implicações mútuas
(...) Assim, a construção de identidades é uma operação totalmente ideológica.
Não é preciso dizer que qualquer impulso para repensar a identidade também
terá de ser uma resposta ideológica a uma ideologia existente e dominante.

Quando o professor de línguas defende a supervalorização de uma língua em relação à


outra, está alimentando, ideologicamente, não só que determinada língua é inferior, ele mesmo,
juntamente com seus alunos, são posicionados em condição de inferioridade. O critério tomado é
simplesmente a “inaptidão” para imitar um modelo idealizado de pronúncia. Alguns professores
assim o fazem porque não refletem criticamente a respeito de uma outra possibilidade de ensinar
a língua, que não seja por meio da imitação ao modelo supostamente “perfeito”. Para romper com
esse paradigma, é preciso que os professores tomem consciência e repensem suas identidades,
fazendo a diferença entre o posicionamento que lhes foi imposto e o modo como, efetivamente,
desejam ser posicionados.
Para tanto, é preciso que haja uma redefinição da posição identitária do professor de
inglês. O reconhecimento identitário, tomando por base a definição de Mey (1998: 74), que diz
respeito ao ato de estar inserido em um determinado grupo étnico. O professor de inglês, ciente
dessa possibilidade, deve lutar para ser identificado não como um professor “não-nativo” de uma
língua do “nativo”. A reflexividade crítica a respeito do ensino dessa língua deve resultar no
agrupamento e reconhecimento recíproco, entre seus pares, de uma nova identidade, a do
professor de inglês bilíngüe.
Isso resultará, ainda que a longo prazo, numa série de alterações na prática do
ensino/aprendizagem de inglês. A começar pela terminologia do inglês que os professores estão
ensinando, que deixa de ser percebida como língua estrangeira, mas como Língua Franca. É
possível que, no futuro, os cursos de línguas das universidades, envolvidos no ensino do inglês,
abandonem o acréscimo: “estrangeira”, substituindo-o por outro que dê conta dessa construção
identitária. Na medida em que isso acontecer, haverá um distanciamento do inglês, que é
ensinado nas universidades e institutos de idiomas no Brasil, com os Estados Unidos e/ou
Inglaterra.
Por meio de mudanças desse tipo, os indivíduos, envolvidos na prática do ensino do inglês
como língua internacional, terão um posicionamento social diferenciado. Essa, porém, não será
uma conquista fácil, mas um embate construído na alteridade, numa contínua relação do eu com

275
o outro. Já que, como aponta Johnston (1973, citado em Kitzinger, 1989:82) “a identidade é o que
você pode dizer que você é de acordo com o que dizem que você é”. Essa definição de identidade,
também partilhada por Wetherell & Potter (1992), busca uma redefinição da percepção que o
professor tem de si mesmo e de como deseja ser visto pelos outros.
Busca-se, nesse sentido, o empoderamento (FAIRCLOUGH, 1989) identitário do professor
bilíngüe de inglês como língua internacional, que precisa estar ciente que a sua atuação
pedagógica transcende o ambiente da sala de aula, conforme alerta Moita Lopes (1998:311):

[...] as identidades sociais construídas (...) podem desempenhar um papel


importante na vida dos indivíduos quando depararem com outras práticas
discursivas nas quais suas identidades são re-experiênciadas ou reposicionadas.

Isso é compreensível porque, não é incomum, conforme destacou Moita Lopes (1996), que
muitos professores de inglês acreditem que o inglês “americano” e/ou “britânico” é mais
“perfeito”, “bonito” ou “elegante”. Os americanos e britânicos, do mesmo modo, são mais
trabalhadores e inteligentes. Julgamentos desse tipo ajudam a fomentar a idéia de que os
brasileiros, devido à sua formação cultural, são ignorantes, preguiçosos, especialmente quando
comparados aos americanos. O resultado é a baixa estima em relação a tudo que está associado
ao Brasil, e como não poderia ser diferente, em relação ao português. Um inglês “corretamente”
falado deve, assim, evitar qualquer “contaminação” da L1.
A vergonha contida de ser professor brasileiro de inglês como língua “estrangeira” alimenta
o sentimento de subserviência em relação a tudo que vem do lado de cima da América. Basta
considerar que, quando se traz um falante “nativo” para uma determinada instituição de ensino,
ele ou ela se torna o centro das atenções. É como se tivesse chegado um dos “donos” da língua
que todos devem imitar. Sabendo disso, e da aceitação natural dessa prática, as escolas de
idiomas exploram bem esse marketing, trazendo professores “nativos” para ministrar cursos, a
maioria deles, contudo, conhecem apenas a língua, mas têm pouca ou nenhuma formação teórica
a respeito do processo de ensino/aprendizagem, bem como da realidade contextual dos alunos.
O contrário é o que deveria ser normal, pois o professor brasileiro, bilíngüe, do inglês tem
inúmeras vantagens em relação à maioria dos professores monolíngües, dentre elas, destacamos:
1) domina tanto a L1, dos seus aprendizes, quando a L2, compreendendo as influências recíprocas
que uma exerce sobre a outra; 2) passou pela experiência de ter aprendido a L2, o que lhe dá o
know-how necessário para compreender o processo e dilema inerente ao aprendizado; 3) torna-se
um modelo mais realista, especialmente no tocante à pronúncia, já que o aprendiz não terá a

276
difícil - senão impossível – tarefa de falar como um “nativo”; e 4) ciente da realidade social dos
seus alunos, poderá, ainda que intuitivamente, dar um melhor direcionamento às atividades
propostas pelo material didático.
Essas são apenas algumas das múltiplas vantagens de ser um professor bilíngüe, e não
necessariamente, monolíngüe da língua. Em um artigo bastante provocador a esse respeito,
Seidlhofer (1996:78), ressalta as diversas vantagens de ser um professor bilíngüe na L2 em
comparação com o professor monolíngüe. O professor bilíngüe tem

[...] ao mesmo tempo, familiaridade com a língua-alvo e também pode se


distanciar dela, favorecendo os professores, a fim de que possam desenvolver
uma vida dupla no bom sentido da palavra. Isso requer, a princípio, uma
reinterpretação da noção de pensamento duplo e de vida dupla, de modo que a
palavra “dublo” passe a ter conotações inteiramente positivas, não estando
atrelada ao caráter dúbio, mas a aspectos de valor e resistência. Em termos
dicionarizados, diz respeito ‘a algo que tem duas vezes o tamanho, a quantidade,
o valor e a resistência de alguma outra coisa’ ou, se preferirem concebê-lo de
modo mais poético, diz-se “de uma flor tendo número maior de pétalas do que o
usual”. E o processo de cultivo dessas pétalas é a formação docente continuada.

Assumir essa duplicidade, e saber administrá-la, será o passo considerável no processo de


reconstrução da identidade do professor de inglês no Brasil. O empoderamento é condição
necessária para que o docente deixe de se ver não como um falante de segunda categoria da
língua ou como um mero repassador dos ideais de aculturação dos países anglo-americanos. Mas
para que isso aconteça a contento, faz-se necessário o desenvolvimento de uma abordagem crítica
de ensinar/aprender línguas, a partir da qual ele possa avaliar as teorias antigas ou atuais do
ensino, e principalmente, se envolver nas mudanças sociais, na tentativa de romper com práticas
docentes naturalizadas.

Criticidade no ensino da pronúncia do inglês

Uma abordagem de ensino/aprendizado do inglês, como Língua Internacional, tem por


objetivo estimular os aprendizes à construção de sentidos, buscando, prioritariamente, a
inteligibilidade, ao invés da imitação ao falante monolíngüe de um determinado país. Dentro desse
paradigma, a aquisição do inglês pressupõe um alcance global desse idioma. Basta lembrar que,
atualmente, somente na Ásia, o número de falantes do inglês já alcançou 350 milhões,
ultrapassando a combinação da população dos Estados Unidos, Inglaterra e Canadá. Ainda que não

277
se concorde com as políticas externas desses países, especialmente a dos Estados Unidos, não se
pode desconsiderar a importância do ensino do inglês, desde que esse seja feito a partir de uma
perspectiva crítico-reflexiva.

Graças aos trabalhos de alguns teóricos, é possível, atualmente, no contexto acadêmico,


assumir uma posição política que perceba o inglês numa condição diferenciada daquela proposta
pelos antigos métodos de ensino/aprendizado de línguas. Entre esses destacamos: Phillipson
(1992), mostrando como a língua inglesa foi utilizada, ao longo da história, com o objetivo de
disseminar o imperialismo lingüístico, e ao mesmo tempo, avaliando as implicações da difusão do
inglês nos países do terceiro mundo; Pennycook (1994), propondo uma política de ensino de inglês
como língua internacional, na qual, essa língua não mais seria vista como língua de propriedade
dos americanos e/ou dos ingleses; Crystal (1997; 2005), desenvolvendo análises desse idioma, com
destaque para o seu caráter global, transcendendo às fronteiras dos países que se julgam ‘donos’
da língua; e Fairclough (1989; 2001), destacando a padronização lingüística enquanto estratégia
ideológica a fim de manter o discurso hegemônico.

Grosso modo, a percepção desses teóricos é a de que o inglês, diante da sua dimensão
global, não pode mais ser visto como língua de propriedade dos falantes monolíngües. E assim
sendo, não faz sentido tê-los como padrão a ser seguido, especialmente, no que tange à precisão
na pronúncia. Tal abordagem pode ser resumida na seguinte declaração de Crystal (1997, p. 138)
afirmando que o inglês trata-se, agora, de “um dialeto no qual *os falantes+ podem expressar sua
identidade nacional, e que, simultaneamente, pode garantir uma inteligibilidade de alcance
internacional, de acordo com as necessidades do falante”. O aprendizado desse inglês, dentro
dessa perspectiva, não depende da aquisição dos aspectos culturais dos Estados Unidos e/ou
Inglaterra.

Isso não quer dizer que se desconsidere o papel da cultura no aprendizado de qualquer
língua, contudo, o ensino/aprendizado do inglês, como língua internacional, prioriza a negociação
de significados, e para tanto, não é necessário o domínio, a priori, de uma gama de detalhes
culturais de um país específico, atrelando-o ao inglês a ser aprendido. Isso porque, conforme
explica Cook (2003:29), essa língua não

[...] depende da aquisição infantil nem da identidade cultural e é geralmente


utilizado em contextos nos quais falantes não-nativos estão envolvidos (...) leva-
se, em conta, o seu uso efetivo e a compreensão, ao invés de buscar conformar-se
aos padrões existentes.

278
Assim, quando se fala de inglês como Língua Internacional, deixa-se de levar em conta
se o falante aprendeu o inglês na infância ou depois dela. O sotaque é tomado como um aspecto
intrínseco da fala bilíngüe, e no que tange à cultura, ela deixa de ser parte necessária das aulas de
línguas enquanto condição para que o aprendiz domine a língua. A inteligibilidade passa a ser o
fator preponderante a ser buscado, obtido através da construção de sentidos no contexto
sociolingüístico no qual os falantes estão inseridos.
A abordagem de ensino/aprendizado do inglês, como língua internacional, aponta para
rupturas paradigmáticas (KUHN, [1970] 1998). E como tal, há uma demanda por um
redimensionamento terminológico. Por isso, Crystal (2005:113), ao refletir a respeito dessa
proposta, sugere que “nossas idéias acalentadas precisam ser revistas ou até eliminadas. Mesmo
noções tão básicas como a distinção entre línguas ‘nativas’ e ‘não-nativas’, ou entre ‘primeira’ e
‘segunda’ língua e língua ‘estrangeira’, têm de ser repensadas”.
A princípio, a histórica distinção entre English as a Foreign Language (EFL) – inglês como
língua estrangeira e English as a Second Language (ESL) – inglês como segunda língua, fica
totalmente deslocada. O mais apropriado, nessa proposta, é adotar a expressão English as an
International Language (EIL) – Inglês como Língua Internacional. O motivo para essa opção parte
da percepção de que o inglês, tido como língua estrangeira, aponta para a tentativa de uma língua
que jamais será do aprendiz. Ele terá sempre um outro, distante e inalcançável como padrão ideal,
e estranho, a ser seguido.
A concepção do inglês como Língua Internacional tira de foco as fronteiras geográficas e a
distância do falante “nativo”, evidenciando o falante “não-nativo”, na medida em que este,
enquanto aprendiz, na medida em que se apropria da língua, em seu contato extensivo com essa,
atua no processo gradativo de “desestrangeirização” (ALMEIDA FILHO, 1993). Uma outra expressão
que tem sido amplamente questionada é a do falante “nativo”. Em virtude dessa ampla expansão
do inglês, autores como Widdowson (1994) e Rajagopalan (1997) defendem que o termo “nativo”
não se coaduna à perspectiva do inglês atual. Tomar o falante monolíngüe do inglês como modelo
é um contra-senso por uma série de imprecisões. A primeira seria identificar quem seria esse
falante nativo, se o simples fato de ter nascido nos Estados Unidos ou na Inglaterra dá, a alguém, o
crédito de ser “nativo”. Mas o que dizer de alguém que nasceu lá, mas não domina a língua?
Ou de alguém que foi para lá muito cedo e desenvolveu proficiência na língua, este
também não poderia ser considerado um falante “nativo”? Se apelarmos para uma visão
gerativista, nos moldes chomskianos, o problema se intensifica mais ainda, pois o falante “nativo”

279
não passa de uma idealização e a dificuldade para resolver esse imbróglio torna-se maior ainda.
Por isso, preferimos a proposta de Jenkins (2000) que faz a distinção entre o falante monolíngüe e
o bilíngüe, em substituição ao tradicional falante “nativo” e “não-nativo”, respectivamente.
Para Jenkins (2000), somente há possibilidade para um ensino da pronúncia do inglês como
língua internacional se levarmos em conta a busca pela inteligibilidade (BAMGBOSE, 1998). Para
tanto, os estudos fonéticos não mais se pretendem a ter um caráter normativo. A aplicação da
Lingüística ao ensino de línguas, levou os professores a acreditarem que o estudo fonético deveria
ditar regras sobre como os aprendizes deveriam falar. Em oposição a essa idéia, Jenkins (2000:11),
defende que, no que tange à pronúncia, é preciso buscar um paradigma diferenciado, o que trará
muitas vantagens, dentre elas, destaca:

[...] enfatizar o papel da língua para a comunicação entre falantes distintos de


L1s, sendo esta a razão inicial para o aprendizado do inglês; e sugere a idéia de
comunidade em oposição ao isolamento; pondo muito mais em relevo o que as
pessoas têm em comum do que suas diferenças; implicando que a ‘mistura’ de
línguas deva ser aceita (o que, de fato, faziam as línguas francas), e, por
conseguinte, de que nada há inerentemente de errado na retenção de certas
características da L1, tais como o ‘sotaque’, haja vista que, quando se trata de
uma Língua Franca, se pretende remover, simbolicamente, a propriedade do
inglês dos anglos.

Essa remoção simbólica da propriedade do inglês dos anglos desmistifica a idéia de que
somente os falantes monolíngües têm um inglês “puro” ou “perfeito”. Essa perspectiva enseja uma
mudança de foco no ensino/aprendizado da pronúncia, na medida em que se concebe que os
significados são negociados na interação, no contexto sociolingüístico, independente dos falantes
serem monolíngües ou bilíngües. A partir dessa premissa, os aspectos segmentais e/ou
suprassegmentais do inglês são enfocados com vistas primordialmente à inteligibilidade, jamais à
imitação do falante monolíngüe.

Análise do discurso dos professores de inglês sobre o ensino da pronúncia.


Aspectos teórico-metodológicos
Para realizar essa análise, solicitamos a dois professores de inglês de uma instituição
universitária que nos permitisse a gravação de suas aula. Esclarecemos, inicialmente, que a
identidade deles seria preservada. Por essa razão, não informamos, ao longo deste artigo, os
nomes desses professores, utilizamos os códigos P1 (para o Professor 1) e P2 (para o Professor 2).
Informamos, apenas para efeito de contextualização, que ambos os professores concluíram a

280
graduação há mais de 10 anos e que ambos são especialistas no ensino de inglês.
Os instrumentos utilizados para a coleta do material foram questionários abertos nos quais
os professores se posicionaram sobre o ensino da pronúncia do inglês e a gravação de aulas a
partir das quais se tornou possível uma triangulação das respostas dos professores com suas
práticas em sala de aula. Para a transcrição das aulas, fizemos uso do modelo recomendado por
Marchuschi (1997), para a Análise da Conversação, ainda que com algumas adaptações quando
julgamos necessárias. Para a transcrição dos símbolos fonéticos, adotamos, também com
adaptações, o Alfabeto de Fonética Internacional (IPA).

Análise crítica dos discursos dos professores de inglês


O discurso do Professor 1 (P1) sobre o ensino da pronúncia
Em suas aulas, P1 reduz o uso do idioma, basicamente, ao que considera ser o inglês “dos”
Estados Unidos e “da” Inglaterra. Na seqüência interativa adiante, o professor, ao tentar explicar o
sistema habitacional, identifica o modelo de casas e apartamentos, a partir do livro didático, como
parte da cultura americana. Para este, as casas e apartamentos são americanos, porque, a seu ver,
o livro didático é americano e trata das questões dos Estados Unidos:
P1 – senta ai com Lucas ((aguarda os alunos se aprontarem)) ok vamos trabalhar primeiro o
vocabulário (+) vamos ouvir aqui um TAPE falando um pouco sobre we have TWO different places
lugares HOUSES and APARTMENTS houses and apartments / bom (+) tem algumas coisas que vão
se diferenciar em relação à cultura americana (+) o livro é americano e a nossa cultura (+) por
exemplo LÁ tem coisas em relação à casa que não tem AQUI normal
(P1 - Seq. Int. 01)

P1 confunde um problema econômico, a possibilidade de morar em uma casa ou


apartamento, com uma questão cultural. Para ele, as pessoas, nos Estados Unidos, moram em
casas ou apartamentos espaçosos. Isso, de algum modo, é fomentado pelo próprio material
didático. As figuras de casas amplamente mobiliadas e apartamentos bem equipados, de fato,
apontam para as mansões americanas. No entanto, não se pode pensar, como faz P1, que naquele
país somente existam esses tipos de casas, e mais que isso, que não existam pessoas pobres. Essa
percepção possibilita a aculturação dos alunos (MOITA LOPES, 1996), já que, para esses, os Estados
Unidos serão sempre uma “terra prometida”, inatingível, da qual estarão sempre aquém. Surge,
daí, o deslumbramento, questionável, de que tudo o que é estrangeiro é melhor e mais eficiente.
P1 se preocupa, na sala de aula, com a pronúncia dos alunos, que deva sempre se
pautar pelo modelo “americano”. Assim, na medida em que destaca algumas palavras do texto,

281
com vistas ao desenvolvimento do vocabulário dos alunos, aponta, sempre que possível, a
pronúncia “correta”, em outras palavras, a dos Estados Unidos ou da Inglaterra:
P1 – tá (+) ai você geralmente tem uma máquina que é chamada de DRY MACHINE em que você
seca a roupa e a WASHING MACHINE (+) washing MACHINE and DRY machine (+) lembrem que nos
Estados Unidos e na Inglaterra é tão frio que é impossível secar a roupa fora de casa então’ (+++)
outra palavra ai é YARD (+)
A2 – [jardi]
P1 – *jard+ ok” (++) outra palavra que tem ai seria garden (+) se você quiser escrever também você
pode é claro quando você fala garden (+) os americanos tem flowers (+) mas pode se ter espaço
aqui ((aponta para o desenho)) sem (+) flower (+) tá” ok then we have the *gr] ou a
pronúncia pode ser também [gr+ ok”
(P1 - Seq. Int. 02)

Como vimos, a partir da explicação do que considera ser o sistema habitacional


americano apresentado no livro, P1 volta-se, a partir do livro-texto, para o modelo de pronúncia
que irá abordar, justificado pelo material didático, dizendo ser “americano”. É no contexto dessa
explanação cultural de como são as casas e apartamentos dos americanos que P1 destaca alguns
“problemas” de pronúncia dos alunos. O primeiro “erro” que surge é o da confusão em torno da
pronúncia “correta” de *gr] e [gr+. A discussão sobre a maneira “certa” de
pronunciar tal palavra, gira em torno do padrão “americano”.
Desse modo, a busca pela pronúncia “correta”, durante as aulas, é a principal meta de
P1. Seu modelo de pronúncia restringe-se às opções: Estados Unidos e/ou Inglaterra, com maior
ênfase sobre o primeiro. Assim, a cada vez que cita um exemplo, revela, ainda que implicitamente,
a crença de que esses dois países são “donos” do inglês. Durante a aula de inglês, sempre que
possível, P1 aproveita para ressaltar algum detalhe do inglês “dos” Estados Unidos e/ou da
Inglaterra, como se vê, a seguir, na distinção de elevator, palavra que considera ser americana, de
lift, que considera ser britânica.
CD – and the elevator
P1 – and”
A3 – the ((não consegue completar))
P1 – and the elevator (++) bem o livro da gente é americano (+) na Inglaterra se usa outro nome (+)
quem quiser anotar (+) LIFT ((espera os alunos anotarem)) a mesma coisa que (+) ELEVATOR
(P1 - Seq. Int. 03).
No questionário ao qual P1 foi submetido, ele demonstra ter alguma preferência
explícita por qualquer padrão de pronúncia. No entanto, a análise das gravações das aulas mostra
uma nítida preferência desse professor pelo modelo “anglo-americano”. Essa atitude é

282
problemática porque, na prática, fomenta a ideologia de que o inglês falado dentro desses países é
homogêneo, sem que se leve em consideração, as múltiplas variedades do inglês, não fora, mas
também dentro dos Estados Unidos e da Inglaterra.
A razão para esse tipo de visão, em relação ao inglês, pode ser explicada, recorrendo a
uma antiga, mas não desatualizada expressão laboviana: a da “ignorância lingüística” (LABOV,
1969). No caso do inglês, isso acontece porque, infelizmente, a maioria dos professores de inglês,
no Brasil, é ainda descendente de uma tradição da política da boa vizinhança americana. A
influência dos Estados Unidos, no cenário internacional, teve fortes implicações lingüísticas
(PHILLIPSON, 1992; PENNYCOOK, 1994). Quando não há espaço para a reflexão, permanece o
equívoco de que o inglês, tanto dentro como fora dos Estados Unidos, é apenas um.
Um outro motivo para que os professores de inglês tenham receio de reconhecer a
diversidade sociolingüística do inglês, é o receio de entrarem numa espécie de “caos” e perderem
o foco no que realmente deva ser ensinado em sala de aula (CRYSTAL, 2005). Afinal, determinar
que variação do inglês se está ensinando/aprendendo faz parte das conversas “normais” dos
professores e alunos. Interessante que o inglês “dos” Estados Unidos e “da” Inglaterra têm sempre
a preferência. Por que será que professores e aprendizes não dizem que estão ensinando o inglês
“da” Austrália? Ou da África do Sul? A resposta, certamente, está no valor simbólico (BOURDIEU,
1991) que o inglês, dito americano e/britânico, têm.

O discurso do Professor 2 (P2) sobre o ensino da pronúncia


Essa percepção de P2 é influenciada pela predominância de falantes monolíngües, dos
Estados Unidos, nas falas do material didático. Em sua avaliação do material, P2 afirma ter “como
contribuição para o aprendizado da pronúncia, cito o fato desse livro possuir CDs com falantes
nativos se expressando através de diálogos e explicações gramaticais. Quanto às limitações, o que
posso dizer é que não dispomos de muito tempo em sala de aula para praticar pronúncias,
tampouco os alunos se dedicam a estudar extraclasse. Assim sendo, percebo que em todas as
turmas, mesmo em níveis avançados os alunos apresentam deficiência quanto à pronúncia”.
A partir das declarações de P2, a respeito do material didático e do ensino da pronúncia, é
possível destacar alguns posicionamentos dignos de reflexão. O primeiro é o elogio das gravações
de áudio por trabalhar a pronúncia de “falantes nativos”, isto é, monolíngües. Percebemos, nessa
asserção, a naturalização da crença de que a fala do “nativo”, monolíngüe, é superior a de um
falante “não-nativo”, ou bilíngüe. Segundo, em relação à pronúncia do “nativo”, os aprendizes são
considerados deficientes. É uma pena que depois de tantos debates a respeito do mito da

283
deficiência lingüística haja professores que ainda o defendam. A sociolingüística trouxe
contribuições contundentes a fim de que os professores de língua percebessem que, na fala de
seus alunos, há diferença, não deficiência (MOITA LOPES, 1996). Infelizmente, na percepção de P3,
a pronúncia dos seus alunos, mesmo nos estágios avançados, é deficiente, e a razão dessa
“deficiência”, é a incapacidade para pronunciar como os falantes “nativos”.
De acordo com P2, a “deficiência” dos alunos, no que tange à pronúncia, ocorre também,
porque “os aprendizes universitários mostram-se um pouco desconfortáveis ao participarem de
exercícios de pronúncia, talvez por acharem que essa tarefa adequa-se mais para crianças e
adolescentes”. Essa impressão de P2 diz respeito às atividades de repetição que se associam às
técnicas mecânicas adotadas em alguns contextos educacionais influenciados pela abordagem
behaviorista. Na seqüência interativa, a seguir, vemos a atuação de P2, nesse tipo de atividade na
sala de aula:
P2 – ok (+) class REPEAT ((resolve trabalhar alguns sons que acha terem sido mal pronunciados))
[kiuris]
TA - [kiuris]
P2 – [mpent]
TA - [mpent]
P2 – uhm (++)
A7 - [kri]
P3 – uh”
A7 - [krie]
P2 - [krietv]
A7 - [krietv]
TA -[krietv]
P2 – [prr]
TA- [prr]
P2 – [hrd]
TA - [hrd]
P2 – [wrk hrd]
TA - [wrk hrd]
P2 – [rtiklz]
TA - [rtiklsz]
P2 - [drnalist]
TA - [drnalist]
P2 – [wrkt]
TA - [wrkt] ((alguns pronunciam [wrkd]))
P2 – you Carlos (+) the FIRST one
A3 – well I [fk] I could make a good journalist because I am good at writing when I was in college I
worked as a::s a reporter for the school new::spaper /…/
(P2 – Seq. Int. 19).

284
Conforme vemos na seqüência, o objetivo da repetição controlada, para P2, é o de ratificar
alguma “deficiência” percebida pelo professor durante a aula, substituindo-a pelo padrão
“correto”:
P2 – ok (+) class repeat (+) ((P3 pede aos alunos para repetirem algumas palavras que julga terem
mostrado dificuldade para pronunciar durante a leitura)) [stp]
TA - [stp]
P2 - [stpwrki]
TA - [stpwrki]
P2 – [markt]
TA - [markt]
P2 – [dsn]
TA - [dsn]
P2 – [kes]
TA- ((uns pronunciam [keis] outros [keiz]))
P2 – [mpent]
TA - [mpent]
P2 - [krietv]
TA - [krietv]
P2 – ((após uma pausa, hesitando como se estivesse pensando como pronunciar)) [m] [mprtnt]
TA - [mprtnt]
P2 - [pler]
TA- [pler]
(P2 – Seq. Int. 04).

P2 considera esse recurso bastante importante para o aprendizado da pronúncia. No


questionário aplicado aos professores, diz que “a leitura de textos em voz alta (...) pode ser uma
boa idéia, em se tratando de alunos realmente envolvidos na aprendizagem, visto que estes
buscam aprender a pronúncia das palavras que desconhecem, a fim de pronunciá-las
corretamente quando chegar sua vez de se expor oralmente. Por outro lado, essa prática pode
não funcionar com os alunos que estudam uma língua estrangeira sem se dedicarem ou sem
objetivos de se aprimorarem realmente, já que estes, talvez, não se importem de ler de qualquer
maneira, mesmo sabendo que serão avaliados pelo professor e pelos colegas”.
Para P2, o recurso da leitura em voz alta, além da repetição, funciona, se o aprendiz não
tiver receio de ser corrigido e acatar, com naturalidade, a avaliação feita pelo professor. Essa
declaração demonstra o posicionamento acrítico de P2, que não atenta para as múltiplas
possibilidades de pronúncia do inglês. Além de acreditar na existência de uma pronúncia correta,
ainda reforça o discurso hegemônico do professor em sala de aula, que deva dar a palavra final em
relação ao modelo de pronúncia que deva ser utilizado. Essa atitude pode cercear a voz dos
aprendizes, além de supervalorizar um modelo, geralmente o americano e/ou britânico, como os

285
únicos legitimados para a sala de aula. P2 atribui à deficiência, e mais especificamente, ao
desinteresse dos alunos, a falta de desenvolvimento no aprendizado da pronúncia.

Considerações finais
A análise crítica do ensino da pronúncia do inglês dos professores revelou ainda a
predominância de um paradigma imitacionista. Para esses, os aprendizes dessa língua devem ser
capazes de reproduzirem os sons dos falantes “nativos”. Tal objetivo consolida o posicionamento
de que somente os falantes monolingues, e não por acaso, dos Estados Unidos e da Inglaterra, são
detentores do sotaque correto a ser imitado. As práticas de ensino, em sala de aula, visavam,
através da repetição e do reforço, inculcar determinados sons. Quando o aluno se distanciava do
padrão estabelecido pelo professor, esse é imediatamente corrigido, já que o modelo hegemônico
não fora observado. Mais grave ainda é que o aluno, quando não pronunciava a contento, era
percebido como deficiente pelo professor, haja vista sua “incapacidade” para imitação de
determinados sons do inglês.
Diante das mudanças geopolíticas pelas quais o inglês tem passado, abordagens como
essas precisam ser repensadas. O número de falantes bilíngües – comumente denominados de
nativos – já ultrapassa em muito o número dos falantes monolingues. Ademais, o inglês, ao
assumir o status de Língua Franca, deixa de necessariamente estar atrelado aos Estados Unidos e à
Inglaterra. Cientes de tais mudanças, os professores de inglês precisam empoderarem-se e
empoderarem seus alunos, a fim de que esses reconheçam a si próprios não como falantes de
segunda categoria do idioma, mas como falantes legítimos, que utilizam a língua para os diversos
propósitos sociais, dentre eles, o de se engajarem criticamente contra práticas discursivas
dominadoras, que cerceiam a voz.

Referências

ALMEIDA FILHO, J. C. P. de. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas: Pontes,


1993.

BAMGBOSE, A. Torn between the norms: innovations in world Englishes. World Englishes 17/1:1-
14, 1998.

BOURDIEU, P. Language and Symbolic Power. Cambridge: Polite Press, 1991 (Trad. de Matthew
Adamson)

CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1965.

286
COOK, G. Applied linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2003

CRYSTAL, D. English as a global language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

CRYSTAL, D. A revolução da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 2005 (Trad. de Ricardo Quintana).

FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989.

JENKINS, J. The phonology of English as an international language. Oxford: Oxford University


Press, 2000.

KITIZINGER, C. Liberal humanism as an ideology of social control: the regulation of lesbian


identities. In SHOTTER, J. & GERDEN, K (eds.) Texts of identity. London: Sage, 1989.

KUHN, T. S. A Estrutura das revoluções científicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998 (Trad. do
texto de [1970] por Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira).

LABOV, W. The effect of social mobility on linguistic behavior. Sociological Inquiry, v. 36, pp. 186-
203, 1969.

MARCUSCHI, A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1997.

MEY, J. L. Etnia, identidade e língua. (Trad. de Maria da Glória de Moraes) In SIGNORINI, I. (Org.)
Lingua(gem) e identidade. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

MOITA LOPES, L. P. da. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

MOITA LOPES, L. P. da. Discursos de identidade em sala de aula de leitura de L1: a construção da
diferença. In SIGNORINI, I. (org.) Lingua(gem) e identidade. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

PENNYCOOK, A. The cultural politics of English as an international language. London: Longman,


1994.

PHILLIPSON, R. Linguistic imperialism. Oxford: Oxford University Press, 1992.

PRABHU, N. S. There is no best method - Why? TESOL Quarterly 24, (161-76), 1990.

RAJAGOPALAN, K. Linguistics and the myth of nativity: comments on the controversy over
‘new/non-native’ Englishes. Journal of Pragmatics. v. 27, pp. 225-231, 1997.

RAJAGOPALAN, K. O conceito de identidade na lingüística: é chegada a hora de uma


reconsideração radical. In SIGNORINI, I. (org.) Lingua(gem) e identidade. Campinas: Mercado de
Letras, 1998.

RICHARDS, J. & RODGERS, T. S. Approaches and methods in language teaching. 2 ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001.

SEIDLHOFER, B. It is an undulating feeling... The importance of being a non-native teacher of


English. VIEWS, 5 1/2, pp. 63-80, 1996.

287
SELINKER, L. Interlanguage. IRAL, 10, 1972, pp. 209-231.

WETHERELL, M & POTTER, J. Mapping the language of racism: discourse and legitimation of
racism. New York: Harvester Wheatsheaf, 1992.

WIDDOWSON, H. G. The ownership of English. TESOL Quarterly 28/2: 337-89, 1994.

288
REFRAMING E MUDANÇA SOCIAL: INVESTIGANDO AÇÕES LINGUISTICO-
COGNITIVAS NO PROCESSO DE DESLEGITIMAÇÃO DO MST

Karina Falcone (UFPE-Nelfe)

O objetivo central deste trabalho é investigar, a partir das práticas discursivas, o processo de
reconceitualização sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), especificando a
análise no caso do massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará. O cerne da questão
estudada é a relação discurso ↔ cognição ↔ sociedade. Este estudo tem como base a Análise
Crítica do Discurso, em sua abordagem cognitiva, e a proposta de reframming de Lakoff (2004).
Para o desenvolvimento dessas reflexões, investigamos o discurso do domínio jornalístico sobre o
MST, durante o período de 1996 a 2006, caracterizando os dez primeiros anos de cobertura sobre
o massacre. A questão propulsora para essas análises é identificar as relações de constituição e
conflitos discursivos travados sobre o tema, e como tais discursos reverberam em sociedade,
identificando as vozes dominantes e as ações contrárias a tais vozes. Nesse ‘embate discursivo’,
interessa-nos a análise da ocorrência do processo de reframing, ou mudança conceitual, sobre o
caso de Eldorado dos Carajás e sobre o próprio movimento dos sem-terra. O conceito de
reframing se mostra relevante para um trabalho de natureza linguístico-cognitiva, pois levanta
importantes questões sobre como ocorre a mudança social. O jornal investigado é a Folha de S.
Paulo e os gêneros analisados são notícia e reportagem.

Palavras-chave: reframming, Eldorado dos Carajás, cognição, mudança social, deslegitimação

Apresentação
O objetivo central deste trabalho é investigar, partindo das práticas discursivas, o processo
de (des)legitimção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a partir da análise
do caso ‘Eldorado dos Carajás’, ocorrido no Pará. O cerne da questão estudada é a relação discurso
↔ cognição ↔ sociedade e, como a partir dessa relação, ocorrem processos de mudança social.
Este estudo tem como base a Análise Crítica do Discurso, em sua abordagem cognitiva, e a
proposta de reframing de Lakoff (2004). Para o desenvolvimento dessas reflexões, investigamos o
discurso do domínio jornalístico sobre o MST, durante o período de 1996 a 2006, caracterizando
os dez primeiros anos de cobertura sobre o massacre.
A questão propulsora deste trabalho é identificar as relações de constituição e conflitos
discursivos travados sobre o tema, e como tais discursos reverberam em sociedade, identificando
as vozes dominantes e as ações contrárias a tais vozes. Nesse ‘embate discursivo’, interessa-nos a
análise da ocorrência dos processos de reframing, ou mudança conceitual, e de (des)legitimação
do caso de Eldorado dos Carajás e próprio movimento dos sem-terra. O conceito de reframing se

289
mostra relevante para um trabalho de natureza linguístico-cognitiva, pois levanta importantes
questões sobre como ocorre a mudança social. O jornal investigado é a Folha de S. Paulo e o
gênero analisado é a ‘reportagem’.

Discurso e Mudança Social: pontuando algumas reflexões


Ainda que seja preocupação constante entre os teóricos da Análise Crítica do Discurso,
entendemos que a relação discurso ↔ mudança social, muitas vezes, não é investigada de forma
mais pontual, buscando reflexões sobre a complexidade de fenômenos que envolvem tal
processo. O enfoque unilateral nas práticas sociais – entre elas a discursiva – parece não ser
suficiente para dar conta da questão. Isso porque os pressupostos teóricos e os resultados
demonstrados não explicam heuristicamente o processo, em sua raiz constitutiva. Entendemos
que conceitos como contexto, constituição social, interface social-individual, por exemplo, não são
aprofundados em algumas pesquisas da ACD (Fairclough, 2001), o que tem resultado em estudos
que não respondem a uma questão fundadora: mudam os discursos por que mudam a sociedade
ou muda a sociedade por que mudam os discursos? A resposta dada, em geral, é: ‘trata-se de uma
relação constitutiva’ (Fairclough, 2001). Entretanto, o enfoque único no aspecto social,
desconsiderando as relações sociocognitivas atreladas ao fenômeno, limita as possibilidades de
explorar como domínios e atores sociais operam nesse processo e como a sociedade se constitui a
partir dessas ações.
A proposta que apresentamos é a de um estudo sobre mudança social a partir da
perspectiva de (re)categorização e reelaboração de modelos mentais, entendendo que tais
performances cognitivas se constituem em um processo de interface mente-social. Dessa forma,
propomos investigar as ações de mudança social a partir de processos de reframing (Lakoff, 2004).
Tal proposta se apresenta relevante, pois traz a perspectiva cognitiva em sua fundamentação.
Entendemos que a ideia de reframing aborda questões ainda pouco exploradas para o estudo
sobre mudança social. Para Lakoff (2004), se os frames são estruturas mentais que orientam a
nossa concepção de mundo, a mudança dessas estruturas pode operar no processo de
reconceitualização do conhecimento.
Segundo o autor, as palavras são definidas, em grande medida, por frames conceituais.
Isso quer dizer que quando ouvimos uma palavra, um frame – ou uma coleção deles – é ativado
em nosso cérebro. Esses frames, ordenadores de nossas performances cognitivas, são
historicamente construídos e têm forte orientação ideológica.

290
O aspecto que pretendemos abordar diz respeito a, principalmente, a um pressuposto de
Lakoff (2004): os nossos sistemas de crenças são profundamente elaborados cognitiva e
emocionalmente, e também com fortes raízes históricas. Isso quer dizer que uma mudança social
requer, não só uma mudança discursiva, mas uma mudança cognitiva. O que se daria, conforme o
autor, apenas com a mudança de frames – o que seria mais que uma mudança na linguagem – e,
por isso mesmo, muito mais difícil. A mudança de crenças racistas e machistas, por exemplo,
ocorreria a partir de algum tipo de insight social profundo, capaz de substituir certos modelos
mentais e de eventos armazenados na memória de longo prazo.
Dessa forma, seguindo as reflexões do autor, podemos pensar que a mudança social
exige uma mudança dessa constituição do individual em interação com o social, que construiria a
reconceitualização dos objetos do discurso. Ou ainda: reframings. Na proposta de Lakoff (2004),
esse processo está atrelado ao frame, delimitado por ele aos itens lexicais. Entretanto, para esta
pesquisa, propomos articular essa perspectiva com o estudo de outros elementos lingüísticos e de
outras organizações cognitivas mais complexas, como os modelos mentais, memória e ações de
categorização.
Essas são algumas reflexões que propomos neste trabalho, mesmo sabendo da
impossibilidade de dar conta de todas as questões levantadas neste artigo. Por isso, também é
nosso objetivo abrir caminhos para a investigação dessas questões, ou ainda iniciar um diálogo
com os demais pesquisadores, no sentido de contribuir para a ampliação de tais reflexões.

Discurso e Cognição
Cognição e discurso já foram conceitos que pertenceram a campos epistemológicos
distintos, tratados como incompatíveis, sendo cognição uma noção que unanimemente os
analistas do discurso entendiam como algo que não lhes dizia respeito. Essa postura é ainda
bastante forte entre alguns teóricos da AD, principalmente os da linha francesa, na qual a reação
anti-cognitivista foi tomada quase como uma ‘opção política’, sustentada pelos equívocos de uma
perspectiva mentalista, que, ao situar a cognição como uma propriedade inata, desconsiderava
qualquer relevância do social em suas pesquisas. É nesse sentido que Flower (1994:32) discorre
sobre a dificuldade em construir uma teoria social cognitiva, pois se trata de um projeto que, além
de abarcar toda uma complexidade teórica, também está relacionado a um problema de “política
intelectual”.
Desenvolver uma teoria sociocognitiva resulta em uma tentativa de conciliar pesquisas
tradicionalmente desenvolvidas em perspectivas diferenciadas – o que nada mais é do que a

291
dicotomia secular entre social x individual. A ‘visão sociocognitivista’, mesmo que desenvolvida a
partir de linhas de trabalho distintas, assume o compromisso de incorporar aspectos sociais e
culturais à compreensão que se tem do processamento cognitivo, sustentando que existem
muitos processos cognitivos que acontecem na sociedade, e não exclusivamente nos indivíduos.
“Neste caso, o interesse se concentra no modo como as pessoas, enquanto membros de culturas
ou grupos particulares percebem e descrevem o mundo social” (Condor e Antaki, 2000: 454).
Marcuschi (2004) vai mais além e defende que, com o enfoque sociocognitivista, passa-se
a analisar atividades de construção, e não mais de processamentos, conceito carregado por uma
noção mecanicista da mente, como iremos discutir mais adiante. Compreender que as
propriedades cognitivas são construídas na prática social “possibilita perceber com mais clareza
como emergem nas práticas públicas as propriedades da cognição e, assim, a possibilidade de
captar o dinamismo dos processos que dão origem a estruturas conceituais complexas”
(Marcuschi, 2004:13). Isso significa que a nossa forma de perceber, compreender, categorizar e,
por fim, construir os ‘objetos do discurso’ resulta de atividades contínuas e situadas, que se dão na
interação social. Assim, trata-se de perceber como as pessoas agem sobre o mundo, no mundo,
com o mundo.
A falência das polaridades social x individual já foi reivindicada por vários autores, em
distintas áreas do conhecimento (Santos, 2004; 2003). Os estudos discursivos têm se mostrado
cada vez mais relevantes no trato dessa questão. Isso porque o empreendimento de usar uma
língua encontra-se sempre em relação dialética entre os conhecimentos individuais e sociais. Ao
mesmo tempo em que a formulação de textos é uma realização individual, sempre será
socialmente construída e compartilhada. É nesses termos que Beaugrande (1997) propõe a noção
de língua como um sistema virtual – sendo esse sistema atualizado no texto, entendido como um
sistema real. Assim, a língua é um ‘sistema adaptado’, sintonizado com os usos possíveis e os usos
correntes. “Dessa forma, a relação entre o sistema virtual da língua e o sistema real de texto é
uma dialética onde cada lado controla o outro, enquanto eles funcionam conjuntamente”
(Beaugrande, 1997:12).

O Reframing como Proposta de Mudança Discursivo-cognitiva


Conforme já discutido, a proposta de Lakoff (2004) sobre reframing é um dos nortes
teóricos para a investigação proposta. Tal noção, entretanto, ainda não foi aprofundada pelo
próprio autor, que apenas a introduziu no livro em que analisa a disputa eleitoral entre os
candidatos norte-americanos à presidência: George W. Bush e John Kerry, em 2004. Entretanto,

292
entendemos que na idéia de reframing pode estar um princípio para o estudo sobre mudança
social, a partir de uma abordagem cognitiva. Por isso, mesmo tratando-se de um conceito ainda
não estabelecido, decidimos trazer tal discussão para este trabalho, com o propósito de explorar
tal questão, trazendo essa noção cognitiva de reconceitualização discursiva como um elemento a
ser estudado na investigação da mudança social.
Para Lakoff (2004), reframing é mudança social. Se os frames são estruturas mentais que
orientam a nossa concepção de mundo, a mudança dessas estruturas pode operar no processo de
reconceitualização do conhecimento. Segundo o autor, as palavras são definidas, em grande
medida, por frames conceituais. Isso quer dizer que, quando ouvimos uma palavra, um frame – ou
uma coleção deles – é ativado em nosso cérebro. Esses frames, ordenadores de nossas
performances cognitivas, são historicamente construídos e têm forte orientação ideológica. O
aspecto que queremos abordar diz respeito ao que Lakoff (2004) propõe, a partir dessa
investigação: os nossos sistemas de crenças são profundamente elaborados cognitiva e
emocionalmente, e também com fortes raízes históricas. Isso quer dizer que uma mudança social
requer, não só uma mudança discursiva, mas uma mudança cognitiva. O que se daria, conforme o
autor, apenas com a mudança de frames – o que seria mais que uma mudança na linguagem – e,
por isso mesmo, muito mais difícil. A mudança de crenças racistas e machistas, por exemplo,
ocorreria a partir de algum tipo de insight social profundo, capaz de substituir certos modelos
mentais e de eventos armazenados na memória de longo prazo.
Se a discussão apresentada por Lakoff (2004) sobre reframing não traz uma forte base
teórica, já que seu objetivo foi mais de análise de conjuntura eleitoral americana, do que elaborar
uma teorização cognitiva, podemos articular tal discussão com as propostas sobre corporificação
da mente e categorização apresentadas em Lakoff (1990) e Lakoff e Johnson (1999) e desenvolver
reflexões mais aprofundadas sobre os aspectos cognitivos, articulando-os com teorias discursivas
e sociais. Para Lakoff (1990), a constituição do individual se dá a partir da interação com o social e
a nossa mente – ou os sistemas que organizam o nosso conhecimento, como os frames. Assim, o
nosso pensamento e a nossa razão concernem, essencialmente, à natureza do organismo fazendo
coisas e pensando – incluindo a natureza do seu corpo, sua interação em seu ambiente e suas
características sociais.
Dessa forma, seguindo as reflexões do autor, podemos pensar que a mudança social exige
uma mudança dessa constituição do individual em interação com o social, que construiria a
reconceitualização dos objetos do discurso. Ou ainda: reframings. Na proposta de Lakoff (2004),
esse processo está atrelado ao frame, delimitado por ele aos itens lexicais. Entretanto, para esta

293
pesquisa, propomos articular essa perspectiva com o estudo de outros elementos lingüísticos e de
outras organizações cognitivas mais complexas, como os modelos mentais, memória, entre outros.

A Análise Cognitiva do Discurso


A Análise Cognitiva do Discurso trata de dar conta da ação coletiva/individual no processo
de (re)construção do conhecimento, das ideologias, das crenças e das atitudes. Nessa linha de
investigação, a mente não é compreendida como algo externo ao discurso, algo invisível, para a
qual só cabem especulações, mas sim como de ‘natureza discursiva’ (van Dijk, 2000). Para isso, é
preciso considerar as propriedades cognitivas como resultantes de ações intersubjetivas, sendo
construídas na interação social. E se, por um lado, a cognição se constitui na interação, por outro
também a propicia, pois é através dos nossos conhecimentos compartilhados, – entre eles o
lingüístico – que nos entendemos, ou buscamos o entendimento pela negociação.
Dessa forma, a atividade discursiva está atrelada a elementos socialmente constituídos,
contextualmente situados, e cognitivamente elaborados. Conversar, escrever ou ler textos,
participar de um debate, assistir a conferências e aulas ou escutar uma música: são práticas
discursivamente realizadas, que resultam de processos constantes de compreensão, interpretação,
inferências, atribuições de sentidos e de valores, ou seja, das nossas ‘performances cognitivas’.
Assim é que discurso↔cognição↔interação estão em relação constitutiva, ressaltando-se que a
cognição tem a propriedade de operar na interface entre o que construímos socialmente e o que
praticamos individualmente, ou seja, nossa fala ou escrita, assim como em outras práticas sociais.
Perceber a propriedade de interface da cognição é buscar uma investigação aprofundada e
complexa para uma questão ainda não totalmente resolvida na Análise Crítica do Discurso: como
se dá a relação discurso ↔ sociedade? Se os analistas críticos do discurso concordam que a inter-
relação entre discurso e sociedade não pode ser investigada adequadamente sem a combinação
de teorias Linguísticas e sociológicas, muitos ainda desconsideram (ou mesmo rejeitam) a
abordagem sociocognitiva. Esse problema também é apontado por Wodak (2006) que, ao fazer
uma revisão teórica do próprio trabalho, argumenta sobre a importância das teorias cognitivas na
ACD, principalmente para dar conta do link entre discurso e sociedade. O objetivo de uma análise
sociocognitiva do discurso deve ser, fundamentalmente, o de investigar as práticas discursivas
como ações públicas que podem desempenhar uma variedade de funções sociais, tais como a
(re)produção da discriminação étnica, social e sexista.
A interface entre discurso e sociedade é complexa e qualquer ênfase em alguns dos
múltiplos fenômenos que envolvem essa relação sempre será reducionista. Dessa forma, como

294
não é possível esgotar todas as questões, parece-nos interessante focar em alguns aspectos mais
relevantes para o quadro teórico desta investigação. Se a cognição é a propriedade que opera na
interface entre a sociedade e as realizações discursivas, precisamos desenvolver noções que dêem
conta de explicar teoricamente esse processo. Assim, tomaremos os conceitos de contexto,
modelos mentais e ideologia (van Dijk, 2008, 2006, 1998) para tratar a questão da interface, sem
desconsiderar que várias outras propriedades atuam nessa relação.
Em linhas gerais, apresentamos algumas considerações básicas sobre esses três conceitos:

Contexto
A principal distinção entre as teorias cognitivas e a teoria clássica sobre contexto reside
no fato de que aquelas não aceitam que o discurso seja diretamente determinado por aspectos
regularmente tratados como contextuais: instituições, cultura, gênero, idade, classe social etc. Se,
por um lado, esses aspectos são relevantes para a elaboração de discursos, por outros eles não
podem ser entendidos como determinantes. Na proposta de van Dijk (2008, 2006), contextos são
interpretações subjetivas desses elementos, em um processo de interação situado. Assim,
contextos são construções interacionais elaboradas a partir dos distintos elementos em uma
situação social específica que os interlocutores tomam como relevantes para a sua produção
discursiva. Não há uma relação objetiva entre o discurso e os aspectos contextuais, mas sim
interpretações que atores sociais engajados em alguma prática elaboram sobre esses aspectos.
Por isso, para evitar esse determinismo social, é preciso levar em conta não apenas as condições
de variações sociais, mas também as variações individuais através das interfaces sob as quais
operam os interlocutores quando falam ou escutam: eles compreendem, interpretam, constroem
etc. Ou seja, contextos são subjetivos por definição – sem desconsiderar suas propriedades sociais
e intersubjetivas, que possibilitam, por exemplo, a compreensão discursiva.
Os contextos são co-construções situadas e dinâmicas, cujas ações dos interlocutores
continuamente as reconfiguram. É nesse sentido que os contextos operam na interface entre a
prática social e a discursiva. O processo de elaboração ou compreensão de um texto não é
diretamente controlado pelos papéis dos interlocutores, sua classe social, ou sua idade, ou mesmo
um determinado evento social, esses elementos vão constituir subjetivamente a fala e a escrita,
pois dependerá, primeiramente, de como as pessoas compreendem e interpretam os elementos
contextuais relevantes para a elaboração desses textos, assim como os conhecimentos por elas
compartilhados. A partir de uma perspectiva cognitivista, podemos afirmar que os contextos são
as construções mentais (com base na experiência social) com as quais operamos no momento de

295
elaboração de um texto (falado ou escrito), daí a afirmação de que texto e contexto estão
intrinsecamente vinculados, sendo que o contexto não se constitui apenas pelas estruturas
externas ao discurso, mas também pelas representações subjetivas elaboradas pela nossa
cognição. É apenas com essa compreensão que podemos dar conta de como os atores sociais são
diferentemente influenciados e atuam distintamente em uma mesma situação social.
Outro aspecto importante da teoria de van Dijk (2008) sobre contexto são os elementos
que dão conta da relevância. Ou seja, o que é socialmente construído e individualmente assumido
como relevante, em eventos comunicativos específicos e, em outra situação, com outros
indivíduos, mas em um mesmo evento comunicativo, as relevâncias passam a ser outras. Essa
questão é particularmente importante para refletirmos porque alguns gêneros textuais, mesmo
que tendam a ser ritualizados, nunca são exatamente reproduzidos. Por exemplo, dar uma aula,
mesmo quando tratamos dos mesmos assuntos, são ocorrências distintas nas diferentes turmas.
Isso porque é no momento da interação com um grupo de alunos específicos – ou seja, uma ação
situada, que os elementos contextuais são construídos e, assim, o que é tomado como relevante
para aquele evento. Assim, as relevâncias dos contextos só podem ser definidas se elas forem
entendidas como ‘relevâncias-para-os-participantes’: sem abstrações e generalizações
determinadas pelos altos níveis das estruturas sociais. Assim, o aspecto da relevância do contexto
é importante para dar conta do processo interacional dos participantes em um evento e,
conseqüentemente, como eles se constroem a partir da influência dos outros participantes, das
suas próprias definições, assim como as da própria interação.

Modelos Mentais
Os modelos mentais são construções subjetivas ou definições que atribuímos a situações
comunicativas específicas, daí a relevância de seu estudo nas práticas discursivas. Eles são
constantemente reformulados, atualizados e elaborados na memória episódica (parte da memória
de longo prazo que dá conta das nossas estruturas mentais mais imediatas). Por isso, os modelos
mentais não podem ser entendidos como elementos de natureza rígida e homogênea. A sua
atualização se dá a partir do nosso contínuo processo de atividade social. Os modelos mentais
estão relacionados ao processo de produção e compreensão textual ou de eventos, pois operam
na construção das representações sobre tais eventos ou das situações tratadas em um texto. Os

296
modelos mentais são de natureza social1, pois têm fortes características de ‘pertença’ de grupos,
mas são também intrinsecamente individuais, resultando das nossas experiências, da nossa
biografia, armazenadas na nossa memória. Eles também são situacionais/interacionais, pois são
diferenciados em cada ação comunicativa: toda prática discursiva envolve a articulação de
modelos mentais específicos, por isso eles são representações subjetivas dos eventos ou situações
sobre as quais um discurso trata.
Os modelos mentais são estruturas cognitivas que podem ser entendidas como as nossas
‘representações da realidade’, por isso operam nas avaliações e valorações (opiniões) sobre
eventos específicos, grupos e atores sociais. Os modelos mentais estão em relação intrínseca com
o contexto, pois são as estruturas com as quais operamos nos diversos eventos comunicativos. Por
isso, no processo discursivo, os modelos mentais relacionados às situações que estamos tratando
têm várias funções. Primeiro, eles servem como ponto de partida do discurso: nós sabemos
alguma coisa nova sobre um evento ou uma situação e essas representações servem como
orientações momentâneas para contar uma história, escrever uma notícia jornalística, uma carta
etc. De forma inversa, os modelos mentais também têm a função instrucional, ou seja, servem aos
nossos processos de compreensão discursiva: entendemos os discursos quando somos capazes de
construir modelos mentais sobre eles. Assim, o próprio processo de construção de sentido de um
texto envolve a produção e atualização de um modelo mental.
É da natureza dos modelos mentais as organizações esquemáticas, construídas
culturalmente. Por isso, eles são variáveis e muitas das suas propriedades são gerais. Isso não quer
dizer que as pessoas entendem os discursos e os eventos de formas infinitamente variáveis. Mas
elas se utilizam de esquemas, movimentos e estratégias cognitivamente acessíveis para facilitar
sua tarefa de compreender as mais distintas variações discursivas e situacionais. Dessa forma,
chegamos a um aspecto fundamental sobre os modelos de contexto: como se tratam de
organizações cognitivas para a produção e compreensão discursivas, eles são essenciais para o
próprio processo interacional. Por isso, os modelos mentais não podem ser apenas atrelados à
articulação de elementos lingüístico-discursivos para a construção discursiva. Eles também
acionam a articulação de elementos complexos, tais como a memória e os conhecimentos
compartilhados. Resumidamente, seguindo as palavras de van Dijk (2006): os modelos metais são
construções muito poderosas e algumas investigações têm mostrado que eles ‘existem’
independentemente de estarem envolvidos em situações discursivas.

1
A perspectiva da constituição social dos modelos mentais é um dos pontos principais para distinguir essa noção de
uma perspectiva mentalista. Não é por eles serem entendidos como elaborações mentais que devem ser tomados
como algo inato. Eles compõem o nosso aparato cognitivo e são constituídos a partir das nossas relações sociais.

297
Ideologia
Ao situar a ideologia como um dos aspectos que opera na interface entre discurso e
sociedade, van Dijk (2000, 1998) elabora esse conceito a partir do enfoque sociocognitivo. Essa
perspectiva se diferencia bastante das tradicionais, principalmente as desenvolvidas com base na
linha marxista. Na proposta de van Dijk (2000, 1998), a ideologia não tem a conotação negativista
e opressora – ou como foi definida na perspectiva marxista de ‘a falsa consciência’ –, pois não está
atrelada a um instrumento da classe dominante para manter o poder. Essa mudança na noção de
ideologia se deve, em princípio, às referências adotadas por van Dijk para investigar tal fenômeno.
Se, tradicionalmente, o conceito de a ideologia foi desenvolvido pela Sociologia e pela Filosofia,
situando-a a partir das relações de poder, com os estudos da Psicologia e da sociocognição,
passou-se a tratar dessa noção como sistemas de crenças compartilhados por grupos, ou como
elaborações cognitivas compartilhadas por pessoas que fazem parte do mesmo grupo social.
Assim, as ideologias não são falsas nem verdadeiras, mas elementos de coesão e coordenação de
práticas sociais. Essa mudança de enfoque não mais situa a ideologia como um instrumento de
opressão, mas como um aspecto que pode propiciar, inclusive, a mudança social. Por um lado,
existe o predomínio das ideologias das classes dominantes, que contam com vários artifícios para
a sua imposição, entre eles o domínio discursivo, mas por outro também existem as ideologias
revolucionárias e libertadoras. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, por exemplo, é regido
por ideologias que defendem a reforma agrária e um sistema igualitário de distribuição de renda.
E, dessa forma, poderíamos citar outros grupos ideológicos que lutam contra o status quo, tais
como o movimento feminista e o movimento negro.
Como concebe van Dijk (1998:21), as ideologias são “as bases das representações sociais
compartilhadas por membros de um grupo”, permitindo-os se organizar em torno de crenças
sociais específicas, o que os unem e os permitem agir coordenadamente. Por isso, as ideologias
são entendidas como elementos que operam na interface entre sociedade e cognição. Da
diversidade de valores e conceitos construídos em uma sociedade, os grupos se articulam em
torno de afinidades, e assim compartilham e re-elaboram suas crenças. Assim, podemos afirmar
que a ideologia é uma categoria axiomática, pois define outros elementos cognitivos (como os
modelos mentais), sendo socialmente construída e compartilhada, pois diz respeito
necessariamente a grupos (não há ideologias individuais), sendo discursivamente reproduzida. Isso
quer dizer que as ideologias se constituem a partir de três aspectos: cognitivo, social e discursivo.
Entretanto, se várias práticas se organizam em torno da ideologia, é a partir do discurso que ela

298
mais se propaga. Dessa mesma forma, é pela análise discursiva que podemos identificar suas
manifestações e combatê-las, no caso de ideologias que propagam o racismo, o preconceito e
discriminação, por exemplo.
Sendo as ideologias crenças compartidas por grupos sociais, elas definem a identidade, os
interesses e as ações desses grupos. As ideologias são as organizações cognitivas responsáveis, por
exemplo, pela polarização Nós x Eles, e operam fortemente no processo de compreensão de
mundo e na ação social. A polarização Nós x Eles é fortemente marcada nos discursos ideológicos
e, necessariamente, tem a função valorativa (bem x mal); (certo x errado). Dessa forma, é
importante ressaltar que “as ideologias não são apenas ‘uma visão de mundo’ de um determinado
grupo, mas, fundamentalmente, os princípios que formam a base dessas crenças (van Dijk,
1998:21)”. Assim como também as ideologias não servem apenas para ‘dar sentido’ às ações
sociais, mas são as reguladoras e propulsoras dessas ações. Em outras palavras, as ideologias
consistem em representações sociais que definem a identidade social de um grupo. Assim, as
diferentes ideologias são definidas pelo tipo do grupo que ‘tem’ uma ideologia.
Como o fundamento sociocognitivo de grupos sociais, as ideologias são gradualmente
adquiridas pelos seus membros e, em determinados momentos históricos, mudadas. Por isso, elas
são de natureza relativamente estável. Isso quer dizer que ninguém se transforma em um
socialista, por exemplo, a partir de uma decisão pontual. Várias experiências, interações e
discursos são precisos para adquirir uma ideologia ou modificá-la. O contrário também pode ser
analisado dessa forma. Se as ideologias são gradualmente adquiridas, elas também podem ser
gradualmente ‘desintegradas’ e, assim, membros de grupos deixam de acreditar no que antes o
identificava como daquele grupo. Assim, podemos afirmar, seguindo van Dijk (2006), que as
ideologias têm várias funções sociais e cognitivas: i) elas organizam e consolidam as
representações sociais dos grupos; ii) são as bases principais para a elaboração dos discursos dos
membros dos grupos como membros dos grupos; iii) elas possibilitam que membros de grupos
organizem e coordenem suas ações e interações em propósito dos interesses coletivos. Por fim,
as ideologias funcionam como parte da interface sociocognitiva entre as estruturas sociais dos
grupos, de um lado, assim como seus discursos e suas outras práticas sociais, de outro.

(Des)legitimação: uma prática social, discursiva e cognitiva


Neste ponto, discutimos a nossa proposta para o estudo do processo de (des)legitimação,
a partir da perspectiva da Análise Cognitiva do Discurso. Isso implica construir um aparato teórico-
metodológico que dê conta de aspectos sócio-cognitivos, interacionais e discursivos. Entendemos

299
a (des)legitimação de atores e grupos sociais como uma atividade resultante de complexas
relações sociais, norteada por modelos cognitivos, sendo o discurso uma importante força
propulsora para tal processo. Essa perspectiva só pode ser sustentada se entendermos a natureza
corporificada e discursiva da mente (Lakoff, 1987; van Dijk, 2006); se assumirmos a língua, em sua
prática discursiva, como uma atividade humana para a organização do mundo, a partir do
processo de categorização (Marcuschi, 2007; 2003; Mondada, 2000, 1997); se situarmos a
construção da (des)legitimação na ‘esfera pública’, nas ações do discurso, e não apenas atrelada a
instituições privilegiadas (Habermas 1996; 1999 [1973]); e, por fim, se tomarmos como referência
uma perspectiva de sociedade como algo que se constitui em um contínuo processo de
estruturação, em uma relação de estabilidade-instabilidade, resultante da ação de sujeitos
reflexivos (Giddens, 2003).

(Des)legitimação: leituras sociais, ações de categorização


A (des)legitimação é um processo que se realiza a partir de distintas práticas sociais,
sejam elas as mais cotidianas, tais quais as conversas entre vizinhos; nas relações familiares,
quando a mulher assume papéis tradicionalmente machistas; em notícias publicadas em jornais;
em uma sentença judicial; ou em um pronunciamento do Presidente da República. Isso quer dizer
que a legitimação não é ditada por uma instituição única, mas resulta de uma complexa rede de
relações sociocognitivas: esse é um dos pressupostos básicos deste trabalho. Situar legitimação
como um processo também implica assumir uma perspectiva teórica específica sobre esse
fenômeno: ele não é homogêneo, é de natureza instável, é construído historicamente e é
socialmente contextualizado. O processo de (des)legitimação resulta de atividades
sociocognitivas, nas quais grupos e atores sociais são categorizados, a partir de efeitos prototípicos
ou estereotipados de representações sociais, que se alinham em um continnum.
Por isso, nenhum grupo pode ser definitivamente estabelecido como legitimado ou
deslegitimado, pois tal condição resulta da ação intersubjetiva de sujeitos, em processos
históricos. Governos, grupos sociais e domínios discursivos em geral estão em constante tensão no
processo de legitimação x deslegitimação. Para se chegar a essa compreensão, foi relevante a
diferenciação estabelecida por Habermas (1996; 1999 [1973]) entre as noções de legitimação e
legitimidade: enquanto o primeiro é uma construção dinâmica, a segunda prevê uma relação
estagnada entre os distintos grupos sociais e a sociedade.
Entendendo a legitimação como um processo, poderíamos, em uma relação analógica,
explicá-la como uma ‘leitura’ da sociedade sobre a ação de governos, movimentos sociais, grupos

300
étnicos etc., em um momento histórico específico. Essas ações seriam o ‘texto’ e a categorização
como (des)legitimado uma atividade resultante dos diversos modelos cognitivos construídos a
partir da leitura desse texto. Para melhor explicar a analogia, é preciso situar o texto como um
processo, que se concretiza apenas na interação autor-leitor, em uma relação sócio-interativa,
onde ambos são sujeitos na construção dos sentidos que emergem do ‘mundo textual’,
diferentemente da idéia de texto como um produto, uma estrutura definida, pronta e acabada,
cabendo ao leitor-passivo apenas decodificá-lo. Situar texto como um processo significa assumir
que a sua compreensão nunca é a mesma para todos os leitores, pois é exatamente na atividade
de leitura que os sentidos serão construídos.
Mas é importante ressaltar que existem elementos delimitadores no texto que
restringem as possibilidades de sentido. Isso quer dizer que, se a interpretação de um texto
sempre resulta de uma relação única entre autor-leitor, essa relação não é descorporificada de
elementos sociocognitivos e históricos. Por isso, o processo de compreensão está sempre atrelado
aos conhecimentos compartilhados, às ideologias e às relações sociais previamente construídas
entre os interlocutores. A partir dessa analogia, podemos dizer que o processo de (des)legitimação
se dá a partir de elementos que compõem as nossas performances cognitivas: categorizar, atribuir
valores, inferir, elaborar modelos mentais, entre outros. É nesse sentido que queremos defender
a noção de legitimação: uma ação resultante das ‘leituras de mundo’, compartilhada e construída
por atores críticos, que, a partir das suas habilidades sócio-cognitivas, interagem em um complexo
‘texto social’, elaborado continuamente, por uma vastidão de autores/leitores, sendo que estes
papéis também estão em constante alternância.
Não podemos ignorar, entretanto, que nesse processo de ‘elaboração textual’, há
discursos que se impõem, oprimindo outros. A construção desse texto é, antes de tudo, um
processo de conflito e negociação entre os distintos grupos (instituições de poder, grupos de
excluídos) e atores sociais. A relação que se estabelece no constante processo de (des)legitimação
não segue um movimento único: de cima para baixo, ou seja, das instituições de poder para o
povo. Também se faz necessário uma resposta de baixo para cima, do povo para as instituições,
seja em uma ação de resistência ou de acomodação. Se entendermos a legitimação como
resultante da ‘leitura’ de um momento específico de uma sociedade, essa leitura necessariamente
se dá numa complexa articulação entre os diversos elementos que constroem esse ‘texto’, ou seja,
a ação de atores e grupos sociais que são, ao mesmo tempo, autores/leitores no processo de
composição da história.

301
Além da diferenciação estabelecida por Habermas (1996; 1999 [1973]) entre as noções de
legitimação e legitimidade, outra importante contribuição dos seus estudos para esta investigação
foi deslocar o enfoque da legitimação do domínio jurídico (onde estava reduzido apenas às
decisões legais) e o situar no âmbito discursivo: para o autor, é nas práticas discursivas onde se dá
a construção do (i)legítimo (Habermas, 1996; 1999 [1973]). Isso resulta de uma forte crítica à
tradição do positivismo jurídico. Ainda persiste neste domínio a concepção que atrela o legal ao
legítimo, sem distinguir o que é apenas uma prática institucional (por mais poderosa que seja), das
complexas relações sociais, que não podem ser reduzidas a apenas um grupo discursivo. Sendo
assim, Habermas (1996), propõe a ‘função integrada da lei’, concepção na qual as leis apenas são
legitimadas a partir do acordo de todos os cidadãos, em um processo discursivo amplo e
igualitário. O autor defende que o conceito de legitimação discursiva está na tensão entre a
facticidade do positivismo (fatos) e a validade racionalista (normas) (Habermas, 1996).

Analisando Discursos
Começa o julgamento dos policiais militares envolvidos no massacre de Eldorado do
Carajás (FSP, 16/08/1999)

São poucas as chances de condenação em massa dos 150 policiais militares indiciados
pela operação que resultou na morte de 19 sem-terra em Eldorado do Carajás (PA), em 17 de abril
de 1996. Pela fragilidade do inquérito, se o júri se detiver somente nos aspectos técnicos, poderá
haver poucas condenações.

O julgamento, que será o mais longo do país, começa hoje na capital do Estado, Belém, e deve
durar até dezembro. Saiba o que pode acontecer.
AS AUTORIDADES
Movimentos de direitos humanos pediram a inclusão do governador do Estado, Almir
Gabriel (PSDB), do secretário da Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, e do comandante-geral da
PM do Pará à época, coronel Fabiano Diniz Lopes, na lista dos réus. Contra eles pesavam os
seguintes fatos:
1. o comandante da operação, coronel Mário Colares Pantoja, de Marabá, disse que obedeceu
ordens do governador, por intermédio do secretário e do comandante da PM, para desobstruir a
rodovia PA-150 de qualquer modo;
2. a desobstrução da rodovia foi feita sem autorização judicial;
3. no dia do massacre, foram feitas 26 ligações entre o batalhão da PM em Marabá e a sede do
governo do Estado, a Secretaria da Segurança e o comando da PM. Metade delas foi feita após as
mortes;
4. as autoridades se defenderam afirmando que os comandantes da operação agiram com

302
violência por conta própria. Disseram também que, nos telefonemas, apenas pediam informações
sobre a ação. As autoridades não foram denunciadas.

OS COMANDANTES
As maiores chances de condenação recaem sobre os dois comandantes da operação: o coronel
Pantoja, que liderou 85 PMs de Marabá, e o major José Maria Oliveira, que comandou 68 policiais
de Parauapebas. Se forem condenados por homicídio doloso (intencional), podem pegar de 12 a
30 anos de prisão.
O coronel Pantoja foi quem planejou cercar os sem-terra na estrada. Cenas gravadas por uma TV
mostram que seus homens foram os primeiros a atirar.
Pedro Alípio, o motorista do ônibus que transportou os PMs de Marabá para Eldorado do Carajás,
afirmou ter ouvido o coronel dizer aos policiais: "Missão cumprida, ninguém viu nada", após o
massacre, na volta.
Exames nos corpos indicam que os PMs agiram com intenção de matar e, em alguns casos,
executaram suas vítimas.
Pantoja tinha um oficial (capitão Figueiredo) infiltrado no acampamento dos sem-terra, conforme
descobriu a Polícia Federal. Relatório da PF diz que a Polícia Militar, com as informações do
infiltrado, "tinha completo conhecimento da situação, inclusive da disposição de enfrentamento
por parte dos integrantes do MST".
Isso dificulta a defesa do coronel, que alega que a PM foi surpreendida com a reação dos sem-
terra. Várias testemunhas -inclusive independentes dos sem-terra- disseram que os PMs usavam
fardas sem a biriba (identificação do nome e posto que é afixada no bolso da camisa). Isso pode
indicar premeditação.
O major Oliveira distribuiu as armas para seus comandados sem respeitar a regra de identificar -
por meio de um documento chamado cautela- quem as estava recebendo. A acusação vai alegar
premeditação e a intenção de dificultar a identificação

Esta é a notícia do início do julgamento de Eldorado dos Carajás. Identificamos, já no


título, um dos aspectos ressaltados anteriormente: as mortes dos sem-terra passam a ser
categorizadas mais recorrentemente como ‘massacre’ (“Começa o julgamento dos policiais
militares envolvidos no massacre de Eldorado do Carajás”). Entretanto, o atributo relacional à
categoria ‘polícia’ se dá a partir do item lexical envolvidos, que opera na valoração dessa
categoria. Assim, apesar de as mortes terem sido conceituadas como ‘massacre’, os policiais não
são tratados como sujeitos responsáveis pela ação, pois o léxico ‘envolvido’ é semanticamente
vago e não define quem provocou tais mortes. Dessa forma, reconhece-se que houve assassinato
em massa, mas não os culpados.
Essa mesma relação de vagueza semântica pode ser observada no lead, no trecho
destacado: “*...+ pela operação que resultou na morte de 19 sem-terra em Eldorado do Carajás
(PA) *...+”. Há, neste enunciado, marcas do discurso das instituições do poder (do Governo

303
Estadual e da polícia), identificadas no atributo dado à ação policial (“operação que resultou”),
onde, novamente, não há a identificação dos sujeitos que agiram nas mortes dos sem-terra. O
massacre está sendo tratado como uma casualidade, ou uma tragédia. Também no lead é possível
identificar um dos aspectos que apontamos como fundamental para esta análise: a
interdiscursividade. O discurso jurídico, neste exemplo, é assumido pelo jornal passivamente, sem
qualquer relação de criticidade, como notamos neste período: “Pela fragilidade do inquérito, se o
júri se detiver somente nos aspectos técnicos, poderá haver poucas condenações”. Não há um
questionamento, ou mesmo uma explicação, do que seria essa “fragilidade do inquérito”. É
apenas a voz da Justiça assumida no discurso do jornal. Antes mesmo deste período citado,
observamos que o início do lead é construído a partir da voz do poder judiciário, pois a notícia já
começa com uma avaliação fundamentada em um argumento jurídico: “São poucas as chances de
condenação em massa dos 150 policiais militares *...+”.
O segundo parágrafo do texto traz questões relevantes sobre as relações de poderes
entre os domínios jornalístico e judiciário. Enquanto nas principais estruturas de relevância da
notícia identificamos a subserviência do jornal em relação ao discurso judiciário, o
desenvolvimento do texto segue outro caminho. O discurso assumido pelo jornal é o de um poder
paralelo ao jurídico, com força para levantar questionamentos e análises críticas – incluindo
também o poder executivo. Observemos o último enunciado do parágrafo, que serve como um
introdutor aos textos-resumos que virão a partir de intertítulos: “O julgamento, que será o mais
longo do país, começa hoje na capital do Estado, Belém, e deve durar até dezembro. Saiba o que
pode acontecer”. O enunciado destacado por nós em itálico aciona a mudança discursiva do jornal.
Os textos-resumos operam como um ‘passo a passo’ sobre o julgamento. Apenas como
estratégia de elaboração textual, poderia ser tido como uma ‘simplificação’ do desenvolvimento
do caso para facilitar a compreensão do leitor. O efeito de sentido dessa estratégia, entretanto,
opera em uma construção discursiva do jornal sobre o que é ‘o caso’, assim como em uma
avaliação de como atores e grupos sociais específicos atuaram e estão atuando no mesmo.
Entendemos que essa estratégia discursivo-cognitiva é de forte caráter ideológico e opera na
elaboração dos modelos mentais, pois tem um efeito enciclopédico no tratamento do caso, que
vai atuar mais especificamente na construção da memória episódica e na representação mental
sobre Eldorado de Carajás.
Analisemos alguns dos elementos que exemplificam nossas considerações. Sob as formas
de pressuposições e implicitudes, alguns elementos operam na construção do quadro que o jornal
pretende montar. No primeiro intertítulo (“As Autoridades”), o pressuposto de todos os

304
argumentos elencados é uma reivindicação dos “movimentos de direitos humanos”. Nessa teia
discursiva, a voz de tais movimentos passa a ser assumida como a voz do próprio jornal, que se
auto-atribui legitimidade para fazer tais críticas e reivindicações. No item dois, por exemplo, “a
desobstrução da rodovia foi feita sem autorização judicial”, apesar de o enunciado se
fundamentar numa ação de outro domínio – o jurídico –, o efeito de sentido principal é que é o
jornal que tem o poder de trazer esse discurso para a opinião pública, e assim respaldá-lo. No item
três, identificamos outra vez a categorização do ‘episódio’ como massacre e a relação contextual
dessa categorização parece-nos relevante, pois esse texto foi escrito sob a fundamentação do
discurso de movimentos de direitos humanos. No final do item três, identificamos outra vez o
jornal como a instituição ‘julgadora’ do caso. No enunciado “As autoridades não foram
denunciadas.”, fica implícita a inoperância das demais instituições citadas no texto – o batalhão da
PM em Marabá; a sede do governo do Estado; a Secretaria da Segurança e o comando da PM – e a
autoridade do jornal em questionar tais instituições.
No segundo texto-resumo observamos uma hibridização do discurso do jornal com a dos
movimentos sociais. Entretanto, é importante ressaltar duas questões sobre esse aspecto: i) a
interface contextual, como já apontamos anteriormente, pois esse texto foi produzido a partir de
textos-fontes dos movimentos sociais (como foi citado desde o inicio); ii) e o mais relevante para
nossa investigação: ainda que mesclando o seu discurso ao discurso de grupos que não fazem
parte das instituições do poder, ou seja, se posicionando contrário a tais instituições, não é
exatamente o discurso do MST que é trazido para compor esse quadro. Então, retoma-se uma
questão que discutíamos anteriormente: o jornal passa a agir discursivamente pela deslegitimação
do massacre de Eldorado de Carajás. Entretanto, tal ação está relacionada a esse caso específico,
e, pelo que temos analisado até aqui, não pode ser atrelada à legitimação do próprio MST como
movimento social. O jornal utiliza diferentes estratégias para estabelecer esse ‘limite’. Nesta
notícia específica, essa questão pode ser identificada a partir dos distintos discursos reportados
para a reconstituição do massacre, sem que os sem-terra sejam citados sequer uma vez.
Observemos nos exemplos retirados do texto, no intertítulo “As Autoridades”.
1 - “Movimentos de direitos humanos pediram a inclusão do governador do Estado, Almir
Gabriel (PSDB), do secretário da Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, e do comandante-geral da
PM do Pará à época, coronel Fabiano Diniz Lopes, na lista dos réus”.
2 - “Cenas gravadas por uma TV mostram que seus homens foram os primeiros a atirar”.

305
3 - “Várias testemunhas -inclusive independentes dos sem-terra- disseram que os PMs
usavam fardas sem a biriba (identificação do nome e posto que é afixada no bolso da camisa). Isso
pode indicar premeditação *...+”
4 - “Pantoja tinha um oficial (capitão Figueiredo) infiltrado no acampamento dos sem-terra,
conforme descobriu a Polícia Federal.”

Considerações Finais
Vários outros aspectos ainda poderiam ser destacados nessa notícia, que inicia a
cobertura do jornal sobre o julgamento de Eldorado de Carajás. Entretanto, pontuamos as
questões que poderiam melhor esclarecer a nossa proposta investigativa. Nessa análise, o objetivo
principal foi explorar como a intertextualidade e a interdiscursividade foram utilizadas pela FSP
para a construção do seu próprio discurso; que efeito teve esse processo na construção da
(des)legitimação do massacre de Eldorado de Carajás e como pode-se estabelecer uma relação
com o processo de (des)legitimação do MST.

Referências

BEAUGRANDE, Robert. 1997. New Foundations for a Science of Text and Discourse: Cognition,
Communication, and the Freedom of Access to Knowledge and Society. New Jersey, Ablex
Publishing Corporation.

CONDOR, S. & ANTAKI, Condor. 2000. Cognición social y Discurso. In: Van Dijk, T.A. (org.). El
Discurso como Estructura y Proceso. Barcelona, Gedisa Editorial, p.p 453-490.

FAIRCLOUGH, Norman. 2001. Discurso e Mudança Social. Brasília, Editora da UnB.

FLOWER, Linda. 1994. The Construction of Negotiated Meaning. A Social Cognitive Theory of
Writing. Southern Illinois University.

GIDDENS, Anthony. 2003. A Constituição da Sociedade. São Paulo, Martins Fontes.

HABERMAS, Juergen. 1999 [1973]. A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro,
Edições Tempo Brasileiro.

_______________.1996. Between Facts and Norms. Cambridge, Institute of Tecnology Press.


LAKOFF, George. 2004. Don’t Think of an Elephant! Berkeley, Chelsea Green.

___________. 1990. Women, Fire, and Dangerous Things. What Categories Reveal about the
Mind. Chicago, The University of Chicago Press.

LAKOFF, G. & JOHNSON, M. 1999. Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its Challenge
to Western Thought. New York, Basic Books.

306
MARCUSCHI, Luiz Antônio. 2007. A Construção do Mobiliário do Mundo e da Mente: Linguagem,
Cultura e Categorização. In: Cognição, Linguagem e Práticas Interacionais. Rio de Janeiro, Lucerna.
Série Dispersos, pp. 124-145.

_________________. 2004. Curso de Semântica. Aula 7. Frames, categorias, Campos Léxicos e


Campos Semânticos. Recife, UFPE/PPGL. (Mimeo).

__________________. 2003. Atividades de Referenciação, Inferenciação e Categorização na


Produção de Sentido. In: Feltes, H.P.M (org.). Produção de Sentido – Estudos Transdisciplinares.
São Paulo, Annablume, pp. 239-262

MONDADA, Lorenza. 1997. Processus de Catégorisations et Construction Discursive dés


Catégories. In: Dubois, D. (Org.). Catégorisation et Cognition: de la nova perception au discours.
Paris, Kimé, p.p 291-313.

MORATO, Edwiges. 1996. Linguagem e Cognição. Reflexões de L.S. Vygotsky sobre a Ação
Reguladora da Linguagem. São Paulo, Plexus Editora.

SANTOS, Boaventura Souza. (org.) 2004. Um Discurso Sobre a Ciência. São Paulo, Cortez.

________________. 2003. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. São Paulo, Editora Graal.

VAN DIJK. Teun. A. 2008. Discourse and Context. A Sociocognitive Approach. Cambridge,
Cambridge University Press.

______________. 2006. Discourse, Context and Cognition. In Discourse Studies. Vol 8(1): 159-177.
London, Sage.

______________. 2000. Ideología. Una Aproximación Multidisciplinaria. Barcelona, Gedisa


Editorial.

________________. 1988. News as Discourse. New Jersey, Lawrence Erlbaum Associetes.


WODAK, Ruth. 2006. Mediation Between Discourse and Society: Assessing Cognitive Approaches
in CDA. Discourse & Society 8(1): 179-190, London, SAGE.

307
DEFINIÇÕES E INDEFINIÇÕES NO FUNCIONAMENTO DOS CENTROS DE
ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO (AEE) – UM ESTUDO PILOTO NA
CIDADE DE FORTALEZA

Lissa Mara Saraiva Fontenele (UFC)

Esta pesquisa faz parte do Projeto Integrado de Pesquisa Múltiplos letramentos, Identidades e
Interdisciplinaridades no Atendimento Educacional à Pessoa Deficiente e conta com o apoio do
CNPq. A pesquisa tem como objetivo investigar a interdisciplinaridade no Atendimento
Educacional Especializado (AEE) à pessoa deficiente a fim de compreender um dos problemas
registrado no projeto anterior: o despreparo dos docentes para relacionarem-se com deficientes.
Uma das causas percebidas foi que os vários profissionais envolvidos na política de inclusão do
MEC na verdade trabalham de forma isolada, sem contato entre si. Isso acaba se mostrando
danoso para todos os envolvidos, pois além de não contribuir para o crescimento da pessoa com
deficiência, é altamente comprometedor para a política do governo. Assim, nesta pesquisa é
fundamental olhar para as interdisciplinaridades – focalizando a relação entre os conceitos de
múltiplos letramentos, de Brian Street, identidades e interdisciplinaridades – e investigar de que
forma múltiplos letramentos nas relações interdisciplinares contribuem para as identidades
profissionais no AEE. A metodologia de pesquisa será a Análise de Discurso Crítica (ADC)
(Fairclough, 1999) em conjunto com a pesquisa qualitativa etnográfica. Tendo como preocupação
primordial a ética, os métodos do trabalho de campo desta pesquisa serão a observação
participante, as entrevistas, o registro de diários e as narrativas desenvolvidas com os profissionais
do AEE (GEERTZ, 1978, 1983; JONES, MARTIN-JONES, E BHATT, 2000; MAGALHÃES, 2006; RADHAY,
2008; RESENDE, 2009).

Palavras-chave: Interdisciplinaridade, Análise de Discurso Crítica, Pesquisa Qualitativa Etnográfica

Introdução
Este artigo é parte de minha pesquisa sobre os múltiplos letramentos e a formação das
identidades profissionais em centros de Atendimento Educacional Especializado (de agora em
diante: AEE). Esta pesquisa, por sua vez, faz parte do Projeto Integrado de Pesquisa Múltiplos
letramentos, Identidades e Interdisciplinaridades no Atendimento Educacional à Pessoa Deficiente,
orientado pela professora Dra. Izabel Magalhães e conta com o apoio do CNPq.
Este é um projeto piloto onde exponho minhas primeiras percepções acerca do
funcionamento de um AEE na cidade de Fortaleza. Digo primeiras percepções visto que comecei
minha pesquisa de cunho etnográfico em março deste ano e ainda estou tentando permissão
junto ao Conselho de Ética para iniciar as entrevistas. Assim, trago aqui algumas observações de
meus diários de pesquisa que foram escritos a partir de visitas a essa Organização não
Governamental (de agora em diante: ONG) que chamarei de AEE1.

308
Aqui também faço uma breve análise de alguns documentos oficiais que criaram e
estabeleceram os critérios de funcionamento desses AEE comparando com a realidade que
percebi em meus primeiros contatos nessa ONG.
Antes, porém, é importante definir o que são os AEE. Vejamos sua definição de acordo com
o documento oficial elaborado pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Secretaria de Educação
Especial (SEESP):

O atendimento educacional especializado tem como função identificar, elaborar e


organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para
a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas. As
atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-
se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à
escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos
alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela.
Dentre as atividades de atendimento educacional especializado são
disponibilizados programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens
e códigos específicos de comunicação e sinalização e tecnologia assistiva. Ao
longo de todo o processo de escolarização esse atendimento deve estar articulado
com a proposta pedagógica do ensino comum. O atendimento educacional
especializado é acompanhado por meio de instrumentos que possibilitem
monitoramento e avaliação da oferta realizada nas escolas da rede pública e nos
centros de atendimento educacional especializados públicos ou conveniados.
(MEC/SEESP: 2007, p. 10)

Alguns pontos que podemos destacar aí é a preocupação com a plena participação dos
alunos que apresentam necessidades específicas, contando para isso com atividades nos AEE que
sejam complementares e/ou suplementares à formação da escola regular; também é prevista uma
articulação entre esse tipo específico de atendimento com a proposta pedagógica da escola
regular. Porém, falta no documento uma maior especificação a respeito de como essa articulação
pode ser feita; além disso, não se encontra aqui delineado quais atividades deveriam ser
desempenhadas pelos AEE que poderiam ser consideradas complementares e/ou suplementares.
Considero o esclarecimento dessas questões fundamental para se alcançar a desejada
performance dos AEE mencionada no documento, qual seja: a “...formação dos alunos com vistas
à autonomia e independência na escola e fora dela”, o que do contrário, inviabilizaria o sucesso do
projeto.
Para entendermos melhor o contexto da educação especial e inclusiva no Brasil farei um
breve apanhado histórico que começa na LDB de 1961 e se estende até a LDB atual, de 1996. Em
seguida, apresento os objetivos desta pesquisa piloto e, na sequência, exponho o embasamento
teórico/metodológico no qual ela se ancora. Para finalizar, trago algumas observações de diários de

309
pesquisa que lançam as primeiras luzes sobre o funcionamento deste AEE, enfocando algumas de suas
práticas e a dinâmica entre os profissionais que ali trabalham.

Delimitação do tema
A preocupação com a educação inclusiva aqui no Brasil pode ser datada a partir de 1961 na
LDB n° 4024/61 cap. 3, artigos 88 e 89 que, na época, usava o termo normalmente usado:
“excepcionais”, prometendo ainda apoio com “bôlsas de estudos, empréstimos e subvenções” à
iniciativa privada:
Art. 88. A educação de excepcionais, deve, no que fôr possível, enquadrar-se no
sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade.
Art. 89. Tôda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos estaduais de
educação, e relativa à educação de excepcionais, receberá dos poderes públicos
tratamento especial mediante bôlsas de estudo, empréstimos e subvenções.

A Constituição de 1988 oficializa definitivamente esta preocupação do Estado em inserir os


deficientes “na rede regular de ensino” e fala de “programas... de atendimento especializado”
para deficientes:
atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208, inciso III)

criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os


portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração
social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o
trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos,
com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos (art. 227, par. 1°,
inciso II).

Em 1990 é lançado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – lei n° 8.069/90 onde seu
artigo 54 versa sobre o “atendimento educacional especializado aos portadores com deficiência”
ser feito de preferência, na rede regular de ensino.
Em 1994 a Conferência Mundial de Educação Especial formulou a Declaração de Salamanca
– onde foram definidas políticas de inclusão na educação para pessoas com deficiência. Em
consonância com essa tendência mundial de inclusão de pessoas deficientes no ensino regular, a
LDB n° 9394/96 dedicou todo o capítulo V à Educação Especial. O artigo 58 é claro quando
menciona a questão da inclusão:

Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade
de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para
educandos portadores de necessidades especiais. (grifo meu)

E no art. 59 o Estado assegura a capacitação dos professores para lidarem com esse público:

310
Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades
especiais:
III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para
atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados
para a integração desses educandos nas classes comuns. (LDB n° 9394/96, cap. V,
art. 59, inciso III)

Contudo, o que pode ser observado através de pesquisas realizadas recentemente


(Magalhães, 2009; Sato, 2008; Batista Júnior, 2008) indicam que na realidade isso nem sempre
acontece. Uma das narrativas de professores que destaco aqui da pesquisa de Sato (2008, p. 75) é
de uma professora itinerante1 que considera o curso de capacitação ministrado aos professores
que vão lidar com alunos especiais muito superficial visto ser composto de somente seis
encontros, e o considera também muito limitado em sua capacidade de dar conta da demanda,
pois nem todos os professores têm acesso a ele. Segundo essa professora explica logo abaixo, a
falta de um curso completo e de amplo acesso aos professores também gera situações
estressantes no momento da sensibilização do corpo docente das escolas para que adaptem sua
prática à chegada de alunos com alguma deficiência:

(...) e aí a gente, normalmente, a gente tenta pelo bom senso, né, por uma
pedagogia do amor, se não a gente vai pela legislação, quando você mostra pra
ele a legislação, que ele não está fazendo favor em aceitar esse aluno na escola,
é um direito do aluno estar aqui, hoje nem mesmo a matrícula desse aluno pode
ser negada, a lei garante a matrícula dele, aí quando você mostra a adequação
curricular, como ela deve ser feita, documentada na forma da lei, aí eles fazem,
não fazem sorrindo, fazem por fazer (...). (SATO, 2008, p. 78) (Grifos da
pesquisadora)

O despreparo de professores e professoras e a consequente dificuldade para lidar com a


situação de ter um aluno ou aluna com alguma deficiência também fica claro no depoimento de
dois docentes para a mesma pesquisadora (SATO, 2008, p. 80):

(...) agora os DM, Síndrome de Down, a gente não tinha nada prévio para
preparar a gente a lidar com a situação. Uma coisa é a gente saber que existe essa
necessidade, né, especial, a gente ouve falar, vê e tal, mas ce tá lidando com a
situação, é outra coisa, né? Você ter um filho, ter um aluno, é diferente. Estar
convivendo com eles.

1
Os professores itinerantes são profissionais da área do Ensino Especial, altamente qualificados que atuavam nas
escolas especiais. Com o esvaziamento da maioria dessas escolas por causa da LDB (SATO, 2008, pp. 66,67) que incluiu
o Ensino Especial no Ensino Regular, esses professores foram realocados para orientarem e treinarem professores do
Ensino Regular que estão lidando com alunos especiais.

311
(...) Essa adaptação à situação, ela vai acontecendo na medida em que você vai
sentindo a necessidade não tem nada assim que te diz “olha” antes.
(...) foi como eu te falei, fui colocado a trabalhar com eles... nem... nenhuma...
nenhum curso. Nada assim, que pudesse ajudar a estar lidando com eles não.
(...) “Executa! Faça! Inclua! Faça Inclusão!”
(Grifos da pesquisadora)

Na pesquisa de Batista Júnior (2008), que investigou os discursos, as práticas de letramento


(práticas de leitura e escrita) e as identidades docentes em relação à inclusão de alunas e alunos
surdos no Ensino Regular, ele também percebeu o despreparo e a insegurança sofrida pelos
professores ao lidar com esses alunos, pois também não haviam recebido nenhum preparo
profissional nem orientação prévia. Eis um breve relato de três professoras ouvidas em sua
pesquisa:

(...) quando eu cheguei aqui, me colocaram numa sala com 40 ouvintes e cinco
surdos e (...) se vira, literalmente, se vira, não oferece um curso,não oferece um
PREPARO pra esse profissional, assim como eu fui jogada, assim muitas aí são.
(Ana Kalyne)

Até esse ponto, oito anos atrás não, nem se falava quase em preparar professor.
O professor sempre é que corre atrás inicialmente quando ele quer atuar em
uma área diferente, ele corre atrás pra pra ele se formar, pra ele se preparar,
depois quando aparece uma oportunidade que é dada pela Secretaria de Estado
de Educação (antiga Fundação Educacional). (Mara)

(...) então assim, há um incentivo? Não, os cursos acontecem, mas não para
abranger todo mundo. Aí, por exemplo, na pós-graduação, a gente está fazendo,
mas todo mundo está bancando do bolso, e está fazendo em dois dias no horário
noturno. Ou seja, no horário que a gente teria para descansar, a gente continua
estudando, não tem uma coordenação que você é liberado para poder estudar,
sentar em casa, digitar os seus textos, tal, não tem. Então assim, não vejo muito
como incentivo não, tá? (Cleia) (BATISTA JÚNIOR, 2008, p. 65, 66) (Grifos do
pesquisador)

Tendo em vista essas constatações de pesquisas realizadas em escolas regulares é que


minha pesquisa intitulada: Múltiplos Letramentos e a Formação das Identidades Profissionais no
Atendimento Educacional Especializado (AEE) – uma pesquisa etnográfica crítica, da qual
apresento aqui um estudo piloto em um AEE de Fortaleza, tem por objetivo investigar dois Centros
de Atendimento Educacional Especializado (AEE) na cidade de Fortaleza, objetivando examinar os
Letramentos presentes nos discursos dos professores, assim como também suas identidades
docentes.
É importante compreender o funcionamento desses centros porque sua própria existência
e suas respectivas atribuições ainda não são consenso nem entre os profissionais que trabalham

312
nesses centros nem entre a equipe técnica organizada pelo governo que participou de sua
elaboração – ainda existem muitas dúvidas e questões a serem sanadas. Isso fica claro quando se
observa mais atentamente alguns documentos desenvolvidos pelos próprios técnicos do governo
e quando se visita alguns desses centros. Como exemplo, cito um documento elaborado pela
Secretaria de Educação Especial (2007, p. 14) que coloca como um dos primeiros desafios, a ser
enfrentado pelo AEE e pelas próprias escolas de ensino regular, o diagnóstico e o tratamento
adequado a cada tipo e grau deficiência mental, visto que esse envolve uma gama de conceitos e
variedades de abordagens. Isso porque,

A grande dificuldade de conceituar essa deficiência trouxe consequências


indeléveis na maneira de lidarmos com ela e com quem a possui. O medo da
diferença e do desconhecido é responsável, em grande parte, pela discriminação
sofrida pelas pessoas com deficiência, mas principalmente por aquelas com
deficiência mental. (p. 15)

Ainda segundo o documento, essa dificuldade em lidar com o diferente ou desconhecido


adviria do fato de que a escola tradicional tem um cunho conservador e elitista muito forte – daí a
resistência de muitos profissionais da área em receber esses alunos na escola. Frente a isso, o
documento é muito contundente ao concluir que:

Por todas essas razões, o Atendimento Educacional Especializado para alunos com
deficiência mental necessita ser urgentemente reinterpretado e reestruturado. (p.
15)

Já que o próprio Estado reconhece a necessidade de uma definição mais específica e exata
do que é o AEE, a questão que levanto é: como estes AEE estão funcionando neste momento?

Objetivos
- Investigar até que ponto o conceito de AEE preconizado pelo governo é viável, na prática,
em um AEE em Fortaleza.
- Identificar, através das observações realizadas até o momento, quais são algumas
dificuldades vivenciadas no dia-a-dia dos profissionais deste AEE que impossibilitam sua melhor
adequação ao modelo oficial.
- Perceber até que ponto a interação entre os profissionais que trabalham neste AEE é
reconhecida e incentivada e que implicações isso pode acarretar no desenvolvimento dos meninos
e meninas que o frequentam.

313
Embasamento teórico
Como foi constatado nas pesquisas mencionadas acima (MAGALHÃES, 2009; SATO, 2008;
BATISTA JÚNIOR, 2008), há um despreparo do professor e da professora para lidar com alunos e
alunas com deficiências. E também essas pesquisas mostraram que isso é muito comum no
universo das escolas públicas do Ensino Regular o que acaba acarretando para o professor e para a
professora um alto grau de tensão e frustração ao perceberem que, por não terem nenhum
conhecimento prévio desse novo contexto de ensino, sua prática docente fica comprometida.
Com base então nessa realidade é que minha pesquisa, que está começando a se
desenvolver este ano no doutorado, busca investigar a interdisciplinaridade no Atendimento
Educacional Especializado (AEE) à pessoa com deficiência, tentando compreender a natureza
desses problemas de despreparo de professoras e professores. É importante compreender esse
processo interdisciplinar entre os profissionais que atuam no AEE porque, nesses centros,
profissionais de várias áreas atuam em conjunto no diagnóstico e no tratamento das deficiências –
como os profissionais da educação, da saúde, da psicologia e da assistência social. Assim, uma boa
integração entre esses profissionais é fundamental para estimular o crescimento das pessoas com
deficiências com vistas à sua integração como membros da sociedade.
Para desenvolver essa análise, usarei os conceitos de letramento (STREET, 1984, 1993,
1995, 2000; KLEIMAN e MATÊNCIO, 2005; KNOBEL, 2007; ROJO, 2009; RIOS, 2009), de identidades
(MAGALHÃES, 1996, 2005, 2006, 2008) e de interdisciplinaridades (KLEIMAN E MORAES, 1999;
COSTA, 2008). Apesar de não trabalhar ainda com esses conceitos aqui neste artigo, apresentarei
brevemente cada um deles a fim de contextualizar melhor minha pesquisa.
A Teoria Social do Letramento, que teve sua origem na obra de Brian Street (1984, 1993,
1995, 2000), entende o processo de Letramento como envolvendo muito mais do que a leitura e a
escrita. Isso porque ela também reconhece a importante influência da diversidade cultural e das
diferentes relações sociais que valoram a leitura e a escrita de maneiras diferenciadas de acordo
com seus contextos sociais (RIOS, 2009, p. 49, 50). E é fundamental perceber que um dos
desdobramentos do fato de que o letramento e a linguagem fazem parte das culturas, das
sociedades e dos grupos étnicos é que elas também estão sujeitas à dominação pelas instituições
que controlam o ensino (como por exemplo, a escola) e as formas “padrão” de letramento – como
a imprensa.
Ainda segundo Street (1993, p. 12; 1995, p. 162 apud RIOS, 2009, p. 60), a Teoria Social do
Letramento pode ser integrada à Análise de Discurso Crítica e a algumas abordagens de etnografia
com o objetivo de dar conta de teorias de poder e de ideologia. Isso porque ambas concordam em

314
pontos cruciais como: o letramento está embutido na linguagem, ambas possuem em seus
contextos de formação alguma teoria social e, por fim, consideram como indissociável a relação
entre linguagem e prática social – reconhecendo como igualmente importantes para a análise
tanto as linguagens expressas na fala e na escrita, quanto suas semioses (RIOS, 2009, p. 62).
Ao se perceber que eventos de letramento são ocasiões onde as pessoas criam,
conjuntamente, significados a partir de suas interações com outros – de forma individual e
coletiva, é possível articular esses eventos de letramento com a construção de identidades, já que
nesses espaços elas se “constroem, recriam seus espaços e possibilitam a quebra, manutenção ou
transformação das práticas por meio dos discursos, contribuindo para novas formações
identitárias” (SATO, 2008, p. 37). Essas formações identitárias fazem parte dos processos sociais
relacionados às transformações econômicas e culturais contemporâneas (GIDDENS, 1991; apud
MAGALHÃES, 2004/2005, p. 108) e não são fixas devido ao fluxo proveniente da modernidade
tardia e pelo fato dessas identidades encontrarem-se situadas no interior do discurso que as
constroem a partir de determinados processos negociados ao longo das interações que são
travadas cotidianamente (MOITA LOPES, 2002).
O reconhecimento da importância da formação das identidades através do discurso tem
consequências também na concepção de seu caráter intrinsecamente contraditório – já que em
cada prática discursiva os sujeitos podem se constituir de forma diferente. É esse meu interesse
nesta pesquisa em desenvolvimento, ou seja, perceber como os múltiplos letramentos, presentes
nas atividades diárias dos vários sujeitos que compõem o corpo de funcionários dos AEE
contribuem para a formação de suas identidades profissionais. Isso é fundamental por duas
questões principais: primeiro, para se perceber o grau de preparo e segurança desses profissionais
ao lidarem com alunos que apresentam deficiências mentais e segundo, para perceber
representações de inclusão ou exclusão em suas práticas, visto que existem relações assimétricas
de poder nos discursos que são inerentes aos diferentes contextos sócio/históricos e econômicos
nos diversos âmbitos societários (FAIRCLOUGH, 2003).
Com estas teorias em mente, pretendo neste artigo, fazer um estudo preliminar de
reconhecimento do funcionamento geral do AEE1, conhecer os profissionais que trabalham ali e
desenvolver minhas primeiras percepções em torno da dinâmica de trabalho desenvolvido entre
eles e as relações interdisciplinares que são travadas ao longo desse processo.

315
Metodologia
A metodologia utilizada nesta pesquisa em andamento é a Análise de Discurso Crítica (ADC, de
agora em diante) em conjunto com a pesquisa qualitativa etnográfica. Abordarei sucintamente
cada uma delas e, em seguida, mencionarei quais aspectos delas faço uso aqui neste artigo.
A ADC usada conjuntamente com a pesquisa qualitativa etnográfica norteará todo o
desenvolvimento da pesquisa – desde a coleta até a análise de dados. Magalhães (2006, p. 72)
assim explica a relação entre a Análise de Discurso Crítica e a pesquisa etnográfica:

Defendemos a etnografia como uma metodologia adequada ao estudo da prática


social. Na perspectiva que adotamos, o discurso (incluindo os aspectos semióticos
ligados à imagem) é uma dimensão da prática social (CHOULIARAKI &
FAIRCLOUGH, 1999). Isso significa que os textos – a materialidade linguística e
semiótica das práticas sociais – precisam ser contextualizados nas práticas, o que
exige um trabalho de campo.

A metodologia de pesquisa qualitativa etnográfica possui como preocupação primordial a


ética – conceito que deve estar presente em todos os âmbitos da pesquisa: desde a escolha dos
métodos e das teorias mais apropriadas para a coleta e análise dos dados, como também na
relação com os participantes ao, por exemplo, explicitar-lhes desde o início da pesquisa “(...) os
objetivos da investigação e os métodos que se pretende adotar...” para que “(...) sejam discutidos
e negociados com os/as participantes, em uma prática de pesquisa que prima pela clareza e pelo
respeito aos sujeitos” (RESENDE, 2008, p. 108). Os métodos do trabalho de campo desta pesquisa
serão a observação, os diários de pesquisa, as entrevistas e as narrativas desenvolvidas com os
profissionais do AEE (GEERTZ, 1978, 1983; JONES, MARTIN-JONES, E BHATT, 2000; MAGALHÃES,
2006; RADHAY, 2008; RESENDE, 2009). Dessa forma, os dados serão gerados através de
entrevistas e uso de diários; e a coleta dos dados se dará com o uso das notas de observação e de
artefatos (que são objetos diversos encontrados nos locais pesquisados, inclusive textos).
Destacando agora a orientação linguística da ADC, Fairclough trabalha com a perspectiva
multifuncional da linguagem de Halliday (1985) porque ela “aborda a linguagem como um sistema
aberto, atentando para uma visão dialética que percebe os textos não só como estruturados no
sistema, mas também potencialmente inovadores do sistema (...) o que lhe provê sua capacidade
teoricamente ilimitada de construir significados” (RAMALHO E RESENDE, 2006, p. 56). Assim, para
Halliday (RAMALHO E RESENDE, 2006, p. 56, 57), existe uma relação íntima entre as funções
sociais da linguagem e a organização do sistema linguístico.

316
Fairclough recontextualiza as macrofunções de Halliday (1985) em significados que
constituem o que Fairclough chama de ordens do discurso (1999, p. 114, 115; 2003, p. 24). Para
ele, as ordens do discurso estão relacionadas a redes de práticas sociais com os elementos:
discursos, gêneros e estilos. Esses elementos controlam e organizam a linguagem nas diversas
áreas da vida social. Dois desses significados serão investigados na pesquisa: o Significado
Representacional, que são relacionados por Fairclough (2003, p.27) aos discursos, que são, ainda
segundo ele, modos de representar o mundo – como valores, crenças e ideias. Assim, cada sujeito
ou grupo social possui uma representação que o atravessa dialeticamente, mesmo que muitas
vezes de maneira imperceptível, e acaba se expressando em seus discursos e em suas práticas.
Identificar os variados discursos nos textos que serão analisados (advindos das transcrições das
entrevistas) auxiliará na percepção dos múltiplos letramentos presentes nos discursos dos
profissionais do AEE e ajudará, consequentemente, na identificação da formação de suas
identidades profissionais.
Outro significado utilizado nas análises das transcrições das entrevistas é o Significado
Identificacional – no qual os estilos são o aspecto discursivo das identidades. Nesse sentido,
segundo Fairclough (2003, p. 159): “Quem você é, é em parte uma questão de como você fala,
como você escreve, assim como uma questão de personificação – como você olha, como você se
considera, e assim por diante.” Observarei nos textos o processo de constituição das identidades
sociais dos participantes dos diversos eventos que eles fazem parte ao longo de suas vidas.
Analisar identidades e como elas são formadas, percebendo que, ao mesmo tempo, outras estão
sendo rechaçadas, é importante em pesquisas críticas porque esse processo envolve relações de
dominação: a escolha de qual identidade será aceita e de qual será rejeitada será fruto de um jogo
de relações de poder entre grupos assimetricamente situados.
Os dados desta pesquisa em andamento serão gerados e coletados em dois centros de
Atendimento Educacional Especializado em Fortaleza. Ambos os centros são organizações não
governamentais que contam com o apoio da população em geral e conseguiram, ao longo de seu
funcionamento, o apoio tanto de instituições governamentais (como do SUS) como de empresas
privadas. Esses centros também têm como características semelhantes o direcionamento ao
atendimento a crianças, adolescentes, jovens e adultos que apresentam necessidades educativas
especiais e contam com uma equipe multidisciplinar com profissionais de várias áreas da
Medicina: Pediatras, Neurologistas, Psiquiatras, e Clínicos Gerais; assim como também: Terapeutas
Ocupacionais, Fonoaudiólogos, Psicólogos, Fisioterapeutas, Enfermeiros, Psicopedagogos,
Pedagogos e Assistentes Sociais.

317
Como já explicitado anteriormente, este artigo enfocará minhas primeiras percepções em
relação ao AEE1 com base em dois dos quatro métodos de pesquisa que serão usados ao longo da
mesma: a observação e os diários de pesquisa. Não foi possível ainda dar início às entrevistas
porque estou esperando o parecer favorável do Conselho de Ética. A preocupação de ter a
aprovação do Conselho de Ética para dar início às entrevistas é também uma das características da
pesquisa etnográfica qualitativa por causa da preocupação em resguardar os sujeitos da pesquisa,
no que diz respeito às suas identidades e também às informações que são passadas por eles. Por
esse motivo, também pedirei aos sujeitos que aceitarem participar da pesquisa que, antes das
entrevistas, assinem o documento chamado: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, onde
consta que concordam em participar da pesquisa e que estão conscientes de que no momento em
que não quiserem mais participar dela poderão desistir sem ter que para isso dar nenhum tipo de
satisfação.

Análises preliminares
O AEE1 é um centro de atendimento multiprofissional destinado a atender crianças, jovens
e adultos com deficiência e já existe há 35 anos. Ele está dividido em 4 células:
- Célula de Atendimento Educacional Especializado: que constitui a parte pedagógica.
- Célula de Atendimento Técnico: que conta com os profissionais das áreas da Psicologia,
Psicopedagogia, Psicomotricidade, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e Fisioterapia.
- Célula de Atendimento Médico: Neurologia e Psiquiatria.
- Célula de Atendimento Familiar: onde os profissionais do Serviço Social incluem as pessoas com
deficiência nos programas de assistência sociais do governo, como – o AEE, programa de saúde,
passe livre e o benefício da assistência social.
Internamente, o AEE é dividido em dois lados separados por um portão: de um lado ficam
as nove salas de aula que, como veremos adiante, são chamadas genericamente de AEE; e do
outro lado ficam as três outras células mencionadas logo atrás. Cada profissional dessas três
células possui sua sala de atendimento.
Já que o Recanto possui um convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da
Secretaria Municipal de Saúde (SMS) esses profissionais das três células recém mencionadas
atendem não só aos alunos matriculados lá, mas também à população em geral que necessita dos
atendimentos que são disponibilizados ali.
Segundo documento elaborado pelo próprio AEE1 (2009) ele atende a 307 alunos e conta
com 13 professores cedidos pela Secretaria Municipal de Educação (SME) e 14 professores cedidos

318
pela Secretaria da Educação Básica do Estado do Ceará (SEDUC). Quanto aos profissionais dos
núcleos de Atendimento Técnico, de Atendimento Médico e de Atendimento Familiar, o
documento não define a origem desses técnicos – se são cedidos por algum órgão do governo, se
são voluntários ou se são pagos com os recursos da própria ONG – ou ainda, se existem as três
situações. Com a continuidade de minhas visitas à instituição tentarei perceber esses aspectos
também já que eles dizem muito sobre a estabilidade dos profissionais ali, e é sabido que, onde há
muita troca de profissionais, isso na maioria das vezes acarreta uma perda no andamento de
projetos e no próprio desenvolvimento dos alunos que estão sempre tendo que se adaptar a
novas formas de trabalho.
Conforme já mencionado neste trabalho, um dos objetivos deste meu projeto piloto é
perceber se a instituição incentiva e dá meios para que ocorra a interação entre os muitos
profissionais que a compõe e também entender como acontecem essas relações interdisciplinares.
Procurarei conhecer essa realidade primordialmente a partir de minhas visitas ali, mas também
analisarei o documento produzido pelo AEE para ver se há algum tipo de preocupação ou mesmo
menção dessas questões. O capítulo 7 desse documento produzido pelo AEE1 intitulado Avaliação
Processual trata de alguns instrumentos de avaliação produzidos pela instituição de forma a
poderem tanto registrar o que foi abordado em cada atendimento, quanto descrever a atividade
assim como também registrar o desempenho de cada aluno (2009, p. 20). Logo adiante o
documento explica onde e como serão usadas essas informações sobre os alunos:

Ao término do semestre, a professora terá em mãos uma série de informações


que serão apresentadas na reunião de Conselho de Classe que também é outro
indicador de avaliação. Neste conselho a equipe multidisciplinar, em conjunto
com a equipe de professores do Atendimento Educacional Especializado, deverá
reunir-se para discutir ações compartilhadas, levando em consideração
pareceres de cada profissional. Ao final deste encontro um relatório individual de
cada aluno será redigido (2009, p. 20) (Grifo meu).

Fica claro no documento que são previstas reuniões com toda a equipe multidisciplinar ao
final de cada semestre para se discutir “ações compartilhadas” com base nos pareceres de cada
profissional sobre cada aluno. Meu próximo passo será acompanhar essas reuniões para perceber
como essas interações multidisciplinares acontecem na prática e como podem, como
consequência, beneficiar os alunos e alunas que lá frequentam.
Porém, mesmo com esses encontros programados ao final de cada semestre, interessa a
esta pesquisa saber também como são as relações diárias entre esses profissionais, por exemplo,

319
como os técnicos da área da saúde dividem informações sobre determinado aluno com os
pedagogos e professores que convivem diariamente com ele, e assim por diante. E é interessante
perceber como isso acontece no dia a dia já que, como vimos há pouco, existe uma divisão física
entre as salas de aula (chamadas genericamente de AEE) e entre as três outras células
relacionadas à área da saúde.
Com respeito ao lado das salas de aula, o que pude observar é que a realidade da ONG é
bem diferente do que é preconizado pelos documentos oficiais a respeito do funcionamento dos
AEE. O que lá comumente é chamando de “AEE” é assim dividido:
▪ 6 Salas de Integração
▪ 1 Sala de AEE (os professores usam a expressão: “de verdade”)
▪ 2 Salas de Pré-Inclusão
Os alunos que são atendidos nas Salas de Integração (que são a maioria na ONG) são
considerados alunos com deficiência mental média ou grave, não estando assim incluídos na
escola regular. Para esses alunos o AEE não é um suporte ou complemento ao ensino regular,
conforme preconizado pelo governo – ele é realmente o contato que o aluno tem com uma escola,
portanto, ele a frequenta os cinco dias da semana.
Quem está nas duas salas de pré-inclusão, segundo as duas professoras, seriam alunos que
teriam condições de frequentar a escola regular. A ideia inicial era que eles fossem sendo
capacitados para serem incluídos na escola regular, ou seja, que passassem um tempo nas salas de
pré-inclusão e de lá seriam efetivamente incluídos. No entanto, a maioria deles acabou ficando
definitivamente nessa sala sem serem incluídos na escola regular. Segundo as professoras, isso
aconteceu porque muitos pais se sentem inseguros de colocar seus filhos na escola regular por
temerem que eles sejam relegados pelos professores e que sejam ridicularizados pelas crianças da
escola regular. Esses alunos não participam da acolhida diária nem lancham juntos dos outros
alunos das Salas de Integração.
Existe uma sala do AEE propriamente dito, isso porque quem frequenta esta sala está
incluído na escola regular. No total são 8 alunos que frequentam o AEE à tarde, em grupos de 4,
duas vezes na semana. Existe um ou dois alunos somente que vão três (3) vezes na semana. Esses
alunos também não participam da acolhida que acontece com os alunos das salas de integração e
ficam em um lugar reservado juntos com os alunos da pré-inclusão.
Por falta de professores pedagogos a única professora do AEE da manhã e da tarde é
também a coordenadora – ela acaba assim planejando suas atividades sozinha. Nesse contexto,
fica difícil realizar o que preconiza um dos documentos oficiais (MEC/SEESP: 2007, p. 10) que
afirma que algumas das funções do atendimento educacional especializado é o de “identificar,

320
elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a
plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas”. Isso porque
“identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos” é uma tarefa complexa que demanda
tempo, pesquisa, reflexão e muita interação entre uma equipe pedagógica, ao passo que o
profissional sozinho fica praticamente inviabilizado em realizá-las.
Outro aspecto destacado no documento oficial (MEC/SEESP: 2007, p. 10) seria a interação
entre o AEE e as escolas do ensino regular, conforme destacado abaixo:

Dentre as atividades de atendimento educacional especializado são


disponibilizados programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens
e códigos específicos de comunicação e sinalização e tecnologia assistiva. Ao
longo de todo o processo de escolarização esse atendimento deve estar
articulado com a proposta pedagógica do ensino comum. O atendimento
educacional especializado é acompanhado por meio de instrumentos que
possibilitem monitoramento e avaliação da oferta realizada nas escolas da rede
pública e nos centros de atendimento educacional especializados públicos ou
conveniado. (Grifo meu)

O objetivo dessa interação seria realmente eliminar as barreiras para que os alunos com
deficiência pudessem participar o mais efetivamente possível na escola regular. Só que na prática,
pelo menos neste AEE pesquisado, não há essa integração entre essas duas instituições de ensino,
pois não existem condições físicas e econômicas para que o único professor pedagogo visite as
escolas de seus alunos periodicamente: primeiro porque eles são de diferentes escolas espalhadas
por vários bairros de Fortaleza – assim, não há tempo para visitar escola por escola
periodicamente – já que ela trabalha manhãs e tardes – e também não conta com o apoio
financeiro do governo para o transporte para as várias escolas nas quais seus alunos estão
matriculados. Isso por si só então, já “quebra” uma das condições básicas para o aperfeiçoamento
do aluno, pois, tanto a escola regular quanto o AEE trabalham de forma independente e à sua
maneira. Há um desvirtuamento do que é oficialmente previsto ainda no mesmo documento
(MEC/SEESP: 2007, p. 10):
as atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado
diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo
substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a
formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora
dela.

Outra característica deste AEE que me chamou a atenção foi o que considerei como sendo
a exclusão dentro de uma instituição que tem como propósito primordial a inclusão: os alunos que

321
apresentam menos comprometimento cognitivo e mental, ou seja, que estão no AEE e os das salas
da pré-inclusão (como explicado há pouco) são excluídos do convívio com os outros alunos das
Salas de Integração. Algumas professoras com as quais coversei alegaram que os alunos mais
comprometidos acabavam por atrapalhar o desenvolvimento dos alunos que apresentavam
menos comprometimento. Chama a atenção como essa questão da exclusão é forte na mente das
pessoas em geral, pois até mesmo quem supostamente trabalha para quebrar essa realidade de
preconceito acaba muitas vezes por aceitá-la e adotá-la em suas práticas diárias.
Com respeito aos outros profissionais da área da saúde que trabalham naquele AEE a LDB
de 1996 (LEI Nº 9394/96, CAPÍTULO V DA EDUCAÇÃO ESPECIAL, §1º) prevê a necessidade de
utilização de vários outros profissionais, além dos pedagogos, nos AEE e nas escolas regulares
quando diz: “Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para
atender as peculiaridades da clientela de educação especial.” E a prática mostra que realmente
são necessários outros profissionais da área da saúde, por exemplo, para atender de forma mais
holística das necessidades desses alunos com deficiência.
O que me chamou a atenção neste AEE1 foi a “demarcação do território” existente entre
os pedagogos e os profissionais da área da saúde, da psicologia e da assistência social: existe
literalmente um muro que os separa. De acordo com o que pude observar até agora, a dinâmica
do contato dos técnicos (como são chamados os profissionais que não são pedagogos) com os
pedagogos é quase nenhuma – duas vezes na semana, um grupo de técnicos visita as salas de
integração e ficam, sistematicamente, em cada sala por 30 minutos trabalhado algum projeto que
foi anteriormente planejado por eles. No momento em que entram na sala, o professor sai e fica lá
fora esperando a hora para voltar (que é marcada pela saída desses técnicos). Não há nenhuma
troca de informações entre os técnicos e o pedagogo a respeito de algum aluno ou de alguma
informação ou pergunta relacionada àquela sala de aula. Ficou bem claro para mim que eles
trabalham de forma independente.
Já com os alunos que são da sala do AEE, eles é que vão para as salas dos técnicos – que se
localizam do outro lado do muro do AEE1. Do lado de lá, cada técnico tem sua sala individual e
espera o aluno chegar ali para lhe dar atendimento. O que eu achei significativo da fala informal
da professora do AEE é que ela afirmou que muitos técnicos pedem para ela levar os meninos para
lá e ela então me fez uma pergunta: por que eles não vão pegar os meninos?
Seguindo essa mesma linha de raciocínio ela falou que sente de forma muito explícita uma
hierarquia entre técnicos e professores onde há, por exemplo, o domínio do diagnóstico dos
meninos, que é feito somente por eles; chegando mesmo a já ter acontecido de os pedagogos

322
fazerem um documento aconselhando a ida de um aluno para a inclusão e os técnicos
discordarem desse laudo, fazerem um laudo contrário e ter havido o predomínio da opinião deles.
Tive a oportunidade de assistir a uma reunião de planejamento entre os técnicos sobre o
último mês de aula que antecedia às férias. Foi um planejamento bem detalhado onde
mencionavam vários alunos por nome e discutiam como cada atividade poderia ser recebida
levando em consideração a característica de muitos desses alunos, mas em nenhum momento
falaram do pedagogo ou tentaram incluí-lo nas atividades. Ficou parecendo que para eles não
estava acontecendo nenhuma atividade antes de sua chegada e que haveria outra depois de sua
saída – não se pensou na “quebra” que sua chegada poderia acarretar para a atividade que estaria
se processando em sala com o pedagogo, não se aventou nenhuma possibilidade de atividades
conjugadas ou de continuidade.
Nesse projeto piloto, fase ainda incipiente de minha pesquisa, pude perceber quão
complexo é o funcionamento de um AEE e também percebi que as tentativas dos profissionais que
trabalham ali em acertar são realmente sérias e há um empenho genuíno de sua parte em dar o
melhor atendimento para os alunos. Contudo, há muito ainda a ser feito no que diz respeito a
ações mais integradas entre os profissionais envolvidos nas atividades desenvolvidas naquele AEE.
Dessas breves observações também pode-se perceber o potencial que uma pesquisa desse
tipo oferece tanto ao pesquisador quanto, principalmente à sociedade, que poderá adentrar nesse
mundo tão complexo em seu funcionamento quanto o mundo dos AEE. Como minha pesquisa tem
o caráter etnográfico, muito tenho ainda para observar e conviver com todos esses profissionais
para, a partir das relações que são travadas ali cotidianamente, tentar perceber como suas
identidades são forjadas ali a partir das relações interdisciplinares entre eles acreditando que,
quão mais integrados forem em suas relações profissionais melhor acabará sendo o
desenvolvimento dos alunos com deficiência.

Referências

BATISTA JÚNIOR, J. R. L. Os discursos docentes sobre inclusão de alunas e alunos surdos no Ensino
Regular. Identidades e letramentos. Universidade de Brasília, dissertação (Mestrado), 2008.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Brasília, DF, 1988.

COSTA, A. Interdisciplinaridade e transversalidade. Considerações sobre a epistemologia do


trabalho escolar brasileiro. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Nelis/Ceam//Unb, 9 (2): 25-44,
2008.

323
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, Lei n° 8.069, Brasília, DF, 1990.

FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989.

_____. Chouliaraki, L. e Fairclough, N. Discourse in late modernity. Rethinking critical discourse


analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999.

_____. Discurso e mudança social. Coord. trad., revisão e prefácio à ed. brasileira de I. Magalhães.
Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2001a.

_____. Analysing discourse. Textual analysis for social research. Londres/Nova York: Routledge,
2003.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Trad. F. Wrobel. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
_____. Local knowledge. Londres: Fontana Press, 1993. [1983]

GIDDENS, A. Modernity and self-identity. Self and society in the late modern age. Cambridge, Grã-
Bretanha: Policy Press, 1991.

HALLIDAY, M.A.K. An Introduction to Functional Grammar. Baltimore: Edward Arnold, 1985.

JONES, K.; MARTIN-JONES, M., BHATT, A. Constructing a critical, dialogic approach to research on
multilingual literacies. Participant diaries and diary interviews. In: MARTIN-JONES, M.; JONES, K.
Multilingual literacies. Amsterdã/Filadélfia: John Benjamins, 2000, p. 319-351.

KLEIMAN, A. B. (Org.) Os significados do letramento. Uma nova perspectiva sobre a prática social
da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

_____; MORAES, S. E. Leitura e interdisciplinaridade. Tecendo redes nos projetos da escola.


Campinas, SP: Mercado de Letras, 1999.

KLEIMAN A. B; MATÊNCIO, M. L. M. (Orgs.) Letramento e formação do professor. Práticas


discursivas, representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.

KNOBEL, M; LANKSHEAR, C. A new literacies sampler. Nova York: Peter Lang, 2007.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Brasília, DF, 1961.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Brasília, DF, 1996.

MAGALHÃES, I. Linguagem e identidade em contextos institucionais e comunitários. Cadernos de


Linguagem e Sociedade, Nelis/Ceam/UnB, 2 (1): 42-61, 1996.

_____. Escrita e Identidades. Cadernos de Linguagem e Sociedade, vol. 7: 106-118, 2004/2005.

_____. Análise do discurso publicitário. Revista da Abralin, 4 (1 e 2): 231-260, 2005a.

324
_____. Interdiscursivity, gender identity and the politics of literacy in Brazil. In: LAZAR, M. M. (Org.)
Feminist critical discourse analysis. Gender, power and ideology in discourse. Houndmills,
Basingstoke, Hampshire, Nova York: Palgrave Macmillan, 2005b, p. 181-204.

_____. Discurso, ética e identidades de gênero. In: MAGALHÃES, I.; GRIGOLETTO, M.; CORACINI,
M. J. (Orgs.) Práticas identitárias. Língua e discurso. São Carlos, SP: Claraluz, 2006, p. 71-96.

_____. Discursos e identidades de gênero na alfabetização de jovens e adultos e no Ensino


Especial. Calidoscópio, Unisinos, 6 (2): 61-68, 2008.

MARTIN-JONES, M.; JONES, K. (Orgs.) Multilingual literacies. Amsterdã/Filadélfia: John Benjamins,


2000.

MEC/SEESP: Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.


Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial nº 555, de 5 de
junho de 2007, prorrogada pela Portaria nº 948, de 09 de outubro de 2007)

MOITA LOPES, L. P. Identidades Fragmentadas. Campinas: Mercado das Letras, 2002.

RADHAY, R. A. A imigração, a etnografia e a ética. Cadernos de Linguagem e Sociedade,


Nelis/Ceam/UnB, 9 (2): 45-56, 2008.

RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica e realismo crítico. Campinas, SP: Pontes, 2009.

RESENDE, V.; RAMALHO, V. Análise de discurso crítica. São Paulo, SP: Contexto, 2006.

RESENDE, V. de M.. Análise de Discurso Crítica e Etnografia: O Movimento Nacional de Meninos e


Meninas de Rua, Sua Crise e o Protagonismo Juvenil. Tese de Doutorado, UNB: 2008.

RIOS, G. Literacy discourses. A sociocultural critique in Brazilian communities. Saarbrücken: Verlag


Dr. Müller, 2009.

ROJO, R. H. R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo, SP: Parábola Editorial,
2009.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003.

SATO, D. T. B. A inclusão da pessoa com Síndrome de Down. Identidades docentes, discursos e


letramentos. Universidade de Brasília, dissertação (Mestrado), 2008.

STREET, B. V. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

_____. (Org.) Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

_____. Social literacies. Critical approaches to literacy in development, ethnography and


education. Londres/Nova York: Longman, 1995.

325
_____. Literacy events and literacy practices. Theory and practice in the New Literacy Studies. In:
MARTIN-JONES, M.; JONES, K. Multilingual literacies. Amsterdã/Filadélfia: John Benjamins, 2000,
pp. 17-29.

THOMPSON, J. B. Ideology and modern culture. Cambridge: Polity Press, 1990.

326
APROPRIAÇÃO DA ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA E DA DIALOGIA BAKHTINIANA
NA ABORDAGEM DISCURSIVA DE NORMAN FAIRCLOUGH

Luciana Andrade Cavalcante de Castro, Mestranda em Letras e Linguística


Universidade Federal de Goiás

Alexandre Ferreira da Costa, Doutor em Letras e Linguística


Universidade Federal de Goiás

Pretendemos neste trabalho expor o processo de apropriação de aspectos da arqueologia


foucaultiana e da dialogia bakhtiniana no desenvolvimento da análise de discurso de Norman
Fairclough (a Teoria Social do Discurso), ao longo de suas três fases. Focalizam-se as noções
foucaultianas de ordem de discurso e formação discursiva e seu relacionamento com as categorias
derivadas por Fairclough do trabalho de Bakhtin, como gênero do discurso e intertextualidade,
bem como sua interação com os aportes de Pierre Bourdieu e Michael Halliday. Como parte dos
resultados da pesquisa, pretende-se demonstrar que a incorporação de tais categorias se dá pela
manutenção do tratamento dos fenômenos discursivos como sistemas de diferenças (estruturas),
ao mesmo tempo em que não são abandonados os aspectos dialógicos no estudo dos contextos
de interação. Nesse sentido, as referidas apropriações constituem-se, principalmente, a partir do
encontro entre arqueologia e dialogia sob as matrizes estruturalista-construtivistas da sociologia
de Pierre Bourdieu e do funcionalismo de Michael Halliday. Enfim, em cada um desses elementos
da abordagem de Fairclough, é possível perceber a tensão entre o viés estruturalista de caráter
ontológico – estruturas dadas a priori – e o de caráter epistemológico – estruturas postas pelo
pesquisador (Eco, 2001).

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, arqueologia, dialogia.

Introdução
Verificar como se dá a apropriação da arqueologia foucaultiana e da dialogia bakhtiniana
na abordagem discursiva de Fairclough se encontra entre o os objetivos de um trabalho
historiográfico que visa estudar o viés estruturalista da abordagem discursiva de Norman
Fairclough (Teoria Social do Discurso). A Teoria Social do Discurso, por sua grande produtividade
dentro da Análise de Discurso Crítica, ADC, chega a ser considerada como a própria, embora
muitos outros autores, além de Fairclough, sejam também importantes para os estudos dessa
abordagem teórico-metodológica de análise de discurso na modernidade tardia, como Fairclough
considera o período que vivemos agora.
Quando nos referimos a “viés estruturalista”, terminamos por trazer à tona toda uma
problemática que existe desde o momento em que o Estruturalismo passou a ser visto com certa
aversão por muitos teóricos da linguagem. Costuma-se alegar que uma abordagem estruturalista
não considera a capacidade de ação dos sujeitos em estudo, dando prioridade a estruturas que

327
regem a ação de tais sujeitos. O próprio Norman Fairclough faz essa mesma justificativa, em sua
obra Discurso e mudança social, quando se refere ao trabalho de Michel Foucault. Entretanto
percebemos que o ponto de vista do autor britânico se modifica ao longo das fases de seus
estudos.
Solucionar a problemática acerca do Estruturalismo não faz parte de nossas pretensões,
entretanto para darmos prosseguimento ao nosso estudo, é necessário que nos posicionemos em
relação a mesma. Com base nas reflexões de Umberto Eco (2001), trabalharemos em torno dos
conceitos de “estruturalismo ontológico” e “estruturalismo epistemológico”. Por estruturalismo
ontológico, entendemos aquele que considera a existência real de estruturas regendo qualquer
fenômeno em estudo, cabendo ao pesquisador encontrá-las e enquadrá-las em estruturas maiores
e mais complexas até chegar-se a uma superestrutura regente das demais. O estruturalismo
epistemológico, por outro lado, considera as estruturas como modelos que o pesquisador aplica, a
fim de dar prosseguimento aos seus estudos. Conforme Eco, o estruturalismo ontológico é
problemático pelo fato de que é complexo definir as fronteiras de uma entidade estrutural, isto é
como identificar estruturas que contêm outras? O grande problema de se buscar estruturas, é que
podemos incluí-las sempre em outras estruturas maiores, que podem estar contidas em mais
estruturas, e assim se prossegue uma busca infinita e incessante, de modo que não há muita
possibilidade de se chegar à superestrutura. E a partir desse ponto resta ao estruturalismo
ontológico aceitar que todas as estruturas surgem não de uma maior, mas sim de uma Ausência,
por isso no nome da obra o termo “estrutura ausente”. Entretanto o estruturalismo
epistemológico, segundo Eco, não deixa de ser eficaz para as abordagens da linguagem.
Num trabalho sobre o viés estruturalista da obra de Fairclough, ambos os estruturalismos
podem ser mapeados, não deixando nenhum deles de ter sua relevância. No que diz respeito ao
estruturalismo ontológico, percebemos que os estudos de Fairclough se centram especialmente
na dialética entre estruturas e práticas sociais, e como o discurso se relaciona a tal dialética.
Conforme Fairclough as estruturas regem as práticas dos sujeitos, mas também podem ser
transformadas por estas. O autor britânico considera o tratamento dessa dialética como de base
estruturalista-construtivista ou construtivista-estruturalista, por considerar tanto a força das
estruturas como a das práticas. Tais expressões são tomadas de empréstimo de Pierre Bourdieu,
cujos estudos são muito produtivos para a obra de Fairclough.
Entretanto tal admissão quanto ao caráter estruturalista-construtivista de seus estudos
ocorre a partir da segunda fase da obra de Fairclough. Arriscamos a fazer tal afirmação visto que

328
em Discurso e Mudança Social, obra de sua primeira fase, o linguista britânico se refere de modo
não tanto favorecedor ao sabor “pesadamente estruturalista” da obra de Michel Foucault.

A insistência de Foucault sobre o sujeito como um efeito das formações


discursivas tem um sabor pesadamente estruturalista, que exclui a agência social
ativa de qualquer sentido significativo. *…+ A posição sobre o discurso que
defenderei *…+ é dialética que considera os sujeitos sociais moldados pelas
práticas discursivas, mas também capazes de remodelar essas práticas.
(Fairclough, 2001)

Já na obra de sua terceira fase, Analysing Discourse, Norman Fairclough assume de fato sua
crença em estruturas que existem como parte da realidade, o que confirma claramente a presença
de um viés estruturalista ontológico em sua obra, embora não seja objetivo de Fairclough buscar
estruturas profundas.
A posição que assumo é realista, baseada numa ontologia: os eventos sociais
concretos e as estruturas sociais abstratas, bem como as práticas sociais menos
abstratas são parte da realidade. Nós podemos fazer uma distinção entre o
“potencial” e o “real” – o que é possível devido à natureza (de permissões e
restrições) das estruturas e das práticas sociais, em oposição ao que realmente
acontece. Ambas precisam ser distinguidas do que é empírico, do que nós
sabemos sobre a realidade. A realidade não pode ser reduzida ao nosso
conhecimento sobre a mesma, o qual é parcial e mutável. (Fairclough, 2003,
traduzido pelos autores)

Tal distinção entre “potencial” e “real” que Fairclough propõe no fragmento anterior, vai
ao encontro de toda uma reflexão que Bakhtin realiza em sua obra Para uma filosofia do ato, a
qual deu suporte para muitos outros estudos do autor soviético. Abordaremos em breve sobre tal
questão.
Quanto ao estruturalismo-epistemológico, recorremos a noção de estrutura que
encontramos em Eco (2001), para então verificarmos como se apresenta o viés estruturalista-
epistemológico da obra de Norman Fairclough. Tomamos então uma estrutura como:
 Um conjunto, partes desse conjunto, às partes desse conjunto e às relações dessas partes
entre si.
 Entidade autônoma de dependências internas.
 Um todo formado de elementos solidários, de tal modo que cada um dependa dos demais
e não possa ser o que é senão em virtude da sua relação com eles.
Relacionando estas definições de Eco com os modelos existentes nas fases da ADC de
Fairclough, podemos afirmar que o Linguista britânico utiliza-se de uma metodologia

329
estruturalista. Pensemos no modelo da primeira fase (ver figura 1 a seguir) no intuito de
exemplificarmos. Temos um conjunto ou um todo, (o modelo tridimensional), constituído por três
partes, ou elementos solidários entre si, (textos, práticas discursivas, práticas sociais), tendo tais
elementos uma relação de interdependência. Em outras palavras, os textos se inserem em práticas
discursivas que por sua vez se incluem em práticas sociais, e qualquer mudança que ocorrer em
uma dessas partes afetará as outras, daí elas serem solidárias entre si. E tais definições também se
aplicam ao modelo das segunda e terceira fase da ADC em Fairclough.
No intuito de reforçar o estruturalismo metodológico, ainda podemos nos referir a um
princípio ou regra existente neste, a regra ou princípio da comutação – sobre a qual, J. B. Fages
relata em Para entender o estruturalismo, junto a outros princípios – que diz respeito ao fato de as
unidades (estruturas) estudadas se incluírem sempre em uma estrutura maior.
Em Fairclough, a dimensão do texto se inclui na dimensão das práticas discursivas, que se
insere na dimensão das práticas sociais, como já afirmamos anteriormente. Ou, textos se inserem
em conjuntos de gêneros, que se inserem em práticas discursivas, que se inserem em ordens de
discurso. Partindo do princípio que metodologias estruturalistas, adotavam modelos da linguística
em suas análises, podemos dizer que a organização das análises de Fairclough se assemelham à
organização dos níveis de análise linguística, tanto se assemelham, quanto podem ser extensões
deste. Podemos apontar ainda nos estudos de Fairclough a noção de “valor”, muito utilizada na
Linguística Geral, e no que diz respeito aos gêneros isso se torna mais evidente. Do mesmo modo
que um fonema tem seu valor por ser diferente de outros, um gênero têm relevância em uma
prática por não ser outro, são como sistemas de diferenças. Uma prática se diferencia de outra
pelo conjunto de gêneros que contêm (mesmo que alguns possam ser comuns a mais de uma
prática, mas de qualquer modo aspectos destes mesmos gêneros podem variar conforme a
prática). E isso pode ser aplicado a diversos níveis consequentemente.

330
(Figura 1: Modelo Tridimensional de análise do discurso)

Ao modelo das fases subsequentes (ver Figura 2) também aplicamos as definições que Eco
dá a “estrutura”. O “discurso”, como um momento da “prática social”, se relaciona a outros
momentos desta, como “atividade material”, “fenômeno mental” e “relações sociais”. Todos esses
momentos são articulados, sustentando ou transformando as relações que mantêm entre si.
Quando tais momentos sustentam as relações, considera-se a existência de uma hegemonia, na
situação contrária, tem-se um abalo na mesma. Tal abalo pressupõe a ocorrência de uma
mudança nas estruturas sociais vigentes, e certamente o aparecimento de uma nova hegemonia, e
logo de um novo conjunto de práticas que se articulam, se mantendo ou se modificando. Enfim, o
segundo modelo é um conjunto, cujas partes exercem influência umas sobre as outras, logo uma
estrutura.

(Figura 2: Modelo a partir da segunda fase de Fairclough)

331
Afirmamos que na obra de Fairclough há um viés estruturalista evidente, que não deixa de
ser extremamente produtivo em seus estudos. O linguista britânico opera com sistemas de
diferenças (estruturas) ao mesmo tempo em que não abandona os aspectos dialógicos no estudo
dos contextos de interação, e para conseguir essa conciliação, a presença de autores como
Bakhtin, Foucault, Bourdieu e Halliday na obra de Fairclough é fundamental. Por isso,
consideramos que o viés estruturalista da obra de Norman Fairclough tem como suporte,
especialmente, a dialogia bakhtiniana, a arqueologia foucaultiana, a sociologia estruturalista-
construtivista de Pierre Bourdieu e o funcionalismo de Michael Halliday.

O estruturalismo dialógico bakhtiniano e suas refrações na obra de Fairclough


Tratar da obra de Bakhtin associando-a ao estruturalismo pode nos parecer contraditório
num primeiro instante, visto que o autor soviético pregava a dialogia como verdadeira natureza da
linguagem, criticando a abordagem saussuriana desta, a qual fazia parte de uma corrente
objetivista-abstrata que dava ênfase à determinação dos fenômenos pelas estruturas. Aqui
havemos de recorrer a Costa (2008), que nos traz uma reflexão sobre o estruturalismo em Bakhtin:

A crítica bakhtiniana ao objetivismo abstrato é relativa à redução do todo


enunciativo à sua parte estrutural , que deveria ser obtida pela análise do
enunciado concreto e irrepetível. O concreto para Bakhtin é o enunciado e jamais
a estrutura. Assim trata-se de uma divergência ontológica e não epistemológica.
Uma vez aceita a fundamentação do que chamamos de estruturalismo dialógico
bakhtiniano, a noção de gênero discursivo pode ser desenvolvida mais e mais
explicitamente nestes termos: tratar uma esfera social como um sistema (uma
estrutura) de gêneros e, disso compor a sociedade como um sistema de esferas
sociais. (Costa, 2008)

Costa (2008) ainda reconhece o estruturalismo bakhtiniano como “uma espécie de


estruturalismo metodológico”, baseando-se em Eco (2001).
No que se refere à relação dialógica entre “práticas” e “estruturas” na abordagem
bakhtiniana, retomamos a frase do autor soviético: “A língua penetra na vida através dos
enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida
penetra na língua”, estando os enunciados mais relacionados às práticas e a língua à estrutura.
E conforme Bakhtin, todas as esferas da atividade humana se relacionam com a utilização
da língua, efetuada através de enunciados, (orais ou escritos), concretos e únicos, provenientes
dos integrantes de determinadas esferas da comunicação. E cada esfera de comunicação produz

332
seu conjunto de enunciados relativamente estáveis, ou gêneros do discurso, noção da qual
Norman Fairclough se apropria para desenvolver sua abordagem.
Para compreendermos como se desenvolve a dialética entre “estruturas” e “práticas” em
Bakhtin, consideramos pertinente nos referirmos a obra Para uma filosofia do ato do autor
soviético. Faz parte dos escritos mais antigos de Mikhail Bakhtin, entretanto esteve por muito
tempo ocultada, devido a repressão vigente na época, e só veio a ser descoberta muitos anos mais
tarde.
Em Para uma filosofia do ato, o autor russo faz uma reflexão acerca das divergências entre
“mundo da cultura” e “mundo da vida”. No mundo da vida, nós nos criamos, conhecemos,
contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos, realizamos nossos atos únicos, concretos e
irrepetíveis. O mundo da cultura consiste na objetivação e na representação do mundo da vida.
Nas palavras de Bakhtin há “o mundo no qual os atos da nossa atividade são objetivados [mundo
da cultura] e o mundo do qual esses atos realmente provêm e são realmente realizados uma e
única vez *mundo da vida+”. E ainda conforme o autor, o mundo da vida e o mundo da cultura se
encontram em confronto, sendo mutuamente impenetráveis. Tal oposição entre o mundo da vida
e o mundo da cultura, diz respeito à oposição entre “real” e “potencial” a que Norman Fairclough
se refere no fragmento que expusemos no item anterior. Conforme Fairclough, o conhecimento
que temos sobre a realidade, o qual é da ordem do “potencial”, não coincide com o que realmente
seja a realidade, por mais que aquele tente estar próximo dessa. Em outras palavras, qualquer
representação do mundo que tentarmos fazer, seja de qual maneira for, não dará conta de tudo
que o mundo é. O mundo da vida e o mundo da cultura são impenetráveis.
Dessa oposição, derivamos a dialética entre “estrutura” e “práticas”, que não deixa de ser
problemática para diversos estudos da linguagem e da sociedade. Entretanto quando tratamos
especificamente da obra Para uma filosofia do ato, optamos por abordar a dialética entre
“estrutura” e “acontecimento”, mas retomaremos a noção de “práticas” mais adiante assim que
nos referirmos à relação existente a obra de Fairclough e a de Bakhtin.
Tomemos, nessas circunstâncias, a estrutura como todo um conjunto de normas e
convenções que regem o comportamento da sociedade, assim como as representações que esta
faz de si mesma e dos fatos a seu redor, e o acontecimento como o conjunto dos eventos que
ocorrem de acordo ou não com tais convenções, e tais eventos são acontecimentos únicos e
irrepetíveis. Assim, a estrutura é propriedade do mundo da cultura e o acontecimento é
propriedade do mundo da vida. Boa quantidade de noções que Bakhtin utiliza em toda sua obra,

333
como as de enunciado e gêneros do discurso, tem base nessa dialética, assim como a própria
dialogia bakhtiniana.
E quando pensamos em dialogia bakhtiniana, convém nos lembrarmos das objeções que o
autor faz ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista, afirmando que nenhuma das duas
correntes filosóficas explica satisfatoriamente o real funcionamento da linguagem. Conforme nos
explica o autor os subjetivistas idealistas pregam certa soberania do sujeito, reforçando a sua
capacidade de criação. Logo para eles a língua é um processo criativo ininterrupto que se
materializa sob a forma de atos de fala individuais, e suas leis são essencialmente as leis da
psicologia individual.
Por outro lado, a corrente objetivista abstrata dá primazia ao sistema linguístico, o qual
possui suas leis próprias e imanentes independentes dos indivíduos que realizam atos de fala. As
leis da língua não têm ligações com valores ideológicos, assim como não há ligação entre o sistema
da língua e sua história, e qualquer mudança ocorrida neste sistema a partir dos atos de fala é
irracional e desprovida de sentido.
Para Bakhtin (1981), entretanto, a verdadeira substância da linguagem não é constituída
por um sistema abstrato de formas linguísticas, tampouco pela enunciação monológica, mas sim
pelo fenômeno social da interação verbal, que se realiza através da enunciação ou das
enunciações. Portanto, a interação verbal representa a verdadeira natureza da linguagem, sendo o
diálogo uma importante forma de interação verbal. Mas o autor utiliza o conceito de diálogo em
sentido mais amplo sendo ele de fato toda e qualquer forma de comunicação verbal.
Interação implica a existência de mais de um indivíduo, isto é, cada ato de fala é dirigido a
outro, e não existe ato de fala que não faça isso (mesmo em monólogo, colocamo-nos no lugar de
um interlocutor ideal a quem nos dirigimos). Logo a manifestação da linguagem só se dá quando
interagimos com outros, seja através da linguagem falada ou da escrita.
E assim como há interação entre indivíduos, há também interação entre as enunciações, ou
seja, cada manifestação de linguagem necessariamente dialoga, ou responde a outras
manifestações, e vem a ser respondida por mais outras.

Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui, apenas
uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à
vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.). Mas essa
comunicação verbal ininterrupta constitui, por sua vez, apenas um momento na
evolução contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado.
(Bakhtin, 1981)

334
A partir do fragmento anterior, é perceptível a importância que Bakhtin atribui ao contexto
social diante da enunciação. Conforme o autor, as relações entre interação concreta e o contexto
social tomam formas diversas, e a comunicação verbal não pode ser compreendida isolada da
situação concreta, seu contexto. E quando nos referimos a este, necessariamente precisamos
pensar na influência que a ideologia tem sobre o mesmo, e logo sobre as manifestações de
linguagem, afinal todo signo é ideológico. Sem signos não existe ideologia (Bakhtin, 1981).

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de


trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a
palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais,
mesmo daquelas que apenas despontam que ainda não tomaram forma, que
ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem
formados. (Bakhtin, 1981)

Enfim, a dialogia bakhtiniana procura abarcar os diversos aspectos da linguagem, sendo


uma síntese entre o objetivismo-abstrato e o subjetivismo-idealista, uma conciliação entre a
primazia do sistema linguístico e a do ato de fala individual. E, retornando as reflexões
bakhtinianas que expusemos no início, é possível relacionarmos as ideias dessas duas correntes à
dialética estrutura/acontecimento, sendo que a primeira se aproximava mais da estrutura, e a
segunda buscava se ater ao acontecimento. E por procurar tal conciliação entre estrutura e
acontecimento, a dialogia bakhtiniana é extremamente importante para a abordagem discursiva
de Norman Fairclough, que, como já afirmamos anteriormente, opera com sistemas de diferença
sem abandonar os aspectos dialógicos no estudo dos contextos de interação.
Entretanto o conceito de dialogia existente em Bakhtin, Fairclough opta por tomar sob o
nome de intertextualidade, que o autor britânico toma emprestadado de Julie Kristeva, estudiosa
responsável por divulgar as reflexões bakhtinianas no Ocidente. Acreditamos que tal modificação
se dá pelo fato de Norman Fairclough dar preferência a noção de “texto” no lugar da noção de
“enunciado”. Operar com “textos” no lugar de “enunciados” é parte da tradição dos estudos
linguísticos anglo-saxônicos, da qual Fairclough participa, assim como Michael Halliday, cuja
Linguística Sistêmico Funcional foi fundamental para que o autor britânico desenvolvesse o
método de trabalho com textos em sua abordagem discursiva. Enfim, consideramos que para
apropriar-se do funcionalismo de Halliday, foi mais pertinente para Fairclough optar pela noção de
“texto”. Mas, de qualquer modo, assim como os enunciados possuem relações dialógicas entre si,
referindo-se constantemente uns aos outros, os textos se relacionam intertextualmente também
fazendo referências entre si.

335
Fairclough divide a intertextualidade em intertextualidade manifesta e intertextualidade
constitutiva ou interdiscursividade. A primeira ocorre quando um texto se refere explicitamente a
outros, seja através de aspas, citações, dentre outras formas. A segunda ocorre, basicamente,
quando essa referência não é explícita.
Além da dialogia bakhtiniana, a noção de gêneros dos discursos é bastante produtiva na
abordagem de Fairclough. Analisar como se deu a apropriação da noção bakhtiniana pelo autor
britânico se fez relativamente problemática em alguns pontos, visto que consideramos algumas
variações existentes na abordagem que Fairclough, ao longo de suas fases, fazia dos gêneros,
mesmo que ele assumisse sua visão dos mesmos como essencialmente bakhtiniana.
Nas duas primeiras fases, o autor britânico define o gênero basicamente como um
conjunto de “convenções relativamente estável”, sendo os enunciados restringidos por essas
convenções. Arriscamos, com certa segurança, a afirmar que ao considerar o gênero desse modo,
Fairclough não possui uma visão de gênero essencialmente bakhtiniana nas duas primeiras fases. E
para subsidiarmos nossa tese, retomamos a definição que o autor soviético dá aos gêneros.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),


concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da
atividade humana.[...] Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro,
individual, mas cada esfera de sua utilização da língua elabora seus tipos estáveis
de enunciados, sendo isso o que denominamos gêneros do discurso. (Bakhtin,
2000)

Os enunciados se dão pela ação de utilizarmos a linguagem, e sendo os gêneros enunciados


relativamente estáveis, logo os próprios gêneros não deixam de ser um modo de ação. Entretanto
a estabilização que fazemos dos enunciados em gêneros se dá quando pretendemos estudar tal
ação de se utilizar a linguagem. Aqui podemos retomar a dialética entre “estrutura” e
“acontecimento”, relacionando o “enunciado” ao acontecimento, devido a sua qualidade de
“concreto” e “único”, e os “gêneros” à estrutura, por serem representações estabilizadas dos
enunciados, entretanto não concordamos que em Bakhtin os gêneros sejam restritores dos
enunciados.
Na terceira fase de seus estudos, consideramos que a maneira de o autor britânico abordar
os gêneros, associando-os à noção de Significado Acional – derivada das Funções Interpessoal e
Textual, presentes na Linguística Sistêmico Funcional de Michael Halliday – se aproxima mais de
Bakhtin. Ao fazer tal associação, Fairclough afirma que agimos no mundo através de gêneros, logo,

336
na terceira fase de Fairclough, de restritores da ação, o gêneros passam a ser a própria ação,
mesmo que relativamente estabilizada, como ocorre em Bakhtin.
Cremos que, aqui, a retomada da noção de “práticas” e sua oposição com a estrutura
sejam pertinentes. Aliás, a exemplo do próprio Fairclough, trataremos da relação entre “práticas”,
“estruturas” e “eventos”, ou “acontecimentos”. Conforme o autor britânico, as estruturas são
abstratas, os eventos são concretos e as práticas são menos abstratas que as estruturas e,
certamente, menos concretas que os eventos. Assim diante da dialética entre estrutura e
acontecimento, podemos tomar as práticas como uma mediadora dos dois. É o que faz Norman
Fairclough, definindo as práticas como formas de ação dos indivíduos parcialmente estruturadas, o
que de fato as coloca entre as estruturas e os eventos. Os indivíduos são, guiados por convenções,
mas a partir do momento em que agem, falam, se expressam, cada ato individual será único
tomado em sua totalidade. Mas sempre há uma parte comum nesses atos, que podemos
apreender, é justamente a parte determinada pelas convenções. Enfim, diante dessa dialética,
quando nos referimos às ações dos sujeitos, estamos nos referindo a práticas, que podemos
considerar uma fronteira entre a estrutura e o acontecimento.
Os gêneros, como enunciados ou modos de ação relativamente estruturados, certamente
se encontram mais no campo das práticas do que no das estruturas.
De fato, se faz pertinente considerarmos a tríade estruturas/práticas/acontecimentos,
entretanto por sua característica de únicos e irrepetíveis os acontecimentos são inapreensíveis – é
o que o próprio Bakhtin admite em sua obra Para uma filosofia – e assim sendo, é impossível
operar com os acontecimentos em sua totalidade. Portanto, o que nos resta é a oposição entre
estruturas e práticas, a qual é mais trabalhada nas análises de discurso e em diversos outros
estudos da linguagem e da sociedade.
Apesar de termos optado por operar com a oposição entre estrutura e acontecimento
quando abordamos a obra de Bakhtin, consideramos que o autor não deixa de fazer referências as
práticas, especialmente quando este define a noção de ato-atividade. Conforme o autor, o ato se
caracteriza pelo seu aspecto de conteúdo ou sentido e também por sua realidade histórica.
Conteúdo/sentido de um ato é o que transparece nas representações que se faz do mesmo, e a
realidade histórica se relaciona com o mundo da vida, o acontecimento, a unicidade e concretude
deste mesmo ato. Em palavras simplórias, diríamos que o ato tem sua parte apreensível e sua
parte real, irrepetível.

O momento que o pensamento teórico discursivo (nas ciências naturais e na

337
filosofia), a descrição-exposição histórica e a intuição estética tem em comum *…+
é este: todas essas atividades estabelecem uma cisão entre o conteúdo ou sentido
de um dado ato-atividade, e a realidade histórica do seu ser, a real e única
experiência dele. *…+ Este ato é verdadeiramente *…+ apenas em sua inteireza.

Analisados todos esses aspectos das reflexões de Mikhail Bakhtin e sua relação com a obra
de Fairclough, reconhecemos o quão importante é a apropriação que Fairclough faz das noções e
da dialogia bakhtiniana em sua abordagem discursiva, e de fato, temos em Bakhtin um grande
suporte para o viés estruturalista-construtivista de Fairclough. E além da dialogia bakhtiniana
também temos a arqueologia foucaultiana que abordaremos a seguir.

Elementos da arqueologia foucaultiana na abordagem discursiva de Fairclough


Assim como nos soa contraditório associar a dialogia bakhtiniana ao pensamento
estruturalista, o mesmo ocorre com a arqueologia de Michel Foucault, sendo que o filósofo
francês procurava se manter distante de toda problemática sobre o estruturalismo. Por outro
lado, havia autores que considerassem a obra de Foucault como estruturalista, é o que faz o
próprio Norman Fairclough, ao alegar que o estruturalismo foucaultiano se dá no fato de o sujeito
ser efeito das formações discursivas, o que suprime sua capacidade de agir.
Retomando a problemática entre estruturalismo ontológico e estruturalismo
epistemológico, afirmamos que a problemática estruturalista que Fairclough relaciona a Foucault
é de ordem ontológica. De fato, não era preocupação do filósofo francês averiguar em seus
trabalhos como se constituía a capacidade que os sujeitos tinham de transformar estruturas
vigentes, entretanto não consideramos seguro afirmar que a agência do sujeitos eram suprimidas.
Foucault opera com a noção de “descontinuidade”, o que implica ênfase nas transformações dos
fatos. Consideramos que não faz sentido pensarmos transformação, sem que isso implique certa
credibilidade na agência dos sujeitos. E agência de sujeitos diz respeito às práticas, mesmo que
uma parte das mesmas seja determinada pelas estruturas.
De qualquer modo, o estruturalismo-epistemológico que caracteriza a arqueologia
foucaultiana é produtivo na abordagem de Norman Fairclough. É o que discutiremos a seguir.
Para tratarmos da arqueologia de Michel Foucault, consideramos pertinente relembrarmos
resumidamente sobre a obra História da loucura na Idade Clássica, ou simplesmente História da
loucura. Tida como uma das principais produções de Michel Foucault, esta foi escrita em 1961,
sendo baseada em seu trabalho final de doutoramento. Tal obra não deixou de ter suas
repercussões, sendo também importante para maior reconhecimento do autor em diversas

338
disciplinas, como a Análise do Discurso, a Filosofia e a História. Com a História da loucura, marca-
se o início da metodologia de pesquisa utilizada por Foucault conhecida como “arqueologia”, a
qual é definida mais especificamente em A arqueologia do saber, na qual a temática da loucura é
muito recorrente em exemplificações que explicam a metodologia.
História da Loucura é dividida em três partes principais, cada qual abordando diferentes
aspectos da trajetória que a loucura seguiu ao longo do que podemos considerar a sua
constituição. Ou seja, a obra de Foucault descreve como a ideia da loucura foi se desenvolvendo
durante a Idade Clássica, a qual enquadra os séculos 17, 18 e 19. E, como podemos perceber
durante a leitura, a loucura foi adquirindo contornos com o passar do tempo, de “saber” estranho
para a maioria a doença que precisava ser tratada. Igualmente relevante para a constituição dessa
história é o tratamento que a sociedade dava ao louco, como esta o construía, e como procurava
excluí-lo do convívio com os demais, alegando diversos motivos, os quais estavam ligados tanto a
fatores econômicos, como jurídicos, morais e também religiosos.
Tendo em vista o que já relatamos sobre a História da loucura, afirmamos que mais do que
uma história (ou arqueologia) da loucura, a obra de Michel Foucault é também uma história das
práticas de exclusão que se desenvolveram no decorrer da Idade Clássica, estando tais práticas
relacionadas com a economia, a política, a filosofia, a religião, os comportamentos, entre outros
de cada século. Isto é, as práticas de exclusão eram constituídas conforme o que se encontrava
vigente em cada época, seja nos aspectos econômicos, nos políticos, nos religiosos, dentre outros.
Além da Idade Clássica, Foucault aborda o final da Idade Média e também o período da
Renascença, os quais foram importantes também para o desenvolvimento da ideia de loucura e
das práticas de exclusão.
Enfim, e considerando o que já abordamos sobre a História da loucura, o estruturalismo
foucaultiano não se dá pelo fato de o filósofo francês desfavorecer a ação dos sujeitos, em
detrimento de formações discursivas em que estes se enquadram. Assim como em Bakhtin, o viés
estruturalista de Foucault, é de ordem epistemológico-metodológica1, em outros termos, Foucault
se utiliza de modelos estruturais em seus estudos.
Costa (2008), se refere a metodologia foucaultiana, destacando as noções de formação
discursiva, arquivo, sistema, regularidade utilizadas na obra de Foucault como noções de caráter
visivelmente estruturalista. Ao tomar, por exemplo, a “formação discursiva” como um “sistema de
dispersão” de enunciados, portador de certas regularidades, Foucault não deixa de se referir a

1
No presente trabalho optamos por dar ênfase ao estruturalismo-epistemológico em Foucault, entretanto Costa
(2009) faz uma análise de como o estruturalismo-ontológico também se encontra no autor francês.

339
uma estrutura cujos elementos têm relação entre si, sendo tais relações responsáveis por certo
grau de regularidade no sistema. Entretanto o modelo estrutural de Foucault não opera com
estruturas estáticas, mas sim com “estruturas dinamicamente correlacionadas” (Costa, 2008),
partindo desse pressuposto Costa (2008) nos afirma que

Foucault parece querer montar um dispositivo teórico-metodológico que permita


fazer o que Bakhtin diz ser impossível: uma estruturação do acontecimento
enunciativo. Nessa leitura, a descrição das formações discursivas poderia ser
equiparada a uma objetivação do devir, em cuja operacionalização o próprio autor
prevê a descrição da formação de cada um dos seus elementos: dos “objetos”, dos
“tipos de enunciação”, dos “conceitos” e das “escolhas temáticas”.

Percebemos então que a dialética entre estrutura/acontecimento, também se faz presente


na arqueologia foucaultiana, e que o filósofo francês buscava operar especialmente com a
segunda noção, o que seria mais um reforço a nossa tese de que Foucault não dava primazia a
estruturas. Reafirmamos que a arqueologia foucaultiana não deixa de se centrar em estudo das
práticas. Em suma, a abordagem de Michel Foucault, por operar com modelos estruturais
dinâmicos para estudar a constituição de práticas, se faz extremamente produtiva na análise de
discurso de Norman Fairclough. Aliás, consideramos, com certa segurança, que o modelo
foucaultiano e o modelo faircloughiano se diferenciam basicamente pelo trabalho que este último
realiza com textos empíricos, baseando-se no Funcionalismo de Michael Halliday. Aliás, a falta de
análise de textos na abordagem de Michel Foucault é questionada por Fairclough.
Não podemos negar, entretanto, que há alguma diferença entre as categorias utilizadas
pelos dois autores. Por exemplo, no lugar de “formação discursiva” (equivalente às “esferas
sociais” em Mikhail Bakhtin), Fairclough utiliza o termo “ordem de discurso”, o qual designaria um
conjunto de práticas discursivas, sendo também a face discursiva de uma ordem social a qual se
refere a um conjunto de práticas sociais. Aliás, a noção de “ordem de discurso”, é mais uma
apropriação que Fairclough faz de Foucault, entretanto no autor francês o funcionamento da
mesma se difere, visto que para Foucault ordem de discurso se referiria a um conjunto de
princípios que regem o seu funcionamento. Entretanto, notamos algumas vezes que Foucault
utiliza essa noção do mesmo modo de Fairclough, o que nos confirmaria o afrouxamento do
filósofo francês com relação a suas categorias. Aliás, esse afrouxamento é outro traço que torna
Fairclough diferente de Foucault.
Para finalizar, julgamos conveniente retomar traços da reflexão bakhtiniana e inclui-la na
presente discussão. Consideramos que a arqueologia foucaultiana tem derivações advindas da

340
dialogia bakhtiniana, (caso seja atrevimento afirmar que ambas seriam praticamente a mesma
metodologia), e para isso retomamos a definição de “enunciado” dos dois autores. Para Bakhtin:

Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada


esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos
falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, refletem-se
mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o
caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados,
aos quais está vinculado no interior de uma determinada esfera comum da
comunicação verbal. (Bakhtin, 2000)

Para Foucault:

[...] um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido


podem esgotar inteiramente. [...] é único como todo acontecimento, mas está
aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado
não apenas a situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas,
mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a
enunciados que o procedem e o seguem. (Foucault, 2009)

Observada a semelhança entre as definições, cremos que Foucault obteve, de fato, acesso
as obras de Bakhtin para desenvolver a sua arqueologia, mesmo que o autor soviético não seja
citado na obra foucaultiana.
Ao recuperarmos aqui a dialética entre estruturas e práticas, ou estrutura e
acontecimento, consideramos que tanto a dialogia bakhtiniana quanto a arqueologia foucaultiana
tinham como meta o trabalho com práticas através de modelos estruturais, entretanto vemos a
arqueologia foucaultiana desenvolvida através de temas como a loucura, o nascimento da clínica,
o nascimento das prisões, a sexualidade2. Por outro lado, Bakhtin postula diversos princípios para
sua dialogia, mas não os aplica a algum objeto. Certamente o autor soviético não teve tal
oportunidade, devido ao contexto histórico de repressão em que vivia.
Por fim, temos Fairclough aliando dialogia e arqueologia a todo um trabalho empírico com
textos, alegando que a análise dos textos seria um passo importante para a análise das práticas.
Para poder trabalhar com textos, Fairclough opera de modo menos frouxo que Foucault, no que
diz respeito a categorias, as quais ele toma de empréstimo da Linguística Sistêmico Funcional de
Halliday. Entretanto possuir certo zelo no uso destas, não faz com que Fairclough deixe de centrar

2
Embora a obra Vigiar e punir e os volumes de História da sexualidade, que tratam respectivamente sobre o
nascimento das prisões e a relação que se tinha com a sexualidade na Idade Clássica, pertençam a fases posteriores a
fase arqueológica de Michel Foucault, estas não deixam de ter traços da arqueologia, já que se realizam através de
análise documental, para reconstituir todo um conjunto de práticas referentes ao tratamento de criminosos e
prisioneiros e também ao tratamento da sexualidade. As categorias expostas em A arqueologia do saber podem ser
aplicadas às obras posteriores.

341
sua abordagem nas práticas e na influência que estas podem ter sobre as estruturas, ou das
mesmas sofrer, e Bourdieu, em cujo trabalho aprofundaremos em pesquisas futuras, é mais um
subsídio para que isso seja possível na obra do autor britânico
Enfim, toda uma dialética entre estruturas, práticas e acontecimentos é o que rege o viés
estruturalista de Norman Fairclough e também desses autores que lhe dão suporte.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981.

______. Para uma filosofia do ato. Tradução brasileira inédita.

CHOULIARAKI, Lilie; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity: rethinking critical


discourse analysis. Edinburgh, England: Edinburgh University Press, 1999.

COSTA, Alexandre Ferreira da. O fantasma estruturalista e a Análise do Discurso Crítica. In: Anais
do III Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

______. A crítica do documento de Michel Foucault: apontamentos sobre modalização empírica


em análise do discurso. In: Via Litterae, Anápolis, v. 1, n. 1, p. 5-22, jul./de 2009.

DOSSE, François. História do estruturalismo. v. 1. O campo do signo. Campinas: Ed. Unicamp,


1993.

ECO, Umberto. A estrutura ausente. 7. ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo:Perspectiva,
2001.

FAGES, J. B. Para entender o estruturalismo. Lisboa: Moraes Editores, 1973

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001; Izabel Magalhães,
coordenadora da tradução, revisão técnica e prefácio.

______. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.

FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. 7. ed. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2003.

______. A arqueologia do saber. 7. ed. Tradução de Luís Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, [1969] 2009.

______. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996

342
AS CARTAS DE HELIO GALVÃO NUMA PERSPECTIVA DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

Lucimar Bezerra Dantas da Silva- UERN (doutoranda UFC)

Ao reunir análise linguística e teoria social, a Análise de Discurso Crítica (ADC) tem se mostrado
produtiva na análise e compreensão de questões relativas a problemas sociais a partir do ponto de
vista de pessoas que se encontram em situação de risco, seja pela pobreza, pelo preconceito de
gênero ou de raça, seja pela negação de direitos básicos como casa, educação, assistência médica,
assistência jurídica etc. Nesse enfoque, o discurso passa a ser tomado como uma prática social e
como uma das formas de agir no mundo. Segundo Fairclough (2001[1992]), a noção de prática
social envolve a ação social e discursiva de sujeitos que se encontram situados em um contexto
sociohistórico. Neste artigo, objetivamos discutir alguns dos conceitos que embasam a ADC, entre
os quais destacamos o de prática social, prática discursiva e gênero discursivo. Tais conceitos
deram suporte à análise das cartas de Helio Galvão como uma dimensão da prática social. Para
desenvolver a análise, selecionamos três cartas de um total de 127, originalmente publicadas no
jornal Tribuna do Norte em meados da década de 60 do século passado e depois reunidas em três
livros: Cartas da Praia, Novas Cartas da Praia e Derradeiras Cartas da Praia e Outras Notas sobre
Tibau do Sul. Na análise selecionamos o significado acional, que diz respeito ao conceito de
gênero, e o significado representacional, que diz respeito ao conceito de discurso (Fairclough,
2003). A análise nos mostra que as cartas de Hélio Galvão se constituem em uma prática social
particular, na medida em que, de forma recorrente, interpretam e descrevem eventos que
caracterizam uma visão de mundo de moradores de Tibau do Sul-RN sobre racismo, questões
legais e inovações tecnológicas e científicas.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de discurso crítica, prática social, discurso, gênero discursivo,


significados.

1. REVENDO CONCEITOS-CHAVE DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC)


A Análise de Discurso Crítica (ADC) é uma disciplina multidisciplinar que se propõe a discutir
teórica e metodologicamente o discurso, partindo do pressuposto de que a linguagem é uma
forma de prática social. As pesquisas desenvolvidas com base na ADC tendem a conceber o
discurso com base na relação que se estabelece entre linguagem e sociedade que passa a ser
compreendida a partir da análise das práticas sociais, dos eventos e da estrutura social.
Interessam, sobremaneira, aos pesquisadores Dessa área relacionar os estudos de texto aos
conceitos de ideologia, poder, racismo, discriminação baseada em sexo, violência, identidade
nacional, identidade de gênero, exclusão social, pobreza etc. As análises buscam interpretar e
explicar de que forma essas questões são veiculadas na mídia ou em ambientes institucionais a
ponto de serem naturalizadas (Resende, 2009).

343
O papel da ADC, segundo Magalhães (2005: 3), é “o estudo de textos e eventos em diversas
práticas sociais, propondo uma teoria e um método para descrever, interpretar e explicar a
linguagem no contexto sociohistórico”. A complexidade que envolve a compreensão de questões
desse tipo exige uma abordagem multidisciplinar, respaldada por teorias sociais e teorias
linguísticas. Nesse sentido, para se descrever, explicar e compreender como se dá a relação entre
o mundo social e a linguagem, a ADC utiliza conceitos de várias ciências como a Linguística, a
Antropologia, a Psicologia, a Sociologia, a Semiótica, a História etc. Nesse escopo amplo da ADC,
alguns conceitos são fundamentais. Nessa pesquisa, vamos dar destaque aos conceitos discurso,
prática discursiva, prática social e gênero discursivo.

1.1 O conceito de discurso


A noção de discurso apresentada por Fairclough (2001[1992]) ampara-se em uma
abordagem denominada “Teoria Social do Discurso” através da qual ele defende que o discurso é
um modo de ação, ou seja, é o discurso que possibilita às pessoas agirem no mundo. Esse agir não
é individual, mas social e, portanto, condicionado pelas práticas e estruturas sociais. O autor
considera que os estudos de Foucault sobre formação discursiva foram muito importantes para o
reconhecimento de que “o discurso contribui para a construção de todas as dimensões da
estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem...” (Fairclough, 2001:91
[1992]). Como uma prática social, o discurso constrói e constitui o mundo em significados, pois as
representações que fazemos das coisas do mundo e a significação que atribuímos a essas coisas
somente são possíveis na e pela linguagem.
Magalhães (2000), ao comentar o conceito de discurso proposto por Fairclough, esclarece
que se trata de uma concepção tridimensional em que são considerados o texto, a prática
discursiva e a prática social.
Fairclough (2001[1992]) distingue, ainda, três efeitos construtivos do discurso. O discurso
contribui para a construção das identidades sociais e posições de sujeito; para a construção das
relações sociais entre as pessoas e; por fim, para a construção de sistemas de conhecimento e
crenças. Esses três efeitos estão relacionados as três macrofunções de Halliday (função ideacional,
função interpessoal e função textual), que explicam como se dá a relação entre linguagem e
sociedade. Baseando-se nessas três macrofunções, Fairclough desenvolve duas releituras. A
primeira é apresentada na livro de 1992, Discourse and social change. Nesse livro, ele mantém a
função ideacional, conforme propôs Halliday, mas divide a função interpessoal em duas: função
identitária e relacional. A outra releitura é apresentada no livro ”Analysing Discourse: textual

344
analysis for social research”, publicado em 2003. Nessa recontextualização, Fairclough amplia o
diálogo teórico entre Linguística Sistêmico- Funcional (LSF) e a ADC, principalmente, por constatar
a correspondência existente entre ação e gêneros, representação e discursos, identificação e
estilos.
Nesse novo quadro, como apontam Resende e Ramalho (2006), as funções da linguagem são
substituídas por significados aos quais são acrescidas as distinções entre os conceitos de gêneros,
discursos e estilos. Assim, as funções são recategorizadas em três significados: acional,
representacional e identificacional (Fairclough, 2003). Como apenas os significados acional e
representacional vão fundamentar a análise das cartas, trataremos essas duas categorias de
forma mais detalhada.
a) o significado acional – está relacionado aos gêneros, pois o aspecto discursivo dos modos
de agir e interagir socialmente é materializado por textos. Ou seja, as práticas sociais específicas
produzem e selecionam gêneros discursivos particulares em um contexto sociohistórico e cultural
determinado. Cada gênero se constrói a partir da articulação de estilos e discursos, que concedem
aos gêneros certa estabilidade, a fim de que possam ser produzidos e reconhecidos pelos
participantes na interação social.
Analisar um texto a partir da noção de gênero implica analisar as práticas sociais e os
eventos representados nos textos. Também, podem-se analisar as características composicionais
abstratas dos gêneros, cujas marcas são essencialmente lingüísticas e imagéticas. Quanto a esse
aspecto, um gênero pode apresentar mais passagens predominantemente narrativas, descritivas,
argumentativas ou conversacionais etc. Outra categoria que pode ser analisada no significado
acional é a intertextualidade, conforme apontam Resende e Ramalho (2006).
b) significado representacional – diz respeito aos discursos e suas significações nos textos.
Os discursos significam o mundo de diferentes perspectivas e representam as relações entre as
pessoas e o mundo e entre elas próprias. O discurso é visto como uma espécie de recurso a que os
atores sociais recorrem nas mais diversas formas de relação com o outro. Um mesmo texto pode
articular diferentes discursos de forma harmônica ou polêmica. A essa propriedade que os textos
possuem de articular diferentes discursos é denominada de interdiscursividade. A
interdiscursividade, portanto se constitui em uma categoria relevante para analisar o significado
representacional dos textos. Conforme Resende e Ramalho (2006), outras categorias analíticas

345
ligadas a esse significado são a representação dos atores sociais40, e o significado da palavra e a
lexicalização de significados.
c) significado identificacional – diz respeito aos estilos, ou seja, como os aspectos
discursivos dos modos de ser são representados nos textos. Os estilos estão relacionados às
formas de identificação dos atores sociais em textos, ou seja, as identidades são construções
simbólicas criadas discursivamente.

1.2 O conceito de prática discursiva


Fairclough (2001[1992]) afirma que, seja de forma convencional ou criativa, a prática
discursiva contribui tanto para reproduzir, quanto para transformar a sociedade. Em outras
palavras, as identidades sociais, o relacionamento interpessoal, os sistemas de conhecimento e
crenças podem ser reproduzidos, mas também podem ser transformados pela prática discursiva.
Situando a prática discursiva como uma instância predominantemente lingüística, ele afirma que a
prática discursiva manifesta-se em forma de textos orais ou escritos. Assim, para estudar o mundo
social e a linguagem, o conceito de discurso é fundamental, pois se o uso da linguagem é uma
pratica social, é através do discurso que agimos, representamos e significamos o mundo.
Fairclough (2001:91 *1992+) acrescenta que através do discurso “as pessoas podem agir sobre o
mundo e especialmente sobre os outros”.
Nesse sentido, é correto afirmar que as identidades sociais, as relações sociais entre as
pessoas e os sistemas de conhecimento e crenças são construídos pelo discurso. A prática
discursiva contribui para reproduzir a sociedade, a partir dos textos que são produzidos e
consumidos (Fairclough, 2003).

1.3 O conceito de prática social


A noção de prática social envolve a ação social e discursiva de sujeitos que se encontram
situados em um contexto sociohistórico. Para Fairclough (1992, trad. 2001), considerar o uso da
linguagem como uma prática social implica algumas reflexões acerca do conceito de discurso.
Nesse sentido, é preciso compreender que o discurso é uma forma de ação e que a relação entre o
discurso e a estrutura social ou entre a prática e a estrutura social acontece dialeticamente. O
autor também afirma que a prática social pode ter várias orientações - econômica, política,
cultural, ideológica- e o discurso pode estar implicado em todas essas orientações de forma ampla

40
As autoras tomam como referência o artigo de VAN LEEUWEN T. A (1997) A representação dos atores sociais. In:
PEDRO, E. R. (org.) Análise Crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, 1997, pp.
169-222.

346
e flexível, ou seja, pode-se falar de prática econômica ou de prática política de perspectivas bem
distintas.
Apesar de prática discursiva e prática social serem dimensões bem semelhantes, pois são
discursivamente constituídas, Fairclough (2001:99 *1992+) adverte que “a prática discursiva
manifesta-se em forma lingüística [...] como textos (...) linguagem falada e escrita. A prática social
(política, ideológica etc.) é uma dimensão do evento discursivo, da mesma forma que o texto”.
Ao tratar da dimensão analítica da prática social, Magalhães (2000:93) afirma que “a
dimensão da prática social envolve a análise do contexto imediato dos eventos discursivos, como
também do contexto institucional e societário”.

2. A NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO


A noção de gênero discursivo adotada neste trabalho vai ao encontro das formulações de
Bakhtin (2003 [1953]) que estende essa noção para todas as práticas de linguagem. Assim, o
estudo dos gêneros precisa estar incorporado à vida social. Os gêneros discursivos se originam
nas diversas esferas sociais com suas respectivas práticas, por isso não é possível nem
produtivo apontar com precisão quantos gêneros discursivos existem, uma vez que ao mesmo
tempo em que surgem alicerçados por novas práticas sociais, também se transformam. Essas
transformações ocorrem paralelamente à dinâmica das sociedades que, ao longo do tempo,
modernizam-se impulsionadas, principalmente, pelo surgimento de novas tecnologias, de
novas áreas do conhecimento e de novas relações entre os indivíduos. Nessa dinâmica, os
gêneros já existentes vão se modificando, podendo tanto dar origem a novos gêneros (a carta
deu origem ao email) quanto desaparecer. (Marcuschi, 2002).
É possível afirmar, então, que os gêneros estão sempre se atualizando, de modo que um
gênero é sempre velho e novo ao mesmo tempo. Rodrigues (2005) destaca que ao conceituar
gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciado, Bakhtin está se referindo a uma

tipificação social dos enunciados que apresentam certos traços (regularidades)


comuns, que se constituem historicamente nas atividades humanas, em uma
situação de interação relativamente estável, e que é reconhecida pelos
falantes.(Rodrigues, 2005:164)

Fairclough (2001[1992]) assume uma posição teórica semelhante à de Bakhtin e emprega o


termo gênero para se referir a um conjunto de convenções que possui relativa estabilidade e que
se associa a um tipo de atividade (uma conversa informal, uma entrevista de trabalho, um poema,
347
um artigo científico etc.) socialmente reconhecido. Para ele, “as mudanças na prática social são
manifestações não só no plano da linguagem, nas mudanças no sistema de gêneros, mas também
em parte provocadas por tais mudanças” (Fairclough, 2001: 162*1992+). Um aspecto relevante
apontado pelo autor é que um gênero além de apresentar um tipo particular de texto, também
apresenta particularidades quanto ao processo de produção, distribuição e consumo.

2.1 O gênero discursivo carta

As cartas estão situadas em várias práticas sociais. O ato de enviar uma carta a alguém pode
abranger uma série de ações, pois esse gênero possibilita a seu emissor/a mandar ou pedir
notícias, solicitar favores, opinar, reafirmar laços, divulgar idéias literárias, científicas ou religiosas,
firmar acordos, ensinar, avisar, divulgar produtos, conceder bens, conceder patentes, firmar
contratos, documentar decisões importantes, entre outros. Através da carta dois indivíduos
podem se comunicar de forma direta, dentro de uma relação específica em determinadas
circunstâncias. Para Bazerman (2005: 83), a carta “parece ser um meio flexível no qual muitas das
funções, relações e práticas institucionais podem se desenvolver”. Essas relações e práticas criam
novas formas de dizer, e também podem criar novos gêneros.
Considerado um gênero primário, pois está situado entre aqueles “que se formaram nas
condições da comunicação discursiva imediata” (Bakhtin, 2003: 263*1953+) a carta se transformou,
ao longo do tempo em um gênero propício a finalidades comunicativas muito variadas. Bazerman
(2005:87) observou que “a manutenção e ampliação dos laços sociais modificaram as relações
estabelecidas através das cartas para além do formal e oficial em direção ao pessoal”.
Historicamente, as primeiras cartas destinaram-se a usos formais e oficiais. Porém, no
processo evolutivo, passaram a incluir expressões de preocupação pessoal, até se consolidarem
como uma forma de correspondência privada trocada entre dois indivíduos (Bazerman, 2005).
Com o tempo, as cartas passaram a fazer parte de outros domínios, como o religioso, o político e o
científico e também exerceram influência no surgimento de outros gêneros
No mundo moderno da comunicação escrita (jornal e revista) muitos tipos de cartas foram
surgindo – editorial, carta ao leitor, carta do leitor, carta aberta, carta-pergunta etc., operando-se,
assim, uma transformações nas relações entre os sujeitos envolvidos, pois a carta, originalmente
compartilhado entre duas pessoas ou entre um grupo restrito, como a família, passa, no jornal, a
ser de domínio público.
Nos jornais impressos do Rio Grande do Norte, embora essa prática também possa ser
percebida na imprensa brasileira como um todo, observa-se que o ato de escrever cartas a um
348
colunista ou ao redator do jornal para serem publicadas tem se constituído em uma prática social
bastante difundida e presente desde os primeiros jornais a circularem no Estado. Podemos citar
como exemplo as cartas de Eloy de Souza41 sobre a temática do sertão que foram publicadas no
jornal A República, no início do século XX.
As cartas que compõem o corpus desta pesquisa foram publicadas em jornal impresso na
década de 60, do século XX. Essas cartas abarcam uma grande variedade de temas ligados à vida
cotidiana dos moradores de Tibau de Sul e outras comunidades praieiras próximas. Os temas mais
recorrentes são a pesca, os instrumentos de pesca, as espécies de peixes, a preparação dos
alimentos, as manifestações culturais, a história das pessoas, a flora, a fauna, a medicina caseira, o
controle da natalidade, os direitos do cidadão, as festas e as narrativas das conversas que o autor
mantinha com as pessoas do lugar.

3. A CARTA COMO UMA PRÁTICA SOCIAL: O CONTEXTO SOCIOHISTÓRICO DAS CARTAS DE


HELIO GALVÃO
Nesta seção, vamos situar as cartas de Helio Galvão no contexto sociohistórico em que
foram produzidas e apresentar algumas reflexões sobre a carta como uma prática social.
Durante os anos de 1967 e 1968, Helio Galvão (1916-1981)42 publicou no Jornal Tribuna do
Norte – que circula no estado do Rio Grande do Norte - uma série de cartas em que conta fatos,
conversas, “causos” ou descreve pessoas e seus hábitos, enfim, o modo de vida de pessoas que
habitavam comunidades praieiras do litoral sul do Rio Grande do Norte. Essas cartas foram
posteriormente organizadas em 03 livros: Cartas da Praia, que reúne 37 cartas publicadas durante
o ano de 1967; Novas Cartas da Praia, que reúne as 45 cartas publicadas durante o ano de 1968;
e, Derradeiras Cartas da Praia e Outras Notas Sobre Tibau do Sul, que reúne 44 cartas (tratam-se
de textos inéditos, fruto de anotações feitas em diversos períodos da vida do escritor).
Se o universo das cartas é a praia e tudo que diz respeito ao modo de vida do povo dali em
meados do século XX, o ponto de observação é Tibau do Sul43. Foi nesse pequeno município, onde
o autor tinha casa de veraneio e onde passava os períodos de férias, que registrou nas cartas o
que viu e o que lhe contaram. Em um texto intitulado “Notas sobre Tibau do Sul”, Helio Galvão dá

41
O norteriograndense Eloy de Souza (1983-1959) foi deputado Federal e Senador da República pelo Estado do Rio
Grande do Norte. Como jornalista, atual no Jornal A República, fundado em 1º/07/1889 para defender e divulgar as
idéias republicanas.
42
Jurista, folclorista, sociólogo e professor de Antropologia na Faculdade de Filosofia da UFRN.
43
Município localizado no litoral sul do Rio Grande do Norte, distante a 79 quilômetros de Natal .

349
detalhes sobre a história do lugar e conta sua luta pessoal junto aos políticos do Estado para
transformar o distrito de Tibau do Sul em Município, o que só aconteceu em 1963.
Através da leitura das cartas, podemos perceber que o escritor participava ativamente da
vida da comunidade e mantinha com os moradores, principalmente os mais antigos, uma relação
de amizade e respeito (ele e sua mulher foram escolhidos para padrinhos de batismo de várias
crianças). Muito do que ele conta nas cartas é fruto das conversas amigáveis que mantinha com os
moradores e moradoras, com os compadres e comadres.
De acordo com Fairclough (2003), conceber a linguagem como uma prática social implica
tomar o discurso como um elemento da vida social que mantém uma relação dialética com todos
os outros elementos envolvidos nas práticas. Se o discurso interage com os outros elementos da
prática social – sujeitos, relações sociais, poder, instrumentos, objetos, valores, crenças, semioses
– então cada prática social produz e seleciona gêneros discursivos específicos e adequados às
finalidades comunicativas a que se propõe. A escolha de um gênero também leva em conta o
contexto sociohistórico, as condições de produção, o consumo e a adequação à temática
abordada.
Na introdução do livro Novas Cartas da Praia44, Helio Galvão afirma que essas novas cartas
seguem o estilo epistolar já adotado em seu primeiro livro Cartas da Praia45 pois considera que o
gênero carta “facilita e justifica a variedade de temas e por esta forma libertos da sujeição e do
condicionamento dos títulos” (Galvão, 2006:125).
Conscientes de que o gênero deve ser considerado a partir de características flexíveis em
que regras e padrões podem ser rompidos em favor da criatividade, Chouliaraki e Fairclough
(1999), citados por Resende e Ramalho (2006:64) afirmam que:

Um gênero é em si um mecanismo articulatório que controla o que pode ser


usado e em que ordem, incluindo configuração e ordenação de discursos, e,
portanto, precisa ser compreendido como a faceta articulatória do discurso, e não
simplesmente como estruturação apresentada por tipos fixos de discurso.

É nessa concepção que as cartas de Helio Galvão se constituem em uma prática social
particular, pois a partir da visão de mundo recortada pelo autor tomamos conhecimento de como
os moradores de Tibau do Sul são representados discursivamente, como os aspectos relativos a
crenças, valores são construídos pelos moradores e como são relatados, a partir da visão

44
Primeira edição de 1968.
45
Primeira edição de 1967.

350
particular do autor. Buscando compreender como esses aspectos são representados e
construídos, selecionamos 03 cartas, dentre as 127 que compõem os três livros, para desenvolver
a análise. As cartas nº 3046 (de 14/04/1967) e a nº 36, (de 24/04/1967) estão inseridas no livro
Cartas da Praia. A carta nº 7 (s/d) faz parte do livro Derradeiras Cartas da Praia e Outras Notas
Sobre Tibau do Sul. Primeiramente, vamos analisar as cartas com base no significado acional,
conforme postula Fairclough (2003).
Compreendemos que a escolha pelo gênero carta tem implicações que merecem uma
reflexão. Primeiro, a carta possibilita que vários de temas sejam abordados; segundo, apesar de as
cartas possuírem alguns elementos caracterizadores, como o vocativo (nas cartas de Helio Galvão
é “Sr Redator”), o local e a data, o fato de alguns desses elementos serem omitidos não se
constitui em uma ameaça para o seu reconhecimento pelos leitores; terceiro, a composição
retórica da correspondência pessoal é bastante flexível e seu caráter informal permite
manifestações de estilo individual. Nas subseções a seguir, vamos desenvolver a análise das três
cartas, tomando como categorias de análise o significado acional e o significado representacional.
Em virtude da limitação de espaço, foram feitos cortes no texto das cartas. Os trechos sublinhados
referem-se às passagens comentadas na análise.

3.1 Carta nº 30 – publicada em 14/04/6747

“Sr. Redator:

Qual é o direito que rege a vida destas comunidades de pescadores e agricultores?


Aqui ninguém sabe o que é habeas-corpus nem mandado de segurança. Os
agentes policiais nem se dão ao trabalho de abrir inquérito por qualquer asneira:
uma noite de cadeia, o pagamento da carceragem é limpar um pedaço de rua ou
lavar o xadrez antes de ir embora. [..]

O direito do povo é um direito não-escrito, de normas elaboradas ao correr dos


tempos. Os juristas de gabinete, desses que escrevem uma lei hoje para ser
emendada amanhã, ou daquelas que se fazem para ficar no papel sem aplicação
prática, teriam muito que aprender se viessem ver o direito vivo do povo. [..]

Ninguém tomou conhecimento do Código Civil. Inventário, pra quê? Escritura de


uma casa que se vende, basta pagar e receber a chave. Demarcação? Basta uma
picada, tirada a olho. [..]

46
A numeração das cartas segue o critério da data em que foram publicadas no jornal.
47
GALVÃO, Helio. Cartas da Praia. Natal (RN): Scriptorin Candinha Bezerra: Fundação Helio Galvão, 2006, pp. 85-87.

351
Casamento? É preferível o religioso. Mas a ausência do sacerdote, que não se
encontra por exemplo no dia em que se vai acertar o casamento, “botar os
papeis”, como se diz, leva a pessoa a procurar o cartório, para não perder a
viagem. [..]

O direito que rege a partilha do pescado é imemorial. Recentemente foi


introduzido o uso da balança. Mas antes a partilha era feira a olho, pela simples
comparação dos peixes. Curioso é que sempre a partilha é feita por um pescador
mais velho, estranho ao grupo e dá sempre um jeito de ficar um peixe sobrando,
chamado cadeira. A cadeira fica para o partidor. [..]

Quando algum proprietário de terra arrenda roçados, basta o locatário cortar uma
moita: está marcado. Outro concorrente passa adiante para marcar o seu. [..]

Esse direito, assim elaborado, não obedece a sistema nem a classificação: nem é
civil, nem penal, nem público, nem privado. O processo é sumaríssimo, e se reduz a
algumas fórmulas verbais. A contestação, por exemplo, se expressa por estas
duas: “Menos a verdade” ou “Dê as provas”. É o princípio de que a prova da
alegação compete a quem a faz”.

Na carta acima, publicada em 14 de abril de 1967, o autor descreve como as questões legais
são resolvidas na comunidade. Fica claro, como se pode ver nos trechos sublinhados, que os
moradores adotam formas particulares de exercer o direito, sem a interferência de uma
autoridade jurídica para mediar as transações efetuadas. As regras e normas definidas
sociohistoricamente são aceitas e reproduzidas ao longo do tempo. Nesse contexto, o que conta é
o valor da palavra empenhada pelos envolvidos na negociação, quer se trate de um simples
aluguel de um imóvel ou da venda de uma propriedade de terra. Essas transações são feitas sem a
necessidade de preencher papel, de elaborar documentos baseados em leis elaboradas. A
assinatura de um contrato é substituída pela palavra dada, pois como afirma Helio Galvão: o direito
do povo é um direito não-escrito, de normas elaboradas ao correr dos tempos. (...) Esse direito, assim
elaborado, não obedece a sistema nem a classificação: nem é civil, nem penal, nem público, nem privado.
Outra questão importante tratada nessa carta diz respeito à forma como os pescadores
dividiam, entre eles, o peixe pescado. Na ausência da balança, o peixe era repartido calculando-se,
pelo olho, o peso aproximado. Eventos como esse provam que muitas das transformações
econômicas e culturais, típicas das sociedades modernas pós-industrializadas ainda não haviam
chegado a esse lugar. Esse tipo de prática demonstra que os pescadores ainda não tinham se
adaptado ao modelo proposto pela sociedade capitalista moderna que se caracterizou pela busca
constante de modernizar os modos de produção (Thompson, 2009)

352
3.2 Carta nº 36 – publicada em 24/04/67

“Sr. Redator,

Em Tibau do Sul não há negros. Apenas dois irmãos, uma mulher e um homem,
podem ser considerados como representantes da raça negra (Sudanesa?), seja na
pigmentação carregada da pele, seja no prognatismo do perfil facial, embora os
pomos não sejam muito salientes. O cabelo, porém, é encarapinhado. E o nariz
bastante achatado. O irmão apresenta certa tendência à esteatopigia, mas a irmã
é delgada de corpo.

O “genipapo” aqui é muito frequente, Quando nasce uma criança, há mesmo


pessoas que vão visitar a parturiente só com esse objetivo, porque o “genipapo” é
sinal de mistura racial. O “genipapo” é o que em Antropologia chamamos de
mancha sacra ou tacha mongólica. [...]

Aqui, o “genipapo” é um desgosto para a mãe e um motivo de comentário para os


abelhudos. [...]

Em Patané todo mundo é branco. Mas em Surubajá, bem pertinho, a população


tem a pele bastante pigmentada. Em Pipa, há muita gente branca, inclusive
louros, como o nosso João Pará. Em Pernambuquinho a população, como em
Surubajá, é mais morena do que clara, e o pessoal de Tibau costuma chamar
depreciativamente “negros de Pernambuquinho”. Em Cabeceiras, quase não há
diferença de Pernambuquinho. Mas em Munim, Catolé, Grota, Manimbu, o povo
de cor fortemente escura. No Piau, como no Mari, a predominância é da cor
branca. Em Sibauma, quase toda a população é negra, talvez em virtude do
isolamento em que até pouco tempo viveu esse núcleo demográfico. (...)
A cor dos olhos é predominantemente castanha. Mas numa família encontro
vários exemplares de lindos olhos azuis. (Galvão, 2006:101-103)

O tema dessa carta gira em torno da descrição dos moradores de Tibau do Sul e outras
comunidades próximas, a partir dos critérios como raça, cor da pele e dos olhos e incidência de
mancha sacra.
Percebe-se, pela descrição detalhada das características físicas de dois moradores de Tibau
de Sul, considerados “representantes da raça negra (Sudanesa?)”, a construção de uma identidade
negra baseada na aparência. Guimarães (2005:22) sugere que “a distribuição de cor aos
indivíduos, prática muito comum no Brasil e que fundamenta a construção de grupos de cor pelos
sociólogos, longe de prescindir a noção de ‘raça’48, pressupõe uma ideologia racial e um racismo
muito peculiares”. Para esse autor, “raça” é um conceito que não corresponde a nenhuma
realidade natural, mas social e baseado em uma visão negativa frente a certos grupos sociais.

48
Grifos do autor
353
Para desenvolver a análise dessa carta, partiremos do significado representacional de textos,
através do qual é possível perceber como o mundo é representado discursivamente. Para tanto,
privilegiamos os traços lingüísticos, especificamente o vocabulário.
Os vocábulos usados na caracterização física do homem e da mulher, considerados os únicos
representantes da “raça negra” na cidade, embora contraditoriamente o autor comece a carta
afirmando que em Tibau do Sul não há negros, alternam-se entre o discurso científico e o discurso
de senso comum. Por um lado ao referir-se à aparência do cabelo e do nariz ele seleciona,
respectivamente, os adjetivos encarapinhado e achatado. Por outro lado, ao acentuar aspectos
físicos comuns a pessoas afro-descendentes ele seleciona vocábulos do discurso científico:
prognatismo do perfil facial, a pouca saliência do pomos e uma certa tendência à esteatopigia.
Prognatismo é um termo usado na medicina, que significa “projeção anormal da mandíbula para a
frente”; pomos diz respeito à saliência da cartilagem tireóide; e, esteatopagia, também é um
termo médico que significa “acúmulo excessivo de gordura nas nádegas” (Aurélio, 1988).
Quando se refere à cor da pele das pessoas, o branco é sempre “branco”, não há gradações,
mas quando se trata de descrever a pele negra, a escolha vocabular é mais variada: pele bastante
pigmentada, mais morena do que clara, negros de Pernambuquinho, cor fortemente escura.
Quanto à cor dos olhos, há uma distinção entre olhos castanho e lindos olhos azuis o que reflete
formas de representação que aliam a beleza apenas à raça branca de olhos claros.
Guimarães (2005) cita em seu livro que o sociólogo da Universidade de Harvard Franklin
Frazier veio ao Brasil em 1940 e numa visita a Salvador observou muitos aspectos sobre o
comportamento de brasileiros em relação ao preconceito de cor e chegou a algumas conclusões,
como a que Guimarães (2005:45) destacou:

Há no Brasil uma certa dose de preconceito de cor, que deve ser distinguido de
preconceito racial, no sentido americano. Por preconceito de cor, em contraste
com preconceito racial49, entende-se que as atitudes em relação a pessoas de
ascendência negra são influenciadas pela cor e não pela origem racial ou
biológica.

Nessa carta, Helio Galvão também ressalta o preconceito dos moradores em relação à
mistura racial, caracterizada pela presença do “genipapo” em recém-nascidos. O relato do autor
confirma que a verificação da presença ou não da mancha sacra nas crianças nascidas era uma
grande preocupação entre os moradores de Tibau do Sul, conforme passagem retirada da carta: O
“genipapo” aqui é muito frequente, Quando nasce uma criança, há mesmo pessoas que vão visitar a

49
Grifos e tradução de Guimarães.

354
parturiente só com esse objetivo, porque o “genipapo” é sinal de mistura racial. Aqui, o “genipapo” é um
desgosto para a mãe e um motivo de comentário para os abelhudos. [...]
O fato de considerar a cor da pele como uma característica negativa se baseia em um
discurso racista e preconceituoso que reflete crenças reforçadas ao longo da nossa história de país
colônia e escravagista. van Dijk (2008) afirma que o sistema de racismo compreende dois
subsistemas: um social e outro cognitivo. Enquanto as práticas sociais discriminatórias constituem
o subsistema social, o subsistema cógnito se refere a modelos mentais de interação e eventos
étnicos embasados em preconceitos e ideologias racistas. O “desgosto” que acomete as mães, ao
constatarem a presença da mancha sacra nos recém nascidos, é uma prática que “pressupõem
representações mentais socialmente compartilhadas e negativamente orientadas acerta de Nós
sobre Eles” (Van Dijk, 2008:135)

3.3 Carta nº 7 (S/D)

Na calçada do “Bar São Paulo” falamos de tudo. [...] Muitas crianças estão
brincando. (...)

Tenho nas mãos o nº 4, vol. 4, 1977, da revista “Povos”, editada pela Federação
Internacional do Planejamento Familiar, publicação financiada pelos governos de
24 países, com escritório de distribuição em Londres.

Nesse número, a revista publica uma reportagem sobre a ação da BENFAM no Rio
Grande do Norte, com destaque em Tibau e alguns tópicos sobre Taipu. (...) Acho
que a BENFAM devia ser mais policiada e sempre fui muito franco em relação ao
seu trabalho de matar a vida.

Como os meninos estão fazendo uma grande algazarra, alguém manda que vão
embora: “Diabo de tanto menino. Parece que sai de baixo do chão”.

Aí eu entro com o meu jogo: “Eu pensava que aqui estivesse nascendo pouco
menino, depois que começou a distribuição da pílula”.

- “Que nada, diz Juvenal. Agora é que nasce. Quase todo dia nasce um menino.
Não tem rua que não tenha quatro e até oito mulheres buchudas”.

Paulo Meireles, que tem doze filhos, confirma o mesmo diagnóstico: está havendo
maior número de nascimentos. (...) Comadre Lica e Elina, também: menino como
formiga.

Há depoimentos abertamente contrários à pílula e à propaganda contracepcional.


E os meninos formigando nas ruas. (...)

Em Pernambuquinho e Cabeceiras, Munim e Catolé a pílula não tem repercussão.


As mulheres continuam fiéis à vocação da maternidade. [...]Alice é uma moça
loquaz, falando com desembaraço e com adequação vocabular, pronunciando
corretamente as palavras. Pergunto pelos filhos: o mais velho está no Rio e nunca

355
mandou nada. Significa que não ajuda os pais. Os outros crescem com saúde.
Quinze partos, dois dos quais seguidamente ocorreram a 7 de setembro. Tem vivos
o primeiro e os cinco últimos: morreram nove. [...] Nenhum argumento para a
BENFAM: para a saúde pública. [...]
De toda esta abordagem, agente constata que as restrições à natalidade, que é a
política da BENFAM, estão sendo marginalizadas pela população. Escolhido para
cobaia, Tibau responde negativamente à experiência”. (Galvão, 2006:294-298)

Carta nº 07 também será analisada a partir do significado representacional. Porém a


categoria que embasará a análise é a interdiscursividade. Nessa carta, o tema central é a política
de planejamento familiar instituída pela BENFAM (Sociedade Civil Bem-Estar Familiar) no final dos
anos 60, no Brasil. A atuação da BENFAM no Brasil foi motivada, principalmente, pelo grande
número de abortos provocados que levaram muitas mulheres à morte, passando a ser
considerado, na época, um grave problema médico e social. Outra motivação para atuação da
BENFAM era a alta taxa de natalidade nas cidades nordestinas. Todos esses fatores foram
decisivos para que a “Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil” começasse a desenvolver, no
ano de 1967, um trabalho de orientação e educação em planejamento familiar, o que incluía a
distribuição de pílula anticoncepcional.
Nessa carta, Helio Galvão conta como os moradores de Tibau do Sul, uma das cidades, no
Rio Grande do Norte, escolhidas pela BENFAM para por em prática o programa de educação para
o planejamento familiar, reagiram diante da novidade. Percebe-se nessa carta a presença de três
discursos: um religioso que reforça a atitude das mulheres em não aderirem ao uso da pílula como
método anticonceptivo, pois acreditam que o poder de conceder ou de tirar vidas é divino. Esse
discurso, que ainda hoje é disseminado pela Igreja Católica, parece ter influenciado decisivamente
na posição adotada pelas pessoas que reagiram negativamente à experiência. Observa-se ainda a
presença de dois discursos que se articulam de forma competitiva; um discurso ‘protagonista’ e
um discurso ‘antagonista’ (Resende e Ramalho, 2006). O primeiro é representado pelo discurso
científico, implícito nas ações da BENFAM; o segundo é representado pelo discurso de resistência
que considera a atuação da BENFAM como trabalho de matar a vida. O discurso do planejamento
familiar é o discurso protagonista. É institucionalizado e conta com o aval de instituições
internacionais e de profissionais da saúde que alegam preocupação em proteger a saúde da
mulher. O discurso antagonista se caracteriza pela resistência dessa comunidade em aceitar a
política de planejamento familiar. As mulheres de Tibau do Sul não só rejeitaram o uso da pílula,
mas também desqualificaram a política de planejamento familiar desenvolvida pela BENFAM.
Algumas formas de representação dos atores sociais reforçam o discurso antagonista contra o
planejamento familiar, como fica claro nas passagens a seguir:

356
 Quase todo dia nasce um menino. Não tem rua que não tenha quatro e até
oito mulheres ‘buchudas’.
 Há depoimentos abertamente contrários à pílula e à propaganda
contracepcional. E os meninos formigando nas ruas. (...)
 Em Pernambuquinho e Cabeceiras, Munim e Catolé a pílula não tem
repercussão. As mulheres continuam fiéis à vocação da maternidade
 De toda esta abordagem, agente constata que as restrições à natalidade,
que é a política da BENFAM, estão sendo marginalizadas pela população.
Escolhido para cobaia, Tibau responde negativamente à experiência”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há como questionar, hoje, a importância e o papel da linguagem na vida social. A
linguagem atua através de textos que, por sua vez, encarnam gêneros. Em face disso, os trabalhos
que se propõem a estudar o discurso e a compreender de que forma a mediação entre linguagem
e sociedade se realiza, devem buscar nos textos o material para essa abordagem. No caso desta
pesquisa, a linguagem estabelece uma intermediação entre as práticas sociais e os eventos que
constituem o modo de viver de habitantes de Tibau do Sul e o mundo letrado do jornal. A partir
das observações, das conversas com os moradores, das anotações etnográficas, Helio Galvão
escreveu um grande número de cartas que foram todas publicadas no Jornal Tribuna do Norte.
Essas cartas, portanto, se constituem em uma prática social particular, na medida em que, de
forma recorrente, interpreta e descreve eventos que caracterizam um mundo particular de
pessoas simples de uma cidade praiana. O autor das cartas retrata o que esses homens e mulheres
pensam sobre racismo e como reagiram à intervenção da BENFAM na campanha para controle da
natalidade através do uso da pílula anticoncepcional. Também descreve como lidam com as
questões legais referentes à venda de um imóvel, à doação de terra para a prática da agricultura
de subsistência ou como comercializam o peixe.
As cartas nos dão conta das diversas dimensões da vida social dos moradores, das práticas
cotidianas repassadas ao longo do tempo pela tradição oral, dos valores e crenças, da manutenção
de certas tradições, mesmo que algumas delas não tragam nenhuma contribuição para o
desenvolvimento econômico dos moradores, como é o caso da prática de repartir o peixe pescado
a olho, sem a utilização de balança.
Mesmo selecionando um corpus pequeno, é possível ter uma idéia das contingências típicas
de cidades do interior do Nordeste brasileiro esquecidas pelos poderes públicos. Mas, pensando

357
no momento atual, será que essa realidade mudou? Que práticas sociais permanecem e que
práticas foram esquecidas? Como os moradores se posicionam hoje sobre o preconceito de cor,
em função de todas as mudanças jurídicas em voga? Esse seria objeto de um novo estudo.
Para finalizar, podemos afirmar que se por um lado, o relato das práticas sociais de
moradores e moradoras de uma comunidade litorânea há quase cinqüenta anos parece
compatível com as condições a que eram submetidos em função da ausência de investimentos em
educação, por exemplo; por outro lado podemos perceber que a tradição passada de geração para
geração determina uma visão particular de agir no mundo e contribui para que esses moradores e
moradoras se posicionem como sujeitos de suas ações.

REFERÊNCIAS

BAKTHIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4ª edição. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

BAZERMAN, Charles; Dionísio, Ângela Paiva e Hoffnagel, Judith Chambliss (Orgs.). Gêneros
textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005.

COSTA, Décio Bessa da. Charges eletrônicas das eleições de 2006: uma análise de discurso crítica.
Brasília: dissertação (Mestrado), 2007.

FAIRCLOUGH, Norman. Analysing Discourse: Textual analysis for social research. Londres e Nova
York: Routledge, 2003.

_____Discurso e Mudança Social. Izabel Magalhães, coordenadora da tradução, revisão técnica e


prefácio. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001[1992].

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. 1ª


edição, 5ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

GALVÃO, Hélio. Cartas da Praia. Natal (RN): Scriptorin Candinha Bezerra: Fundação Hélio Galvão,
2006.

GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Fundação
de apoio à Universidade de São Paulo; Editora 34 Ltda., 2005.

MAGALHÃES, Izabel. Eu e Tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília; Thesaurus,


2000.

____Introdução. A Análise de Discurso Crítica. D.E.L.T.A, 21:Especial, 2005a, p. 1-9.

____ Análise do Discurso Publicitário. Revista da Abralin, 4 (1 e 2), 2005b, p. 231-260.

358
______Discursos e identidades de gênero na alfabetização de jovens e adultos no Ensino Especial.
Caleidoscópio, 6 (2) 2008, p. 129-147.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In:


KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karim S. Orgs.) Gêneros textuais: reflexões e
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p. 23-36.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela
Paiva; MACHADO, Anna Rachel e BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais e ensino. Rio de
Janeiro: Editora Lucerna, 2002.

Ramalho, Viviane; Resende, Viviane de Melo. Análise de Discurso Crítica. São Paulo; Contexto,
2006.

RODRIGUES, Rosângela Hammes. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a


abordagem de Bakhtin. In: MEURER, José Luiz; BONINI, Aldair e MOTTA-ROTH, Désirée. (Orgs.)
Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005, p. 152-183.

RESENDE, Viviane de Melo. Análise de Discurso Crítica e Realismo Crítico: implicações


interdisciplinares. Campinas-SP: Pontes, 2009.

THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. 8. ed. Petropólis: Vozes, 2009.

VAN DIJK, Teun. A. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.

359
DO CONCEITO OUTRORA DOMINANTE DE ALFABETIZAÇÃO AOS NOVOS ESTUDOS
DO LETRAMENTO: UMA RETOMANDA HISTÓRICA

Lucineudo Machado Irineu1


Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista(orientadora)2
Universidade Federal do Ceará

Este trabalho objetiva colocar em discussão algumas questões relativas aos novos estudos do
Letramento visto como conjunto de práticas discursivas com finalidade de abordagem para além
do nível básico de alfabetização. A presente comunicação tratará, em síntese, de uma discussão de
cunho histórico-comparatista da evolução dos conceitos de Alfabetização, Alfabestimo (e
Alfabetismos), Letramento, Letramentos e Multiletramentos e a mudança de concepção destes
conceitos para as práticas de ensino, espeficamente na aula de escrita e de leitura em língua
materna. Como conclusão, põe em discussão, dentre outros pontos, a importância do domínio,
por parte do professor, de tais conceitos e práticas em sua formação continuada e o papel da
escola, neste tocante, aqui encarada por nós como agência de letramento dominante.
Problematiza, em sua conclusão, algumas questões que julgamos ser primordialmente
importantes no novo cenário educacional brasileiro, para a compreensão das novas tecnologias e
relações de ensino estabelecidas, diante da abertura de pensamento a respeito dos Novos Estudos
do Letramento e do Letramento Crítico, como rumos norteadores para as novas práticas
pedagógicas vigente no atual mundo globalizado. Ainda na conclusão, objetivamos sinalizar para
possíveis respostas a questionamentos advindos das razoes motivos do insucesso escolar de
alguns jovens brasileiros inseridos na educação básica e formal.

Palavras-Chave: Alfabetização, Letramento, Escola.

Introdução
Os novos estudos do letramento e das práticas letradas em geral têm sido ponto de
discussão nas universidades brasileiras, em especial, nos últimos anos. Deste modo, questiona-se:
por que houve, então, a necessidade de os pesquisadores em Linguística e em Educação voltarem
seus olhares para os estudos do letramento, em concreto das práticas letradas dos sujeitos? Por
que a necessidade de pensar nas implicações desse modo de olhar e conceber as práticas letradas
da sociedade e ponderar sobre sua repercussão para e no ensino? Noutros termos, por que o
interesse em problematizar o sujeito e sua relação com as práticas letradas da sociedade da qual
faz parte?

1
Mestrando em Linguística do Programa de Pós-Graduação em Linguística - Universidade Federal do Ceará (UFC) –
área de concentração em Linguística Aplicada. Integrante do GEPLA – Grupo de Estudos e Pesquisa em Linguística
Aplicada. Bolsista CNPQ. Tutor do Curso de Licenciatura em Espanhol do Instituto UFC Virtual.
2
Doutora em Linguística pela UNICAMP. Professora do Curso de Letras da UFC. Atua nos cursos de graduação e pós-
graduação dessa instituição. Coordena o Grupo de Ensino e Pesquisa em Linguística Aplicada (GEPLA-CNPq).

360
Diante dessas indagações, propõe-se tratar, de forma sintética e desde uma perspectiva
histórico-comparatista, da evolução de alguns conceitos considerados claves, a saber,
Alfabetização, Alfabestimo (e Alfabetismos), Letramento, Letramentos e Multiletramentos, e a
repercussão disso nas práticas de ensino, espeficamente, na aula de escrita e de leitura em língua
materna. Entendemos que esse percurso poderá nos trazer algumas respostas e, paradoxalmente,
suscitar outras questões, principalmente no que diz respeito a dois pontos centrais: o papel/a
atuação da escola, enquanto agência de letramento dominante, frente às mais diversas práticas
letradas nas quais estão inseridos os sujeitos que ela (a escola) se propõe a formar, e o impacto de
tal papel/atuação na formação destes sujeitos desde o ponto de vista social, perpassando as
questões de linguagem, e adentrando os limites das questões de etnia e de identificação
linguística.
Deste modo, apresentaremos a seguir algumas considerações que tomarão por base os
seguintes questionamentos: em que ponto diferem, desde o ponto de vista linguístico, os
conceitos de alfabetização e letramento (ou letramento(s), em uma perspectiva mais
contemporânea)? Qual deles é mais recente? Quais são os impactos na prática docente da devida
apropriação, por parte do professor, destes dois conceitos, no que diz respeito à validade e à
qualidade da aula de leitura e de escrita em língua materna? Qual o papel da escola frente aos
novos estudos do Letramento? O que pode se entender, hoje, por multiletramento(s)?
Para tratar dessas questões, optamos por uma perspectiva histórico-comparatista que
permita examinar o que podemos considerar como a evolução destes conceitos na área de
Linguística e Educação e, assim, refletir sobre as implicações que tal evolução traz ou pode trazer
para a configuração das práticas docentes cotidianas no referente ao ensino da língua materna,
com ênfase para o desenvolvimento da compreensão leitora e produção escrita do aluno de
ensino médio da rede de ensino básico de nosso país.

Do conceito de Alfabetização aos Multiletramentos: uma análise histórico-comparatista


Durante anos, estudiosos da linguagem tomaram como ponto de partida para
investigações a respeito da aquisição da língua escrita uma concepção de alfabetização
equivalente à “apropriação de um código específico”, sem se levar em conta o complexo processo
de elaboração de hipóteses sobre a representação linguística e o funcionamento e uso de tal
processo. Ao que tudo indica, a ainda insipiente base científica a respeito das questões de
linguagem relacionadas aos estudos das práticas letradas foi um dos fatores responsáveis pela
propagação e pela manutenção de tal conceito durante anos.

361
Destaque-se a esse respeito que um retrato histórico e social do cenário educacional, em
especial da década de 70 do século passado em nosso país, revela a acentuada crise da leitura pela
qual passamos nós, brasileiros, ao que se pode perceber por consequência principalmente do
pouco investimento das autoridades governamentais nas políticas públicas educacionais e
culturais de um modo geral. Nesta época, a escassa circulação de livros e o quase inexistente
incentivo às práticas de leitura em ambientes outros que não a escola foram fatores primordiais
para a instauração de tal crise nas práticas de leitura dos brasileiros, estendendo inclusive às
questões de produção de textos.
Resultado de tudo isso foi que, durante anos, o conceito de alfabetização então dominante
enfatizou a esfera da codificação (no caso da produção de textos) e da decodificação (no caso da
leitura e da compreensão de textos) sem contemplar a dimensão das práticas discursivas de
sujeitos alfabetizados/letrados em geral, ou seja, a natureza cultural, histórica e social das práticas
de produção e recepção de textos. Assim, as consequências de tal postura não poderiam ser
piores: depois de passar anos na escola, os alunos amargavam a triste constatação de que todo o
tempo dedicado ao estudo da língua materna não lhes tinha outorgado habilidades suficientes
para que pudessem, a partir de então, fazer uso das práticas escritas específicas em seu cotidiano,
de sorte que se inserissem em uma sociedade letrada, que lhes demandava certos domínios de
uso comunicativo e interativo.
Tais fatos acabavam por gerar nos alunos e nas instituições de ensino que eles
frequentavam uma clara sensação de fracasso, de insucesso mediante as estratégias de ensino
traçadas frente às crenças dominantes até então. Desta maneira, acreditava-se na validade
máxima do processo de alfabetização como conjunto de atividades linguísticas que possivelmente
levariam os sujeitos enfocados neste tipo de prática de ensino a desenvolver habilidades e
competências linguísticas que lhes serviriam de base para que usassem sua língua materna em
situações cotidianas, de modo a sanar de todas as suas necessidades comunicativas. Ao contrário
do que se imaginava, em situações reais de interação os aprendizes podiam constatar a triste
realidade de não darem conta de suas necessidades comunicativas em detrimento daquilo que
aprenderam na escola.
No entanto, ao passar dos anos, por meio dos avanços de estudos linguísticos centrados
em contextos funcionais e pragmáticos de uso das mais diversas linguagens, assistiu-se ao
progressivo enfraquecimento do conceito então dominante de alfabetização, este que cedeu lugar
a discussões de pontos de vista mais centrados na linguagem humana constitutiva de práticas e

362
relações sociais. Nesta época, a linguagem passa a ser vista como não exterior ao indivíduo, sendo
concebida como instrumento de uso e de reconhecimento social e cidadão.
Ainda neste mesmo contexto, o foco na educação em geral passa a assumir proporções
outras, levando o interesse das escolas de um modo amplo não mais para o simples processo de
alfabetização de seus aprendizes, mas para a execução de uma educação linguística sólida, ou seja,
um ensino de língua materna pautado não só na descrição e na análise linguística de modo
descontextualizado e destoante das relações dos usuários com a língua que põem em
funcionamento em seu cotidiano, mas pautado em uma base científica consciente e com o
objetivo de instrumentalizar os sujeitos a fazerem uso de seu repertório linguístico nas mais
diversas situações de uso real.
Interessante destacar que os documentos oficiais que orientam as diretrizes do ensino
brasileiro, ou seja, os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares Nacionais,
foram redigidos como consequência reacionária à luz dos acontecimentos aos quais estamos nos
reportando neste momento. Trata-se de documentos nos quais as discussões em torno do ensino
básico da língua materna, e consequentemente das práticas letradas dos aprendizes de tal língua,
estão totalmente tematizadas de modo contextualizado e com foco dos trabalhos com relação ao
ensino de línguas centrado no uso real da linguagem, em detrimento principalmente das novas
tecnologias de ensino, ou seja, na educação linguística.
Destaque-se que, em meio a todo esse cenário de inovação no campo de ensino-
aprendizagem de língua materna, os estudos sobre o letramento e sua prática em salas de aula de
todo o país trouxeram contribuições significativas para a questão da aquisição do código escrito,
trazendo à tona questões culturais e sociais em interface com as investigações da aquisição, do
desenvolvimento e do processamento da linguagem escrita por sujeitos empiricamente
constatados, caracterizados como seres que, em situações constantes de interação,
desempenham, em seu cotidiano, práticas letradas específicas, historicamente situadas e
constituídas.
Como dissemos, em meados dos anos 90 pesquisas na área passam a direcionar as
discussões então em vigor não mais para o âmbito exclusivo da alfabetização, mas para um prisma
de análise linguística e educacional mais amplo, uma vez que o que se discutia então era, direta ou
indiretamente, como dissemos, um modelo específico de educação linguística. Já com discussões
avançadas, alfabetização e alfabetismo passam a ser entendidos como processos distintos,
embora intrinsecamente associados. É exatamente nesta época que se dá início ao trabalho de
concepção dos PCN e das OCN, documentos aos quais nos referimos anteriormente.

363
Segundo Rojo (2009: 13), à época, o INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional),
instrumento de aferição dos níveis de alfabetização por órgãos oficiais do governo ligados à
educação e à cultura, como o MEC (Ministério da Educação e da Cultura), considerava como
alfabetismo “a capacidade de acessar e processar informações escritas como ferramenta para
enfrentar as demandas cotidianas”. A partir de tal informação, Rojo (2009: 76) afirma que:

Alfabetismo é, na verdade, um conceito que disputa espaço com o conceito de


letramento(s). Se tomarmos a alfabetização como a “ação de alfabetizar, de
ensinar a ler e a escrever”, que leva o aprendiz a conhecer o alfabeto, a mecânica
da escrita/leitura, a se tornar alfabetizado, alfabetismo pode ser definido como
“o estado ou condição de quem sabe ler e escrever”.

Percebe-se, nas palavras da autora, que o conceito de alfabetização conduz à ideia de


aquisição de um código linguístico escrito específico por um indivíduo que até então não possuía o
domínio de um conjunto de símbolos gráficos empregados para representar o escrito (concepção
tradicional, arraigada durante anos e por muito tempo vista como a verdadeira).
Já quando se pensa em alfabetismo, acabamos por nos reportar a um processo muito mais
amplo que nos remete a um sujeito que conhece o alfabeto e dele faz uso em situações diversas;
daí ser considerado “o estado de quem sabe ler e escrever” e, portanto, às vezes ser confundido
com o próprio conceito de letramento, como afirma a pesquisadora.
Neste ínterim, uma pergunta é inevitável: em que diferem, então, os conceitos de
alfabetismo e letramento? Em que medida se está tratando de conceitos definitivamente
antagônicos ou parcialmente complementares? Para chegar à formação de um pensamento lógico
que figure como uma resposta prévia aos questionamentos expostos, iremos partir do
pensamento de Soares (1998) sobre o que não é letramento. Segundo essa autora (1998: 32)
“letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de
práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto
social”.
Assim, é interessante que se pense o letramento não só como um conjunto de habilidades,
como salienta Soares (1998), mas também como um conjunto de práticas de uso da linguagem,
nos mais diversos contextos, envolvendo sujeitos empiricamente constituídos, representativos de
suas ideologias dentro da dinâmica da produção e recepção de textos. Trata-se de um conceito
que engendra em si um conjunto de práticas linguísticas, de uso efetivo da linguagem como
dissemos, mas que se alarga por sinalizar para discussões muito mais amplas, que se relacionam

364
inclusive com questões de identidade do sujeito ante a língua que adota como referencial para seu
repertório comunicativo.
Deste modo, para essa perspectiva é fundamental a dimensão social e histórica das
práticas letradas. Isso permite, portanto, ampliar a noção e falar em letramentos(s), no plural, e
não mais em letramento, haja vista a dinamicidade observada dos usos da linguagem nas mais
diversas situações cotidianas. Por isso, por exemplo, pode-se considerar a existência de múltiplos
letramentos, uma concepção que alarga as ideias anteriormente estabelecidas pelos estudiosos da
área na medida em que dá ênfase às atividades de uso da linguagem relacionadas a todas as
esferas de produção verbal, e não somente àquelas relacionadas ao mundo escolar, como
observado durante anos na história da educação brasileira.
Ainda com respeito à noção de Multiletramentos (Rojo, 2009), vem a ideia de que em uma
sociedade como a nossa, plural e linguisticamente multifacetada, não se deve falar em letramento,
mas em multiletramentos, ou seja, práticas também social e historicamente situadas, que estão
culturalmente dispostas pelos usuários de uma língua quando do funcionamento de práticas de
escrita não menos específicas. Rojo aponta como exemplo destes multiletramentos o letramento
midiático, através do qual um número cada vez maior de sujeitos se insere em situações claras de
uso da linguagem escrita no cada vez mais crescente mundo virtual e midiático.
E é a partir da constatação de que existem múltiplos letramentos que se questiona o papel
da escola enquanto facilitadora de bens culturais a seus aprendizes, ou ainda, como agência de
letramento. Neste tocante, Rojo (2009: 101) afirma que:
[...] um dos objetivos principais da escola é justamente possibilitar que seus
alunos possam participar das várias praticas sociais que se utilizam da leitura e da
escrita (letramentos) na vida da cidade, de maneira ética, crítica e democrática.
Para fazê-lo, é preciso que a educação linguística leve em conta, de maneira ética
e democrática, os multiletramentos ou letramentos múltiplos, os letramentos
semióticos e os letramentos críticos e protagonistas.

Como exemplos de letramentos, podemos mencionar os multissemióticos em que se


entende a ampliação das práticas letradas para o campo visual, ou seja, para o campo da
compreensão das imagens, e inerentemente às ideologias que tais textos/imagens veiculam de
forma proposital e que no mais das vezes não é percebido pelos receptores de tais textos. Daí a
necessidade de na escola se trabalhar o desenvolvimento de um letramento crítico com foco no
desenvolvimento das habilidades de percepção críticas dos alunos. E, por último, por letramentos
críticos e protagonistas entendemos o trato com a natureza ética e ideológica dos inúmeros e

365
diversos textos que circulam em uma sociedade como a nossa, imersa totalmente em uma cultura
letrada, como afirma Rojo (2009: 110).
Deste modo, chega-se à conclusão de que o recorrido feito sobre a evolução dos conceitos
trabalhados, embora sucinto, permite entrever um panorama da trajetória vivenciada ao longo
dos anos com relação à educação linguística que se deseja/desejou traçar para um país em
constante desenvolvimento como o nosso. Neste tocante, um questionamento se torna inevitável:
a partir de tudo que já se discutiu ao longo dos anos com relação aos conceitos de alfabetização,
alfabetismo(s), letramento(s) e multiletramento(s), que postura deve assumir a escola diante de
seus alunos e de suas práticas letradas? Quais as consequências da apropriação destes conceitos
pelo professor para seu agir cotidiano enquanto docente responsável pela formação de gerações
futuras?
Como se nota, é interessa buscar alternativas, arriscar respostas para pensar nas práticas
letradas, no papel da escola como agência de letramento e na não menos relevante dimensão
ética e inclusiva dos sujeitos no circuito dessas práticas de linguagem que o afetam e condicionam
sua participação na sociedade dita letrada.

Em busca de respostas e reflexões: escola e inclusão social


É quase um consenso entre os estudiosos da área, como dissemos, que a escola, enquanto
principal agência de letramento de nossa sociedade, tem ao longo dos anos disseminado, por
meio de suas ações, a ideia de práticas letradas binárias, dicotômicas, divididas opostamente em
dominantes e vernáculas. Assim sendo, mencionadas tais práticas letradas dominantes e
vernáculas, e antes de avançar, cabem algumas breves considerações a respeito de que consistem
essas práticas.
Entende-se por práticas letradas dominantes as de uso da linguagem (leitura e escrita)
geralmente associadas a agências de letramento e que são institucionalmente constituídas e
oficializadas, como a escola, entendida por nós como a dominante. Essas práticas se dão em
situações em que, por exemplo, é exigida de determinado aluno de ensino médio a produção de
um texto dissertativo-argumentativo para fins especificamente escolares (avaliação,
cumprimentos de atividades curriculares cotidianas etc.). Destaque-se neste momento que
mencionamos a escola por questões de recorte metodológico, mas há inúmeras outras agências
de letramento na sociedade corrente, a igreja por exemplo.
É possível afirmar que as práticas letradas aqui consideradas dominantes são constituídas
historicamente como tal e se firmam ao longo da história estudantil de determinados sujeitos

366
como a única prática de leitura e de escrita validada ao longo de sua vida enquanto cidadão que
faz parte de uma sociedade eminentemente letrada, imersa em bases ideológicas de compreensão
e de produção de textos. São exemplos claros de práticas letradas dominantes, como dito, as
redações escolares solicitadas ao longo das disciplinas de Produção de Textos em salas de escolas
de inúmeras escolas Brasil afora.
Já por práticas letradas vernáculas entende-se o conjunto de situações de uso da
linguagem em contextos ora diversos ora específicos, o que faz dessas práticas um conjunto de
ações de uso da linguagem histórica e socialmente validadas. Figuram como exemplo de práticas
vernáculas as conversas em salas de bate-papo virtuais e/ou a escrita de alunos em blogs
temáticos para adolescentes, tão mais significativas na vida de determinantes sujeitos quanto
representativas de seu histórico enquanto indivíduos produtores e receptores de textos diversos.
Mesmo diante da extrema representatividade dessa produção escrita, constata-se que, no
mais das vezes, o que entendemos como práticas letradas vernáculas são encaradas por algumas
agências de letramento, em especial a escola, como marginalizadas. Sendo assim, geralmente são
desconsideradas e invalidadas em situações oficiais de ensino, como a aula de língua materna. São
exemplos de práticas letradas vernáculas a produção de um bilhete em contexto familiar, a
postagem de um texto autoral na seção “Perfil” da comunidade de relacionamentos Orkut, dentre
outras.
Multiletramentos: contemporaneidade e ideologias (relações com o ensino)
Sabe-se que os sujeitos contemporâneos se vêem inserido em um mundo cada vez mais
diverso no que diz respeito às tecnologias da informação aos quais estão expostos. E com os
sujeitos que frequentam as escolas de ensino médio brasileiras não é diferente. È que estamos
tratando de uma sociedade sem fronteiras ou divisões culturais, que vem se constituindo por meio
de um agrupamento de suportes interativos, denominado mídia.
Tais suportes oferecem meios de discussão fundamentais aos Novos Estados do
Letramento, uma vez que veiculam ideologias diversas e polemizam de que modo os sujeitos
interpretam tais ideologias mediante o cenário de velocidade informacional que vemos
contextualizados, por exemplo, nas telas dos computadores. Quando falamos em mídia (para
levar a cabo as discussões sobre multiletramento e, em especial, letramento midiático), estamos
nos reportando ao conjunto de veículos de comunicação que atingem ou interligam um grande
contingente de pessoas, como por exemplo, a TV, o rádio, o cinema, o jornal impresso, a revista, o
outdoor, o celular e, mais recentemente, a internet. Lócus de geração de sentido os mais
multifacetados que se possa imaginas.

367
E sabe-se que é nesse espaço multifacetado que se realizam os mais diversos tipos de
linguagens, veiculadora das mais diversas ideologias. Assim, a perspectiva é que talvez, nos
próximos anos, muitas das relações de linguagem serão de fato totalmente feridas a partir das
mais diversas mídias. E o que se questiona neste ponto de reflexão é: qual o papel da escola ante o
multiletramento, em especial o letramento midiático, de seus alunos? Em que medida estas
práticas letradas devem ou não fazer parte das discussões sobre linguagem em língua materna?
Ao longo dos anos, a escola tem se feito resistente às linguagens externas advindas da
internet, apesar do avanço de pesquisas na área a dar conta do quão de que é cada vez mais
frequente o número de usuário, leitores e escritores, em ambiente virtual, executando práticas
letradas localizadas, como a produção de blogs e/ou através da interação em comunidades
virtuais de relacionamento. Assim, os gêneros midiáticos circulam na maioria das comunidades
mundiais. Ressalta-se que, o próprio uso cotidiano em massa destes gêneros é que demanda a
realização urgente de investigações no âmbito do multiletramento.
Rojo, em suas pesquisas a respeito do impacto das práticas letradas na vida dos sujeitos,
afirma que (2009: 121):
Multiletramento significa compreender e produzir textos não se restringe ao trato
do verbal oral e escrito, mas à capacidade de colocar-se em relação às diversas
modalidades de linguagens – oral, escrita, imagem, imagem em movimento,
gráficos, infográficos etc. – para delas tirar sentido.

Isto requer também avanços em direção a uma pedagogia eficiente de leitura e produção
de textos culturalmente mundializados, tanto na formação de leitores como no reconhecimento
de produtores proficiente de textos.
Diante de tudo que foi discutido questiona-se: em pleno século XXI, estamos de fato
formando sujeitos letrados ou continuamos a propagar em nossas ações práticas letradas
estritamente dominantes e excluindo ou depreciando as práticas letradas de nossos alunos
práticas tidas como ideologicamente como marginalizadas? Qual tem sido, portanto, o espaço
para esse sujeito e suas práticas letradas vernáculas, localizadas? E as dimensões ética e crítica da
produção e assimilação dos mais diversos textos que circulam em uma sociedade letrada como
tem sido tratada?

Novos Estudos do Letramento (NEL): expansão de domínios


As questões em discussão nos remetem, portanto, ao postulado pelos Novos Estudos do
Letramento (NEL) e ao Letramento Crítico, em especial quanto aos temas acerca da aula de leitura

368
em língua materna com foco na compreensão crítica dos textos, para além do decodificar e para a
produção textual para além da mera reprodução de traços gráficos ou de apropriação e uso do
alfabeto. Em outros termos, na concepção da leitura e da escrita como práticas situadas social e
historicamente e, portanto, atividades específicas de linguagem que envolvem sujeitos e eventos
letrados específicos.
Assim sendo, as contribuições de uma perspectiva como a dos Novos Estudos do
Letramento contempla a dinâmica das práticas letradas em sua dimensão histórica e social, e, em
consequência, ao pensar-se na aula de leitura e produção textuais pode contribuir para
compreender questões relacionadas às dimensões individual e ideológica dos sujeitos que figuram
como produtores e receptores de textos que circulam em uma sociedade como a nossa, imersa
em uma cultura escrita que visa a disseminar propostas de habilidades ideológicas e sociais,
evidenciando nos textos produzidos e recebidos por esses sujeitos questões de autoria e
posicionamento, por exemplo.
Seria, então, a escola a principal responsável pelo apagamento da valorização de práticas
letradas outras, que não as tidas como dominantes, a que os alunos são expostos em seu
cotidiano? Que papel o professor contemporâneo assume diante das novas possibilidades de
leitura e produção de textos em nossa sociedade? O cenário educacional brasileiro acompanha de
fato a evolução das tecnologias da educação a que estamos expostos mais fortemente nos últimos
10 anos? E como o governo vê, através de seus mecanismos oficiais de avaliação da qualidade do
ensino básico brasileiro (como SPAECE, SAEB e ENEM) o nível de letramento destes alunos ao final
de cada etapa de sua vida estudantil?
Trata-se de questões a serem levadas para discussão entre os muros das escolas brasileiras
em geral, uma vez que, enquanto agências de letramento mais representativas em nossa
sociedade, é de lá que se esperam mudanças na ideologia das práticas de ensino então em
vigente. Na medida em que as escolas brasileiras, na legitimação de seus papeis de agências
formadoras, adotam para seu cotidiano a recorrência das discussões a respeito das práticas
letradas de seus alunos, estamos propagando um ensino de língua materna reflexivo, que deve ser
para que se alcance o objetivo maior de formar sujeitos usuários de sua língua de modo
totalmente funcional e pragmático. Deste modo, é preciso salientar a importância da autonomia
que se espera do professor para, em sua prática docente, inserir tais discussões em sua atuação
cotidiana, trazendo para a sala de aula o que de fato nossos alunos leem e escrevem (e não
somente o que a escola espera que eles leiam e escrevam). Talvez seja esse o maior desafio da
educação linguística do novo século.

369
Trata-se de uma postura de reflexão e retomada conscientemente crítica de três questões
basilares para o sucesso escolar das instituições de ensino de nosso país: a prática docente
reflexiva, a formação continuada e a revisão do conceito de escola como instituição formadora de
saberes específicos.
Na dinâmica que a questão fomenta, os Novos Estudos do Letramento se propõem a ser
um referencial teórico e pragmático que vê no sujeito leitor e produtor de textos o foco do ensino
de língua materna, com o objetivo sempre de desenvolver-lhe suas capacidades adquiridas de uso
da linguagem.

A dimensão das práticas letradas e o impacto sobre os sujeitos: relação lecto-escrita


Magda Soares (1999) postula que o letramento e as práticas que ele envolve engendram
em si duas modalidades linguísticas fundamentais aos sujeitos inseridos em situações reais de uso
da linguagem: a leitura e a escritura, modalidades linguísticas vistas como processos simétricos
que, apesar de complementares, são profundamente diferentes e heterogêneos desde o ponto de
vista de sua realização.
Embora ambos (leitura e escritura) representem um conjunto de habilidades linguísticas,
como dissemos, cada um envolve habilidades fundamentalmente diferentes, inclusive por que se
sabe hoje que não se deve postular diferenças rígidas entre fala e escrita, modalidades linguísticas
que, segundo Kato (1886), trata-se de instâncias parcialmente isomórficas, quer dizer, que se
diferenciam ou se assemelham a partir das suas condições específicas de produção.
Nesse sentido, Soares discute ainda que a leitura, do ponto de vista da dimensão individual
de letramento, é um conjunto de habilidades linguísticas e sociais que se estendem desde a
habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos em
larga escala, participando inclusive da sua construção de sentido.
A leitura estende-se da habilidade de traduzir em sons sílabas sem sentido a habilidades
cognitivas, incluindo a habilidade de decodificar símbolos escritos. Disso depreende tratar-se a
leitura de um processo muito mais amplo que o simples ato de decodificar ou sonorizar grafemas.
E é exatamente neste tocante, a leitura para além do nível básico de decodificação e entendida
como fenômeno complexo de geração de sentido, em que apoiam os Novos Estudos do
Letramento (NEL). Perceba-se que estamos nos reportando, direta ou indiretamente, a um nível
social da leitura, em detrimento de uma visão mais processual que se tem verificado ao longo dos
anos.

370
Entendendo que leitura e escrita são elementos/habilidades constitutivos das práticas
letradas e que o fenômeno do letramento envolve dois componentes básicos, os eventos e as
práticas de letramento, faz-se necessário adentrar-se ainda nessas categorias de análise. Soares
(1998) define como eventos de letramento as situações em que a língua escrita é parte integrante
da natureza da interação entre os participantes (enunciador e coenucniador, ou seja, sujeitos
envolvidos no processo comunicativo e em interação linguística e social), seja em interação face a
face, em que pessoas interagem oralmente com a mediação da leitura ou da escrita, seja uma
interação à distância.
Ao tempo em que afirma a interrelação entre eventos e práticas de letramento, Soares
mostra a diferença existente entre os eventos e práticas de letramento escolares e os eventos e
práticas de letramento sociais. Nesse sentido, explica que na escola, eventos e práticas de
letramento são planejados e instituídos, selecionados por critérios pedagógicos, com objetivos
pré-determinados, visando à aprendizagem e quase sempre conduzindo a atividade de avaliação,
geralmente de modo descontextualizada e sem fins comunicativos bem estabelecidos.
A escola, de certa forma, autonomiza as atividades de leitura e de escrita em relação a suas
circunstâncias e usos sociais, criando seus próprios e peculiares eventos e suas próprias e práticas
de letramento. No entanto, o mais importante a se destacar é o modo como a escola reduz o
repertório de práticas letradas dos alunos em ambiente formal de aprendizagem, no mais das
vezes fazendo das práticas vernáculas desses aprendizes práticas marginalizadas, desconsiderando
de todo o repertório linguístico que esses sujeitos põem em evidência em suas relações cotidianas
de uso das mais diversas linguagens.
O que há de se destacar dentre essas várias discussões, como dissemos, é o modo como a
escola vê e interpreta as mais diversas formas de uso da linguagem no cotidiano dos alunos que a
compõem, de modo a estabelecer relação de lógica e valorização também e principalmente de
tudo que o sujeito lê e escreve fora dos domínios institucionais da escola, valorizando de tal modo
suas práticas de linguagem localizadas, ou seja, as que de fato fazem sentido para eles (os
sujeitos), gerando-lhe significados profundos e não menos localizados.
Esse conjunto de reflexões configura-se como ponto de partida fundamental para que as
políticas linguísticas e pedagógicas dominantes nas escolas brasileiras possam ser instrumento de
reflexão crítica por parte dos profissionais da educação, com o objetivo maior de tentar
estabelecer uma relação de fato e verdadeiramente significativa daquilo que os jovens encontram
nas salas de aulas e aquilo que utilizam em seu cotidiano. Trata-se, neste tocante, e uma
necessidade urgente de diagnosticar o que os jovens brasileiros leem e escrevem em suas relações

371
cotidianas com a linguagem para só depois se criar um plano de autuação significativo para as
aulas de língua materna.
Em um contexto contemporâneo, estas mudanças que se deseja por em prática no ensino
de língua materna aponta para novos rumos também no agir do professor na medida em que, a
partir dessa perspectiva, portanto, para além das práticas vernaculares e dominantes já
consideradas tradicionais, são acrescentadas outras práticas que, mediante o surgimento de novas
tecnologias de informação e comunicação (em grande parte mediadas pelo uso da internet), estão
surgindo e exigindo o domínio de certas habilidades e conhecimentos.
Como mencionado, as práticas letradas hoje são realizadas em um ambiente heterogêneo
em que há várias maneiras: por parte dos parceiros, das línguas, gêneros e contextos discursivos.
Assim, não há espaço em causa a educação como uma prioridade ou exclusivos, as quatro
habilidades tradicionais e limitadas a práticas letradas consagrado, mas é necessário incluir o
vernáculo.
Deste modo, podemos concluir que, além da leitura e da escrita, práticas estabelecidas
pela tradição, surgiram outras que exigem novas habilidades e conhecimentos. As práticas
educativas devem se adaptar às mudanças associadas com as práticas de alfabetização, para que
eles incluam nos seus programas de leitura eletrônica e escrita, para promover os valores
interculturais e compromisso com a construção ativa do conhecimento. Isto leva a propor um
ensino crítico, incentivar algumas ações concretas, por exemplo.
Deste modo, trata-se de um princípio de reflexão que induz uma reconstrução dos modos
de pensar e das categorias estabelecidas como privilégio nas mais diversas salas de aula de língua
materna. E mais: representa uma quebra de paradigmas construídos ao longo de anos na história
da educação brasileira, educação essa cujos protagonistas no mais das vezes são indivíduos à
parte, deslocados de sua esfera de atuação frente à língua que falam e ao mundo em que estão
inseridos.

Considerações finais
Neste trabalho, procuramos, a partir de uma visão histórica, comparatista e evolutiva de
conceitos relacionados à educação linguística, levantar, dentre vários, os seguintes
questionamento: em que dimensão situa-se a postura do professor de língua portuguesa na
perspectiva da valorização de tais práticas letradas? Qual a relevância das práticas escolares para o
letramento dos sujeitos e para promover sua inclusão nas mais diversas práticas letradas?

372
Chegamos à conclusão que se trata de questões para reflexões necessárias aos
profissionais de letras e de profissionais de linguagens em geral que devem figurar como ponto de
apoio das escolas brasileiras a partir do que entendem como prática docente eficaz no que diz
respeito ao trabalho com as práticas de leitura e de escrita de seus alunos.
Uma série de questões foi disseminada ao longo deste trabalho com o objetivo principal de
promover uma discussão a respeito da atual conjuntura do ensino de língua materna em nosso
país. Para tanto, nem todas as questões receberam ou receberão logo mais respostas concluídas,
haja a natureza contemporânea de tudo que aqui foi exposto, em destaque para o problema em
torno da disseminação e compreensão da natureza ética e ideológica dos textos que circulam em
nossa sociedade e do papel do professor, frente a esses textos, enquanto formador de sujeitos
letrados.
De tudo, somente a certeza de que vivemos atualmente um momento de mudanças
progressivas no ensino de língua materna a partir do alargamento das discussões a respeito dos
multiletramentos, da abertura filosófica e ideológica que tais discussões proporcionam tanto no
âmbito das escolas brasileiras em geral, quanto de uma possível e necessária releitura crítica e
atualizadora dos documentos oficiais do governo que figuram no cenário educacional brasileiro
como instrumento norteador do agir do professor e da postura da escola frente ao processo de
ensino e aprendizagem.
Espera-se que as questões aqui postas de fato sirvam como sinalizadores da necessidade
de reflexão de alguns conceitos que a escola propaga quase como dogmas no que diz respeito ao
lido com as práticas letradas dos aprendizes de alunos do nível básico de ensino. Por último,
salientem-se a necessidade e a relevância de pesquisas na área, a fim de que respostas sejam
dadas às lacunas ainda existentes neste universo de investigação das práticas letradas em geral,
sejam elas vernáculas ou dominantes.

Referências

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
Brasília, Secretaria de Educação Básica, 2006. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf. Acessado em:
20/03/10.

BRASIL. Parâmetros Curriculares do Ensino Médio em Debate. Linguagens, Códigos e suas


Tecnologias. Brasília, Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 2004. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/02Linguagens.pdf. Acessado em: 20/03/10.

KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986.

373
KLEIMAN, Ângela B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995a.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial,
2009.

SOARES, Magda. B. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

_________________, Magda B. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2003.

374
AS PROFESSORAS: REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADES

Luzia Rodrigues da Silva (UFG)1

Neste trabalho, analiso textos de entrevista proferidos por professoras que atuam na rede de
ensino básico. Indico os modos como elas se auto-representam e representam aspectos do
‘mundo’, bem como as implicações dessas representações para a construção de suas identidades.
Como suporte teórico-metodológico, recorro à Análise de Discurso Crítica (ADC), fazendo uso dos
trabalhos de Chouliaraki e Fairclough (1999) e de Fairclough (trad., 2001 e 2003). A Linguística
Sistêmico-Funcional (Halliday, 2004) também é de meu interesse. Parto da perspectiva de que a
linguagem é prática social e, como tal, configura-se como um sistema aberto (Chouliaraki e
Fairclough, 1999), que, dialeticamente, interage com os vários domínios da vida social. Defendo
que a construção do discurso das professoras está associada aos significados do seu mundo social.
Dessa maneira, enfatizo que elas interiorizam valores, sentimentos e crenças, desenvolvendo
modos de resistir ou de consentir aos efeitos do poder (Foucault, 1979). Esse pressuposto está
relacionado à concepção de que, ao realizar o discurso em situações sociais, as pessoas,
ativamente, constroem suas identidades. Na análise, com o foco nos aspectos linguístico-textuais
e discursivos, indico que as professoras estão restringidas em relação ao exercício da agenciação,
o que sugere a submissão dessas mulheres às forças sociais que as constrangem.
Palavras-chave: discurso, representação, identidades.

Introdução
Este trabalho é parte dos resultados de uma pesquisa - de caráter metodológico
qualitativo e etnográfico - realizada em uma escola pública de Ensino Básico e que objetivava
discutir questões pertinentes a relação Discurso e gênero social. Um dos métodos utilizados para a
coleta de dados foi a entrevista. A escolha por esse método deu-se pelo fato de ele valorizar a voz
dos sujeitos, conferindo-lhes condições de empoderamento. Deu-se também porque ele é capaz
de fornecer “dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores
sociais e sua situação” (Gaskell, trad., 2004: 65), possibilitando-me a compreensão das crenças,
atitudes, motivações e dos valores em relação às posições das pessoas em contextos sociais
específicos. Assim, apresento textos de entrevista – gravados em áudio e transcritos – proferidos
por professoras. Analiso-os, indicando o modo como essas profissionais representam aspectos do
‘mundo’ e a si mesmas, bem como as implicações dessas representações para a construção de
suas identidades. Como suporte teórico-metodológico, recorro à Análise de Discurso Crítica (ADC)
- fazendo uso, principalmente, dos trabalhos de Chouliaraki e Fairclough (1999) e de Fairclough
(trad., 2001 e 2003a) - e à Linguística Sistêmico-Funcional - LSF - (Halliday, 2004). Parto da
perspectiva de que essas duas abordagens estão preocupadas com a relação entre linguagem e
sociedade. A linguagem aqui é considerada um sistema aberto que, dialeticamente, interage com

1
Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília – UnB e professora da Universidade Federal de Goiás – UFG.

375
os vários domínios da prática social. Tal concepção aponta para a perspectiva de que o texto está
relacionado, irremediavelmente, a um contexto sociocultural. Com base nesse princípio, na análise
dos textos de entrevista, que apresento, enfoco aspectos linguístico-textuais e discursivos que
contribuem para a representação e a construção de identidades. Para isso, utilizo-me da categoria
da transitividade, relacionada à função ideacional proposta por Halliday (2004), e de outras
categorias, filiadas à ADC, que contribuem para a análise da representação dos atores/das atoras
sociais. Destaco, aqui, a interdiscursividade. Os modos de operação da ideologia, conforme os
pressupostos de Thompson (1995), também estão sob o meu foco, pois me interessam os modos
pelos quais os sentidos podem estabelecer e sustentar relações de dominação.
A discussão sobre as identidades sociais e de gênero está sustentada em estudos que
defendem as identidades como produto das práticas sociais e das relações de poder que estão
nessas práticas atravessadas (Hall, 2002, Magalhães, 2005; Lazar, 2005; Talbot, 2006; Holmes e
Meyerhoff, 2006, entre outros), o que desafia os conceitos voltados para a ideia de que a
subjetividade humana possa ser definida por aspectos biológicos. Defendo, aqui, a noção de que
as pessoas são afetadas por uma multiplicidade de vozes que tornam suas identidades complexas,
heterogêneas, cambiantes, provisórias e multifacetadas. Situo-me, portanto, em comunhão com
Talbot (1998), para quem o gênero nem é recebido, nem é estático, mas construído ativamente.
A Análise de Discurso Crítica (ADC) e suas possibilidades de diálogo
Fairclough (2003a: 203) argumenta que a Análise de Discurso Crítica (ADC) é uma forma
de pesquisa social crítica, que apresenta como contribuição propiciar melhor compreensão de
“como as sociedades funcionam e produzem tanto efeitos benéficos como maléficos, e como os
efeitos maléficos podem ser mitigados, senão eliminados”. Assim, segundo Pedro (1997: 25), a
ADC interessa-se em analisar e desvelar:
o exercício do poder social por elites, instituições ou grupos, que resulta em
desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade política, a desigualdade
cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de classe, de raça, de sexo
e de características étnicas.

Alinhando-se a essa perspectiva, Magalhães (2004: 3) sugere: “a Análise de Discurso


Crítica (ADC) tem se dedicado à análise de textos, eventos discursivos e práticas sociais no seu
contexto sociohistórico, principalmente no contexto das transformações sociais, propondo uma
teoria e um método para o estudo do discurso”. A ADC, portanto, constitui uma abordagem
teórico-metodológica, cujos propósitos fundamentam-se numa visão crítica acerca dos discursos
constituídos por práticas sociais.

376
O termo discurso, com base nos pressupostos da ADC, é compreendido como parte da
prática social, dialeticamente interconectado a outros elementos (Fairclough, 2003a, Chouliaraki e
Fairclough, 1999), tais como: o mundo material, as relações sociais, a ação e interação, as pessoas,
com suas crenças, seus valores e desejos. Nesse sentido, o discurso, ao mesmo tempo que se
afirma como um dos elementos estruturadores das estruturas sociais2, é por elas estruturado e
condicionado. Assim, o discurso configura-se como um modo de agir sobre o mundo e as/os
outras/os e um modo de representar a realidade (Fairclough, trad., 2001). Desse modo, sustenta
relações de poder e ideologias, mas também as transforma, constituindo relações sociais e
identidades. O conceito de poder, nesse trabalho, está fundamentado nas bases teóricas de
Foucault (1979: XIV), que assim argumenta: “O poder é algo que se exerce, efetua-se, que
funciona como maquinaria social que não está situada em lugar exclusivo, mas se dissemina por
toda a estrutura social”. Esse autor defende que o poder “rigorosamente falando”, não existe.
Para ele, o que existem são as práticas ou relações de poder. Já a concepção de ideologia é, aqui,
sustentada na definição de Thompson (1995: 79):
maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas (ações, imagens,
textos), serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer,
significando que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de
dominação; sustentar, significando que o sentido pode servir para manter e
reproduzir relações de dominação por meio de um contínuo processo de
produção e recepção de formas simbólicas.

Concebendo que o discurso implica relações de poder e formações ideológicas, Fairclough


(1997: 83) defende que texto, prática discursiva e prática social elucidam a relação dialética entre
discurso e estrutura social, numa configuração dos “elos entre a linguagem e a prática social,
realçando, ainda, a investigação sistemática das conexões entre a natureza dos processos sociais e
as propriedades dos textos linguísticos”. Dessa maneira, a perspectiva em que se situa essa
abordagem favorece a investigação da mudança discursiva em sua relação com a mudança social e
cultural, pois os textos são compreendidos na sua relação com as condições sociais, o que envolve
as condições imediatas do contexto situacional e as condições das estruturas institucionais e
sociais. Com base nesse pressuposto, a ADC tem seu foco voltado para a problematização das
práticas sociais, o que a torna reflexiva e emancipatória. Assim, tal abordagem chama a atenção
para o sentido crítico que deve pautar as análises, desnudando e questionando os problemas
sociais que afetam a vida das pessoas, bem como apresentando contribuições para mudanças. A

2
Para Fairclough (2003a: 23), as estruturas sociais são entidades muito abstratas. Pode-se pensar em uma estrutura
social (tal como uma estrutura econômica, uma classe social, um sistema de parentesco ou uma língua) em termos da
definição de um potencial, um conjunto de possibilidades.

377
esse respeito, Fairclough (2003b: 185) aponta que:
a ADC é uma forma de ciência social crítica que é concebida como ciência social
destinada a lançar luz sobre os problemas que as pessoas enfrentam por efeito
das formas particulares da vida social; destinada igualmente a fornecer recursos,
com os quais as pessoas se valem para abordar e superar esses problemas.

A ADC preocupa-se em desvendar questões de poder e ideologia subjacentes ao discurso.


É ela uma abordagem que se interessa em refletir criticamente tais questões com vista à mudança.
É nessa perspectiva que Lazar (2005: 5) defende uma Análise de Discurso Crítica. Para a autora, “a
ADC é parte de uma ciência social crítica e emancipatória” que está comprometida com a
realização de uma ordem social justa por meio de uma crítica do discurso.
Compreendendo, portanto, a relação entre o discurso e o contexto sociocultural, a ADC
orienta para a análise das particularidades de um evento discursivo. Sendo, para essa abordagem,
essencial a análise de um texto na sua dimensão de produção e de interpretação, articulado ao
contexto sociocultural em que ele está situado, é significativo examinar, por exemplo, que
questões um texto pode levantar acerca da construção de identidades de mulheres professoras,
até que ponto elas, posicionadas dentro de determinadas práticas sociais, reproduzem e/ou
contestam ordens do discurso. Cabe destacar que ordem de discurso é um conceito de Foucault
(trad., 1996) e, conforme (Magalhães, 2000: 91), “refere-se à totalidade de práticas discursivas em
uma sociedade ou instituição, à interrelação entre as práticas, às articulações e rearticulações
entre elas”.
As pessoas enfrentam conflitos, polêmicas, confrontos, tensões, posto que elas estão
situadas nas práticas sociais e, por isso, relacionadas a vários outros elementos que constituem tais
práticas, o que implica uma relação dialética de articulação e interiorização. Nesse sentido, a
análise de textos pode indicar relações e marcas identitárias, ideologias e práticas hegemônicas.
Isso envolve dominação, resistência, capacidade ou incapacidade de agenciação dos sujeitos, o que
está associado a um aspecto inerente a toda prática social: a reflexividade, que pressupõe,
conforme conceito de Giddens (2002), uma contínua construção reflexiva do ‘eu’ e do
conhecimento.
A abordagem de Fairclough (trad. 2001 e 2003a) mantém uma estreita ligação com a
Linguística Sistêmica-Funcional (LSF). Tal diálogo é inegável, posto que não se pode deixar de
considerar o caráter funcional da LSF em sua interpretação dos textos 3, do sistema e dos
elementos da estrutura linguística. Ela é voltada para a descrição da linguagem como uso em

3
Para Halliday (2004: 339), “um texto não é um mero reflexo do que está além dele; é um parceiro ativo na
construção da realidade e nos processos de transformação da realidade”.

378
determinado contexto, pois se entende que é o uso da linguagem que molda o sistema. Assim, a
maneira como a língua é utilizada varia de situação para situação, o que implica a relação entre o
texto e o contexto, que interagem mutuamente, numa relação dinâmica e de permanente
mudança.
Para Fairclough (2001), o discurso constitui, de forma simultânea, as identidades sociais,
as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crenças. Do mesmo modo, Halliday (2004)
defende a perspectiva de que a LSF valoriza a teoria da linguagem pautada na metafuncionalidade,
que permite perceber a linguagem presente no texto como representante e constitutiva das
identidades e das práticas sociais. As metafunções são assim nomeadas por esse autor: ideacional,
interpessoal e textual. Sob essa perspectiva, a linguagem é compreendida como um sistema de
significados construídos com base em metafunções, que dão conta, segundo esse autor, dos
modos de usos da linguagem.
Destaco, neste trabalho, a função ideacional, que, de acordo com Halliday (2004), está
relacionada à representação da realidade; ela se refere ao uso da linguagem para representar a
nossa experiência do mundo. É realizada na oração pelo sistema da transitividade, constituído de
três elementos experienciais básicos: os Processos, os Participantes e as Circunstâncias. Processos
são itens lexicais que expressam uma ação, um evento, um estado, um processo, um sentimento,
um existir. Participantes são os elementos que se associam aos Processos para indicar quem age,
sente, existe, fala, encontra-se em dado estado. Circunstâncias são os elementos que exprimem
modo, tempo, lugar, entre outros.
Desses elementos experienciais, o Processo ocupa um lugar central, visto que confere o
tom experiencial a esse mesmo enunciado. Halliday (2004: 170) apresenta, primeiramente, três
tipos de Processos: Material, Relacional e Mental que constituem um grupo predominante no
âmbito da Gramática da Transitividade, configurando, respectivamente, as três instâncias básicas
da experiência: (1) ações e eventos, (2) estados e relações abstratas entre elementos do mundo
real e ainda (3) registros mentais da nossa experiência interior. Complementando essas facetas da
experiência, tal autor (op. cit.: 171) elenca mais três outros Processos: Verbal, Comportamental e
Existencial. Os Processos Verbais são aqueles que expressam formas de dizer ou constroem o
dizer; os Existenciais são a representação de algo que existe ou acontece; já os Processos
Comportamentais exprimem comportamentos físicos e psicológicos.
Fairclough (2003a) amplia o diálogo entre a ADC e a LSF e, assim, opta por três tipos
principais de significados – Acional, Representacional e Identificacional – em vez de falar em
macrofunções. Ele relaciona a multifuncionalidade da linguagem ao tripé que sustenta sua obra:

379
gêneros, discursos e estilos e aos três modos principais pelos quais o discurso figura como uma
parte da prática social: modos de agir, modos de representar, modos de ser. Esse autor defende
que os significados, por ele definidos, estão co-presentes nos textos, numa relação dialética, da
mesma forma que as macrofunções, na perspectiva da LSF. Ele postula uma correspondência entre
ação e gêneros, representação e discursos, identificação e estilos.
Para fins deste trabalho, focalizo minha análise no significado representacional, conforme
as perspectivas de Fairclough (2003a), que dialoga com a metafunção ideacional de Halliday
(2004).
Fairclough (2003a) relaciona o significado representacional ao conceito de discurso como
modos de representação de aspectos do mundo, os quais podem ser representados
diferentemente, de acordo com a perspectiva de mundo adotada. Conforme esse autor
(idem:124):
Diferentes discursos são diferentes perspectivas do mundo, associadas a
diferentes relações que as pessoas estabelecem com o mundo, o que, por sua vez,
depende de suas posições no mundo, de suas identidades pessoal e social, e das
relações sociais que elas estabelecem com outras pessoas.

De acordo com suas posições, dentro de qualquer prática, os atores e atoras sociais
percebem e representam a vida social, com diferentes discursos e produzem representações de
outras práticas, bem como representações ‘reflexivas’ de sua própria prática. Tais representações
são configuradas, para esses atores/essas atoras, em consonância com o modo como eles/elas se
posicionam e são posicionados/as.
Uma das categorias de análise que corrobora com a representação dos atores e das
atoras sociais é a interdiscursividade4, que é aplicada neste trabalho. Por meio dessa categoria,
pode-se identificar os diferentes discursos articulados e a forma como são articulados em um
texto (Fairclough, trad. 2001, 2003a; Chouliaraki e Fairclough, 1999). Aqui, ressalto os discursos de
controle, que são associados às famílias tradicionais e estão filiados à constituição de uma
assimetria de poder entre os gêneros sociais, e os discursos de liberação (ou de emancipação), que
abrem perspectivas de mudança nas práticas sociais de gênero (Magalhães, 2010: 20).
Fairclough (2003a), dialogando com Van Leeuwen (1997), elenca algumas categorias que
dizem respeito a escolhas que representam os atores/as atoras sociais. São elas: Inclusão ou
exclusão: quais atores/atoras são incluídos/as e ou excluídos/as; Ativo ou passivo: como os
atores/as atoras sociais são representados/as - de modo ativo (como ator/atora no Processo) ou

4
Em Fairclough (2001; 2003a - no glossário), a interdiscursividade também está relacionada à articulação de outros
elementos de ordens do discurso, como os gêneros e estilos.

380
passivo (como afetado/a ou beneficiário/a); Pronome ou nome: se os atores/as atoras sociais são
realizados/as como um pronome ou como um nome; Pessoal ou impessoal: se os atores/as atoras
sociais são representados/as pessoal ou impessoalmente; Nomeado/a ou classificado/a: se os
atores/as atoras sociais são nomeados/as (representados/as pelo nome) ou classificados/as
(representados/as em termos de classe ou categoria); Específico ou genérico: se os atores/as
atoras são classificados/as, deve-se verificar se são representados/as especifica ou genericamente.
A representação dos atores/das atoras sociais é também uma das categorias utilizadas na
análise do texto apresentado neste trabalho. Tal categoria pode ser diretamente relacionada à
função ideacional e ao sistema da transitividade (Halliday, 2004).

As identidades: uma construção social


A discussão sobre as identidades está imbricada aos estudos da ADC, segundo a qual um
dos efeitos constitutivos do discurso é o de contribuir para a construção de identidades sociais.
Como acentuam Shotter e Gergen (1989), as pessoas têm suas identidades construídas de acordo
com o modo por meio do qual se vinculam a um discurso – no seu próprio e nos discursos dos
outros. E, ainda, conforme Grigoletto (2006: 38), “o ser humano é um ser de linguagem o que
significa compreender que a constituição das identidades realiza-se pelas e nas práticas
discursivas”.
Essa discussão tem despertado interesse de um grande número de estudiosos que
entendem as posições identitárias associadas às intensas mudanças sociais, culturais e
econômicas, características da modernidade posterior, que provocam rupturas nas estruturas
antes estáveis. Nesse contexto, a discussão sobre as identidades sugere o pressuposto: as
identidades pós-modernas estão sendo descentradas, deslocadas, fragmentadas (Hall, trad., 2003).
É relevante, portanto, examinar as mudanças das práticas sociais, investigando as identidades de
gênero, com foco nas vozes femininas que se posicionam e são posicionadas em meio a essas
mudanças, como sujeitos de práticas sociais.
Afetadas pelas mudanças, de âmbito global, local e pessoal, as identidades, antes
consideradas fixas e imutáveis, tornaram-se fluidas e desestabilizadas. Isso porque, construídas
histórica e socialmente, estão sempre num estado de fluxo (Rajagopalan, 1998; Hall, 2003).
Filiando-se a essa perspectiva, Holmes e Meyerhoff (2006: 11) defendem: as identidades de gênero
devem ser consideradas “como um construto social em vez de uma categoria social ‘dada’ para a
qual as pessoas estão designadas. O gênero é tratado como a realização e o produto da interação
social”. Essa afirmação marca oposição “a uma suposta essência subjetiva que engendraria a

381
identidade de cada indivíduo” (Grigoletto, 2006: 15).
Focalizando os sujeitos como identidades cambiantes, transitórias e móveis, Fairclough
(trad., 2001) defende que os discursos não apenas refletem ou representam identidades e relações
sociais; eles as constroem ou as constituem, sendo, portanto, representação, ação e identificação
(Fairclough, 2003a). Portanto, investigar o discurso com base nessa perspectiva, significa analisar
como as pessoas estão agindo no mundo e construindo suas realidades sociais e a si mesmas.
Desse modo, não se pode deixar de reconhecer a interrelação discurso e identidade, pois
a construção das identidades implica a interação entre os sujeitos agindo em práticas sociais nas
quais estão posicionados (Castells, trad., 2002). Implica, ainda, a influência de fenômenos externos
afetando “aspectos da intimidade dos sujeitos, modificando vidas e o modo de ser de cada um
deles” (Vieira, 2005: 209).
Tais fenônemos estão relacionados à distribuição dos recursos simbólicos a qual “é
interconectada com as relações de poder derivadas de um contexto histórico profundamente
afetado por desigualdades sociais de gênero, classe social, etnia e raça” (Magalhães, 2005b: 108).
Isso significa que, mesmo que as identidades estejam em contínua construção e, por mais rápido
que seja esse processo, existe descompasso em relação a essa mudança e à evolução global que
dificultarão a construção identitária da mulher da pós- modernidade (Vieira, 2005).

As professoras: representação e identidades


Os discursos são resultados das diferentes perspectivas de mundo das pessoas, do lugar
em que elas se posicionam ou são posicionadas, em seus contextos sociais, e das relações que são
estabelecidas. É nessa perspectiva que apresento e analiso, nessa seção, relatos de duas
professoras, Madalena e Rosa5. Como já indiquei, no início deste trabalho, foco a minha análise na
auto-representação dessas professoras, procurando estabelecer relações com a construção de
suas identidades.
Os relatos foram frutos de uma seção de entrevista em que, na condição de
entrevistadora, fiz, entre outras, a seguinte pergunta: Que motivos levaram você a se tornar
professora?

5
Por se tratar de dados de uma Pesquisa etnográfica, que, por uma questão ética, defende a preservação da
identidade dos sujeitos, todas as referências às pessoas são realizadas por meio de pseudônimos. Madalena e Rosa
são professoras do Ensino Básico de uma escola pública da cidade de Goiânia – Go.

382
Texto 1
Eu fui levada a ser professora. Eu acredito que eu devo ter alguns aspectos
positivos no exercício profissional, mas eu me sinto assim muito frustrada. Eu
estou em uma altura da minha vida, faltando uns dez anos pra aposentar, e eu
não estou com coragem de enfrentar isso aí. Procuro uma tábua de salvação pra
mim. Não é isso que eu quero. Nunca trabalhei com escola particular. Também,
nunca abriram as portas pra mim Tudo aqui é o mundo de obstáculos, o mundo
que eu não consigo transpor. Eu preciso disso pra sobreviver, mas no dia-a-dia,
eu sinto angústia. Às vezes, quem olha pra aula pensa que está tudo bem, mas
não está, eu acho que está tudo errado na educação. Eu acho que professor não
é ouvido, é escutado tudo, menos a voz do professor. Então, você trabalha, você
peleja, você faz de tudo e quando chega no final do ano… não é que eu estou
querendo como prêmio o castigo do aluno, ou a reprovação do aluno. Não é isso.
É que eu sinto que aquele aluno não tem como ser aprovado, mas o sistema quer
que ele seja aprovado, isso dói na gente. Então, é uma série de pedrinha que a
gente encontra no caminho e eu me sinto impotente diante de tudo isso. Então,
você aceita do jeito que está ou então você deixa, e eu já deveria ter saído faz
tempo, mas eu acho que essa acomodação é questão própria da minha vida
pessoal. O tempo foi passando e agora não sei como devo fazer. Mas você
encontra muito professor que não faz nada... então é a questão da classe. A
classe é muito acomodada, porque os professores deveriam fazer mais um
pouquinho na sala de aula, mas eles não fazem, não fazem nem dentro do
possível.

(Professora Madalena,)

Para Halliday, (2004), a oração constitui-se instância da representação da realidade.


Assim, na primeira oração do relato acima ‘Eu fui levada a ser professora’, a professora, por meio
do Processo material ‘fui levada’, representa-se de forma passiva. Como assinala van Leeuwen
(1996: 187), “a ativação ocorre quando os/as atores/as sociais são representados/as como forças
ativas e dinâmicas numa atividade, e a passivação quando são representados/as como
‘submetendo-se’ à atividade, ou como sendo ‘receptores/as dela’”. O Participante ‘Eu’ assume a
condição de afetado. Desse modo, a professora auto-representa-se enfraquecida no que diz
respeito à sua capacidade de agenciação. Vale, aqui, destacar que defendo o conceito de
agenciação proposto por Inden (1990 apud. Holland et. al., 1998: 42). Para esse autor, tal termo
pode ser traduzido na capacidade de as pessoas agirem em seus mundos, o que está associado ao
poder de tais pessoas agirem com propósito e reflexivamente em interrelações mais ou menos
complexas umas com as outras, “para reiterar e refazer o mundo em que vivem, em circunstâncias
onde podem considerar cursos diferentes de ações possíveis e desejáveis, embora não
necessariamente do mesmo ponto de vista”.

383
A limitação em exercer a agenciação é reforçada em todo o relato, que, com raras
exceções, é distituído da ocorrência de Processos Materiais, o que pode indicar restrição com
relação às ações e ao movimento. Nas poucas vezes em que as orações são construídas com os
processos materiais, tendo a professora como Participante, tais orações expressam-se com um
‘você’ genérico, como no caso explicitado em ‘Então, você trabalha, você peleja, você faz de tudo e
quando chega no final do ano...’ Aqui, ao construir as orações com processo material, a professora
esconde-se atrás de um ‘você’ genérico, ofuscando a agenciação, pois, nesse caso, não é ela que
faz as coisas acontecerem, mas um ‘você’, aquela/e de caráter universal. É também exemplo desse
caso a construção ‘Então, é uma série de pedrinha que a gente encontra no caminho’. O processo
material ‘encontra’ é precedido do pronome de caráter genérico ‘a gente’.
A restrição para a realização da agenciação é, ainda, reforçado pelo sentimento de
impotência e de limitação à instauração de mudanças, como nos fragmentos: ‘tudo aqui [a escola]
é o mundo de obstáculos, o mundo que eu não consigo transpor; (...) e eu me sinto impotente
diante de tudo isso; (...) mas eu acho que essa acomodação é questão própria da minha vida
pessoal’. Neste trecho, Madalena expressa polaridade negativa em ‘não consigo transpor’, Tal
construção sugere um apagamento do sentido de agenciação, posto que o Processo Material
‘consigo transpor’ vem acompanhado de um elemento que expressa negação, ‘Não’. Estão,
também, aqui, seguenciadas orações que configuram a representação de uma mulher que se
encontra com suas capacidades para o exercício da liberdade e da autonomia reduzidas, sugerindo
estado de dominação e impossibilidade de romper com formas culturais que a constrangem.
Nesse sentido, é possível dizer que se trata de uma professora que se encontra limitada para a
negociação e a transformação do contexto em que está situada, o que indica, mais uma vez,
dificuldade de agenciação, pois incapaz de agir em seu mundo social.
Expressando-se, ainda, afetada por essa incapacidade, a professora Madalena, com as
orações ‘mas eu acho que essa acomodação é questão própria da minha vida pessoal’, apresenta
uma justificativa para tal limitação. Com o processo relacional ‘é’, essa professora estabelece uma
relação entre duas entidades ‘essa acomodação’ e ‘questão própria da minha vida pessoal’. Desse
modo, configura-se a crença na concepção de identidades essencializadas, o que implica um
sentido de identidades estáticas, irreversíveis e alheias às mudanças, contrariando a noção de que
as identidades, como postula Rajagopalan (1998), são construídas em processos linguísticos sociais
de natureza ideológica e podem ser transformadas.
Cabe destacar que, mesmo se auto-representando, por meio dos processos mentais, com
sentimentos de insatisfação em relação ao contexto profissional, como em ‘(...) mas eu me sinto

384
assim muito frustrada; (...) mas, no dia-a-dia, eu sinto angústia’, a professora não se direciona à
mudança de tal contexto, pois ela mesma expressa: ‘Procuro uma tábua de salvação pra mim’.
Nesse caso, fazendo uso de uma metáfora, a professora indica a maneira de representar a sua
condição no mundo. Para ela, as perspectivas de mudança ocorrem na dimensão do individual,
expressa pelos termos ‘pra mim’. Ocorrem, ainda, como algo mágico, que não depende de lutas,
interações, movimento e envolvimento. Além disso, há um pressuposto que configura a crença de
que as identidades são construídas alheias às implicações do espaço social.
As metáforas, como defendem Lakoff e Johnson (2002), estão infiltradas na vida cotidiana
das pessoas, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Elas, segundo
Fairclough (trad., 2001), têm a propriedade de construir nossa realidade de uma maneira e não de
outra, o que sugere filiação a uma maneira particular de representar aspectos do mundo e de
identificá-los. Ao se utilizar de um sentido metafórico, a professora Madalena se investe de uma
potencialidade carregada de abstração, abrindo um contraponto com o Processo material
‘Procuro’. Desse modo, o que poderia significar uma ação concreta acaba por diluir-se no plano do
imaginário.
A ideia de enfraquecimento da agenciação também está expressa em ‘Então, você aceita
do jeito que está ou então você deixa, e eu já deveria ter saído faz tempo’. Novamente, o elemento
genérico ‘você’ está presente, obscurecendo a inclusão do sujeito no evento. Além disso, as duas
possibilidades postas pela professora – ‘você aceita do jeito que está ou então você deixa’ -
implicam a sua anulação como sujeito de mudança, o que é confirmado pela escolha que ela faz –
‘e eu já deveria ter saído faz tempo’. O Participante ‘eu’ é enfraquecido em sua agenciação –
sugerida pelo Processo Material ‘ter saído’ – com a inserção do modalizador ‘deveria’. Vale
enfatizar que as possibilidades apresentadas por Madalena não contemplam sentidos que
envolvem ação e mudança.
Cabe destacar a supressão da agência nas duas construções com processos relacionais,
‘(...) o professor não é ouvido; é escutado tudo, menos a voz do professor’. Não há uma referência
do agente social, daquele que não escuta a voz do ‘professor’. Portanto, posso dizer que a
professora cala-se diante da força que a constrange, pois, como aponta Cameron (1992: 7): “o
silêncio é um símbolo de opressão”. Isso implica o pressuposto de que as identidades construídas
para as mulheres são baseadas no estereótipo do silenciamento que está associado às forças de
domínio social, pois, o silêncio pressupõe a reprodução do que pode ser dito e o silenciamento
daquilo que não pode ser dito (Orlandi, 1995: 134).

385
Há que se ressaltar, também, a forma genérica com que a professora, em seu discurso,
representa os atores/as atoras sociais as/os professoras/es, como em ‘Mas você encontra muito
professor que não faz nada... então é a questão da classe. A classe é muito acomodada, porque os
professores deveriam fazer mais um pouquinho na sala de aula, mas eles não fazem (...)’. Essa
escolha implica o apagamento das peculiaridades que marcam os/as atores/atoras sociais. Como
sugere Fairclough (2003a: 201): “a representação genérica contribui para a universalização
hegemônica de uma representação particular”, legitimando, assim, uma determinada crença que,
no caso, reproduz a desvalorização do/a professor/a. É curioso perceber que a professora não se
inclui como atora social. É ‘a classe’ dos/as professores/as, um outro, que é acomodada e são
‘eles’, ‘os professores’, que ‘não fazem nada’. Isso implica uma tensão interdiscursiva em relação
ao discurso anterior, em que a professora representava-se acomodada e desprovida da
capacidade de ação.
A representação que Madalena faz do ‘Professor’, da ‘classe’ *dos professores+ sugere
uma visão estereotipada desse sujeito social, pois associado, respectivamente, aos termos ‘que
não faz nada’ e ‘muito acomodada’ é representado conforme práticas hegemônicas de sentidos
discriminatórios e redutores. Talbot (2006: 468) afirma que “estereotipar alguém é interpretar seu
comportamento, sua personalidade com base a um conjunto de atribuições de senso comum que
são aplicadas a todo um grupo” e isso implica simplificação e naturalização.
Em sua construção, Madalena utiliza-se do masculino genérico. Essa escolha aponta para
um discurso de auto-exclusão e invisibilidade das mulheres. Além disso, ao fazer tal uso, a
professora não questiona os significados socialmente construídos, não contesta a forma com que
tais significados representam-na, desconsiderando que um forte efeito do masculino genérico é
contribuir para moldar as identidades de gênero (Magalhães, 2006). Ao contrário, ela os aceita ou
mesmo reproduz um discurso de valor ideológico fundamentado na relação de hierarquia entre
homens e mulheres, naturalizando, dessa maneira, modos de invisibilidade e de apagamento do
feminino. Isso indica uma posição identitária que está alheia às implicações políticas que envolvem
o uso da língua, pois, como defende Caldas-Coulthard (2007: 234):
A categorização de substantivos em termos de gênero parece a princípio não ser
importante. No entanto, um sistema gramatical de uma língua levanta questões
sócio-políticas muito sérias, já que a prática social dá prioridade, em termos
lingüísticos, não simplesmente a uma subclasse de substantivos, mas também a
um sexo. Nas sociedades ocidentais patriarcais, o sexo masculino é o prioritário.

O uso do masculino genérico indica que a professora continua aceitando passivamente ou


mesmo reproduzindo modelos opressores ideologicamente veiculados e interiorizados,

386
consentindo uma ordem social que “sistematicamente privilegia homens como um grupo social e
retira vantagens, exclui e enfraquece as mulheres como grupo social” (Lazar, 2005: 5). Isso se
aproxima da afirmação de que são as mulheres cúmplices de sua própria opressão e instaura a
inferioridade institucionalizada da mulher, a valorização de uma prática em detrimento à outra,
além da violação da própria identidade (Poynton, 1989).
É importante ressaltar que, em raros momentos do relato, a professora sugere marcas da
reflexividade. Os Processos Mentais, que poderiam expressar esse traço, quase sempre, limitam-
se à representação de sentidos voltados apenas para a insatisfação da professora diante de uma
situação que não consegue transformar. A reflexividade está relacionada à capacidade de o sujeito
refletir sobre suas práticas, seu mundo social e se reposicionar, pois a reflexão pode conduzir à
mudança (Chouliaraki e Fairclough, 1999, Giddens, 2002). Todavia, a professora não analisa
criticamente a influência dos contextos diversos na sua construção identitária. Ela não avança em
relação a uma visão crítica sobre a sua realidade e o contexto em que está situada. Desse modo,
não consegue minimizar os conflitos e ascender aos limites de sua posição.

Texto 2

Minha atuação [como professora] ainda não é o ideal, muita coisa eu


tenho que aprender e muito eu tenho que ensinar. A gente ensina e a
gente aprende muito com esses meninos, né? Cada aluno que chega com
seus problemas, ele traz alguma coisa nova pra você, então você começa a
jogar fora algumas coisas que você usava antes e eu sou muito crítica em
relação a mim mesma, eu sou crítica em relação ao que faço e eu quero
melhorar, eu quero melhorar cada vez mais, agora eu me defino como
uma pessoa que, que ainda está em fase de aprendizagem. Eu sou muito
protetora dos meus alunos, não só como professora, mas como amiga
deles [...]. Eu sou protetora, sou mãe, sou sim, não gosto que ninguém fale
mal de meus alunos. Se tiver que falar, falo eu mesma, mas chamo a
atenção no momento que tem que ser chamada a atenção. (Professora
Rosa).

A professora Rosa representa-se como um sujeito aberto a mudanças, anunciando, dessa


forma, o discurso de emancipação, pois atesta, nas suas próprias palavras: ‘Minha atuação [como
professora] ainda não é a ideal; muita coisa eu tenho que aprender (...)’; ‘eu quero melhorar, eu
quero melhorar cada vez mais (...)’; ‘ eu me defino como uma pessoa que, que ainda está em fase
de aprendizagem’. Nessas orações, Rosa demonstra-se consciente da sua posição no contexto em
que está situada, é auto-reflexiva em relação à sua atuação profissional, indicando estado de
incompletude e abertura a mudanças. Essa posição de Rosa está veiculada à crença que ela

387
interioriza: as identidades estão em construção, o que é reforçado pelo termo ‘ainda’, que
expressa uma ideia de processo e desejo de avanço.

A discussão sobre o sentido de identidade em construção também é pertinente em


relação à reflexividade que é sinalizada no discurso da professora, como se nota em: ‘Eu sou crítica
em relação a mim mesma, eu sou crítica em relação ao que faço e eu quero melhorar (...)’. A
reflexividade pressupõe a ‘consciência reflexiva’ (Gddens, 2002), ela está relacionada à capacidade
de o sujeito refletir sobre suas práticas e se reposicionar, pois a reflexão conduz à mudança
(Fairclough, 2003a). Contudo, nos Processos relacionais, o atributo ‘crítica’ com que a professora –
ou o Participante ‘eu’ - investiu-se desencadeou não uma real ação, mas apenas o seu desejo de
mudar, expresso com o Processo mental ‘quero’, conforme a oração ‘e eu quero melhorar’.
Portanto, é possível pressupor o enfraquecimento da relação atributiva existente entre ‘eu’
(professora) e ‘crítica’ e, consequentemente, o enfraquecimento da reflexividade.

A posição de agenciação de Rosa, a princípio, apresenta-se em: ‘Cada aluno que chega
com seus problemas, ele traz alguma coisa nova pra você, então você começa a jogar fora algumas
coisas que você usava antes’. Aqui, o encadeamento de orações com Processos materiais pode
sugerir que a professora posiciona-se capaz de ações que provocam a ruptura com ‘velhas’
práticas sociais, as tradicionais, pois é sugerido que ela está aberta ao ‘novo’. O ‘novo’ aqui é a ela
trazido por ‘cada aluno e seus problemas’. Contudo, assim como se deu no relato de Madalena, o
emprego da generalização expressa com a palavra ‘você’ obscurece a agenciação da professora
(Fairclough, 2003a). Nesse sentido, nota-se aqui uma tensão interdiscursiva, que pode ser
traduzida numa situação de conflito de identidades num mundo em mudanças.

Vale ressaltar que, ao assumir um discurso maternal, como em: ‘Eu sou protetora, sou
mãe, sou sim, não gosto que ninguém fale mal de meus alunos. Se tiver que falar, falo eu mesma,
mas chamo a atenção no momento que tem que ser chamada a atenção’, a professora distancia-se
da esfera de domínio público, posicionando-se no espaço doméstico, naturalizando, assim, formas
de invisibilidade das funções sociais das mulheres (Thompson, 1995). A professora posiciona-se no
espaço da escola como se estivesse no domínio privado, agindo de acordo com um estereótipo, ou
seja, associa-se a significados culturais relacionados à ‘mãe’. Nesse sentido, é possível dizer que a
Rosa não consegue transpor os limites que a posicionam na vida privada, os estereótipos que a
afetam e, assim, a sala de aula é compreendida como uma extensão da sua vida doméstica. Isso
implica a restrição das suas possibilidades para efetivar mudanças e, de certa forma, de negação

388
de sentidos emancipatórios. É a representação das mulheres que ainda se encontram
constrangidas por formas culturais que as subjugaram no passado.

Conclusão
Para Fairclough (2003a: 124), o significado representacional está relacionado ao conceito
de discurso “como modos de representar aspectos do mundo – os processos, as relações e as
estruturas do mundo material, ‘o mundo mental’ dos pensamentos, dos sentimentos, das crenças
e assim por diante, e o mundo social”. Dessa maneira, os discursos das professoras, aqui
analisados, são efeitos das suas diferentes perspectivas de mundo, do ‘lugar’ onde essas mulheres
se posicionam ou são posicionadas, em seus contextos sociais. São efeitos também das relações
sociais que são estabelecidas. As professoras Madalena e Rosa representam o mundo como elas o
vêem e como elas o sentem, expressando, assim, sonhos, desejos, interesses, superação,
frustrações, insegurança, impotência, subordinação, tensões. Nos discursos articulados no relato
de Rosa, podem-se notar crenças, valores e posições interiorizados e veiculados a significados que
estão direcionados para a mudança do mundo social. No entanto, tais elementos, relacionados à
prática social da professora, em seu contexto específico, também, representam as limitações
dessa profissional no que se refere à agenciação. Em outras palavras, apesar de assumir discursos
emancipatórios, Rosa interioriza discursos que expressam as relações sociais de domínio. No
relato de Madalena, esses discursos estão mais evidenciados, representando a limitação dessa
professora ao exercício da agenciação.
Tal limitação, expressa nos relatos das duas professoras, está veiculada nos poucos avanços
que elas fazem em relação à reflexividade. A dimensão reflexiva poderia lhes permitir transpor
barreiras, produzir transformações sociais e culturais (Fairclough, 2003a). Porém, limitadas em
criatividade e na reflexividade, essas professoras são restringidas na capacidade de agenciação e,
desse modo, são submetidas às forças sociais que as constrangem. Falta a elas uma consciência de
gênero que poderia possibilitar-lhes a construção de contradiscursos que muito poderiam
contribuir para mudanças das práticas discursivas e, consequentemente, sociais.
Madalena e Rosa não estão muito alinhadas a uma práxis crítica (Lazar, 2005), não
contestam práticas naturalizadas, desenvolvendo, desse modo, maneiras de atuação no mundo
social que visem à resistência e à mudança. É nesse sentido que o discurso poderia tornar-se uma
prática emancipatória (Fairclough, trad., 2001), implicando o fortalecimento das pessoas, o que
indicaria que as posições identitárias não são fixas.

389
Cabe ressaltar que, neste trabalho, com os relatos das professoras, a minha intenção é
levantar questões que dizem respeito às posicões identitárias. Madalena e Rosa podem ser
representativas de condições que foram construídas para as mulheres e que, ainda hoje,
continuam presentes em muitos contextos, por exemplo, o escolar. Nesse sentido, a questão de
gênero suscita discussões, pois acerca dela configuram-se problemas sociais que dizem respeito,
por exemplo, ao fato de as mulheres levarem para seus mundos as formas sociais de
constrangimento.

Referências

CALDAS-COULTHARD, Carmem Rosa. Caro colega: exclusão lingüística e invisibilidade. Discurso &
Sociedad, v. 1, n. 2, p. 231-246, 2007.

CAMERON, Deborah et. al. Feminism and linguistic theory. 2. ed. Londres: Macmilan Press, 1992.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. K. B. Gerhardt. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2002.

CHOULIARAKI, Lilie.; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity: rethinking critical


discourse analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999.

FAIRCLOGH, Norman. Discurso, mudança e hegemonia. In: PEDRO, Emilia R. (Org.). Análise crítica
do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Editorial Caminho,1997. p. 77-103.
FAIRCLOGH, Norman. Discurso e mudança social. Coord. Trad. I. Magalhães. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.

FAIRCLOGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres e Nova
York: Routledge: 2003a.

FAIRCLOGH, Norman. El análisis crítico del discurso como método para la investigación en ciencias
sociales. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michael. (Org.). Métodos de análisis crítico del discurso.
Barcelona: Editorial Gedisa, 2003b. p. 179-204.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. R. Machado. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. (Orgs.).
Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 2. ed. Trad. P. A. GUARESCHI.
Petrópolis: Vozes, 2004. p. 64-89.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. P. Dientzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.

GRIGOLETTO, Marisa. Leituras sobre a identidade: contingências, negatividade e invenção. In:


MAGALHÃES, Izabel et. al. (Orgs.). Práticas identitárias: Língua e discurso. São Carlos: Claraluz,
2006, p. 15-26.

390
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Trad. T. T. SILVA; G. L. LOURO. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.

HOLLAND, Dorothy et. al. Identity and agency in cultural words. Cambridge, Mass: Harvard
University Press, 1998.

HALLIDAY, Michael. A. K. An introduction to functional grammar. 3. ed. Oxford, Londres: Edward


Arnold, 2004.

HOLMES, Janet.; MEYERHOFF, Miriam. (Orgs.). The handbook of language and gender. 2. ed.
Oxford: Blackwell Publishers, 2006.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras/Educ, 2002.

LAZAR, Michelle. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as polical
perspective and praxis. In: LAZAR, Michelle. (Org.). Feminist critical discourse analysis: gender,
power and ideology in discourse. Houndmills, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2005, 56-64.

MAGALHÃES, Izabel. Eu e Tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília: Thesaurus,


2000.

MAGALHÃES, Izabel. Escrita e identidades. In: MAGALHÃES, Izabel. (Org.). Cadernos de Linguagem
e Sociedade, Brasília: Thesaurus/Nelis/Ceam/UnB, v. 7, p. 106-118, 2005a.

MAGALHÃES, Izabel. Interdiscursivity, gender identity and the politics of literacy in Brazil. In:
LAZAR, Mchelle (Org.). Feminist critical discourse analysis: gender, power and ideology in
discourse. Houndmills, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2005b, 56-64.

MAGALHÃES, Izabel. Discurso, ética e identidades de gênero. In: MAGALHÃES, Izabel et. al. (Orgs.).
Práticas identitárias: Língua e discurso. São Carlos: Claraluz, 2006, p. 71-96.

MAGALHÃES, Izabel. Análise de discurso crítica: questões e perspectivas para a América Latina. In:
RESENDE, Viviane de Melo; PEREIRA, Fábio Henrique (Orgs.). Práticas socioculturais e discurso:
debates transdisciplinares. Covilhã: Livros LabCom, 2010, p. 9-28. Disponível em: www.
livroslabcom.ubi.pt

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São Paulo: Editora da Unicamp,
1995.

PEDRO, Emília. Análise crítica do discurso: aspectos teóricos, metodológicos e analíticos. In:
PEDRO, Emília (Org.). Análise crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa:
Editorial Caminho, 1997. p. 19-46.

POYNTON, Cate. Language and gender: making the difference. Oxford: Oxford University Press,
1989.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma


reconsideração radical? In: SIGNORINI, Inês (Org.). Lingua(gem) e identidade: elementos para uma
discussão no campo aplicado. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 1998. p. 21-45.

391
SHOTTER, John; GERGEN, Kenneth J. Texts of identity. Londres: Sage Publications, 1989.

TALBOT, Mary. Language and gender. Cambridge: Polity Press, 1998.

TALBOT, Mary. Gender stereotypes: reproduction and challenge. In: HOLMES, Janet.; MEYERHOFF,
Miriam. (Orgs.). The handbook of language and gender. 2. ed. Oxford: Blackwell Publishers, 2006.
p. 468-486.

THOMPSON, John. B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social na era dos meios de comunicação
de massa. Trad. Grupo de Estudos sobre Ideologia, Comunicação e Representações Sociais da Pós-
Graduação do Instituto de Psicologia da PUCRS. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

VAN LEEUWEN, T. A representação dos actores sociais. In: PEDRO, Emília R. (Org.). Análise crítica
do discurso: Uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

VIEIRA, Josênia.. A identidade da mulher na modernidade. D.E.L.T.A. São Paulo: EDUC, v. 21, n.
Especial, p. 207-238, 2005.

392
AS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DOS/AS SEM TERRA A PARTIR DA MÍSTICA DO
MST: UMA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA MULTIMODAL

Marco Antonio Lima do Bonfim, Mestrando em Linguística Aplicada/ CAPES


Universidade Estadual do Ceará

Claudiana Nogueira de Alencar, Pós-doutoranda em Linguística


Universidade Estadual de Campinas

O presente texto teve por objetivo estudar as questões identitárias apresentadas em uma das
místicas realizadas pelos/as Sem Terra do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) –
as místicas podem ser caracterizadas como um tipo de ritual teatral que os/as Sem Terra realizam
cotidianamente nos seus acampamentos e assentamentos com o intuito de fortalecer a luta pela
terra e pela transformação social no Brasil. Especificamente, analisamos a mística “violência no
campo” – realizada em um Curso de Formação na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) –
procurando entender como os elementos lingüístico-discursivos se relacionam com os
componentes semióticos na construção identitária dos/das Sem Terra do MST. Para tanto,
utilizamos uma abordagem de “Análise de Discurso Textualmente Orientada”, Fairclough (trad,
2001, 2003), Chouliaraki e Fairclough (1999), Magalhães (2004, 2005) combinada com a proposta
de “Gramática do Design Visual” elaborada por Kress e van Leeuwen (1996). Percebemos que o
discurso multimodal da mística do MST é composto por elementos discursivos (escolhas lexicais
dos/as Sem Terra) e imagéticos (textos multimodais) que se imbricam dialeticamente numa
relação de internalização/articulação na prática social da mística, e que através desse mesmo
discurso o referido Movimento social tenta construir um “estilo” de Sem Terra numa relação
conflitante com a identidade hegemônica dos/as Sem Terras inculcada na maioria dos
brasileiros/as.

Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, discurso multimodal, identidade, mística, MST.

Introdução
Este estudo é fruto das discussões realizadas a partir da disciplina “Tópicos em Práticas
Discursivas e Estratégias de Textualização II”, ministrada pela profa. Dra. Izabel Magalhães no
Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal do Ceará. Tais discussões
giraram em torno da Análise de Discurso Crítica (ADC), abordagem que tem se destacado muito na
área de Lingüística Aplicada. Esta “Teoria Crítica do Discurso” tem contribuído para a realização de
análises da vida social de forma transdisciplinar, operacionalizando conceitos de outras disciplinas
como a Ciência Social Crítica, por exemplo, sem se reduzir a nenhuma área específica de estudo.
Tal iniciativa tem rompido os muros de uma Lingüística fechada em si mesma e comprometida
com uma perspectiva de ciência positivista.
Seguindo, portanto, a abordagem de ADC (re)formulada pelo linguista britânico Norman
Fairclough e a proposta da “Gramática do Design Visual” (GDV) elaborada por Kress e van

393
Leeuwen (1996) que se caracteriza como uma forma de se analisar textos multimodais, “ou seja,
textos que são produzidos a partir de mais de um modo representacional e comunicacional”
(Pinheiro, 2007:27), investigamos neste estudo, um tipo de ritual que os/as Sem Terra do MST 1
realizam com o intuito de fortalecer a luta pela terra e pela transformação social – a mística2.
Dessa forma, elencamos alguns questionamentos a respeito da relação entre o discurso
multimodal da mística e as construções identitárias dos/as Sem Terra do MST – foco deste estudo
– como: a) Como os/as camponeses/as vivenciam a identidade de Sem Terra? B) Que elementos
lingüístico-discursivos contribuem para a constituição identitária dos/as Sem Terra? e C) Como os
elementos imagéticos se relacionam com a dimensão discursiva na construção identitária dos/as
Sem Terra?
Vale ressaltar que a relevância deste estudo reside na importância de pesquisas que
adotem um “modelo integracionista” (Van Leewen, 2005) de análise do social com o intuito de
contribuir para a consolidação da “agenda de pesquisa para a teoria crítica do discurso” proposta
por Magalhães (2004).
No que se refere à estruturação do artigo, esclarecemos que o mesmo está organizado em
quatro sessões. Na primeira faremos um breve esboço das duas abordagens teórico-
metodológicas utilizadas neste estudo e apontaremos as categorias de análise selecionadas. Na
segunda, apresentaremos o corpus analisado e o enquadre metodológico elaborado por
Chouliaraki e Fairclough (1999) para a ADC, seguido da nossa modificação para a realização de
uma análise de discurso crítica multimodal da mística dos/as Sem Terra. Na terceira sessão,
iniciaremos com a “análise da conjuntura”, da “prática particular” e de discurso começando pelo
significado identificacional (Fairclough, 2003) focalizando as escolhas lexicais constituintes das
representações identitárias dos/as Sem Terra do MST.
Em seguida, descreveremos a mística em destaque (mística – violência no campo) com seus
aspectos multimodais e, encerramos analisando o modo como o discurso multimodal da mística
do MST, através dos significados (identificacional, representacional, interativo e composicional)
constrói identidades para os/as camponeses/as do MST. Esperamos que este estudo possa, em

1
Esclarecemos que o termo Sem Terra, neste estudo, se opõe à expressão sem-terra. Enquanto sem-terra designa
uma condição social destes/as trabalhadores rurais que estão sem (a) terra, o primeiro termo se relaciona à vivência
da mística no MST, pois ao inserirem a mística na luta pela terra, os “Sem Terra” buscam se diferenciar de outros
Movimentos de “sem-terra”. “Sem Terra” aqui não significa somente aquele/ a trabalhador /a rural que não tem terra
para viver e trabalhar. “Sem Terra tornou-se nome próprio. Nome de trabalhadores organizados lutando pela Reforma
Agrária e para transformar a sociedade” (MST, 2007, p. 33).
2
Maia (2008:108) ao estudar a mística como um “processo educativo” relata que “a mística é um ritual e existem
vários momentos em que vozes, corpos e mentes se unem com o objetivo de realizá-la, no Assentamento [...] a
apresentação da mística é mais do que uma apresentação teatral ou uma música qualquer. A mística é parte da vida
deles [dos/as Sem Terra+ e é tão importante que a organizam como um elemento de integração do MST”.

394
conjunto com outros estudos relacionados à questão das construções identitárias a partir da ADC
e das pesquisas sobre a multimodalidade, contribuir para desenvolvimento e a consolidação dos
estudos multimodais numa perspectiva crítica.

Passeando pela estrada da Análise de Discurso Crítica e da Gramática do Design Visual


No que diz respeito à abordagem de ADC proposta em Chouliaraki e Fairclough (1999) e a
retomada desta em Fairclough (2003), Resende e Ramalho (2006:60) comentam que o autor “*...+
explica que o discurso figura de três principais maneiras como parte de práticas sociais, na relação
entre textos e eventos: como modos de agir [significado acional], como modos de representar
*significado representacional+ e como modos de ser *significado identificacional+”. No tocante a
este último, as autoras afirmam tratar-se da construção e da negociação de identidades no
discurso.
Magalhães (2004) se refere à ADC, destacando que esta abordagem de análise de discurso
crítica se diferencia de outras pelo fato de ser crítica (no sentido de intervir na sociedade) e por
realizar uma “análise de discurso textualmente orientada”. Isto é, por entender as práticas sociais
numa relação dialética com o discurso “envolvendo gêneros discursivos e a construção de sentidos
nos textos...” (op.cit; 113). Ao realizar uma “análise do discurso publicitário” (Magalhães, 2005) a
referida pesquisadora, elenca algumas categorias de análise, como o vocabulário,
intertextualidade e interdiscursividade, coesão, modalidade, entre outras. Dessa forma, para
identificar os aspectos lingüístico-discursivos na construção das identidades dos/as Sem Terra do
MST, utilizamos o significado identificacional com ênfase no vocabulário (escolhas lexicais).
Em relação à análise da interação dos aspectos discursivos e semióticos da mística dos Sem
Terra, o trabalho de Kress e van Leeuwen (1996) é relevante no sentido de que os autores,
baseados na Lingüística Sistêmico-Funcional de Halliday, propõem um instrumento analítico crítico
da composição imagética dos textos em seus contextos de uso. Tal instrumental se constitui a
partir de três estruturas de representações básicas, a saber, significado representacional (descreve
os participantes em ação), significado interativo (descreve as relações sociointeracionais
construídas pela imagem) e significado composicional (combina os outros dois significados em um
todo coerente).
Assim, com base em uma abordagem de “análise de discurso textualmente orientada”
aliada à proposta de estudos multimodais de Kress e van Leeuwen, propomos realizar uma análise
de discurso crítica multimodal da “mística” dos/as Sem Terra.

395
Revendo a Análise de Discurso Crítica
Em Discourse in Late Modernity (1999) Chouliaraki e Fairclough desenvolvem uma reflexão
mais profunda com as ciências sociais críticas, especificamente com a epistemologia do “Realismo
crítico”. Este diálogo transdisciplinar enriquece a ADC, pois, a partir dessa obra o discurso passa a
ser ententido como uma das dimensões da prática social. De acordo com a autora e o autor, “as
dimensões de uma prática são articuladas numa dialética – cada uma interioriza as outras sem ser
reduzida a elas. As práticas em si são articuladas em redes de práticas e suas características
‘internas’ são determinadas por estas relações ‘externas’ com outras práticas” (op. cit.; 38) 3.
Dessa forma, discurso, nesta abordagem de ADC é entendido como um elemento semiótico
de práticas sociais, incluindo a linguagem (escrita e falada e em combinação com outros meios
semióticos), a comunicação não verbal (expressões faciais, movimentos corporais, gestos etc.) e
textos imagéticos. Assim, podemos entender a mística dos/as Sem Terra do MST como uma
prática social e o Discurso multimodal deste “ritual” como uma das dimensões desta prática, numa
relação dialética de “articulação” e “interiorização” de outros elementos semióticos deste
Discurso (discurso, expressões corporais, músicas, gestos, crenças, etc.) entendendo que nenhum
elemento se reduz ao outro e que este processo dialético é contínuo.
Em 2003, Fairclough retoma esta perspectiva de análise discursiva do social e juntamente
com uma reelaboração da visão multifuncional apresentada por Halliday (1985) e sua própria
proposta de 1992 (trad. 2001), propõe que “o discurso figura de três principais maneiras na
prática social [...] como Gênero (modos de agir), Discursos (modos de representar) [e] Estilos
(modos de ser)” (Fairclough, 2003: 26). Vale lembrar que as três dimensões atuam em conjunto
nas práticas sociais. “Gêneros, discursos e estilos são, na ordem, meios relativamente estáveis e
duráveis de agir, representar e identificar. São tidos como elementos de ordens de discurso no
nível da prática social” (op. cit.; 28).
Para este trabalho selecionamos o significado identificacional que corresponde aos “modos
de ser” no discurso. Pois, objetivamos compreender a constituição identitária dos/as Sem Terra a
partir da mística. Isto é, quero saber como os/as Sem Terra se (auto) identificam textualmente
através do discurso multimodal desta prática social. Tal investigação se torna viável, uma vez que
“nas palavras de Fairclough (2003: 17), *no significado identificacional+ focalizam-se os ‘textos no
processo de constituição de identidades sociais de participantes dos eventos nos quais eles são
uma parte’” (Costa, 2007:44).

3
Todas as traduções foram feitas tendo por base as traduções do graduando em Letras Emanuel Pedro (Uece) e da
Professora Sibele Letícia Biazotto (Unitins – TO) dos livros Discourse in late modernity. Rethinking critical discourse
analysis (1999) e Analysing discourse. Textual analysis for social research (2003), respectivamente.

396
Passos metodológicos
O corpus da pesquisa foi composto pela seleção de algumas cenas de uma mística do MST
realizada em um curso de formação na Escola Nacional Florestan Fernandes no ano de 2008
gravada em DVD4. A seleção foi feita através do programa de computador “Nero Show Time”
segundo algumas das categorias propostas por Kress e van Leeuwen (1996) para análise de
imagens, como textos imagéticos que retratam ações em andamento (“estruturas narrativas”),
com “modalidade saturada”, e um alto grau de “valor de informação”. Em seguida efetuamos a
análise das cenas selecionadas adotando como aparato teórico-metodológico, o enquadre de
Chouliaraki e Fairclough (1999) que tem por base a epistemologia do “Realismo crítico”,
percebendo a vida social como um “sistema aberto” e estratificado em três estratos (“potencial”,
“concreto” e “empírico”). É a partir desta concepção de vida social que a autora e o autor
desenvolvem um método capaz de dar conta da complexidade da relação entre estruturas,
práticas e eventos sociais. De acordo com Chouliaraki e Fairclough, “a análise de discurso crítica
começa com a percepção de algum problema relacionado ao discurso em determinada parte da
vida social” (op. cit.; 60). Este problema pode ser relacionado à própria prática social, à construção
reflexiva desta, ou ambas. Ou seja, em princípio deve-se partir de um problema social, no caso
desta análise, a construção da (auto) identidade dos/as Sem Terra através da mística realizada
no/pelo MST. Em seguida, deve-se levantar os “obstáculos a serem superados”. Nesta etapa, faz-
se necessário situar o discurso em foco no tempo e espaço real, relacionando-o às suas
“circunstâncias e processos de produção” e às suas “circunstâncias e processos de consumo”. Em
suma, uma “análise da conjuntura” da qual o discurso focalizado é uma dimensão. Ainda nesta
fase dos “obstáculos”, é fundamental realizar a “análise da prática particular ou práticas da(s) qual
(quais) o discurso em foco é uma parte”. Nesse momento da análise busca-se especificar as
relações entre discurso e outras dimensões da prática social [atividade material, relações sociais e
processos (relações sociais, poder instituições); fenômeno mental (crenças, valores, desejos) e
discurso+. Um dos interesses aqui é identificar as “interiorizações” entre os elementos da prática.
Num terceiro momento (dentro desta segunda etapa), realiza-se a “análise de discurso” que é
orientada em termos de estrutura e interação entre os elementos sociais de uma dada “ordem do
discurso” e a relação desta com outros elementos da prática social.

4
Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), inaugurada em janeiro de 2005 no município de Guararema – SP e
idealizada pelo MST, “trata-se de uma escola de capacitação técnica e de formação de trabalhadores rurais. Seu
objetivo é proporcionar a jovens, mulheres e homens do meio rural [uma] educação voltada para a realidade do
campo, tendo em vista a diversidade cultural do Brasil.”

397
Em termos de análise estrutural, o objetivo é especificar que recursos (gêneros, discursos e
estilos) se articulam na ordem de discurso. Pois, “*...+ o relacionamento entre o discurso e a rede
social de uma ordem de discurso depende da natureza da prática social e da conjuntura de
práticas sociais dentro da qual estão localizadas, e de como eles figuram dentro delas”
(Chouliaraki e Fairclough, 1999: 63).
Por outro lado, na análise da interação o foco está na análise interdiscursiva – em como o
discurso trabalha estes “recursos” mencionados acima. Ou seja, focaliza-se a relação dos
elementos lingüísticos com outras semioses dos textos que os realizam.
A terceira etapa reside na “função do problema na prática”. Objetiva-se aqui enfatizar se e
como o aspecto problemático do discurso estudado tem uma função particular dentro da prática.
Segundo Chouliaraki e Fairclough, “este estágio marca a mudança do ‘é’ para o ‘deve’” (op.cit.;
65).
Complementando a etapa anterior, a quarta fase caracteriza-se como as “possíveis
maneiras de ultrapassar os obstáculos”. Isto é, trata-se de distinguir possíveis recursos para mudar
o “atual estado de coisas”. Pois, se já investigamos como relações estruturais explicam (análise da
conjuntura) e são responsáveis pelo problema em questão (“funções do problema...”), a ênfase
agora recai na diversidade, ou melhor, nas potencialidades das conjunturas para mudanças
discursivas e sociais.
Por fim, toda “pesquisa social crítica deve ser reflexiva”. Portanto, ao final de qualquer
análise de discurso crítica devemos refletir sobre a nossa própria prática teórica relacionando-a às
práticas de análise que são investigadas.
Apresentado o método proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999), queremos agora
modificá-lo para nossa análise, tendo em vista o esclarecimento dos autores, no sentido de que
“*...+ o enquadre pode ser reduzido de várias maneiras para vários objetivos *...+” (Op.cit.; 59), e
entendendo também que a ADC é uma área de estudo transdisciplinar.
Nossa modificação tem por base a reelaboração de Fairclough (2003) no tocante ao
significado identificacional e o trabalho de Kress e van Leeuwen (1996) a respeito da “Gramática
do Design Visual”. Assim, no que se refere ao item “análise de discurso” propomos substituir os
itens “análise estrutural” e “análise interacional” pelo significado identificacional proposto por
Fairclough no estudo já citado e pelas três estruturas de representações básicas do texto
multimodal, a saber, significado representacional, interativo e composicional.
A necessidade de tais alterações reside em dois pontos. Primeiro, o fato de nosso foco ser
a “texturização” identitária dos/as Sem Terra no discurso multimodal da mística do MST. O

398
segundo motivo justifica-se pela ausência de um instrumental analítico da composição imagética
dos textos no enquadre apresentado, muito embora, Chouliaraki e Fairclough reconheçam o
discurso como “semiose”, o que inclui o aspecto multimodal dos discursos na constituição de
práticas sociais.
Desse modo, apresentamos o seguinte enquadre metodológico:
1)Um problema (atividade, reflexividade)
2) Obstáculos para serem superados
(a) análise da conjuntura
(b) análise da prática particular
(i) práticas relevantes
(ii) relações do discurso com outras práticas
(c) análise de discurso
(i) significado identificacional
(ii) significado representacional
(iii) significado interativo
(iv) significado composicional
3) função do problema na prática
4) Possíveis maneiras de ultrapassar os obstáculos
5) Reflexão sobre a análise

MST e mística: uma relação de nunca acabar


O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surge no contexto em que o Brasil
iniciava um processo de intensa mecanização da lavoura (década de 1970). Esse processo
capitalista industrial toma conta da agricultura formando uma sociedade rural complexa,
composta de grandes proprietários de terra, uma pequena burguesia agrária, pequenos
proprietários de terra e os camponeses, que, “expulsos pela modernização da agricultura tiveram
fechadas essas duas portas – o êxodo para as cidades e para as fronteiras agrícolas” (Stédile e
Fernandes, 1999:17).
Aliado a esse processo, temos também, neste período, uma ampla mobilização pela
democratização do país, com o ressurgimento das greves operárias (1978-1979) e as lutas contra a
ditadura militar. De acordo com Stédile, é nessa conjuntura que nasce o MST, pois os camponeses
diante das mudanças industriais que atingiram a lavoura optam por “resistir no campo e buscar

399
outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam. É essa a base social que gerou o
MST” (op. cit.;17).
Nesse processo de luta pela terra, o nascimento em 1975 da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) 5, em Goiânia, foi muito significativo para a reorganização das lutas camponesas.
Reorganização, no sentido de que estas lutas já ocorriam “desde a nossa certidão de nascimento
como nação” (Romão, 2006: 46). Dessa forma, Bernardo (1999: 19) sugere que “*...+ o MST nasce
das lutas que já ocorriam, simultaneamente, nos estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul”. Stédile em consonância com Bernardo (op. cit.; 31)
relata:
[...] o MST nasceu como movimento camponês, de agricultores acostumados com o
trabalho familiar e que resolveram lutar pela terra [...] Na essência. O MST nasceu como
um movimento camponês, que tinha como bandeira as três reivindicações prioritárias:
terra, reforma agrária e mudanças gerais na sociedade[...]

Para Romão (2006) fatos como a ocupação das fazendas Macari e Brilhante no Rio Grande
do Sul marcam o nascimento do MST naquela região. No Ceará, segundo Morissawa (2001), a
constituição do movimento se deu a partir das vitórias conquistadas nas ocupações de terra que
se iniciaram no ano de 1989, nas fazendas Reunidas São Joaquim, em Quixeramobim, Canindé e
Itapiúna. Segundo o autor, “a década de 1990 foi de intensa mobilização e de grandes conquistas
pelos sem-terra no Ceará. Foram ocupações em Crato, Tamboril, Canindé, Massapê, Quixadá,
Ocara, entre outros municípios” (op.cit.; 188).
Feito esse breve histórico sobre a gênese do MST no Brasil, gostariamos de destacar agora
a importância da mística na formação identitária dos/as Sem Terra. Caldart (2004) faz um estudo
sobre a “Pedagogia do Movimento Sem Terra” e no que diz respeito à constituição identitária
destes/as trabalhadores/as rurais sem terra, ela sustenta que “do ponto de vista da formação dos
sem-terra, a reflexão sobre o sentido de vivenciar a mística no e do Movimento pode ser centrada
em alguns dos aspectos identificados no processo de seu cultivo” (op. cit.; 211).
Maia (2008) ao abordar a relação existente entre mística, educação e resistência no MST,
afirma que o/a trabalhador/a rural sem terra integrante do MST vai construindo sua “consciência
de luta” na medida em que este/a vivencia a mística. Em suas palavras, “para que o trabalhador

5
“Organismo pastoral da Igreja Católica, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CPT foi
organizada em 1975, em Goiânia (GO), durante um encontro de bispos e agentes de pastoral, a partir de reflexões
sobre a crescente onda de conflitos de terra que ocorriam nas regiões Norte e Centro-Oeste do País [...] Embora
iniciada no Norte e no Centro-Oeste, estendeu suas atividades para quase todos os estados do Brasil. Atua em todas
as dioceses em que há problemas de terra” (STÉDILE e FERNANDES, 1999: 19).

400
rural forme a consciência de luta, a fim de que adquira a coragem para ocupar e resistir, é
necessária a mística, pois no MST esta é a alma dos lutadores do povo” (op. cit.; 114).
Quer dizer, a mística, essa forma de “manifestação coletiva de um sentimento *de
unidade+” (Stédile e Bernardo, 1999: 132), este ritual recheado de símbolos, “um espírito que põe
em funcionamento a ação e a força prática das idéias do MST” (Maia, 2008: 103-104) contribui -
por meio do hino do MST, músicas, encenações, gestos, “palavras de ordem”, imagens - para a
formação de um sujeito que se sente “Sem Terra”, que se identifica com a luta pela terra. Noutras
palavras, é através da mística que os/as trabalhadores/as rurais sem terra “vão construindo a
consciência e a identidade com a luta e com o Movimento, ou seja, vão se constituindo como sem-
terra” (Morissawa, 2001: 205 - Grifo do autor).
Diante disso, podemos questionar, por exemplo, que elementos constituem a mística e
fazem com que ela tenha tanto poder?
Para Caldart (2004: 211-212) a mística se relaciona com três aspectos centrais: a) com a
formação dos “valores humanos” que sustenta a escolha de continuar na luta; b) com o “cultivo da
história” ou da “memória do povo”; c) com a experiência de “produção cultural”, no sentido de
“autorrepresentação”, através de símbolos representando o que é “ser Sem Terra, ser do MST”.
Percebe-se então, que o poder da mística advém das próprias experiências vivenciadas pelos/as
Sem Terra nos mais variados espaços de que se apropriam, desde o enfrentamento com os
latifundiários, para ocuparem as terras até o cotidiano vivido nos mais diversos assentamentos
coordenados pelo MST.
Para entendermos melhor essa questão, vejamos a descrição de uma mística sobre
ocupação de terra realizada no assentamento Antônio Conselheiro (Ocara - CE) em setembro de
2003, registrada em Maia (2008:122):

Em primeiro lugar, a abertura com o Hino do MST, em segundo lugar a cena da


ocupação. A encenação da peça ‘Ocupação de terra’ ocorreu com um grupo de
dez pessoas - crianças, jovens, adultos e idosos. As pessoas chegam e dizem:
ocupa ou não ocupa? E o restante responde: ocupa! Os assentados que estavam
se apresentando levavam instrumentos de trabalho, como facão, foice, enxada e a
bandeira do MST: cortam o arame da cerca e ocupam a terra, e, por último chega
o latifundiário e diz: ‘quem deu ordem pra vocês ocuparem esta terra, pois ela é
minha’? E o grupo de trabalhadores responde: ‘esta terra é nossa, pois foi Deus
que a fez e deixou para todos nós’. Para terminar, coloca-se a música Manter a
Esperança.

401
Analisando esta mística sob a ótica da ADC, podemos dizer que ela “interioriza” outros
elementos da vida social à prática vivenciada pelos/as Sem Terra do assentamento Antônio
Conselheiro, sem se reduzir a ela. Pois, este movimento é dialético e contingente.

O Agronegócio como modelo de agricultura no Brasil: a violência no campo


Como já mencionado no tópico referente à gênese do MST, este Movimento social se inicia
principalmente por conta do processo de mecanização da lavoura brasileira. Tal processo já
sinalizava o modelo de agricultura que se concretiza hoje em nosso país - o agronegócio.
A partir da década de 1990 o sistema capitalista brasileiro entrou numa nova fase - o
neoliberalismo - defendendo o “livre acúmulo de capital” entre as empresas. Nesse sentido, várias
empresas transnacionais começaram a se instalar em países que dispunham de altas taxas de
juros, mão-de-obra barata e o mais importante, terras férteis. É aí que o Brasil passa a ser o alvo
predileto destas empresas que buscam o aumento contínuo de seus lucros.
Segundo o jornal “Brasil de Fato” (2007:1), “das 200 maiores empresas que atuam no
Brasil, as maiores e mais lucrativas são controladas por bancos ou pelo capital internacional, como
a Vale, a Petrobras, a Usiminas, o Banespa, entre outras” 6. Ainda de acordo com o referido jornal
um dos objetivos dessas transnacionais “é controlar nossa agricultura e alimentos”. E estão
fazendo isso comprando nossas terras e usinas para controlar a produção de etanol com o
objetivo de exportar para seus países de origem. Ou seja, “o Brasil virou um paraíso das empresas
transnacionais”.
È neste contexto que o MST levanta a bandeira da “Soberania alimentar” defendendo um
modelo de agricultura familiar onde cada região e municípios do país possam produzir a
quantidade necessária de alimentos para toda população sem a intervenção das empresas
transnacionais.
Talvez por isso tenham ocorrido tantas mortes no campo, pois tais empresas
transnacionais, em nome da acumulação desenfreada de capital, têm contratado pistoleiros para
liquidarem os/as trabalhadores/as rurais sem terra. Como relata Nina Fideles no “Jornal Sem
Terra” (2008: 4):
A violência do latifúndio tem se manifestado ao longo dos anos com suas diversas
facetas. A presença das empresas transnacionais e a utilização cada vez mais

6
“O jornal Brasil de fato foi lançado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 25 de janeiro de 2003”. Caracteriza-
se por ser um jornal semanal político, de circulação nacional, produzido e coordenado por movimentos sociais como o
MST, a Via Campesina, a Consulta Popular e as pastorais sociais, para contribuir ao debate de idéias e à análise dos
fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país.

402
freqüente de milícias armadas colocam novos elementos na luta pela reforma
agrária. Desde 2005, foram mortos 18 companheiros do MST e 87 foram presos.

Assim, concluímos que a “violência no campo” vivenciada pelos/as Sem Terra pode vir a ser
interiorizada na prática da mística, pois é parte do cotidiano destes camponeses.

Análise da prática particular


Nesta parte da análise buscaremos especificar as relações entre o discurso multimodal da
mística e as outras dimensões desta prática social, lembrando que “práticas são *...+ ‘maneiras
habituais, em tempos e espaços particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos - matérias ou
simbólicos - para agirem juntas no mundo’” (Chouliaraki e Fairclough, 1999: 21 apud Resende e
Ramalho 2006: 35). Dessa forma, reportamo-nos às dimensões da prática social em análise,
começando pelas “relações sociais e processos”.
Fairclough (2003) sustenta que textos figuram como parte dos eventos sociais. Isto é, os
eventos são em parte discursivos e sendo assim, podemos dizer que os textos representam
instituições e suas ideologias. Se aceitamos isso, podemos perceber no discurso multimodal do
MST a representação da instituição (organização) MST com suas “diretrizes de atuação”
(ideologias). E se estas formas de significação do social estabelecem, mantêm ou transformam as
relações sociais entre os/as Sem Terra, podemos afirmar que existem relações de poder entre a
organização social MST e os/as Sem Terra.
Outra dimensão a ser focalizada numa prática social, de acordo com Chouliaraki e
Fairclough (1999), seria o “fenômeno mental”. Ou seja, as crenças, valores, e desejos dos agentes
envolvidos nesta prática - neste caso os/as Sem Terra que acreditam na realização da reforma
agrária, lutando contra os latifundiários que se dizem ser os “donos destas terras”. Percebemos
também neste discurso constitutivo da mística dos Sem Terra, a veiculação de valores, tanto os
difundidos pelo MST (valores humanistas e socialistas) como os que são naturalizados
hegemonicamente na sociedade brasileira servindo para a manutenção de uma “identidade de
invasores”.
Analisando a mística em destaque, percebemos que os/as Sem Terra “interiorizam” as
representações que a mídia brasileira e os latifundiários constroem sobre as suas identidades (ver
cena 1). E mais, estas representações interiorizadas entram em conflito com a identidade de Sem
Terra que o MST tem ritualizado constantemente através da mística. Aqui adentramos no último
dos momentos da mística, a saber, o discurso. Discurso enquanto maneiras particulares de
representar partes do mundo. Nesse sentido, o discurso do MST difundido na mística representa a

403
organização MST que sabe da importância deste ritual na constituição do “ser Sem Terra do MST”.
Como conclui Caldart (2004: 211) “*...+ o MST sabe da importância dessa dimensão e por isso
tornou-a uma prática intencional nas suas atividades de formação”.
Em suma, no que diz respeito à relação destas outras dimensões da mística com o seu
discurso multimodal, entendemos que estas se inter-relacionam num movimento dialético
compondo redes de práticas sociais que atuam na mística realizada no e pelo MST.

Análise de discurso crítica multimodal da mística do MST


Nesta seção, efetuamos a análise de discurso propriamente dita, buscando primeiramente
especificar que elementos se articulam na “ordem de discurso” que estou denominando aqui de
ordem do discurso campesino. Num segundo momento analisamos como o discurso multimodal
da mística trabalha estes elementos e, por fim, focalizaremos a relação dos elementos lingüísticos
com os componentes semióticos na constituição das identidades dos/as Sem Terra.
A análise será feita com base na nossa modificação do enquadre de Chouliaraki e
Fairclough (1999) para a ADC. Portanto, iniciamos analisando como o discurso multimodal do MST
figura como “modos de ser” (significado identificacional) construindo “estilos” *“Sem Terra” no
MST (lutador) e sem-terra na mídia (“invasor”), por exemplo+. Pois, os “estilos constituem o
aspecto discursivo de identidades, ou seja, relacionam-se a identificação de atores sociais em
textos” (Resende e Ramalho, 2006: 76). Dessa forma, focalizamos o significado identificacional
com ênfase nas escolhas lexicais presentes no discurso da mística do MST.

Mística e resistência no MST


A mística começa retratando uma típica cena da violência no campo. Dois pistoleiros
chegam na terra que está sendo ocupada por Sem Terras do MST e começam a atirar em todos/as.
Três Sem Terras são mortos (Ver anexo II - cena 1). Em seguida duas Sem Terras aparecem
cobrindo os corpos com lonas vermelhas, como se já estivessem preparando o funeral dos/as
trabalhadores/as rurais sem terra mortos (cenas 2 e 3). Todo esse ritual acontece com um “fundo
musical” (“Esta cova que estais/junto à luz do dia/é a conta menor que tiraste em vida/é de bom
tamanho/nem largo nem fundo/é a parte que te cabe deste latifúndio/não, não é cova grande...”
– Música: “Morte e vida Severina” – Chico Buarque de Holanda). Em seguida vemos duas Sem
Terras hasteando as bandeiras do MST e do Brasil (uma ao lado da outra), e como “fundo
musical”, o Hino do MST cantado e ritualizado por todos/as que participavam da mística (cenas 4 e
5). O encerramento se dá com os/as Sem Terras gesticulando os braços com o punho erguido,

404
proferindo “palavras de ordem”, relembrando lutadores/as que tombaram na luta pela terra e
pela transformação social (cenas 6 a 8).
No que se refere ao significado identificacional propomos destacar no trecho do Hino
ritualizado pelos/as Sem Terra (Ver anexo II) os grupos nominais “braço erguido”, “bandeira
colorida” e “trabalhadores” que “texturizam” a identidade do que é ser Sem Terra no MST. Pois,
trabalhadores (Sem Terra) de braços erguidos estão (nesta mística) ritualizando o Hino do MST e a
bandeira colorida (bandeira do MST) é um dos elementos constitutivos da identidade dos/as
trabalhadores/as rurais deste movimento social. Nesse sentido, “o hino é mais do que uma
música, é um símbolo que, articulado à bandeira, ao boné, a camiseta [...] dos trabalhadores em
marcha, contribui para formar a identidade do militante do MST nos aspectos sociais e políticos.”
(Maia, 2008: 40).
No que diz respeito à (inter) ação dos aspectos lingüístico-discursivos com o texto
imagético na construção identitária dos/as Sem Terra do MST, percebemos que em termos de
significado representacional, todas as cenas apresentam vetores (traços que indicam
direcionalidade) indicando ações em andamento. Logo, de acordo com a Gramática do Design
Visual (GDV), de Kress e van Leeuwen (1996), temos estruturas narrativas. Na cena 1, por
exemplo, observamos que o vetor emana das armas dos dois “Atores” que estão apontadas para
os/as Sem Terras “mortos” (“Metas”), configurando uma estrutura narrativa, transacional,
unidirecional.
No tocante ao significado interativo, observamos a partir da cena 2 que a categoria mais
saliente é a “modalidade”, pois o grau de realidade da imagem se configura como sensorial na
medida em que a cor vermelha se relaciona com a bandeira do MST (em segundo plano)
construindo uma afetividade entre os/as participantes. Por fim, na cena 5 que representa o
hasteamento das bandeiras do MST e do Brasil por duas Sem Terras, observamos em termos do
“valor de informação” que o lado esquerdo se caracteriza como uma informação “dada” (a morte
dos/as Sem Terra), a representação da violência no campo. Já do lado direito, vemos uma
informação “nova” (mulheres Sem Terra hasteando as bandeiras do MST e do Brasil). E ainda, na
parte superior temos uma informação “ideal” contida nas bandeiras hasteadas, que pode significar
a luta dos/as sem terra pela reforma agrária no Brasil. Por fim, na parte inferior tem-se uma
informação “real” (trabalhadores/as rurais sem terra mortos).

405
Reflexão sobre a análise e considerações finais
Esta pesquisa, como qualquer outra forma de prática social, foi desenvolvida a partir de
uma escolha, feita por meio da nossa posição enquanto lingüistas críticos que se identificam com
as lutas sociais e consequentemente com os Movimentos sociais, dentre eles, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil. Nesse sentido, constatamos que o discurso multimodal
da mística do MST é composto por elementos discursivos (escolhas lexicais dos/as Sem Terra) e
imagéticos (textos multimodais) que se imbricam dialeticamente numa relação de
interiorização/articulação na prática social da mística cultivada pelo MST. Além disso, percebemos
também que o MST através deste discurso multimodal tenta construir um “estilo” de Sem Terra,
numa relação conflitante com a identidade hegemônica dos Sem Terras inculcada na maioria dos
brasileiros/as. Nesse sentido, acreditamos que a mística funciona no MST de duas formas: a) como
uma forma de estabelecer e manter uma outra identidade hegemônica dos/as Sem Terra - a
identidade do Sem Terra lutador, que se indigna contra a violência no campo, reacendendo a
chama da luta pela terra e pela transformação social - e b) como uma forma de resistência.

Referências

CALDART, Roseli. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

CHOULIARAKI, Lilie.; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity: Rethinking critical


discourse analysis. Edimburgo: Edimburgh University Press, 1999.

COSTA, Décio. Charges eletrônicas das eleições de 2006: uma análise de discurso crítica.
Universidade de Brasília, dissertação (Mestrado), 2007.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Coord.trad.; revisão e prefácio à ed. brasileira
de Izabel Magalhães. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.

________. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres/Nova York:
Routledge, 2003.

JORNAL BRASIL DE FATO. Ano 5 nº 248. Edição Especial – Transnacionais. Dezembro de 2007.

KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Reading images: the grammar of visual design. London,
New York: Routledge, 1996.

LIMA, Maria. Discurso e identidade de gênero no contexto da escola. Universidade de Brasília,


Tese (Doutorado), 2007.

MAGALHÃES, Izabel. Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília Thesaurus,


2000.

406
_______. Teoria crítica do discurso e texto. In: Linguagem em (Dis)curso, 4: Especial, 2004.
Disponível em HTTP://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0403/05.htm.

________. Análise do discurso publicitário. Revista da ABRALIN, 4 (1 e 2), 2005, p. 231-260.

MAIA, Lucíola. Mística, educação e resistência no Movimento dos Sem-Terra - MST. Fortaleza:
Edições UFC, 2008.

MORISSAWA, Mitssue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). São Paulo. s/d. DVD.

______. Secretaria Nacional. A mística, razão da persistência. In: O MST: a luta pela reforma
agrária e por mudanças sociais no Brasil. São Paulo, 2005.

______. Setor de Educação. Pra soletrar a liberdade n° 01. São Paulo, 2007.

______. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ano XXVI - nº 281 – Abril de 2008.

OUVERNEY, Jamile. A mulher retratada em comerciais de cerveja: venda de mulheres ou de


bebidas? In: ALMEIDA, D.(org.). Perspectivas em análise visual do fotojornalismo ao blog. João
Pessoa: Editora da UFPB, 2008.

PINHEIRO,Viviane. Analisando significados de capas da Revista Raça Brasil: um estudo de caso à


luz da semiótica social. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (dissertação de mestrado).

RESENDE, Viviane; RAMALHO. Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.

ROMÃO, Lucília. As raízes da luta pela terra. In: Revista Discutindo Geografia. Ano1, nº 6. Escala
educacional, 2006.

STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra
no Brasil. São Paulo. Editora Perseu Abramo, 1999.

VAN LEEUWEN, Theo. Three models of interdisciplinarity. In: WODAK, Ruth; CHILTON, Paul. A new
agenda in (critical) discourse analysis: theory, methodology and interdisciplinarity.
Amsterdã/Filadélfia: John Benjamins, 2005.

Site pesquisado:
www.wikipedia.org/wiki/Escola_Nacional_Florestan_Fernandes acesso em 5 de fevereiro de 2010.

407
ANEXO I

1. Hino do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Letra: Ademar Bogo


Musíca: Willy C. de Oliveira

Vem teçamos a nossa liberdade


braços fortes que rasgam o chão
sob a sombra de nossa valentia
desfraldemos a nossa rebeldia
e plantemos nesta terra como irmãos!

Refrão:
Vem, lutemos punho erguido
Nossa Força nos leva a edificar
Nossa Pátria livre e forte
Construída pelo poder popular

Braços Erguidos ditemos nossa história


sufocando com força os opressores
hasteemos a bandeira colorida
despertemos esta pátria adormecida
o amanhã pertence a nós trabalhadores !

Refrão:
Vem, lutemos punho erguido
Nossa Força nos leva a edificar
Nossa Pátria livre e forte
Construída pelo poder popular

Nossa Força resgatada pela chama


da esperança no triunfo que virá
forjaremos desta luta com certeza
pátria livre operária camponesa
nossa estrela enfim triunfará!

Refrão:
Vem, lutemos punho erguido
Nossa Força nos leva a edificar
Nossa Pátria livre e forte
Construída pelo poder popular

Fonte: (MORISSAWA, 2001)

408
ANEXO II - Cenas: Mística – MST

Cena 1

Cena 2

Cena 3

Cena 4

Cena 5

409
Cena 6

Cena 7

Cena 8

410
RECONTEXTUALIZAÇÃO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA
EDUCAÇÃO: O DISCURSO DA COMODIFICAÇÃO
Maria Inês Rocha de Sá (PROPED/UERJ)

Este trabalho pretende tratar da recontextualização das tecnologias de informação e comunicação


(TIC) na educação, sobretudo procura discutir como as TIC se inserem na lógica dos “negócios”, no
discurso comodificado. Adoto como caminhos: partir do conceito de recontextualização de Basil
Bernstein; o conceito de recontextualização das TIC na educação; as TIC inseridas na educação e
inscritas na tendência discursiva da 'comodificação', com base nas formulações de Norman
Fairclough.

Palavras-chave: recontextualização, discurso, comodificação, Tecnologias de Informação e


Comunicação, educação.

A perspectiva em destaque neste texto está centrada na reflexão sobre os significados dos
discursos e das propostas feitas, especialemente, no século XX como esse foi marcado pela crença
no poder miraculoso das TIC. De acordo com Barreto (2009), há no imaginário social e pedagógico
que a presença das TIC simplifica o processo de formação humana. Nos anos 80, daquele século,
houve um crescimento da indústria eletrônica nacional e o mercado brasileiro despontou como
um dos 10 maiores do mundo. Nesse quadro, quando aumentaram as demandas em relação à
informatização da sociedade, o governo brasileiro foi pressionado para garantir a formação de
recursos humanos que atendessem esse ramo da indústria nacional, indo além da preparação para
o trabalho realizado por profissionais universitários, mas que incluísse técnicos de nível
fundamental e médio.
Nesse cotexto, as múltiplas relações entre as inovações tecnológicas e as práticas
educacionais redefinem os vínculos (nível macro) da educação com projetos de desenvolvimento
econômico, social e político, e de reformulações (nível micro) de novos conhecimentos e
aprendizagens, habilidades e aportes didático-pedagógicos. Relações postas. Igualmente para
todos? Democraticamente? Penso que não. Nesse sentido, Barreto (2008) aponta a necessidade
de se discutir “a representação das TIC no centro de qualquer proposta de 'democratização' do
conhecimento, a ponto de sua simples presença poder ser identificada a uma revolução
educacional”. Dito de outro modo as TIC parecem, poder deslizar de sua condição de meios para
se constituir em “senhor” de todas as instâncias da vida social (SFEZ, 1994 apud BARRETO, 2008).
Este texto aborda o processo de recontextualização das tecnologias de informação e
comunicação (TIC) na educação. O trabalho está organizado duas seções. Parto da compreensão e
do percurso do conceito de recontextualização construído pelo sociólogo britânico Basil Bernstein,
411
ou como ele mesmo define, do princípio recontextualizador do discurso pedagógico e retomo o
conceito com base nos estudos de Norman Fairclough. Na segunda seção, abordo as tecnologias
de informação e comunicação (TIC) e como foram relocadas na educação, como parte do processo
de ´comodificação´ educacional.
Vale destacar as ponderações de Barreto & Leher (2008), os autores nos chamam atenção
para a relação dialética entre discurso e estrutura social. Dizem que esta relação não pode ser
simplificada por leituras mecanicistas ou deterministas. Citando Fairclough, sublinham
que há mudanças na vida social que são, em parte, mudanças no discurso sem
serem apenas discursivas, ao mesmo tempo em que há mudanças discursivas que
podem não apontar para mudanças sociais, como as de motivação retórica.
Portanto, adverte que evitar a redução da mudança social ao discurso é tão
importante quanto reconhecer o último como um elemento ou “momento”
dialético da primeira. (FAIRCLOUGH apud BARRETO & LEHER, 2008, p.423)

Aproximações... das recontextualizações e das TIC


Em seus estudos Basil Bernstein sobre o discurso pedagógico e neste texto, referendados,
especialmente, pelos estudos de Luciola Licinio Santos, mostra que o sociólogo inglês preocupou-
se em entender como os textos educacionais se constroem, como se organizam, circulam e se
modificam. Bernstein demonstra que o dispositivo pedagógico fornece a “gramática” do discurso
pedagógico. Para ele a gramática do discurso pedagógico é constituída por três tipos de regra: as
regras distributivas, as recontextualizadoras e as avaliativas (SANTOS, 2003, p. 31). Para a análise
que pretende este texto, interessa-nos o processo de recontextualização do discurso pedagógico.
Para Bernstein são as regras de recontextualização que criam o discurso pedagógico. O
sociólogo afirma que o discurso pedagógico não é um discurso e sim um princípio. Um princípio
pelo qual os discursos são apropriados e colocados em relação uns com os outros. Partindo desta
afirmação é que Bernstein diz que o discurso pedagógico se constitui um princípio de
recontextualização, que, seletivamente, se apropria, reloca, refocaliza e relaciona outros
discursos, para constituir sua própria ordem (BERNSTEIN apud SANTOS, 2003, p.32). Mais
precisamente, é um princípio de recontextualização de outros discursos que serão seletivamente
transmitidos e adquiridos.
De acordo com Bernstein, na construção dos discursos pedagógicos há dois campos
recontextualizadores: o campo (o autor trata a definição de campo1 baseada em Bourdieu) da

1
O conceito de campo de Bourdieu “consiste em um conjunto de relações de força de sujeitos e instituições em
permanente disputa pelo poder, seja ele manifestado nas relações da vida econômica, política ou cultural”(DIAS,
2004,p.2). Vale recorrer à fonte primária.

412
recontextualização oficial e o campo da recontextualização pedagógica. O primeiro, dominado pelo
Estado e o segundo, pelos educadores (SANTOS, 2003). Ou como se refere Dias (2004), há o campo
oficial e o não oficial no processo de recontextualização: “a) oficial que produz o discurso
pedagógico oficial (legislação do currículo nacional, avaliação nacional e livro didático) e b) não-
oficial que produz as teorias educacionais (práticas, conteúdos e investigações pedagógicas).”(p.2).
Textos produzidos em contextos outros que não os seus, com fins distintos, são portanto,
recontextualizados. A recontextualização varia de campo de saber para campo de saber. Mas
Fairclough adverte, que esse é um “fenômeno complexo, envolvendo, para além de uma simples
colonização, um processo de apropriação cujas características e resultados dependem das
circunstâncias concretas dos diversos contextos” (apud BARRETO, 2008). Tal advertência é para
que segundo a autora, não deixemos de considerar as mediações que constituem as
recontextualizações.
É importante também pontuar como Dias (2004) interpreta o processo de
recontextualização, para a autora esse processo,

caracteriza-se por um movimento de textos de seus contextos, originais ou não,


para outros contextos no qual esses discursos passam a constituir uma nova
ordem e um novo sentido. Nesse processo de recontextualização, portanto, a
partir do novo contexto em que o discurso se insere, passa também a adquirir um
novo significado, mesmo que ele esteja fortemente relacionado a outros tempos e
espaços (p.2).

As TIC foram criadas e desenvolvidas para outros fins que não os educacionais, ou seja,
foram retiradas de seus contextos e, recontextualizadas na educação. Fairclough amplia o conceito
e explica que o processo de recontextualização trata-se do deslocamento campo social para outro.
Mas não a simples transposição de um campo para o outro. Para Fairclough (apud BARRETO, 2009)
o processo de recontextualização compreende a disseminação de discursos para além das
fronteiras de estrutura e de escala.
No primeiro caso, o de estrutura, trata-se do deslocamento de um campo social para outro:
não apenas da comunicação e da informação, mas da lógica dos “negócios” para a educação, cada
vez mais marcada pela comodificação [...]. Em se tratando de escala, a recontextualização das TIC
pode ser dimensionada pelas formulações das organizações “globais” endereçadas aos Estados
nacionais, especialmente quando periféricos (BARRETO, 2009).

413
Nessa perspectiva, em outro artigo, Barreto (2008) expõe que há um movimento
contraditório de expansão e redução no território de recontextualização das TIC na educação:

De um lado, a suposição de que as TIC sejam “a solução” para todos os problemas,


incluindo os que extrapolam os limites educacionais. De outro, seu uso intensivo
está inscrito em estratégias de educação a distância (EaD), em especial para a
formação de professores, como proposta de massificação (p.921)

É preciso refletir e discutir sobre os significados dos discursos e das propostas feitas como
políticas educacionais relacionadas ao domínio das TIC. Segundo Barreto (2009), está impressa no
imaginário social e pedagógico que a ideia de que a presença das TIC simplifica o processo de
formação humana. Não que devamos negar o papel importante das TIC aos processos
pedagógicos, entretanto, “as TIC não podem ser recontextualizadas apenas para simplificar ou
substituir as práticas sociais, especialmente nos países ao sul da dita sociedade global da
informação” e, mais especialmente ainda, no contexto brasileiro, marcado por profundas
desigualdades” (p.115).

As TIC e a educação na lógica dos “negócios”

De acordo com Dias (2004), quando esta analisa a recontextualização do conceito de


competência no currículo, a autora aponta como tônica do discurso de alguns recentes
documentos oficiais sobre a escola a sintonia que esta deve ter com “com as mudanças da
sociedade, ajustada ao mercado produtivo”. Diz ainda que, antes da segunda guerra mundial, “as
propostas curriculares vislumbravam um mercado de trabalho com qualificações definidas, o
contexto atual não comporta esse modelo, produzindo finalidades sociais de adaptação a
contextos sempre novos onde o sujeito deve se inserir”. E atualmente, a perspectiva é de uma
formação de professores que possam desenvolver em seus alunos capacidades para adaptação às
instabilidades do mercado e à possível inserção no trabalho.
Nesse contexto, Barreto & Leher (2005) demonstram que, historicamente associada ao
tecnicismo, a formação por competências era anunciada como o modelo mais adequado aos
processos de trabalho “flexibilizado”, decorrentes das mudanças tecnológicas e da organização do
trabalho. Destacam ainda que embora

as competências permaneçam como núcleo sólido da proposta, a inovação reside


nos recursos tecnológicos que com elas podem co-operar: são as TIC muito mais

414
sofisticadas do que a tecnologia educacional dos anos setenta em uma nova
roupagem – (neo) tecnicista, em que o trabalho educacional é deslocado do
ensino para a aprendizagem (p. 20)

Essa é uma dimensão que coloca numa relação orgânica as práticas educativas e as
metamorfoses nos processos de trabalho e os processos comunicacionais diretamente produtivos.
Relação que vem exigindo do sistema educacional, novos aportes, novos conhecimentos e novos
saberes. Nesse processo, de construção de sujeitos, conhecimento e sociedade, Bernstein (apud
SANTOS, 2003) aponta o papel exercido na construção dos discursos pelo campo de
recontextualização oficial e mostra como atualmente o Estado, de maneira centralizada,

monitora o currículo, ao mesmo tempo em que estimula a descentralização da


administração escolar. Esta descentralização, no entanto, tem-se tornado um
fator importante na criação de uma cultura empresarial competitiva no interior do
sistema de ensino (p.33) (Grifo meu)

Na perspectiva de Magalhães (2008) a educação deve responder às demandas do processo


produtivo, o que expressa uma concepção economicista da educação e são negligenciadas outras
possibilidades político-sociais. A educação como mercadoria passa a fazer parte do discurso
educacional: é a comodificação.
Pelo exposto até aqui, posso trazer para a discussão os estudos de Fairclough 2 acerca das
tendências de mudanças das ordens discursivas. Como já dito por Magalhães no parágrafo acima,
nos interessa abordar a ´comodificação´ como uma tendência discursiva que nos ajuda a refletir
sobre a recontextualização das TIC na educação e como a própria autora também afirma, o foco
na comodificação se justifica “por se constituir, de longe, na mudança mais presente no discurso
educacional nas últimas duas décadas” (p.65)
Para Fairclough, a comodificação não é um processo novo, mas que recentemente, ganhou
fôlego como um aspecto da “cultura empresarial” (KEAT e ABERCROMBIE apud FAIRCLOUGH,
2001, p.255). De acordo com o autor, a comodificação é “um processo pelo qual os domínios e as
instituições sociais, cujo propósito não seja reproduzir mercadorias no sentido econômico restritos
de artigos para venda, vêm não obstante a ser organizados e definidos em termos de produção,
distribuição e consumo de mercadorias“ (p. 255).
Para Fairclough (2001) a comodificação,

2
Fairclough identifica três tendências: a democratização, a comodificação e a tecnologização. (Ver Cap. 7 Discurso e
Mudança Social, 2001)

415
a expansão do consumismo e a marquetização têm efeitos generalizados sobre as
ordens de discurso, variando de uma reestruturação penetrante de ordens de
discurso institucionais, sob o impacto do movimento colonizador do discurso da
publicidade, do mercado e da administração, até ‘relexicalização’ de público,
clientes, estudantes como ‘consumidores’ ou ‘fregueses’ (p.151/152).

Nesse contexto, Barreto & Leher (2005) afirmam que a tendência à ´comodificação´ do
discurso educacional extrapolou os limites simbólicos e alcançou materialidade mais concreta.
Para as autoras esse alcance foi permitido pelo

deslocamento da própria educação para o setor de serviços a partir da Rodada


Uruguai do Gatt (1994), movimento atualmente capitaneado pela OMC
(Organização Mundial do Comércio) e pela ALCA (Área de Livre Comércio das
Américas). É a ´comodificação´educacional, na sua feição mais radical. É a
educação reduzida a mercadoria (p.21).

Afirmam também que nesse processo de ´comodificação´ educacional, as TIC fornecem


embalagem ideal para a sua circulação no mercado. Na mesma direção, Magalhães (2008) diz que
“o processo de comodificação da educação passa a figurar nas práticas discursivas dos
documentos dos organismos internacionais *...+” e ainda que, “a educação é deslocada do âmbito
da formação humanista para uma formação supostamente politécnica, profissional, com vistas ao
“aprender a aprender fazendo”, através de estratégias de ensino possibilitadas pelas TIC” (p. 85).
Mas como já foi dito no início do texto por Barreto (2008), há de se discutir “a
representação das TIC no centro de qualquer proposta de 'democratização' do conhecimento”. Os
discursos para os países do Primeiro Mundo e para os do Terceiro Mundo, tanto no que diz
respeito ao acesso ao conhecimento, quanto às políticas educacionais desses países, estão longe
de serem iguais e ´democráticas´. No processo de comodificação da educação, vemos como os
discursos se mostram distintos: incluídos e excluídos, tendo como demarcação deste território o
“acesso” às TIC.
Por outro lado, não há de se “negar o acesso aos diferentes produtos do trabalho humano,
as TIC obviamente incluídas, como condição necessária a qualquer proposta democrática, é
preciso reconhecer que o acesso em si não é suficiente” (BARRETO, 2008, p. 931) autora diz ainda
que
A apropriação, como horizonte, requer o reconhecimento de fronteira mais
complexa, colocando de um lado os que podem até mesmo modificar as
aplicações da tecnologia e, de outro, os consumidores de pacotes, limitados a
operações tão simples quanto previsíveis. Em se tratando da recontextualização
educacional das TIC, este reconhecimento remete à superação de condições
restritivas, unidirecionais, como o lugar de usuário que recebe, em “pacotes

416
tecnológicos”, informações pré-selecionadas a serem apreendidas, retidas e
(com)provadas. (p.931)

Em síntese, as transformações tecnológicas obrigam os profissionais a promover um


debate sobre a prática educacional, na abrangência em curso, como também pelas formas
particulares que esses fenômenos se dão em cada segmento constitutivo da sociedade. A difusão
das TIC determina a “constituição” de um “divisor digital”, questionado por Barreto & Leher
(2005), como uma linha divisória que demarca os incluídos e excluídos do acesso às TIC. A
ressignificação deste sintagma implica a distinção de modos e sentidos do acesso às tecnologias e
não mais uma simples questão de acesso ou de sua ausência.
Nesse sentido, cabe entendermos e debatermos as repercussões das políticas públicas
educacionais no desenvolvimento econômico, social e político e, mais especificamente, o discurso
das propostas para a formação de professores relacionadas às TIC e os discursos incrustados na
chamada ”sociedade globalizada da informação”. Como afirma Barreto (2008)

A recontextualização das TIC na política nacional de formação de professores a


distância tem sido produzida pela negação das condições históricas da formação
e do trabalho docente, sustentando e sendo sustentada pelo discurso da “falta” e
pela proposta de preenchimento através de um conjunto multiplicável de
novidades (há sempre algo “novo” afirmado como necessariamente positivo)
(p.932).

De fato, as transformações tecnológicas colocam em destaque a urgência do debate e de


pesquisas sobre a formação de professores, sobre concepções e práticas de educação, não só pela
radicalidade das mutações em curso, como também pela necessidade de elucidação acerca das
particularidades destes fenômenos, especialmente, na realidade brasileira. A política nacional para
a formação de professores e os atuais programas oficiais suscitam questões importantes a serem
tratadas, tais como, a concepção hegemônica de educação que a sustenta, bem como um
intrincado jogo de fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que conformam a disputa de
poder na sociedade em torno da formação de uma geração de brasileiros na contemporaneidade.

Concluindo...ou...ainda refletindo...
Precisamos discutir sobre os significados dos discursos e das propostas feitas como
políticas educacionais relacionadas ao domínio das TIC. Não que devamos negar o papel
importante das TIC aos processos pedagógicos, entretanto, segundo Barreto (2008a)

417
as TIC não podem ser recontextualizadas apenas para simplificar ou substituir as práticas
sociais, especialmente nos países ao sul da dita sociedade global da informação” e, mais
especialmente ainda, no contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades.”
(p.115)

Como não há aqui a pretensão, em nenhum momento, de julgar, defender ou a condenar a


presença das TIC no cotidiano escolar e dos professores, sublinho o que já foi comentado por
Almeida (1988), o autor afirma que não há respostas rápidas e precisas. A realidade é muito mais
complexa do que os meios acadêmicos podem tratar. Mas, sem dúvida, o importante é
contribuirmos para o reconhecimento e “superação de condições restritivas, unidirecionais, como
o lugar de usuário que recebe pacotes tecnológicos.” (Barreto, 2008b, p. 931).
Por fim, se pensarmos na sociedade brasileira, nos seus altos níveis de concentração de
renda desigual e na falta de investimentos públicos que garantam o atendimento às necessidades
básicas – educação, saúde, habitação, trabalho – da grande maioria de seus cidadãos, é pensarmos
na nossa realidade. Reflexão que não pode afastar-nos sobre o papel da escola, tanto para propor
novos métodos de ensino-aprendizagem capazes de garantir níveis de qualificação e novas
relações do educador com o educando, quanto para pensar nas novas (e velhas) potencialidades
do próprio indivíduo. Contudo, é esse o mundo atual, no qual estão imbricadas as mudanças do
mundo “real”, do mundo “infoglobalizado”. É o “nosso” mundo, ou pelo menos, “nosso” planeta.

Referências

BARRETO, Raquel Goulart. Discursos, tecnologias, educação. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009

_______, Ensinar e aprender na “sociedade global da informação”. XIV ENDIPE - ENCONTRO


NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, Porto Alegre – RS, 27 a 30 de abril de 2008a.

_______, As Tecnologias na Política Nacional de Formação de Professores A distância: entre a


expansão e redução. Revista Educação & Sociedade, Campinas, vol. 29, n. 104 - Especial, p. 919-
937, out. 2008b

_______ & LEHER, Roberto. Do discurso e das condicionalidades do Banco Mundial a educação
superior “emerge” terciária. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 13, n.39, p.423-436,
2008.

_____ & LEHER, Elizabeth Menezes Teixeira. Imagens: a questão do sentido hegemônico In:
ALVES, Nilda; BARRETO, Raquel Goulart & OLIVEIRA, Inês Barbosa de (Orgs.). Pesquisa em
Educação: Métodos Temas e Linguagens. Rio de Janeiro: DP&A,2005.

418
DIAS, Rosanne Evangelista. A recontextualização do conceito de competências no currículo da
formação de professores no Brasil. TEIAS: Rio de Janeiro, ano 5, nº 9-10, jan/dez 2004

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Izabel Magalhães, coordenadora da tradução.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

MAGALHÃES, Ligia Karam Corrêa de. Formação e trabalho docente:os sentidos atribuídos às
tecnologias da informação e da comunicação [Tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Educação: 2008

SANTOS, Lucíola Licínio de C. P. Bernstein e o campo educacional: relevância, influências e


incompreensões. Cadernos de Pesquisa. n. 120, p.15-49, novembro:2003

419
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA OU DISTORÇÃO DA CIÊNCIA?
O CASO DA REVISTA SUPERINTERESSANTE

Paulo Sérgio da Silva Santos (UFS)1


Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN)2

O trabalho faz um levantamento e análise das erratas veiculadas nas edições da revista
Superinteressante. Tomamos como hipótese o pressuposto de que o discurso científico sofre
alterações na transição entre o texto do cientista e a reescrita do jornalista, e por isso ocorrem os
erros. O suporte teórico desta análise é a Teoria Social do Discurso (TSD). A TSD é uma abordagem
de Análise Crítica do Discurso (ACD) que considera qualquer evento discursivo simultaneamente
como um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. Em nosso
recorte, analisamos 11 edições da Superinteressante. Desta forma, nosso corpus foi composto pela
seção que continha as “erratas” e pela matéria de origem. Não limitamos o levantamento dos
dados a um determinado período, apenas ao cumprimento dos objetivos do trabalho: verificar a
freqüência das erratas a fim de chegar a uma média; a natureza dos erros cometidos e o agente
responsável pela identificação do erro. A análise do corpus garantiu que os objetivos fossem
atingidos. Em primeiro lugar, ocorreram erros em todas as edições pesquisadas. Pudemos
confirmar também que, na maioria dos casos, os leitores encontram os erros que são corrigidos
pelas erratas. Mas acima de tudo, nossa análise demonstrou que nem todos os erros são
inofensivos, que muitas vezes eles estão relacionados a questões de saúde e de ética (ou a falta
dela). Assim, julgamos que este trabalho deu sua contribuição para o relevante esforço de
compreender melhor os mecanismos da linguagem e de seus usos sociais.

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, divulgação cientifica, discurso midiático.

Introdução
São de interesse crescente para os estudos lingüísticos, as pesquisas que tem o objetivo de
analisar o trajeto que a informação científica faz desde os que produzem o conhecimento
científico até aqueles que darão notoriedade a esse conhecimento. No percurso até chegar ao
grande público, o jornalista imprime sua marca, suas intenções no texto original, e isso, em nosso
ponto de vista, não ocorre sem prejuízos à informação.

1
Possui graduação em Letras Português e Especialização em Teoria e Prática Textuais ambos pela Universidade
Federal de Sergipe (UFS). É Sócio-Colaborador da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) e membro do grupo
de pesquisa Estudos da Linguagem e Ensino (GPELE/UFS). Atualmente desempenha a função de professor de língua
portuguesa (do Quadro Efetivo) na rede pública municipal de Aracaju e de tutor do ensino à distância da
UAB/CESAD/UFS.
2
Possui mestrado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1988), doutorado em Letras pela
Universidade Federal de Pernambuco (2005) e Pós-Doutorado pela UERJ (2008). Atuou na Universidade Federal de
Sergipe de 1997 a março de 2009, como professora de Linguística e coordenou o Mestrado em Letras de 2007 a
janeiro de 2009. Atualmente é professora adjunta na Universidade Federal do Rio Grande do Norte na graduação e
Pós-Graduação. Também é professora da Pós-Graduação na UFS.

420
O discurso científico é por natureza o discurso da descoberta, e esse possui uma
autoridade que normalmente é atribuída aos eventos científicos. Entretanto, esse fato não pode
nos fazer esquecer que qualquer prática discursiva possui um caráter simbólico e mesmo o
discurso da descoberta não passa de um recorte, de uma escolha, de uma visão particular de seu
descobridor. O discurso da ciência possui uma forma característica que é o artigo acadêmico e
circula por um canal específico que é o evento científico. Este tipo de evento dá vazão ao
conhecimento científico dentro de um campo restrito de atores (investigadores, pesquisadores e
cientistas).
Por outro lado, o discurso jornalístico é o discurso da divulgação. Os redatores científicos
precisam usar instrumentos que possam auxiliar a retratar aquilo que é incompreensível para um
público, na maioria, não especializado (Burkett, 1990). E para isso, precisa ter uma linguagem que
atinja os mais diversos segmentos sociais. Os eventos comunicativos pertencentes ao discurso
jornalístico possuem uma estrutura que é resultado de um processo de reescrita do saber
científico através da articulação dos diversos códigos semióticos. A informação científica é
“transformada” em função de um público-alvo não especializado em informação científica.
Milhares de pessoas consomem a informação científica através de revistas e essa
informação será transmitida e compartilhada por pessoas de sexo, idade, escolaridade e classe
social diferentes. Assim, há profissionais que se dedicam à sua recodificação. Estes precisam
transmitir a notícia para alguém, ainda que para um alguém “ideal”, tendo em mente o seu
conhecimento prévio, seus interesses. Os produtores da notícia científica precisam despertar a
curiosidade dos leitores e manipular a sua atenção para que se instaurem os laços com o público
(Van Dijk, 2008).
Neste processo, o discurso em questão se vale de técnicas que são usadas como recurso
para a reescritura do texto científico, afinal leitores não especialistas em ciência precisam
encontrar no texto pistas para inferir relações lexicais e para fazer a conexão entre o campo
semântico do domínio científico e o da vida cotidiana. O discurso jornalístico alia-se ao discurso do
entretenimento, apropria-se do discurso científico e estabelece campos relacionais metafóricos
com outros discursos. Promove, assim, uma reescrita, nem sempre eficiente, do saber científico
para a leitura não especializada à qual ele se dirige e opera no sentido de manter o nível de
consumo, mercadologicamente, competitivo.
Em nosso recorte, analisamos 11 edições da Superinteressante. Esta publicação é a maior
do gênero “revista mensal de informação científica” do mercado nacional, com 432.211 mil
exemplares de tiragem e 2.803.000,00 milhões de leitores. A seção analisada chama-se “errata” ou

421
“superequivoco”, ou ainda “erramos” e traz os erros das edições anteriores. Não limitamos a
pesquisa a número de edições ou anos, mas somente nos guiamos pelos objetivos estabelecidos.
Assim, nosso corpus foi composto pela seção que continha as “erratas” e pela matéria de
origem. Fizemos levantamento da freqüência das erratas, a fim de chegar a uma média destas.
Procedemos a uma análise da natureza dos erros cometidos e observamos quem os detectou, se o
leitor, ou o editor. Por fim, analisamos a composição da errata, sua linguagem, organização e parte
gráfica e comparamos as informações corrigidas na errata com o texto original. Através de um
trabalho de pesquisa das edições em que ocorreram erros fizemos um trabalho paralelo de buscar
as matérias na íntegra. A partir daí, procedemos à análise do corpus composto pela reportagem e
por sua errata, observando os objetivos descritos acima.
Existe de fato uma grande demanda em nível mundial e nacional por informações de cunho
científico, visto que é cada vez maior a velocidade com que se disseminam os avanços
tecnocientíficos e a influência destes no cotidiano das pessoas. As revistas especializadas em
informação científica cumprem o papel de transmiti-la àqueles que a buscam, mas, no entanto,
dela tem pouco domínio.
E quando este discurso assume erros acerca daquilo que foi transmitido como verdade,
surgem outras questões: o discurso do jornalista sobre o saber científico é um simulacro do
verdadeiro discurso científico? Qual a freqüência e a importância dos mal entendidos entre os
jornalistas e os cientistas? O modo pelo qual o jornalista põe em linguagem os fatos científicos,
com o efeito que escolheu produzir coloca em xeque a transparência da informação, esta depende
de escolhas discursivas efetuadas pelo profissional de comunicação, e estas escolhas privilegiam
certos pontos de vista em detrimento de outros.
Há entre o discurso do cientista e o discurso do jornalista diferenças de organização. Para o
cientista a sua técnica e seu fazer científico são o centro da sua prática científica, enquanto na
visão jornalística, o centro não é o fazer científico, mas o produto deste fazer, ou seja, as
conseqüências para a vida cotidiana. São duas formas diferentes de encarar o conhecimento
cientifico. Para o discurso jornalístico, interessa que a informação seja posta de maneira a
interessar ao maior número de pessoas. Como o objetivo é persuadir para transmitir-lhe uma
informação a organização do discurso depende das hipóteses levantadas a respeito daquele a
quem se destina a informação. Dessa forma, relativiza-se a informação, às vezes, com erros que
comprometem a verdade dos fatos. O papel do jornalista no âmbito da divulgação científica está
transpassado por contradições, uma vez que o jornalista não pode visar a um discurso
estritamente científico, pois não alcançaria o conjunto da sociedade, mas não pode relegar a

422
segundo plano a linguagem a ser utilizada nas suas reescrituras, sob pena de cometer equívocos
graves.
Como dissemos, o discurso científico implica a seleção de um público muito reduzido e
especializado, que compartilhe os mesmos conhecimentos da comunidade científica em questão.
Se adotasse esse discurso Ipsi Literis a mídia excluiria um público amplo e valioso. Sendo assim,
requerem do redator científico a adoção de recursos que facilitem o entendimento do público,
este busca despertar a curiosidade e a atenção de um universo de leitores cada vez mais
abrangentes, e é aí que ocorre a falha na transmissão da informação. O jornalista baseia-se na
hipótese de que o grau de compreensão de uma noticia está ligado à simplicidade com a qual o
discurso é construído. Não há informação que não passe, antes de chegar ao seu destinatário, pelo
filtro de quem a escreve, esse imprime suas vivências e sua visão de mundo no objeto do seu
trabalho. Na tentativa de dar conta do empírico, constrói sua própria realidade. É nesse sentido
que o presente trabalho pretende tomar o discurso científico e as erratas das matérias como
corpus de análise e base para reflexões.
Para dar conta dessas questões adotamos como suporte teórico a Teoria Social do Discurso
(TSD) de Fairclough. A TSD é uma abordagem de Análise Crítica do Discurso (ACD) que considera
qualquer evento discursivo simultaneamente como um texto, um exemplo de prática discursiva e
um exemplo de prática social. A ACD investiga com profundidade não só o papel que a linguagem
ocupa na reprodução das práticas sociais e das ideologias, mas também seu papel fundamental
para a transformação social. Dessa forma, nosso estudo abordará a produção do texto de
divulgação científica como encaixado numa prática social mais ampla.
Por isso, faremos uma incursão na teoria da ACD. Trataremos questões históricas relativas
à Análise Crítica do Discurso e ao enfoque social de Fairclough.
Dessa forma, pretendemos contribuir com os estudos que estão preocupados com as
modificações sofridas pelo discurso científico depois de passar pelo filtro jornalístico. Estes
estudos tornam-se relevantes uma vez que a informação científica interessa cada vez mais aos
cidadãos e sendo, muitas vezes, apropriada como verdade absoluta pelos interessados.

Análise Crítica do Discurso: o enquadre teórico


O discurso como parte indiscutível das práticas sociais é uma perspectiva assumida pela
Análise Crítica do Discurso (ACD), por essa razão ela investiga não só o papel que a linguagem
ocupa na reprodução dessas práticas sociais e das ideologias, mas também seu papel fundamental
para a transformação social. Outro grande interesse da ACD, em conformidade com Pedrosa

423
(2008), é verificar o modo como a dominação ideológica, a desigualdade social e o abuso de poder
praticado, principalmente, pela Mídia (4º poder) são representados pelos vários discursos
presentes no contexto social.
A dominação, nesse caso entendida como (Van Dijk, 1993) o exercício do poder social por
elites, instituições ou grupos, que resulta em desigualdade social, onde estão incluídas a
desigualdade política, a desigualdade cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de
classe , de raça, de sexo e de características étnicas (Pedro, 1997 p. 25).
Assim sendo, um determinado texto não deverá ser estudado, se não, buscando-se
entender, principalmente, questões como representações sociais e relações de poder que
permeiam as relações na sociedade. Para Pedro (1997), os analistas críticos do discurso querem
saber, especificamente, quais as estruturas, estratégias ou outras propriedades do texto, falado ou
escrito, da interação verbal, ou dos acontecimentos comunicativos em geral, que desempenham
um papel nestes modos de reprodução.
Wodak (2001) afirma que a linguagem não é poderosa em si mesma, ela só adquire poder
pelo uso que os agentes que o detêm podem fazer dela. Isso explica porque a ACD com frequência
adota a perspectiva dos que sofrem (‘perdedores’), e analisa criticamente a linguagem daqueles
que estão no poder, que são responsáveis pela existência de desigualdades, e que também
dispõem dos meios e oportunidades para melhorar as condições gerais.
Por esta razão, a Análise Crítica do Discurso desenvolve-se procurando não só descrever as
estruturas subjacentes aos variados eventos discursivos, mas buscando sua superação através da
sua explicação (Van Dijk, 2008: 115.). A superação a que Van Dijk faz alusão diz respeito à
desconstrução ideológica dos discursos que estão presentes nas práticas sociais, tal desconstrução
pode resultar em uma mudança social, revelando, desta forma relações de dominação,
reproduzidas através de textos orais e escritos (Fairclough, 2008). Por isso mesmo é que a ACD
enfatiza as implicações entre poder e ideologia, entendendo que um aparece a serviço do outro,
nos mais variados textos.
A vertente britânica da ACD, representada por Fairclough, a Teoria Social do Discurso (TSD),
configura uma abordagem científica transdisciplinar para estudos críticos que se ocupam da
linguagem, tanto na sua exterioridade quanto na sua interioridade. A proposta se insere na
tradição da “ciência social crítica”, comprometida em oferecer suporte científico para
questionamentos de problemas sociais relacionados a poder e justiça (Silva e Ramalho, 2008: 268).
A TSD é uma abordagem da ACD (Fairclough, 2008) que considera qualquer evento
discursivo simultaneamente como um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de

424
prática social (modelo tridimensional de análise). Ela busca constituir-se em uma teoria da
linguagem que incorpore a dimensão do poder como condição capital da vida social e
consequentemente das práticas discursivas.
A Teoria Social do Discurso será o modelo de análise que se fará nessa pesquisa, primeiro
por privilegiar a articulação entre práticas sociais e práticas discursivas, segundo por promover o
estatuto do texto a um lugar não menos importante, e depois por centra-se na análise das
estratégias discursivas que legitimam o controle, que naturaliza a ordem social e, especificamente,
as relações de desigualdade proporcionando, desta forma, uma análise mais adequada do corpus.

Objetivos e Metodologia
O objetivo principal é refletir sobre as consequências discursivas e sociais decorrentes dos
erros cometidos na tramitação do discurso científico original para o discurso de divulgação
científica (DC). Por isso, a importância da ACD nesse trabalho, porque ela posiciona-se do lado que
se apresenta como o mais frágil nas relações sociais, e nesse caso é o leitor, que tem poucas
chances de se proteger contra o poderio midiático empenhado em transfomá-lo em um
consumidor que não reflete acerca daquilo que consome. Para nós, os erros provenientes da DC
trazem consigo consequências que podem ser desastrosas.
Dessa forma, fizemos levantamento da freqüência das erratas, procedemos a uma análise
da natureza dos erros cometidos e observamos quem os detectou, se o leitor, ou o editor. Por fim,
analisamos a composição da errata, sua linguagem, organização e parte gráfica e comparamos as
informações corrigidas na errata com o texto original.
Para que os objetivos do trabalho fossem alcançados, constituímos o corpus da pesquisa
com os textos retirados das “erratas” contidas na revista Superinteressante que representa a
maior publicação de informação científica do país. O levantamento do corpus não se limitou a um
período ou edições. A coleta dos dados visou unicamente cumprimento dos objetivos do trabalho.
Através de um trabalho de pesquisa das edições em que ocorreram erros fizemos um
trabalho paralelo de buscar as matérias na íntegra a fim de cotejar os dados. A partir daí,
procedemos à análise do corpus composto pela reportagem e por sua errata, observando os
objetivos descritos acima.
As erratas (“Foi Mal”) que compõem o corpus de análise deste trabalho aparecem, na maior parte
das vezes na seção de cartas do leitor. Contudo, o nome e a diagramação sofreram modificações com o
passar dos anos. Nas edições de 1987 a 1990, a nomenclatura era “falhas nossas”, nas edições do ano 2000,
“correções”; já em edições mais recentes como a do exemplo acima (que é de 2008) o nome mudou para

425
“foi mal”, em resumo, o título da seção dedicada à correção das falhas das edições anteriores muda
bastante.

Divulgação científica e distorção da ciência: estudo crítico das erratas


Embora tanto o discurso científico quanto o jornalístico tenham compromisso com a "verdade"
científica, a divulgação pode e precisa despertar a fantasia e a imaginação do leitor como meio de "cativar"
seu interesse e garantir sua atenção. Para isto, a comunicação na DC, às vezes, toca as bordas de outro
discurso, este já literário, o da ficção científica.
Sendo assim, o redator científico adota recursos que facilitem o entendimento do público, este
busca despertar a curiosidade e a atenção de um universo de leitores cada vez mais abrangente,
então, muitas vezes, para atender este aspecto, ocorrem falhas na transmissão da informação. A
transformação do discurso, o fantasiar, cativar, prejudica a verdade científica através dos erros
decorrentes dessa transformação.
Por tanto, a informação original é “transformada” em função de um público-alvo não
especializado em informação científica. Milhares de pessoas consomem essa informação através
de revistas e ela é transmitida para pessoas em situações de recepção totalmente diferentes.
A ideia que permeia nossa análise é a de que a divulgação da ciência é uma tarefa
eminentemente inventiva que recria o conhecimento científico, para formar e ampliar a cultura
científica do público. A dificuldade que essa tarefa supõe deriva, em parte, do distanciamento das
duas culturas, a científica e a humanística como já havia dito Sánchez Mora (2003). Mas, como
ampliar a cultura das pessoas através da informação científica se é justamente em decorrência das
diferenças culturais entre jornalistas e cientistas que surgem as deformações na informação?
Do nosso ponto de vista, não resta dúvida que as apropriações da informação científica
pelo discurso jornalístico (de divulgação), e pelo discurso científico (da descoberta) são diversas.
Essa diversidade de perspectivas se dá por diferentes razões, que indicam atitudes e objetivos
opostos no que concerne à postura diante do fato científico.
Em meio à transição que a informação faz, a rigidez e cautela dos cientistas dão lugar ao
senso-comum e à rapidez do mundo comercial das revistas de divulgação. São modos diferentes
de apresentar, ilustrar e argumentar que dão vazão a entraves, limitações e equívocos.
Os erros que se seguem são exemplo do pouco critério com que são tratadas as
informações científicas. A informação básica já havia sido veiculada, e na segunda vez que foi
utilizada surge em meio ao mesmo tipo de erro. Fica claro que não há um estudo mais minucioso
por trás das matérias, ficando ao acaso o risco de se repetirem erros como esse.

426
Errata 1:
No artigo “a estratégia das aranhas” está escrito que o piolho não é um inseto, mas um aracnídeo.
Na verdade, piolho é inseto. Aracnídeo além da aranha e do escorpião é o carrapato.
(Super, fevereiro, 1989, ed. 017)
Errata 2:
Aranhas são aracnídeos e não inseto. (Super, abril, 2002, ed. 175)

As revistas de divulgação devem lançar mão do mesmo rigor que foi usado na descoberta
científica no momento de se apropriar desse discurso que não lhe pertence, sob pena de
desinformar e deseducar em vez do contrário. O que fica claro nesse exemplo é que o que rege as
informações contidas nas matérias é, na verdade, o senso comum.
É devido a erros grosseiros como o que vimos acima que as críticas aos veículos de
divulgação (a quem cabe a tarefa de alfabetizar cientificamente) ganham força. Não bastasse errar
sobre algo primário, o veiculo repete o mesmo erro uma década depois, tornando a situação ainda
mais grave. Chamamos de erro “primário” justamente porque mesmo consultando um dicionário
que não é especializado na área científica encontramos a informação correta. Ou seja, a
informação está acessível a não-técnicos, basta procurá-la. Utilizamos propositalmente o
dicionário Houaiss da língua portuguesa, para mostrar que não é necessário um livro técnico ou
especializado para que se encontre as informações que sofreram deformações na revista
Superinteressante.
As palavras geralmente apresentam significado cultural, variável e mutável. Sendo assim,
não é incomum que o termo “aracnídeo” seja tomado com o sentido de inseto, como se todo
aracnídeo fosse necessariamente um inseto, o que é falso.
Segundo o Houaiss “aracnídeo” é uma classe de artrópodes quelicerados, cosmopolita, que
reúne 50.000 spp. distribuídas em 11 ordens, vulgarmente conhecidos por aranhas, ácaros e
escorpiões; caracterizam-se pela presença de quatro pares de patas e um par de palpos, pelo
corpo dividido em cefalotórax e abdome e pela ausência de antenas; arácnidos. Por sua vez, os
insetos se caracterizam por uma classe de artrópodes que possuem três pares de patas e que
tipicamente dispõem de dois pares de asas, um par de antenas e um par de olhos compostos; as
mais de 750.000 spp. descritas são geralmente terrestres; insectos.
A alfabetização científica favorece a distinção entre a ciência e a pseudociência, ou seja faz a
distinção entre aquilo que é do censo comum e o que diz respeito aos procedimentos científicos
ficar evidente. O problema reside no fato de que isso não ocorre onde deveria, ou melhor, os

427
próprios veículos da ciência incorrem no erro do censo comum, como podemos constatar no
exemplo abaixo:
Errata 3:
Diferentemente do que foi publicado, o paracetamol pode ser usado para casos de dengue clássica,
devendo ser evitado em casos de dengue hemorrágica.
(Super, fevereiro, 2010, ed. 275)

Para Epstein (2002), a ignorância do público sobre fatos elementares de ciência, mesmo em
países do primeiro mundo, é surpreendente. Este dado torna erros desta natureza ainda mais
graves, porque se trata de saúde pública e nesse campo qualquer informação truncada pode levar
a situações críticas.
Podemos afirmar que a “intenção” da matéria é orientar para os riscos da automedicação e
chamar a atenção dos leitores para o uso adequado dos medicamentos indicados, mostrando que
eles não são todos iguais. Porém, se a intenção era orientar e sobre tema tão importante, o
resultado não foi alcançado, pois há um erro grave na matéria. O trecho da matéria que contém o
erro apresenta-se assim:
PARACETAMOL

Marcas conhecidas: Sonridor, Tylenol.


Indicação: efeito analgésico semelhante ao da aspirina. Mas é o único que não tem ação anti-
inflamatória.
Contraindicação: não pode ser usado em caso de dengue, pois a doença faz com que o fígado pare
de fabricar uma enzima que metaboliza o paracetamol e a substância fica acumulada no organismo,
o que pode levar o paciente à morte. Em excesso, ele pode causar danos no fígado, então deve ser
evitado por quem já agride o órgão regularmente, como doentes de hepatite e quem bebe em
excesso. Ou seja, tomar um tylenol para aliviar ressaca é uma péssima idéia.
(Super, dezembro, 2009, ed. 273)

Por causa de erros como esse que a ideia que apresentamos aqui de tratar a errata com
maior cuidado ganha força. Porque se uma informação como essa não é corrigida adequadamente
pode trazer danos reais à vida de algum leitor desavisado. As pessoas costumam receber as
informações das revistas com bastante boa vontade, e isso não é bom nesse quadro de erros tão
graves.

428
Podemos levantar a seguinte questão a partir dos exemplos apresentados: quantas pessoas
entre as que leram a matéria viram a sua errata? Podemos deduzir que poucas, pois não é uma
prática de leitura comum, checar erratas para verificar se leu alguma informação errada em
artigos divulgados em números anteriores. Enquanto as matérias são construídas para chamar a
atenção e despertar a curiosidade, as erratas são minúsculas e aparecem em espaços pouco
procurados das revistas.
Para a maior parte da população, a realidade da ciência é aquela apresentada pelos meios
de comunicação de massa. E, de acordo com Epstein (2002), a busca pelos meios de comunicação
especializados em ciência se justifica pelo fato de que as pessoas estão perdendo autonomia
diante de todos os saberes que precisam dominar no seu cotidiano. Hoje, para se tornar um
participante capaz de exercer sua plena cidadania, o homem necessita dominar o mundo da
ciência e da tecnologia. O que se torna tarefa difícil diante de situações como a que vemos a
seguir:
O sentido da vida
A ciência não explica ligação com a memória
Mas a maior causa de perda de olfato são os acidentes. Calcula-se que uma entre cada quinze
pessoas com traumatismo craniano passa a viver num mundo inodoro. No caminho dos nervos que
levam a mensagem olfativa ao cérebro, existe uma lâmina cheia de furinhos, o osso etiboidal, que
pela fragilidade e localização — abaixo do crânio — está sujeita a rachar em acidentes. “Se apenas
um lado da lâmina é danificado, muitas vezes a pessoa nem sente que perdeu o olfato, porque um
único lado sadio da cavidade nasal basta para que se tenha a sensação de cheiro”, explica o
neurologista Luiz Celso Vilanova, da Escola Paulista de Medicina. Outros problemas neurológicos,
como tumores, podem causar a perda da sensação de odor. Mas nesses casos os sintomas são tão
graves, como fortes dores de cabeça, que a pessoa nem sequer percebe que não sente mais
cheiros.
(Super, janeiro, 1988, ed. 004 - grifo nosso)

Errata 4:
No artigo “o sentido da vida” está escrito osso “etiboidal”. O certo é etmoidal ou, melhor ainda,
osso etmóide.
(Super, maio, 1988, ed. 008)
No exemplo acima, a veracidade de informação está comprometida por conta do uso de
um termo que não existe. O jornalista não dominava os termos que precisava utilizar, na verdade,

429
necessitava consultar os ossos do crânio ou consultar novamente o cientista para saber como era
mesmo o nome do osso.

Como podemos ver na imagem acima não é difícil consultar o nome de um osso do crânio.
Conseguimos a imagem acima na internet, (fonte:
http://www.anatomiaonline.com/osteologia/cranio.htm, acessado em 02 de fevereiro às
18:09hs), onde esquemas desse tipo são facilmente encontrados. Também pode ser encontrado
em livro de ciências para o ensino médio, pressupondo que a prática da internet não era tão
comum em 1988.
Segundo o Houaiss, etmóide consiste no osso do crânio, situado imediatamente atrás do
nariz, entre as duas órbitas, e sua origem vem de etm(o)- + -oide. Portanto, não existe, tratando-se
em parâmetros etimológicos a raiz etb(o).
Por isso, a Análise Crítica do Discurso enfatiza a necessidade de um trabalho interdisciplinar
de forma a alcançar uma compreensão mais completa de como a linguagem funciona, por
exemplo, na constituição e transmissão do conhecimento e na organização das instituições sociais.
O exemplo acima demonstra como a mídia se compromete com informações que não têm
domínio algum, a fim de manter, tão somente a competitividade mercadológica.
Há ainda, outro aspecto relevante a ser ressaltado. Embora, haja um erro na matéria “o
sentido da vida”, esse erro não interferiu na informação passada, ou seja, o erro se circunscreve
ao termo apenas. Fica evidente que o papel do jornalista no âmbito da divulgação científica está
transpassado por contradições, uma vez que o jornalista não pode visar a um discurso
estritamente científico, pois não alcançaria o conjunto da sociedade, mas não pode relegar a
segundo plano a linguagem a ser utilizada nas suas reescrituras, sob pena de cometer equívocos
como esse.

430
O que a matéria apresentada acima mostra é que, embora o termo “etiboidal” não exista,
as informações que o cercam não foram prejudicadas em função disto, ou seja, a informação
central da matéria foi preservada em detrimento do erro cometido.
O jornalista baseia-se na hipótese de que o grau de compreensão de uma noticia está
ligado à simplicidade com a qual o discurso é construído. Essa visão passa a ser um entrave no
trabalho de redação científica quando o texto passa a ser tão superficial que não leva em
consideração detalhes, que para o mundo científico faz toda a diferença. A exemplo do que
dissemos vejamos a próxima errata.
Errata 5:
O lado esquerdo do cérebro coordena a percepção de emoções, e não o direito.
(“A nova arte de aprender”).
(Super, outubro, 2007, Ed. 244)
O erro acima nos remete a uma discussão que permeia o meio da divulgação científica. O
fato é que, alguns cientistas não gostam da relação com a imprensa por não acreditarem que os
jornalistas de modo geral, tenham competência para escrever sobre ciência. Por sua vez, os
jornalistas reclamam dos cientistas pelas explicações truncadas e de difícil entendimento. No
entanto, fica claro que há, se não falta de competência, mas falta de cuidado com informações
que se tornam ainda mais graves por se tratarem de conceitos e informações muito simples como
a do exemplo acima. A informação em questão é de conhecimento público, inclusive de leigos em
ciência e está presente na mais básica literatura escolar. A seguir, o recorte da reportagem:

MITOS SOBRE O CÉREBRO: LADO DIREITO E LADO ESQUERDO

O lado direito do cérebro coordena a linguagem: já o direito coordena a percepção de emoções.


Mas todas passam pelos dois hemisférios, que trabalham em conjunto. Não há base científica para
desenvolver um lado específico nem indícios de que tal prática seja benéfica.
(Super, setembro, 2007, Ed. 243)

O que vemos é uma informação muito básica que certamente não combina com a
complexidade científica. Trata-se de uma informação que pode ser obtida através de um acesso
rápido à internet como fizemos, veja:

431
A matéria “supostamente” pretendia acabar com mitos relacionados ao cérebro, no
entanto, transforma todo o texto em algo muito confuso, já que ele erra justamente acerca
daquilo que nega. Então, se olharmos com atenção, percebemos que o mito descrito na
reportagem não existe, uma vez que eles queriam dizer outra coisa.
Para a ACD, o discurso midiático está entre aqueles que carregam maior carga de ideologia,
justamente por trabalhar as ideologias através de elementos simbólicos, e de fato, a informação
científica, não poucas vezes vem acompanhada de fantasias e mitos, como o que vimos, eles
remetem, não raro, a descobertas miraculosas que não existem.
Outro aspecto que devemos dar atenção é, sem dúvida, a questão da ética no jornalismo
científico. Os redatores de ciência, no exercício da profissão, enfrentam várias situações que
envolvem escolhas éticas.
Segundo Burkett (1990) as práticas éticas desenvolvem-se para ajudar a manter os
redatores e seus veículos fora de conflitos reais de interesses que possam comprometer a acurácia
e a veracidade de suas reportagens. Porém, o contrário também é verdadeiro, pois para alguns
redatores, as escolhas éticas serão orientadas pelos códigos de ética adotados por seus veículos.
Em casos nos quais as revistas adotam métodos visando apenas à competitividade mercadológica
o risco de fraudes envolvendo informações e até fontes não consultadas é evidente.
O fato fundamental é a certeza inescapável de que para se fazer o jornalismo científico é
necessário além de bom conhecimento de técnicas de redação, considerável familiaridade com os
procedimentos da pesquisa cientifica, conhecimentos de história da ciência, de política cientifica e
tecnológica, atualização constante sobre os avanços da ciência, contato permanente com as
fontes, e principalmente responsabilidade com o aqueles que irão ler o texto. Este último pré-
requisito não foi observado no exemplo a seguir
Errata 6:

432
Na matéria “fauna doméstica” (maio), a bióloga Irene knysak, diretora do laboratório de artrópodes
do instituto butantan, em São Paulo, foi citada como fonte nos créditos, sem ter sido consultada,
por um erro da reportagem. Na mesma matéria, os sintomas da picada da aranha-armadeira foram
trocados pelos da aranha-marrom. O veneno das duas é diferente. O da aranha-armadeira causa
dor, edema (inchaço), eritema (vermelhidão) e sudorese no local da picada.
(Super, agosto, 2008, ed. 255)
A pergunta que fica é: como alguém pode ter seu nome citado em uma matéria jornalística
sem ter, efetivamente, nada a ver com ela? Como poderiam saber o nome da bióloga em questão
sem que houvesse o interesse de tê-la como fonte? É evidente que não se trata apenas de um
simples erro de reportagem. Ao final de uma reportagem de quatro páginas consta uma lista (em
letras tão pequenas que beira o ilegível) com as “supostas” fontes.
Fontes:
Clélio Gilberto Vidigal, apicultor e presidente da Cooperativa Nacional de Apicultura (Conap); Sérgio
Bocalini, diretor da Associação Paulista dos Controladores de Pragas Urbanas (Aprag); Anelisa
magalhães, bióloga do departamento de Parques e Áreas Verdes (Depave); Eleonore Setz,
biomédica especialista em ecologia da Unicamp; Centro de estudos Ornitológicos (CEO); Eliana
Reiko Matushima, veterinária da USP; Tânia Raso Freitas, veterinária da Unesp, Irene Knysak e
Giuseppe Puorto, biólogos e pesquisadores do Instituto Butantan; Ângelo Pires do Prado,
veterinário da Unicamp; Fernando Ferreira, especialista em epidemiologia animal da USP.
(Super, maio, 2008, ed. 252)

Como podemos ver trata-se de uma lista muito grande de pesquisadores de diversas
instituições que segundo a publicação foram consultados e, portanto são fontes que dão crédito
às informações contidas na matéria.
Contudo, o fato é que a bióloga Irene Knysak não foi consultada pela publicação para
validar as informações ali contidas. Talvez outros pesquisadores tenham sido consultados, afinal
são muitas as informações contidas na matéria. Entretanto, é de se estranhar que com uma lista
tão extensa de fontes compostas por pesquisadores destacados nas diversas áreas do estudo da
Fauna ocorram erros como o que encontramos nessa matéria.

Errata 7:
Nem todos os mosquitos sugam sangue somente de noite. O aedes aegypti, por exemplo, tem
hábitos diurnos.
(Super, junho, 2008, ed. 253)

433
Esse erro está contido justamente na matéria que, segundo a revista Superinteressante, foi
embasada com informações de todos aqueles pesquisadores que vimos antes. É um erro que
remonta mais uma vez ao senso comum, e a crenças que tem por base tão somente os costumes e
a cultura, e não o método científico.
O fato de a bióloga ter sido creditada nas fontes torna-se ainda mais suspeito depois do
erro grosseiro cometido na matéria. É fato também que a bióloga em questão dispensou a
publicidade proporcionada pela matéria por algum motivo, que pode ser a qualidade das
informações contidas nela.
A errata por sua vez, em momento algum se desculpa com a bióloga ou explica o motivo da
falha. Os veículos de comunicação atraem, muitas críticas pela qualidade dos seus pedidos de
desculpa, e também por seu espírito rancoroso ao reconhecer o erro (Burkett, 1990).
Na perspectiva da ACD, é importante estabelecer um modo de análise para os estudos
discursivos que possibilite maior compreensão sobre a relação entre o conhecimento científico e a
sociedade e que dê maior centralidade ao movimento dialético inerente, tanto à estrutura social,
quanto à linguagem. Nessa perspectiva, vemos que há, sem dúvida, uma ideologia por trás desse
tipo de atitude.
Utilizar fontes falsas ou creditar voz a uma fonte não consultada para dar crédito a
informações que estão repletas de erros não é uma atitude que podemos chamar de ética. O
problema é que a correção não é tão eficaz quanto as reportagens, e não dispõem de tantos
recursos áudio-visuais, embora isso fosse importante.
As ideologias implícitas nas práticas discursivas são por demais eficazes quando se tornam
naturalizadas e conseguem atingir o status de senso comum. E é óbvio que não se deve pressupor
que as pessoas tenham total consciência das dimensões ideológicas de sua prática. As pessoas
podem achar complicado compreender que suas praticas poderiam ser resultados de
investimentos ideológicos específicos (Pedrosa, 2008: 119). É nesse contexto de complexidade e
luta ideológica que se inscreve o presente estudo.
Considerações Finais
Neste trabalho, optamos por utilizar o arcabouço teórico da Análise Crítica do Discurso
(ACD) e especificamente a abordagem Faircloughiana da ACD, a Teoria Social do Discurso (TSD),
considerando que o objetivo desta teoria é revelar o papel do discurso na reprodução da
dominação exercida pelas elites, instituições ou grupos.
O trabalho centrou-se no pressuposto de que há diferenças entre as duas culturas
envolvidas nesse estudo, a científica e a jornalística. Enquanto o cientista produz trabalhos

434
dirigidos para um grupo de leitores, específico, restrito e especializado, o jornalista almeja atingir
o grande público. A redação do texto científico segue normas rígidas de padronização enquanto a
jornalística é repleta de semioses e baseada na competitividade mercadológica.
Em nosso recorte, analisamos 11 edições da Superinteressante, não limitamos a pesquisa a
número de edições ou anos, mas somente nos guiamos pelos objetivos estabelecidos. A análise
desse corpus garantiu que os objetivos fossem atingidos. Em primeiro lugar, ocorreram erros em
todas as edições pesquisadas, cumprindo o objetivo inicial de estabelecer uma média para os
equívocos. Demonstramos dessa forma, que a constância das erratas é muito alta, tendo sido
encontradas em todas as amostras analisadas.
Embora, constatássemos que em muitas edições não havia a informação de quem detectara o
erro, pudemos confirmar que, na maioria dos casos os leitores encontram os erros que são
corrigidos pelas erratas. Leitores que são, de certa forma, iniciados em áreas afins e que fazem
uma leitura mais crítica. Por sua vez, o editor reconhece alguns erros, mas segundo Burkett (1990)
nesse reconhecimento há um tom rancoroso e uma certa dificuldade em se retratar.
Analisamos exemplos de falta de ética no jornalismo científico. Como se já não bastasse ser
algo muito grave a utilização de fonte falsa, decorre daí erros grosseiros que comprometem o
entendimento do público de fatos científicos importantes. Ficou claro que, para a revista em
questão, as estratégias que lhe possibilite sobrevivência nesse mercado competitivo estão acima
das questões sociais ou éticas.
Por fim, conseguimos uma boa análise do material pesquisado, demonstramos que de fato
os erros das revistas especializadas em ciência são muito freqüentes. Mas acima de tudo, nossa
análise demonstrou que nem todos os erros cometidos pelas revistas de divulgação científica são
inofensivos, que muitas vezes esses equívocos estão relacionados a questões de saúde e de ética
(ou a falta dela). Assim, julgamos que este trabalho deu sua contribuição para o relevante esforço
de compreender melhor os mecanismos da linguagem e de seus usos sociais.

Referências

BURKETT, Warren. Jornalismo científico: como escrever sobre ciência, medicina e alta tecnologia
para os meios de comunicação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

EPSTEIN, Isaac. Divulgação Científica: 96 verbetes. Campinas, SP: Pontes, 2002.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UnB, 2008.

HOUAISS ELETRÔNICO. Dicionário de língua portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva, junho 2009.

435
PEDRO, Emília Ribeiro. Análise Crítica do Discurso. Lisboa: editorial caminho, 1997.

PEDROSA, Cleide Emília Faye. Análise Crítica do Discurso: do linguístico ao social no gênero
midiático. São Crsitóvão: Editora UFS, 2008.

SILVA, Denize Elena Garcia da ; RAMALHO, Viviane. Análise de Discurso Crítica: representaçoes
sociais na mídia. In: Análises do discurso hoje, volume 2. Organização de LARA, Glaucia Muniz
Proença, MACHADO, Ida Lucia, WANDER, Emediato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

SÁNCHEZ MORA, Ana Maria. A divulgação da ciência como literatura. Rio de Janeiro: Casa da
Ciência – Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2003.

VAN DIJK, Teun A. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.

WODAK, Ruth. Do que trata a ACD – um resumo de sua história, conceitos importantes e seus
desenvolvimentos. In: WODAK, R.; MEYER, M. (Orgs.). Methods of Critical Discourse Analysis.
London: Sage, 2001. [Tradução de Débora de Carvalho Figueiredo].

REVISTAS
SuperInteressante, fevereiro, 1989, ed. 017.
SuperInteressante, abril, 2002, ed. 175.
Superinteressante, fevereiro, 2010, ed. 275.
Superinteressante, dezembro, 2009, ed. 273.
Superinteressante, janeiro, 1988, ed. 004.
Superinteressante, 1988, maio, ed. 008.
Superinteressante, outubro, 2007, Ed. 244.
Superinteressante, setembro, 2007, Ed. 243.
Superinteressante, agosto, 2008, ed. 255.
Superinteressante, maio, 2008, ed. 252.
Superinteressante, junho, 2008, ed. 253.

436
A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO NA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: ALGUMAS
QUESTÕES PARA O DEBATE

Ruberval Ferreira, doutor em linguística


Universidade Estadual do Ceará

A questão da representação na Análise de Discurso Crítica, na perspectiva teórica elaborado por


Norman Fairclough, de acordo com a última formulação por ele proposta, vem sendo pensada a
partir da consideração de que o discurso é simultaneamente uma forma de agir, uma forma de
representar e uma forma de ser. No entanto, no que diz respeito ao significado representacional,
embora Faircough (2003) pense essa forma de significação como projeção, como construção
social, política e ideológica, ele não chega a entrar no mérito da questão da dimensão ética que as
formas de representar implicam. Este trabalho consiste, pois, na proposição de algumas questões
para uma melhor formulação dessa dimensão que as formas de representar implicam, mais
precisamente a partir das discussões sobre políticas de representação que autores como
Rajagopalan (2003; 2010), Ferreira (2007) e Alencar (2009) vêm propondo no interior de uma
Nova Pragmática.

Palavras-chave: Discurso; Representação; Significação; Ética; Política

Introdução
Neste trabalho, gostaria de retomar algumas críticas e preocupações que alguns teóricos
têm em relação à forma como a Análise de Discurso Crítica, na linha de Fairclough, pensa a
questão das desigualdades e assimetrias que marcam as relações sociais, para, a partir dessa
questão, problematizar uma outra que considero da mais alta relevância no projeto teórico da
ADC como um todo: a questão da representação.
A questão da representação é relevante no projeto teórico da ADC, na perspectiva
defendida por Fairclough (2003), porque ela está diretamente relacionada com uma das formas
pelas quais o conceito de discurso é pensado na formulação mais recente deste modelo, a saber,
discurso como um modo específico de representação do mundo.
Fairclough (2001) concebe o discurso em duas acepções, uma mais geral, outra mais
específica. Em termos gerais, ele concebe o discurso como momentos particulares de práticas
sociais, um elemento da vida social interconectado a outros elementos. Em termos específicos,
discurso é um modo de representação particular do mundo, de um determinado grupo. Nesta
última acepção, ele refere-se a discursos particulares, por exemplo, o discurso neo-liberal.
Quando Fairclough refere-se a discursos particulares, ele pensa nos modos específicos de
representação da realidade, nas formas situadas de compreender a realidade. Nesse sentido, se o
discurso é uma forma particular de representação do mundo por um determinado grupo, se

437
quisermos melhor entender as desigualdades nas relações sociais, essa explicação passa não só
pela forma como os sujeitos que participam das interações sociodiscursivas se percebem nesses
processos, mas também pelas visões de mundo que estão na base desses processos e que os
tornam possíveis. Em outras palavras, a própria desigualdade na interação social se dá não só em
função das condições materiais em que essas interações acontecem, mas também em função da
visão de mundo dos sujeitos envolvidos e das representações que eles têm de si e do outro, o que
mostra sob que aspectos os processos discursivos nos convidam a intervir neles.

A constituição do campo da Análise de Discurso Crítica e seu diálogo com a Linguística Sistêmica
Funcional
A abordagem de Fairclough (2001; 2003a), conhecida como Teoria Social do Discurso, é
uma das vertentes da chamada Análise de Discurso Crítica. Tal abordagem aponta para uma
perspectiva transdisciplinar de análise, com uma dimensão sociológica e uma dimensão linguística,
não sendo possível separar uma da outra. Essa proposta se constitui a partir de um interessante
diálogo com alguns autores da teoria social crítica e com a Linguística Sistêmica Funcional de
Halliday (1991). Essa dupla orientação da Análise de Discurso Crítica (social e linguística) deve-se
ao fato do tipo de análise em questão pensar a relação entre discurso e sociedade numa
perspectiva dialética, ou seja, focalizando as relações dialéticas entre o discurso enquanto um
momento de práticas sociais e outros elementos dessas mesmas práticas sociais.
O modelo de análise em questão parte do pressuposto de que a linguagem é uma parte
irredutível da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos da vida social, de
forma que não se pode considerar a linguagem sem levar em consideração também a vida social.
Para Fairclough, a análise e a pesquisa sociais sempre devem levar em conta a língua. Isso significa
que um modo produtivo de fazer pesquisa social é feito por meio da linguagem, usando alguma
forma de análise de discurso. Fairclough não pretende com isso reduzir a vida social à língua, nem
afirmar que tudo é discurso. No entanto, ele se apóia na idéia de que o estudo do discurso é uma
estratégia de análise entre outras e no fato de que podemos usar análise de discurso junto com
outras formas de análise, como por exemplo, a etnografia ou as formas de análise institucional
(Fairclough, 2003a).
Trata-se de uma proposta que, com amplo escopo de aplicação, constitui modelo
teórico-metodológico aberto ao tratamento de diversas práticas na vida social,
capaz de mapear relações entre os recursos lingüísticos utilizados por atores
sociais e grupos de atores sociais e aspectos da rede de práticas em que a
interação discursiva se insere (Resende e Ramalho, 2006).

438
Fairclough lembra que existem muitas versões de análise de discurso e observa que um
critério de diferenciação é o que coloca de um lado as abordagens que incluem uma análise
detalhada dos textos e as que não o fazem. Fairclough usa o termo “análise de discurso
textualmente orientada” para distinguir a sua abordagem de outras. Segundo ele, a análise de
discurso em ciências sociais tem sido, em geral, fortemente influenciada pelo trabalho de Foucault
(Foucault 1972, Fairclough 1992). E continua: “cientistas sociais que trabalham nessa tradição
geralmente dão pouca atenção às características linguísticas de textos”.

Minha abordagem de análise do discurso tenta transcender a divisão entre os


trabalhos inspirados por teorias sociais que não se preocupam com a análise de
textos e os trabalhos que buscam focar os textos e que não tendem a ficar presos
em assuntos teóricos sociais. Essa divisão não é, ou não deveria ser, um sim ou
um não. Por um lado, qualquer análise de textos se mostra relevante em
situações nas quais as ciências sociais têm de se conectar com perguntas teóricas
sobre discurso (por exemplo, os efeitos de discurso socialmente “constitutivos”).
Por outro lado, nenhum real entendimento dos efeitos sociais do discurso é
possível, se não olharmos de perto como são esses efeitos quando as pessoas
falam ou escrevem (Fairclough, 2003a).1

Assim, Fairclough considera que “análise de texto é uma parte essencial da análise de
discurso, mas a análise de discurso não é só a análise linguística de textos”. Assim, ele considera “a
análise de discurso como algo ‘que oscila’ entre um foco em textos específicos e um foco naquilo
que ele chama de ‘ordem de discurso’, que é a estruturação social da linguagem e sua parceria
com determinadas práticas sociais”.
A análise de discurso crítica está relacionada à continuidade e à transformação
em um aspecto mais abstrato, em um nível mais estrutural, como acontece em
textos em particular. A ligação entre essas duas preocupações está no modo em
que textos são analisados em um discurso crítico. A Análise de texto não é vista
como análise linguística, pois inclui o que eu chamei de “análise interdiscursiva”,
quer dizer, ver os textos como discursos, gêneros e estilos que se articulam
(Fairclough, 2003a).

Essa análise do discurso textualmente orientada proposta por Fairclough baseia-se na


discussão que Halliday propõe sobre a multifuncionalidade da linguagem. A afinidade com a teoria
funcionalista da linguagem deve-se ao fato dessa teoria abordar a linguagem como um sistema

1
Todas as citações referentes a Fairclough (2003a) são minhas traduções. Ainda não há tradução para esta obra em
português.

439
aberto, que vê os textos não só como estruturados no sistema, mas também como elementos
capazes de intervir nele. Assim, a linguagem é concebida pela Teoria Social do Discurso como um
“sistema aberto a mudanças socialmente orientadas, o que lhe provê sua capacidade
teoricamente ilimitada de construir significados” (Resende e Ramalho, 2006). Sobre a LSF,
Fairclough (2003a) assim se refere:

Em contraste com a tradição de Chomsky, mais influente dentro da


Linguística, a LSF está profundamente preocupada com a relação entre a língua e
outros elementos e aspectos de vida social, e seu ponto de vista a respeito da
análise linguística de textos sempre é orientado ao caráter social dos textos
(fontes particularmente valiosas incluem: Halliday 1994, Halliday e Hasan, 1976,
1989, Hasan 1996, Martin 1992, o Van Leeuwen 1993, 1995, 1996). Essa postura
faz da LSF um valioso recurso para a análise de discurso crítica, e, de fato,
grandes contribuições para a análise de discurso crítica se desenvolveram a partir
da LSF (Fowler et al. 1979; Hodge e Kress, 1988, 1993; Kress, 1985; Kress e van
Leeuwen, 2001; Lemke, 1995; Thimbaut, 1991).

Quando Fairclough pensa o discurso enquanto forma particular de representação da


realidade, ele se baseia na abordagem multifuncional da linguagem proposta por Halliday (1991),
mais precisamente em uma das três macrofunções da linguagem propostas por este autor.
Halliday (1991) postula que a linguagem funciona a partir de três macrofunções sociais: a função
ideacional, a função interpessoal e a função textual. Segundo Haliday, essas três macrofunções
atuam simultaneamente nos textos.
A função ideacional da linguagem refere-se à função de representação da experiência, ao
modo especifico de refletirmos na língua o que entendemos por realidade. Já a função
interpessoal refere-se às relações sociais e pessoais que são expressas nos usos da língua. A função
textual, por sua vez, refere-se à funcionalidade de aspectos semânticos, gramaticais e estruturais
em um texto. Ou seja, sendo a linguagem funcionalmente complexa, Halliday defende que o
significado de todo enunciado deve ser analisado em sua multifuncionalidade.
Em Discourse and Social Change, publicado em 1992 e já com tradução para o português,
Fairclough propõe uma divisão da função interpessoal de Halliday em duas outras funções: a
função identitária e a função relacional. Ele define a função identitária como aquela que se
relaciona “aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso”. Já a função
relacional diz respeito a “como as relações sociais entre os participantes do discurso são
representadas e negociadas” (Fairclough, 2001).

440
Em 2003, aprofundando o diálogo com a Linguística Sistêmica Funcional, Fairclough,
propõe uma articulação entre as macrofunções de Halliday e os conceitos de gênero, discurso e
estilo.
Fairclough (2003a) postula que uma das maneiras de agir e interagir, segundo ele, é por
meio da fala ou da escrita. Nesse sentido, o discurso figura primeiramente “como parte da ação”.
Assim, os diferentes gêneros constituiriam diferentes formas de ação, diferentes maneiras de
(inter)agir discursivamente.
Além de uma forma de ação, Fairclough postula também que o discurso figura como
formas específicas de representações. Estas, por sua vez, constituem “partes de práticas sociais –
representações do mundo material, de outras práticas sociais, representações da prática em
questão”. Para Fairclough (2003), “a representação é claramente substância discursiva e, podemos
distinguir diferentes discursos, que podem representar a mesma área do mundo de diferentes
perspectivas ou posições”.
Fairclough (2003a) observa, por fim, que o discurso figura como modos particulares de
identificação, ou seja, “o discurso figura conjuntamente com expressões corporais ao constituir
modos particulares de ser, identidades sociais ou pessoais particulares”. Segundo ele, o aspecto
discursivo desse item é o estilo. Como exemplo, ele cita o estilo de um tipo específico de gerente e
seu modo de utilização da linguagem como recurso para identificação pessoal.

Os conceitos de ‘discurso’ e ‘gênero’ em particular são usados em uma variedade


de disciplinas e teorias. A popularidade do ‘discurso’ na pesquisa social é devida
em grande parte a Foucault (1972). ‘Gênero’ é utilizado em estudos culturais,
estudos da mídia, filmografia, entre outros (veja Fiske 1987, Silverstone 1999).
Esses conceitos estão presentes em várias disciplinas e teorias, e podem operar
como ‘pontes’ de uma para as outras – como foco para um diálogo entre elas,
mediante o qual perpectivas de uma podem abrir o desenvolvimento de outras
(Fairclough, 2003a).

Em outras palavras, em vez de pensar o significado de um enunciado a partir das três


macrofunções propostas inicialmente por Halliday, Fairclough propõe que estas funções, por ele
reduzidas às funções relacional, ideacional e identitária, sejam vistas a partir da relação com as
noções de gênero, discurso e estilo.
Assim, apoiado no postulado de que os discursos funcionam simultaneamente como modos
de agir, modos de ser e modos de identificar, Fairclough propõe que os textos e os discursos sejam
vistos como comportando três tipos de significados: o acional, o representacional e

441
identificacional. O primeiro estaria relacionado à noção de gênero, o segundo à noção de discurso
e o terceiro à noção de estilo.
Assim, inspirado no caráter multifuncional da linguagem postulado pela Linguística Sistêmica
Funcional de Haliday, Fairclough concebe os textos como também constituindo formas de ação, de
representação e de identificação.

Os textos simultaneamente representam aspectos do mundo (o mundo físico, o


social e o mental); interpretam as relações sociais entre participantes de eventos
sociais e as atitudes, desejos e valores dos participantes; de modo coerente e
coesivo conectam partes de textos, e conectam textos com seus contextos
situacionais (Fairclough, 2003a, citando Halliday, 1978, 1994).

Fairclough vê os textos, portanto, como “multifuncionais”, mas de uma forma diferente. A


multifuncionalidade aqui é pensada em função da distinção entre gêneros, discursos e estilos, de
acordo com as três principais maneiras em que o discurso figura como parte da prática social:
como modo de agir, como modo de representar e como modo de ser. Em síntese, “a relação do
texto com o evento, com o que há de mais amplo no mundo físico e social, e com as pessoas
envolvidas no evento” (Fairclough, 2003a). Assim, ao invés de três tipos de funções, Fairclough
prefere falar em três tipos principais de significados textuais: ação (significado acional),
representação (significado representacional) e identificação (significado identificacional).

A representação corresponde à função ‘ideacional’ de Halliday; ação se


aproxima de sua função ‘interpessoal’, embora a ênfase maior seja no texto
como modo de (inter)agir em eventos sociais, e possa ser visto como que
incorporando relação (representando relações sociais); Halliday não diferencia
uma função separada para identificação – a maior parte do que eu incluo como
identificação está na função ‘interpessoal’ de Halliday. Não faço distinção de uma
função ‘textual’ separadamente, antes a incorporo com a ação (Fairclough,
2003a).

Fairclough lembra ainda que existe uma correspondência entre ação e gêneros,
representação e discursos, identificação e estilos. Segundo ele, gêneros, discursos e estilos são,
nessa ordem, “meios relativamente estáveis e duráveis de agir, representar e identificar”. Em
termos de prática social, são considerados elementos de ordens de discurso. E acrescenta:

442
Quando analisamos textos específicos como parte de eventos específicos,
estamos realizando duas tarefas interconectadas: (a) olhando-as em termos dos
três aspectos do significado: ação, representação e identificação e como são
realizados nos diferentes elementos dos textos (vocabulário, gramática, etc); (b)
estabelecendo a ligação entre o evento social concreto e a prática social mais
abstrata ao perguntar que gêneros, discursos e estilos estão ali delineados, e
como os diferentes gêneros, discursos e estilos se articulam no texto (Fairclough,
2003a).

Mas, embora Fairclough nos ofereça uma forma bastante elaborada de análise textualmente
orientada, desta vez guiada por essas três formas de significação textual, o modelo de análise por
ele proposto nos convida a ir além e aprofundar a discussão da dimensão sociológica da Teoria
Social do Discurso, uma vez que o que ele chama de significado representacional não pode ser
pensado sem uma consideração mais detalhada de um conjunto de tensões e antagonismos que
marcam as lutas por representações e os processos de identificação com um todo. Nesse sentido,
é preciso levar às últimas conseqüências o conceito de luta hegemônica e pensar a questão da
representação, seja de ações, eventos ou agentes sociais, antes de tudo como lutas por
representações que, por sua vez, revelam políticas de representação em jogo na luta hegemônica.

Significado representacional e política de representação


Pelo que vimos na sessão anterior, a questão da representação em ADC é pensada
atualmente em termos do que Fairclough chama de significado representacional, ou seja,
enquanto um modo particular de compreensão do que se entende por realidade. Mas,
considerando que esse modo particular de compreensão da “realidade” se inscreve numa luta
pelo controle e monopólio do sentido, sugiro que a questão da representação seja vista em
termos de lutas por representações ou políticas de representação, na perspectiva em que
Rajagopalan (2003) e Ferreira (2007) pensam esse conceito. Conforme nos lembra oportunamente
Rajagopalan (apud Ferreira, 2007),

A Linguística Crítica se coloca como um espaço de intervenção na forma como a


língua é pensada historicamente. Seus seguidores entendem que, longe de servir
de mera instância mediadora entre o mundo e a mente, a língua é um palco de
lutas sobre representação, isto é, sobre quem tem o direito de representar o
mundo e de que forma. Observe-se que o próprio conceito de representação,
que outrora era entendido quase exclusivamente em seu sentido mimético,
passa a assumir sua dimensão política, a qual lhe fora própria desde sempre.

443
Em outras, Rajagopalan nos lembra que a linguagem assume um lugar central no palco da
ação social, “tornando-se parte vital e indispensável daquilo que chamamos de prática social”. O
autor observa que “atuar na linguagem passa a ser sinônimo de agir politicamente”. Para que isso
ocorra de forma conseqüente, acrescenta, “é preciso acreditar que pensar a linguagem tem
desdobramentos na forma como nós levamos as nossas vidas e, em última análise, tem efeitos
palpáveis no mundo tal qual nós o construímos”.
É exatamente pelo fato de que a linguagem resulta de uma relação com o outro (relação esta
que tem sempre por trás desejo e poder, só para fazer uma breve referência a Nietzsche e Freud),
seja esse outro o mundo, os indivíduos, o inconsciente, as ações, os grupos etc., que precisamos
assumir essa relação com responsabilidade. Responsabilidade aqui literalmente enquanto
resposta, como lembra Derrida, resposta às demandas de uma alteridade que, por ser
inteiramente outra, exige-nos uma resposta ético-politicamente orientada. Essa resposta
responsável ou essa responsabilidade resposta deve ser a forma de preenchimento do espaço
sígnico a ser buscada. É precisamente porque o signo, como pensava Bakhtin, é uma eterna arena
de lutas, que precisamos assumir a linguagem enquanto ato ético-político, com conseqüências,
como qualquer outro (Ferreira, 2007). Afinal, como nos lembra Bourdieu, a respeito das
representações do mundo social, estas revelam lutas por classificações, “lutas pelo monopólio do
poder de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição
legítima das divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer os grupos”. E o móvel de
todas essas lutas, acrescenta, “é o poder de impor uma visão do mundo social através dos
princípios de di-visão que, tão logo se impõem ao conjunto de um grupo, estabelecem o sentido e
o consenso sobre o sentido” (Bourdieu, 1998).
Voltando à questão da representação em ADC, como a tarefa primordial da Análise de
Discurso Crítica é tentar entender as relações de poder no discurso, através do mapeamento da
relação entre escolhas linguísticas em interações particulares e outros momentos não-discursivos
das práticas sociais, para explicar as desigualdades e assimetrias nas interações sócio-discursivas, e
tendo em vista que existe uma dimensão sociológica premente no discurso e na análise de
discurso, que reclama a necessidade de uma crítica daquilo que o constitui por excelência, a saber,
um conjunto de tensões, é mais do que urgente pensar a significação no plano discursivo a partir
das representações ou das lutas por representações que são empreendidas nas interações sociais.
É preciso entender de uma vez por todas que a atividade discursiva, mesmo em situações
banais do cotidiano, revela lutas por representações, lutas estas que manifestam tensões que
precisam ser problematizadas devidamente, por conta das hierarquias que revelam, para que

444
nossas ações político-discursivas operem no sentido de conduzir um mundo social marcado por
fortes tensões, muitas delas reveladoras de fortes antagonismos, a um mundo social menos tenso,
menos antagônico e mais agonístico, no sentido dado a esse termo pela cientista política Chantal
Mouffe (2006a). Para tanto, é necessário pensar a questão da representação não só a partir da
noção de luta hegemônica, mas, sobretudo, a partir da noção de política de representação, tendo
em vista que toda representação é linguística porque política e política porque linguística,
conforme nos lembra Rajagopalan (2003). Aliás, a luta hegemônica revela, em última instância,
lutas por representação.
Se pensarmos no funcionamento discursivo a partir de conceitos como ato de fala ou jogos
de linguagem, fica cada vez mais premente levar em conta a dimensão ético-política do discurso
enquanto forma de representação do mundo, uma vez que em cada ação realizada em todo ato
de fala ou em todo lance que é dado num jogo de linguagem existe a força de uma representação
em permanente confronto com outras. Aliás, vale lembrar que tais representações devem ser
vistas sempre como se constituindo numa relação dialógica umas com as outras e numa relação
dialética com as estruturas sociais das quais fazem parte. O próprio Fairclough (2001) fala da
relação dialética entre discurso e estruturas sociais, relação esta que não pode ser colocada em
segundo plano quanto à questão da representação.
No plano do mundo social, nós podemos entender que as representações de que fala a
ADC não são muito distintas dos antagonismos sociais de que fala Laclau (1990) numa obra que é
referência na teoria social contemporânea. Laclau afirma em New Reflections on the Revolution of
Ouf Time, ainda sem tradução para o português, que o antagonismo é o limite de toda e qualquer
objetividade. Em outras palavras, esta tese fala da impossibilidade de objetivação de todo
elemento do mundo social pelo simples fato de que o que torna toda e qualquer representação
possível é exatamente uma outra, em termos bakhtinianos, numa relação dialógica e responsiva
ad infinitum. Em termos desconstrucionistas, as representações funcionam da mesma forma que
as oposições de que fala Derrida e que estão na base da forma de pensamento ocidental. Ou seja,
a representação deve ser vista sempre como um empreendimento, um investimento ideológico
sobre a diferença. Ou melhor, um ato de significação na e pela diferença. Diferença aqui enquanto
ato de diferimento ou adiamento do sentido, cujo funcionamento só se dá pelo deslizamento
(Derrida, 1991).
É importante lembrar que representação enquanto visão de mundo é visão de mundo de
um grupo e a própria noção de grupo implica as noções de identidade e identificação. Ou seja,
representação e identificação, no fim das contas, funcionam como duas dimensões de uma

445
mesma realidade. Enquanto visão de mundo, representação diz respeito aos significados
compartilhados por um grupo que se constituem, por sua vez, em oposição ou resposta a outros,
numa relação dialógica e interdiscursiva. Esses grupos, ao representarem o mundo de forma
particular, o fazem a partir de um lugar, de uma identidade. A identidade funciona, assim, como
uma espécie de lugar a partir do qual se constroem sentidos, e a representação, como a prática ou
a iterabilidade desses sentidos.
Em um artigo que discute a importância da representação na construção de identidades,
Rajagopalan (2002) argumenta em favor da idéia de que o que move qualquer processo de
construção de identidade é uma vontade política, vontade entendida como força afirmadora da
vida que se exprime numa arena política dentro da qual outras vontades a ela se opõem. Em
termos de mundo social, é num cenário tenso e conflitante, portanto, que se dá a afirmação de
qualquer representação particular do que entendemos por realidade. E esta representação precisa
ser constantemente reafirmada, uma vez que outras vontades políticas de afirmação estão em
jogo, estão em confronto no interior de um mesmo espaço.
No caso da representação de agentes sociais, o processo de afirmação de uma representação
especifica que conferiria identidade a determinados sujeitos, a representação assume um papel
fundamental e ao mesmo tempo perigoso. Da mesma forma que a representação confere uma
existência política a determinados sujeitos, como a significação desses sujeitos é construída em
função do que os diferencia de outros, uma identidade dominante, por exemplo, também
afirmada por uma vontade política, o grupo que assim se constitui, o faz exatamente a partir de
um jogo lingüístico-diferencial que o instaura enquanto alteridade. Ou seja, acaba caindo na
armadilha de uma forma significante hierarquizadora que não só o constituiu, mas que também
pode institucionalizar sua ação política. Isso nos leva a crer que, dependendo de como as
representações são pensadas, reivindicadas e negociadas, uma das conseqüências pode ser a
institucionalização da diferença e a neutralização da ação política.
Assim, a relevância de uma discussão sobre a questão da representação em ADC é
justificada por diferentes razões. Uma delas é que tal questão nos permite pensar a dimensão
ético-política do discurso, uma vez que toda ação discursiva, segundo o próprio Fairclough,
constitui uma forma específica de representação do mundo, forma esta que vai gerar e implicar
determinadas formas de relações sociais. Este fato nos convida, pois, a pensar a questão da
representação em ADC antes de tudo como política de representação, que vai, por sua vez, nos
forçar a repensar a questão do agenciamento a partir de um sujeito cujas ações estão

446
inescapavelmente inscritas num plano ético-político e que não tem como se furtar à
responsabilidade pelos desdobramentos ético-políticos dos processos discursivos de que participa.
Para termos uma noção mais razoável de como a questão da representação é pensada no
escopo teórico da ADC, é necessário, como observei no início deste trabalho, entender como a
perspectiva de análise de discurso proposta por Fairclough operacionaliza uma explicação das
desigualdades e assimetrias que marcam as relações sociais com um todo.
Em termos gerais, conforme observa Emília Ribeiro Pedro (1997), é fato para o projeto
teórico da ADC, na linha defendida por Fairclough, que

As desigualdades socioeconômicas e materiais são marcadas por relações de


classe e são expressas em termos de uma hierarquia dominador/dominado, em
que o papel da aceitação da dominação, por parte dos dominados, é decisivo
para o exercício de formas de poder e controle.

Mas, o projeto teórico da ADC, continua a autora, não restringe a explicação das
desigualdades nas relações sociais a essa dimensão. Outros fatores devem ser considerados na
explicação das assimetrias nas interações sociodiscursivas, tais como gênero, raça, etnia, faixa-
etária, além de aspectos de natureza institucional, como por exemplo, os media.
Ribeiro Pedro (1997) observa ainda que alguns autores, entres eles Pennycook (1994)
denominam a perspectiva da ADC de neo-marxista, no que diz respeito à explicação das
desigualdades nas relações sociais, porque entendem que tal perspectiva localiza o poder na
relação entre classes sociais e produção econômica, vista como causa primeira de todas as outras
relações.
Embora Fairclough considere que outras variáveis, além das relações socioeconômicas,
devam ser consideradas na explicação das assimetrias que marcam as interações discursivas, a
forma como ele pensa alguns conceitos revela, a meu ver, uma tentação objetivista na forma de
conceber tanto o discurso quanto à análise de discurso.
A distinção que Fairclough faz entre os conceitos de inculcação e comunicação, por
exemplo, conforme observa Ribeiro Pedro, levou autores como Pennycook a pressupor que existe
em tal teorização a crença na existência de um mundo “verdadeiro” que seria ofuscado pela
ideologia. Nesse sentido, caberia a ADC a tarefa de remover esse véu de obscuridade e levar as
pessoas a perceber a “verdade”. Ora, se tal distinção resulta, como lembra a autora acima, de uma
posição política clara subjacente ao projeto teórico da ADC, a mesma idéia de uma posição política
subjacente ao projeto teórico da ADC deve ser mobilizada para desconstruir tal distinção, pelo

447
simples fato de que ela em si já resulta dessa posição política que, em última instância, é uma
política de representação do próprio Fairclough e de seu projeto teórico.
Quando vemos o que Fairclough chama de inculcação e comunicação pelo viés das lutas
por representação, os dois processos passam a ser vistos de forma indistinta, como fazendo parte
de um único processo: a construção sociodiscursiva da realidade. No fim das contas, o que
percebemos é que a distinção que Faircloug propõe entre inculcação e comunicação é mais uma
demonstração do nosso desejo de uma linguagem transparente, que nos fale do mundo de uma
forma objetiva, sem enviesamentos, quando desde o início, qualquer projeto de análise de
discurso que se proponha crítica deve ter como pressuposto fundamental não a idéia de
comunicação como processo não-enviesado de construção discursiva do mundo, mas a idéia de
que o próprio processo de comunicação envolve, sobretudo, lutas por representações, lutas para
tornar e manter hegemônicas determinadas formas de representação/interpretação do mundo.
Embora o próprio Fairclough tome a questão da luta hegemônica como parâmetro para pensar o
funcionamento do discurso, algumas distinções por ele propostas vão de encontro à forma como
ele mesmo pensa a relação entre ideologia e hegemonia.
Assim, é preciso levar o próprio conceito de luta hegemônica às últimas conseqüências, se
quisermos ter uma discussão mais coerente sobre a questão da representação no projeto teórico
da Análise de Discurso Crítica tal como proposta por Fairclough. Em outras palavras, pensar a luta
hegemônica significa pensar as lutas por representações e analisar como essas lutas se dão nos
processos textuais-discursivos. Em síntese, a análise de discurso textualmente orientada deve ficar
atenta, entre outras coisas, a como determinados processos lingüísticos podem nos fornecer
indícios de como se dão os processos de ou as lutas por representações. Ao perceber como esses
processos operam representações do mundo e representações sociais, nós percebemos também
como se dá a luta hegemônica na microfísica do poder no e do discurso.
A representação não pode ser vista apenas como visão de mundo construída no e pelo
discurso, mas como luta no interior do próprio discurso e pelo discurso, que nos digam Bakhtin e
Foucault. Nas lutas por representações temos dois aspectos a serem esclarecidos: o significado
representacional precisa ser visto em sua dimensão responsiva e também em sua ideológica, o
que, em outras palavras diz respeito à dimensão ética e à dimensão política do discurso. Ao
representar um fato ou um evento do mundo social de forma específica, opera-se uma escolha na
luta hegemônica, que vai implicar questões específicas. O aspecto dialógico do significado
representacional está para a dimensão política e responsiva da linguagem, enquanto a dimensão

448
perlocutória desse significado, no sentido austiniano do termo, está para a dimensão ética do
discurso.
Se pensarmos os eventos discursivos enquanto jogos de linguagem cujas regras, muitas
vezes, podem ser passíveis de reconfiguração, sempre que revelarem assimetrias profundas nas
interações sociais, não estaria a transformação democrática da sociedade na dependência da
alteração das regras ou da gramática que constitui boa parte desses jogos ou dos eventos
discursivos que eles constituem, uma vez que materializam formas de dominação reveladoras de
vínculos sociais que demandam uma transformação radical? Ora, dificilmente podemos pensar em
transformação democrática da sociedade sem a possibilidade de alteração das regras de certos
jogos de linguagem.
Se considerarmos que os jogos de linguagem são produtos de processos histórico-sociais, de
práticas mediadas por relações de poder, podemos tirar uma conclusão política dessa
configuração da linguagem em jogos e conceber que outros jogos são possíveis, desde que as
relações sociais sejam revistas ou desde que as práticas sociais – e o discurso é um tipo de prática
social – possam favorecer a emergência desses jogos ou a transformação das regras de muitos
deles. Pensemos, por exemplo, nas regras de muitos jogos de linguagem praticados em diversos
tipos de instituições ou esferas. Por exemplo, os jogos da esfera política, da esfera midiática, da
esfera familiar. Naturalmente, a transformação dessas regras passa pela construção de uma nova
compreensão sobre a própria linguagem e sobre o sujeito.
A meu ver, a discussão de uma visão de linguagem que pense o fenômeno lingüístico como
um mecanismo não só revelador de relações sociais hierarquizadoras, mas uma forma de
manutenção dessas relações, pela iterabilidade, que comporta também, por sua vez, a
possibilidade da fissura, pode constituir uma importante ferramenta de transformação social pelo
fato de tal compreensão favorecer uma reflexão crítica (no sentido de krisis) sobre o próprio
funcionamento do discurso, sobre os processos sócio-históricos de que eles resultam e sobre a
possibilidade de reconfiguração do discurso enquanto forma específica de representação do
mundo.

Referências

ALENCAR, Claudiana Nogueira de. Linguagem e medo da morte. Fortaleza: EdUece, 2009.

AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. 2a. edição. Oxford: Oxford University
Press, 1976.

449
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. De Michel Lahud e Yara F. Vieira. São
Paulo: Hucitec, 1997.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas – o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp,
1998.

DERRIDA, Jacques. Significação Acontecimento Contexto. In: Margens da Filosofia. Tradução de


Joaquim Torres Costa e Antonio M. Magalhães. Campinas, SP: Papirus Editora, 1991.

CHOULIARAKI, Lilie.; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in Late Modernity. Edinburg: Edinburg


University Press, 1999.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Coordenadora da tradução Izabel Magalhães.


Brasília: Editora UnB, 2001.

______. Analysing Discourse. Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003a.

FERREIRA, Ruberval. Guerra na língua: mídia, poder e terrorismo. Fortaleza: EdUece, 2007.

HALLIDAY. Michael. A. K. Context of situation. In: HALLIDAY, Michael. A. K.; HASAN, R. (org.).
Language, Context and Text: aspects of language in a social-semiotic perspective. London: Oxford
University Press, 1991, pp. 3-28.

LACLAU, Ernest. New reflexions on the Revolution of our time. London: Verso, 1990.

LACLAU. Ernesto & MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy. Toward a Radical
Democratic Politics. London, Verso, 1989.

MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. Tradução de Pablo Sanges Ghetti.
Revista Sociologia Política, Curitiba, 25, pp. 165-175, 2006.

PEDRO, Emília Ribeiro. Análise Crítica do Discurso: aspectos teóricos, metodológicos e analíticos.
In: PEDRO, E. R. (org.). Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional.
Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. A construção de identidades e a política de representação. In: FERREIRA,


L. M. A.; ORRICO, E. G. D. Linguagem, identidade e memória social: novas fronteiras, novas
articulações. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

______. Por uma linguística crítica: Linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábolas
Editores, 2003.

RESENDE, Viviane.; RAMALHO, Viviane. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruini. Col. Os


Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

450
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DOS AGENTES SOCIAIS NOS DISCURSOS SOBRE O 11
DE SETEMBRO NA IMPRENSA FRANCESA

Ruberval Ferreira (UECE)1


Maria Clara Gomes Mathias (UECE)2

Este trabalho traz algumas considerações sobre as dimensões ética e política da linguagem,
tomando como ponto de partida as teorizações sobre o fenômeno lingüístico propostas por
Fairclough em sua Teoria Social do Discurso. Em discussões mais recentes, Fairclough (2003)
propõe três tipos de significado, que consistem nas três maneiras a partir das quais o discurso –
enquanto linguagem – pode figurar em práticas sociais: significado acional, significado
representacional e significado identificacional. O significado representacional é aquele que se
relaciona com a compreensão dos discursos enquanto modos particulares de representação de
aspectos do mundo. Este trabalho consiste, assim, na analise desse tipo de significação, a partir de
textos de opinião sobre os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, publicados pelo
jornal francês Le Monde, no período imediatamente subseqüente aos acontecimentos. A análise
procura investigar as representações postas em cena na construção de sentidos para os agentes
sociais envolvidos no acontecimento mencionado. Para tanto, levam-se em consideração duas
importantes categorias analíticas propostas em Fairclough (2003) em sua abordagem do
significado representacional das formas discursivas: a interdiscursividade e a representação de
agentes sociais. Para lançar considerações acerca do objeto, essas categorias são analisadas
principalmente em função de aspectos de ordem lexical e semântica.

Palavras-chave: discurso, representação, interdiscursividade, agentes sociais.

Introdução
A Teoria Social do Discurso, abordagem teórico-metodológica para o estudo da linguagem
proposta por Norman Fairclough, constitui a vertente mais proeminente da corrente de estudos
lingüísticos conhecida como Análise de Discurso Crítica – doravante ADC. A ADC concebe a
linguagem a partir de sua relação indissociável com a sociedade. Dessa forma, pode-se dizer que
uma visão de linguagem enquanto discurso, definido como um elemento de práticas sociais
dialeticamente interconectado a outros elementos, encontra-se no princípio e no centro das
reflexões trazidas à tona por essa vertente.
Para compreendermos minimamente a visão particular do fenômeno lingüístico proposta
pela ADC, devemos considerar a relação entre três conceitos-chave na sua teoria, que são os
conceitos de estruturas, práticas e eventos sociais.

1
Ruberval Ferreira é Professor Pesquisador do Curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Lingüística
Aplicada da Universidade Estadual do Ceará.
2
Maria Clara Gomes Mathias é mestranda do Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada da Universidade
Estadual do Ceará.

451
As estruturas sociais são concebidas como entidades abstratas, que definem um
determinado potencial, ou um grupo de possibilidades de realizações em eventos sociais
concretos. Dessa definição, pode-se depreender qual a compreensão de evento social
operacionalizada pela ADC: os eventos sociais são a materialização de possibilidades estruturais,
acontecimentos particulares sócio-historicamente situados, envolvendo atores específicos
atuando uns sobre os outros e sobre o mundo em contextos específicos. Mas essa relação entre
estruturas e eventos, segundo a compreensão da ADC, não é de forma alguma uma relação de
simples determinação. Para a ADC, essa relação é mais complexa e mediada por entidades
intermediárias organizacionais, que são chamadas de práticas sociais (Fairclough, 2003).
Dessa forma, na teorização sobre a linguagem proposta pela ADC, existe uma zona de
interstício, um campo de tensões em que estruturas e eventos sociais se cruzam e se determinam
mutuamente, são as práticas socais. O discurso, para a ADC, está inserido exatamente nessa zona,
que reclama, em qualquer empreendimento analítico, um olhar problematizador. O discurso é
definido, assim, como um elemento de práticas sociais, dialeticamente interconectado a outros
elementos.
Assim, pode-se dizer que a proposta da ADC corresponde à necessidade de
operacionalização de teorias sociais no interior de análises discursivas lingüisticamente orientadas,
com a finalidade de compor um quadro teórico-metodológico adequado para a compreensão da
linguagem não apenas como uma entidade profundamente influenciada pelos diversos elementos
da vida social, mas também (e principalmente) como elemento de transformação social. Para esta
vertente, a mudança discursiva é um indicativo de mudança social.
Assim, é notadamente pelo caráter emancipatório desta vertente de análise do discurso
que percebemos seu viés de criticidade, afinal, a linguagem nos convida o tempo todo a intervir
nela, de modo a desvelar relações ideológicas de dominação que se estabelecem no seu interior.
Nas palavras de Fairclough:
Ao usar o termo ‘discurso’, proponho considerar o uso de linguagem como forma
de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de
variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o
discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o
mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de
representação (Fairclough, 2001: 90-91).

Fairclough propõe uma análise de discurso social e lingüisticamente orientada, para


fornecer instrumental teórico-metodológico para a compreensão do discurso como um elemento
de práticas sociais, dialeticamente interconectado a outros elementos. O desenvolvimento de sua
proposta de análise textual, voltada para o mapeamento das relações entre recursos de natureza
452
lingüística e o estabelecimento de relações de poder, dá-se por meio da operacionalização dos
postulados da Lingüística Sistêmico-funcional de Halliday (Fairclough, 2003a).
Resumidamente, pode-se dizer que a proposta de Fairclough (2003) desenvolve-se a partir
de três tipos de significado (correspondentes às funções de Halliday), que consistem nas três
maneiras a partir das quais o discurso – enquanto linguagem – pode figurar em práticas sociais:
como modos de agir (gêneros), como modos de representar (discursos) e como modos de ser
(estilos). Dessas três formas, decorrem os três tipos de significados: significado acional, significado
representacional e significado identificacional.
O percurso analítico proposto neste trabalho explora categorias analíticas desenvolvidas
por Fairclough em sua abordagem do significado representacional, que está relacionado, em
última instância, às visões particulares de mundo postas em cena nos mais variados discursos; diz
respeito, portanto, a modos particulares de representação do mundo.
No tópico seguinte, apresentamos algumas considerações sobre o significado
representacional. Em seguida, apresentamos uma breve abordagem conjuntural do evento em
questão e algumas considerações sobre o material analisado.
Procurando trazer para o centro das discussões uma dimensão do fenômeno lingüístico
historicamente negligenciada, sua dimensão ético-política, serão analisados, neste trabalho, dois
textos de opinião publicados pelo jornal francês Le Monde no período imediatamente
subseqüente aos acontecimentos do 11 de setembro de 2001. Os textos, intitulados O herói e a ira
– a vitória de Osama Bin Laden (Khosrokhavar, 2001), e Insuficiência, fragilidade e poder – O
Bumerangue da História (Kennedy, 2001)3 são analisados a partir de duas categorias analíticas
propostas por Fairclough em sua abordagem do significado representacional das formas
discursivas: a interdiscursividade e a representação de agentes sociais. Essas duas categorias são
analisadas principalmente em função de aspectos de ordem lexical e semântica.
Significado representacional e discurso
O significado representacional é o tipo de significado apresentado por Fairclough que se
relaciona com a compreensão dos discursos enquanto modos particulares de representação de
aspectos do mundo. Para que se possa explorar, contudo, o âmbito de aplicação da palavra
discurso enquanto modo de representação de aspectos do mundo, ou seja, o significado

3
Textos originalmente escritos e divulgados em francês – títulos originais: Le héros et la haine – La victoire d’Oussama
Ben Laden (Khosrokhavar, 2001), e Insouciance, fragilité et puissance – Le boomerang de l’Histoire (Kennedy, 2001) – e
extraídos da obra “11 septembre – um na après, Le Monde et éditions de l’Aube, 2002”, coletânea de textos de
opinião veiculados do jornal francês Le Monde nas edições subseqüentes aos acontecimentos [traduções nossas].

453
representacional proposto por Fairclough, é preciso inicialmente distinguir duas principais
acepções a partir das quais é tomada a palavra “discurso”.
A primeira acepção do termo, a mais abstrata, relaciona-se à compreensão de discurso
enquanto linguagem. Essa acepção está ligada à própria visão de língua/linguagem proposta pela
ADC que, contrariamente às concepções formalistas de linguagem, não a concebe enquanto um
sistema abstrato subjacente e independente de suas manifestações sócio-interacionais. A ADC
concebe a linguagem a partir de sua relação indissociável com a sociedade. Entende, pois,
linguagem como discurso, ou seja, como um elemento de práticas sociais.
A partir dessas considerações, pode-se compreender a segunda acepção do termo
“discurso”, a mais concreta, e que é decorrente da primeira. Para Fairclough, o discurso –
enquanto linguagem – figura de três maneiras no interior de práticas sociais: como modos de agir
(gêneros), como modos de representar (discursos) e como modos de ser (estilos). Dessa forma, a
acepção mais concreta da expressão “discurso” proposta por Fariclough é aquela que se relaciona
ao significado representacional, que leva a entender discursos como modos de representação de
aspectos do mundo – aqui estando compreendido o mundo material, o mundo mental e o mundo
social. Discursos, em seu significado mais concreto, são definidos, então, como perspectivas
particulares ou como visões de mundo particulares.
Dessa forma, “discurso” está sendo usado em dois sentidos: um mais abstrato, ou seja,
como linguagem ou outros tipos de semiose, enquanto elementos da vida social; outro mais
concreto, significando maneiras particulares de representação do mundo.
Como já foi dito, o significado representacional conduz à compreensão de discursos como
modos de representação de aspectos do mundo empreendidos pelos atores sociais. Esses modos
de representação se diferenciam em função das relações que seus agentes estabelecem com o
mundo e entre si. Dessa forma, discursos podem ser vistos como diferentes visões de mundo, que
dependem das diferentes posições que os agentes ocupam na constituição de relações sociais, nas
relações que eles estabelecem entre si. A respeito disso, Fairclough assim se pronuncia,

Vejo discursos como modos de representar aspectos do mundo – os processos,


relações e estruturas do mundo material, o “mundo mental” dos pensamentos,
sentimentos, crenças, e assim por diante, e o mundo social. Aspectos particulares
do mundo devem ser representados diferentemente; assim, nós estamos
geralmente na posição de ter de considerar a relação entre diferentes discursos.
Diferentes discursos são diferentes perspectivas do mundo, e elas estão
associadas às diferentes relações que as pessoas têm com o mundo, que, por seu

454
turno, dependem de suas posições no mundo, suas identidades sociais e
pessoais, e das relações sociais com outras pessoas (Fairclough, 2003)4.

Dessa forma, pode-se dizer que os discursos, segundo tal perspectiva, tanto são espaço de
representação do mundo “concreto”, como fornecem ocasião para a intervenção sobre esse
mundo, para a projeção de diferentes “realidades” ou projetos de mudança do mundo.
Como sugere Fairclough, enquanto parte dos recursos por meio dos quais as pessoas se
relacionam entre si e agem umas sobre as outras, os diferentes discursos são entidades
importantes na forma de posicionamento das pessoas umas em relação às outras. Na
materialidade textual, as relações que se estabelecem entre os discursos postos em cena na
composição de um texto podem se realizar por meio de cooperação, competição, dominação,
esquiva. Portanto, assim como são as formas de posicionamento das pessoas umas em relação às
outras (no interior das diversas interações sociais), assim também serão as formas de
relacionamento dos discursos entre si no interior dos textos: eles podem ser representados
competindo entre si ou em cooperação, eles podem estabelecer relações de dominação uns sobre
os outros e assim por diante.
É justamente no desvelamento das formas de relacionamento entre os diferentes discursos
postos em confronto no interior de um texto – que se materializam em aspectos de natureza
textual – que se localiza o ponto nodal da discussão aqui empreendida. Tais formas de interação,
tais confrontos discursivos, refletem conflitos de poder que têm dimensões que extrapolam os
limites da linguagem para atingir o todo social. Relações de dominação e esquiva, lutas que põem
em confronto vencedores e derrotados.
As escolhas dos diferentes usos da linguagem carregam consigo um posicionamento ético
que não pode ser negligenciado, assim como determinam conseqüências de ordem política que
também demandam uma apreciação pormenorizada. Este trabalho pretende, assim, fazer algumas
ponderações nesse sentido, ou seja, vendo o fenômeno lingüístico como a manifestação de lutas
por representações, como “um espaço preenchido por forças que se confrontam na luta pela
hegemonia dos sentidos” (Ferreira, 2007).
Depois desse olhar sobre o potencial analítico do significado representacional proposto em
Fairclough, passamos agora a uma visão conjuntural dos eventos em questão, para uma melhor
compreensão do horizonte geo-político e histórico-ideológico que motivou a produção dos textos.

4
Tradução nossa.

455
Aspectos Conjunturais
Conjunturas, segundo Chouliaraki e Fairclough (1999), são conjuntos relativamente
estáveis de pessoas, materiais, tecnologias e práticas – em seu aspecto de permanência relativa –
em torno de projetos sociais específicos. A história das formações sociais humanas é marcada por
lutas, tensões, conflitos, relações de dominação e esquiva, gestos e empreendimentos de
representação que demarcam fronteiras.
A Análise de Discurso Crítica, enquanto abordagem transdisciplinar e multidisciplinar do
fenômeno lingüístico, que propõe a operacionalização de teorias sociais para a análise de discurso
lingüisticamente orientada, concebe a linguagem a partir de sua relação indissociável com as
formações sociais e fornece instrumental teórico-metodológico para abordar a linguagem como
espaço privilegiado para a observação e análise das tensões e conflitos que marcam a história
dessas formações. Entende, pois, linguagem como discurso, ou seja, como um elemento de
práticas sociais, dialeticamente interconectado a outros elementos.
Em 11 de setembro de 2001, o mundo inteiro assistiu estarrecido ao choque de dois aviões
supostamente seqüestrados por terroristas islâmicos contra as torres do World Trade Center, nos
Estados Unidos. O evento foi transmitido em tempo real para o mundo inteiro e teve seu impacto
ampliado pelo poder de visibilidade que marca os acontecimentos particulares nas sociedades
contemporâneas: a visibilidade midiática (Thompson, 2002).
Com o fim da Segunda Guerra mundial, o planeta sofreu uma reorganização geopolítica e
uma nova configuração de forças encontrou lugar. O mundo se viu seccionado em uma ordem de
forças bipolar entre Estados Unidos e Inglaterra de um lado, e ex-União Soviética de outro.
Nesse contexto, assim como em toda luta hegemônica que marca a história das formações
sociais, a exigência de instauração de uma instância de alteridade, que é necessária a qualquer
projeto de dominação, o Outro ou a “ameaça externa”, tornou-se necessária para dar sustentação
e legitimidade a práticas político-militares e aos regimes políticos tanto de um lado quanto do
outro da nova divisão bipolar das forças político-ideológicas que passaram a configurar a nova
ordem mundial pós-Segunda Guerra. Países capitalistas e suas economias de mercado, de um
lado; países socialistas e suas economias planejadas, de outro.
O fim da experiência socialista, a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética (o
país-líder do bloco comunista) resultou no fortalecimento do aparato ideológico do capitalismo e
na anulação política de sua “alteridade inimiga” – o mundo comunista, simbolizado e
personificado pela extinta União Soviética. Mas em toda luta hegemônica, a instância do Outro
faz-se necessária. Nesse sentido, a instauração de uma nova “alteridade inimiga” passaou a ser

456
uma necessidade que se impõe ao “bloco vencedor”, monopolizador da nova ordem –
metonimizada pelos Estados Unidos – para tornar possível a legitimação de práticas de dominação
e intervenção em diversas partes do mundo.
Depois dos acontecimentos do 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, a figura do
“terrorista” passou a constituir, no quadro atual dos novos conflitos mundiais, a principal
representação que o Ocidente vem promovendo de sua mais recente “ameaça externa”. Cada vez
mais, os conflitos internacionais não são mais marcados por diferenças ideológicas, mas por
diferenças étnico-religiosas, que servem aos propósitos de justificar a luta hegemônica para a
manutenção de valores e tradições liberais do mundo capitalista neo-liberal globalizado. Uma
discussão sobre os novos conflitos internacionais passa necessariamente pela construção de novas
identidades políticas e de novas formas de representação das forças em confronto no mundo
contemporâneo.
Outro aspecto conjuntural importante nesta análise é aquele relacionado à presente fase
de desenvolvimento das instituições modernas, que alguns autores denominam de pós-
modernidade ou de modernidade tardia. A modernidade tardia é marcada, segundo Giddens
(1991) pela “radicalização dos traços básicos da modernidade”: separação de tempo e espaço,
mecanismos de desencaixe e reflexividade institucional.
Nesse contexto, o poder da mídia, ao criar novas formas de ação e interação que se
prolongam no espaço e se comprimem no tempo (Thompson, 2002), adquire cada vez mais
relevância para a análise de fenômenos de linguagem como a construção midiática do “11 de
setembro”. Uma das categorias propostas pelos pensadores da ordem social, a reflexividade da
vida social moderna, é, por exemplo, caracterizada pela revisão constante que os atores sociais
fazem das instituições modernas à luz dos novos conhecimentos gerados e dos recursos
simbólicos veiculados pelo poder da mídia.
Por esse motivo, os modos de representação de acontecimentos como os atentados do 11
de setembro, os seus participantes, processos e circunstâncias – conhecidos nos diversos lugares
do mundo por meio da mídia e de discursos oficiais – são cada vez mais decisivos para o
desenvolvimento de estratégias de dominação, estratégias estas que passam pela instauração e
manutenção de certos processos de representação.
Depois dos episódio do 11 de setembro de 2001, os processos de significação postos em
cena não só no discurso oficial norte-americano sobre os atuais conflitos internacionais, mas na
esfera discursiva midiática, apontam para uma tendência em dividir o mundo contemporâneo em
duas partes: “civilizados” de um lado (ou o “Bem”, como assim foi referido na época pelo então

457
presidente americano G. W. Bush) e “terroristas” e “ditadores” do outro (ou o “Mal”). Tal
oposição, tal confronto fundamental, facilmente identificado nos textos veiculados no período dos
acontecimentos, surge tão somente como forma ou estratégia de legitimação de um conjunto de
ações que foram implementadas oficialmente. A análise do material em questão, a seguir, mostra
alguns indícios dessa estratégia.

Percurso analítico
Uma das mais proeminentes diferenças entre o modo de tratamento da linguagem
proposta pela Análise de Discurso Crítica em relação a outros discursos sobre linguagem, focados
em sua dimensão sócio-histórica, é a orientação para a análise material de textos. Fairclough
define sua proposta de trabalho como análise de discurso textualmente orientada, procurando
afastar-se de tradições anteriores de análise de discurso, como a de orientação francesa, que não
voltavam o foco de análise para a manifestação material de textos.
A ADC, nos trabalhos de Norman Fairclough, propõe, por intermédio do diálogo teórico e
metodológico entre a ADC e a Lingüística Sistêmica Funcional, que tem seu maior representante
em Halliday, uma série de categorias analíticas para cada um dos tipos de significado através dos
quais o analista crítico de discurso pode observar e problematizar as manifestações da relação
discurso/sociedade ao longo dos textos.
No âmbito do significado representacional, Fairclough define uma série de categorias
analíticas, instrumentos para a operacionalização da análise crítica social e lingüisticamente
orientada de textos.
A primeira categoria analítica apresentada por Fairclough para a análise de textos no
âmbito do significado representacional é a interdiscursividade. Um mesmo texto pode conter, em
seu modo de estruturação, diferentes discursos, diferentes perspectivas de mundo, articulados ou
relacionados uns com os outros de maneiras diferentes que estão entre a competição e a
cooperação. Segundo Ramalho e Resende:

[...] a heterogeneidade de um texto em termos da articulação de diferentes


discursos é chamada de interdiscursividade. A análise interdiscursiva de um texto
relaciona-se à identificação dos discursos articulados e da maneira como são
articulados (Ramalho e Resende, 2006:72).

Segundo Fairclough, a noção de discurso enquanto modo de representação de aspectos do


mundo implica na constatação de que, por meio dos diferentes discursos, os atores sociais

458
representam aspectos particulares do mundo de maneiras particulares. Portanto, a análise
interdiscursiva deve consistir em dois principais movimentos por parte do analista: a identificação
de que aspectos do mundo estão sendo representados em determinado discurso e de que forma
se dá essa representação.
Para realizar essas duas principais tarefas, o analista pode lançar seu olhar sobre traços
lingüísticos diversos. Assim, discursos podem ser diferenciados através de relações semânticas
(sinonímia, hiponímia, antonímia), traços de vocabulário, aspectos gramaticais, suposições. Dentre
todos eles, o vocabulário é o que encontra maior relevância nas observações de Fairclough, pois a
forma mais proeminente de marcar o modo de representação de aspectos particulares do mundo
é aquela relacionada às formas de lexicalização de entidades constituintes do mundo.
Um parâmetro de orientação para a análise, proposto por Fairclough no âmbito do
significado representacional, que pode ser útil na identificação dos diferentes discursos postos em
cena ao longo do texto, diz respeito à visão da oração segundo uma perspectiva representacional.
A partir do entrecruzamento da ADC com a Lingüística Sistêmico-funcional, Fairclough vai dizer
que cada um dos tipos de significado, ao ser levado em consideração na análise das orações,
oferece uma perspectiva diferente para elas e fornece diferentes categorias analíticas. No âmbito
do significado representacional, três principais elementos das orações podem ser destacados: os
processos (representações de processos), os participantes (representações de agentes sociais) e as
circunstâncias (representações de espaço e tempo).
Segundo esses parâmetros, pode-se dizer que as formas de lexicalização mobilizadas para
representar os participantes dos acontecimentos do 11 de setembro são emblemáticas das
relações de poder que se encontram por trás dessa construção discursiva. No texto O herói e a ira,
por exemplo, as formas de lexicalização mobilizadas para nomear os agentes sociais
representantes da visão de mundo oriental contribuem para atribuir a responsabilidade dos
ataques a Osama Bin Laden que, depois de introduzido no texto, é renomeado e recategorizado
em seu desenvolvimento através do uso de formas lexicais tais como: Bin Laden, o “grande
homem”, um terrorista, os oponentes da modernidade, um super-homem maléfico, um fanático.
Vejamos um trecho do texto citado: “Em nossas democracias, um terrorista, até que seja
absorvido, é visto como um super-homem do mal. Mas quanto à liberação, ele vai se juntar o lixo
de vândalos anônimos”.
Observe-se que a relação semântica que se estabelece entre a expressão Bin Laden,
introduzida no texto para se referir a Osama Bin Laden, e outras expressões tais como super-
homem maléfico, um terrorista – no trecho destacadas – e um fanático, opositores da

459
modernidade – em outras partes do texto – é de equivalência. Dessa forma, tais usos contribuem
para montar um esquema de classificação em que a representação oriental de mundo – o discurso
do oriente islâmico – é paulatinamente construída em termos de categorizações de forma a
mostrar o objeto em questão como ser primitivo (“opositores da modernidade”), representantes
do eixo do mal (“super-homem maléfico”). Vejamos este outro excerto:

O Ocidente Democrático não se assuste com a força dos opositores à


modernidade. O mundo muçulmano, na grande maioria, ainda está sob o jugo de
um governo sem legitimidade, o que facilita o ataque póstumo daqueles que se
rebelaram contra o poder do Ocidente que parece soberbo e endemoninhado.

Como se pode observar, há uma nítida oposição traçada entre as formas de nomeação,
categorização dos representantes da visão de mundo do Oriente, em relação ao Ocidente. O
trecho exposto é representativo disto, mas a análise do padrão de ocorrência das expressões
utilizadas para nomear os participantes dos eventos relacionados ao discurso ocidental ao longo
de todo o texto é ainda mais significativa. Os EUA são referidos ao longo do texto por expressões
tais como: a única superpotência do mundo atual, a América, o Ocidente Democrático. Essas
expressões, do ponto de vista semântico, opõem-se às relacionadas acima, nas formas de
referenciação dos agentes sociais representantes do Oriente.
Enquanto os atos de nomeação mobilizados para categorizar os representantes do mundo
oriental remetem à idéias negativas – o “mau”, o primitivo –, para os representantes do mundo
ocidental há um padrão semântico que aponta para noções positivas, tais como a idéia de
opulência econômica e desenvolvimento (“a única superpotência do mundo atual”) e para ideais
de liberdade e democracia (“Ocidente democrático”).
É importante observar, a partir dessas constatações, como o processo de nomeação dos
agentes sociais em questão consiste em um ato eminentemente político. A influência da mídia na
opinião pública, apoiando ou combatendo entidades representadas (e construídas)
discursivamente começa no ato de nomeação.
Assim, a representação de atores sociais consiste em uma categoria analítica de
importância fundamental para a ADC. Segundo esses parâmetros anteriormente apresentados,
assim como outros aspectos lingüísticos representativos, pode-se analisar de que forma são
representados os diferentes atores sociais, envolvidos nas relações sociais que figuram em
práticas sociais como discurso. Segundo Ramalho e Resende:

460
As maneiras como atores sociais são representados em textos podem indicar
posicionamentos ideológicos em relação a eles e a suas atividades. Determinados
atores, por exemplo, podem ter sua agência ofuscada ou enfatizada em
representações, podem ser representados por suas atividades ou enunciados ou,
ainda, podem ser referidos de modos que presumem julgamentos acerca do que
são ou do que fazem (Ramalho e Resende, 2006).

Um outro aspecto a ser investigado quando se faz análise de textos em termos de


significado representacional relaciona-se à investigação dos níveis de abstração e de generalização
a partir dos quais os eventos sociais são representados. Fairclough (2003 a:138) apropria-se do
discurso de Bourdieu e Wacquant (1992), para afirmar que as representações abstratas e
generalizadas podem ser particularmente importantes para se compreender esquemas de
classificação a partir dos quais são constituídas divisões sociais.
O segundo texto selecionado para a análise neste trabalho é ainda mais emblemático em
relação a esse processo de construção discursiva da “alteridade abjeta”, do “novo inimigo” do
mundo Ocidental corporificado nos EUA. As formas de designação dos agentes representantes da
visão oriental de mundo estão em uma escala de abstração que parte do mais concreto ao mais
abstrato. Nesse texto, o autor inicia o processo de categorização desse objeto com a expressão “os
terroristas incrivelmente bem organizados, que se voltaram para explorar os pontos fortes da
América”. Analisemos o trecho do texto Insuficiência, fragilidade e poder – o Bumerangue da
História que trás essa expressão, em seu contexto de formação discursiva:

Os ataques foram cometidos por terroristas incrivelmente bem organizados que


se voltaram para explorar os pontos fortes da América – a sua tecnologia, sua
sociedade aberta, as suas companhias aéreas de fácil acesso e suas redes de
televisão – para semear o medo e a confusão.

O trecho é emblemático do que vem sendo exposto até aqui. Ao longo do texto, outras
expressões são utilizadas para fazer referência a esses agentes, expressões de caráter mais
abstrato que aproximam os agentes diretamente envolvidos nos atentados com formas
referenciais mais abstratas, tais como: aquele inimigo, os culpados, a ameaça terrorista, o gênio
vingativo, o mundo terrorista, o novo inimigo.
Pode-se perceber através dos níveis de abstração em que são tomadas as expressões
utilizadas para representar os participantes dos eventos sociais em questão (os atentados de 11 de
setembro) a construção de um esquema de classificação que tem como meta o estabelecimento
de relações de dominação na e pela linguagem.

461
Ao lidar com níveis de abstração e de generalização cada vez mais amplos, o autor
contribui para a categorização dos agentes sociais implicados nesse evento em particular,
representantes da visão oriental de mundo, como a representação da nova ameaça ao apregoado
mundo livre e democrático, a representação ocidental de mundo. Em poucas palavras, trava-se
um conflito hegemônico no interior da linguagem, por intermédio do uso de recursos lingüísticos
de natureza variada.
Dessa forma, assim como demonstra a análise empreendida neste trabalho, através do
significado representacional das formas discursivas, também os outros tipos de significado
oferecem uma série de categorias analíticas e parâmetros de análise que podem ser levados em
consideração no tratamento de textos específicos segundo a abordagem do fenômeno lingüístico
proposta nos trabalhos de Fairclough.

Considerações finais
Como foi dito no início do trabalho, a teorização sobre a linguagem proposta pela
abordagem crítica do discurso concentra suas investigações na zona de interstício, no campo de
tensões em que estruturas sociais abstratas e eventos sociais específicos se entrecruzam e se
determinam mutuamente, por meio das práticas sociais.
O discurso, compreendido enquanto “um momento de práticas sociais” (Chouliaraki e
Fairclough, 1999), está inserido exatamente nesta zona, que reclama, em todo empreendimento
analítico, um ponto de vista sempre mais problematizador, que não deixe de contemplar a
dimensão ético-política da linguagem.
A Análise de Discurso Crítica convida, pois, o analista a focalizar o potencial transformador
e emancipatório de uma tutela crítica da linguagem. Pois o desvelamento dos indícios lingüísticos
responsáveis pela construção discursiva de objetos específicos, segundo determinados projetos de
sentido e em conformidade com ideologias particulares, aponta para um espaço de confrontos no
interior da linguagem, que se determina dialética e mutuamente com as tensões empreendidas no
todo social, no campo da ética e da política. Essa constatação aponta para um desdobramento
fundamental da perspectiva analítica oferecida pela ADC: o fato de que a mudança discursiva é
indício de capacidade de intervenção e transformação de estruturas sociais.
Neste ponto se situa o limiar de reflexões em torno da linguagem que se auto-denominam
críticas. É justamente no seu viés transformador, no seu caráter emancipatório, convidativo para a
ação sobre o mundo por intermédio da e na linguagem, que se encontra a verdadeira substância
de uma crítica da linguagem.

462
Em termos gerais, a forma como a prática denominada “terrorismo” foi significada nos
mais diversos discursos produzidos imediatamente após os eventos do 11 de setembro de 2001,
constituiu um momento privilegiado para percebermos como acontecem os conflitos no interior
da linguagem e como a materialidade lingüística dos textos pode ser analisada em termos de
ações lingüísticas que resultam de escolhas que são operadas para construir representações que,
por sua vez, contribuem para legitimar e sustentar determinadas práticas e ações oficiais.
Contudo, mais importante do que isso é a percepção de que todo empreendimento de linguagem,
e não apenas o que está aqui em questão, reclama, urgentemente, a necessidade da sua própria
crítica, o que significa dizer, a necessidade de que tal empreendimento seja visto sempre a partir
de sua dimensão ético-política, uma vez que, como toda forma de ação, ela implica
desdobramentos nem sempre tangíveis e contornáveis.

Referências

CHOULIARAKI, L. & FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: Rethinking critical discourse


analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.

FAICLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

_______. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003a.

FERREIRA, Ruberval. Guerra na língua – mídia, poder e terrorismo. Fortaleza, EdUECE, 2007.

GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991a. RAMALHO,


Viviane & RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.

THOMPSON, J. B. 2002. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis:


Vozes.

11 septembre – un an après, Le Monde et éditions l’Aube, 2002.

463
O DISCURSO DO ABUSO SEXUAL A CRIANÇAS E ADOLESCENTES: PODER E
IDENTIDADE EM DISCUSSÃO

Sandro Xavier, doutorando em linguística


Universidade de Brasília, Faculdade de Ceilândia

É tema atual a pedofilia em todo o mundo, especialmente por casos relacionados ao clero da
Igreja Católica Apostólica Romana. Contudo, esse não é um problema somente dessa agremiação
eclesiástica, posto que se encontra em toda a sociedade, assolando a vida de crianças e
adolescentes em todo o mundo, em famílias dos mais diferentes matizes. Muitas organizações não
governamentais e órgãos públicos têm trabalhado a questão e estimulado a sociedade a denunciar
casos existentes. Diante disso, muitas situações têm surgido e a população busca uma maneira de
se defender e punir os responsáveis. Por intermédio da Análise de Discurso Crítica (ADC),
estudaremos discursos relacionados à questão do abuso sexual a crianças e adolescentes.
Buscaremos a relação do abusador como aquele que reconhece a criança e o adolescente como
um indivíduo incapaz não somente de responsabilidade social, mas até mesmo de ter voz ativa. O
poder que o adulto tem sobre a criança, na ótica do cuidado, transforma-se em um abuso de
poder que se aproveita da condição da identidade da criança e do adolescente, por vezes apagada.
Nesse sentido, mostra-se importante, também, buscar a identidade do abusador. Dessa forma, o
Estado pode exercer sua obrigação de cuidar de cada cidadão e cidadã, inclusive as crianças e os
adolescentes, ao afastar do convívio com a sociedade – ou pelo menos acompanhar esse convívio
– os abusadores sexuais de menores. O discurso do abusador analisado neste artigo mostra um
pouco da segurança que esse poder e a condição de silenciada da criança lhe dá. Além disso, a
confirmação do relato da abusada quando criança reafirma essa posição. Com as ferramentas da
ADC, foram analisados esses discursos, marcando as ocorrências de seleção lexical e coerência,
apontando para a realidade do silenciamento e do poder. Assim, a análise de discursos relativos à
prática da violência pedófila pode demonstrar o que a sociedade pensa a respeito do assunto e o
que ela está fazendo para controlar essa prática hoje. Nessas vozes analisadas especificamente
nesta pesquisa, percebemos a importância de cuidar mais aproximadamente das crianças e
adolescentes, especialmente pais e familiares próximos.

Palavras-chave: Pedofilia; Identidade; Poder; Análise de Discurso Crítica.

Introdução
Sempre é pergunta recorrente qual foi o motivo do início de pesquisa em linguística
abordando o abuso sexual a crianças e adolescentes. Posso dizer que primeiro trata-se de tema
atual, bastante abordado pela sociedade, seja no campo político – com a atuação cada vez mais
acentuada da CPI da Pedofilia –; nos meios de comunicação, com organizações não
governamentais que atuam especificamente com essa matéria; e até mesmo nas Igrejas, visto que
têm surgido denúncias diversas acerca de pedofilia por parte de padres e pastores em diversas
agremiações eclesiásticas. Mais uma parcela da sociedade que deveria cuidar das crianças e educá-
las terminando por destruir seu presente e obliterar seu futuro.
Por conseguinte, até como preocupação da situação religiosa, busquei investigar o
fenômeno em seus fatores linguístico e discursivo por meio da Análise de Discurso Crítica (ADC).
464
Assim, com apoio da profª Drª Izabel Magalhães (Universidade de Brasília/Universidade Federal do
Ceará), preparei projeto para pesquisar o tema como aluno do doutorado do Programa de Pós-
Graduação em Linguística (PPGL) do Departamento de Linguística Português e Línguas Clássicas
(LIP) – Instituto de Letras (IL) da Universidade de Brasília (UnB).
O programa visa encontrar nas palavras de pais e mães de crianças e adolescentes que
foram vítimas de abusos sexuais, bem como de psicólogos terapeutas que trabalharam com esses
menores, elementos que apontem para sua identidade e os fenômenos linguísticos que a
construam.
Desde o primeiro momento, a pesquisa já se mostrou tratar de um assunto bastante
doloroso. O simples fato de anunciar o seu tema já causa expressão de sofrimento ao interlocutor.
Não raro também eu mesmo imagino algumas noites difíceis para dormir causadas pela
aproximação com o padecimento agudo de tanta gente envolvida.
Para entrar no tema, descobrir primeiro a literatura sobre os fatos e encontrar aqueles que
tratam disso, trabalham contra isso e vivem mesmo, a cada dia, envolvidos nisso, este artigo
surgiu. Assim, será discorrido sobre um pouco do problema do abuso sexual a crianças e
adolescentes e como a sociedade depara com ele (1). Com isso, surge o tema da psicopatia,
inevitável quando se fala de pedofilia, visto que se trata, na maioria das vezes, de casos
recorrentes e que seus agentes mostram frieza ao relatar os fatos. Também vai ser apresentado
como a violência agride até a quem simplesmente ouve falar do tema. Isso também impede que o
assunto possa ser falado abertamente em todos os níveis da sociedade que sofre com ele,
especialmente a família.
Em seguida, torna-se necessário apresentar um panorama da Análise de Discurso Crítica
como ferramenta para abordagem dos fenômenos discursivos selecionados nos dados (2). Como
disciplina transdisciplinar, A ADC recorre a conhecimentos paralelos que possam ajudar a elucidar
diversos problemas. Por isso, vamos conhecer um pouco sobre silenciamento, poder, identidade e
modernidade.
A análise (3) traz discursos de duas realidades sobre o tema: Marcelo Costa de Andrade,
conhecido como Vampiro de Niterói, relata a sua própria vida e os casos de violência que praticou
a menores; e Claudia Jimenez, conhecida atriz de tevê, relatando a uma revista de circulação
nacional que fora vítima de abuso na infância, o que deixou muitas marcas ao longo de sua vida
difíceis de superar.
A ADC busca fazer vir à tona vozes que em sua maioria não são ouvidas pela sociedade. Por
mais sofrimento que cause a nós, pesquisadores e interessados no assunto, falar sobre isso;

465
certamente o sofrimento maior é para as vítimas, o que se pode perpetuar se continuamos
fingindo que não percebemos suas tentativas silenciosas de pedir socorro.

Abuso sexual a crianças e adolescentes: um problema antigo e atual


A aparente controvérsia no título deste item serve para mostrar a forma com a qual se
aborda no tempo o tema do abuso sexual, tratado mais correntemente como pedofilia. Diz-se que
nunca se viu tanto descaso com menores nessa área na história da humanidade. Contudo, essa
pergunta nos faz pensar a respeito das políticas públicas sobre o assunto, já que por meio delas
estimula-se a denúncia e busca-se proteção aos informantes, bem como meios para tratamento e
defesa das vítimas.
Dessa forma, podemos concluir que os casos que surgem são resultado de um esforço do
governo para erradicar essa mazela da sociedade, bem como de um trabalho da mídia em geral
que traz à tona casos que muitas vezes permaneceriam ocultos. Esse pode ser o motivo pelo qual
se imagina ser menor o índice de casos no passado.
O que se percebe é que os abusos ocorrem frequentemente em ambiente familiar, como se
pode observar em quadro publicado no Correio Braziliense, jornal de grande circulação no Distrito
Federal (Bernardes, 2010). No ambiente familiar, tem-se o índice de quase 50% das ocorrências,
além de 23% em casas de outros familiares. Só para termos uma ideia da diferença, a terceira
posição refere-se à casa do próprio autor do abuso e remonta a 11,5% dos casos. Que tipo de
sentimento, então, essas pessoas nutrem pela criança que têm em casa?
Em reportagem publicada pelo site R7 Notícias, o repórter André Sartorelli sugere que o
pedófilo utiliza-se dessa prática por um transtorno mental classificado pela Organização Mundial
de Saúde e incluído na CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados á Saúde). O jornalista esclarece, também, que:

Segundo o DSM-4 – o conjunto dos transtornos mentais listados pela Associação


Americana de Psiquiatria –, para ser descrito como pedófilo o doente deve ter pelo
menos 16 anos de idade e ser ao menos cinco anos mais velho que a criança.
(Sartorelli, 2010)

Para comprender por que um pedófilo agiria em seu ambiente de amor, de cuidado, de
proteção e de união, devemos pensar que se trata de alguém desprovido desses sentimentos e
valores. Essa questão nos faz recorrer a assassinos e delinquentes que são famosos por relatarem
seus feitos mais cruéis mesmo sem nenhum esboço de reação emocional. Recentemente, em
Luziânia, cidade do estado de Goiás próxima ao Distrito Federal, um crime comoveu a cidade e as
466
redondezas. Ademar de Jesus ficou conhecido como “Monstro de Luziânia” por ter matado, pelo
menos, seis jovens e ter cometido violência sexual. Ademar já havia sido condenado por atentado
violento ao pudor contra dois meninos de 11 e 13 anos. Ao ser preso e relatar os assassinatos de
Luziânia, a comunidade se espantou com a calma e a frieza com que recobrou os seus atos.
Ademar já havia sido diagnosticado como psicopata por um laudo de exame criminológico,
conforme matéria da repórter Marina Marques, publicada no site clicabrasilia.com.br (Marques,
2010).
A psicopatia pode, sim, ser uma explicação para tanta falta de ligação afetiva com outro ser
humano, ainda mais com um membro de seu clã.

A psicopatia como uma explicação


Sabe-se que nem todo aquele que abusa de crianças e adolescentes sexualmente é
psicopata. Contudo, esse pode ser o único caminho para compreender a falta de compaixão por
seres mais vulneráveis e que a sociedade lhes imputa cuidado por parte dos adultos que são seus
responsáveis. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente transfere essa
responsabilidade para toda a sociedade e para o Estado. Sendo assim, qualquer adulto é
responsável pela integridade de quaisquer crianças (Brasil, 2001, especialmente o art. 5º).
Segundo os estudos de Ana Beatriz Barbosa Silva, médica e pós-graduada em psiquiatria, os
psicopatas não são dotados da faculdade da consciência (Silva, 2008). O que, então, segundo seus
estudos, pode-se afirmar que seja consciência? Grosso modo, sem querer reduzir tanto as palavras
da médica, pode-se dizer que, apesar da ambiguidade com a acepção mais lato sensu da lexia,
consciência remete mais ao que se sente do que a algum conhecimento. Ela está relacionada ao
campo, portanto, dos afetos e da afeição. Tem a ver, então, com a emoção.
Para entender essa capacidade no ser humano, Ana Beatriz sugere uma situação hipotética
em que alguém chega em sua casa bastante exausto por um dia cansativo de trabalho, esperando
por um bom banho, alimentação e descanso tranquilo. Contudo, uma visita não esperada de
alguém muito querido e em apuros pedindo ajuda faz com que você, mesmo cansado e esperando
tanto por um descanso, largue tudo e busque forças para atender aquele que o procura. Seria
normal, em sua situação, arranjar uma desculpa para fugir desse apoio. Mas, a consciência mostra
um sentimento intrínseco ao ser humano de conectividade com o semelhante.
O psicopata é desprovido dessa faculdade. Estudos feitos com técnicas de neuroimagens
podem ajudar a reforçar o diagnóstico de psicopatia. Por meio dessas imagens, pode-se encontrar
possíveis lesões no cérebro e determinar em que áreas elas estão e que consequências isso teria

467
para a vida do indivíduo e, relativamente, aos seus próximos.
Lesões ou mal funcionamento da amígdala cerebelar podem ocasionar a falta de
consciência tratada pela médica. Segundo Ana Beatriz, essa região do cérebro é “‘o botão de
disparo’ de todas as emoções: medo, alegria, raiva, amor, tristeza, etc.” (ver figura em Silva,
2008:162-163). Com esse problema, o psicopata apresenta um défice em sua relação da emoção
com o comportamento e a razão. Sua resposta aos estímulos com os quais estamos mais
acostumados não são as mesmas... ou, por vezes, nem existe.
Por isso, é possível dizer que aquilo que fazia Ademar de Jesus, o chamado “Monstro de
Luziânia”, não mostrar remorso, bem como os casos de abuso sexual em família, seja por pais ou
parentes próximos, possam ocorrer pela falta de consciência. Processo que impede o ser humano
de se relacionar com afeto, com amor e ter a emoção como um impedimento de fazer o mal a seus
pares.
É realmente estranho para nós perceber que alguém não se emociona ao ver um ente
querido sofrer. Até mesmo o sofrimento de outro ser humano qualquer causa comoção. O simples
fato de tratar de assunto violento, ainda mais com crianças, causa repulsa. Experiência pela qual
pude passar já em um ambiente de teste para lidar com a pesquisa dos discursos sobre abusos
sexuais a crianças e adolescentes.

Análise de Discurso Crítica (ADC) e os estudos sobre discurso e sociedade


É consenso entre os estudiosos da área do discurso que há uma ligação intrínseca entre os
campos da atividade humana e o uso da linguagem. Significa dizer que este se realiza em algum
evento social e pode ter diversas formas tantas quantas forem as condições específicas e as
finalidades desses eventos. Bakhtin já afirma que os enunciados refletem esses pressupostos por
meio não somente de seu conteúdo e do estilo da linguagem, mas, também, “pela seleção dos
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção
composicional” (Bakhtin, 2003: 261).
Com essa ideia, teóricos buscaram investigar o discurso, por meio da investigação de
fenômenos linguísticos – como os citados por Bakhtin acima, a saber, lexicais, gramaticais,
composicionais, entre outros –, de forma que lhes fosse possível compreender e explicar, pela
natureza do enunciado, a atividade humana.
A relação entre enunciado e vida, bem como a importância da compreensão dessa
particularidade podem ser percebidas nas próprias palavras do autor russo:

468
A língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam);
é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua. O
enunciado é um núcleo problemático de importância excepcional. (Bakhtin, 2003:
265)

Dessa forma, os estudos relacionados aos enunciados que tratam do caso estudado: o
abuso sexual a crianças e adolescentes, nos aproximam da realidade social que remonta ao
silenciamento e aos estudos recentes sobre psicopatia – doença relacionada a uma deficiência no
campo dos afetos e das emoções (Silva, 2008: 40) –, brevemente abordados na primeira parte
(1.1), gerando identidade para abusadores e abusados, pautada em uma relação de poder. Por
isso, queremos tratar brevemente de cada uma dessas nuanças para alumiar nossos elementos de
Análise de Discurso Crítica na compreensão dos enunciados estudados na análise.

O silenciamento das vítimas


A situação de silenciamento ocorre em diversos contextos da sociedade. É um fenômeno
que pode ser associado ao apagamento da identidade ou mesmo ser utilizado para reforçar o
poder com relação aos silenciados.
Deborah Cameron, uma das autoras mais citadas com relação a gênero, propõe observar,
como um dos fenômenos mais importantes para a compreensão da situação da mulher na
sociedade, entre três temas, a fala e o silêncio (Cameron, 1998: 1 a 21). Para ela, em seus estudos
de gênero e linguagem, dizer que as mulheres estão em “silêncio” ou “silenciadas” não quer dizer
que elas estão literalmente em silêncio. Não é correspondente com situação de não ter
capacidade de se expressar, de utilizar a linguagem para demonstrar sua impressão de
determinados fenômenos. No particular dos estudos de gênero, podemos afirmar que esse
fenômeno é a hegemonia masculina, conforme se pode perceber em estudos como de Pierre
Bourdieu (2003).
O silenciamento, então, pode ser compreendido como aquilo “que acontece quando as
vozes são abafadas, escondidas” (Xavier, 2008: 43). Isso pode ocorrer em diversos âmbitos da
atividade humana, verificando-se em cerimônias religiosas, na retórica política, no discurso legal,
na ciência ou mesmo na mídia em geral.
O fenômeno ocorre também com os infantes vítimas de abuso sexual. Em família, percebe-
se que cada vez mais é demonstrado que a recorrência dos fatos se dá por falta de abordagem do
assunto na célula familiar. Isso gera na criança o fenômeno do silêncio, deixando de falar sobre o

469
ocorrido por uma série de fatores, como podemos perceber na matéria de Adriana Bernardes
sobre o assunto publicada no Correio Braziliense:

O receio de apanhar, de não ser acreditada e das ameaças dos algozes levam
57,8% das vítimas a conviver com os recorentes episódios. (...) “Essas crianças
demoram muito para se abrir por medo de apanhar, por sentir vergonha de estar
fazendo uma coisa feia. Quando elas falam, sentem-se responsáveis pelo drama
familiar que se instala”. (Bernardes, 2010)

O rompimento desse silenciamento é o que está fazendo vir à tona uma quantidade maior
de casos. Quanto à impunidade ainda reclamada por muitas famílias, e um fato que alude a falhas
na justiça, lamentavelmente, deve-se tratar em outro ambiente, mas, sem dúvida, o assunto urge.
O que se percebe é que isso também pode ser um fator que ainda gere cada vez mais
silenciamento ou um fenômeno do qual ainda não se trata que estou chamando aqui de
ressilenciamento. Em primeira análise, entendo que isso poderia ser a volta ao silêncio daquele
que, estimulado por situações ou instituições diversas, acreditou que sua situação poderia ser
modificada por meio de sua voz, com denúncias, explicações e relatos de fatos encobertos. Ao
perceber a impunidade e a volta da ameaça, o indivíduo pode considerar o fato de calar-se mais
vantajoso para sua integridade física ou para a simples manutenção da sua vida.
Esse processo pode gerar, sem dúvida, uma situação de poder, seja pela identidade da
criança ou adolescente, no sentido de ser alguém sem voz, ou mesmo pela característica daquele
que abusa dessa condição.

O poder na relação entre criança e adulto


O discurso de que a criança deve sempre obedecer gera situações esdrúxulas,
especialmente quando um adulto faz ordenações absurdas ou mesmo comete atos que não estão
corretos. Isso se agrava ainda mais quando esses atos transforma a criança em vítima. Daí,
podemos começar a entender por que a criança, na maioria dos casos, silencia. Desobedecer é
ensinado como errado e contestar a ação de um adulto é desobediência.
Sobre a questão de poder sobre as crianças que os adultos sabem que têm, e as crianças
pouca força conseguem para resistir a isso, pode-se notar no trabalho de Izabel Magalhães ao
investigar a relação entre paciente e médico.
Em seu livro Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico, verifica-se uma total
situação de silêncio da criança em uma consulta. O que pode ser percebido nas suas palavras a
seguir:

470
E as crianças, como é o olhar que lhes dirigem a instituição médica e os pediatras?
Nas consultas pediátricas, fala-se às crianças e, principalmente, sobre as crianças,
mas elas muito pouco falam. (Magalhães, 2000:131)

Mais uma vez percebemos que à criança lhe é negado o direito à fala. Ela não precisa falar.
O poder está com o adulto. Na consulta, além da mãe ou do pai, encontra-se, ali, naquele
momento, alguém que, especificamente nesse assunto – a sua saúde –, tem mais autoridade que
seu responsável, a saber, o médico. A ele cabe a palavra máxima. A ele cabe comandar as tomadas
de turnos na conversa. Sendo assim, como vimos no trecho aludido de Magalhães, a criança fala
pouco.
A tomada de turno pode ser um elemento de clara demonstração de poder. Norman
Fairclough falando sobre esse fenômeno da língua, ao citar a análise etnometodológica da
conversação, afirma que “os sistemas de tomada de turno nem sempre são construídos em torno
de direitos e obrigações iguais para todos os participantes” (Fairclough, 2001:193).
O que gera, então, esse processo? Para Fairclough esses fenômenos ocorrem no discurso
por haverem papéis predefinidos nos indivíduos ao fazerem parte de determinados eventos e
estruturas. Significa dizer que, apesar de as estruturas sociais não serem definidas
especificamente nas sua formas de relação, alguns papéis o são (Fairclough, 2003:23). Isso ocorre
na estrutura familiar com as crianças. O papel delas é sabido por todos como indivíduos que
devem ser cuidados, educados etc. No mesmo caminho, adultos exigem respeito, silêncio e total
não questionamento de seus atos e de suas ordens. Quem nunca ouviu a frase, vinda de algum
adulto, “Faça o que eu digo. Não faça o que eu faço”?
Esse poder exercido sobre a criança também é reflexo de uma entidade recorrente na
sociedade. O poder social, conforme encontramos em Van Dijk (2008), pode ser entendido como
controle, ou seja, “controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros. Tradicionalmente,
controle é definido como controle sobre as ações dos outros” (Van Dijk, 2008: 17).
O controle se dá na estrutura social. Mas, como sugere Fairclough em seu Analysing
Discourse (2008:24), há uma relação entre eventos sociais, prática social e estruturas sociais.
Considerando que o discurso compõe a prática social, o linguista que se debruça sobre a análise de
discurso crítica deve observar que:

(...) quando “fazemos” análise de discurso como análise social, nós nos
envolvemos com estruturas de organização, controle e poder vastamente
complexas, das quais a fala e a escrita públicas podem ser apenas uma de muitas
outras práticas sociais a serem examinadas. (Van Dijk, 2008: 22)

471
Sem dúvida a estrutura familiar é o núcleo da sociedade que ensina, propaga e controla os
seus componentes. As crianças são inseridas nesse contexto para se prepararem para a vida na
sociedade. Por isso mesmo, além da ideia de que um adulto deve cuidar e ser exemplo, portanto,
ensinar; temos o fato de que pais e mães são responsáveis por aquele indivíduo. Isso, além de dar
à criança uma aura de segurança, o que é bom; pode, também, favorecer a ação de criminosos
que disso se aproveitam. Podemos constatar no resultado da observação de um grupo de
pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul a triste afirmação a seguir:

A maioria dos abusos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes ocorre


dentro de casa e são perpretados por pessoas próximas, que desempenham papel
de cuidador destas. Nesses casos, os abusos são denominados intrafamiliares ou
incestuosos. (Habigzang et al, 2005: 341)

É bom salientar que por intermédio da ADC serão verificadas as situações de abuso de
poder comunicativo. E entendemos que não se fala de problema no poder, mas no abuso que se
faz dele. Van Dijk também deixa claro que abuso de poder é o uso ilegítimo do poder (Van Dijk,
2008:28 e 29).

Ferramentas da Análise de Discurso Crítica


A ADC tem sido relacionada à Linguística Crítica já há alguns anos. Seu foco é nos conceitos
centrais de poder, ideologia e crítica. Para cumprir sua tarefa, ela realiza um trabalho
necessariamente transdisciplinar, utilizando-se, especialmente de retórica, linguística textual,
antropologia, filosofia, sociopsicologia, ciência cognitiva, estudos literários e sociolinguísticos, bem
como linguística aplicada e pragmática (Wodak e Meyer, 2009: 1).
Fairclough (trad. 2001) dedica-se à verificação de categorias como identidades, ideologia e
poder (teoria crítica e social do discurso). Dentro delas, procura trabalhar com os problemas
sociais, os obstáculos para sua superação, a prática e empregando a Análise de Discurso
Textualmente Orientada (ADTO) e a Linguística Sistêmico-Funcional.
Fairclough trabalha com categorias de análise, a saber, transitividade e tema, significado
das palavras, criação de palavras e metáfora; buscando no texto controle, tomada de turno,
estruturas de troca, tópicos, formulação, modalidade, polidez. O autor também dedica atenção
especial à intertextualidade, verificando representação de discurso, pressuposição, negação,
metadiscurso e ironia.

472
Para Fairclough, discursos são recursos semióticos utilizados para construir aspectos do
mundo (físico, social ou mental), os quais podem ser geralmente identificados com diferentes
posições ou perspectivas de diferentes grupos de atores sociais (Fairclough, 2009: 163). Ele afirma
que a ideologia tem existência material nas práticas das instituições e que ela também “interpela
os sujeitos”. Por isso, o conceito de hegemonia, relacionado ao poder, está na base das relações
sociais, portanto intrinsecamente ligado a discurso, e ele pode ser relacionado com a ideologia e
com a luta hegemônica.
As práticas sociais fazem parte de um nível em que a relação entre os participantes
acontece. Nesse nível, portanto, ocorre a articulação dos discursos com elementos não
discursivos, nos quais estão inseridos (a) a ação e a interação, (b) as relações sociais, (c) os
indivíduos (crenças, atitudes, histórias etc.), (d) o mundo material, (e) o discurso em si mesmo
(Fairclough, 2003: 25)
Percebendo, então, a proposta de Van Dijk e de Fairclough, consideramos importante, já
que a ADC busca a transdisciplinaridade, encontrar em outros pressupostos teóricos das ciências
sociais uma forma de compreender os discursos que se constroem dentro de determinada prática.

Identidade e modernidade
No sentido de compreender a construção da identidade dos envolvidos em relações
sociais, queremos buscar o trabalho de identidade relacionada às nuanças da modernidade
apresentado por Anthony Giddens (2002).
É bom salientar que o conceito de modernidade, para Giddens, refere-se à utilização do
mundo industrializado, bem como de processos de produção. Além disso, uma marca muito forte
desta particularidade e a mercantilização da força de trabalho e a produção de mercadorias. Isso
gera uma organização diferente nas nações, processos para se aliar, competitividade que gera
guerra baseada em alta tecnologia etc.
Nessa realidade, o indivíduo tem que se organizar externa e internamente, modificando
muito rapidamente seu contexto social, sua compreensão de mundo e sua atuação nele. Por isso,
Giddens afirma que:

A modernidade é uma ordem pós-tradicional em que a pergunta “como devo


viver?” tem tanto que ser respondida em decisões cotidianas sobre como
comportar-se, o que vestir e o que comer – e muitas outras – quanto ser
interpretada no desdobrar temporal da autoidentidade. (Giddens, 2002:20-21)

473
O autor inicia sua obra mostrando o divórcio como exemplo para a constituição do “eu” na
modernidade. O exemplo é o rompimento com um modelo tradicional de funcionamento da
sociedade, a saber, o casamento. Ao romper com essa forma de constituição social, o indivíduo se
depara com uma nova organização de mundo e, com isso, necessita também se reorganizar. Nesse
sentido, Giddens afirma que “ao enfrentar problemas pessoais, os indivíduos ativamente ajudam a
reconstruir o universo da atividade social à sua volta” (Giddens, 2002:18-19).
As relações e os discursos sobre o abuso sexual também vão reorganizar a própria
sociedade pela nova atuação de seus indivíduos. É nesse sentido que queremos observar os
discursos que serão apresentados a seguir.

Uma análise do discurso do abuso sexual a menores


O contato com o mundo dos discursos sobre abuso sexual a crianças e adolescentes não é
nada confortável. Os relatos são verdadeiramente chocantes e trazem, muitas vezes, um
sentimento de revolta.
Particularmente, posso dizer que compartilhei um dos textos que será analisado – a
entrevista com Marcelo Costa de Andrade, transcrita no livro de Ilana Casoy Serial killers: made in
Brazil (Casoy, 2004) – com algumas alunas da Faculdade de Ceilândia (UnB), e uma delas não
suportou continuar a leitura dos relatos de Marcelo sobre suas atividades de abusador e assassino
de meninos até 13 anos. Apesar disso, é necessário que façamos soar alto as vozes daqueles que
são silenciados muitas vezes por processos que em muitas situações não percebemos.
Para cumprirmos uma primeira aproximação com a análise desse tema específico, serão
apresentados dois textos: o primeiro, já citado acima, trata-se de uma entrevista feita pela
pesquisadora Ilana Casoy – escritora especialista na área de crimes aproximada da polícia técnico-
científica, do Instituto Médico Legal e de outros organismos relacionados à investigação criminal –
com Marcelo Costa de Andrade, conhecido como Vampiro de Niterói (Casoy, 2004:258-360).
O outro corpus compõe-se da entrevista concedida pela atriz Claudia Jimenez à repórter
Clara Passi da revista Quem (Passi, 2010). Nessa conversa, temos o relato de alguém que fala
sobre o fato de ter sofrido abuso sexual na infância e suas consequências para a vida adulta.

Marcelo Costa de Andrade, o perfil de um abusador incontrolável


A entrevista concedida pelo chamado Vampiro de Niterói a Ilana Casoy aconteceu, em
setembro de 2003, por concessão do diretor do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico

474
Henrique Roxo, em Niterói, município do Rio de Janeiro, onde se encontrava internado à época (e
pelo que se tem notícia, é onde se encontra ainda hoje).
A história de Marcelo foi contada por ele mesmo e relatada no livro de Ilana (Casoy,
2004:263-268). Marcelo nasceu em 1967, na favela da Rocinha, Rio de Janeiro, e conviveu em uma
família em que o pai bebia muito e foi classificado por ele como uma pessoa nervosa. Quando o
menino tinha 5 anos, os pais se separaram. A partir daí, segue para morar com os avós maternos,
em Sobral, no Ceará. Marcelo relata visões de vultos e audição de vozes desde a infância. Era
chamado de retardado e burro pelos colegas da escola. Relata que ele mesmo tinha vontade de se
internar por seu jeito diferente, contudo, nunca foi examinado ou tomou medicamentos por isso.
Aos 10 anos de idade, sua mãe o buscou para viver com ela de novo. Nessa época a mãe já
vivia com outro homem, o qual apresentou ao menino Marcelo a umbanda e o candomblé, fato
que o impressionou pelas possessões e oferendas às entidades. Nessa época, saía frequentemente
de casa por causa das brigas constantes do casal, passando a ficar grandes períodos na rua,
inclusive dormindo.
Nessa época, passou a ser abusado sexualmente por adultos e a ganhar dinheiro se
prostituindo. Também viajava muito de carona para vários lugares do Brasil, afirmando ter estado
até mesmo em Montevidéu.
Em 1991, já morando em Itaboraí, Rio de Janeiro, com a família – e depois de ter vivido 2
anos com um homem mais velho, o qual era seu amante e decidiu morar de volta na Bahia, de
onde era oriundo –, Marcelo começou sua saga de abusos e assassinatos, que ocorreram na área
da rodovia BR-101 nas imediações de Niterói-RJ. A mãe começou a estranhar seus hábitos quando
mostrava obsessão por fotografias de crianças em revistas e chegava em casa com a roupa suja de
sangue. Além disso, Marcelo colecionava bermudas infantis em uma caixa de isopor, dentro de seu
armário.
Suas vítimas eram basicamente meninos entre 5 e 13 anos, que foram mortos num período
de nove meses. Em sua crueldade, chegou a decapitar um dos garotos; em outra, esmagou a
cabeça da vítima. Ficou famoso como vampiro porque se soube que bebia o sangue de suas
vítimas. Marcelo afirmava que não era vampiro porque bebia o sangue somente para “ficar tão
bonito e puro quanto elas” (Casoy, 2004:266).

a) Elementos coesivos: dissimulação e infância silenciada


No item da coesão, busca-se observar as conexões de períodos e construções da retórica
com esse recurso e suas implicações. As estratégias de referenciais no discurso são importantes

475
para demonstrar os recursos utilizados para que os leitores tenham em mente algo relacionado a
comentários posteriores. As estratégias podem ser marcadas por elipses, conjunções e itens
lexicais específicos, como preposições, pronomes e advérbios (ver Cardoso, 2001:11-18)
Marcelo, em muitos elementos de seu discurso, por meio do recurso coesivo, tenta fugir do
assunto que lhe é perguntado. Isso causa estranheza porque em vários momentos ele relata até
com bastantes detalhes sua violência com os meninos. Por outro lado, ele também demonstra que
lida com crianças que não têm voz, ou seja, suas palavras não são levadas em consideração.
Em um trecho de sua entrevista – são 103 páginas de sofrimento para quem lê (lembro que
uma aluna minha desistiu de ler a entrevista) –, na página 317, ao responder a pergunta da
psicóloga que acompanhava a entrevista “Aí com esse menino, o que veio na hora? O que
aconteceu na hora?”, Marcelo responde:

Não, é que eu vi que não era de prostituição. Se eu chamasse ele pra fazer essas
coisas [sexo] ele não ia querer, né... Aí ele que era todo bonito, né. Aí veio aquela
ânsia forte de fazer sexo, né. Aí eu ofereci dinheiro pra ele pra acender umas velas
pra São Jorge, né. Ia dar um dinheiro pra ele me ajudar a acender vela pra São
Jorge. Aí ele aceitou, né. Aí eu fui lá para um lugar deserto lá com ele, aí era noite,
né? Aí foi que eu vi que ele não tinha ninguém, daí eu agarrei ele à força e fiz sexo
com ele à força. (Casoy, 2004:317)

Creio que esse breve relato, dá uma ideia do que a aluna passou para ter desistido de
continuar o trabalho. Além disso, Ilana sugere para aqueles mais sensíveis “que não leiam a
transcrição da entrevista no que diz respeito aos crimes (...). A crueza dos detalhes pode
impressionar indelevelmente aqueles que lerem o relato de seus crimes” (Casoy, 2004:270). A
pesquisadora tem experiência em entrevistar criminosos, atividade que praticou com o famoso
Chico Picadinho, de São Paulo, e até fez parte da reconstituição do caso Suzane von Richthofen, no
mesmo estado. Contudo, essa entrevista, em particular, deixou-a, literalmente, passando mal.
Notamos que os elementos coesivos no texto de Marcelo são falhos. A marca do “aí”, no
início das orações, em conjunto com o “né?” no fim mostra uma certa individualidade. Como se
cada uma se encerrasse em si própria, dividindo os atos. Dando um rompimento e uma retomada
brusca. Por outro lado, o desencadeamento que esses elementos coesivos dão traz a afirmação de
que ele percebeu que a criança não tinha ninguém. Nesse sentido, não oferecia mais risco para
que fosse descoberto. Assim, seu ato foi consumado pelo fato de perceber que “ele não tinha

476
ninguém”. Era a certeza de que estava lidando com alguém que não poderia exclamar sua
situação, fazer ressoar sua voz.
Marcelo tenta justificar seus atos. Era como se fosse uma bondade. Enviar as crianças para
o céu. Em ligação com esse pensamento, mesmo em um momento anterior na entrevista, ele
afirma o seguinte, no diálogo transcrito:

- Aí depois eu me satisfiz sexualmente com ele, independentemente de tudo, aí eu


tava com um sadismo muito forte na cabeça, aí eu senti mais prazer sexual em
matar ele.
- Ah, não tinha acabado... Você achou que matando ele ia ter mais prazer e fez, é
isso?
- É.
- É aí que você enforcou ele com a camisa?
- É. Com a camisa dele mesmo.
- E aí ele morreu ou não?
- Demorou um pouco e aí morreu.
- Foi nele que você usou a pedra?
- Não, ele não. Eu também não tava me importando que ele tinha morrido... eu
não tava bem da cabeça mesmo... Eu pensava que ele morrendo assim, por ser
menino ainda, ele ia pro céu. Por ser menino ele ia para o céu. (Casoy, 2004:319)

Dois períodos se destacam nesse momento do discurso. Em um, Marcelo aponta a sua falta
de importância com a morte da criança. Fazendo recobrar a falta de sentido de emoção recorrente
em um psicopata. Contudo, o elemento coesivo que fica marcante é sua explicação para a morte
do menino. Por essa situação, ele deveria morrer, porque ainda nessa idade, iria diretamente para
o céu.
Os elementos de referência mostram sempre a identidade dos envolvidos: a criança com a
mais expressiva marca da falta de voz, de acusação, de ameaça. Quanto a Marcelo, mostra-se
sempre tentando sair com a marca de alguém que, por mais que pareça cruel, tem uma atitude de
libertação daquela criança.
Ao falar do segundo garoto abusado, chamado de Pedro na entrevista, ele tenta mostrar
que tem um sentimento, fazendo também a ligação, por meio da afirmação de mandar anjinhos
para o céu.
- Aí veio outro que eu não sei o nome dele, né?
- Você não sabe o nome?
- Eu me esqueci. Mas eu só pegava menino de 6 a 13 anos. Eu tinha medo de fazer
com menino de 13 anos acima, de eles morrerem assassinados e não irem para o
céu. Já tavam pecando, né. Eu pensava assim.
- Ah! Porque com 13 anos não era mais inocente?

477
- Não. Só fazia com menino de 6 a 13 anos. (...) Apesar que de 13 anos pra cima, aí
já era opção, né? Já era predador, né. Aí de vez em quando eu pegava meninos de
13 anos pra cima. (Casoy, 2004:321-322)

A utilização do advérbio reforça ligação dessa criança abusada e morta com aquela enviada
para o céu, bem como desse lugar bom com o mundo ruim, daqueles adultos já predadores e
pecadores. Tirar as crianças deste mundo é salvá-las de momentos ruins. Somente esse tipo de
criança era utilizado em suas aventuras criminosas.
As ocorrências no discurso de Marcelo Costa de Andrade são inúmeras. Esse extrato
somente mostra como a identidade daquele que tenta mostrar sutileza em seus atos ou até
bondade fica patente. Além disso, vê mesmo a criança como um sujeito somente objeto de suas
fantasias mórbidas. Por fim, no tocante ao Vampiro de Niterói, quero deixar as palavras ditas com
tranquilidade (característico de um psicopata) sobre como violentou uma criança.
Pode-se perceber, com isso, a falta de emoção e a crueldade com que o abusador trata o
que para ele é um simples objeto:

- Ele já tava morto?


- Não. Já tava fraco já. Eu peguei no sono, já tinha até bebido o sangue dele todo,
né. Aí eu penetrei meu pênis dentro das nádegas dele, né. Aí depois de algum
tempo eu gozei dentro dele, nas nádegas dele, né. Aí ele nem gritou, que ele já
tava fraco já, né? Aí tava tudo cheio de sangue que eu tinha batido a cabeça dele
não sei quantas vezes no cimento do Ciep, né. Aí resolvi, matei ele enforcado, né.
Com a camisa dele mesmo. Ele morreu, aí quando ele tava morto já, aí passou
mais uma hora e meia, tava tudo escuro lá...
- Você ficou do lado dele?
- Aí eu penetrei meu pênis dentro das nádegas dele, de novo, né, ele já morto já.
Aí gozei de novo, dentro das nádegas dele.
- Nessa uma hora e meia que você ficou lá, que ele já estava morto, o que você
ficou fazendo neste tempo?
- Fiquei lá do lado dele lá.
- Sentado, deitado?
- Fiquei beijando a boca dele assim...
- Deitado?
- É.
- Do lado?
- É.
- Beijando a boca dele e que mais?
- Passando a mão na bunda dele e tudo, nas nádegas dele e tudo. Ele já morto, né?
Aí depois de uma hora e meia que me deu...
- Deu vontade de novo?

478
- É. Penetrei dentro da bunda dele, ele já morto, de novo, aí depois de algum
tempo eu gozei de novo, né. Dentro dele, né. Ele já morto já. Aí, eu gozei já pela
segunda vez, dentro dele, aí eu deixei ele lá e fui embora. (Casoy, 2004:341-342)

Mais uma vez notamos a vota dos elementos coesivos “aí” e “né”. Aqueles que cortam uma
frase e retomam abruptamente. Eles ocorrem em toda a entrevista, especialmente em momentos
de relato dos crimes.

b) A marca da identidade do silenciado em elementos lexicais


Os lexemas carregam consigo marcas de significados específicos. Estão relacionados a um
determinado enunciado, o qual, segundo Bakhtin, fazem sentido dentro de algum campo de
atividade humana (Bakhtin, 2003:261). Sendo assim, os falantes buscarão palavras que fazem
sentido dentro de sua comunidade de fala, bem como para o momento e a situação em que estão
inseridos.
A atriz Claudia Jimenez, na entrevista citada (Passi, 2010), relembra os fatos de sua infância
marcada pelo abuso sexual sofrido por parte de um vizinho próximo à família e de muita confiança
e admiração por parte de seus pais. Suas respostas na entrevista, ainda que breves, mostram, pela
seleção lexical que faz, a marca da criança silenciada. A criança sabedora do seu papel na família e
do descrédito em suas palavras.
Ela fala que se relacionou com mulheres porque teve uma decepção com os homens, que a
rejeitavam na adolescência por ser “muito gorda”. Nesse momento, a repórter pergunta: “Esse
sentimento de rejeição em relação aos homens foi agravado por algum trauma de infância?”.
Claudia então responde:

Sim, sofri abuso quando era menina e morava na Tijuca. Um senhor me bolinava.
Eu era bem nova, tinha 7 anos. Era muito grandona, então, com 7 anos, parecia
mais velha. Ele comprava muitos chocolates e me convidava para entrar na casa
dele. (Passi, 2010:33)

Claudia, nesse momento, começa a explicar o fato e deixa claro que era bem nova,
mostrando a idade que tinha quando o fato ocorreu. É claro para ela, pelo menos agora no
momento do relato, que se tratava de um caso de abuso a uma criança.
Em seguida, a pergunta da jornalista coloca clara a situação da voz da criança. Ela pergunta
se Claudia contou a seus pais. Com isso, ela diz:

Não tive coragem de contar a meu pai, porque ele respeitava muito esse homem.
Depois que meu pai morreu, quando eu tinha 18 anos, contei a minha mãe e

479
minhas irmãs. Foi um choque para todo mundo. O fato de esse cara ter feito isso
comigo atrasou muito o meu lado. Graças a Deus, ele já morreu, porque, se fosse
vivo, eu seria capaz de processá-lo. (Passi, idem, ibidem)

É a falta de coragem que vem em contraponto ao respeito que o pai nutria pelo vizinho
pedófilo. Essa falta de coragem caracteriza a criança e é moldada pela identidade que se cria dela
na sociedade. O papel que ela tem e o seu silenciamento vêm dessa maneira que o seu meio social
a concebe. E isso também é transferido para a criança, reconhecidamente por Claudia, em suas
palavras, já na fase adulta. Hoje, segundo ela mesma diz, teria coragem de tomar alguma atitude:
processá-lo. Mas uma atitude de adulto. Uma palavra que está no universo adulto. Um evento que
não faz parte do contexto infantil. Na infância, ela deveria ter firmeza, até mesmo outorgada pela
atitude de seus pais, para contar com eles na partilha desse fato.
Por fim, Claudia aconselha os pais com relação à proteção de seus filhos de pedófilos:

Os pais precisam tomar muito cuidado. Nunca devem deixar os filhos frequentar
sozinhos a casa de outras pessoas, por mais respeitáveis que pareçam. É tudo
muito perigoso e doloroso. A pedofilia é grave, é preciso que se fale dela e que ela
passe a ser considerada um crime hediondo, para que a punição aos pedófilos seja
mais severa. (Passi, idem, ibidem)

Já na fase adulta, Claudia mostra, com palavras marcantes em seu discurso, o que
considerou na atitude de seus pais com relação ao que lhe ocorreu. Houve falta de cuidado,
especialmente por a deixarem sozinha.
Nas palavras de uma pessoa que passou por abuso, que percebeu o que é ter uma
identidade à qual não se dá crédito, portanto seu silenciamento é percebido, é notável que a
criança precisa de um cuidado por parte do adulto. Os pais e mães devem estar atentos para o
ambiente da criança, para aqueles e aquelas com os quais se relacionam. O pior é que nesse
contexto de respeito ao adulto (os por mais respeitáveis que pareçam), de se entregar a essa
confiança do cuidado, muitas vezes a criança é alvo vulnerável ao ataque de pedófilos, por vezes,
seguidamente fazendo a mesma coisa, aproveitando-se daquilo que é tratado como um objeto de
seus desejos, involucrando seus segredos mais obscuros.

Conclusão
A necessidade de dar voz a essas vítimas se faz cada vez mais evidente. Para que isso seja
possível, devemos superar nossa ojeriza de falar sobre violência. Até mesmo simplesmente ouvir
sobre violência causa repulsa na sociedade. Essa situação realmente não agrada a ninguém.

480
Contudo, negar o fato porque ele causa aversão também acaba por reforçar o silenciamento que
percebemos nas vítimas. Fato que é mais agravado nas crianças porque já têm uma identidade
marcada pelo apagamento. Por isso, a tarefa do analista de discurso deve ser, primeiramente,
investigar as vozes que não são ouvidas ou abafadas pela sociedade, mesmo se isso nos incomode
profundamente, como nos fala Van Dijk:

Em vez de negar ou de ignorar as relações entre trabalho acadêmico e a


sociedade, os analistas críticos propõem que tais relações sejam estudadas e
levadas em consideração, e que as práticas acadêmicas se baseiem nessas
observações. A elaboração de teoria, a descrição e a explicação, também em
análise de discurso, estão “situadas” sociopoliticamente, tanto se nos agrada ou
não. A reflexão sobre seu papel na sociedade e na vida política se converte, assim,
em constituinte essencial do trabalho analítico do discurso. (Van Dijk, 1999:23)

Fica a pista para a investigação mais aprofundada e teórica do fenômeno do


ressilenciamento. O que ocorre quando a tentativa de soerguer a voz é frustrada pelas
autoridades, pelos mecanismos de poder que se encontram no ambiente social do falante ou pela
sociedade em geral, produzindo um indivíduo que agora já não exerce sua própria voz por
experiência decepcionada.
É importante salientar, também, que há mais que fazer que simplesmente cuidar das
crianças ameaçadas. As situações em que os pais e mães necessitam observar seus filhos, ter
“cuidado” e não os deixar “sozinhos”, como salientou a atriz Claudia Jimenez, são muitas. Afinal, é
consenso que os menores não têm ainda noção do mundo e seus perigos. Dessa forma, pais, mães
e responsáveis devem estar atentos aos passos daqueles a quem devem cuidar. Isso todos já
sabemos. Mas, o mais que fazer deve ser parte ativa do Estado. Há muitos pedófilos psicopatas
entre nós. O pior é que muitos se apresentam de forma respeitosa, adquirindo a confiança de pais,
mães e responsáveis. Nessas situações, é muito mais arriscada a posição da criança quando seus
cuidadores perdem a noção do perigo.
Os estudos do funcionamento do cérebro humano dão conta da falha na resposta emotiva
de alguns indivíduos. Sendo assim, é um problema que foge à alçada do convívio social. Não basta
que seja inserido na sociedade, que aprenda em cuidado, carinho e amor ou mesmo em
assistência pedagógica ou psicológica séria a respeitar seus próximos. Como diz Eduardo Szklarz à
revista Superinteressante, o psicopata “comete o crime porque acha mais estimulante exercer o
poder sobre as pessoas por meio do abuso que do mérito. Ele não é moldado somente pelo
ambiente social, mas, sim, pela incapacidade de se prender a normas sociais” (Szklarz, 2010:13),

481
como pudemos perceber nas próprias palavras relatadas por Marcelo Andrade, com a frieza
característica de um psicopata.
Por fim, a identidade estabelecida pela sociedade à criança traz a imagem de sua voz
silenciada. É incentivador para os que buscam ambiente seguro para satisfazer sua necessidade
sádica. O discurso aponta a prática que ainda ocorre. Mesmo no silêncio, reside esse discurso.
Nesses casos, ele fala alto. Até que chegue a reação, como no caso do discurso da atriz, já não se é
mais criança. Urge que o Estado tome uma posição séria com relação aos que são diagnosticados
com transtorno psicótico, bem como as famílias – mesmo sem desenvolverem uma esquizofrenia
sobre o assunto – devem cuidar de seus pequenos e não os deixarem sozinhos.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

BERNARDES, Adriana. Primeiro o medo, depois a impunidade. Correio Braziliense, Brasília, p. 25,
16 maio 2010.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. M. H. Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Lei n. 8.242,
de 12 de outubro de 1991. – 3. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de
Publicações, 2001.

CAMERON, Deborah. (Ed.) The feminist critique of language (2ª ed.). Londres / Nova York:
Routledge, 1998.

CANNIBAL CORPSE, Necropedophile. Intérprete Cannibal Corpse. In: CANNIBAL CORPSE. Tomb of
the mutilated. Metal Blade Records, EUA, 1992. 1 CD. Faixa 5.

CARDOSO, João Batista. Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto. Brasília:
Edunb / São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Org., revisão da trad. e prefácio à ed. bras.
Izabel Magalhães. Brasília: Editora UnB, 2001.

______. Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003.

______. A dialectical-relational approach to critical discourse analysis in social research. In:


WODAK & MEYER (Ed.). Methods of Critical Discourse Analysis. 2ª ed. Londres: Sage, 2009. p.
162-186.

482
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002.

HABIGZANG, Luísa F.; KOLLER, Sílvia H.; AZEVEDO, Gabriela Azen & MACHADO, Paula Xavier. Abuso
sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Em: Psicologia:
teoria e pesquisa, Vol. 21: nº 3. Brasília: Instituto de Psicologia, UnB, 2005. p. 341 a 348.

MAGALHÃES, Izabel. Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília: Thesaurus,


2000.

MARQUES, Marina. Promotora alertou juiz sob (sic) o perfil psicopata do assassino de Luziânia.
Clicabrasilia.com.br, s.l., 13 abril 2010. Disponível em:
<http://www.jornaldebrasilia.com.br/site/noticia.php?id=276505>. Acesso em: 22 abril 2010.

PASSI, Clara. “Sofri abuso quando era menina”. Quem, São Paulo, p. 30 a 34. 26 março 2010.

SARTORELLI, André. Pedofilia deve ser vista como transtorno mental. R7 Notícias, s.l., 18 maio
2010. Disponível em: < http://noticias.r7.com/saude/noticias/pedofilia-deve-ser-vista-como-
transtorno-mental-20100518.html>. Acesso em: 18 maio 2010.

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro: Objetiva,
2008.

SZKLARZ, Eduardo. “Máquinas do crime”. Superinteressante. São Paulo, p. 12 e 13. Edição 2-A,
2010.

VAN DIJK, Teun A. El análisis crítico del discurso. In: Anthropos. Barcelona, n. 186, p. 23-36,
set/out. 1999.

______. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008.

WODAK, Ruth & MEYER, Michael. Critical Discourse Analysis: history, agenda, theory and
methodology. In: WODAK & MEYER (Ed.). Methods of Critical Discourse Analysis. 2ª ed. Londres:
Sage, 2009. p. 1-33.

XAVIER, Sandro. As vozes de mulheres profissionais do sexo sobre a legalização do seu trabalho:
discurso e gênero. Dissertação (mestrado em Linguística). Departamento de Linguística, Português
e Línguas Clássicas da Universidade de Brasília, 2008.

483
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE

Tatiana R. N. Dias (Universidade de Brasília)

A figura feminina ganha destaque, pois, por meio de questionamentos a respeito das diferenças
com ênfase na busca por uma eqüidade social, houve mudanças sociais que atentaram para o fato
da disparidade entre os gêneros sociais. Mas, ainda se evidenciam, e em muitos casos passam-se
despercebidas, ações que contribuem para uma visão da figura feminina submissa impedindo-a de
obter acesso social. A Análise de Discurso busca evidenciar e questionar lingüisticamente
problemas sociais e, no caso de gênero, um fator importante se revela ao tratarmos das
representações feitas, porque, por meio de tais representações, identidades são moldadas,
contribuindo para um senso comum que pode contribuir para indicar questões relacionadas a
poder e a manutenção de determinados comportamentos relacionados à violência. A análise teve
como suporte teórico-metodológico a Análise de Discurso Crítica (ADC), seguindo a proposta de
Fairclough (trad. 2001), Chouliaraki & Fairclough (1999) e Fairclough (2003), que considera
aspectos de mudança social, que pode ser analisado no presente trabalho, com a implantação da
Lei nº 11.340, Lei Maria da Penha, que desencadeou reflexões a cerca do problema já explicitado.

Palavras-chave: Violência Doméstica, Gênero Social e Análise de Discurso Crítica (ADC).

Análise de Discurso Crítica


Originado em debates nos anos oitenta, na Universidade de Lancaster, o termo ‘Análise de
Discurso Crítica’, vem, desde então, sendo empregado por alguns teóricos que procuram elucidar
problemas sociais por meio da análise lingüística e de teorias sociais.
A lingüística se dividiu em áreas que seguem preceitos que remetem ao campo do formal
ou do contextual. Pensando nas relações entre texto e os conceitos de ideologia e poder, surge na
Universidade de East Anglia, na década de 1970, a ‘Lingüística Crítica’ que, segundo Fowler (trad.
2004), surge como uma ‘lingüística instrumental’ e que possuí como pressupostos a crítica
marxista contemporânea, o pós-estruturalismo e o desconstrucionismo.
Na década de 1980, surge a ADC como forma de desenvolvimento da perspectiva crítica da
linguagem. Teóricos como Fairclough, Wodak e van Dijk propuseram-se a investigar os aspectos
dos textos que se relacionavam com questões de poder e de ideologia.
Segundo Wodak (2006), os termos Lingüística Crítica e ADC são usados como sinônimos
atualmente, mas a ADC percebe a linguagem como “prática social” e observa as relações entre
linguagem e poder. Os analistas de discurso percebem aspectos sociais, “consideram a unidade
mais ampla do texto como unidade comunicativa básica”, por isso estas pesquisas se voltam para

484
“os discursos institucional, político, de gênero social, e de mídia (no sentido mais amplo) que
materializam as relações mais ou menos explícitas de luta e conflito”.
Segundo Magalhães (2004: 120), a ADC pode ser considerada uma continuação da
Lingüística Crítica, mas não se pode reduzir aquela a esta, pois a ADC “tem se dedicado à análise
de textos, eventos discursivos e práticas sociais no contexto sócio-histórico”. A Lingüística Crítica
“desenvolveu um método para analisar um pequeno corpus textual, a ADC oferece uma
contribuição significativa da lingüística para debater questões da vida social contemporânea”.

Discurso na Análise de Discurso Crítica


O aspecto central de investigação para ADC é o discurso, que é visto como elemento de
análise das interações sociais. Segundo Fairclough e Wodak (1999: 367), a ADC “interpreta o
discurso – o uso da linguagem em fala e em escrita – como uma forma de ‘prática social’”1.
A definição de discurso como aspecto da linguagem que envolve questões de poder
perpassa toda a teoria da ADC, mas a relação do discurso com outros elementos faz a diferença
entre as concepções teóricas apresentadas pela área.
O presente artigo explicita estudo realizado em 2007 com mulheres vítimas de violência
submetidas ao programa Casa Abrigo2 como dissertação de mestrado (Dias, 2007), tendo entre os
objetivos, investigar as identidades das mulheres vítimas de violência doméstica, bem como a
representação das mesmas de seus agressores.
Para explicitar os pressupostos assumidos na pesquisa, o conceito de discurso e suas
relações com a prática social teve como base a teoria proposta por Fairclough (trad. 2001, 2003) e
Chouliaraki e Fairclough (1999). Para os referidos autores, o discurso faz parte de uma rede de
práticas sociais, pois não se pode pensar em língua e fala sem considerar aspectos sociais já que,
segundo Fairclough (trad. 2001: 91) “o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no
sentido mais amplo e em todos os níveis”.
O estudo não pôde deixar de considerar o aspecto das práticas sociais em que as mulheres
estão inseridas, uma vez que as identidades são moldadas por discursos sociais que as situam em
determinadas posições. No caso de violência doméstica, em que temos uma visão cultural e social
do papel da figura feminina em seu contexto familiar, as identidades são constituídas tendo por
base determinadas posições e atitudes relacionadas ao gênero social.

1
Minha tradução para “...ADC interpreta el discurso – el uso del lenguaje en el habla y en la escritura – como una
forma de ‘práctica social’”.
2
Programa governamental em que estão inseridas mulheres, adolescentes e crianças vítimas de violência doméstica
que estão sob ameaça de morte.

485
Discurso, ideologia e poder
Fairclough (trad. 2001: 117) apresenta a definição de ideologia como sendo:

significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as


identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das
formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a
reprodução ou transformação das relações de dominação.

Em relação à questão de relações de dominação, Fairclough apresenta a visão de Althusser


que liga ideologia à questão de poder unilateral, não neutra, em que todos os discursos3 seriam
uma forma de impor uma ideologia dominante. Porém, a visão proposta por Fairclough é a de que
os discursos podem ser ideológicos ou não, pois um discurso particular pode ‘reproduzir’ uma
ideologia dominante, existindo uma resistência que se configura em uma ‘luta’, podendo produzir
uma ‘transformação’.
Fairclough (trad. 2001a) observa e contesta determinados aspectos da teoria
Althusseriana. A proposta de ideologia, considerando o aspecto de ‘transformação’, foi baseada
em trabalhos de Thompson (1995), que apresenta a ideologia como não sendo neutra, ligada a
aspectos simbólicos, que podem ser ideológicos se relacionados à manutenção do poder,
constituindo a representação de uma hegemonia.
Ao refletir acerca da proposta de Thompson (1995), Caetano (2004: 21) observa:

O sentido é construído e transmitido pelas formas simbólicas e, em condições


particulares, pode reproduzir a ordem social. De inúmeras maneiras, o sentido é
mobilizado a serviço de indivíduos e grupos dominantes, estabelecendo e
mantendo relações sociais estruturadas, as quais geram maior benefício para
alguns e despertam o interesse de uns em preservá-las e outros em contentá-las.

Nesse sentido, posso fazer uma relação entre ideologia e elementos da prática social.
Tendo por base a questão de estrutura, evento e prática social, Fairclough (trad. 2001a) enfatiza
que não podemos fazer uma análise de questões ideológicas observando apenas o aspecto da
estrutura social ou do evento, deve-se observar a relação entre os elementos sociais,
considerando as possibilidades de ‘transformação’. Ao analisar questões simbólicas, posso fazer
uma reflexão a respeito de questões que envolvem poder, ideologia e hegemonia.

3
Discursos como forma de representações sociais mais concretas, como discurso religioso, discurso familiar etc.

486
Observo que os discursos ideológicos podem contribuir para a formação de uma
hegemonia, que, segundo Fairclough (trad. 2001: 122), seria uma “liderança tanto quanto
dominação nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade”, constituído
por um ‘equilíbrio instável’. A ideologia, desta forma, passa pelo discurso, na medida em que o
mesmo faz parte da prática social e constitui uma ‘ordem de discurso’ 4 contribuindo para que
perpasse relações ideológicas e se construa uma hegemonia.
O autor afirma ainda que “pode-se considerar uma ordem de discurso como a faceta
discursiva do equilíbrio contraditório e instável que constitui uma hegemonia, e a articulação e a
rearticulação de ordens de discurso são, consequentemente, um marco delimitador na luta
hegemônica” (Fairclough, trad. 2001: 123).
Lima (2007: 27) considera que o poder, para Fairclough, se caracteriza “pela hegemonia
que, juntamente com a luta hegemônica, são formadas nas práticas discursivas das instituições e
das organizações, pelo menos em grande medida”. Nesse sentido, a autora observa que, para
Fairclough, não há poder sem resistência, o que pode ser percebido nas práticas discursivas. Dessa
forma, estabelece-se a relação entre poder, ideologia e hegemonia, na medida em que as
ideologias podem servir como mecanismos para manutenção de posições hegemônicas, mas
existindo uma resistência pode-se considerar a existência de um poder que está sendo
contestado.
Nas relações de violência contra mulher, encontro um poder desempenhado pelo homem
que é estabelecido nas relações de gênero social. A sua posição hegemônica passa pelo discurso e
remete a determinadas ideologias que estão presentes e divulgadas em organizações, sendo
contestada por uma resistência feminista que busca uma nova estrutura de poder. Nesse sentido,
cabe uma reflexão acerca da construção das identidades considerando a questão de gênero social,
uma vez que o mesmo está ligado a questões ideológicas, hegemônicas e de poder.

A questão das identidades: gênero social


Segundo Holland et al. (1998), identidade é um conceito que envolve várias teorias
propostas por áreas das ciências sociais como a psicologia social, a antropologia, a sociologia e os
estudos culturais. A identidade combina o mundo pessoal relacionado ao espaço coletivo, mas
verifica-se que, no cerne da questão identitária, estão as representações, identificações e ações.

4
Entendendo por ‘ordem de discurso’ as relações de aspectos do discurso e de uma ‘ordem social’.

487
Holland et al. (1998) afirmam que “as pessoas dizem aos outros quem são, mas ainda mais
importante que isso, elas dizem a si mesmas e tentam agir como se fossem quem dizem que são”5.
Benwell e Stokoe (2006: 19) discutem acerca da história do conceito de identidade,
indicando que o termo advém dos tempos clássicos da filosofia, mas que, após o Iluminismo (no
qual as ciências centram-se novamente na figura humana) é estabelecido o conceito de agência
humana6. A partir desse momento histórico surgem duas correntes de pensamento: uma baseada
em Descarte, associada ao racionalismo, em que há uma relação com cognição; e outra baseada
em Locke, que se dá ênfase a capacidade reflexiva, isolando aspectos de experiência subjetiva. Por
meio das duas correntes, origina-se o conceito de identidade como instrumento de ‘projeção do
eu’.
As autoras seguem o percurso histórico indicando as influências do Romantismo, com a
noção de que a pessoa seria dona de seu próprio destino, prevalecendo a visão de identidade
como ‘projeção do eu’. Mais tarde surge a influência da psicanálise, tendo como expoente Freud,
que focaliza a subjetividade, dando ênfase aos processos de socialização familiar e o impacto da
psique nos aspectos sociais.
As idéias de Freud, segundo Benwell e Stokoe (2006: 20), têm sido ‘entusiasmadamente’
defendidas por várias disciplinas, observando ainda que alguns analistas de discurso combinam as
idéias freudianas a conceitos de sua teoria. Também é explicitada a teoria de Lacan para indicar
outra corrente que trabalha com identidade por meio da psicanálise.
Apesar disso, as autoras observam que outros teóricos consideram a Análise de Discurso
por meio da psicanálise um equívoco, pois, seguindo uma leitura foucaultiana, a psicanálise seria
“um regime discursivo de reprodução de seus próprios significados” 7 (Benwell e Stokoe, 2006: 21).
As mesmas autoras, ainda apresentam como corrente histórica a pós-modernidade e sua
influência nas identidades. Alguns autores analisam o período e trazem conceitos significativos,
dentre eles Giddens (trad. 1993, 1991), que apresenta o conceito de modernidade tardia 8 em que
considera que a sociedade atual apresenta características que conservam aspectos da
modernidade, tais características influem diretamente nas identidades, tanto coletivas quanto
individuais.

5
Minha tradução para “People tell others who they are, but even more important, they tell themselves and then try
to act as though they are who they say they are”.
6
Indivíduo promovendo uma ação social.
7
Minha tradução para: “(...) a discursive regime that reproduces its own meanings.”
8
Diante de uma discussão acerca do termo empregado para denominar os dias atuais, Giddens questiona o conceito
de pós-modernidade e propõe o conceito de modernidade tardia.

488
Por meio do referido contexto histórico, a identidade apresenta relação com o contexto
social. Por meio das interações sociais surgem as identidades, como representação e identificação
de determinados aspectos que podem ser culturais e sociais. Seguindo esse princípio surge uma
corrente denominada ‘corrente de estudos culturais’9, na qual se inserem Hall (trad. 2006), Silva
(2000) e Woodward (2000), que consideram a identidade relacional, em que a diferença é
estabelecida por meio de uma marcação simbólica, não deixando de envolver condições materiais
e sociais, e o nível psíquico, observando que as identidades não podem ser unificadas.
Giddens (1991) apresenta uma concepção de identidade vinculada a características da
‘modernidade tardia’. Uma das características básicas desse período é a ‘reflexividade’, que
contribui para o conceito de ‘agência’ quando falamos em identidades particulares10. Para o autor
existem algumas características da ‘modernidade tardia’ que são encontradas em nossa
sociedade, como a separação de espaço/tempo; os mecanismos desencaixados, observando a
questão global e local; e a reflexividade institucional.
A noção de ‘reflexividade’ propicia a noção de ‘identidades híbridas’, que seria outra
característica da ‘modernidade tardia’, pois as pessoas estariam desempenhando diversos papéis
e construindo diversas formas de representação na medida em que o conceito de ‘reflexividade’
denota a capacidade de escolha dos indivíduos, e as múltiplas opções que são apresentadas ao
mesmo. Por exemplo, a figura feminina não assume uma identidade social única, ela pode ser
mãe, advogada, motorista, cozinheira, mecânica etc, constituindo uma identidade híbrida.
Holland et al. (1998: 7) indicam que identidade e agência se diferem em duas perspectivas:
uma primeira seria antropológica e relacionada a alguns estudos culturais, que pensa em
identidade ligada a estruturas sociais como gênero, raça, nacionalidade. Outra visão seria a dos
próprios pesquisadores que pensam em identidades particulares relacionadas a ‘mundos’
particularmente constituídos, como o namoro, a insanidade mental e seu tratamento, as relações
domésticas etc. Pelo exposto, percebo que há uma diversidade de pensamentos a respeito do que
seria identidade. Holland et al. (1998) indicam duas divisões nas teorizações sobre a identidade, a
primeira com uma tendência cultural e social e a segunda que teria por base uma visão subjetiva.
Na presente pesquisa, as análises das identidades têm por base duas definições:
‘identidades pessoais’ e ‘identidades coletivas’. Esses dois tipos de identidades estão
interconectadas, pois, considerando o aspecto particular, as identidades são compostas de
múltiplas representações sociais, conforme observa Giddens (1991). Estamos inseridos em uma

9
Corrente que considera aspectos históricos e culturais como influenciadores de identidades.
10
Para o autor estamos situados em uma ‘modernidade tardia’ que apresenta características próprias.

489
modernidade tardia em que há a possibilidade de uma pessoa exercer diversos papéis sociais 11,
constituindo-se assim com uma multiplicidade de formas de ser representado e de se representar
como ator social.
Mas, determinados aspectos dos papéis desempenhados socialmente podem fazer com
que as pessoas insiram-se em determinadas ‘identidades coletivas’. Conforme argumenta Castells
(trad. 2006: 23) “(...) quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída,
são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como seu
significado para aqueles que com ela se identificam ou delas se excluem”.
Pensando em ‘identidade pessoal’ e ‘identidade coletiva’, tem-se a ‘identidade pessoal’
construída por elementos culturais e sociais que podem ser traduzidos em determinadas
‘identidades coletivas’ e, por meio de determinadas reapresentações pessoais, pode-se ter
determinada agência12 produzida pelo sujeito.
No caso do estudo apresentado, as identidades das mulheres inseridas no programa Casa
Abrigo são influenciadas por uma ‘identidade coletiva’ maior que é a ‘identidade de gênero’, na
qual as figuras femininas assumem determinados comportamentos por inserirem-se em um
determinado gênero social, contribuindo para uma representação e identificação de suas posições
como atoras13 e dos outros atores sociais que estão em interação com as mesmas.
Para a análise da identidade de gênero social, optei pelo modelo proposto por Castells
(trad. 2006: 24), que afirma que a construção das identidades é marcada pelas relações de poder e
que por isso surge como proposta três formas de construção das mesmas, a saber:
1) Identidade legitimadora: corresponde a uma identidade detentora de poder,
“introduzida pelas instituições dominantes nas sociedades no intuito de expandir e
racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais”;
2) Identidade de resistência: associada a uma identidade em posição desfavorecida
“criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou
estigmatizadas pela lógica da dominação”
3) Identidade de projeto: corresponde a uma identidade que se encontrava em posição de
resistência, mas conseguiu alguns meios de confrontar as ideologias impostas pela
hegemonia, ainda não conseguindo assumir uma posição de identidade legitimadora.

11
Conceito baseado em Castells (trad. 2006) que define identidades organizando significados e papéis organizando
funções. Assim, os papéis sociais se relacionam às funções que são desempenhadas pelos indivíduos.
12
Entendendo agência como ação, ‘capacidade de agir socialmente’, conceito utilizado por Barker e Galasinski (2003:
46), que pode ser de resistência ou de legitimação de determinado discurso hegemônico.
13
Sentindo empregado como de quem pratica determinada ação social. Produtora de uma agência, observando a
característica de sujeito (Holland et all., 1998).

490
Castells (idem, ibidem) considera que os sujeitos sociais também podem suas identidades
dentro da sociedade, não existindo um lugar fixo das mesmas. Segundo esse autor o caso do
feminismo enquadra-se na definição de identidades de projeto, retomando a questão de gênero
social e considerando a existência de um discurso hegemônico patriarcal.
No caso da violência doméstica, está presente a questão do gênero social, uma vez que as
‘identidades pessoais’ têm como forma de representação as ‘identidades coletivas’. Silva (2000)
aponta que as identidades passam por um processo de semelhança e diferença. As pessoas
moldam sua identidade por meio de uma dualidade. Na questão de gênero teríamos as
identidades femininas sendo moldadas pelas semelhanças e diferenças relacionadas à figura
masculina, já que existe uma relação de poder entre homens e mulheres.
Sobre esse mesmo tema, Azerêdo (2007: 118) traz a questão de gênero social, revelando
que “gênero é um verbo no gerúndio, produzindo seres sexuados performaticamente, através de
normas constantemente reiteradas”, e observa que “a dicotomia que separa gênero como sendo
meramente cultural, apoiado no sexo, meramente biológico, é um erro, pois apenas substitui uma
denominação por outra, perdendo o elemento performático de produção de sujeitos
generificados”. A presente pesquisa adota a divisão do gênero social associado ao biológico por
ser mais específica e ter por finalidade a análise de identidades considerando o aspecto ligado ao
fator biológico, o fato de serem mulheres que estão em uma situação de submissão por questões
culturais. Mas deve-se considerar que, quando se fala de gênero social, o conceito não pode ser
reduzido à questão biológica, ligando-se aos aspectos ‘performático’ que os gêneros possam
assumir.
Castells (trad. 2006) faz a distinção das três classificações já apresentadas, relacionadas às
‘identidades coletivas’. Na questão do gênero social que envolve poder, tem-se o homem como
identidade legitimadora que utiliza um discurso hegemônico e a mulher em uma posição de
identidade de resistência, mas, que por fatores históricos, consegue assumir uma identidade de
projeto.
Ao considerar a intervenção de aspectos culturais em relação à identidade e ao gênero
social, percebo que se pode fazer um paralelo de análise entre identidade e ADC, já que a ADC
possui como foco a relação entre linguagem e sociedade.

491
Identidade de gênero e Análise de Discurso Crítica
Magalhães (2005: 185), refletindo a respeito do proposto por Hasan da relação entre
identidade e linguagem, afirma que, se seguirmos as reflexões propostas, as “identidades são
constituídas em uma relação dialética entre discurso e outros elementos da prática social” 14.
Tendo por base que as identidades femininas passam pelo processo de identificação
coletiva, constituindo uma ‘identidade coletiva’, a análise crítica da questão de poder centrado na
figura masculina pode servir de indicativo para verificar se vem ocorrendo ou não uma mudança
social relacionada a questões de gênero. Por meio da análise da intertextualidade e de outros
elementos presentes na teoria fairclougheana pode-se delimitar o fenômeno de transformação
societária.
A questão de gênero social relacionado à identidade pode ser observada sob dois prismas:
um primeiro, considerando que as identidades são construídas por meio de oposições, e um
segundo, em que se determina o aspecto híbrido das mesmas, conforme explicitado
anteriormente. A presente pesquisa tem como premissa que a questão da ‘identidade coletiva’
relacionada ao gênero apresenta-se como forma de oposição, mas que os indivíduos pertencentes
a cada gênero podem assumir diversos papéis sociais e possuir na sua ‘identidade pessoal’ híbrida
diversas ‘identidades coletivas’.
Dentro da questão de gênero observo uma hegemonia masculina que vem sendo
questionada, principalmente após o surgimento dos movimentos feministas. A questão de
ideologia veiculada pelo discurso torna-se um elo entre as pesquisas que envolvem identidade de
gênero e ADC.
Lazar (2005) faz uma discussão a respeito das questões de gênero e ADC, indicando a
instituição de uma Análise de Discurso Crítica feminista, constatando que existe o debate em
outras teorias como a estilística feminista, pragmática feminista e análise da conversação
feminista. Azerêdo (2007) faz uma reflexão a respeito do preconceito contra a mulher e ressalta o
fato da identidade ser moldada por questões culturais baseadas na oposição e dicotomia
homem/mulher.
As identidades passam pelo processo de representação e de agência, que podem ser
desempenhadas por diversas formas, inclusive por discursos. Por meio da análise discursiva,
observo elementos de interação entre as pessoas situadas em determinado contexto social. Dessa
forma, podem-se analisar as representações que as pessoas fazem de si mesmas, as

14
Minha tradução para : “Such an identity is constituted in a dialectical relation between discourse and other
dimensions of social life.”

492
representações que fazem de outras pessoas e as formas de agência observáveis em seus
discursos.
Na presente análise, a forma de representação estabelecida nos relatos de mulheres
vítimas de violência torna-se significativa, pois com a teoria proposta pela ADC podem-se
investigar questões identitárias por meio dos significados dos discursos, considerando que cada
significado contribui para uma forma de análise de aspectos identitários, conforme o proposto
pelo quadro a seguir:
Quadro 1 – ADC e identidades

ADC (SIGNIFICADOS DO DISCURSO) IDENTIDADE

Significado acional Reflexo de outros discursos na construção de


(discurso como gênero discursivo) identidades

Significado representacional Como se configuram outras identidades por meio


(discurso como representação) do discurso

Significado identificacional
Análise identitária específica
(discurso como estilo)

Percebo que os aspectos identitários podem ser encontrados nos outros significados do
discurso, pois as identidades nascem das interações sociais. Fairclough (2003: 159) considera que
as identidades podem ser analisadas referindo-se ao aspecto identificacional, quando se observa o
discurso como estilo, pois se têm como identificar características específicas das identidades.
No aspecto acional, pode-se perceber o caráter da influência do discurso nas identidades,
ao considerar os impactos dos gêneros discursivos como moldadores de determinados
comportamentos e ações, conseqüentemente, identidades. Também, ao observar o aspecto
representacional, analiso o ato de representação por meio do discurso, podendo inferir uma
espécie de agência, na medida em que o discurso como forma de representação interfere na
maneira de identificação de outras identidades e de nossas próprias, influenciando a maneira de
ação pessoal.

493
Análise das identidades

As análises dos três significados propostos por Fairclough são primordiais para que se
possam constatar as representações identitárias, uma vez que as mesmas constituem-se como
formas de representação e identificação do outro e de nós mesmos. Por meio dos significados,
pode-se analisar como as mulheres vítimas de violência representam (significado
representacional), julgam (significado identificacional) e agem (significado acional) por meio de
seus discursos, demonstrando aspectos significativos de suas identidades. Considerarei o proposto
pela ADC, de que as identidades são moldadas e constituídas por meio de relações discursivas
(sociais) na dialética do discurso (Fairclough, 2001; apud Magalhães, 2004).
Será observada, ainda, a classificação de identidades proposta por Castells (trad. 2006: 24):
identidade legitimadora, que é introduzida por instituições dominantes a fim de legitimar sua
dominação; identidade de resistência, que é desenvolvida por atores em oposição aos que detêm
o poder, estando em uma situação não favorecida; e identidade de projeto, que é construída
quando os atores sociais buscam redefinir sua posição na sociedade, constituindo recurso para
mudança social. Passarei à reflexão a respeito das identidades já mencionadas, bem como a
influência da lei nas mesmas.
As identidades das mulheres vítimas de violência
As mulheres vítimas de violência física passam por processo de auto-depreciação, após
uma série de ciclos de violência. A violência doméstica é composta de um ciclo com três fases: a
fase de tensão, onde se originam as primeiras discussões, que acumuladas passam à fase da
agressão, em que ocorrem os espancamentos, seguida da fase de reconciliação ou fase lua-de-
mel, em que há o arrependimento e as desculpas. Porém, mais tarde, recomeça um novo ciclo.
As mulheres que estão submetidas ao ciclo vicioso da agressão não possuem uma
identidade de projeto, que deveria existir, uma vez que se enquadram no gênero social feminino
que conquistou a referida identidade por meio de movimentos feminista. As mulheres vítimas de
violência não conseguem visualizar a identidade do agressor e submetem-se a uma identidade
legitimadora, em que a forma de classificação de identidade proposta pelo agressor é assumida.
Podemos perceber, pelos atributos apresentados nas entrevistas em formas de avaliações
pessoais, como as mulheres se sentiam antes de ir para Casa Abrigo:

Camila15: Antes eu me sentia ninguém, ninguém no mundo assim. Um nada...


nada. Como se eu ainda num ... não existisse. O que sentia, era assim. Ninguém

15
Por questões éticas os nomes das mulheres entrevistadas são fictícios.

494
gosta de mim, por isso que ele me batia, porque ele não gostava de mim, que
num... que ninguém se importava comigo.
Rosana: (...)Nunca fui mulher de sair... nunca fui mulher de... de... nunca traí ele
Lia: (...)eu... me vi sozinha, perdida, sem ser nada, sem ter nada... um nada na
vida, um zero vírgula zero
Fátima : Ah, eu devia me sentir sozinha... sem rumo

Percebi que, após a violência e submissão ao Programa, há uma redefinição dessa


identidade passando de uma identidade de resistência e chegando ao que seria identidade de
projeto. Posso verificar esse processo nas seguintes observações que foram desenvolvidas após
questionamentos de projetos para o futuro.
Joana: Eu me separar dele, né? Ajudar a cuidar dos meninos, dar pensão... Só,
ele vivendo a vida dele para lá, e eu vivendo para cá, está bom.
Júlia: Agora, se Deus quiser mesmo, eu quero trabalhar de novo, fazer do mesmo
jeitinho que eu fazia.
Lia : Assim que eu sair daqui, com as coisas encaminhadas, éh eu pretendo
voltar... retornar aos estudos... eu não terminei o meu segundo grau, né? ainda...
e...conseguir um emprego melhor. Poder criar os meus filhos, poder ir para
igreja, que eu gosto... fazer as coisas que eu gosto.
Fátima : Ah, eu quero sair daqui, arrumar outro serviço... botar meu filho na
creche e viver com ele .

Os processos relacionados no infinitivo caracterizam um propósito da falante, quando


relacionados a projetos. Além disso, os processos verbais apresentam como característica o fato
de serem, em sua maioria, processos materiais possuindo como atores as próprias mulheres e
como metas, empregos relacionados à manutenção dos filhos (Halliday, 1985).
Entretanto, cabe ressaltar o discurso tradicional familiar que se manifesta no discurso das
mulheres vítimas de agressão, o que é um exemplo de interdiscursividade. Podemos observar tal
discurso nos seguintes relatos:
Camila: (...) eu queria um marido que cuidasse de mim, não que ele me
batesse... por pouca coisa (...)O que eu queria era uma família, e eu não... não
tive.
Rosana: Mas o que eu não entendo... assim... eu... eu sempre ( ) eu sempre
procurei fazer o meu papel de esposa... sempre. Nunca fui mulher de sair...
nunca fui mulher de... de... nunca traí ele. Eu sempre procurei assim, manter
minha casa limpa... eu sempre procurei fazer as coisas da maneira certa... e por
que chegou nesse ponto? Dele me tratar dessa forma? Eu não sei.

Percebe-se a legitimação de um discurso tradicional, com a pressuposição do que seria


família e do papel que a esposa deveria desempenhar.
Mesmo quando situadas no ciclo de violência, há uma reflexão a respeito do que seria
melhor para as entrevistadas; há uma reflexão do que seria a melhor opção para que o ciclo de

495
violência se rompesse. De modo geral, isto é indicado por uma busca de fuga, tanto do local
quanto a morte como forma de ‘saída’, conforme apresentado na análise da metáfora da morte.

Camila: (...) Teve uma vez que aconteceu por causa de um CD... sabe? Um CD. ( )
‘você quebrou o CD, não sei o quê, você quebrou’, eu falei ‘não, não quebrei.
Você olhe direito’... ( ) o CD estava no chão ( ) quando ele achou... aí falei ‘logo
que você não confia em mim, então eu vou pegar as minhas coisas e vou
embora’. Aí ele... achou ruim e disse que de lá eu não saía não... só saía morta.
Mas eu saí. Ele me bateu, quando foi no outro dia... ( ) dormindo lá, eu peguei e
saí. E... estou aqui.
Júlia: Ele batia em mim antes, muito. E eu preferia largar ele, falei ‘Um dia eu
largo você. De qualquer maneira eu te largo. Eu não vou ficar apanhando de
ninguém mesmo.’ Agora eu só não sei, ele segurou meus documentos... aí eu
contei para ( )... eles pegou e... na delegacia, também eu falei... eles pegaram e...
acho que ligaram para o seu Sandoval, seu Sandoval conseguiu pegar os meus
documentos, já está comigo.
Valentina: (...) Aí, desse agora, primeira vez que ele veio me agredir fisicamente,
aí eu denunciei ele, caí fora.

Após tomar a decisão de separação do agressor, há a inferência dos/das delegados/as e


policiais que indicam como ação o programa Casa Abrigo para a proteção de suas vidas. Nesse
local, as mulheres são expostas a outros discursos, como o terapêutico, com auxílio de psicólogos,
e conseguem desenvolver uma identidade de projeto, ao perceberem que estão em um ciclo de
violência e que não precisam mais sujeitar-se a uma ‘dominação masculina’, nem aceitar as
imposições de outras pessoas.
Nesse sentido, cabe observar a influência da Lei Maria da Penha que, apesar de ser de
caráter impositivo e se ter no senso comum a posição de que nenhuma lei é bem executada, a Lei
Maria da Penha propicia que as mulheres vítimas de violência não retirem a denúncia oferecida e
permite que as mesmas possam sair do ciclo de violência, além de representar uma forma de
proteção, conforme apresenta Valentina:
Tatiana : Como que você vê essa nova lei?
Valentina : Ah, eu acho que já deveria ter acontecido bem antes, porque, com o
meu primeiro companheiro, eu fui vítima de agressões também, né? E, na época,
não existia essa lei. Portanto, eu vivi com ele quase doze anos... e ele me
espancava direto. E me fazia as mesmas ameaças. Se eu denunciasse ele, que ia
ser pior para mim, que ele ia me matar. E, como não existia essa unidade, né?
essa lei... sobre a violência contra a mulher... aí, por isso, ( ) se a mulher
denunciava, às vezes o homem fazia até pior, depois, né? que ele ia preso... Aí,
desse agora, a primeira vez que ele veio me agredir fisicamente, aí eu denunciei
ele, caí fora.

496
Por meio dos relatos percebo a influência do ‘discurso jurídico’ como forma positiva de
legitimação de direitos que são negados quando se trata de violência doméstica. Entretanto, ainda
existe um discurso hegemônico que perpassa o contexto jurídico, e, apesar dos avanços de
mecanismos que visam coibir a violência doméstica, existe a questão da punição que é
questionada pelas mulheres, pois não consideram eficiente para erradicar o tipo de violência em
questão, conforme observa Bisa:
Tatiana: O que você acha dessa nova lei?
Bisa : Eu acho ela... eu acho até que ela é uma boa, só que ela está mal
elaborada. Ela precisa de ter uns reparozinhos muito... sabe? Por exemplo,
assim... eu não entendo, tem certas coisas que não batem, essa justiça, ela é
meia... meia falha não, ela é falha e meia. Porque, olha só, diz que dá cadeia de
três anos... o crime é afiançável, de quinhentos reais a... até mil e pouco só,
parece... Então, quer dizer... primeiro, se é afiançado... Vamos supor, se o cara
me bate, eu denuncio, ele vai preso. Se ele tiver quinhentos reais, ele paga, vai
para casa e me mata logo. Aí, não precisa mais de lei bosta nenhuma não. Para
que essa lei então? Se o crime é afiançável, ele vai preso... sai, paga a fiança, vai
para casa, me mata. E aí? Adiantou alguma coisa dessa lei? Não adiantou.
Deveria ser inafiançável... se o indivíduo for preso, né? porque é muito raro ele
ser preso também, já começa daí.

Por entender que as identidades passam pelo processo de representação, passarei à


análise das identidades que as mulheres vítimas de agressão representam de seus agressores.

As identidades dos agressores nos relatos de mulheres vítimas de violência


Considerando o conceito de identidade como sendo construída, moldada e moldante por
meio do discurso, é possível observar a representação da identidade do agressor nos relatos das
mulheres vítimas de violência. Um primeiro ponto a ser analisado é a forma como as mulheres
identificam seus agressores. Se observarmos as entrevistas, não há a denominação de nenhum
agressor pelo seu nome por parte das mulheres; somente no relato de Lúcia, está explícito o nome
de seu companheiro e agressor. Os agressores são denominados por uma avaliação em que a
caracterização do atributo sobressai-se ao indivíduo. Note os seguintes exemplos:
Júlia: (...)Ele era violento com qualquer coisa. Não tinha nada que a gente fazesse
para ele assim, que achasse uma coisa boa, para ele estava bom. Tudo estava
ruim. Tudo era agressivo, tudo... no tipo dele, que ele é brabo mais do que uns
cachorro brabo mesmo.
Rosana: (...) ele sempre foi um homem grosso... assim, ele era grosso comigo...
mas, não me deixava faltar nada... um bom pai, eu não posso dizer... eu não
posso dizer que ele não era um bom pai... para o ( ). Mas isso não era suficiente.

497
Valentina : A gente discutia direto, né? porque ele sempre era ciumento... ele
sempre foi ciumento. Depois, que eu tive o meu bebê, ele propôs da gente tentar
morar junto, ele tinha plano até de casar mesmo... no papel, entendeu? no
cartório e tal. Eu falava para... Eu não imaginava, assim, eu falava “para quê?
Para depois ter mais trabalho para se divorciar?” Porque a gente discutia muito,
né?
Lia: Ele não é normal, às vezes ele é anti-social. Porque, às vezes a gente ia em
mercado assim, algumas coisas e, no meio das pessoas, ele... me xingava, sabe?
me botava lá para baixo.

Em alguns casos, há a identificação do companheiro como uma pessoa que se torna


violenta com o uso de bebidas ou drogas, mas não há a identificação do mesmo com o nome,
sempre ocorre a denominação por meio do pronome de tratamento ‘ele’, que produz um certo
distanciamento em relação ao agressor. Esse ponto deve ser considerado, pois uma das formas de
rompimento do ciclo de violência é o distanciamento, conforme já explicitado.
Tatiana : Desde que você casou? Sempre foi assim?
Jô : Foi... Não, quando ele era mais novo ele não me batia não. ( ) ele começou a
usar drogas, ele só vivia me batendo.
Tatiana : Como que você acha que você era? Por que que você acha que
aconteceu isso com você?
Joana : Porque ele era muito ciumento, entendeu? Ele sempre bebia, e... sem
motivo nenhum, ele já chegava já... espancando, entendeu? Sempre foi desse
jeito.
Tatiana : E o que que você acha do seu companheiro?
Valentina :Ó, o único... o que eu acho dele é o seguinte, quando ele está bom,
ele é um homi, uma maravilha de pessoa. O problema... o que estraga com ele é
o alcoolismo, a bebida, né? Porque, quando ele toma... basta ele tomar uma
garrafinha de cerveja, (uns dois copos), ele já fica transtornado.

Portanto, a figura masculina é representada por seus qualificadores que, geralmente, são
negativos. Porém, encontram-se qualificadores positivos relacionados ao papel que o mesmo
desempenha na sociedade tradicional, por exemplo, o de ‘bom pai’, de ‘cuidador’, o que indica a
influência do ‘discurso da família tradicional’, dando à figura masculina um poder que é
perpassado por meio de discursos ideológicos e hegemônicos.
Tatiana: Como era seu relacionamento com ele?
Camila: Fora a bebida... era um bom marido, um bom pai, carinhoso comigo e
com o meu menino. Mas, o que... estava atrapalhando mesmo é a bebida e... os
colegas, mal companhia, que é o que mais está atrapalhando ele... é a bebida
dele.

Por esse motivo, as identidades que as mulheres vítimas de agressão representam de seus
agressores ainda possuem características positivas, elas, por meio do ‘discurso terapêutico’,

498
percebem que a causa da agressividade está no relacionamento e não especificamente no
agressor, conforme apresenta Camila:
Camila: (...) não sei qual é o errado, se é eu, ou é ele. Mas acho que é os dois...de
ambas partes, é os dois.

Mas, sem uma intervenção Estatal, inclusive com a promulgação da Lei Maria da Penha,
seria inviável fazer com que as mulheres saíssem do ciclo de violência e pudessem refletir a
respeito de suas relações familiares.

Conclusão
As identidades são construídas por meio de relações sociais que envolvem aspectos
históricos e culturais, observando que podem ser divididas em ‘identidade pessoal’ e ‘identidade
coletiva’. As ‘identidades pessoais’ apresentam um aspecto híbrido, na medida em que podem
existir várias ‘identidades coletivas’ para um indivíduo/sujeito social, constituindo uma ‘identidade
pessoal’ própria, por exemplo, uma mulher pode assumir a identidade de mulher, mãe, advogada,
professora, psicóloga etc. representando a si com uma identidade específica que engloba várias
identidades coletivas.
Para a análise da pesquisa, o aspecto identitário coletivo que me interessava era a
identidade de gênero que, por aspectos culturais, retomam questões ideológicas e hegemônicas.
A ADC constitui-se como ‘ferramenta’ importante para a análise identitária, pois propicia uma
análise reflexiva a respeito do poder, da mudança social e da identidade, observando que os
aspectos identitários podem ser analisados por meio dos significados do discurso, visto que as
identidades são moldadas por meio de interações sociais e podem ser analisadas observando-se
práticas sociais específicas nas quais o discurso se insere como elemento.
A ‘identidade coletiva’ é analisada, segundo o proposto por Castells (trad. 2006), pois ao
definir as identidades como legitimadora, de resistência e de projeto, o autor propicia uma análise
de identidade de gênero que envolve as transformações sociais ocorridas em relação a diferença
entre figuras masculinas e femininas relacionando-as a questões de poder, hegemonia e ideologia.
Como parte do problema social de violência doméstica implica a representação de
identidades, a contribuição da ADC como instrumento e forma de percepção das alterações dessas
identidades é necessária. Tomando por base o conceito de que o discurso faz parte de uma prática
social, no caso da violência doméstica, procurei analisar a construção de identidades no discurso
das mulheres que sofrem agressão, observando os principais atores sociais da referida prática: a

499
mulher e o agressor, para que se possa desenvolver uma reflexão a respeito das identidades das
mulheres, de seus agressores e das possíveis influências do ‘discurso jurídico’ nas mesmas.
Quanto às identidades femininas, não posso deixar de ressaltar que por estarem situadas
em um ciclo de violência, possuem algumas características peculiares como a auto-depreciação e a
interiorização de discursos hegemônicos, como o discurso da família tradicional e a conseqüente
representação da figura feminina característica da sociedade tradicional. Quando há o
rompimento do ciclo de violência por meio de uma intervenção Estatal, há uma interiorização de
um ‘discurso terapêutico’ de proteção às vítimas, o que propicia o surgimento de uma identidade
de projeto, com a busca por novas situações, incluindo ou não a família, e o trabalho. Esse é um
momento em que as mulheres reconstroem sua auto-estima, representando-se como atoras
sociais.
A identidade masculina do agressor e companheiro é posta em oposição, pois segundo o
discurso hegemônico de gênero social estabelecido em nossa sociedade, há a propensão ao
estabelecimento de oposições. Essas oposições derivam do Iluminismo, em que as identidades são
concebidas por meio de oposições e contrastes. Na sociedade contemporânea, não cabe falar em
tais distinções, mas o discurso de oposições ainda está entranhado nas representações femininas,
tornando-se um instrumento de imposição de uma hegemonia masculina
Tal característica torna-se marcante no discurso das mulheres vítimas de violência, ao
considerarem uma oposição de identidades entre vítimas e agressores. O homem é o agressor,
mas é o companheiro, o bom pai, recebendo, muitas vezes nomeações em que as qualidades
como o papel de pai e de companheiro são ressaltadas. Isso também caracteriza a
heterogeneidade da ‘identidade individual’.
Com a análise das identidades presentes no discurso das mulheres, podem-se observar
quais os discursos são interiorizados socialmente e como os mesmos afetam e constroem
identidades distintas.

Referências

AZERÊDO, S. Preconceito contra a “mulher”. Diferença, poemas e corpos. São Paulo: Cortez, 2007.

BARKER, C. & GALASINSKI, D. Cultural studies and discourse analysis. A dialogue on language and
identity. 2ª ed. Londres: SAGE Publications, 2003.

BENWELL. B. & STOKOE, E. Discourse and identity. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2006.

500
CAETANO, C. J. M. A alegoria, uma análise discursiva em: sombras de reis barbudos (mestrado em
Lingüística). Departamento de Lingüísticas, Línguas Clássicas e Vernáculas. Universidade de
Brasília, 2004.

CASTELLS, M. O poder da identidade. Trad. K. B. Gerhardt. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

CHOULIARAKI, L & FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modemity. Rethinking Critical Discourse


Analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press,1999.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. I. Magalhães. Brasília: Editora da UnB, 2001.

________________. Analysing discourse. Textual analysis for social research. Londres e Nova
York, 2003.

FOWLER, R. Sobre a lingüística crítica. Linguagem em (Dis)curso. Tubarão, especial, 2004.


Disponível em: <http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0403/09.htm> acesso em:
13 de março de 2006.

GIDDENS, A. Modernity and self-identity. Stanford University Press, 1991.

___________. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades


modernas. Trad. M. L. São Paulo: Editora da Universidade estadual paulista, 1993.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Trad. T. T. Silva & G. L. Louro. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.

HALLIDAY, M. A. K; HASAN, R. A introduction to functional grammar. New York: Arnold, 1985.

HOLLAND, D. et al (Orgs.). Identity and agency in cultural worlds. London: Harvard university
Press, 1998

LAZAR, .M. M. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as political
perspective and praxis. in: M. M. LAZAR. Feminist critical discourse analysis: gender, power and
ideology in discourse. Palgrave Macmillan, 2005, p. 1-28.

LIMA, M. C. Discursos e identidades de gênero no contexto da escola. (Tese de doutorado em


Lingüística, inédita). Departamento de Lingüísticas, Línguas Clássicas e Vernáculas. Universidade
de Brasília, 2007.

MAGALHÃES, I. Interdiscursivity, gender identity and the politics of literacy in Brazil. in: M. M.
Lazar. Feminist Critical Discourse Analysis. Gender, power and ideology in discourse. Palgrave
Macmillan, 181-204, 2005.

___________________. Escrita e Identidade. Cadernos de Linguagem e Sociedade. Brasília, 7,


106-118, 2004.

SILVA, T. T. (org.) Identidade e diferença; a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2000.

501
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Petrópolis: vozes, 1995.

WODAK, R. Do que trata a ADC – um resumo de sua história, conceitos importantes e seus
desenvolvimentos. Linguagem em (Dis)curso. Tubarão, especial., 113-131, 2004. Disponível em:
<http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0403/00.htm> acesso em: 13 de março
de 2006.

WODAK, R. et al. The discursive construction of national identity. Edimburgo: Edinburgh


University Press, 1999.

WODAK, R. & WEISS, G. Analyzing European Union Discourses. in: R. WODAK & P. CHILTON. A new
agenda in (critical) discourse analysis. John Benjamins Publishing Company, 2005.

WOODWARD, K. identidade e diferença. Uma introdução teórica e conceitual. in: T. T. SILVA (Org.).
Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. p. 7-72. Petrópolis: Vozes, 2000.

502
PROPOSTA PRÁTICA DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: VOZES ACADÊMICAS
SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno1

O discurso se caracteriza pelos diferentes sentidos que cada falante atribui a uma palavra, a um
enunciado, a um texto, formando, assim, um conjunto ideológico, que incide sobre as
determinações culturais, linguísticas e subjetivas. Desse modo, os efeitos de sentido emergem das
imposições ideológicas e do trabalho mais ou menos consciente do sujeito sobre o sentido da
língua. O discurso também é uma prática social resultante dessas imposições e o posicionamento
de um sujeito crítico diante desse contexto é tema relevante de nossa análise. No presente
trabalho, partimos da análise discursiva dos textos de alunos de Letras, evidenciado pelas vozes
sobre o ensino de Língua Portuguesa, observando aspectos intradiscursivos e interdiscursivos que
marcam a formação do docente de Língua Materna. Seguimos o postulado teórico da Análise
Crítica do Discurso, sob a ótica da análise tridimensional de Norman Fairclough (2008) : análise
textual , prática discursiva e prática social, contemplando assim o primado do interdiscurso.
Focalizamos a categoria da intertextualidade manifesta, enfatizando a heterogeneidade dos
textos. Desse esboço, depreendemos que identidades subalternas marcadas pela tradição e
renovação no ensino de LM caracterizam uma relação de linguagem e poder, uma vez que a
renovação é marcada pela democratização, pela língua diversa, e a tradição como marca de classe
dominante. Conclui-se que não se pode negar a importância de uma língua, mediante o
intermédio do idioma utilizado pelo sujeito crítico marcado por uma identidade, ideologias e
poderes, quando a questão é o ensino, retratando a instabilidade na formação docente, as várias
vozes que circulam na intenção de demarcar os espaços discursivos.

Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa, Análise Crítica do Discurso, Intertextualidade,


Tradição, Renovação.

Introdução
Partindo do pressuposto que o discurso revela uma prática social, o que queremos nessa
comunicação é analisar criticamente discursos de alunos de Letras, docentes em formação, sob o
foco do ensino de Língua Portuguesa(LP), comumente marcado pelo modelo de língua homogêneo
e influenciado pelas propostas emergentes de uma língua heterogênea, caracterizada pela
sociedade também mesclada, pelas classes sociais(dês)iguais, pelas oportunidades e pelas
identidades que se revelam nessas relações. O discurso aqui entra como chave para observação de
uma problemática: as oposições metodológicas para o ensino de LP são reflexos de uma luta
hegemônica. Como preconiza Silva (2004:261)
[...] classes sociais precisam se comunicar e o fazem intensamente, mas, em
alguns atos com prejuízo das classes populares, que se submetem a leis e
celebram acordos escritos de língua que parece não ser sua. Essas classes

1
Mestra em Letras pela Universidade federal de Sergipe (UFS). Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

503
precisam preparar-se para compreender - usar passivamente, portanto – a língua
das chamas classes sociais dominantes.

Dentro desse contexto a ciência tem o seu papel de voz orientadora de práticas que,
atualmente, culminam com um modelo democrático, como vemos pelas novas propostas da
Sociolinguística. No entanto, a memória tradicional, a visão bipolarizada do bem falar (elitizado) e
da negação dos usos funcionais constantes nas práticas textuais cotidianas. Dentro desse quadro
se encontra o professor e/ou futuro professor, alunos dos Cursos de Letras, porta-vozes da
academia e sujeitos sociais também moldados por práticas tradicionais, quando o quesito é o
ensino de Língua Portuguesa.
Para dar conta dessa problematização, e salientar que mudanças discursivas preconizam
mudança social, nos vale a proposta de algumas categorias de análise crítica do discurso
dispostas no modelo tridimensional de Fairclough (2008) em que a materialidade linguística torna-
se um transverso discursivo. Para tanto, serão postos em evidências aspectos teóricos do
interdiscurso e intertextualidade constitutiva e manifesta, presentes nos momentos discursivos
que dialogam com o discurso concebido como modo de ação e reação dentro da esfera social em
que linguagem, ideologia e poder não se dissociam.
A Análise Crítica do Discurso (ACD): o modelo de análise tridimensional de fairclough
O sistema de regras de boa formação semântica do discurso diz respeito às restrições
semânticas do mesmo. Esses traços semânticos restringem, ao mesmo tempo, todos os planos
discursivos: vocabulário, temas tratados, intertextualidade, instâncias de enunciação. Eles
funcionam como marcas nos textos que se filiam a um determinado discurso.
A Análise Crítica do Discurso corrobora com a proposta de que as análises discursivas
podem ser textualmente orientadas. Daí uma visão macro e microlinguística dos discursos, a partir
do modelo teórico de análise de Norman Fairclough (2008), que será tomado aqui como critério
para abarcar o estudo do interdiscurso, materializado pela intertextualidade.
Para Fairclough (2008), cada caso discursivo tem três dimensões ou facetas, que estão
interligados, mas analiticamente separáveis: É uma língua falada ou escrita texto; É um exemplo
de discurso práticas envolvendo a produção e interpretação de texto; E é uma peça de prática
social.
Correspondentemente, há três níveis método da análise do discurso:

o método da análise do discurso inclui descrição linguística da língua texto, a


interpretação da relação entre o (produtivo e interpretativos) processos

504
discursivos e de texto, e explicação da relação entre os processos discursivos e os
processos sociais. (FAIRCLOUGH, 2008:97)

Quando usa o termo discurso o autor considera o uso da linguagem como forma de prática
social e não como pura atividade individual, o discurso não é só um modo de ação sobre o mundo,
mas também um modo de representação. Implica relação entre estrutura social e discurso, uma
como causa ou efeito da outra. Para dar conta desse entendimento o autor também entende
interdiscurso como precedente ao discurso. “As categorias intertextualidade e interdiscursividade
são bastante exploradas pela ACD, pois ela analisa as relações de um texto ou um discurso,
considerando outros que lhe são recorrente” (PEDROSA, 2008:139).
O modelo tridimensional de Fairclough(2008) compreende a análise textual, a análise
discursiva e a prática social. Conforme Ramalho e Resende (2006), a análise textual é a primeira
dimensão de análise no modelo tridimensional e caracteriza-se pela descrição linguística. Dentre
as subcategorias tem-se gramática, coesão, estrutura textual e vocabulário. Para Fairclough
(2008:288),
ênfase da análise está nas palavras-chave que têm significado cultural geral ou
mais local; nas palavras cujos significados são variáveis e mutáveis; e no
significado potencial de uma palavra – uma estruturação particular de seus
significados – como um modo de hegemonia e um foco de luta.

Esses traços operadores do discurso, pela via do vocabulário definem conjunto de


categorias lexicais opostas, já que a luta e a hegemonia evidenciada pala materialidade linguística
pode ser definida como operadores de individuação que de acordo com Brunelli(2008), capa cada
discurso dois conjuntos de categorias semântica dos vocabulários aparecem opostas: o conjunto
dos semas reivindicados (os semas positivos) e o conjunto de semas rejeitados(os negativos). Nos
discursos discentes em questão semas do tipo gramática, regras, erro, língua terão cargas
positivas ou negativas a partir da posição discursiva do enunciador, que acaba evidenciado nas
escolhas intertextuais.
A análise da prática discursiva, segundo Ramalho e Resende (2006) do modelo
tridimensional contempla a interdiscursividade, as cadeias textuais, a coerência, as condições
prática discursivas, a intertextualidade manifesta. Dessa categoria fica evidente a ponte que se faz
com o interdiscurso. Implicado nessa teoria sob a ótica da intertextualidade manifesta ou
constitutiva, mas evidenciando a primazia dessas relações sobre o discurso. “A intertextualidade
implica uma ênfase sobre a heterogeneidade dos textos e um modo de análise que ressalta os
elementos e as linhas diversos e frequentemente contraditórios.” (FAIRCLOUGH, 2008:137).

505
A análise da prática social, segundo Ramalho e Resende (2006), é apresentada pela
subcategorias ideologia e hegemonia, que entenderemos aqui como a evidência de identidades
subalternas marcadas pela tradição e renovação no ensino de LM. Uma vez que a renovação é
marcada pela democratização como visto no capítulo 1, e a tradição como marca de classe
dominante. Segundo Bagno (2003:25) “toda língua é resultado de um sistema cultural e
organizado, ou seja, o produto de um ambiente sócio-cultural, onde se deflagram identidades.”
Para Bakhtin(1997), a língua é como algo inerente ao sujeito que tudo se constrói num processo
de interação, numa relação do eu com o outro. “A palavra revela-se, no momento de sua
expressão, como o produto da interação viva das forças sociais.” (BAKHTIN,1997:46). É preciso
salientar que para chegar a um determinado lugar no seu espaço discursivo, o acadêmico de
Letras seria porta-voz de uma ideologia apresentada e pode ocupar um lugar assumindo várias
posições de acordo com a realidade do seu discurso, como também ele aparece como aquele que
está apto em seu discurso, a deixar-se envolver com o outro, buscando a unida de com este outro
fio discursivo, pela prática discursiva, desencadeando uma prática social, conforme mostra o
quadro:

2
Quadro 1 – Concepção Tridimensional do Discurso

Dentro dessa proposta de análise de Fairclough (2008), na prática discursiva, envolve


processos de produção, distribuição e consumo textual. A natureza de cada texto e o diálogo que
ele mantém com as ideologias merge no momento de produção,quando um enunciado pode
negar, reatualizar, por fim intertextualizar-se.
A intertextualidade
Na AD, a heterogeneidade discursiva se relaciona com o interdiscurso, o exterior
constitutivo que dá condições para a construção de qualquer discurso, num processo de

2
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UNB, 2008, p.101.

506
reelaboração ininterrupta que comporta toda a historicidade inscrita tanto na linguagem quanto
nos processos discursivos.
Para verificar o funcionamento da noção na prática analítica, Authier-Revuz (2004)
distingue duas formas de heterogeneidade: constitutiva e mostrada. A primeira não se apresenta
na organização linear do discurso, visto que a alteridade não é revelada, permanece no
interdiscurso e, por isso mesmo, não é passível de ser analisada. A segunda traz marcas da
presença do outro na cadeia discursiva, ou seja, a alteridade se manifesta ao longo do discurso e
pode ser recuperada de maneira explícita através da análise, denunciando os aspectos ideológicos
que constituem o discurso. Estudar a heterogeneidade é depreender o interdiscurso, pautado na
“heterogeneidade constitutiva que amarra, em relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu
Outro3.” (MAINGUENEAU, 2007:33). Nesse contexto, “O interdiscurso tem precedência sobre o
discurso. Isso significa propor que a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um
espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2007:21),
assim trata-se de um espaço regularizado pelos discursos que o compõe a interdicursividade.
Assim, o intertexto ancora-se no eixo da memória discursiva, aceitando alguns discursos e
recusando outros, seja pela intertextualidade interna (memória discursiva acerca do ensino de LM)
e intertextualidade externa (textos de outros campos discursivos que se ligam ao discurso do
acadêmico de Letras acerca do ensino de LM). Essas regras acabam definindo que a
intertextualidade do discurso tradicional sobre o ensino de LM não é a mesma que a
intertextualidade do discurso inovador da Linguística.
Se o discurso não se manifestar explicitamente, ter-se-á uma heterogeneidade constitutiva,
mas se o outro se mostra por marcas linguísticas no texto, ter-se-á heterogeneidade mostrada,
defina-se, então, intertextualidade.
A intertextualidade torna-se plano de análise uma vez que “todo campo discursivo define
certa maneira de citar os discursos anteriores do mesmo campo” (MAINGUENEAU, 2007:81).
Congratulando assim, o intertexto ao eixo da memória discursiva, aceitando alguns discursos e
recusando outros, pela intertextualidade interna (memória discursiva acerca do ensino de LM)) e
intertextualidade externa (textos de outros campos discursivos que se ligam ao discurso do
acadêmico de Letras acerca do ensino de LM).
Essa categoria também explorada na Análise Crítica do Discurso, presente no modelo
tridimensional de Fairclough (2008:114) que define intertextualidade como “a propriedade que os

3
Entende-se que esse “Outro” com letra maiúscula não coincide com o seu homônimo lacaniano. Empregamos esse
termo porque não encontramos outro melhor. Podemos consolar-nos lembrando que nas ciências humanas não é um
homônimo que vai fazer grande diferença. (MAINGUENEAU, 2007, p.38)

507
textos têm de ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados
explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e
assim por diante”.
O autor enfatiza a relação intertextualidade com historicidade dos discursos que estarão
sempre em constante diálogo pela cadeia comunicativa, transformando os discursos, ou novos
modos de se apresentarem pela condição interdiscursiva constituinte na intertextualidade.
Veja-se o quadro4 explicativo, como nos direciona Pedrosa(2008:139), apontando para a
primazia do interdiscurso também na proposta da ACD:

Prática Discursiva Tópicos Objetivos


Especificar os tipos de discurso que estão na
amostra discursiva sob análise. “É a amostra
Interdiscursividade discursiva relativamente convencional nas
Produção de Texto suas propriedades interdiscursivas ou
relativamente inovadora?”
(FAIRCLOUGH,2008:285)

Especificar o que os outros textos estão


delineando na constituição do texto da
Intertextualidade amostra, e como isso acontece. Como ocorre
a representação discursiva: direta ou
indireta?O discurso representado está
demarcado claramente?O que está
representado: contexto, estilo, ou
significação do ideacional?Como as
pressuposições estão sugeridas no texto?

Como os discursos tratam do ensino de LM, eles se desdobram em outros temas em vários
pontos dos textos coletados, entre estes: as propostas temáticas acerca do ensino; condições
pedagógicas; nas relações sociais; conduta docente; uso livro didático; a realidade social dos
indivíduos; uso na norma culta; variação lingüística; condição política do ensino. Analisar tais
discursos implica em observar disjunções, presença de sub-temas e um e ausência em outros,
todos impostos pelo espaço discursivo.
Essas disjunções se manifestam no plano sintático que dialogam com a proposta de análise
do tema como categoria em Fairclough (2008), busca observar se existe um padrão para a
estrutura das orações dentro do texto. “As escolhas marcadas no tema são frequentemente
interessantes pelo que elas mostram não apenas pelo pressuposto de senso comum, mas também
sobre estratégias retóricas” (FAIRCLOUGH, 2008: 228). Usar previamente como tema nas orações

4
PEDROSA, Cleide Emília. Análise Crítica do Discurso do lingüístico ao social no gênero midiático. Aracaju-SE: Edufs,
2008. p.139.

508
uma determinada posição acerca do ensino de LM dentro do discurso revela o espaço discursivo
ocupado pelo sujeito. O objetivo é constatar se há um padrão para escolha dos temas nas orações.
Considerando os textos como processos sociais, sendo constituídos historicamente e
participando ativamente das mudanças na sociedade (FAIRCLOUGH, 2008), a ACD traz uma
metodologia pautada nessas escolhas que recaem nos processos dialógicos e interdiscursivos
dentro do quadro social de luta hegemônica, que pode ser materializado pela linguagem, via
texto. Conforme essa orientação, uma aproximação da heterogeneidade dos textos representa um
elemento essencial para o entendimento dos processos de produção textual.

A análise da produção de textos envolve, desta forma, a abordagem a aspectos da


intertextualidade, que na proposta da ACD são representados pela
interdiscursividade e pela intertextualidade manifesta. Na intertextualidade
manifesta, busca-se especificar como outros textos participam na constituição do
texto analisado (PRATA E MARTINS, 2007:03).

Quando se trata da interdiscursividade, o objetivo relaciona-se com o delineamento dos


tipos de discurso presentes no texto (FAIRCLOUGH, 2001) e a aproximação dos gêneros discursivos
representa um elemento central para a abordagem da interdiscursividade. Segundo Magalhães
(2001),

É o sistema de gêneros de uma determinada sociedade, numa determinada


época, que determina as combinações e as configurações nas quais outros
elementos ocorrem. [...] o gênero não só se relaciona com o tipo de texto, mas
também a um tipo de atividade. Na ACD, o tipo de atividade pode ser especificado
pela sequência estruturada de ações que o compõem e pelos participantes
envolvidos na atividade ou o conjunto de papéis dos sujeitos sociais ligados à
atividade.(MAGALHÃES, 2001: 19-20)

Tomando como ponto de análise o discurso acadêmico corriqueiro, informal, percebemos


um quadro de mudança social para a concepção e ação no que se refere ao ensino de LP. A
atividade acadêmica autoriza discursos inovadores e sujeitos partícipes dessa prática social
apresentam-se no quadro hegemônico como formadores de opinião, que dentro de propostas
opostas, representam o quadro diverso da educação linguística formal, já que historicamente
constituiu assim. Segundo Fairclough(2008), as várias posições enunciativas dos sujeitos sobre o
ensino de LP revelam esse quadro dialógico de relações intertextuais verticais que os textos se
ligam pelos contextos próximos ou distantes, pois estão historicamente ligados, no caso da nossa
análise, o discurso tradicional e o discurso renovador no ensino de LP.

509
Para a análise crítica desses discursos, coletamos textos de alunos de uma universidade
pública em Sergipe, e selecionamos as oposições pelas restrições semânticas, a fim de traçarmos a
evidência da intertextualidade como uma “categoria que traz implicações para a constituição do
sujeito através dos textos e para a contribuição das mudanças nas práticas discursivas para as
mudanças na identidade social” (MAGALHÃES, 2001, p.22). Justifica-se, portanto a delimitação do
critério apresentado, para as análises que seguem.

Na prática...
Dentro dos textos5 selecionados para materialização discursiva observou-se que o
intertexto nos discursos ficaram nítidos, uma vez que os alunos de Letras estavam no momento de
contato com leituras afins com a temática do ensino, sendo que a proposta da funcionalidade da
língua como objeto de ensino. Os textos exploraram o discurso de outrem (marca de
intertextualidade externa) e além desse os textos tornam-se intertextos entre si pela regularidade
e pelas restrições semânticas do campo.
Como no presente trabalho prima-se pelo interdiscurso, a intertextualidade torna-se plano
de análise uma vez que “todo campo discursivo define certa maneira de citar os discursos
anteriores do mesmo campo” (MAINGUENEAU, 2007, p.81). Congratulando assim, o intertexto ao
eixo da memória discursiva, aceitando alguns discursos e recusando outros, pela intertextualidade
interna (memória discursiva acerca do ensino de LP) e intertextualidade externa (textos de outros
campos discursivos que se ligam ao discurso do acadêmico de Letras acerca do ensino de LP).
Observou-se que o intertexto nos discursos ficaram nítidos, uma vez que os alunos de
Letras estavam no momento de contato com leituras afins com a temática do ensino, sendo que a
proposta da funcionalidade da língua como objeto de ensino demarcavam discursos adeptos a
identidade subalterna, ou seja, a da valorização de uma língua funcional e heterogênea, não
evidenciando a elite e o prestígio, mas a igualdade. Veja-se:

02 - (...) é muito bonitinho fazer propostas revolucionárias e encarar outra


realidade. Seria perfeito você entrar em uma sala de aula e trabalhar a norma
culta e fazer com que seus alunos se tornem poliglotas da própria língua.
03 - (...) é muito bonitinho fazer propostas revolucionárias e encarar outra
realidade. Seria perfeito você entrar em uma sala de aula trabalhar, a norma
culta, e fazer com que seus alunos se tornem poliglotas da própria língua.

5
Os textos estão numerados numa seqüência de 01 a 15. Os números permanecerão e serão colocados em evidência
quando as análises lhes forem pertinentes.

510
04 - Deve-se valorizar as variedades linguísticas na sala de aula, para que o aluno
compreenda que ele não está errado, ele só tem uma diferença dialetal e passe a
absorver a norma culta e se torne um verdadeiro poliglota da própria língua,
fazendo o uso da língua funcional.

Nesses discursos as propostas do objetivo do ensino de LM encontram-se pelo discurso


citado, sem marcas de aspas.O que Fairclough (2008) chama de intertextualidade manifesta “ em
que, no texto, se recorre explicitamente a outros específicos.” (faiclough, 2008:114).
O texto do Prof. Evanildo Bechara que circulou nas aulas de Linguística dos sujeitos da
pesquisa, acabou fazendo parte da memória discursiva dos acadêmicos que mostrou a
regularidade do discurso permitido. A obra “Ensino de Gramática: opressão? Liberdade?” traz o
seguinte excerto: No fundo a grande missão do professor de Língua Materna é transformar o
aluno em poliglota dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a língua funcional
adequada.(Bechara, 2002:14)
Como a intertextualidade se faz não só pela afirmação, mas também pela negação, a
análise da posição dos sujeitos nos discursos mostra que o exemplo 02 traz a intertextualidade
pela negação, uma vez que o sujeito coloca a crítica à ideia do objetivo do ensino de LP que nesse
discurso, parece improvável. Além disso, mostra também a chamada para o discurso no eixo da
memória sobre “propostas revolucionárias” que remetem justamente às novas teorias aplicadas
ao ensino de LP, e a voz de uma visão adepta às identidades subalternas.
Os exemplos 03e 04 evidenciam uma intertextualidade externa pela aceitação do discurso
de outrem, que evidencia o sistema linguístico como aberto a todas as práticas.
Essas práticas sociais culminam com luta do quadro hegemônica que permeia a formação
docente, revelando que discursos inovadores refletem a academia, a voz de renovação, ainda que
tímida, quebrando o laço com o discurso da tradição marcado pela voz opressora da tradição,
representada pela linguagem, aqui materializada pelo texto.
É proposta da ACD, portanto não só mapear as alternativas de limites e processos
intertextuais dentro de determinadas hegemonias ou estado de luta hegemônica,
mas também conceber esses processos e outros, de contestação e reestruturação
das ordens de discurso, como processo de luta hegemônica na esfera do discurso,
simultaneamente afetando e sendo afetados por essa luta um sentido mais
amplo. (MAGALHÃES, 2001:18)

511
E os textos tornam-se assim, intertextos entre si, já que além da marca evidente eles
apresentam campo discursivo que define uma certa maneira de citar os discursos anteriores
pertencentes ao mesmo campo, presentes nas e as vozes presentes nos discursos dos alunos,
são caracterizadas pela deflagração da identidade presente nas propostas para a prática docente
de Língua Portuguesa, centrada funcionalidade,característica da proposta marcada pela
heterogeneidade lingüística e expressão comum das massas falantes, concebendo assim a língua
como um instrumento de interação social e luta hegemônica. Veja-se:

05- A língua portuguesa deve ser ensinada de forma prática e tradicional, enfatizando bem o
ensino de gramática, mostrando o que é certo e o que é errado dentro das normas gramaticais.
06 - É bem verdade que o ensino de LP está defasado, as crianças chegam aos onze anos
falando um português abaixo da média, segundo as normas gramaticais, devido ao convívio
com os pais. Não basta o professor passar 1h20min, quando o aluno chega em casa e ouve
gírias, palavras incorretas.

Encontramos, nesses relatos, o campo discursivo do ensino de LP tradicional, não


recusando diretamente as propostas arrojadas da Ciência Linguística, mas estigmatizado pelas
noções de certo e errado na língua, colocando o ensino de gramática normativa como núcleo das
aulas de português, além de encontrar no domínio da norma culta um fator mensurável para
aquilo que chamamos de língua. Contudo, há algo de peculiar no discurso de 5. Ele em si é
polêmico quando relata a metodologia “prática” e “tradicional”, uma vez que o prático remete ao
novo e não à tradição, já que a intertextualidade é compatível com a mudança no discurso e a
estruturação e reestruturação das ordens de discurso (FAIRCLOUGH, 2008).
Encontramos, nesses relatos, o campo discursivo do ensino de LM tradicional, não
recusando diretamente as propostas arrojadas da Ciência Linguística, mas estigmatizado pelas
noções de certo e errado na língua, colocando o ensino de gramática normativa como núcleo das
aulas de português, além de encontrar no domínio da norma culta um fator mensurável para
aquilo que chamamos de língua. Contudo, há algo de peculiar no discurso de 05. Ele em si é
polêmico quando relata a metodologia “prática” e “tradicional”, uma vez que o prático remete ao
novo e não à tradição. O que se apresenta é a oposição, o discurso conflitante, característica de
diálogo, de intertextualidade vertical (FAIRCLOGH, 2008). Diferente do que podemos ver nesses
relatos que seguem:

512
09- Deve sempre aproveitar o conhecimento que o aluno já possui e não trabalhar somente
com a gramática normativa, pois essa tem que deixar de ser um fim e passar a ser um meio.
07- O ensino de Língua Materna deve não ser somente algo mecânico como anda sendo (...) as
aulas estão sendo baseadas em regras que são expostas na gramática normativa.

A gramática normativa ficou a aqui definida como a vilã do ensino de LM. Algo muito
propagado por determinados linguistas. O acadêmico de Letras se conforta em encontrar nesse
conceito uma filiação ao apocalíptico jogo do “abaixo à gramática”, diferente da Formação
Discursiva tradicional que preconiza o ensino centrado nesta. 09 e 07 aproximam-se não só pelo
fragmento citado, mas também pelas regras implícitas que governam a ideologia aqui
mencionada.
Outro grande exemplo dessa intertextualidade está na condição do livro didático de Língua
Portuguesa (LDLP) em sala de aula:

10 - A LP deve ser ensinada como algo vivo, interativo e não apenas pelos livros e gramáticas,
pois esses são apenas instrumentos de ensino.
11 - Os professores deveriam largar um pouco o livro didático e procurarem novos meios de
ensino, pois assim eles mudariam muito o conceito de língua materna nas escolas.
12 - O professor deve procurar meios diferentes de como mostrar o interesse pela língua para
sala de aula e não ficar somente preso aos livros didáticos, cópias de textos que nem mesmo o
aluno consegue interpretar. Levar a realidade do aluno pra sala de aula é muito interessante.

Aqui, o recurso didático é isolado das ações pedagógicas como se não contribuísse com o
processo ensino-aprendizagem, reflexo de uma memória discursiva centrada nos preceitos de que
os textos escolares são selecionados e controlados por instituições como bancas examinadoras 6.
Nega-se a autoridade do livro didático como fonte de saber curricular, culminando assim, com o
que chamamos de não só de discursos, mas de novas e antigas práticas sociais sobre o ensino de
LP, demonstrando que a linguagem é determinante para um quadro de mudanças, ou melhor, as
transformações sociais se dão através dela.

6
O discurso do LDLP é institucionalizado. Tomou-se como base Michel Foucault, em Ordem dos Discursos(2007), o
autor situa As sociedades de discurso que versam sobre a produção e circulação de discursos em ambientes restritos
(podendo até haver publicações). O que caracteriza tais sociedades é a exclusividade na detenção do saber, do
discurso, funcionando como se fosse um segredo. Considerando as palavras de Foucault, “é bem possível que o ato de
escrever tal como está institucionalizado no livro, nos sistemas de edição e no personagem do escritor, tenha um lugar
em uma ‘sociedade de discurso’ difusa, mas certamente coercitiva”. (p.41)

513
Considerações finais
Os discursos, aqui analisados criticamente pela ótica da intertextualidade, nos trouxeram
um pequeno espectro do que podemos chamar de luta hegemônica e de mudanças no processo
discursivo, quando entendemos que este é um modo de ação. As identidades marcadas pela
tradição e renovação no ensino de LM caracterizam uma relação de linguagem e poder, uma vez
que a renovação é marcada pela democratização, pela língua diversa, e a tradição como marca de
classe dominante.
Conclui-se que não se pode negar a importância de uma língua, mediante o intermédio do
idioma utilizado pelo sujeito crítico marcado por uma identidade, ideologias e poderes, quando a
questão é o ensino, retratando a instabilidade na formação docente, as várias vozes que circulam
na intenção de demarcar os espaços discursivos.
Observamos que as novas teorias que adentram os cursos de Letras já fazem parte de um
universo de formação docente não só em seu estado de potência, mas também de ação, pois aqui
entendemos que a linguagem é prática social e há uma relação dialética entre discurso e estrutura
social (FAIRCLOUH, 2008). Propostas de inovação do livro didático, ensino de LP pautado na teoria
dos gêneros permitiram-nos a conclusão de que há possibilidade de práticas emancipatórias em
estruturas que antes eram cristalizadas (tradição gramatical) e ainda se fazem presentes na
escola, mas que na academia já emergem como um anúncio de mudança social. Ademais, não dá
para conceber esses diálogos sem antes deixar claro que na intertextualidade achamos o viés para
a percepção de tais relações, ou do lugar em que ecoam vozes acadêmicas de uma nova
conjuntura social para a concepção e ação dentro do ensino de Língua Portuguesa.

Referências

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva:


elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a
transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Tradução: Alda Scher; Elsa Maria
Nitsche Ortiz. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS,2004.

BAGNO, Marcos. GAGNÉ, Gilles.STUBBS, Michael. Língua materna: letramento, variação e ensino.
São Paulo; Parábola editorial, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Latiud e Yara Frateschi Vieira.
8 ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? 11 ed. São Paulo: Ática, 2002.

514
BRUNELLI, Anna Flora. Notas sobre a abordagem interdiscursiva de Maingueneau. In: POSSENTI,
Sírio. BARONAS, Roberto Leiser. Contribuições de Dominique Maingueneau para a análise do
discurso do Brasil. São Carlos-SP: Pedro & João Editores, 2008.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UNB, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 15 ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2007.

MAGALHÃES, Célia. Reflexões sobre Análise Crítica do Discurso. FALE – UFMG: Belo Horizonte,
2001.

MAINGUENAEU, Dominique. Gênese dos discursos. Tradução: Sírio Possenti. Curitiba-PR: Criar
Edições, 2007.

PEDROSA, Cleide Emília. Análise Crítica do Discurso do lingüístico ao social no gênero midiático.
São Cristóvão: Editora UFS. Aracaju: Fundação Oviedo Teixeira, 2008.

POSSENTI, Sírio. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

PRATA, Rita Vilanova. MARTINS, Isabel. A produção de textos didáticos para a EJA: uma análise
do tema bactérias. ANAIS do VI ENPEC-UFMG. Disponível em:
http://www.fae.ufmg.br/abrapec/viempec/CR2/p297.pdf . Acesso em 09/04/2010.

RAMALHO, Viviane. RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto,
2006.

515
AUTORES(AS)

Alexandre Costa......... ............................................................................................. 38, 327


Ana Zandwais ...................................................................................................................43
Antonia Dilamar Araújo ...................................................................................................23
Argus Romero Abreu de Morais ......................................................................................28
Bruna Sola Ramos ......................................................................................................28, 45
Carmem J. M. Caetano ..............................................................................................11, 64
Claudiana Nogueira de Alencar .........................................................................32, 40, 393
Cleide Emilia Faye Pedrosa ........................ 21, 29, 31, 35, 41, 78, 124, 171, 220, 235, 420
Débora de Carvalho Figueiredo .................................................................................11, 96
Décio Bessa ......................................................................................................................12
Denise Tamaê Borges Sato ..............................................................................................14
Derli Machado de Oliveira .........................................................................21, 29, 109, 124
Dina Maria Martins Ferreira ....................................................................................30, 138
Elaine Cristina Forte Ferreira ...........................................................................................30
Elcivanni Santos Lima ......................................................................................................15
Elenita Gonçalves Rodrigues ...........................................................................................23
Expedito Wellington Chaves Costa ..........................................................................31, 152
Guianezza M. de Góis Saraiva..................................................................................31, 171
Gustavo Cândido Pinheiro ...............................................................................................32
Ivandilson Costa .......................................................................................................32, 185
Ivia Alves ..........................................................................................................................33
Izabel Magalhães .............................................................................................................12
João Batista da Costa Júnior ....................................................................................33, 220
João Paulo Eufrazio de Lima ............................................................................................34
João Paulo Lima Cunha ............................................................................................35, 235
José Raymundo Figueiredo Lins Jr. ..................................................................................35
José Ribamar Lopes Batista Júnior ..........................................................................15, 251
José Roberto Alves Barbosa.....................................................................................36, 272
Karina Falcone .........................................................................................................18, 289
Kennedy Cabral Nobre .....................................................................................................36
Léia Cruz de Menezes ......................................................................................................37
Lissa Mara Saraiva Fontenele ..................................................................................16, 308
Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista ........................................................................18, 39, 360
Luciana Castro..........................................................................................................38, 327
Luciane Cristina Eneas Lira ..............................................................................................38
Lucimar Bezerra Dantas da Silva.............................................................................. 39,343
Lucineudo Machado Irineu ......................................................................................39, 360
Luzia Rodrigues da Silva...........................................................................................25, 375
Marco Antonio Lima do Bonfim ..............................................................................40, 393
Maria Clara Gomes Mathias ....................................................................................42, 451
Maria Inês Rocha de Sá............................................................................................41, 411
Maria Valdênia Falcão do Nascimento ............................................................................19
Mônica Magalhães Cavalcante ........................................................................................36

516
Otávia Marques de Farias ................................................................................................19
Paulo Fernando de Carvalho Lopes .................................................................................42
Paulo Sérgio da Silva Santos ....................................................................................41, 420
Pedro Henrique Lima Praxedes Filho ..............................................................................24
Ruberval Ferreira .......................................................................................24, 42, 437, 451
Sandro Xavier ...........................................................................................................26, 464
Sérgio Nunes de Jesus .....................................................................................................43
Tatiana Rosa Nogueira Dias .....................................................................................26, 484
Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno.............................................................22, 503
Vicente de Lima-Neto ......................................................................................................30
Waltersar José de Mesquita Carneiro .............................................................................16
Weslley Mayron Cunha Pacheco .............................................................................32, 185

517
518

Das könnte Ihnen auch gefallen