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E PERSPECTIVAS DO MERCOSUL
TESES FEE Nº 5
ISSN 1676-4994
CDU 339.922(7/8=4/=6)
CIP
CRB10/509
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AGRADECIMENTOS
Ernani Torres Filho, Franklin Serrano e Carlos Medeiros, com quem muito aprendi,
esclareci dúvidas, completei lacunas de meu conhecimento e tive acesso a fontes
bibliográficas.
Ao final, estes agradecimentos vão para quem me é mais cara, Paula, minha
amada há tantos anos, que envidou esforços para estar comigo no final da estadia no Rio
de Janeiro, onde então vivemos a ansiedade da espera de nossa primeira filha, Cláudia.
Quando esta tese estava iniciando, Cláudia tinha poucos meses, e, nos três anos e pouco
de sua elaboração, ela muito engatinhou e depois caminhou em volta de minha mesa de
trabalho, num discreto e tolerante protesto à minha ausência de suas extraordinárias
aventuras infantis. E, quando o trabalho começou a ficar pronto, veio a gestação de
nossa segunda filha, Beatriz, que foi nascer à época de sua conclusão. Todo esse tempo,
a Paula teve a paciência e a generosidade de aceitar minhas ausências e suprir, com
afeto e dedicação, tudo o que se fez necessário à nossa família. Este trabalho é, também,
uma forma de retribuição a ela e a todos.
RESUMO
O capitalismo vive uma relação de eterna mudança com suas dimensões espacial e
temporal, uma decorrência de sua natureza, em permanente transformação, e do sentido da
evolução histórica desse modo de produção, o desenvolvimento das propriedades de
auto-referência e autoprodução. A integração econômica regional no Mercosul é explicada
como uma manifestação da tendência à expansão territorial das economias de mercado.
Inicialmente, é abordada a dinâmica dos sistemas econômicos capitalistas, tendo em vista
compreender seus mecanismos internos de transformação e auto-organização, o lugar das
relações sociais e das instituições na determinação do movimento do todo. Logo a seguir, é
estudada a relação do sistema capitalista com suas dimensões espacial e temporal, sua
história e seu território; a configuração do regime internacional na relação estabelecida entre os
diversos sistemas nacionais e a cena internacional sob o movimento de mundialização e
expansão regional em curso. Na seqüência, a história econômica do Cone Sul sofre uma
revisão, recolhendo em seus episódios mais significativos a presença tanto da mudança em
sua dimensão espacial quanto o desenvolvimento das propriedades de auto-referência e
autoprodução e sua crise. Por fim, é estudado o Mercosul, suas origens, seus princípios e sua
evolução nos 10 anos de existência, enfocando tanto seus resultados econômicos e comerciais
quanto institucionais, procurando identificar em que medida a integração em marcha
corresponde a um movimento de mudança na dimensão espacial das economias da região em
direção à formação de uma nova unidade em escala superior. Na conclusão, é retomado o
argumento central, tendo em vista responder à pergunta de se, através da integração, o
capitalismo do Cone Sul poderia superar os entraves ao seu desenvolvimento e retomar o
processo de afirmação de sua autonomia, dando o passo à frente que se mostrara
intransponível nos limites das fronteiras nacionais ao longo de sua história.
9
ABSTRACT
Capitalism has an ever-changing relation with its spatial and time dimensions. This is
one of its inner characteristics of permanent transformation and is a result of the development of
its properties of self-reference and self-production. Economic integration as in the case of the
Mercosur is explained in the light of this tendency to territorial expanding. First, capitalist
economic dynamics and its inner mechanisms of transformation and self-organization are
presented, as the role of social relations and institutions determining the performance of the
whole system. Secondly, the spatial and time dimensions of capitalist system are dealt of, its
history and territory; the configuration of national systems building an international regime and
globalization and regional integration are considered. Thirdly, Southern Cone economic history
is reviewed in order to look up the development of self-reference and self-production and the
transformation of its spatial dimensions. Finally, the origins, principles and evolution of the
Mercosur in its ten years existence are considered; its economic, commercial and institutional
achievements are accounted in order to realize how far this integration process should go,
transforming the spatial dimensions of regional economies and giving born to a new system in a
larger scale. As a way of conclusion, it is questioned if, through economic integration, capitalist
development in the Southern Cone could overcome its historic limits and found another road
towards growth and welfare.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .........................................................................................................
1 - SOBRE A EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS ECONÔMICOS CAPITALISTAS .
1.1 - As determinações da dinâmica histórica ..............................................................
1.1.1 - A trajetória dos sistemas: estabilidade e equilíbrio ..............................................
1.1.2 - Os nexos causais: explicação ...............................................................................
1.1.3 - As microtrilhas da explicação: relações fundamentais e formas institucionais ...
1.2 - A evolução das estruturas .....................................................................................
1.2.1 - Instituições e estruturas ........................................................................................
1.2.2 - A teoria dos sistemas ............................................................................................
REFERÊNCIAS .............................................................................................................
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APRESENTAÇÃO
“Vuelvo al sur
Como se vuelve siempre al amor
Vuelvo a vos
Con mi deseo, con mi temor
Llego al sur
Como un destino del corazón
Soy del sur
Como los aires del bandoneón
Sueño el sur
Inmensa luna, cielo al revés
Busco el sur
El tiempo abierto y su después
Quiero el sur
Su buena gente, su dignidad
Siento el sur
Como tu cuerpo en la intimidad.
“Vuelvo al sur
Llego al sur
Te quiero.”
Astor Piazzolla e Fernado Solanas, Vuelvo al sur.
suas maravilhas, um trabalho que, por vezes, é extremamente fatigante, mas também
tem seus momentos lúdicos e constantemente instiga o engenho e a poesia.
Muitos dos homens dessa época, e seu modo de vida, se foram. Sua cultura, seus
valores e sua recordação são uma parte da minha vida e de toda a sociedade do sul do
Brasil. Por muito tempo, pensamos que, apesar das animosidades fronteiriças, tínhamos
mais afinidades com os uruguaios e argentinos do que com os brasileiros do norte.
Tínhamos hábitos parecidos, os mesmos valores dessa cultura pastoril pampeana e, em
nosso linguajar campeiro, quase falávamos a mesma língua. Aqueles a quem o
imaginário social mais nacionalista, reverberando ecos das guerras que delimitaram as
fronteiras dos impérios coloniais ibéricos, identificava como inimigos, os castelhanos,
eram também os irmãos mais próximos, com quem repartíamos o telurismo e o apego
ao pampa ancestral. Éramos todos gaúchos.
Afora uma breve incursão pela área da economia rural, no início de minha
carreira profissional, foi logo de meu ingresso na FEE que pude me dedicar ao estudo
dessa região, da sina dos seus habitantes, dos gaúchos e sua terra, nos debates sobre
dependência e desenvolvimento que animavam a vida da instituição nos anos 80,
infelizmente interrompidos. O estudo da economia regional que desenvolvi depois foi
de forma menos sistemática, na militância política no Partido dos Trabalhadores, onde
tive oportunidade de exercitar o difícil encontro do interesse intelectual e da paixão pela
causa dos deserdados de minha terra. Parece irônico que a retomada desse tema, num
sentido tão radical como fiz neste trabalho, resultou de uma instigação vinda do outro
lado do mundo. Em 1995, havia terminado um trabalho sobre a acumulação de capital
na indústria brasileira com base na abordagem da regulação, o qual despertou interesse
de um grupo de pesquisadores da Wirtschaftsuniversität de Viena, com quem estabeleci
um contato profissional, que fluiu naturalmente para uma bela amizade. Por iniciativa
dos austríacos, formamos uma rede acadêmica, com a participação também de
uruguaios, argentinos, franceses e suecos, além dos brasileiros, para estudar a integração
econômica, comparando as experiências européia e sul-americana. Foi assim que o tema
do Mercosul se chegou a mim. Embora o projeto de pesquisa conjunto não tenha
avançado muito, apenas mexer com esse tema despertou-me um interesse que se somou
às minhas preocupações sobre o desenvolvimento brasileiro, logo revelado tão intenso
quanto a evocação dessas lembranças antigas e que acabou por se constituir no projeto
desta tese.
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mesmo tempo, foi preciso fazer uma, ainda que breve e arriscadamente seletiva,
releitura da história econômica dos quatro países formadores do Mercosul, para
compreender o desenvolvimento dos fatores presentes na determinação do processo de
integração. A maneira como foram se constituindo os sistemas econômicos nacionais,
sua evolução do modelo primário-exportador para o desenvolvimentismo da
substituição de importações, marcou a nova natureza desses sistemas no século XX, na
medida em que alcançaram a consolidação de uma estrutura urbano-industrial auto-
-referenciada. A crise e a interrupção dessa trajetória ao final do século conduziram e
deram os limites para o processo de aproximação entre os quatro parceiros.
Desde que Newton formulou as leis da mecânica clássica, através das quais
acreditava subsumir a dinâmica da matéria, sua maneira de pensar vem tendo uma
avassaladora influência sobre a comunidade científica. Os paradigmas com que o
mundo vem sendo interpretado, em sua grande maioria, supõem que os sistemas
naturais, do microcosmo atômico à gravitação estelar, sigam trajetórias reversíveis de
equilíbrio. Dentre as ciências sociais, a Economia foi, desde seu nascimento, fortemente
influenciada por esse paradigma da dinâmica como trajetória em direção ao equilíbrio, o
que pode ser facilmente percebido na mão invisível de Smith ou no estado estacionário
de Ricardo. A formalização do marginalismo neoclássico através de Walras e Marshal,
por seu lado, ao reformular os fundamentos da economia com o intuito de transformá-la
em uma disciplina científica “pura”, completou a tarefa de submeter estreitamente seus
princípios ao paradigma da mecânica clássica (Vercelli, 1994).
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Para dar um passo à frente no sentido de levar em conta essa diferença, vou
lançar mão de uma contribuição à teoria dos sistemas surgida durante os anos 70, no
campo da biologia. Num desenvolvimento que buscava uma reconsideração da distinção
entre matéria viva e matéria inanimada, os chilenos Maturana e Varela desenvolveram
uma nova definição do que seja um sistema vivo, descrito com base em sua capacidade
de autoprodução. Sua teoria foi formalizada através da proposição de um novo conceito
com o fim de dar conta de uma característica específica desses sistemas, a qual
denominaram “autopoiesis”, um helenismo que significa autoprodução ou autocriação
(Maturana; Varela, 1987). De maneira geral, os sistemas muito complexos têm a
característica de serem homeostáticos, pois regulam seu funcionamento de forma a se
adequarem às modificações do ambiente. Um sistema autopoiético, na definição de
Maturana, é um sistema homeostático que tem sua própria organização como a variável
crítica fundamental que visa manter constante (Whitaker, 1996). Considerando que a
manutenção da própria organização é a característica essencial do organismo vivo,
organização entendida como a rede de relações que define o organismo como uma
unidade sistêmica, os organismos vivos podem, então, ser descritos como sistemas
autopoiéticos.
general idea of closure may well be applicable” (Mingers, 1995, p. 152). Na seção 2,
voltarei a essa discussão.
Para explicar este “o que têm em comum”, não basta reduzir os diversos objetos
e processos a tipos na forma dos conhecidos agentes representativos, cujo
comportamento seria a expressão completa de toda a realidade de um certo conjunto de
indivíduos com as mesmas características, como fazem os neoclássicos recorrendo às
figuras da firma, do trabalhador, do investidor, etc. Embora seja proveitoso o recurso a
tipos para a explicação científica, como forma de dar conta deste “o que têm em
comum” de diversos casos, a questão é a que podem ser reduzidos os tipos, se a meras
propriedades relacionais de indivíduos ou se existem tipos relacionados a entidades
sociais agregadas que sejam irredutíveis a indivíduos. Responder afirmativamente a esta
última indagação é negar o individualismo metodológico.
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“Dans les sciences de la matiére et dans les sciences de la vie, ont sait
que les phénomènes microscopiques et macroscopiques ne peuvent pas
êtres décrits à l’aide des mêmes outils formels de la pensé. Les
régularités macroscopiques ont leur autonomie. Cependant, en
économie, l’individualisme méthodologique a une virulence particulière.
L’attraction pour les fondemants microéconomiques de la
macroéconomie est telle que l’opinion dominante est de nier l’osbtacle,
donc de perpétuer le postulat d’homogénéité envers et contre tout.”
(ibidem).
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De um outro lado, a posição que venho defendendo aqui leva também à rejeição
da posição que Wright, Levine e Sober chamaram de holismo radical, e que se pode
bem identificar em algumas das versões mais populares do marxismo. De um lado, a
concepção teleológica a favor do determinismo no processo histórico, visto como mera
resultante da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a forma das
relações de produção, posição que foi muito difundida pela Academia de Ciências da
antiga União Soviética. Discordando da posição teleológica dentro do pensamento
marxista, o estruturalismo encabeçado por Louis Althusser descrevia a História como
um processo sem sujeito nem fim. No entanto, não deixava de incorrer numa forma de
holismo mais que radical, ao definir os indivíduos como meros suportes das relações
sociais.8 Especificamente em relação ao método da economia, segundo sua
interpretação, os fenômenos econômicos devem ser definidos por seu conceito, o que
tem a seguinte implicação metodológica:
equívoco do qual este trabalho guarda distância, a crença de que as ações dos indivíduos
não têm qualquer poder de determinação dos fenômenos sociais, são sempre efeitos ou
epifenômenos e nunca causa.
A posição que adoto nesta tese admite um horizonte um tanto mais alargado para
a construção da explicação nas ciências sociais, no qual os percursos possíveis
englobam tanto determinações individuais quanto sociais ou estruturais para os
fenômenos que são estudados. Wright e seus colaboradores admitem quatro caminhos
diferentes para a construção dos enunciados explicativos, mas argumentam que
causalidades estruturais só se efetivam através de um nexo explicativo que inclua,
necessariamente, a conduta e as propriedades dos indivíduos. Em suas palavras:
Figura 1.1
Paradigma Modo de
tecnológico desenvolvimento
Conflitos
localizados
Distribuição da renda
e da riqueza
Legenda:
Determinação
Condicionamento
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valor”. Por essa razão, Lipietz (1982) argumenta a favor da maior relevância explicativa
do plano esotérico.
sistema. Por outro lado, é também nesse plano que, a partir da evolução do
conhecimento e das interações entre os agentes envolvidos, se configura o paradigma
tecnológico, o qual vai definir condicionantes e limites ao ritmo da cumulação. São as
relações aparentes, visíveis num nível concreto, para o qual Lipietz (1982), seguindo a
já referida passagem de Marx (1863), adotou a denominação de exotérico.
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Figura 1.2
Paradigma
tecnológico
Modo de
desenvolvimento
Modo de regulação
Forma da
concorrência
Padrão monetário
Relação salarial
Tipo de Estado
Regime
internacional
Legenda:
Determinação
Condicionamento
Reciprocidade
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A compreensão desse diagrama ainda requer, para sua maior clareza, que seja
apresentada uma definição das categorias utilizadas. O ponto de partida desse
esclarecimento é a análise da gênese das formas institucionais, o conceito que liga os
diversos níveis da análise. Na obra fundadora da abordagem da regulação, Aglietta
(1976) adiantou o conceito de forma estrutural (o que depois passou a ser chamado de
forma institucional), definido como um “mode de cohésion des formes sociales issues
du développement d’un même rapport social fondamental” (Aglietta, 1976, p. 163). Em
outras palavras, uma certa forma de organização social, constituída a partir de algumas
relações sociais fundamentais, desenvolve-se e adquire maior complexidade num
percurso em que essas relações sociais dão origem a um conjunto de instituições que
estabilizam e dirigem o processo de manutenção e reprodução dessa sociedade. Alain
Lipietz produziu um desenvolvimento mais completo dessa problemática, como já
referido, a partir da distinção hegeliana, apropriada por Marx, entre aparência e
essência. Em Lipietz (1979) e depois em Lipietz (1982), ele vai estabelecer uma relação
dialética entre as relações fundamentais, constitutivas do plano interno da análise
(esotérico), a posse econômica — que aqui trato como relação de apropriação —, a
relação mercantil e o assalariamento e suas formas aparentes (exotéricas). Um retorno à
obra de Marx e a leitura de outros autores que também estudaram a história do
capitalismo, como Polanyi e Braudel, de certa forma antecessores da abordagem da
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Alguém que tenha estudado a obra de Marx não deixará de perceber a presença
de uma preocupação que buscava reiteradamente traçar um paralelo entre a derivação
lógica de um conceito e a gênese histórica da relação social por ele representada. Em O
Capital (Marx, 1867), ele afirma que o modo de produção especificamente capitalista
começa a existir com a introdução do trabalho assalariado na indústria manufatureira da
Europa. Isso só foi possível, entretanto, porque a existência de outras duas relações
sociais fundamentais haviam já criado o ambiente em que o uso do assalariamento
pudesse assumir sua forma capitalista. Essas outras relações foram a forma capitalista
de propriedade privada dos meios de produção — a relação de apropriação —, através
da qual esses mesmos meios de produção se transformam em capital, e a troca
intermediada por moeda — a relação mercantil —, através da qual é possível a
separação entre valor e valor de uso, base da acumulação capitalista da riqueza abstrata.
Como afirmei acima, a gênese das formas institucionais que formam o modo de
regulação são as relações fundamentais do modo de produção. Na linguagem de Lipietz,
o esotérico manifesta-se como determinação no exotérico. O caminho dessa gênese
começa com as relações fundamentais, a partir das quais se formam as normas jurídicas
que regulamentam as relações, as quais instituem as mercadorias fictícias expressões
dessas normas. Num último passo desse percurso, são constituídas as formas
institucionais que formam o modo de regulação, quando então o tecido institucional que
estabiliza a acumulação de capital encontra o melhor ambiente para seguir sua marcha.
A Figura 1.3 representa esse percurso.
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Figura 1.3
Forma da
Apropriação Propriedade Terra
concorrência
Relação Restrição
Equivalência Dinheiro
mercantil monetária
Relação
Assalariamento Exploração Trabalho
salarial
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ambiente social onde este se formou, a saber, a forma do Estado e a forma de adesão
ao regime internacional. A primeira tem origem na configuração do poder político e na
especificidade de sua relação com a vida econômica, ao passo que a segunda nasce do
tipo de articulação estabelecida entre uma determinada formação social nacional e o
sistema internacional no qual está inserida.
Voltarei a esse ponto no Capítulo 2. Por ora, basta reter que a construção das
estruturas que dão forma ao sistema econômico, o regime de acumulação, as formas
institucionais e sua articulação em um modo de regulação, a combinação entre ambos na
definição do modo de desenvolvimento, tem uma dimensão espacial.
crise, permanece existindo. Entretanto, pela peculiaridade dessas fases, é uma existência
que vivencia, necessariamente, um processo de transformação mais acelerado do que
nas fases de estabilidade, pois, como já o sabia Camões, “(...) todo o mundo é composto
de mudanças, tomando sempre novas qualidades”, uma maneira de apreender a
dicotomia crise/estabilidade é reparando na velocidade das mudanças.
Uma contribuição com origem fora da tradição marxista, mas que, como a TR,
busca se situar num meio caminho entre causalidade estrutural e individualismo
metodológico, é a apresentada pelos institucionalistas e evolucionários. Seu argumento
é inspirado num dilema metodológico que envolve as ciências da matéria, o qual tem
revelado a impossibilidade de um único sistema teórico dar conta de fenômenos tanto
do plano micro quanto do macro. 14 Embora a busca incessante pelos físicos de uma
resposta teórica capaz de produzir a Grande Unificação — movimento correspondente à
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Num percurso que os aproxima muito da TR, os autores com essa filiação
teórica lançam mão do conceito de instituição para fazer uma passagem entre os níveis
micro e macro. O conceito de instituição guarda grande semelhança com as formas
institucionais na TR, abrangendo o conjunto de mecanismos que condiciona e dirige o
comportamento dos indivíduos, na forma de normas, regras e convenções, sejam
formalizadas como leis ou regulamentos, sejam informalmente como hábitos e valores
de conduta. Por sua estabilidade e relativa invariância e por perdurarem mais que os
indivíduos, as instituições formam, segundo Hodgson, a unidade última de análise
(bedrock unit). “Hence, institution is a ‘socially cosntructed invariance’. As a result,
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institutions can be taken as the units and entities of analysis.” (Hodgson, 1996, p. 12).
Mais adiante, ele resume:
Embora Frank Hahn tenha sua parcela de razão quando lembra que, em
comparação com o modelo científico preferido pelos economistas — a mecânica
clássica —, a História e a Biologia são ciências do incerto, especificamente esta última
trouxe uma relevante contribuição a uma maior segurança e, portanto, menor incerteza
na difícil tarefa enfrentada pela comunidade científica no tratamento de sistemas muito
complexos. Trata-se dos conceitos de fechamento organizacional e “autopoiesis”,
apropriados à compreensão do tipo de sistema muito complexo ao qual pertencem as
sociedades humanas, no qual se sobressaem as características de auto-referência e
autoprodução dos seus elementos constitutivos. Essas sociedades são aquelas mais
complexas, convencionalmente ditas desenvolvidas, que têm estruturas de regulação e
controle, as quais se foram diferenciando ao longo de sua evolução, no sentido de se
tornarem subsistemas auto-referenciados, em que as propriedades autopoiéticas se
desenvolveram.
desses dois fenômenos presentes nas sociedades capitalistas, aos quais já fiz referência e
que são decisivos para sua compreensão: diferenciação e auto-referência.
A solução dessa dificuldade é dada pelo retorno a Marx e sua teoria da relação
social como elemento constitutivo da sociedade. Ao contrário da comunicação, a
relação social é irredutível, pode haver comunicação sem sociedade, mas não pode
haver sociedade sem relação entre os indivíduos, assim como pode haver indivíduo fora
da sociedade (Os Robinsons de que tanto Marx fazia troça), mas só pode haver
sociedade se os indivíduos entrarem em relação uns com os outros. Da mesma forma, as
fronteiras do sistema são estabelecidas pelo tipo de relação entre os indivíduos. As
relações entre os indivíduos dentro de um sistema social são ou diretas, ou medidas por
instituições internas do sistema, elas também são relações sociais, ao passo que as
relações entre indivíduos pertencentes a sistemas sociais diferentes são mediadas pelos
próprios sistemas, por instituições criadas para essa tarefa específica, as quais são
diferenciadas para essa função específica. Quer dizer, são criadas para agirem como
fronteiras do sistema.
O sistema social pensado nos termos marxistas, como constituído pelas relações
sociais entre os indivíduos, pode ser interpretado como um sistema autopoiético, uma
vez que obedece a três características definidoras. Primeiro, é auto-referenciado, na
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medida em que seu funcionamento resulta de mecanismos que lhe são internos (os
mecanismos “automáticos” de reprodução do regime de acumulação e as formas
institucionais da regulação dão conta de comandar o funcionamento do sistema);
segundo, produz os elementos que o compõem, uma vez que as relações sociais são
criadas pelas relações sociais (o conceito de reprodução do sistema de Marx); e,
terceiro, suas fronteiras são delimitadas por relações específicas, que dão conta de
distinguir o sistema de seu meio (a legislação sobre o contrabando, por exemplo, define
o que está dentro e fora de um sistema econômico).
Para retornar à analogia biológica, nos seres vivos, órgãos e tecidos são
elementos do sistema e guardam com este uma relação funcional. São produzidos pelo
sistema e cumprem, para a continuidade dele, um determinado papel (os rins fazem a
filtragem do sangue, etc.), que é referenciado externamente na totalidade do sistema. Os
subsistemas sociais, políticos, religiosos ou econômicos nascem com essa referência
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exterior de sua funcionalidade para com a ordem social, que tem um centro na
organização de sua totalidade e que subordina seus diversos subsistemas. Entretanto, no
caso em que a sociedade tenha passado por um processo de diferenciação no qual alguns
desses subsistemas tenham evoluído no sentido de se tornarem auto-referenciados,
estar-se-ia diante de dois novos problemas. Primeiro, a sociedade ter-se-ia tornado
policêntrica, seu funcionamento já não seria dirigido por uma estrutura de poder
unitária, comandada por seu arranjo de poder político; em lugar disso, seus diversos
subsistemas coexistiriam organizados em torno de centros próprios. Segundo, seria
preciso encontrar uma explicação para o fato de a coevolução desses sistemas seguir
uma trajetória que preserva a unidade do todo social que fosse além de uma explicação
trivial com o recurso do acaso ou de uma ordem resultante da adaptação do sistema na
busca de um menor ruído em sua relação com o ambiente.
1
Isso não significa que a modelização matemática seja inútil ou equivocada. Com certeza, alguns
aspectos do sistema econômico podem e são melhor compreendidos com o uso da linguagem
matemática. Entretanto minha convicção é que o sistema como um todo não pode ser tanto explicado
quanto predito por um modelo determinístico, seja linear ou não-linear.
2
Pois essa adaptação é um processo exterior, uma mera mudança de um comportamento que não perde
suas características “racionais”, apenas modifica suas relações com o meio, sem se transformar.
3
É interessante lembrar que o conceito de vida e morte de Freud ilustra uma concepção convergente com
a que defendo aqui. Freud associou à vida o conceito de crise, em função dessa característica de
transformação permanente através da qual os indivíduos percorrem todas as idades e etapas de sua
existência. Por oposição, à morte corresponde o equilíbrio de uma volta ao estado inanimado. A idéia
polêmica da pulsão de morte representaria o desejo de encontrar a estabilidade, de libertar-se do
estresse da transformação permanente, só possível com o fim da vida (Freud, 1920).
4
Varela (1981) não aceita a extensão do conceito, preferindo descrever os sistemas sociais como
autônomos, pois as interações sociais não poderiam ser descritas como “produção de componentes”,
como as reações químicas do organismo vivo. Suas relações internas seriam do tipo acordos
lingüísticos ou troca de instruções, as quais possibilitam sua permanência e adaptação às circunstâncias.
Minha discordância em relação a essa posição será apresentada mais adiante.
5
Esse ponto está desenvolvido na subseção 1.2.
6
Infelizmente, a edição brasileira citada apresenta problemas de revisão. Em razão disso, alguns erros de
português permaneceram, os quais tomei a liberdade de, nas citações aqui feitas, corrigir sem
especificar formalmente.
7
É esse o método que inspirou, por exemplo, o muito citado e brilhante ensaio sobre o golpe de Estado de
Luís Buonaparte que proclamou o Segundo Império na França, em 1852 (Marx, 1853).
8
É interessante fazer duas anotações aqui em relação a algumas das versões mais conhecidas do
marxismo, as quais vou descrever, usando um termo de Wright et al., como fundamentalistas. Uma
primeira em relação à crença na superação do capitalismo pela planificação centralizada, que incorre no
mesmo equívoco da teoria neoclássica de considerar a sociedade homogênea, ponto ressaltado por
Aglietta (1997) ao lembrar a posição de Oskar Lange no debate mercado versus plano. Naquela
discussão, Lange demonstrou a igualdade de ambos, desde que admitida uma suposição de
homogeneidade, no caso as expectativas racionais, em vista da qual tanto a concorrência quanto o
planejamento podem ser “perfeitos” e, assim, perfeitamente substituíveis na medida em que levariam à
mesma e necessariamente única alocação ótima. A segunda versão apóia-se na crença em uma
causalidade em última instância da luta de classes. As análises que explicam tudo pela contradição
capital-trabalho caem no mesmo reducionismo do individualismo metodológico, pois, ao fim e ao cabo,
toda a explicação é reduzida a propriedades relacionais dos indivíduos.
9
Como tratarei de demonstrar mais adiante, a contribuição de Marx, ao definir como elemento
fundamental do sistema a relação social, resolve uma dificuldade em que ficaram presos Luhmann e
outros autores que aplicaram a teoria autopoiética à sociedade e definiram como componente
fundamental a comunicação. Foge de propósito discutir Habermas aqui, mas, em minha opinião, a
comunicação é um instrumento, um suporte da relação social, ao qual esta não pode ser reduzida,
mesmo quando, eventualmente, uma relação social possa se resumir a um ato comunicativo.
10
Quanto a esta última, vou discutir mais adiante a dimensão espacial da regulação.
11
Não estou esquecendo aqui que Braudel também definiu o capitalismo a partir da relação entre dinheiro
e poder, mas, como procurarei deixar claro mais adiante, essas definições são complementares e não
excludentes.
12
Marx não usa o termo relação de apropriação, fazendo referência apenas à norma da propriedade. A
origem do termo foi inspirada em Charles Bettelheim (1970), onde essa relação é chamada de posse
econômica.
13
Era assim que Marx chamava o ordenamento jurídico dos regimes constitucionais que instituíram o
direito civil moderno.
53
14
É, por exemplo, o caso da física, onde persiste uma incompatibilidade entre a teoria quântica e a teoria
da relatividade.
15
Mingers (1995) levanta outras críticas ao uso do conceito de “autopoiese” por Luhmann, que, no
entanto, são menos importantes aqui.
54
2 - AS DIMENSÕES DA ECONOMIA
espaço ficando cada vez mais próximo. Uma primeira característica dessa relação já foi
referida no capítulo anterior, quando argumentei a respeito da unidirecionalidade do
tempo nas relações sociais: o fato, trivial do ponto de vista do senso comum, de que os
fenômenos sociais são irreversíveis e dependentes de outros fenômenos que tenham
acontecido com anterioridade. Uma segunda característica dessa relação é o estar em
mudança permanentemente, mudança com um sentido no qual a velocidade do tempo é
sempre crescente, e as distâncias no espaço são cada vez maiores. Essa característica de
um tempo que passa cada vez mais rápido e de um espaço em que os lugares parecem
cada vez mais próximos foi descrita por Milton Santos (1994), através do conceito de
aceleração, e por Harvey (1989), pela noção de compressão do tempo-espaço.
Segundo esse autores, a idade moderna e a sociedade capitalista que lhe deu forma
operaram uma brutal intensificação do processo de ampliação do espaço e aceleração do
tempo, que vem mudando a relação da sociedade com essas duas grandezas.
Tendo por base uma análise da dinâmica capitalista, Harvey (1989) descreve
esse fenômeno através do que chamou de ciclos de compressão do espaço-tempo, por
meio dos quais as barreiras geográficas vão sendo superadas, com o que o espaço vai
ficando contínuo, os diferentes ritmos de passagem do tempo vão se aproximando e sua
marcha vai ficando sincrônica. Nesse processo, aquilo que Santos chama de lugares vai,
cada vez mais, desaparecendo através da incorporação de todas as formações sociais ao
sistema econômico capitalista.
Avançando um tanto mais, vou recorrer a outro autor, Fernand Braudel, para
identificar o processo material determinante das transformações nas dimensões do
espaço e do tempo sociais sob o capitalismo. Num estudo da história do capitalismo
(Braudel, 1979), ele vai mostrar por que o desenvolvimento da instituição do mercado é
a determinação fundamental das transformações nas dimensões do espaço e do tempo
desse modo de produção. Minha leitura de seu argumento é a que segue.
Foi necessário, entretanto, esse interstício milenar para que a relação mercantil
alcançasse seu pleno desenvolvimento nos tempos modernos e se constituísse em uma
das relações sociais fundamentais sob a égide do capitalismo. O modo de produção hoje
dominante em todo o planeta resultou da evolução da relação mercantil, da
transformação de relação social — que é a relação de apropriação — e do surgimento de
mais uma relação fundamental, a relação de assalariamento. A apropriação é a base da
divisão da sociedade em classes, específica do capitalismo, fundada no monopólio da
propriedade dos meios de produção pela burguesia. A partir dessa condição desigual, a
58
classe dominante pôde impor outra relação aos trabalhadores, o assalariamento, uma vez
que, como proprietários apenas de sua força de trabalho, após perderem o acesso à terra,
precisavam submeter-se aos ditames de quem detinha os meios de produção para
garantir sua sobrevivência. Essa relação constituiu-se no mecanismo de exploração e
apropriação do excedente na sociedade, na forma da mais-valia criada pelo trabalho
produtivo. Mesmo que não faça sentido estabelecer uma hierarquia dessas três relações
fundamentais, a relação mercantil tem, indubitavelmente, um papel conformador da
sociabilidade capitalista, como já havia percebido a investigação de suas raízes levada a
cabo por Marx e desenvolvida com o rigor que lhe era próprio na teoria do fetichismo
da mercadoria.
“(...) acumulai, acumulai, assim mandam Moisés e os profetas!” Com essa frase,
Marx (1857) sintetiza a lógica do capital, o fim último da sociedade regida pelo
fetichismo da mercadoria: a acumulação do valor abstrato, da riqueza pela riqueza, pois
essa é a forma como se acumula poder no capitalismo. Na maior parte das formações
sociais que se seguiram ao surgimento da civilização, a acumulação de poder esteve,
geralmente, mais ligada à expansão territorial, argumento defendido por Arrighi, ao qual
voltarei adiante. Sob o capitalismo, entretanto, a submissão do espaço pelo capital
prescinde de sua conquista política ou militar, embora possa, eventualmente, se servir
dela. O espaço social é submetido pelo capital quando a relação mercantil se sobrepõe
59
às demais relações sociais e institui sua sociabilidade quando sua vida é subordinada à
lógica da mercadoria, quando a acumulação da riqueza abstrata é a fonte principal de
poder, quando o fetiche da mercadoria envolve com seu véu todas as formas da
existência social.
8
Marx desenvolveu o conceito de lei do valor para explicar o processo de auto-regulação do sistema
econômico capitalista através da concorrência.
61
suas dimensões cada vez mais ampliadas, na medida em que a maior circulação de
mercadorias permitia romper com as limitações da duração do ciclo produtivo local, e,
também, como provocou uma mudança na experiência do tempo, na medida em que a
ampliação das dimensões do ciclo econômico permitiu um aumento concomitante do
fluxo de informações, proporcionando uma maior velocidade aos processos sociais e
políticos, acelerando o próprio curso da História.
2.2 - O espaço
9
Mais do que isso, aparentemente, as transformações tecnológicas atualmente em curso estão abrindo a
possibilidade de uma mudança mais radical ainda da relação entre economia e espaço. Como sugere o
exemplo das compras pela internet, o espaço mesmo pode tornar-se virtual. As implicações de uma tal
transformação ainda são pouco claras, embora os arautos da globalização já tenham anunciado o fim das
distâncias. É certo que a possibilidade, já concreta para alguns setores, da produção à distância e do
funcionamento de mercados e processos em tempo real indica uma tendência de transformação das
relações sociais, cujos desdobramentos deverão ter um largo alcance.
63
Após a interrupção dessa discussão pela II Guerra, o tema foi retomado pelas
teorias do subdesenvolvimento e da dependência. Em que pese sua importância, esse
debate, entretanto, esteve circunscrito à tentativa de compreender o lugar da periferia no
sistema econômico mundial. 10 Apenas mais recentemente, Braudel, Wallerstein ou
Hobsbawm puseram o enfoque dessa temática na perspectiva da compreensão do
capitalismo como sistema mundial que tem uma relação muito particular com a
dimensão espacial.
10
Um avanço importante do debate sobre a dependência foi a crítica à visão determinista, que via o
imperialismo como uma força exterior a prevalecer sobre os lugares da periferia. Ao contrário, sua
visão do regime internacional desvenda uma lógica a posteriori, como resultado da justaposição dos
diversos sistemas nacionais encaixados numa rede de relação construída entre si. É claro que, sendo
seus pesos absolutamente desproporcionais, uns podem mais e impõem condições aos demais.
Entretanto, como enfatizou Lipietz (1985), na maior parte das situações, as determinações internas são
as decisivas.
64
A primeira dessas formas foi o mercado local, uma unidade econômica formada
por um burgo e as aldeias circunvizinhas. O espaço era delimitado pela necessidade de
os aldeães poderem se deslocar até o mercado e retornar a suas casas no tempo de um
dia. O mercado do burgo, onde a população resolvia suas necessidades de troca, era
controlado pelos comerciantes locais e funcionava em obediência à regulamentação do
poder político a que estava submetido. Os participantes eram concessionários com
direitos de monopólio e exclusividade sobre as atividades de circulação, produção e
troca de bens e serviços.
2.3 - O tempo
sistema ou os diversos valores assumidos por uma variável, da mesma forma como no
cálculo, o tempo fica reduzido a um rótulo de variável, é apenas um subscrito t + x.
Nessa condição, o que já foi referido acima, o tempo perde sua característica mais
importante, a irreversibilidade, o princípio de que tem uma direção, uma flecha.
Recentemente, o manifesto irrealismo do postulado neoclássico em relação ao tempo
tem provocado reações mesmo dentro do mainstream e suscitado toda uma nova linha
de investigação que leva em consideração a “dependência do caminho”. Infelizmente, a
recuperação do significado do tempo nessa perspectiva tem um alcance muito reduzido,
admitindo tão-somente a circunstância em que a ocorrência de um determinado evento
reduz o leque de possibilidades dos novos eventos.
A Figura 2.1 mostra como essa dinâmica vem acontecendo ao longo da história
do capitalismo; a partir do advento de um novo regime de acumulação, na sucessão de
uma crise,12 um novo estágio inaugura-se. A dinâmica entre o regime de acumulação
novo e o modo de regulação anterior acaba por produzir uma nova crise, a qual abre
espaço para a instituição de um novo modo de regulação, adequado ao regime de
acumulação vigente, propiciando uma nova fase de expansão. Essa nova fase de
expansão, por sua vez, proporciona um período de auge do modo de desenvolvimento,
no qual a combinação virtuosa entre regulação e acumulação possibilita uma expansão
do regime até seus limites. Alcançado esse ponto, sobrevém nova crise, só resolvida
pela formação de um regime de acumulação novo, inaugurando novo estágio que
perdura até as contradições entre a regulação antiga e o regime novo forçarem, através
de nova crise, a formação de uma nova regulação, e assim por diante.
Para descrever melhor esse processo, vou tomar como exemplo o período
correspondente ao último modo de desenvolvimento, o fordismo. Conforme mostra a
Figura 2.1, suas origens podem ser encontradas na crise iniciada nos anos 70 do século
11
Para uma descrição dessa periodização, ver Aglietta (1976), Boyer (1986) e Boyer e Saillard (1995).
Em outro trabalho (Faria, 1997), faço um apanhado dos determinantes da expansão e do declínio do
modo de desenvolvimento fordista, quer em sua versão central, quer na forma como existiu na periferia.
Especificamente em relação a uma análise da economia brasileira, ver Faria (1996) e Conceição
(1989b).
12
Refiro-me aqui ao que a Teoria da Regulação chama de grande crise, ou crise da regulação, e não às
pequenas crises, ou crises na regulação, as quais são resolvidas sem necessidade de mudança estrutural
do sistema (Conceição, 1989a; 1989b; Faria et al., 1989).
69
XIX, a qual marcou o fim do regime de acumulação extensiva, que começou a ser
substituído por um novo regime, o intensivo, constituído a partir do surto de inovações
de então, que acabaram por propiciar a criação da linha de montagem, o uso da energia
elétrica, do motor à explosão e da indústria automobilística. Durante suas primeiras
décadas de existência, o novo regime conviveu com as formas institucionais do modo de
regulação concorrencial, herdadas do estágio de desenvolvimento anterior, com suas
características liberais: Estado não-intervencionista, moeda de padrão ouro, forma da
concorrência livre, relação salarial concorrencial. Numa primeira fase, que perdurou até
a crise de 1929, o novo regime vivenciou um período de crescimento impulsionado
pelas energias liberadas pelas inovações na esfera da produção, seja de produto, seja de
processo. Entretanto a contradição entre o novo na acumulação com o velho na
regulação acabou por provocar a Grande Depressão e a crise internacional decorrente. O
final dessa etapa, na Figura 2.1 denominada pré-fordismo, foi produzido pelas
mudanças políticas e institucionais dos anos 30 e da II Guerra, que acabaram por gerar o
novo modo de regulação monopolista e suas formas institucionais adequadas a sustentar
a expansão do regime de acumulação fundamentalmente em razão de sua capacidade de
desatar o nó da insuficiência de demanda efetiva resultante do arranjo de regulação
anterior. Para tanto, foi decisiva a contribuição das novas formas institucionais,
principalmente a do Estado intervencionista ou keynesiano, e a da relação salarial
fordista.
Entre o final dos anos 60 e o começo dos 70, o regime de acumulação intensivo
começou a dar sinais de esgotamento, manifestos em redução do ritmo de crescimento
da produtividade, a variável mais importante para o desempenho do sistema, e em queda
da taxa de lucro, com efeitos depressivos sobre o investimento. De lá para cá, uma série
de mudanças têm afetado os sistemas econômicos individuais e o arranjo internacional
dos mesmos, mudanças estas ainda difíceis de serem compreendidas em seus resultados,
o que será tratado ao final deste capítulo e que explica as interrogações ao final da
Figura 2.1.
Figura 2.1
Os estágios de desenvolvimento e os ciclos sistêmicos de acumulação
1450
Acumulação
primitiva
Regulação
1630 antiga Mercantilismo
Ciclo holandês
1780
Acumulação
extensiva Liberalismo Ciclo inglês
Regulação
1870 concorrencial
Pré-fordismo
1930
Acumulação
intensiva
2000 Acumulação
flexível? ? ?
71
Uma marcada diferença entre as duas abordagens, o que, a meu ver, as torna
ainda mais complementares, é que, enquanto Arrighi segue os passos de Braudel e
centra sua análise num plano mais geral, aquele da ordem mundial (a economia-
-mundo), a Teoria da Regulação enfoca os sistemas econômicos nacionais, para os quais
o resto do mundo aparece como um fator de redução dos graus de liberdade das
trajetórias nacionais, pois que são, necessariamente, condicionadas pelo que chamam de
regime internacional. A semelhança encontrada em algumas trajetórias seguidas por
sistemas nacionais com níveis similares de desenvolvimento, como pode ser constatado,
por exemplo, nos estudos históricos que interpretaram o modo de desenvolvimento
fordista, vigente na maior parte dos países da Europa Ocidental e da América do Norte
desde o final dos anos 40, deve-se, unicamente, às tendências originadas internamente a
seus sistemas econômicos, semelhança que decorre da natureza capitalista comum a
todos esses sistemas nacionais e da proximidade de seus níveis de amadurecimento.
Uma mesma parecença pode ser encontrada entre os países latino-americanos que
seguiram trajetórias desenvolvimentistas, tema tratado nos próximos capítulos. 13
13
Isso não exclui a possibilidade de trajetórias singulares, como mostra o exemplo da Argentina, que
“desembarcou” do fordismo na segunda metade dos anos 50.
72
Robert Cox (1986) faz uma crítica dessa teoria dizendo que o domínio de um
Estado pode ser uma condição necessária, mas não suficiente para a hegemonia. Em
uma teorização mais aprofundada e abrangente, demonstra que mais importante é a
estabilidade do regime internacional, a qual, na sua opinião, depende da configuração de
uma certa ordem material (o sistema produtivo e o potencial de destruição), da
prevalência de certas idéias (uma imagem coletiva da ordem mundial e as razões
intersubjetivas que induzem comportamentos e ações) e de instituições que sejam
instrumento da manutenção e da perpetuação dessa ordem. A constituição desse sistema
de hegemonia é um processo bem mais complexo, bastante instável, e depende das
relações entre os Estados e das forças sociais que determinam a ação desses Estados.
74
Em outras palavras, tanto para Cox como para os teóricos da estabilidade hegemônica,
não existiria um regime internacional puramente econômico, pois em sua formação,
necessariamente interviriam outras relações sociais, políticas e ideológicas. A
articulação entre sistemas econômicos só se realiza com o concurso dessas outras
esferas da vida social. Esse é um primeiro argumento em favor de não considerar a
ordem econômica internacional um sistema econômico, uma vez que tem determinantes
políticos, sociais e ideológicos tão ou mais importantes que os econômicos.
14
Remeto o leitor à crítica do conceito de forma institucional da adesão ao regime internacional feito
mais acima e inspirada por Becker (1999).
75
Mais adiante, diz que o regime internacional tem uma lógica integradora, no
sentido de dirigir e canalizar as energias de crescimento do sistema econômico:
É da própria lógica desse regime que uma forte tendência à uniformização dos
espaços se faça presente, ao mesmo tempo em que a característica de
complementaridade entre esses diferentes espaços esteja calcada em suas peculiaridades
e especificidades. Por essa razão, Mistral completa sua definição com as seguintes
palavras:
76
15
Se fosse buscar uma forma de organização comparável na natureza, seria a de uma manada de
cavalos — aliás, já merecedora da atenção de estudiosos dos mercados financeiros —; um agrupamento
de sistemas autopoiéticos hierarquizado, com um macho adulto e mais forte como líder e uma rede de
relações entre os demais membros do grupo com papéis definidos para cada um (fêmeas em idade
reprodutiva, jovens machos, filhotes, etc.), mas que não chega a formar um sistema.
77
Antes disso, convém lembrar que, da mesma forma que em ciclos de compressão
do espaço-tempo anteriores, um impulso tecnológico torna possível às sociedades que
lhe têm acesso vivenciar essa mudança de relação com suas dimensões espacial e
temporal,16 principalmente em função da revolução dos meios de transporte e
comunicação. Isso não é um argumento em favor de uma teoria de determinismo
tecnológico da mudança social, do tipo “o estribo criou a Idade Média”, pois a mudança
técnica é que é socialmente dirigida, mas, uma vez realizada, condiciona a mudança
social de então para adiante. É assim que se criam as bases de um novo regime de
acumulação no sentido que dão a esse conceito as teses da regulação. Mais ainda, e para
encerrar essa digressão, no capitalismo industrial, o progresso técnico é endógeno, é
uma necessidade sentida pelos agentes econômicos decisivos para incrementar sua
16
Repetindo uma analogia com a física, como faz Harvey: uma situação de alta energia causa uma
deformação do contínuo espaço-tempo que comprime as distâncias e abrevia o transcurso do tempo,
mudando a percepção que se tem das dimensões, das viagens e dos lugares visitados. No espaço e no
tempo da história social, é como se o progresso técnico causasse uma circunstância de alta energia e
transformasse essas dimensões de acordo com o que prevê a teoria da relatividade. Essa realidade é
descrita por Santos (1994) através do conceito de aceleração.
78
posição na hierarquia de poder,17 o que faz sua importância e seu peso sobre a estrutura
social serem crescentes.
A crise do fordismo abriu espaço às mudanças políticas dos anos 80, que
resultaram no advento do neoliberalismo, primeiro na Inglaterra e nos EUA, depois
disseminado pelo mundo. Algumas das características do que veio a ser chamado de
globalização são resultado das decisões políticas tomadas nesse movimento, a mais
importante das quais foi a desregulamentação dos mercados financeiros e a liberalização
dos fluxos internacionais do capital-dinheiro (Tavares; Fiori, 1997). Isto é, antes de
resultar de um impulso espontâneo dos mercados, como quer fazer crer a historiografia
mainstream, foi, como disse Braudel, no andar de cima, onde se encontram o dono do
17
Penso, até certo ponto de forma semelhante a Lipietz (1983), que o progresso técnico não é resultado da
concorrência entre os capitais, mas, antes, da contradição fundamental entre capital e trabalho, pois é a
necessidade de ampliar seu controle e dominação sobre a força de trabalho que impõe à empresa a
necessidade de adotar a mudança tecnológica. A concorrência, embora seja, muitas vezes, a motivação
aparente para a inovação, ao fim e ao cabo, age como mecanismo de seleção a favor daqueles capitais
que desenvolveram maior capacidade de submeter o trabalho.
79
poder e o dono do dinheiro, que a história foi decidida. Essa circunstância veio se
combinar com o que acontecia na esfera da produção, onde a redução dos ganhos de
produtividade estreitara a oportunidade de novos investimentos18 e tornara possível o
inchaço do capital-dinheiro,19 criando uma saída para o excedente que não encontrava
aplicação como capital produtivo. Na esteira dessa internacionalização financeira, veio
não apenas um crescimento dos fluxos comerciais entre os países, mas, principalmente,
uma crescente internacionalização da propriedade do capital produtivo, esta muito
impulsionada pela avassaladora onda de privatizações e de fusões e incorporações e pela
internacionalização de importantes cadeias produtivas. Mesmo economias baseadas em
estruturas tão rígidas como a dos keiretsos japoneses ou a dos chaebols coreanos
sofreram forte impacto através de mudanças da propriedade do capital. Uma quarta
forma institucional da regulação sofreu o abalo desse vertiginoso processo de
transformação na hierarquia dos capitais, a forma da concorrência.
Por outro lado, mesmo que seja razoável admitir os abalos nas formas
institucionais da regulação recém-referidos, não é improvável que alguns ajustes
possam dar-lhes uma sobrevida razoável. Se assim acontecer, uma vez mais a
regularidade assinalada mais acima, de a substituição do regime de acumulação ser
desencadeada por uma grande crise aberta pelo esgotamento do regime anterior
acontecer sob a vigência do mesmo modo de regulação que permanece, estará se
repetindo. Se for o caso, será necessário o decorrer de mais algumas décadas até que o
18
A onda de inovações que se iniciou então e persiste ainda, embora tenha oportunizado investimentos
localizados em diversos setores, ainda não foi capaz de fazer desaguar a imensa massa de capitais
retida na forma dinheiro.
19
Essa circunstância impulsionou o processo de financeirização da riqueza, como diz Braga (1997), uma
nova forma de relação entre capital produtivo e intermediação financeira que modifica a maneira de
gestão dos ativos, seu conteúdo e a forma de realização de seu valor.
80
modo de regulação se esgote, dando origem à nova crise, a qual, por sua vez, só se
resolverá pela constituição de novas formas institucionais articuladas em novo modo de
regulação, quando, então, uma idade de ouro da “acumulação flexível” terá seu tempo e
seu lugar.
20
Uma síntese da leitura desses autores e de outros mais com vistas a formular uma interpretação dos
aspectos mais importantes das mudanças em curso no cenário internacional está em Tauile e Faria
(1999).
81
segmento líder da estrutura produtiva nesse regime, foi, desde o início, muito grande,
apenas países também grandes lograram constituir sistemas econômicos integrados
dentro de suas fronteiras nacionais no sentido de realizar a quase-totalidade das relações
dinâmicas intersetoriais dentro de suas fronteiras. A industrialização de países pequenos
sempre esteve associada a um coeficiente elevado de abertura de suas economias,
indicando que uma parte das relações intersetoriais se realizava além fronteiras,
internacionalizando, ou melhor, regionalizando, assim, o circuito do capital produtivo
em processos de integração com vizinhos também industrializados. Essa circunstância,
ficou particularmente evidente na Europa do pós-guerra, em países como Bélgica ou
Holanda, mas também esteve presente em outras regiões industrializadas, como o Leste
da Ásia ou a América do Norte.21 Dessa circunstância, pode-se descrever a dimensão
espacial do fordismo como fundamentalmente nacional, como no regime extensivo, mas
com uma importante projeção regional. Essa projeção regional explica a precocidade do
processo de integração europeu como um produto ainda do fordismo.
21
No caso latino-americano, diferentemente das regiões citadas, essa internacionalização da estrutura
produtiva não se deu com os vizinhos, mas, reafirmando laços históricos de dependência, foi feita com
países do centro capitalista, mormente os EUA, em que pese a precocidade dos projetos de integração
regional que, entretanto, apenas na década de 90 começaram a ser efetivamente implementados. Nas
teses da CEPAL, a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), por exemplo, poderia
servir de base para a continuidade da industrialização por substituição de importações, justamente no
sentido aqui referido de propiciar escala suficiente para o desenvolvimento do setor de bens de
produção. O insuficiente desenvolvimento desse setor tem sido usado como característica principal do
subdesenvolvimento pela maior parte dos autores que se dedicam ao tema, sejam dependentistas,
marxistas ou estruturalistas.
82
22
Apenas quando esse processo se completa e as estruturas da regulação passam a se auto-reproduzir,
completa-se o processo de mudança qualitativa dos sistemas e estabelece-se o conjunto de
características que permitem seu take off autopoiético. Seus processos fundamentais passam a ser auto-
referenciados e autoproduzidos.
83
Sem sombra de dúvida, o que mais chama atenção nesse percurso da história
de nossos países são as semelhanças. De um lado a “linha negra” referida por
Neruda, o peso da desigualdade oprimindo quase dois séculos de independência e
cuja episódica contestação recebeu sempre a resposta violenta da intolerância. De
outro lado, uma trajetória em direção à modernidade e ao desenvolvimento, que
combinou sempre a criação do novo e a preservação do velho, a oligarquia rural
convivendo com a indústria, a democracia política com a exclusão social. A história
dos países do Cone Sul no século XX tem como ponto de partida uma situação
similar — uma base econômica primário-exportadora —, segue um mesmo caminho
de urbanização e industrialização — embora com graus diferentes de
desenvolvimento — e sofre um mesmo tipo de esgotamento e crise. Apenas os
tempos em que essas tendências foram se manifestando em cada formação social
nacional parecem divergir.
3.1 - Antecedentes
23
A redação deste capítulo só foi possível após uma opção que assumiu conscientemente um risco: ousar
realizar uma análise de um período tão longo da História deixando, deliberadamente, de aprofundar-se
e posicionar-se sobre a riqueza das diversas interpretações de seus episódios mais relevantes. Nessa
opção, realizei um conjunto de recortes em sua trajetória temporal, através dos quais circunscrevi a
análise ao único propósito de identificar em seu movimento de longa duração (como diria Braudel)
apenas aqueles fatos relevantes para a compreensão do percurso desses sistemas econômicos e sociais
no que concernia à evolução de um restrito conjunto de suas características, a saber: o eventual
desenvolvimento de propriedades autopoiéticas e a mudança em sua dimensão espacial. Como procurei
demonstrar, os sistemas econômicos do Cone Sul seguiram uma trajetória histórica em que podem ser
identificadas as mesmas duas tendências: de um lado, o desenvolvimento das propriedades de
individuação, auto-referência e autoprodução e, de outro, a mudança de sua dimensão espacial, num
percurso similar ao das economias capitalistas maduras. No mesmo sentido, deixei de fazer referências
que não fossem aquelas da bibliografia mais básica e consagrada.
88
alcançando a conquista de rotas mais curtas e seguras em direção aos tesouros de além-
-mar. Na medida em que a realidade foi sendo completamente percebida, os objetivos
da colonização tiveram que ser alterados no sentido da constituição de alguma forma de
empreendimento economicamente sustentado nas novas terras. O estabelecimento de
atividades econômicas locais vinculadas à circulação do valor na metrópole foi uma
construção demorada de décadas ou séculos, dependendo das circunstâncias temporais
ou geográficas encontradas pelos colonizadores. Como não poderia deixar de ser, os
primórdios dessa economia colonial americana vinculada ao circuito de valorização do
capital mercantil metropolitano envolveram uma diminuta fração do território
continental, as minas do Peru e do México, as plantações canavieiras do Brasil e alguns
entrepostos nas rotas do Caribe e do Prata.
24
Nesse sentido, a análise estruturalista converge com aquela de inspiração marxista que tratou do
chamado desenvolvimento desigual. Ver, a respeito, Mantega (1984) e Lipietz (1985), que discutem
essas teses, além dos originais, que vão desde Lenin, Hilferding e Bukharin até Samir Amin, Arghiri
Emanuel, Cardoso e Faletto ou Gunder Frank.
89
Diferente foi o caso das áreas mais ao sul, onde o tipo de colonização foi o de
exploração, que as obrigou a estarem integradas ao circuito de valorização do capital da
metrópole. Por essa razão, tais economias, desde o início, tiveram uma dinâmica
dependente do movimento de um centro que lhes era externo. Embora tenham
estabelecido vínculos locais que parcialmente viabilizassem sua reprodução — como no
caso da economia canavieira do nordeste brasileiro, associada à pecuária do semi-árido,
ou da economia mineradora das Gerais e sua vinculação com a pecuária do sul
brasileiro —, em decorrência da realização no Exterior de uma parcela colossal de seu
valor,25 os sistemas econômicos instituídos pelas colônias de exploração americanas
nunca passaram de subsistemas absolutamente dependentes dos sistemas econômicos
metropolitanos, com escassas ramificações locais, desenvolvendo-se como ilhas ou
enclaves incrustados no Continente.
25
Para o caso da economia canavieira nordestina, Furtado (1959) estimou em apenas 10% a fração do
valor realizada internamente à colônia, entre consumo intermediário e rendimentos de trabalho gastos
localmente.
90
décadas do século XIX, em que o colonialismo ruiu em quase toda a América Latina, os
requisitos políticos e institucionais para tanto foram então lançados.
4
Apenas para referir ao primeiro, e muito em função de sua dimensão geográfica, a maior parte da
ocupação territorial e do povoamento por imigração foram realizados apenas após a independência,
92
tendo como seu momento decisivo o episódio que entrou para a História como “la conquista del
desierto”, que realizou a incorporação das terras indígenas do sul à economia platense.
27
Desde os patronos, como Prebisch e Furtado, diversos autores têm estudado o papel dos excedentes das
exportações na acumulação originária do capital industrial latino-americano. Para citar alguns dos mais
importantes para esta tese, ver, por exemplo, Silva (1976), Bértola (1991), Cano (2000), Becker et al.
(2000) ou Mello (1982).
28
Como coadjuvantes, já mencionados acima, houve importantes investimentos estrangeiros,
principalmente em infra-estrutura (transportes, comunicações e obras urbanas), mas também da parte de
burgueses imigrantes na indústria de transformação.
93
29
A diferença em relação ao Uruguai, que, para o demais, tem marcadas semelhanças com a Argentina,
resulta tanto da escala mais de uma dezena de vezes menor de sua economia em relação aos dois
grandes vizinhos do norte e do sul, quanto de não ter alcançado constituir sinergias de vizinhança que
lhe favorecessem, como aconteceu com vários pequenos países europeus (Becker et al., 2000; Caetano;
Rilla, 1998). Para que isso tivesse ocorrido, como será visto mais adiante, o processo de integração
latino-americano precisaria ter acontecido com décadas de antecedência, conforme vislumbrara
Prebisch (1963).
94
se vinha apresentando como inviável, problemática que aparece como ferida aberta na
crise de 1929 (CEPAL, 1949; Prebisch, 1963; Furtado, 1959; Oliveira, 1977).
30
A expressão substituição de importações já sofreu reservas de alguns pesquisadores, a exemplo de
Conceição Tavares (1972). Não vou usá-la em um sentido muito específico, mas como sinônimo do
estilo de desenvolvimento latino-americano engendrado pelo nacional-desenvolvimentismo e que
95
O Brasil, por seu turno, experimentou a onda reformista mais tarde, apenas após
a Revolução de 30. Mesmo que as condições políticas tenham se transformado naquele
ano, antes de seguir seu programa de mudanças, o novo governo precisou, primeiro,
articular a reação à crise instalada desde 1929, reação que, como mostrou Furtado
(1959), passou por um programa de sustentação da atividade exportadora com vistas a
recuperar o nível de renda da economia. Só depois da reversão do quadro econômico e
da consolidação da autoridade do novo governo, em 1937, é que as reformas foram
iniciadas. A forma do Estado modificou-se com o início do planejamento e a instituição
do setor produtivo estatal nas áreas de insumos básicos e infra-estrutura; mudou a forma
da concorrência com o início das políticas de fomento e proteção à indústria nacional; a
restrição monetária alterou-se com o abandono definitivo do padrão-ouro; e a relação
salarial foi fundada em novas bases e submetida à tutela do Estado a partir da instituição
do salário mínimo, da criação do Ministério do Trabalho e da Consolidação das Leis do
Trabalho.31
também recebeu o apelido de desarrollo hacia adentro. Embora concorde com as restrições referidas, o
termo acabou por se consagrar no sentido em que o emprego neste trabalho.
31
Como já foi referido, a trajetória do Paraguai foi bastante diversa. Após o “esvaziamento” que sucedeu
a Guerra da Tríplice Aliança, a reconstrução do Estado e da sociedade civil daquele país acabou por se
96
cristalizar nas ditaduras militares surgidas a partir de 1936. Sua sustentação vinha de bases sociais um
tanto rarefeitas: as oligarquias estabelecidas após a derrota de 1870, beneficiárias das privatizações de
terras e bens públicos impostas pelos vencedores, e as massas populares “disponíveis” em razão de seu
único elemento de identidade, o sentimento da nacionalidade (Arce, 1990).
97
geral, aconteceu sob regimes políticos populistas32 abriu uma nova etapa — também no
que se refere ao aspecto qualitativo — para a vida dos sistemas econômicos da região.
Para resumir em uma palavra, essa mudança qualitativa aconteceu em razão do
deslocamento do elo dinâmico do sistema econômico de extrovertido para endógeno.
32
O mainstream da ciência econômica promoveu um revisionismo desavisado e fundado em
generalizações apressadas da história latino-americana que tem como uma de suas pérolas o conceito
de “populismo econômico”, apelido de toda e qualquer condução da política econômica que não tenha
adotado uma imagem de confiabilidade diante dos investidores internacionais (leia-se austeridade
fiscal, redução da inflação e pagamento da dívida externa) como meta prioritária, especialmente
aplicado àquelas vigentes entre os anos 70 e 80 (Dornbusch; Edwards, 1991). Com isso, não apenas
mistura situações e intenções absolutamente díspares, como cria confusão com um conceito
absolutamente preciso construído pela ciência política latino-americana para a análise de fenômenos
históricos bem identificados, a saber: os regimes políticos promotores de um desenvolvimento
industrializante e de bases endógenas que reuniam as características de uma liderança carismática, um
ambiente de insuficiente desenvolvimento e fragilidade das instituições democráticas, a ascensão
política das classes populares urbanas e uma relação de subordinação destas à direção do Estado
(Weffort, 1978).
33
Argentina e Uruguai já vinham de um predomínio do modo de vida urbano herdado do notável nível de
renda per capita e complexidade social alcançado ainda durante a fase primário-exportadora de suas
economias. O Brasil atingiu essa condição mais tarde (década de 60), e o Paraguai, ainda depois.
98
34
O mesmo tipo de revisionismo histórico que criou o conceito de “populismo econômico” tratou de
satanizar a política econômica voltada à substituição de importações (Franco, 1998). O descuido, a
falta de rigor e as conclusões apressadas são os mesmos, apenas acrescidos da falta de originalidade,
pois repetiu os mesmos argumentos já rebatidos por Roberto Simonsen no clássico debate dos anos 40,
em que contestou o mito da “vocação agrícola” do Brasil.
99
35
O exemplo mais notório dessa nova política externa foi a ambigüidade, que levou as diplomacias
argentina e brasileira, durante a II Guerra, a estarem próximas, inclusive, de uma adesão ao Eixo, um
movimento que tinha o intuito de explorar vantagens econômicas em troca de suas alianças
internacionais.
36
Em um estudo dedicado ao caso brasileiro (Faria, 1996b), busquei demonstrar como a indústria, ao
mesmo tempo em que superava o peso da agropecuária na determinação da dinâmica econômica,
passava por uma profunda transformação interna, que lhe imprimiu características muito semelhantes
às do regime de acumulação intensiva vigente nos países de capitalismo maduro. Embora com um grau
de desenvolvimento inferior, o mesmo percurso foi seguido por Uruguai e Argentina (Becker et al.,
2000; Cano, 2000; Romero, 1994).
100
Sabidamente, o Brasil foi o país do antigo Terceiro Mundo que mais longe levou
a construção de uma estrutura econômica similar àquela do fordismo, com o
desenvolvimento de um setor de bens de produção bastante completo ao final dos anos
70.37 A Argentina, um sistema econômico com escala para seguir o mesmo caminho,
teve seu ritmo de crescimento reduzido desde o começo daquela década, o que resultou
num grau de completude de sua estrutura industrial no sentido fordista menor do que o
brasileiro, mormente no segmento de bens de capital (Cano, 2000). Já o Uruguai, além
de sofrer um ritmo desacelerado há mais tempo, ainda se confrontava com barreiras de
tamanho que o impediam de ir muito adiante (Becker et al., 2000), enquanto o Paraguai
apenas engatinhava na direção da industrialização, sem chegar a modificar sua
característica estrutural de uma economia predominantemente rural (Arce, 1990).
37
Em razão da crise dos anos 80, alguns autores passaram a apontar a Coréia como sucessora do Brasil
na condição de estrutura industrial mais desenvolvida da periferia. Uma análise dessa experiência
aparece em Medeiros (1998).
101
38
O caso brasileiro está bem demonstrado em Tauile e Young (1991), embora sem a ênfase no conceito
de demanda efetiva que fiz aqui.
102
No Brasil, a disputa foi resolvida pelo golpe de 1964, que, diferentemente das
demais ditaduras militares do Cone Sul, perseverou no caminho do
desenvolvimentismo. No caso da Argentina e do Uruguai, os conflitos políticos
acabaram por produzir uma paralisia econômica precoce, tendo por causa o fenômeno
que Portantiero (1973) chamou el empate: as velhas oligarquias, aliadas à burguesia
urbana, intransigentes na manutenção de sua parcela da renda nacional, mediam forças
com as camadas populares, com o movimento sindical dos assalariados na vanguarda,
mobilizadas e aguerridamente dispostas a ascender economicamente. O equilíbrio de
poder que se originou perdurou por décadas e só foi resolvido, em favor das classes
dominantes, através da violência sanguinária das ditaduras militares que tomaram o
poder entre os anos 60 e 70.
real dos trabalhadores garantido pela relação salarial e pela forma do Estado, o “círculo
virtuoso” daquele modo de desenvolvimento (Aglietta, 1976; Boyer, 1986; Marglin;
Schor, 1990). Essa crise se reproduziu na periferia. Estudos sobre indicadores de
variação da produtividade para as economias brasileira, argentina e uruguaia (Bértola,
1991; Faria, 1996b; Katz, 2000; Kosacoff, 2000) mostraram uma tendência de redução
desses incrementos que é compatível com os parâmetros apontados nas análises da crise
do modo de desenvolvimento fordista para os países do Primeiro Mundo.39
39
O caso das economias do Leste Asiático foi diferente. Ali o regime de acumulação intensiva teve uma
sobrevida em termos de produtividade em razão das inovações na organização do trabalho geralmente
conhecidas como métodos japoneses de gestão ou toyotismo (Coriat, 1993; Torres Filho, 1992;
Medeiros, 1998).
105
Entretanto uma pergunta a História deixou sem resposta. Será que, seja através
da distribuição da renda, seja através da integração regional, seja da combinação de
ambos, o desenvolvimento econômico da região poderia ter tido continuidade? Essas
alternativas vinham sendo defendidas por setores sociais representativos das classes
trabalhadoras, por movimentos populares, por intelectuais, pela própria CEPAL e por
partidos de esquerda na região desde o período de crescimento acelerado nas décadas de
50 e 60, mas foram rechaçadas e combatidas pelas elites econômicas e sociais
dominantes nos quatro países, como de resto em toda a América Latina, e,
posteriormente, silenciadas pela força bruta dos crimes, da tortura e dos assassinatos das
ditaduras militares.
Com a redemocratização nos anos 80, algumas dessas bandeiras que haviam sido
erguidas pelas forças de oposição às ditaduras foram assumidas pelos regimes civis
então chegados ao poder. As circunstâncias de desequilíbrio grave no balanço de
pagamentos, inflação acelerada e crise fiscal impunham limitações ao raio de manobra
da política econômica, às quais pode ser creditada uma parte do insucesso das medidas
então apelidadas de heterodoxas e que, de alguma forma, intentavam resgatar aquelas
propostas. Entretanto, como já percebera Fiori (1995) 40, também as formas institucionais
haviam encontrado os limites de sua eficácia naquele período, o que se manifestou,
então, na incapacidade de o Estado, hierarquicamente dominante no modo de regulação
vigente, preservar seu papel de indutor do crescimento econômico. Os rumos da política
econômica então implantada e que buscou fazer frente à crise teve essa condicionante
como fator decisivo em sua determinação.
40
Esse trabalho, publicado em 1995, foi apresentado como tese de doutoramento na USP, em 1984.
41
Uma crise na regulação acontece quando o sistema é capaz de pôr em funcionamento, de forma
efetiva, mecanismos de recuperação “automáticos”, dando oportunidade a que um retorno do
crescimento possa ter lugar sem que nenhuma mudança institucional seja necessária. Já uma crise da
regulação ocorre quando a recuperação automática não é mais possível, sendo necessária uma
mudança institucional para que o desenvolvimento possa ser retomado (Boyer, 1986; Conceição,
1989a).
106
De toda essa vasta experiência teórica e prática, vou reter como contribuição ao
argumento desta tese a já mencionada idéia de crise da regulação, idéia que aponta uma
limitação àquelas tentativas de política econômica e que não foi percebida por seus
implementadores: a falência do modo de regulação desaguava, necessariamente, na
impossibilidade de sua restauração na medida em que o regime de acumulação
estava esgotado. Para os neoclássicos, essa problemática não tem estatuto teórico, na
medida em que sua teoria do crescimento incorpora como variáveis relevantes apenas os
fatores de produção (mobilização e uso, produtividade, etc.), ficando as questões
institucionais, quando admitidas relevantes, circunscritas ao nível da macroeconomia
42
Discuti mais profundamente essa questão em Faria (1995), onde citei alguns exemplos dessa
convergência, como as análises de Brandão (1991) e de Fraga Neto (1987), dois autores de formação
ortodoxa que, naqueles trabalhos, transferiam para um distante longo prazo a efetividade dos modelos
macroeconômicos neoclássicos.
107
strictu senso (estabilidade de curto prazo). Por seu lado, para os heterodoxos, e
principalmente aqueles herdeiros da tradição estruturalista — embora dessem estatuto
teórico à problemática institucional quando abordavam o crescimento —, o esgotamento
da substituição de importações e do Estado desenvolvimentista não estava posto de
forma definitiva (Fiori, 1995).
Conforme vimos argumentando, a grande crise dos anos 80 tem duas dimensões:
o esgotamento do regime de acumulação intensivo — cuja versão no Cone Sul foi a
industrialização por substituição de importações — e a crise do modo de regulação
monopolista, que teve como expressão latino-americana o arranjo institucional
desenvolvimentista. Uma vez que o esgotamento da substituição de importações já foi
tratado, visto que fez parte da conjuntura dos anos 70, falta abordar a crise desse modo
de regulação peculiar ao desenvolvimentismo, e que se expressou com toda sua
intensidade na agonia da moeda e na inflação.
A longa crise dos anos 80, que veio interromper a trajetória de desenvolvimento
anterior e que foi provocada pelo esgotamento da industrialização por substituição de
importações, teve também como resultado afetar algumas das características do sistema
econômico mais relevantes para o argumento desta tese. Em primeiro lugar, o
esgotamento da substituição de importações impediu os sistemas econômicos da região
de levarem mais adiante o desenvolvimento da propriedade autopoiética da
autoprodução, o que se manifestou na interrupção de seus processos de reprodução
ampliada, traduzida na estagnação dos índices de crescimento (Bértola, 1996). Por outro
43
Nessa circunstância, o fenômeno da hegemonia do capital-dinheiro no contexto da mundialização do
capitalismo, referido no Capítulo 2, fragilizava de modo definitivo a forma institucional do Estado.
109
44
Minha gratidão para com todos esses autores, de quem muito aprendi, tanto em minha formação
profissional quanto no trabalho de elaboração desta tese, é representada de forma bastante incompleta
nas referências bibliográficas usuais ao final do trabalho. Nesse caso, com certeza, a justiça não é
contemplada pelas regras acadêmicas.
45
Cito como exemplo, dentre muitos de mesma qualidade e rigor científico, Tavares e Fiori (1998), Fiori
(1999), Boyer (1999), Cano (2000) e Miotti, Quenan e Ricouer-Nicalaï (1999).
110
suas redes de influência sobre outros — exemplo mais notório são os EUA —, outros
sofreram uma drástica redução de sua soberania econômica, grupo em que se inclui
quase toda a América Latina entre os anos 80 e 90.
46
Nos extensos debates dos anos 80 sobre inflação, muitos economistas que pouco depois acabaram por
aderir ao Consenso de Washington afirmavam envaidecidos diante das platéias de encontros
acadêmicos e até na mídia serem os maiores especialistas em inflação do planeta.
111
Além disso, a natureza de cada uma das formas institucionais foi alterada. A
forma da concorrência resolveu sua contradição com a mudança tecnológica em curso
sob a pressão da abertura comercial. As conseqüências foram, de um lado, a retomada
dos ganhos de produtividade do trabalho e a redução dos diferenciais desta em relação
aos Estados Unidos (Katz, 2000), principalmente na primeira metade da década, e, de
outro, o desmonte de ramos inteiros da estrutura produtiva — cujo exemplo mais
extremo é o caso argentino 48 —, a desnacionalização e um processo de concentração e
centralização do capital em grande escala (Tavares; Miranda, 1999; Kosacoff, 2000).
47
O caso uruguaio traz um exemplo interessante em relação a um dos itens do programa neoliberal: as
privatizações. A Frente Ampla, agrupamento de partidos de esquerda de grande expressão política e
eleitoral, fez submeter o projeto de desestatização a referendo popular, no qual o mesmo foi rejeitado.
48
Talvez mais correto fosse chamar de caos a situação da indústria argentina nos anos 90, marcada por
uma forte redução de sua participação no emprego e na geração de renda e uma regressão na
composição do produto em direção aos setores tradicionais, de baixo conteúdo tecnológico e
112
produtores de commodities, tendência também presente, embora em menor grau, no Brasil (Teubal,
1999; Cano, 2000; Kosacoff, 2000).
49
As reformas constitucionais brasileiras são um exemplo significativo dessa tendência. Apenas inscritas
no texto maior do País pela Constituinte de 1988, muitas garantias sociais e trabalhistas das quais os
vizinhos do sul se beneficiavam há décadas não só não chegaram sequer a ser regulamentadas para
entrar em vigor, como foram revogadas em poucos anos.
50
Um estudo patrocinado pelo Banco Central da Argentina (Lanteri, 1999) é exemplar desse tipo de
miopia, da mesma forma que os argumentos de Franco (1998). A combinação de credibilidade externa
(leia-se ingresso de capital especulativo), baixa inflação e crescimento do consumo interno foi vista
como suficiente para sustentar um projeto de crescimento de mais longo prazo. Sobre a deterioração do
balanço de pagamentos, a incapacidade de sistema de crédito financiar a atividade produtiva, a baixa
taxa de investimento doméstico e o encilhamento financeiro do setor público, nenhuma palavra. É uma
macroeconomia unidimensional.
113
Por fim, mas em primeiro lugar, mudou a forma da restrição monetária, não
apenas ao assumir um papel central na regulação, subordinando as demais formas
institucionais e deixando a posição apenas acomodadora que a moeda tivera no
desenvolvimentismo, como adquirindo o novo papel de fulcro da estabilidade
macroeconômica. Nessa transformação, a ductilidade do valor da moeda 52, que fora uma
válvula de escape dos desajustes durante o desenvolvimentismo, após ter chegado ao
seu extremo no limiar da hiperinflação, foi radicalmente abandonada em troca de um
padrão monetário submetido a uma fantasia de estabilidade proporcionada pela âncora
cambial. Mas como o domínio do capital dinheiro é o reinado extremo do fetiche do
valor em sua forma mais abstrata, por algum tempo essa fantasia sustentou as relações
econômicas.53 Sua instabilidade veio a ser revelada pela fragilidade financeira externa,
51
A única exceção nesse encolhimento do setor público foi algum avanço nos gastos sociais, na década
(CEPAL, 1997), pequeno no Brasil e na Argentina e maior no Uruguai e no Paraguai, variando,
respectivamente, de 19,0%, 17,7%, 18,7% e 3,0% para 19,8%, 17,9%, 22,5% e 7,9% em relação ao
PIB entre 1990-91 e 1996-97 (Notas de la CEPAL, 2000b). O agravamento da situação
macroeconômica no final da década tendeu a reverter essa pequena melhora.
52
Estou fazendo referência ao regime monetário vigente em toda a América Latina (e também no
Primeiro Mundo, à exceção dos EUA antes de 1971), onde o valor da moeda é determinado pelo seu
poder de compra em relação ao Produto Nacional Bruto, relação esta, em larga medida, determinada
pela combinação entre taxa de câmbio e política alfandegária. Nessa situação, a variação do valor da
moeda (inflação) funciona como variável acomodadora.
53
Entretanto, como afirmou Sir Dennis Robertson (1935), “(...) o valor de um metal amarelo,
originalmente escolhido para dinheiro porque estimulava a fantasia dos selvagens, é, evidentemente,
algo inseguro e impróprio para servir de base ao nosso dinheiro e à estabilidade de nosso sistema
industrial”. Os indicadores de rating adotados pelos investidores internacionais, em que pese a
aparente cientificidade, são a forma moderna de gerar o mesmo tipo de crença no valor da moeda
114
característica crítica das relações exteriores que estão a transformar a dimensão espacial
dos sistemas econômicos na região (Gonçalves, 1999; Miotti; Quenan; Ricouer-Nicolaï,
1999).
nacional, produzindo, como vários episódios recentes têm demonstrado, o mesmo tipo de insegurança
causado pelo ouro no começo do século XX (Aglietta; Orléan, 1990; Boyer, 1999).
115
54
Uma vez que a parcela da agropecuária também se reduziu, uma vista apressada poderia confundir essa
situação com o que alguns autores têm definido como o conceito de sociedades pós-industriais,
aplicado a alguns casos do Primeiro Mundo. Entretanto a semelhança é meramente das estatísticas,
pois o peso relativamente maior de serviços é muito mais fruto do fenômeno descrito como inchaço do
Terciário, típico do subdesenvolvimento, conforme a literatura sobre crescimento o tem descrito, e que
tem como causa a expansão do trabalho informal no meio urbano.
55
Como será visto no Capítulo 4, houve um notável crescimento comercial no mercado continental sul-
-americano nos anos 90, crescimento que, entretanto, resultou mais da substituição de mercados
externos pelo comércio intra-regional do que de um aumento significativo do total da exportações. De
qualquer maneira, como os problemas cambiais de todos os países decorrem da relação com o dólar, o
comércio regional pode, nas circunstâncias atuais, no máximo favorecer eventualmente um país em
detrimento de outros. Esse foi o caso da Argentina entre 1995 e 1998, em razão da sobrevalorização do
real brasileiro.
116
cada um dos países. A freqüente interferência e tentativa de tirar proveito por parte dos
vizinhos nesses conflitos internos reforçou o distanciamento e a animosidade herdados
do período colonial. Esse sentimento teve, na carnificina da Guerra da Tríplice Aliança
contra o Paraguai, um forte motivo para ser aumentado. Seu final trágico, no qual as
tropas vencedoras da Argentina, do Brasil e do Uruguai se deram as costas e se
retiraram do teatro de operações, deixando atrás de si um povo quase exterminado e
uma nação devastada, definiu o ambiente das relações entre os quatro vizinhos para as
décadas seguintes: ressentimento, desconfiança e rivalidade.
Foi por essa razão que o processo de integração recebeu seu impulso decisivo na
iniciativa dos dois primeiros presidentes civis nos recém-redemocratizados Brasil e
Argentina, José Sarney e Raul Alfonsin, que assinaram a Declaração de Iguaçu em 30
de novembro de 1985. Entretanto foi na última década do século XX que a integração
no subcontinente avançou a partir da constituição do Mercosul, impulsionada por um
notável crescimento do comércio dentro do bloco, pela inauguração de estratégias
regionais por parte de multinacionais e de grandes empresas, pela interpenetração de
56
Nos anos 70, durante as ditaduras, um tipo sinistro de aproximação e colaboração
estabelecera-se entre os vizinhos, a integração entre forças policiais e militares para a perpetração de
seqüestros, “desaparecimentos”, torturas e assassinatos de supostos opositores. Para além da infâmia
desses crimes, cujo espectro ainda assombra as democracias em afirmação, nenhuma correspondência
dessa integração sanguinária chegou sequer a se esboçar nos planos social ou econômico.
119
Para este trabalho, são relevantes três aspectos desse processo. Primeiro, a
vitória dos EUA na corrida armamentista fez desmoronar o regime soviético e impôs a
força militar daquele país como instrumento de um exercício quase ilimitado de poder,
eliminando da agenda política dos países do sul a possibilidade de explorar
diplomaticamente em proveito próprio as divergências leste-oeste. Segundo, a
desregulamentação e a internacionalização do capital dinheiro consolidaram a
dominação do grande capital estadunidense sobre todos os espaços de acumulação do
Planeta. Finalmente, e mais importante, a maneira como os Estados Unidos vêm
experimentando a mudança na dimensão espacial de seu sistema econômico nacional
implicou um movimento de, num primeiro momento, incorporação das economias dos
seus vizinhos imediatos através do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte
(NAFTA), para, logo mais adiante, se estender a todo o continente através da ALCA.
Esse movimento tem em vista a instauração de um espaço ampliado e homogêneo para a
ação de suas empresas — a criação de um mercado reservado e unificado para o grande
capital —, retaguarda decisiva para enfrentar os desafios porventura lançados pela
Europa ou pela Ásia na disputa do poder mundial.
espacial e com uma trajetória em direção ao take off autopoiético desapareceria, o bloco
regional seria subsumido na zona de livre-comércio continental como um espaço local
para o capital globalizado. Essa restrição externa será referida pontualmente ao longo
deste capítulo.
Cabe lembrar, ainda, que nesta análise deixei de lado a abordagem teórica mais
comumente usada no estudo do fenômeno da integração econômica, a qual tem como
referência principal o trabalho de Vinner (1950). O ponto de partida desse autor, a teoria
pura do comércio internacional neoclássica, reduz sobremaneira o alcance de seu
referencial, limitando-o ao tratamento dos fluxos comerciais. Mais ainda, o uso atual de
sua contribuição pelo mainstream empobreceu sobremaneira a abordagem. 57 Numa
démarche tão ao gosto da ortodoxia, um fenômeno de grande complexidade é
circunscrito à constatação da existência ou não de “desvio de comércio” e “criação de
comércio” e medido pela sua distância de um ponto ótimo. A compreensão do
fenômeno da integração econômica exige um referencial teórico como o adotado aqui,
capaz de dar conta de sua complexidade, em relação à qual o redirecionamento dos
fluxos de comércio é um episódio apenas.
57
O ambiente em que Vinner concebeu sua teoria, no imediato pós-guerra, era o da afirmação da
revolução keynesiana e de relativo descrédito na capacidade de os automatismos de mercado induzirem
situações ótimas e de equilíbrio.
122
4.1.1 - Origens
A crise econômica do início dos anos 80 foi acompanhada pelo fim das ditaduras
militares. O ambiente de declínio do poder das forças armadas sobre a vida política na
região acabou favorecendo a inclusão na pauta da aproximação entre os vizinhos do
58
A cronologia do processo de integração está descrita, dentre outros, em Faria (1993), Ferrer
(1997), Ginesta (1999), MRE (2001), Baumann (2001) e Almeida (2001).
123
tema da paz.59 Nesse novo ambiente de fim da histórica rivalidade militar, Brasil e
Argentina firmam um pacto de renúncia ao uso militar da energia atômica e
impulsionam a criação de uma Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, aprovada
em resolução da ONU sugerida pelo Brasil. 60 A aproximação ganha um decisivo
impulso em 1986, com a iniciativa brasileira e argentina de iniciar um processo de
integração econômica e cooperação nuclear e aprofunda-se com a assinatura do Tratado
de Assunção, com o objetivo de constituir um mercado comum entre seus signatários e
outros países que venham a aderir ao Mercosul. O primeiro passo na direção desse
objetivo foi o estabelecimento de uma união aduaneira que, embora incompleta, mas
bastante abrangente em relação às pautas comerciais dos participantes, entrou em vigor
em 1º de janeiro de 1995, menos de 10 anos após a assinatura da Declaração de Iguaçu
por Alfonsin e Sarney. A exigüidade do tempo decorrido fez-se surpreendente. Como
lembrou Aldo Ferrer (1997): “(...) observado en una perspectiva histórica, la rapidez y
la profundidad del acercamiento de Argentina y Brasil es un acontecimiento
sorprendente”(p. 58).
Cada um dos passos desse processo foi dado em ritmo bastante acelerado. A
Declaração de Iguaçu foi emitida em 30 de novembro de 1985, logo seguida pela Ata
para a Integração Argentino-Brasileira, em julho de 1986, a qual institucionalizou a
aproximação entre os dois países através do Programa de Integração e Cooperação
Econômica (PICE). Esse programa previa um processo de integração setorial via
incremento do comércio intra-industrial com base em protocolos nos segmentos nuclear,
transporte, bens de capital, energia, trigo, siderurgia e finanças. Os princípios e as
59
Apesar de sua sinistra colaboração na repressão a seus opositores, enquanto estiveram no
poder, os militares mantiveram ativa a rivalidade entre os vizinhos, mormente entre Brasil e Argentina.
As esparsas iniciativas de aproximação e cooperação estiveram restritas quase que exclusivamente ao
campo da atividade de polícia política.
60
Para compreender melhor esse processo, é necessário lembrar que a conjuntura do início dos
anos 80 é marcada pela retomada da hegemonia norte-americana, como chamou Conceição Tavares
(1985). A desmilitarização da América do Sul foi estimulada pelos EUA no bojo de um movimento de
reafirmação de sua preponderância armada sobre o hemisfério. A crise e virtual extinção da indústria
bélica brasileira, a destruição do poder ofensivo argentino no desastre das Malvinas, o corte dos gastos e
a retomada dos acordos de cooperação militar com os EUA compõem o quadro de declínio da
capacidade de ação militar autônoma do Sul, em que se insere o protocolo nuclear Brasil-Argentina.
Assim como a moeda, a força é elemento essencial da soberania. Não é por acaso que os EUA venham
recomendando à América Latina a renúncia a ambas.
124
61
Esses princípios norteiam todo o processo de integração e serão comentados mais adiante.
62
De certa forma, as negociações diplomáticas envolvendo o uso dos recursos hídricos da
Bacia do Rio Paraná entre Brasil, Argentina e Paraguai tiveram algum significado para o processo de
integração. Seu escopo e as obrigações decorrentes, entretanto, produziram um alcance limitado ao
campo da cooperação na geração e no uso de hidroeletricidade.
125
63
Segundo as estimativas de Bértola (2000), o PIB real per capita argentino, em 1900, era 5,6
vezes maior do que o brasileiro. Aplicando essa estimativa aos dados populacionais dos países, chega-se
a um valor para o PIB real global argentino 3,04 vezes maior do que o brasileiro naquele ano.
64
Essa comparação sofre os efeitos da defasagem cambial entre os dois países, resultado da
política monetária de convertibilidade e paridade fixa com o dólar adotada pelo vizinho austral, que
acaba por superestimar relativamente o seu PIB.
126
65
A posição dos EUA, que partiu da atitude apenas retórica da Iniciativa para as Américas do Presidente
Bush (o pai), na década de 80, para uma posição extremamente agressiva de tentar a imposição
acelerada de uma Área de Livre-Comércio das Américas na virada do século, atesta o realismo daquela
percepção.
66
A consciência do fenômeno da mudança da dimensão espacial do capitalismo está claramente expressa
no preâmbulo do Tratado de Assunção, onde é mencionada a “evolução dos acontecimentos
internacionais, em especial a consolidação de grandes espaços econômicos”.
127
(Artigo 1º).
prazos do processo, para os protocolos sobre temas específicos (Faria, 1993). A própria
estrutura orgânica do Mercosul, onde quase não há delegação de soberania dos Estados-
-Partes a suas instâncias supranacionais — diferentemente do caso da União Européia,
que já é quase um Estado — está conforme a esse princípio. As decisões só são tomadas
por consenso, e a forma e o prazo de seu cumprimento deixam uma boa margem de
arbítrio para cada membro. Mesmo que algumas de suas disposições materiais sejam
“claramente vinculantes”, podem receber alguma forma de “interpretação flexível”
(Faria, 1993, p. 9).
67
José A. Faria (1993) mencionou o risco que correria o processo de integração, caso a adoção de
salvaguardas fosse estendida para além do período de transição. O agravamento da crise argentina no
começo de 2001 e a atitude do Ministro Cavallo ao modificar a TEC para alguns itens da pauta de bens
de capital e insumos comprovam os prejuízos inerentes ao recurso a salvaguardas. Melhor seria a
alternativa de medidas compensatórias, como faz a Europa, para o que, entretanto, recursos políticos e
materiais precisariam estar reservados, a exemplo dos fundos europeus para regiões menos
desenvolvidas ou para a agropecuária.
68
O Poder Executivo da República Oriental do Uruguai, na mensagem à Assembléia Geral em que
encaminhou o Tratado de Assunção para aprovação daquele Legislativo, fez menção explícita à recusa
129
Estados-membros, em razão das quais algum mecanismo de ponderação de seu peso nas
decisões do bloco precisaria ser criado. 70
sus respectivos países. Este es uno de los logros que conviene preservar
70
Basta lembrar que a população do Brasil é mais de 50 vezes maior do que a do Uruguai e cinco vezes
131
Sem embargo, os rumos da política econômica brasileira foram cada vez mais se
adequando ao fundamentalismo, o que está na raiz da crise do Mercosul, como será
visto ao final deste capítulo. A proposição que defendo aqui diz que a integração só faz
sentido para um projeto de desenvolvimento que tenha como eixo a reafirmação do
local e a retomada da construção de características autopoiéticas dos sistemas
econômicos em sua convergência para a unificação. A alternativa que resultaria da
adoção do projeto arquitetado pela diplomacia dos EUA para a região resultaria na
instauração de uma nova identidade territorial fundada na diluição de suas fronteiras e
na desintegração de seus sistemas produtivos para a instituição de espaços locais
submetidos ao capital globalizado (Santos, 1994). Essa nova dimensão espacial já é
visível no NAFTA e seria ampliada para todo o continente se a proposta norte-
-americana fosse vitoriosa nas negociações para a ALCA: a instauração de um espaço
homogêneo para a atuação dos capitais originários da nova região econômica. Lembrar
que a nacionalidade desses capitais seria majoritariamente dos EUA é quase um
pleonasmo.
72
No que respeita ao Paraguai, a desvalorização brasileira incentivou uma retomada de seu setor
informal, historicamente ligado ao contrabando.
73
Não deixa de ser exemplar o papel da indústria automobilística em relação à nova orientação de cunho
liberal do Mercosul. Seguindo a antiga máxima de que “livre mercado bom é o do vizinho”, esse setor,
composto exclusivamente por empresas multinacionais européias e norte-americanas e alguns (poucos)
fornecedores locais, agarrou-se ferrenhamente ao paradigma do comércio administrado e ainda
mantém uma TEC especial, com alíquota duas vezes maior do que a média.
134
Nesse que foi o mais prolífico período do Mercosul, uma série de avanços
institucionais em áreas não econômicas tiveram lugar, o mais importante dos quais foi o
Compromisso Democrático no Mercosul, firmado na Declaração Presidencial de 1996.
Em julho de 1998, através do Protocolo de Ushuaia, o Mercosul mais Chile e Bolívia
aprofundaram a cláusula democrática transformando-a em condição necessária para
participar dos compromissos do bloco sob pena de exclusão.74 No mesmo ano, o
Conselho do Mercado Comum reunido no Rio de Janeiro reafirmou os compromissos
em torno dos direitos humanos e liberdades fundamentais, ao mesmo tempo em que deu
continuidade às negociações com a Comunidade Andina com vistas à ampliação da
integração para o restante da América do Sul e assinou a Declaração Sociolaboral do
Mercosul, um passo a mais no sentido da livre circulação da força de trabalho e da
construção de um regime de reciprocidade no campo dos direitos trabalhistas e da
seguridade social.
74
Essa iniciativa foi determinante para a preservação da frágil democracia paraguaia.
135
75
A descrição desse processo de aprofundamento da integração em meio à crise econômica e seus
acontecimentos mais importantes foram sistematizados por Almeida (2001).
136
O fato mais destacado em relação à integração no Cone Sul foi seu grande
sucesso comercial. O desenvolvimento do comércio dentro do bloco, que foi notável,
não ocorreu às expensas das relações com o resto do mundo, pois a corrente de
76
A força dessa idéia foi incorporada no discurso oficial dos negociadores brasileiros na ALCA, que
fazem um contraponto da integração ao Mercosul como um destino para o Brasil com a adesão à zona
de livre comércio com a América do Norte como uma opção.
137
comércio para fora do bloco também cresceu. 77 Mais ainda, um intenso movimento de
fusões e incorporações e de crescimento das trocas intra-industriais, bem como o
movimento dos investimentos diretos representam indícios de um processo que
caminha, e é o argumento que defendo aqui, para a fusão das economias nacionais num
sistema regional unificado.
77
Esse fato, por si só, representa um desmentido aos ataques livre-cambistas à união aduaneira, que a
vêem como um instrumento “artificial” e gerador de desvio de comércio. Uma resposta a essa crítica
pode ser encontrada em SREI (Ar. SREI, 1996), embora seus argumentos ainda se situem no campo do
mainstream. A posição ali contestada tinha como ponto de partida a suposição de que toda união
aduaneira gera desvio de comércio, o qual seria um mal em si mesmo. Ao fazer a referência, não estou
aceitando o debate nesse campo teórico, até porque não concordo com a hipótese parettiana de ótimo
social que está por trás da condenação do desvio de comércio. A escolha de parcerias, mesmo que
meramente comerciais, envolve outras considerações relativas ao bem-estar das nações, que vão muito
além da mera eficiência econômica.
138
78
As exportações brasileiras para os três parceiros eram de US$ 990 milhões em 1985 e alcançaram mais
de US$ 9 bilhões em 1997, enquanto as importações subiram de US$ 683 milhões para US$ 9,5
bilhões no mesmo período. O declínio posterior, que chegou a um piso de US$ 6,8 e US$ 6,7 bilhões
em exportações e importações, respectivamente, em 1999, começou a ser revertido em 2000, quando as
exportações alcançaram US$ 7,7 e as importações US$ 7,8 bilhões, segundo a Secretaria de Comércio
Exterior do Governo Federal.
79
Mesmo a realidade aparentemente contraditória da União Européia não nega a tendência, na medida em
que representa, antes de um refluxo no plano comercial do processo de integração, sua expansão em
direção ao leste do continente, mensurado como relações externas ao bloco pelas estatísticas.
139
80
O fenômeno “bolha de consumo” que acompanha os processos de queda brusca da inflação pelo efeito
renda gerado foi, no caso argentino, estendido no tempo pela ampliação do crédito. O endividamento
das famílias resultante é um forte obstáculo para que possa ser superado o problema da rigidez
cambial.
140
mais adiante.81 Nas relações internas do bloco, a balança comercial tem trazido uma
contribuição positiva ao seu desenvolvimento.
Tabela 4.2
Intercâmbio comercial do Mercosul com o mundo e regiões selecionadas — 1991-1999
(%)
ANOS NAFTA UNIÃO EUROPÉIA SUDESTE DA ÁSIA MUNDO
1991 6,22 2,62 13,46 1,14
1993 6,88 3,54 13,23 1,36
1995 8,04 3,90 13,19 1,44
1997 8,55 4,50 15,27 1,67
1999 6,18 3,58 14,34 1,36
FONTE: INDICADORES Macroeconómicos del Mercosur. Disponível em:
http://www.mercosur.org.uy
81
A ALADI calculou um índice de quantum das exportações do Mercosul que vai de 78 em 1990 e chega
a 136 em 2000, enquanto o mesmo índice das importações parte de 29 em 1990, atinge meteóricos 136
em 1998, para recuar um pouco: 118 em 2000. Os efeitos sobre a balança comercial só não foram
piores porque os termos de troca evoluíram de um índice de 68 em 1990 para 92 em 2000
(www.aladi.org acessado em abril de 2001).
141
O desempenho econômico dos quatro países pode ser sintetizado nas taxas de
crescimento do PIB que aparecem na Tabela 4.3. A periodização da Tabela 4.3 foi
proposta pela CEPAL (1985; Notas de la CEPAL, 2001) e é útil para, além de um
enriquecimento da análise histórica desenvolvida no Capítulo 3, avançar na
compreensão do processo de integração. Se, em relação aos anos 80, a década passada
foi melhor para todos os países, aquele de melhor desempenho no período de vigência
do Tratado de Assunção foi a Argentina, ficando, inclusive, acima da média calculada
pela CEPAL para toda a América Latina e Caribe (3,2%), seguida de perto pelo
Uruguai, igual à média. Na década anterior, por oposição, ambos tinham tido
desempenho inferior à média latino-americana e à caribenha (1,0%), ao contrário de
Brasil e Paraguai, que estiveram acima daquele índice.
relação às do período anterior, enquanto o Uruguai teve uma taxa ligeiramente maior
(3,2% contra menos de 3%), e a Argentina atingiu uma performance muito superior
(4,7% contra cerca de 3,5%).
Tabela 4.3
Taxas anuais de crescimento do PIB nos países do Mercosul — 1950-99
(%)
PAÍSES 1950-65 1965-74 1974-80 1980-89 1990-99
Argentina........................ 3,1 4,4 1,8 -0,7 4,7
Brasil.............................. 6,4 10,0 6,1 1,3 2,5
Paraguai.......................... 3,2 5,3 10,2 3,0 2,1
Uruguai........................... 2,1 1,5 4,9 0,0 3,2
FONTE: CEPAL.
O desempenho superior das duas economias “temporonas” do Cone Sul traz uma
evidência em favor do potencial dinâmico da integração. Desembarcados precocemente
do bonde do desenvolvimentismo, tanto em razão de suas dificuldades políticas quanto,
principalmente no que interessa aqui, em função dos limites à continuidade da
industrialização e à complementação de sua estrutura produtiva postos pela relativa
exigüidade de seus mercados internos, o acesso ao mercado dos vizinhos representou
para esses países um deslocamento considerável em sua curva de demanda agregada. 82
Entretanto os fatos econômicos da integração não se resumem ao crescimento do
montante global das importações e exportações, mas incluem o aspecto qualitativo
dessas trocas e os movimentos do capital nas suas duas outras formas, além da
mercadoria, capital dinheiro e capital produtivo.
82
Estou aqui propositadamente minimizando o efeito renda da redução da inflação sobre a demanda
interna nos anos 90, especialmente importante na Argentina, após a lei da convertibilidade. Isto
porque, como corrobora a experiência brasileira, sua atuação é limitada no tempo, podendo ser mais
(como no caso argentino) ou menos alargada em função da disponibilidade de crédito.
143
acima. De igual modo, mas num ritmo bem mais intenso, os investimentos diretos
estrangeiros na região aumentaram de US$ 9,9 bilhões para US$ 55,3 bilhões entre
1995 e 1999 (Inf. Mercosur, 2000).83 Por certo, alguns fatores conjunturais que não têm
a ver com o processo de integração, como a aceleração das privatizações no Brasil,
contribuíram para esse resultado. Entretanto a verificação da origem e destino dessa
movimentação de capitais, bem como da redistribuição da propriedade dos ativos
econômicos na região — verificada nos movimentos de fusões e aquisições —, ajuda a
compreender, junto com uma interpretação do conteúdo das relações comerciais —
especialmente no que concerne ao crescimento do comércio intra-industrial — e das
estratégias empresariais, o significado econômico do processo de integração. Nos
termos da hipótese que estrutura esta tese, a análise desses aspectos das relações entre
os países da região permite que se verifique se a integração pôs em marcha um processo
de interpenetração das cadeias produtivas e, portanto, de fusão dos sistemas econômicos
nacionais em um sistema unificado e regional.
83
Numa outra estimativa, a ALADI calcula que as exportações variaram de US$ 46,4 bilhões em 1990,
alcançaram US$ 83,3 bilhões em 1997, para cair um pouco até US$ 74,3 bilhões em 1999, enquanto o
IDE cresceu de US$ 2,9 bilhões em 1990 para US$ 50,8 bilhões em 1999 (www.aladi.org acessada em
abril de 2001).
84
Os dados analisados dizem respeito a movimentos do capital realizados, quase exclusivamente, em sua
forma dinheiro. E não por acaso, pois esta tem sido a forma pela qual o capital produtivo encontra
mobilidade internacional nesse período. Já se vão muitas décadas das taxas de câmbio múltiplas que
apoiavam a transferência de máquinas e equipamentos do centro para a periferia, o que fazia a
transferência de capital produtivo per se relevante. Na medida em que passaram a ter o mesmo
tratamento das demais mercadorias, a não ser por eventuais tarifas diferenciadas, seu deslocamento
passou a ser feito como contrapartida do capital dinheiro.
144
é por acaso que a liberalização dos fluxos de capitais ultrapassou e teve um alcance
mais profundo que a dos fluxos de mercadorias. Novamente voltando a Arrighi, o
retorno do capital excedente, jogado para fora da esfera da produção pela crise do
regime de acumulação esgotado, só pode ser realizado através de sua metamorfose na
forma dinheiro, o que lhe permite o deslocamento, tanto espacial quanto temporal ou
setorial, para que possa retornar à esfera da produção em um novo momento, um novo
lugar e um novo ramo da estrutura produtiva, em um novo regime de acumulação.
85
A indústria automobilística tem sido responsável por cerca de um quarto do comércio no Mercosul e foi
referida pela maior parte dos autores citados como um caso exemplar dentro do processo de integração
e merecendo um tratamento à parte. Ela foi protagonista central da integração, o que lhe garantiu que
sua liderança na estrutura produtiva regional permanecesse inconteste. E isto é, também, antes de uma
exceção, uma semelhança com relação às demais economias industrializadas desse porte.
145
teve papel significativo (Katz, 2000; Kossacoff, 2000; Ferraz et al., 1995). Como já fiz
referência no capítulo anterior, uma decorrência importante da reestruturação foi o
declínio da indústria de bens de capital pela substituição da produção doméstica por
importações com novo conteúdo tecnológico, facilitada pela abertura comercial. O
ponto mais relevante para o argumento deste trabalho em relação às transformações
qualitativas do comércio exterior na região, além de seu crescimento intrabloco, é o
desenvolvimento da modalidade intra-industrial, um indicador da interpenetração das
cadeias produtivas no Mercosul. 86
86
O comércio intra-industrial é um indicador da complementaridade entre sistemas econômicos. Sua
existência decorre da estratégia de diferenciação de produtos e especialização das firmas nacionais
voltadas para o mercado regional. O fenômeno ocorre em países de nível de desenvolvimento
semelhante e renda elevada, o que implica um padrão de consumo capaz de comportar o grau de
diferenciação de produtos indutor das trocas intra-industriais.
87
O índice relativo aos EUA é o terceiro maior, após Argentina e Mercosul, mas num patamar que varia
de 0,22 a 0,32 entre 1980 e 1996. A tendência de crescimento só está ausente na relação nipo-
brasileira, onde o cálculo indica uma oscilação entre 0,17 e 0,09 no período (Baumann, 1998). Sem
dúvida, esse índice tão reduzido é razão do predomínio, na relação comercial entre os dois, de uma
pauta “clássica” em termos de uma visão centro-periferia, de troca de produtos primários por produtos
industrializados.
146
Nesse sentido, é importante fazer uma comparação das análises que indicam os
setores preponderantes no comércio intra-indústria com os movimentos de realocação
do capital na produção. Uma sinalização desse movimento aparece nos processos de
fusões e aquisições analisados por Bonelli (2000). Em seu estudo, os segmentos
químico e de alimentação sobressaem-se como sofrendo um processo bastante intenso
de transferências patrimoniais. Embora com um número de operações menor, o setor
automotivo, dominado por empresas transnacionais, não deixou de se fazer presente,
mormente no tipo de fusão e aquisição classificado como cross border, em que filiais de
um país são adquiridas por outras do país vizinho.88 Como lembra Baumann, esse
movimento representa uma mudança significativa no conteúdo dos investimentos entre
os vizinhos. “Até 1986, ¾ dos investimentos entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai
estavam concentrados no setor de serviços, sobretudo bancos comerciais.” (Baumann,
2001, p. 40). Os investimentos além-fronteiras só atingiram o setor produtivo e a
indústria após o começo da integração.
88
Os intermediários financeiros foram os líderes de fusões e aquisições na região, principalmente em
função da reestruturação radical do setor no Brasil, após a abertura. Nos demais parceiros, onde os
bancos já estavam internacionalizados há mais tempo, o impacto foi menor (Bonelli, 2000).
147
89
Um outro aspecto dessa limitação é que o processo de integração de estruturas produtivas tem sido
levado exclusivamente por deslocamentos do fator capital. Como lembra Baumann (2001), os
deslocamentos da força de trabalho são ainda irrisórios, muito em decorrência de os padrões salariais e
principalmente de seguridade social do Brasil, que, por razões puramente econômicas, deveria ser um
pólo de atração de trabalhadores, serem inferiores aos dos demais países.
148
90
Talvez “nunca” seja excessivo, pois os apologistas (e. g. Franco, 1998), muitas vezes, deixaram
entender que vêem a economia primário-exportadora do século XIX como um outro momento de
estabilidade. Em seu maniqueísmo simplório, instabilidade faz dupla com o “populismo econômico”
da “artificial” industrialização por substituição de importações e do desenvolvimentismo. Pensando
assim, esquecem tanto a funcionalidade da inflação para aquele modo de desenvolvimento quanto a
instabilidade cambial permanente da economia agroexportadora (Oliveira, 1977).
91
Essa constatação leva à conclusão de que uma aplicação in totum do Consenso de Washington, além de
todos os efeitos negativos e desestabilizadores causados ao balanço de pagamentos, às contas públicas,
ao nível de investimento, ao emprego e ao crescimento, não teria sucesso nem na redução da inflação.
149
A soma dos déficits na balança comercial e nos serviços criou uma necessidade
premente de grandes superávits na conta de capital para financiar esse desequilíbrio nas
transações correntes. O ingresso líquido de capitais passou a ser uma necessidade vital
das economias, e, na medida em que os acordos de renegociação das dívidas externas
“antigas”93 implicaram um aumento das amortizações, a atração de montantes cada vez
92
Segundo a ALADI, a dívida externa total dos quatro países do Mercosul passou de US$ 192 bilhões em
1990 para US$ 390 bilhões em 2000 (www.aladi.org acessada em abril de 2001).
93
Nessa classificação, estou englobando as dívidas criadas, principalmente, entre os anos 70 e 80 e que
foram objeto de renegociação ao final desta última década.
150
94
Muitas vezes, o ingresso de capital com vistas a inversões no setor privado também produz aumento da
dívida pública, operando um mecanismo existente desde as origens da crise inflacionária dos anos 80.
De olho nas metas monetárias de controle da liquidez, o ingresso de divisas é convertido em títulos e
não em moeda.
95
No caso da Argentina, mais que rígido, fixo por lei até hoje.
96
O sistema de preços vigente no desenvolvimentismo permitia às empresas nacionais um elevado grau
de controle de seus mercados, através do qual a inescapável defasagem em termos de produtividade e
escala, que redundava em custos maiores, era compensada por preços também maiores. Foi uma opção
151
fragilidade financeira externa decorrente. Seus resultados deletérios eram e ainda são
tidos como temporários e solucionáveis pelo recurso ao ambiente “amigável aos
mercados”, que não apenas financiaria o desequilíbrio no balanço de pagamentos, como
geraria uma corrente de investimentos externos impulsionadora de um novo ciclo de
crescimento.
A história mostrou quão ilusória foi essa expectativa. O fluxo de capitais criado,
ao qual os mexicanos deram o apelido de golondrina — assim como chega, parte —, foi
predominantemente especulativo, gerando um grau de volatilidade e incerteza crescente
nos mercados financeiros da região. 97 Durante os anos 1993-94 e 1998, no entanto, uma
certa convergência alcançada entre taxas de inflação e câmbio foi importante para o
crescimento do fluxo de comércio no Mercosul, alimentando as ilusões sobre a política
de estabilização neoliberal. A calmaria, entretanto, foi não apenas temporária,
abruptamente interrompida pela desvalorização do real em janeiro de 1999, como não
foi acompanhada de nenhum mecanismo de coordenação monetária e cambial, a
exemplo da União Européia (Pereira, 1996).
por menor bem-estar presente em troca de maior bem-estar para as gerações futuras, que seriam as
beneficiárias do estilo de vida urbano-industrial assim construído.
97
Mais vã ainda foi a esperança de que o investimento estrangeiro fizesse crescer a formação bruta de
capital fixo. A parcela empregada produtivamente dirigiu-se às privatizações e aquisições de empresas
nacionais, meras trocas patrimoniais, além de serem submetidas a processos de “enxugamento” pelos
novos donos, que representaram destruição de capital. O único setor com ampliação de capacidade
significativa foi o de comunicações, na esteira da revolução tecnológica em marcha mundo afora.
98
Nunca é demais lembrar que abertura e desregulamentação se fizeram sob pressão dos EUA, sede da
maior parte dos capitais que dela se beneficiaram em suas jogadas de curto prazo, as quais vêm
152
deixando um número crescente de vítimas ao largo do seu caminho, México, Indonésia, Rússia, Brasil,
Turquia, Argentina... e os próximos.
99
Na verdade, a posição da administração presidida por George W. Bush privatizou as operações de
socorro, como foi o caso da Argentina em junho de 2001, com o conseqüente aumento de seus custos.
O problema é apenas aumentado e empurrado para o futuro.
153
Essa vertente, como foi visto, tem alcançado resultados significativos, expressos
no crescimento da corrente de comércio, no crescimento do movimento de capitais e na
consolidação de empreendimentos e cadeias produtivas transfronteiras, através do
comércio intra-industrial e dos processos de fusões e aquisições. O avanço desse tipo de
integração, entretanto, não contribui para a formação de um sistema econômico regional
unificado, que venha a representar uma nova dimensão espacial integrada para a
economia da região. Ao contrário, e é o que defendo aqui, significará, uma vez
consolidado, um retorno ao estágio pré-independência dos sistemas econômicos sul-
-americanos, no qual um arquipélago de enclaves produtivos localizados em diferentes
lugares do continente mantinha escassos vínculos internos e se relacionava
primordialmente com os sistemas econômicos colonizadores da Europa. Sua reprodução
100
Nesse sentido, o Tratado é paradoxal, pois reafirma um projeto de integração econômica, social e
política, circulação de pessoas, mercadorias e empreendimentos, políticas industrial, comercial, etc.,
comuns, tudo contra o livre-cambismo dos governos que o implementaram desde então. A preservação
desses princípios é decisiva para a afirmação de um projeto de integração alternativo.
154
101
A expressão dessa condição como objetivo de um projeto político é clara no Plano Plurianual Avança
Brasil, diretriz de planejamento econômico do País entre 2000 e 2003. Nesse projeto, o
desenvolvimento está alicerçado na constituição de eixos “nacionais” formados por pólos dinâmicos,
capazes de estabelecer vínculos com a economia mundial, para os quais as ações programadas no
Plano devem construir as condições necessárias. O restante do território só merece menção no capítulo
das políticas sociais, não explicitamente admitidas como meramente compensatórias.
102
A imprensa tem divulgado inúmeras manifestações de dirigentes empresariais locais, que, em coro às
recomendações de consultores que valem mais pelos honorários do que por conhecimento, revelam o
objetivo estratégico de situar seus negócios em um espaço “globalizado” em detrimento de vínculos e
compromissos locais.
103
A vigência dessas assimetrias faz com que o processo de integração resulte em uma incorporação de
alguns espaços exteriores desgarrados de seus vínculos econômicos locais à economia da nação
dominante, no caso EUA e Japão. Os demais espaços nacionais ficam esvaziados economicamente e
excluídos do processo, como mostra o exemplo de Chiapas no México.
155
pressupõe a expansão do mercado interno tanto num ritmo adequado como com uma
composição da demanda condizente com a estrutura da oferta.104 A redistribuição, tanto
social quanto geográfica, da renda é necessária.
104
Mais ainda, um crescimento sustentado requer um ajuste fino entre necessidades sociais de consumo,
distribuição da renda — e, portanto, poder de compra — e estrutura produtiva.
158
acumuladas. Entretanto, de outro lado, será preciso efetivar um deslocamento dos níveis
de regulação para dotar o novo espaço econômico em formação das formas
institucionais que lhe propiciem estabilidade.
Começando por aquele que tem sido o elo mais frágil da institucionalidade na
região, nesses anos de neoliberalismo, a relação salarial, são significativas tanto as
transformações em curso como as iniciativas em direção a uma unificação dos mercados
de trabalho no âmbito do Mercosul, tema de um subgrupo de trabalho específico em sua
159
Mesmo o horizonte do mercado regional não pode ser dado como definitivo para
a estratégia empresarial. Conforme o resultado das negociações sobre a ALCA, tudo
poderá mudar outra vez. A transformação dessa forma institucional está na dependência
dos rumos que vai assumir a relação Estado-economia no futuro.
As idéias
equilíbrio é tudo o que não existe na vida dos sistemas econômicos organizados pelas
relações sociais capitalistas. A questão que precisa ser respondida é, na ausência de
equilíbrio, que outro tipo de ordem interna assegura a continuidade da existência do
sistema. A compreensão da natureza instável do capitalismo tem mobilizado os esforços
do pensamento heterodoxo desde seus fundadores, a começar por Marx e seguindo,
durante o século XX, na obra de Schumpeter, de Keynes e de tantos outros.
Argumentei, também, que esse recurso teórico contribuía de forma decisiva para
elaborar a difícil mediação entre os planos micro e macro da análise, superando tanto o
reducionismo do individualismo metodológico e seus agentes representativos quanto a
inconsistência da causalidade estrutural de alguns marxistas. Isto porque dá abrigo à
tese de Marx da relação social como unidade irredutível e fundadora dos sistemas
sociais, sendo o sistema econômico sua base estrutural. As relações sociais são os
elementos constituintes desses sistemas, ao mesmo tempo em que são por eles
produzidas, à semelhança dos aminoácidos nas células vivas. Ora, na medida em que a
163
reprodução das relações sociais econômicas começa a ser feita de forma automática,
dirigida pelos mecanismos reguladores do capitalismo, o que vulgarmente se conhece
como automatismo de mercado, esses sistemas sociais podem ser descritos como
sistemas autopoiéticos.
Essa contribuição teórica foi verificada em sua validade ao longo desta tese, na
medida em que tratei o fenômeno da integração entre sistemas econômicos na História
como um resultado de sua evolução. Entretanto a abordagem histórica, ao longo de todo
o trabalho, sofreu um recorte no sentido de um aspecto dos sistemas apenas ter sido
sistematicamente tratado, sua dimensão espacial. A validade do conceito de
“autopoiese”, para ser testada em toda sua extensão, necessitaria de uma análise
totalizante da evolução histórica do capitalismo, à semelhança do que fez Arrighi (1994)
ao propor o conceito de ciclo sistêmico de acumulação. Ao mesmo tempo, o
aprofundamento de uma perspectiva epistemológica também falta ser feito. Embora o
relevante trabalho de Luhmann (1984), um avanço teórico nesse sentido, como
argumentei, requer um ponto de partida diferente: no lugar da ação comunicativa, a
relação social, tal como formulado originalmente por Marx.
105
Em outra oportunidade (Faria et al., 1989) defendi, também, uma visão ad hoc da teoria das crises.
166
formulou Marx há 150 anos — está por ser feita e pode abrir caminho à formulação de
uma teoria da crise capitalista.
Os acontecimentos
O último quartel do século XX e este começo de século XXI são marcados pela
presença do fenômeno que Milton Santos chamou de aceleração. Uma onda de
inovações tecnológicas, de novos produtos, novos processos e novas relações sociais
criou uma situação de “alta energia” nas sociedades por ela afetadas, deformando o
espaço-tempo e mudando a percepção das distâncias e dos prazos dos seus sistemas
econômicos.
trabalho terá lugar. A classe operária passa a ser responsável por sua própria taxa de
exploração!
deixou aberto o caminho para que a indústria, criada nos interstícios da economia
extrovertida, surgisse como alternativa de desenvolvimento. O eixo dinâmico desviou-
-se para dentro dos sistemas nacionais, as economias foram pouco a pouco reduzindo
seus coeficientes de abertura e começaram, cada vez mais, a ser auto-referenciadas e a
internalizar seus esquemas de reprodução — em termos autopoiéticos,
autoproduzirem-se.
Em razão disso, o Mercosul, que fora tido como uma iniciativa de menor
importância e até visto com simpatia, na medida em que possibilitava a ampliação dos
negócios de empresas estadunidenses (caso da indústria automotiva), passou a merecer
uma atenção distinta, tido como elemento catalisador para a formação de um pólo de
poder regional cuja afirmação poderia implicar a tomada de posições eventualmente
antagônicas aos interesses nacionais dos EUA. A materialização de uma vaga “iniciativa
para as Américas”, na proposta concreta da ALCA, e com um cronograma tão encurtado
dá a dimensão dessa nova postura, que visa garantir um mercado ampliado como base
para a disputa econômica e comercial com a Europa e a Ásia, já que, nos planos militar
e financeiro, sua hegemonia não pode ser desafiada ainda. O papel dos EUA nesse
processo precisaria ser melhor analisado.
onde mesmo economias com níveis de renda per capita similares aos da Europa no
começo do século XX não alcançaram adentrar o círculo dos desenvolvidos.
Discuti aqui alguns dos limites que forjaram essa sorte adversa. Talvez o mais
emblemático dentre eles não tenha suas determinações enraizadas na esfera do
econômico, mas na iniqüidade da estrutura social mais desigual do planeta. A
urbanização e a monetarização da subsistência foram impulso suficiente para a
afirmação do crescimento industrial nas regiões mais avançadas do norte no século
XIX, mas sua continuidade, sob o paradigma fordista, só foi possível após a formação
de um mercado de consumo de massa resultante da desconcentração da renda ao longo
do século XX. Aqui no Cone Sul, convidado tardio ao estilo de vida industrial, os
fatores dinâmicos que impulsionaram a primeira onda de industrialização no norte
serviram para internalizar as estruturas produtivas fordistas na época do nacional-
-desenvolvimentismo, um exercício efêmero que se esgotou em poucas décadas, incapaz
de ultrapassar a “linha negra” da desigualdade. Para a continuidade dessa estrutura
social tão perversamente injusta, o processo de integração representou a tentativa de
alargar um pouco seus limites econômicos. Mas, para aqueles que desejariam ver uma
mudança desse quadro de segregação social, uma integração que retome os espírito do
Tratado de Assunção, inclusiva e com eqüidade, poderia abrir passo à retomada do
desenvolvimento e dar uma resposta positiva à indagação do poeta de se seria possível
vislumbrar “na fímbria do vasto horizonte a luz da alvorada de um dia melhor”.
A sorte
multilaterais, como o FMI, o GATT e, depois, a OMC, e pela hegemonia ideológica que
assumiram sobre a burguesia, sobre a imprensa e demais formadores de opinião e, muito
especialmente, sobre os economistas dos meios acadêmicos, em apoio às ações
políticas, diplomáticas e militares diretas, o que deu aos EUA uma capacidade de dirigir
e condicionar as decisões dos governos latino-americanos de uma forma que nunca teve
precedente.
106
A concentração de esforços na área da segurança e dirigidos ao combate ao terrorismo de alguns
grupos islâmicos após os acontecimentos de 11 de setembro, embora traga uma mudança no ritmo dos
processos e uma inversão das prioridades de sua pauta, em detrimento da questão comercial, não muda,
qualitativamente, a relação dos EUA com a América Latina.
177
A aceitação passiva, pela maior parte da elite econômica e política dos países da
região, do caminho da integração assimétrica, vulgarizado como uma “inevitabilidade
da globalização”, denúncia sua falência enquanto classes dirigentes, a incapacidade de
propor um projeto original. Se uma situação semelhante foi vivida na primeira metade
do século XX, quando da crise do modelo primário-exportador, então a contribuição das
classes médias e dos intelectuais na elaboração de propostas nacionais pôde resolver, a
partir do Estado, a ausência de direção política na sociedade civil, dominada pela
ideologia liberal das oligarquias rurais.
107
Como lembram Fiori (1997) e Tavares (1999), o país que detém a hegemonia do regime internacional,
como a Inglaterra no século XIX e os EUA no século XX, é o único para quem o livre-cambismo pode
representar uma opção de desenvolvimento, uma vez que, antes de ter a necessidade de desenvolver sua
estrutura produtiva própria, tarefa já realizada, sua política está voltada para o acesso a novos mercados
e à apropriação de novas parcelas de excedente.
178
Por impensável que parecesse há bem poucos anos, talvez a América Latina
venha, neste começo do século XXI, a trilhar o destino que acomete o continente
africano desde o final do século passado. Aquele território ancestral sobre o qual
caminharam os primeiros seres humanos foi jogado para fora dos circuitos de
valorização capitalista. Assim como na época colonial fora circunavegado por
portugueses que se dirigiam a lugares mais abastados e apenas aportavam para caçar
escravos, a partir das últimas décadas do século XX, a África foi alijada do processo de
desenvolvimento econômico e reduzida à condição de mero espaço de rapina de seus
recursos naturais, com o agravante de que, hoje, sua população não representa mais uma
fonte de riqueza, tendo sido abandonada à dizimação de guerras tribais fratricidas e
epidemias.
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