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Para Appia, a força do ator em relação ao espaço está em sua vitalidade expressa
pelo movimento. É a ação e a presença do ator que transforma, delimita, identifica ao
público que se trata de um espaço da cena e não mais um espaço “em devir”, infinito.
Mas não é simplesmente o movimento que altera o espaço. Um ventilador pode mover-
se e ainda assim não alterar o espaço que ocupa. O ator vivo ou o objeto que simule vida
autônoma move-se para realizar vontades, necessidades, desejos. O movimento do corpo
ao respirar, um olhar fixo em determinado ponto, o deslocamento do ator entre dois
objetos de cena, apontar o dedo para alguém da plateia, são movimentos que
circunscrevem o espaço de atuação, determinam ao público o que e onde está acontecendo
a ação. Contudo, para apropriar-se dessa “porção de espaço” e poder condicioná-la à sua
vontade para a plateia, é fundamental que o ator seja capaz de perceber este espaço por
ele ocupado da forma mais plena possível. Percebendo o espaço e percebendo-se no
espaço é que o ator se torna capaz de relacionar-se com o mesmo.
Para o prosseguimento desta reflexão, entende-se por “percepção” como “a
capacidade de vincular os sentidos a outros aspectos da existência, como o
comportamento, no caso dos animais em geral, e o pensamento, no caso dos seres
humanos”. (VEZZÁ e MARTINS, 2008, p.04). Ou seja, a percepção seria a capacidade
de atribuir significados aos estímulos sensoriais captados pelo corpo, a interpretação das
informações recebidas. Segundo Vezzá e Martins (2008),
Sendo a percepção formada por esse sistema cognitivo que parte das sensações, é
interessante notar que há três principais grupos de aferências sensoriais no corpo que
chegam ao sistema nervoso central: sensações interoceptivas (ou introspectivas),
sensações exteroceptivas (ou extrospectivas) e a propriocepção. As sensações
interoceptivas são aquelas provenientes de dentro do corpo, que informam ao sistema
nervoso central sobre as condições internas do organismo e, dessa forma, percebemos
quando estamos com fome, sede ou cólica intestinal. As sensações exteroceptivas, por
sua vez, são provenientes de fora do corpo, captadas pelos nossos cinco sentidos (visão,
olfato, audição, paladar e tato). Já a propriocepção, é um sistema sensorial que une
informações internas e externas ao corpo, com a finalidade de identificar a si próprio entre
suas partes e sua condição referente ao espaço que ocupa. Sobre a propriocepção, Alain
Berthoz discorre:
Apesar de parecer ser algo tão terrível ao ator algumas vezes, a professora Ana
Maria Amaral esclarece a contrapartida da máscara:
AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo:
SENAC, 2002.
FO, Dario; RAME, Franca. Manual mínimo do ator. 3. ed. São Paulo: Ed. SENAC,
2004.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. 2 ed. São
Paulo: Ed. SENAC, 2001.
Resumo
O presente texto apresenta uma reflexão sobre o espetáculo “Moleque tão Grande Otelo” e as
questões étnico-raciais que envolvem a peça e permearam a vida do artista. O artigo fala de como
os acontecimentos da vida do ator Grande Otelo tiveram implicações em sua arte, os fatos que
marcaram sua carreira e que são mostrados no espetáculo, “misturam” arte, vida, fantasia e
realidade. Com o intuito de desvendar o ator, a autora também faz referência a sua própria
história enquanto atriz e a similaridade de suas raízes com as de Sebastião Bernardes de Souza
Prata que se tornou para o mundo o Grande Otelo.
Palavras chave:
Grande Otelo, espetáculo, vivência.
O moleque Otelo
O espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo” revelara os bastidores da vida de Grande Otelo,
mostrando seus duplos, homem de teatro com grande poder de comunicação e talento em
contraponto com uma vida desregrada como boêmio e ébrio. Sebastião Bernardes de Souza Prata
vivia seu Grande Otelo com o intuito de trazer a alegria que, muitas vezes, não possuía. Sua arte
como ator foi usada para encarar, com riso, as angústias e o preconceito que vivenciava. Ele não
era somente artista, fazia da sua arte o alento para a sua vida, o que lhe gerou infortúnios. O
próprio Otelo traz, em seus depoimentos risonhos, brincantes, como bom palhaço, o fato de que
vivia “escondendo no riso a sua dor”. Sua arte possui um caráter libertador que escamoteava suas
dores e angústias, e se próprio biógrafo relata a respeito: “absolve-se ou condena-se Grande Otelo
por sua vida errante e, ao mesmo tempo, encantadora. Compreendemos que a arte o liberta”
(SANTOS, 2011).
O processo criativo do espetáculo, desenvolvido pelo encenador Luiz Humberto Arantes, foi
marcado pela construção a partir das memórias, sejam elas biográficas pelo livro de Sergio
Cabral, ou autobiográficas, pelos depoimentos e entrevistas em vídeo e em texto do próprio
artista. Todas estas fontes apontaram em uma montagem carregada de memórias híbridas, de um
lado do próprio artista e, em outra perspectiva, aliado ao contexto histórico social da época.
Nesse caso, trabalhando a partir de conceitos stanilavskianos, como a “memória emotiva”,
“mergulhei” em meu próprio universo e, revisitei etapas de meu processo formador como mulher
negra e atriz, me nutrindo de um arcabouço emocional que me forneceu material suficiente para
me aproximar, com cautela e denodo, dos sofrimentos e alegrias da arte de se fazer artista como
Otelo se fez. Entremeada por emoções variadas, vivenciadas ao longo de minha trajetória de
formação revisitando meu passado e vivência ao lado de meus irmãos, acionei o material de que
necessitava para revigorar meu trabalho cênico. Corpo e memória atrelados em conexão com o
passado e a reconstrução da história de Otelo, lugares comuns que se convergem, experiência e
memória. Em meu corpo, memória e experiências me trouxeram entendimento e me conectaram
com Otelo. Esta relação de experiências vividas fisicamente, que podem nos levar a um lugar de
compreensão do mundo através do sensorial resguardado no corpo é relatada pelo encenador
Constántin Stanislavski:
A teoria ilumina a experiência (...) Por isso a experiência pessoal não faz
parte,mas está onde lhe cabe,nas notas de pé de página,como” matéria
prima” da análise.(...) a experiência se mede pela teoria que pode explicá-
la,a experiência não é rememorada mas analisada.(Beatriz
Sarlo,p.79,2007)
Assim, o espetáculo mostrou as raízes de Sebastião Bernardes de Souza Prata, através da
mãe, da avó, e de como foi construído esse artista que viveu uma infância extremamente pobre e
com escassos recursos culturais. Da mesma forma, eu também vivi com uma família grande e
com poucos recursos financeiros. Ao representar a cena da avó de Otelo, eu revia as nossas
correrias de crianças no quintal, e a entrada nas casas sempre tão escuras, mesmo durante o dia,
momento em que olhávamos e observávamos a lenha ao lado do fogão, esperando para ser
queimada.
Quanto mais mergulho nas minhas memórias sobre as cenas do “Moleque Tão Grande
Otelo”, mais reflito na importância, e na contribuição do teatro para a sociedade, ao permitir que
atores e público vivenciem, sintam e compartilhem uma experiência, ao invés de obter
informação como vemos nos veículos de comunicação de massa que bombardeiam notícias
diversas, mas que não propiciam uma vivência e experimentação sensorial que realmente
promova uma transformação interior dos indivíduos. Informação não transforma, idéia defendida
por Jorge Larossa, que afirma a respeito:
Referências bibliográficas
CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007.
LARROSA, Jorge. Ensaios Eróticos – Experiência e paixão. In: Linguagem e Educação Depois
de Babel. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p. 151- 165.
SANTOS, Regma. Sobre o grande moleque Tião que se tornou Otelo. Artigo disponibilizado
no site http://brevidades-regma.blogspot.com, acesso em 7/09/2011.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
Trabalho do Ator e Teatralidade
Espaço rítmico: Provocações da Escuta
O conceito espaço rítmico foi investigado e idealizado por Adolphe Appia (1862-
1928) por volta de 1909. No seu livro A Obra de Arte Viva (L’Oeuvre d’Art Vivant –
1921), as últimas páginas são destinadas a algumas propostas de cenários, os quais são
apresentados pelas seguintes palavras: “Espaços rítmicos: os desenhos a seguir, datam de
1909 e são parte de uma série de projetos idealizados junto ao pensamento de Jaques-
Dalcroze. São destinados à criação de uma melhoria específica do corpo humano, sob as
ordens da música. – Sem outro destino, eles são um ponto de partida (1)” (APPIA, 1921,
p. 164).
Os desenhos que surgem após estas palavras não se aproximam do teatro realista
e mesmo simbolista que eram representados no mesmo período na Europa. A principal
inspiração do cenógrafo suíço para chegar a estas sugestões foi sua parceria com Jaques-
Dalcroze (1865-1950), como ele mesmo cita no trecho acima. Em 1906, Appia conhece
o trabalho de Dalcroze e declara o seu fascínio numa carta que escreve ao novo amigo. A
partir deste momento até 1909, acompanhou as conferências, se matriculou, em Genebra,
no “Normalcursus für das Studium der Methode der Rhythmischen Gymnastik von E.
Jaques-Dalcroze (Curso Normal destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica de
E. Jaques-Dalcroze) e assistiu as demonstrações de trabalho que Dalcroze fez pela Europa
(BABLET in APPIA, 1988, p. 3 e 30).
Neste período, Dalcroze começa chamar a atenção para a sua pesquisa devido às
demonstrações práticas que começa realizar por toda a Europa. Estudos que iniciaram por
volta de 1892 quando lecionou no Conservatório de Música de Genebra, as disciplinas de
“Harmonia Teórica” e “Solfejo Superior”, onde se defrontou com as dificuldades dos
alunos na compreensão do elemento rítmico e harmônico na música. A educação musical
do momento valorizava o músico virtuose com habilidades técnicas, desconsiderando
suas qualidades sensíveis e, por isso, os alunos eram estimulados a se fixar na anotação
musical e não na sonoridade dos acordes e melodias. Para combater estes preceitos e
contribuir para uma melhor formação, Dalcroze idealizou um trabalho para desenvolver
a sensibilidade dos alunos, de modo que fossem preparados para pensar e fazer arte, de
perceber toda a profundidade da música, entendendo que ela também sensibiliza e
influencia diretamente as emoções (JAQUES-DALCROZE, s/d. p. VI).
Intencionado em educar músicos que dissessem “eu sinto” ao invés de “eu sei”
(JAQUES-DALCROZE, s/d. p. IV), Dalcroze constrói uma pedagogia que alia escuta e
ritmo e a chamou de Ginástica Rítmica (Rhythmische Gymnastik) ou, simplesmente, de
Rítmica (Rythmique). Para Santos (2001. p. 20) a Ginástica Rítmica foi um marco
operativo para concretizar uma educação musical porque: explorava a sensibilidade, a
percepção; igualava o ritmo a todos os demais elementos musicais e o dissociava da
métrica, sendo valorizado como fator importante para a vida, para a sensibilidade, para a
expressão de toda arte; e introduziu o movimento para dilatar o senso rítmico do aluno e
a sua sensibilidade corporal. Assim, os estudantes deveriam se movimentar para
evidenciar os seus sentimentos e os conteúdos aprendidos nas aulas, de modo que o
movimento fosse a expressão de uma experiência de aprendizagem. Segundo Santos
(2001. p. 19-20), para Dalcroze o movimento possibilitaria o desenvolvimento de
questões duais como corpo e mente, pensamento e emoção, consciente e subconsciente,
interioridade e exterioridade, dionisíaco e apolíneo e, ainda, proporcionar uma
experiência estética da sensação do pulso e do tempo.
Dalcroze alegava que toda a sua pedagogia era para a formação de músicos
sensíveis. Nem ao menos almejava formar bons instrumentistas, queria apenas que seus
alunos fossem capazes de “perceber a música como algo divino, além de harmonia,
melodia...” (MADUREIRA, 2008. p. 123). Para isso, a Rítmica foi idealizada para ajudar
o rythmicien a desenvolver sua inteligência, vontade, compreensão da relação entre
música e movimento, ritmo e gesto, expressividade corporal e musical, valorização da
auto expressão, conscientização do espaço e das infinitas possibilidades de expressão
sobre os mais diferentes planos. Habilidades que deveriam ser ampliadas em todo artista
das mais diversas áreas. Deste modo, para ele, “os estudos de Rítmica constituíam-se
como o ABC da técnica corporal necessária a todo artista completo. Pois eles se destinam
à inteligência e à vontade” (JAQUES-DALCROZE apud MADUREIRA, 2008. p. 118).
Dalcroze defendia que a Rítmica servia de preparação, de iniciação do artista, mas não
como substituta das demais metodologias de formação das artes como a dança, canto,
teatro, ou mesmo dos estudos pianísticos (MADUREIRA, 2008. p. 30). Por volta de
1905, Dalcroze começa excursionar pela Europa com alguns alunos para mostrar a sua
pesquisa e torna-se alvo de atenção de muitos artistas, inclusive de Appia, como já foi
colocado acima.
Os espaços rítmicos foram cridos a partir da parceria que surgiu entre Appia e
Dalcroze e ao ler A Obra de Arte Viva é impossível não fazer correlações entre os
pensamentos dos dois artistas. Como coloca Madureira, Appia fez o Curso Normal
destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica e devido a esta experiência,
possivelmente, pôde vivenciar pessoal e esteticamente a Rítmica, que o teria conduzido a
concluir que “ser artista é, em primeiro lugar, não ter vergonha do próprio corpo, mas
amá-lo em todos os corpos, incluindo o seu” (MADUREIRA, 2008: 92). A Obra de Arte
Viva é um tratado de como valorizar, explorar e amparar o corpo no teatro. Postura esta
que contraria o pensamento artístico teatral do período, já que há uma valorização, por
parte dos artistas do teatro, da dramaturgia como principal mote de criação e como
identidade do teatro. Os dramaturgos escreviam tratados sobre o teatro, de como montar
e atuar em seus textos, como pensar o teatro enquanto arte dramática. Havia ainda, devido
à influência de Richard Wagner (1813-1883) (2), a crença de que a arte dramática deveria
ser a reunião harmoniosa de todas as artes, a síntese de todas elas de forma que se tornasse
a “obra de arte do futuro” (APPIA, s.d, p. 19-22). Contrário a estes princípios fomenta a
crise do teatro com o palco italiano e valoriza o ator como artista fundamental e, apoia o
surgimento da função do encenador que começa despontar no cenário (MOTA, 2012, p.
44). “A arte dramática dirige-se, como as artes representativas, aos nossos olhos, aos
nossos ouvidos, ao nosso entendimento – em suma, à nossa presença integral. Porque
reduzir à nada – e antecipadamente – qualquer esforço de síntese? Saberão os nossos
artistas informar-nos?” (APPIA, s.d, p. 29). Appia tem a resposta: o movimento do ator é
capaz de unir e tornar cada arte harmoniosa, fazer a junção entre elas:
O movimento, a mobilidade, eis o princípio diretor e conciliatório que regulará
a união das nossas diversas formas de arte, para fazê-las convergir,
simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática; e, como é único
e indispensável, ordenará hierarquicamente essas formas de arte,
subordinando-as umas às outras, tendendo para uma harmonia que,
isoladamente, teriam procurado em vão (APPIA, s.d, p. 31).
O movimento corporal do ator surge como o elo fundamental para a prática teatral,
assim como é para a pedagogia de Dalcroze. Para Appia, todo e qualquer elemento do
teatro deve ser idealizado para promover o movimento corporal do ator, sem este esforço,
o teatro está morto. Uma obra viva requer que todos os recursos estejam em função do
movimento, que é a vida no teatro. Para Appia “o movimento não é, em si, um elemento;
o movimento, a mobilidade, é um estado, uma maneira de ser. Trata-se, pois, de examinar
que elementos das nossas artes seriam capazes de abandonar a imobilidade que lhes é
própria, que está no seu carácter” (APPIA, s.d, p. 31). Deste modo, o movimento do ator
significa, resignifica todas estas artes juntas, unindo, por meio do movimento e da
plasticidade do corpo, as artes do tempo (música e texto) e do espaço (Luz, arquitetura,
cenário).
Na sua proposta de valorizar o corpo para animar o espaço e torna-lo vivo, sugere
tirar toda e qualquer móvel feito para aconchegar o corpo. Sugere formas planas e rígidas
para tornar o corpo nú mais presente e valorizado esteticamente. “Sobre uma escada sem
tapetes, serão, simplesmente, pés nus e cheio de expressão” (APPIA, s.d, p. 86). O espaço
deve causar resistência ao corpo porque é desta resistência que surge a sua presença, que
torna o trabalho do ator mais efetivo sem ser figurativo. O movimento, para Appia, não é
representação de ideia, portanto, o cenário não deve ser figurativo. Assim, sua proposta é
que, as formas do espaço, não se harmonizem com as formas do corpo, porque, uma vez
em sintonia, o corpo estará presente, mas sem efeito corporal. Por isso, critica os cenários
e o modo de pensar o espaço cênico do período. Estes deveriam ser idealizados para
valorizar, ampliar, reforçar a expressividade do corpo do ator. Deste modo, para Appia,
por mais que o corpo do ator fosse plástico, se aproximando da forma escultural, não pode
ser feita uma identificação entre corpo e escultura porque, o primeiro é móvel. Por ser
tridimensional, o corpo recusa a pintura, ou seja, os telões com as suas formas e luzes
pintadas pois, não valorizam a sua mobilidade. Pelo contrário, devido à forma fixa, há um
estranhamento que diminui a potencialidade do corpo (APPIA, s.d, p. 40), jogando fora
toda todo o esforço do ator.
Para receber do corpo vivo a sua parte da vida, o espaço deve opor-se a esse
corpo; adquirindo as nossas formas, aumenta ainda a sua própria inércia. Por
outro lado, é a oposição do corpo que anima as formas do espaço. O espaço
vivo é a vitória das formas corporais sobre as formas inanimadas. A
reciprocidade é perfeita. Este esforço torna-se-nos sensível de duas maneiras:
quer pela oposição das linhas quando olhamos um corpo em contato com as
formas rígidas do espaço; quer quando o nosso próprio corpo experimenta a
resistência que essas formas lhe opõem. A primeira é apenas um resultado; a
outra, uma experiência pessoal e, por isso, decisiva. – Tomemos um exemplo
e suponhamos um pilar vertical, quadrado, de ângulos rectos inteiramente
definidos. Este pilar repousa, sem base, sobre lajes horizontais. Dá impressão
de estabilidade e resistência. Aproxima-se um corpo. Do contraste entre o seu
movimento e a imobilidade tranquila do pilar nasce já uma sensação de vida
expressiva, que o corpo sem pilar e o pilar sem corpo que avança não teriam
atingido. Além disso, as linhas sinuosas e arredondadas do corpo diferem
essencialmente das superfícies planas e dos ângulos do pilar e esse contraste é,
por si só, expressivo. Mas o corpo toca no pilar; a oposição acentua-se ainda
mais. Finalmente, o corpo apoia-se no pilar, cuja imobilidade lhe oferece um
ponto de apoio sólido: o pilar resiste, age! A oposição criou a vida da forma
inanimada: o espaço tornou-se vivo! – suponhamos, agora, que o pilar não é
rígido senão na aparência e que a sua matéria, ao mínimo contacto estranho,
pode adquirir a forma do corpo que a toca. O corpo vivo incrusta-se, portanto,
na matéria mole do pilar e sepulta a sua vida; e, no mesmo instante, matará o
pilar (APPIA, s.d, p. 87-88).
A ESCUTA CORPORAL
O ritmanalista não seria obrigado a pular de dentro para fora dos corpos
observados. Ele poderia ouvi-los como um todo e unificá-los usando seus
próprios ritmos como referência: integrando o fora com o dentro e vice-versa.
Para o ritmanalista nada é imóvel. Ele ouve o vento, a chuva, a tempestade, a
parede, um baú [trunk], entende sua lentidão, seu ritmo interminável. Seu
objeto não é inerte. O tempo não é colocado de lado pelo sujeito. Ele só é lento
em relação ao nosso tempo, ao nosso corpo, a medida dos ritmos. Um objeto
aparentemente imóvel, a floresta, move de múltiplos modos: os movimentos
combinados da terra, da Terra, do sol. Ou os movimentos das moléculas e
átomos que os compõem (o objeto, a floresta). O objeto resiste a milhares de
agressões, mas se quebra em umidade ou em condições de vitalidade, uma
profusão de vida minúscula. Para o ouvido atento, esta vida minúscula é como
uma concha marinha (5) (LEFEBVRE, 2005, p. 20).
John Cage, Anne Bogart e Lefebvre pensam a escuta como um recurso que
contribui na percepção a partir da exploração e ampliação da atenção, percepção,
concentração e recepção; como interação do corpo no processo, seja ele artístico ou
científico, que compreende a fisiologia interior e exterior, de modo que estas estejam em
constante abertura e flexibilidade com o meio à volta, de forma a entender o ritmo, o
espaço, a relação entre objetos e pessoas; como meio para despertar e pôr em interação o
tato, o caminhar, a respiração, o fluxo sanguíneo, o olfato para perceber e explorar
sonoridades, acentos, ruídos, silêncios de forma a estabelecer um dialogo com o espaço,
com as cores, odores, com elementos externos e internos de forma não hierárquica.
Proposta que vai em direção às intenções e ao pensamento de Appia: foco sobre o corpo
como o elo fundamental da arte e a busca por um treinamento que objetiva sensibilizar o
artista aos elementos espaciais, textuais e rítmicos.
Neste sentido, a escuta pode ser uma prática interessante para pensar o espaço
rítmico. Appia o idealizou como um elemento fundamental que contribuísse no
desenvolvimento da expressividade do ator, para que ela fosse o elo entre todos os demais
elementos teatrais. A partir da exploração da sua percepção, o ator entende que qualquer
espaço tem seus ritmos, porque ele os ouve, os sente, os cheira, os tateia, se movimenta,
os degusta. Com os sentidos dilatados, há a ampliação da atenção, da percepção, da
concentração e da recepção do ator que reage a qualquer elemento que capta: não deixa
escapar a densidade do ar, cujas qualidades, dinâmicas e características mobilizam o ator,
inspirando-o a reagir; sensibiliza-se com as cores das paredes e do chão, com a entrada
da luz das janelas, com seus desenhos e formatos que criam imagens, possibilidades de
criação; não ignora os sons que chegam a este espaço, sejam eles provocados ou não,
confortáveis ou ruidosos porque, as sensações que provocam são potencialidades para
composições rítmicas do movimento; não dispensa a temperatura, os cheiros, os gostos
que geram mobilizações internas e externas, suscitando no corpo diferentes reações.
A escuta cria uma disposição corporal a todos estes elementos, despertando o ator
a dialogar, a responde-los com movimentos. O universo externo, a sala de ensaio, o palco,
mesmo estando vazios, o ator os vê cheios de provocações que lhe causam sensações, que
lhe convidam a brincar, compor dramaturgias, músicas que dialoguem entre si. Se o ator
estiver sensibilizado corporalmente para ocupar o espaço e o tempo no qual está inserido,
eles serão rítmicos, tendo formas retas, irregulares, escadas, praticáveis, rampas ou não
porque, qualquer elemento, mesmo o menos perceptível poderá ser estímulo mobilizador
da criação. A partir da escuta corporal, o ator não apenas está no espaço, mas o ocupa,
interage com ele, o desconstrói, o constrói, o transforma poeticamente. Por estas
considerações, acredita-se que a partir de um estado de escuta, de percepção dilatada, de
uma sensibilidade aguçada, o ator pode perceber o espaço, mesmo vazio, como um lugar
que habita os mais diferentes ritmos, assim como pode explorar com mais propriedade
provocações cenográficas como as de Appia.
Notas:
(*) Bolsista Capes, doutoranda em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC) na linha de pesquisa Linguagem, Corpo e Subjetividade. Bacharel
em interpretação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Mestre em Teatro pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC). As suas pesquisas estão na área da formação do ator: Interpretação,
Improvisação, Preparação Corporal e Ritmo da cena.
(1) Les dessins suivants, qui datent de 1909, font parti d’une série de projets appartenant à Jaques-
Dalcroze, et destinés à la création d’un style propre à la mise en valeur du corps humain sous les
ordres de la musique. – Sans autre destination, ils sont un point de départ.
(2) Appia tem um livro dedicado a esta temática La Mise em Scène du Drama Wagneriano (1895).
Há a tradução de alguns textos deste livro feito pelo Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro na revista
Urdimento, N. 12, disponível em: http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/
(3) Point out that this sensibility of alertness, quickness, availability and openness to one another, and
the sense that anything might happen […].Tradução da autora.
(4) Movimento artístico que surgiu em 1909, rejeitando o moralismo e o passado, cujas obras
baseavam-se na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos do final do século XIX.
(5) The rhythmanalyst will not be obliged to jump from the inside to the outside of observed bodies;
he should come to listen to them as a whole and unify them by taking his own rhythms as a
reference: by integrating the outside with the inside and vice versa. For him, nothing is immobile.
He hears the Wind, the rain, storms: but if he considers a stone, a wall, a trunk, he understands
their slowness, their interminable rhythm. This object is not inert; time is not set aside for the
subject. It is only slow is relation to our time, to our body, the measure of rhythm. An apparently
immobile object, the forest, moves in multiple ways: the combined movements of the soil, the
Earth, the sun. Or the movements of the molecules and atoms the compose it (the object, the
forest). The object resists a thousand aggressions but breaks up in humidity or conditions of
vitality, the profusion of miniscule life. To the attentive ear, it makes a noise like a seashell
(LEFEBVRE, 2005, p. 20). Tradução da autora
BIBLIOGRAFIA
APPIA, Adolphe. L’Oeuvre d’Art Vivant. Suisse: Édition Atar, 1921. Disponível em:
https://archive.org/stream/loeuvredartvivan00appiuoft#page/n7/mode/2up
BABLET, Denis in APPIA, Adolphe. Oeuvre Compléte. Tomo III. Suisse: L’Age
D’homme, 1988. Direção Científica da edição de Denis Bablet. O livro fala de seu período
de 1906 a 1921. Disponível em:
http://books.google.fr/books?id=yly2GoeEPxYC&pg=PA519&lpg=PA519&dq=l%27oeuvre+compl%C3
%A9te+de+Appia&source=bl&ots=Kx12fN2uhP&sig=PBBnolUO6MM4qIbLK4B-c_pB3Bk&hl=pt-
BR&sa=X&ei=KFmwU-
nfNsLlsASq0IDICA#v=onepage&q=l%27oeuvre%20compl%C3%A9te%20de%20Appia&f=false
BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints Book. A practical guide to viewpoints
and composition. New York: Theatre Communications Group, 2005
DALCROZE, E. J. Rythm, Music & Education. London: The Dalcroze Societz, 1980.
SANTOS, Fátima Carneiro (2004). Por uma Escuta Nômade: a música dos sons da rua.
São Paulo: EDUC/Fapesp, 2 ed.
SCHAEFFER, Pierre. Tratados dos Objetos Musicais: Ensaio Interdisciplinar. Tradução
de Ivo Martinazzo. Brasília: Edunb – Editora da Universidade de Brasília, 1993.
Conclusão
Referências Bibliográficas
O intuito inicial era mostrar uma cena de quinze a dezessete minutos na qual o
universitário experimenta desenvolver poéticas na cena teatral, e assim compreendia
enquanto resultado da disciplina a apresentação da cena. No entanto, é da nossa essência
compreender o encontro na sala, como um espaço dialógico, de autonomia na criação
artística. Assim, o processo criativo tem-se uma forte ligação com as teorias
pedagógicas discutidas por Paulo Freire (1996). O qual foi educador e filósofo
brasileiro, referência mundial no estudo da pedagogia. A sua prática didática
fundamentava-se por acreditar que o educando assimilaria o objeto de estudo fazendo
uso de uma prática dialética com a realidade, em contraposição à denominada educação
bancária. O educando criaria sua própria educação, fazendo ele próprio o caminho, e
não seguindo um já previamente construído. Acredito que cabe a ambos, ator, diretor,
educador ou educando entender, independente de ser ensaio, cada encontro é único, e o
processo depende de todos, é como se cada participante fosse um ingrediente, então essa
foi à imagem propulsora e pulsante que carregamos durante esse processo.
No livro o autor trata a questão da mulher do século XIX, bem como sua posição
nessa época, trazendo à tona a personagem Lucíola, que apesar de viver em um período
complexo para a sociedade, não se mostra submissa ao homem, quebrando assim, tabus.
Trata-se de uma prostituta, de personalidade forte que se apaixona por um homem, esse
é respeitado diante da sociedade, vivendo assim uma ardente e impossível história de
amor, que ela deseja a vida inteira.
Lucíola vive assim a situação da mulher que se apaixona por um homem que
vive num mundo oposto ao seu. Prostituição, mulher, mãe e filha. A amante que a vida
inteira sofre o preconceito da sociedade, a mãe que pensa mais no bem-estar da filha do
que no seu próprio conforto. Esse jogo da mulher de atitude, de diversas
responsabilidades, nos inspira enquanto mulher, fazendo assim, parte do nosso universo,
no qual pensamos a sociedade enquanto um lugar que deve ser justo e livre de qualquer
intolerância ou condição imposta à limitação da mulher na sociedade.
Essa personagem nos fascina porque ela busca seus desejos, rompe barreiras,
quebra paradigmas sociais, fica com o personagem Paulo, vivendo um amor
incondicional. Será que a mulher não tem direito de amar e de ser amada, independente
do que ela seja? Esse experimento teatral reflete sobre as fases do relacionamento entre
homem e mulher, entre a sociedade e seus conceitos de aceitação ou negação do amor
não convencional, bem como ressaltar a poesia que embala a vida de um casal em
“Cartas Para Lúcia”.
Nessa metáfora, corpo e alma buscamos atingir uma ligação interna, da nossa
vida com o processo, e de qualquer maneira , quando estamos na sala de ensaio lidamos
com o imaterial, de difícil mensuração, embora tenha consequências diretas na cena, por
este motivo é importante à compreensão e aceitação do tempo de cada participante
dentro do percurso criativo. Os diálogos que tínhamos eram carregados de emoção,
onde estavam presente as nossas sensibilidades, os nossos discursos pessoais
transformado em cena de forma crítica.
O corpo imaginário situa-se, por assim dizer, entre corpo real e psicologia do
ator, influenciando a ambos com igual força. Passo a passo começa a
movimentar-se, a falar e a sentir de acordo com ele, quer dizer sua
personagem vive agora dentro de você (ou se prefere, você habita dentro
dela). (CHEKHOV, 2003, p.101)
Acreditamos que para isto, cabe aos integrantes buscar construir um trabalho
cênico, mergulhar na sala de ensaio carregado de inspirações para transforma-las em
arte, por outro lado, nunca se sabe como iremos sair dessa sala, após o ensaio, assim,
também na sala de aula, um espaço no qual vivemos o novo, o tempo do presente que
pertence a cada momento, por mais que haja plano de aula o acontecimento sempre será
uma surpresa para todos. Pertence a esse acontecimento a esperança de que esse
momento será transformador e é a sala que é prova dessas sensações e luta, seja por
parte do condutor na montagem de uma peça ou no desenvolvimento de uma aula, onde
o professor tem a disponibilidade de conduzir e organizar o trabalho. Em Pedagogia da
Autonomia, Paulo Freire nos coloca a importância da esperança nesse processo de
transformação:
A encenação Cartas para Lucia, a cada ensaio se revelava mais viva e pulsante
em nosso corpo. Acreditamos na importância desse experimento como evolução da
individualidade para o coletivo, assim buscando abranger também a plateia enquanto
espectadores ativos, e também criadores da cena, não ignorando sua importância.
Dispensamos a hierarquia das ordens de poder e demos ênfase as nossas
particularidades, enquanto artistas, criadores, trouxemos a nossa experiência para
auxiliar na inspiração do texto, o qual trazia propostas relevantes à construção cênica ao
olho de cada participante. Enxergamos a troca de experiências, enquanto ponte
dialógica nos processos. Essa percepção, Paulo Freire nos possibilita enxergar, enquanto
caminho propulsor dessa transformação:
Considerações Finais
Percebi que esse processo foi importante para nosso desenvolvimento tanto
acadêmico quanto artístico. Pelo simples motivo de ter ficado impresso no corpo do ator
todo o trabalho exercido em sala de ensaio, e pelo momento vivido que foi
compartilhado entre todos, tanto presentes ao longo do processo, quanto presentes
durante a apresentação do resultado positivo e negativo do experimento.
Referências:
RESUMO
Este artigo pretende trabalhar a noção de Linha de Fuga, proposta pelo filósofo Gilles
Deleuze, em relação aos teatros de Jacques Lecoq e Vsiévolod Meyerhold. Observar quais eram
seus territórios de estratificação (molar) e seus territórios de resistência. Meyerhold e Lecoq,
assim como outros, mostraram resistências aos processos Stanislavskianos, de modo diferente,
dado os contextos em que cada um viveu e desenvolveu seu trabalho, ao mesmo tempo em que
caminhavam em direção à estratificação, à institucionalização, do próprio modo de fazer. A linha
de fuga é sempre em relação a uma estratificação, a uma iluminação do estado, que ilumina por
que quer capturar, mas no que ele ilumina aparecem novas possibilidades de fuga.
ABSTRACT
This article intends to work with the notion Line of Flight proposed by the philosopher Gilles
Deleuze in relation to the theater of Jacques Lecoq and Vsiévolod Meyerhold. Observe what
their territories stratification (molar) and its territories resistance. Meyerhold and Lecoq, as well
as others, have shown resistance to Stanislavski processes, differently, given the contexts in
which each lived and developed his work, while they walked toward stratification, the
institutionalization of the way to make itself. The line of flight is always in relation to a situation,
a lighting of a state, which illuminates why wants to capture, but what it illuminates is new
possibilities of escape to appear.
Os escritos de Michel Foucault (1995) sobre “tecnologia disciplinar” são a base para a seguinte
discussão teórica sobre métodos do treinamento do ator. Nos escritos de Foucault, o poder
disciplinar é uma força produtiva, e essas “tecnologias” produzem um tipo especifico de corpo.
Foucault explica que ele está interessado em “mapear” as “técnicas essenciais” que viajam de uma
instituição para outra, ao invés de investigar um história particular de cada instituição disciplinar
(1995:139). Ele examina as técnicas, processos e mecanismos que moldam o corpo. No entanto,
ele analisa e desenha exemplos de especificas instituições sociais, principalmente a prisão, o
exército e instituições de ensino, com o objetivo de descrever como praticas disciplinares operam
e como especificas “tecnologias disciplinares” são disseminadas para outras esferas da sociedade.
(MIRANDA, M. B. 2010, p. 61) [2]
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a
sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar as “disciplinas”. [...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia
o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, M. 1977, p. 133/134)
Observa-se então que a disciplina diz mais de um método de coerção/exploração dos corpos, do
que de treinamento do ator. A palavra método vem do grego, metáhodos: metá (reflexão,
raciocínio, verdade) + hódos (caminho, direção). Méthodes refere-se a um certo caminho que
permite chegar a um fim. No caso da disciplina em Foucault, ela é caminho e fim ao mesmo
tempo, diferente da disciplina no treinamento do ator, que é um caminho (possível, dentre
outros) para a composição.
Como a própria Miranda coloca:
De acordo com Foucaul, “docilidade” é a noção “que reúne o corpo analisável com o corpo
manipulável” (1995:136); isso é o proposito do ator. A particular docilidade de um ator é que ele
ou ela também é esperado para ter a capacidade de analisar a si próprio e moldar ele ou ela mesma
fisicamente de acordo com o objetivo teatral. (MIRANDA, M. B. 2010, p. 65) [3]
A linha que deve descrever o centro de gravidade é muito simples e, pelo que ele pensava, deve
ser recta na maior parte dos casos... mas de um outro ponto de vista, esta linha tem qualquer coisa
de excessivamente misterioso, porque, segundo ele, é apenas o tracejado da alma do bailarino...
(KLEIST, H. apud DELEUZE, G. PARNET, C. 2004, p. 152.)
Dividindo cada gesto dos estudos em movimentos exatos, Meyerhold foi capaz de aplicar ao ator
os princípios tayloristas de economia de movimentos e a teoria da emoção de James, fazendo com
que ele automaticamente experimentasse uma gama de emoções, devido a uma constante mudança
de organização de sua musculatura. Isso também habilitava o ator a estabelecer de forma precisa a
relação entre sua aparência física e suas impressões nervosas mais íntimas. (GORDON, M. 1973,
p. 10)
A integração do cinema ao ato teatral se faz pelo modo pelo qual suas técnicas e imagens
alimentaram e ainda alimentam a arte da encenação. Esta é trabalhada pelas noções de montagem,
de enquadramento e, mais recentemente, pela noção de movimento de aparelhos. O close se tornou
uma das noções-chave de encenação de teatro, que levou em conta também, no tratamento do
dispositivo, da luz, dos objetos e da atuação, as exigências do olho do olhador, segundo a
expressão de Marcel Duchamp, acarretadas pela riqueza composicional das imagens fílmicas.
(PICON-VALLIN, B. 2013, p. 120; 121)
“No novo teatro, a necessidade de introduzir nos planos uma construção rigorosamente submetida
ao movimento rítmico das linhas e da harmonia das cores vem substituir a sobrecarga absurda das
cenas do teatro naturalista”, observa Meyerhold em 1907. O teatro se torna, assim, a arte da
composição, e escreverão a respeito de o inspetor geral, encenado pelo mestre russo, que nada,
“nem o ângulo de um cotovelo, é [ali] deixado ao acaso.” (PICON-VALLIN, B. 2013, p. 112;
113)
A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem do que se trata.
Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas eles acham que fugir é sair do mundo, mística
ou arte, ou então que é algo covarde, por que se escapa aos compromissos e às responsabilidades.
Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do
imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer
fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma
cartografia. (DELEUZE, G. PARNET, G. Apud ZOURABICHVILI, F. 2004, p. 29)
Isso, evidentemente, não poderia significar o desaparecimento dos jogos brutais. Sua prática se
torna apenas mais controlada, mais regrada. As rixas se deslocam, transitando dos espaços ao ar
livre para os espaços escondidos, deixando os ambientes rurais e indo para as salas dos fundos dos
cafés, para os recintos adaptados, os locais fechados. Os golpes são disciplinados, as
aprendizagens são codificadas, as praticas de combate, ensinadas; mestres se impõem com suas
salas, suas concorrências, suas lições. (VIGARELLO, G. HOLT, Richard. 2008, p. 396)
E Lecoq vai ver o treinamento do ator com as lentes de um educador físico, no começo de
sua pesquisa. Ao continuar o desenvolvimento desta, com suas viagens e cursos, logo começa a
compor uma resistência ao teatro de caráter psicológico, ou de memória, ou escravo do texto, ou
da cópia exata da natureza. Em sua escola ensinava princípios de várias formas e técnicas de
teatro: a tragédia, o bufão, o clown, a comédia dell’art, Chegando a criar, por exemplo, a
“ginástica do arlequim”. Não para produzir virtuosismo, e é aqui que ele extrapola a questão da
disciplina que migrou, de certo modo, para o seu teatro através do esporte, mas para entender o
que do mundo habita cada um desses teatros e como deixar isso afetar o público através do
corpo. A partir do traçar de todas essas linhas molares, as diversas técnicas, a disciplina, o
conhecimento do corpo, fez emergir um ator aberto aos afetos e aos encontros. Buscou em todo
comportamento de matéria possível, a água, o fogo, o ar, a terra, o plástico e o ferro, um
comportamento da matéria corpo, e criou um ator tradutor que se deixa afetar, que busca os
motores da ação. O afeto é o que te movimenta. A própria máscara neutra, a neutralidade, surge,
se não, para dar a possibilidade de ser tingido, atingido por acontecimentos do mundo, depois de
uma escuta e espera atenta.
É preciso, então, começar eliminando as formas parasitárias, que não lhes pertencem, retirar tudo
aquilo que possa impedi-los de encontrar a vida em sua forma mais próxima daquilo que ela é.
Temos que retirar um pouco daquilo que sabem, não para simplesmente eliminar o que sabem, mas
para criar uma página em branco, disponível para receber os acontecimentos externos. (LECOQ, J.
2010, p. 57)
E ainda mais, Lecoq, preocupado como pedagogo em como direcionar suas críticas,
descobriu um dispositivo de composição que se baseia no que ali está, apenas, invés de verdades
pré-concebidas, isso se dava através de constatações:
A constatação é o olhar que se foca na coisa viva, tentando ser o mais objetivo possível. A crítica
feita a um trabalho não é uma crítica do bem ou do mal, é uma crítica do justo, do longo demais,
do curto demais, do interessante, do desinteressante. Isso pode parecer pretensioso, mas só nos
interessa o que nos é justo: uma dimensão artística, uma emoção, um ângulo, uma relação de
cores. Tudo isso existe em obras que, independentes da dimensão histórica, duram. Isso todos
podem senti-lo, e o publico sabe perfeitamente quando é justo. Se ele não sabe por quê, nós
devemos sabe-lo, pois somos, além de tudo... especialistas. (LECOQ, J. 2010, p. 48)
Meyerhold e Lecoq conseguiram produzir, cada um, uma diferença, um dado, do qual
não se pode ignorar, do qual reorganizou todo o teatro, extrapolaram-no, fizeram-no saltar de
plano, arrastaram o que já estava estratificado assim como se arrebenta um tubo. E outros
também o fizeram. Fizeram isso sem ressentir ao que tinham, aos problemas que tinham, aos
materiais disponíveis. Agora resta perguntar: Quais linhas eles deixaram, quais foram
estratificadas? Como usá-las, ou como estão sendo usadas, no teatro de hoje para se produzir
novas linhas de fuga? Seja nos grupos ou nos indivíduos: o teatro no mundo, na Europa, no
Brasil, em Curitiba, o seu teatro. E não lamentar opressões, pois o estado não oprime, o estado
ilumina, ilumina por que quer capturar, mas no que ele ilumina, aparecem novas possibilidades
de fuga.
NOTAS:
1 - Apoio: Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2 - O livro: Playful Training - Towards Capoira in the physical training of actors, de Maria Brigida de Miranda, foi
escrito originalmente em inglês e essa tradução não é oficial. Segue a mesma citação no original: Michel Foucault’s
(1995) writings about “disciplinary technology” are the basis for the following theoretical discussion about actor
training methods. In Foucault’s writings disciplinary power is a productive force, and its “technologies” produce a
specific kind of body. Foucault explains that he is interested in “map[ping]” the “essential techniques” that travel
from one institution to another, rather than investigating the particular history of each disciplinary institution
(1995:139). He examines the techniques, processes and mechanisms that forge bodies. Nonetheless he analyses and
draws examples from specific social institutions, mainly prison, the army and educational institutions, in order to
describe how disciplinary practices operate and how specific “disciplinary technologies” are disseminated to other
spheres of society.
3 - No original: According to Foucault, “docility” is the notion “which joins the analysable body to the manipulable
body” (1995:136); this is the actor’s purpose. The particular docility of an actor is that he or she is also expected to
have the capacity to analyse his or herself and mould him or herself physically according to the theatrical task.
REREFÊNCIAS:
FOUCAULT, Michel; Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1977.
GORDON, Mel. A Biomecânica de Meyerhold. The Drama Review, 1973. pp. 73-78),
tradução de Maria Elizabeth Jhin.
LECOQ, Jacques. O Corpo Poético: Uma Pedagogia da Criação Teatral. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010.
Sobre os encontros
Montagu (1988), autor do livro que Angel recomendou a devida leitura, chama
esta minha experiência com a mestra de sentido háptico. O tato é, na verdade, um
grande conjunto de diferentes sentidos táteis e
prédio localizado à frente da casa de cada um. Esta memória, presente no corpo de Artur
Ribeiro, o afetou profundamente: “Naquele dia, eu me dei conta de que ela não estava
falando sobre a cor da janela do prédio, mas sim sobre a importância de eu perceber a
pessoa que está ao meu lado. Eu só posso interpretar a vida se eu tiver um olhar sobre o
meu próximo. Como eu posso criar diferentes personagens e falar do mundo se eu não
tenho um olhar voltado para o outro? Se eu não paro e observo o outro? Este, para mim,
é um dos fundamentos da dança contemporânea e do teatro que eu aprendi.” (LUNA,
2014).
A experiência de Artur Ribeiro com o ensinamento de Angel Vianna sobre parar
para olhar, parar para perceber o outro e o mundo vai ao encontro do artigo de Jorge
Larossa Bondía (2002) denominado Notas sobre a experiência e o saber da experiência.
Nele, o autor descreve o quanto o excesso de informação, de opinião, de trabalho, a
pressa e a falta de tempo, características dos tempos atuais fragilizam a experiência.
Esta, “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca.” (2002, p.2). Para Bondía (2002, p. 5),
Sobre o treinamento
De acordo com Josette Féral, em Você disse “training”? (2000), o termo
training - de origem inglesa - tem sido cada vez mais utilizado na França desde a década
de 80, do século XX. A palavra treinamento, originalmente ligada às práticas esportivas
e militares, começou a perder força oral no campo teatral para a palavra training. Esta
parece ampliar a noção de treinamento da palavra francesa pelo fato de conseguir unir
todos os processos existentes referentes ao trabalho e à formação do ator. Parte desta
influência se deve ao teórico do teatro Eugenio Barba, que procurou difundir o conceito
training de maneira intercultural, em que o mesmo pudesse ser utilizado em diferentes
locais do mundo com equivalente caráter e definição. Além dele, a teórica (2000)
aponta outros pensadores e reformadores do teatro que contribuíram para tal
apropriação léxica na França, tanto na forma oral como, encontrada mais recentemente,
na forma textual. Entretanto, embora a palavra training possua certa interferência no
campo teatral francês, Féral (2000) afirma que as práticas de treinamento de origem
anglo-americana parecem não ter a mesma preponderância.
Féral (2000) relata que no início do século XX, as práticas de treinamento atoral
que emergem na Europa e América do Norte buscam reformar a figura do ator. Os
movimentos estudantis de culto ao corpo na Alemanha, as vanguardas russas, os teatros-
laboratório, os teatros-escola são alguns exemplos dos diversos experimentos existentes
na época criados pelos seus teóricos, artistas, pedagogos e reformadores que desejavam
uma nova teatralidade e um novo ator. Féral (2000) cita Jacques Copeau, Charles
Dullin, Louis Jouvet, Étienne Decroux, Jacques Lecoq, Gordon Craig, Adolphe Appia,
Èmile Jaques-Dalcroze, Max Reinhardt, Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski,
Yevgeny Vakhtangov e Alexander Tairov como alguns dos responsáveis pelas
reformulações da educação atoral.
As novas pedagogias e treinamentos sistemáticos, que trabalhavam os corpos
por meio do método e repetição, possuíam características peculiares que as
diferenciavam umas das outras. Contudo, convergiam em relação ao conhecimento do
ator, que deveria ser galgado paulatinamente, num processo contínuo, que o
acompanhasse durante toda a sua vida contemplando ao mesmo tempo, a sua
fisicalidade e interioridade. Féral (2000) corrobora o pensamento dos reformadores ao
afirmar que esta duração potencial do treinamento estimula no ator, uma constante
capacidade de criação, visto que este novo olhar sobre o processo de treinamento não
objetiva um resultado, um fim, mas uma nova corporeidade atoral e um novo
entendimento sobre o teatro:
Escutar, tocar, degustar, cheirar e olhar: sentir, perceber, criar e construir. Eis
aqui o que comprovei ser o primeiro processo de um dos eixos do treinamento dos
atores-dançarinos da companhia franco-brasileira de teatro gestual Compagnie Dos à
Deux11.
A fórmula, que de início, parece ser uma tarefa simples, possui, na verdade
grandes desafios: criar novas sensações, propriocepções, autoimagens, dinâmicas
espaço-temporais, experiências e tonicidades gestuais específicas que ultrapassem a
subjetividade dos seus corpos. Independente da técnica corporal, do estilo e da
linguagem que utilizem, se tal técnica vem da dança ou do teatro, o fato é que, para
construir uma partitura gestual e compor assim os seus personagens é imprescindível
que haja primeiro, entre os atores-dançarinos receptividade, abertura, porosidade e
poesia, para enfim dedicarem-se às técnicas corporais escolhidas para o treinamento.
Desenvolver a escuta, aprender a receber o toque e transformar a qualidade do
toque, compreender como acontece a respiração para que o seu corpo ganhe
profundidade e globalidade, exercitar a visão periférica, estimulando assim, a
possibilidade de enxergar de modo amplo, são alguns dos princípios que sustentam a
metodologia do trabalho diário deles e dos seus atores-dançarinos. É preciso estar atento
ao outro e a tudo que possa transformar os estados corporais de seus personagens. Para
Artur Ribeiro e André Curti, qualquer microgesto é capaz de influenciar e modificar a
qualidade de uma cena e até mesmo, do espetáculo inteiro.
A teatralidade dos atores-dançarinos da Compagnie Dos à Deux nasce da
dedicação que os seus diretores investem em relação às ações sensoriais durante o seu
treinamento. O mais importante não é a reprodução de uma técnica, mas a maneira
como os corpos serão estimulados para a mesma. Para que os seus atores-dançarinos
conquistem um maior vocabulário gestual teatral é fundamental que ampliem o modo
como executam os exercícios. O treinamento só começa a acontecer a partir do
momento em que os atores-dançarinos abrem os seus corpos para sensações
desconhecidas, ampliando assim, a sua percepção corporal.
As diversas e significativas experiências sensoriais que potencializam a
percepção, assim como a utilização de técnicas corporais que treinem ginasticamente os
seus atores-dançarinos, como a Mímica Corporal Dramática, de Étienne Decroux, as
danças balinesas e o contato-improvisação, dentre outras, faz com que eles conquistem
um controle gestual em cada cena de seus espetáculos. Este controle não nasce apenas
da repetição de movimentos exigidos nas técnicas corporais utilizadas em seu
treinamento. O controle gestual tem antes, a ver com a respiração. De acordo com Jean-
Jacques Roubine (2011):
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DRAKE, Richard L., VOGL, Wayne & MITCHELL, Adam W. M..Gray’s, anatomia
clínica para estudantes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005
FÉRAL, Josette. Você disse training?. In: BARBA, Eugenio et alii, p. 7-27. O training
do ator. Arles/Paris: Actes Sud Papiers/Conservatoire National Supérieur d’Art
Dramatique, 2000
LUNA, Carolina Gosch Figner de. Cadernos de notas, anotações pessoais sobre a
pesquisa de campo com a Compagnie Dos à Deux. Mestrado em Teatro da
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Rio de Janeiro, 2014
1
Tema da pesquisa de Mestrado em Teatro financiada pela CAPES, que realizo no Programa de Pós-
Graduação PPGT; do Centro de Artes – CEART; da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
sob a orientação da Professora Doutora Maria Brígida de Miranda. A Dos à Deux é uma companhia de
teatro gestual franco-brasileira reconhecida e premiada mundialmente, fundada pelos artistas André Curti,
Artur Ribeiro e a colaboração da produtora Nathalie Redant em 1998, na cidade de Paris, França. (Nota
minha).
2
“O mais profundo é a pele.” (VALÉRY apud GOUVÊA, 2007).
3
MONTAGU, Ashley. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
4
“O períneo situa-se inferiormente ao assoalho pélvico entre os membros inferiores. Sua margem é
formada pela saída pélvica (abertura inferior da pelve). Uma linha imaginária entre as tuberosidades
isquiáticas divide o períneo em duas regiões triangulares: anteriormente o triângulo urogenital contém as
raízes da genitália externa e, nas mulheres, as aberturas da uretra e da vagina. Nos homens, a parte distal
da uretra está envolvida por tecidos eréteis e abre-se na extremidade do pênis. Posteriormente o triângulo
anal contém a abertura anal.”. (DRAKE, MITCHELL & VOGL, 2013, p.372).
5
Realizada em Belo Horizonte, no dia 05 de abril de 2014. (Nota minha).
6
“Quando o embrião ainda tem menos do que 2, 5cm de comprimento da cabeça e tronco (Os membros
do embrião encontram-se flexionados e encostados ao peito e abdômen, não sendo assim considerados
nesta medição), quando ainda tem menos de seis semanas de vida, um leve acariciar do lábio superior, ou
das abas do nariz, fazem o pescoço se curvar e o tronco se afastar da fonte de estimulação. Nesse estágio
de seu desenvolvimento, o embrião ainda não tem olhos ou orelhas. Contudo, sua pele já está altamente
desenvolvida, embora de modo algum num nível comparável ao de seu ulterior desenvolvimento. (...)
Tanto a pele quanto o sistema nervoso originam-se da mais externa das três camadas de células
embriônicas, a ectoderme. A ectoderme constitui uma superfície geral que envolve todo o corpo
embriônico. A ectoderme também se diferencia em cabelo, dentes e nos órgãos dos sentidos do olfato,
paladar, audição, visão e tato, ou seja, em tudo que acontece fora do organismo. O sistema nervoso
central, cuja função principal é manter o organismo informado do que está se passando fora dele,
desenvolve-se como a porção da superfície geral do corpo embriônico que se vira para dentro. O restante
do revestimento de superfície, após a diferenciação do cérebro, da medula espinhal e de todas as demais
partes do sistema nervoso central, torna-se pele e seus derivados: pelos, unhas e dentes. Portanto, o
sistema nervoso, é uma parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele, pode ser considerada como a
porção externa do sistema nervoso.”. (MONTAGU, 1988, p.22-23).
7
“Na Educação Somática (sic) a ênfase está no próprio indivíduo, na percepção das sensações internas
produzidas no organismo. [...] Por meio do desenvolvimento do sentido cinestésico- a propriocepção –
essas práticas [Eutonia, Alexander Technique, Feldenkrais, Pilates, Barthenieff Fundamentals, entre
outras] colaboram com o refinamento motor, como também possibilitam a melhora da expressividade do
movimento.” (COELHO, 2011, p. 65-66).
8
“Nós agimos de acordo com a nossa auto-imagem (sic). Esta, que por sua vez, governa todos os nossos
atos – é condicionada em graus diferentes por três fatores: hereditariedade, educação e auto-educação
(sic). A parte herdada é a mais imutável. A herança biológica do indivíduo, a capacidade e a forma do
seu sistema nervoso, sua estrutura óssea, tecidos, glândulas, pele, sentidos – tudo isso é determinado pela
sua hereditariedade física, muito antes que ele tenha qualquer identidade estabelecida. Sua auto-imagem
(sic) desenvolve-se de suas ações e reações no curso normal da experiência.” (FELDENKRAIS, 1977, p.
19).
9
André Curti é brasileiro e Artur Ribeiro é angolano, naturalizado brasileiro. (Nota minha).
10
Embora concorde com a autora sobre o tempo do treinamento e da constante aprendizagem, discordo da
ideia, utilizada pela teórica, do corpo como instrumento e justifico-me através de duas citações, a seguir:
“A esta docilidade da linguagem equivale uma violência real exercida sobre o corpo: quanto mais sobre
ele se fala, menos ele existe por si próprio.” (GIL, 1997, p. 13).
“Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um
espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo?” (UNISINOS. Instituto Humanitas Unisinos.
Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-
foucault#.Uc-c_xLbGa >. Acesso em: 17 jul. 2013).
11
Dado construído após pesquisa de campo realizada nos meses de novembro e dezembro de 2013, na
sede brasileira da companhia. Para chegar a esse resultado, participei ativamente de workshop com os
diretores Artur Ribeiro e André Curti, adquiri alguns materiais audiovisuais com Artur Ribeiro, além de
entrevista-lo no final deste primeiro processo da pesquisa. (Nota minha).
TEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
Resumo: Executar uma ação. Logo, pensar em como executá-la. Então, imprimir
significado a ela. Ter como premissa um verbo de ação – empurrar, puxar, acenar, etc. –
e a partir daí deslocar o corpo de modo que uma ação cotidiana transite para um lugar não
habitual, dotado de outro fluxo de energia. Este artigo traz reflexões em torno de um
estudo prático-teórico sobre o trabalho do ator com partituras de ações como
procedimento para a sua criação artística e sobre os desdobramentos desse trabalho na
apropriação do espaço cênico. Inserida no contexto de montagem do espetáculo Calígula,
da obra de Albert Camus, esta escrita traz questionamentos a respeito do processo de
criação de um grupo de atores da cidade de Fortaleza através da composição de partituras
corporais engendradas por verbos de ação que sofrem interferência das qualidades e
significados presentes no espaço cênico.
Com frequência chamamos esta força do ator de “presença”. Mas não se trata
de algo que está, que se encontra aí, a nossa frente. É contínua mutação,
crescimento que acontece diante de nossos olhos. É corpo-em-vida. O fluxo de
energia que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi redirecionado. As
tensões que secretamente governam nosso modo normal de estar fisicamente
presentes, vem à tona no ator, tornam-se visíveis, inesperadamente. (BARBA.
1995. P. 54).
Diante desse processo de montagem teatral que nos impulsionou a perceber outras
instâncias do trabalho do ator, neste caso, enquanto pesquisa de partituras corporais,
abriram-se caminhos para a redescoberta dos corpos presentes na sala de ensaio, fazendo
uso da ponte corpo e pensamento como um só lugar de mutação e movimento.
Nesse processo de criação, ainda em andamento, de caráter inédito para o grupo de atores,
com direção de Renata Lemes, diretora da Companhia do Miolo de São Paulo, atualmente
professora do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, temos
trabalhado com verbos de ação – empurrar, lançar, acenar, etc. – como premissas para a
composição de ações que atravessam a obra de Camus e se constroem como partituras
relacionadas à pessoalidade de cada ator.
O trabalho com partituras de ação
O primeiro verbo trabalhado em sala de ensaio foi empurrar. A partir dele surgiram três
ações que constituíram a primeira partitura pensada individualmente por cada ator. Os
movimentos criados se relacionavam de maneiras distintas com o verbo, na mesma
proporção que formavam uma liga entre si, de modo a gerar uma unidade entre as ações,
compondo uma partitura de ação.
Embora partindo do mesmo princípio, no caso o verbo empurrar, cada partitura possuía
qualidades muito singulares, que ao longo do processo, se revelaram como uma condição
inerente ao trabalho com partituras de ação. Em cada jogo de ações pensadas pelos atores,
também se faziam presentes as qualidades dos próprios artesãos e não somente do verbo
em questão, ou seja, as características presentes nos corpos de cada ator, as diferentes
experiências vivas na memória corporal também trabalhavam na composição das
partituras.
Neste sentido, a partir de um mesmo verbo surgiram imagens carregadas de força com
movimentos mais amplos, como também imagens caracterizadas por uma leveza e
precisão nas ações. As partituras nos mostravam como um mesmo impulso criativo podia
nos gerar significados opostos.
Quais verbos de ação impulsionam cada cena e congregam as principais ideias da obra?
A partir daí, outras maneiras de construção das partituras foram surgindo em sala de
ensaio, agora com um direcionamento maior sobre a elaboração das ações diante do
contexto das cenas, as composições ganharam qualidades inerentes ao jogo de ideias da
obra, como também uma nova distribuição no espaço cênico.
Desse modo, pensando para além da criação individual e alcançando outras perspectivas
desse trabalho, começamos a pensar em outros espaços de investigação para além da sala
de ensaio com paredes brancas.
Partituras corpóreas fora da sala de ensaio
A frase dita pelo personagem Hélicon da obra de Camus, foi trabalhada em sala de ensaio
por um dos atores como um fator de transformação da partitura de ação elaborada a partir
dos verbos esfregar e lançar. Quatro ações juntas formaram a primeira partitura.
Nesta etapa do nosso processo de pesquisa, deslocamos o trabalho com partituras de ação
para fora da sala de ensaio, teríamos a totalidade do prédio do Instituto de Cultura e Arte
da Universidade Federal do Ceará como fator propulsor de transformações nas partituras
anteriormente criadas na sala de ensaio.
Nossa proposta foi fazer exatamente o oposto, procurar um espaço não-vazio, repleto de
suas características e signos. Um espaço em que suas condições intervissem nas ações já
criadas e modificassem a partitura nos seus mais diversos aspectos.
A partitura inicial com o texto de Hélicon possuía ações de esfregar os pés no chão, lançar
algo com a mão direita, com movimentações em níveis alto e médio. Saímos da sala de
ensaio para perceber o espaço do prédio, onde o ator poderia investigar as diferentes
possibilidades de intervenção na partitura inicial.
E assim aconteceu com as demais partituras de ação, uma rampa que transformava a
qualidade do caminhar, um chão áspero que modificava a intensidade do movimento, etc.
O espaço vazio
Do mesmo modo, o trabalho no espaço vazio voltou nossa atenção para outros aspectos
da criação artística. Na proporção que os estímulos pareciam estar menos presentes, o
grupo se tornava mais sensível aos mínimos impulsos provenientes do espaço e do
coletivo. Esses estímulos nos chegavam de variadas formas: sons, movimento, cheiro,
etc.
Essa outra maneira de se relacionar com o espaço, marcada por linhas bem definidas,
áreas limitadas e um espaço desnudado para encenação, retoma aspectos semelhantes a
um jogo muito presente em nosso processo de criação, o jogo Coro-Corifeu². Demarcando
a área de jogo – um quadrado grande – como um espaço vazio na sala, o primeiro corifeu
(jogador) entra e ocupa este espaço a sua maneira, ressaltando a importância da
consciência corporal do ator para a criação artística. Em seguida, entra o segundo corifeu
(jogador), nesse momento se estabelece as duas instâncias do jogo, o primeiro jogador
torna-se coro, enquanto o segundo assume a posição de corifeu, devendo continuar se
relacionando com o espaço, mas também com o coro presente, o qual irá reagir – a seu
modo – a qualquer estímulo oferecido pelo corifeu. Um jogo de ações se estabelece no
espaço vazio. Assim, à medida que um novo corifeu entra no espaço, a unidade do coro
aumenta seu tamanho.
Existe uma relação de suspensão dentro do jogo de teatro, uma marca pela espera do
acontecimento, um olhar vivo, um corpo-em-vida³ do ator que potencializa as ações do
jogo e da cena. Retomando as relações do jogo coro-corifeu, me questiono também sobre
a qualidade dos estímulos gerados para o coro: Como fortalecer a relação coro-corifeu
pensando não somente na receptividade do outro, mas também naquilo que eu jogo para
o outro.
Em paralelo, podemos refletir em torno da relação dos atores em cena, como também da
relação ator-espectador. Um canal de troca se estabelece entre essas instâncias, as duas
vias tornam-se abertas para que haja um atravessamento das partes. A suspensão é
rompida pelo acontecimento que vem do outro e que nos impulsiona ao novo, a outro
lugar, que nos permite trocar com o outro ator em cena ou com o espectador ali presente.
Neste contexto do jogo coro-corifeu, jogamos com verbos de ação no espaço cênico, os
verbos ficavam dispostos ao redor do tabuleiro como ferramentas para o jogo e
impulsionavam as ações criadas dentro do espaço. Verbos do texto de Camus que
ganhavam forma no corpo do corifeu e, de maneira análoga, reverberavam nas imagens
do coro. Criavam-se partituras corporais pelos estímulos do jogo, marcadas pela presença
do coro, pela força do coletivo e por outras qualidades de composição.
Redescobrir o corpo em cena através do nada, estar suspenso a qualquer impulso que
tenha origem em qualquer ponto do espaço, redescobrir a descoberta.
Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente
discursiva. Essa parte da mente divide, reparte, etiqueta – empacota o mundo
e o envolve como se ele fosse “entendido”. Nossas experiências vão se
tornando cada vez mais rasas, e deixamos de perceber as “coisas” diretamente,
como fazem as crianças, para percebê-las como se fossem signos de um
catálogo que já nos é familiar. (RICHARDS. 2008. P. 4).
Ocupar o espaço cênico com o desejo de redescobri-lo, perceber detalhes, falhas, formas
a serem exploradas, retomar o sentindo da criança quando rola pelo chão e procura o
novo, busca e se ocupa do inédito. Perceber como apropriar-se dessas sensações dentro
do processo de criação do ator, como redescobrir o próprio trabalho, fazer uso disso, por
exemplo, no trabalho com partituras de ação, na relação partituras corporais e espaço
cênico.
i
Notas:
¹ Grupo composto por atores cearenses em formação vinculados ao curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Ceará. A realização da pesquisa prática tem apoio do Instituto de Cultura e Arte
da UFC.
² O jogo coro-corifeu possui diversas abordagens dentro das diferentes linguagens artística. Nesta
pesquisa, ele foi usado como um dispositivo de trabalho da relação corpo-cena na perspectiva teatral.
³ Expressão oriunda do livro A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral de Eugenio Barba.
Faz parte do segmento o corpo dilatado de sua obra.
Bibliografia
ÁQIS: Núcleo de pesquisas sobre processos de criação artística. Estados: Relatos de uma
experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis. UDESC, 2011.
RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo.
Perspectiva, 2008.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
A TRANSFORMAÇÃO DO ATOR EM PERFORMER
Cristina Sanches Ribeiro; Orientador: Edélcio Mostaço; Universidade do Estado de
Santa Catarina
O corpo redescoberto
Performance
Quilici (2012) situa o produto-espetáculo como algo que “automize” o ator, não
dando a brecha necessária para essa nova arte que desloca a reflexão para os processos
de transformar os modos de arte e vida. O treinamento do performer passa pela
necessidade de dominar outras áreas do conhecimento.
Já Marinis (2000) vê o trabalho de Grotowski como uma passagem do ator ao
performer através da cultura teatral do corpo ao ultrapassar as fronteiras tradicionais do
teatro, partindo da ação física do ator. É na ação física que o ator desvenda algo que vá
além do trabalho direcionado para o espetáculo e espectador, associando esse processo
“orgânico” do ator de teatro ao performer, como um ser atuante, que cria a ação e a vive.
O ritual é uma parte muito importante no trabalho de Grotowski, situado como o
ato em si, a ação consumada, o desempenho e a forma como que cada experiência se
eleva a partir da corporeidade e processo conjunto.
O ator e o performer
Para Féral (2009), o ator torna-se performer quando em suas ações, o seu corpo,
seu jogo e suas competências técnicas são colocadas à frente da representação. O
público então navega entrando e saindo da narrativa de acordo com as imagens que
aparecem em seu olhar. “O espectador, longe de buscar um sentido para a imagem,
deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa (Féral, 2009)”.
Para Schechner (2006), as ações performativas não podem ser classificadas de
verdadeiras, falsas, certas ou erradas, elas simplesmente acontecem, sobrevêm. Uma
classificação importante da performance é o caráter de evento, colocando o processo em
cena, aumentando o aspecto lúdico de quem faz e de quem participa. O performer se
coloca em risco na frente de quem o assiste.
Féral (2009) então explica que duas ideias estão no centro do ato performativo: de
um lado, as ações que são realizadas pelo performer e no outro, o caráter descritivo dos
fatos. A performance cria seu lugar no real e desconstrói essa noção de realidade ao
mesmo tempo. O espectador é obrigado a se adequar ao jogo de signos instáveis que se
apresentam a ele:
Muitos de nós temos uma história com sapatos apertados. É comum querermos muito
um sapato mesmo que este não sirva bem. Talvez pelo modelo, talvez pela moda, talvez pelo
simples fato de ser um sapato que agrade ou ainda, pela necessidade de se calçar um sapato,
qualquer que seja, apenas para ter um sapato que calçar.
Quando usamos um sapato menor que nosso tamanho, vivemos a sensação do aperto,
do sufocamento. Sentimos nossos pés espremidos, sem espaço para respirar, para se adequar.
Sentimos, ainda, a dificuldade de pisar com firmeza, de equilibrar nosso peso e nossa
velocidade no caminhar, tentando ser mais leves ou mais lentos, experimentando pisar em
terrenos mais suaves ou menos acidentados.
Quando caminhamos calçando um sapato apertado, vivemos a sensação de querer
chegar logo ao nosso destino para libertar os pés, para respirarmos aliviados, para pisarmos
com tranquilidade no chão e esparramarmos nosso corpo sobre a carne amassada e sentir-se
livres.
Neste texto, serão discutidas algumas ideias e determinadas noções que fazem uma
aproximação poética com esta experiência dos sapatos apertados. O intuito principal é
apresentar alguns contornos de uma experiência improvisacional bastante relevante no
contexto não só das práticas artísticas mas da conformação de uma possível metodologia para
o ensino de novos procedimentos improvisacionais bem como sua aplicação nos mais
diversos processos criativos.
Aqui, serão tratadas algumas questões sobre as estratégias de criação e os
procedimentos de trabalho do Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade. A
constituição deste grupo se deu a partir de um Projeto de Extensão da professora Ana Cristina
Fabrício que desenvolve, há muitos anos, pesquisas práticas a partir da improvisação. Como
um desdobramento natural da disciplina “Jogos e Improvisação”, componente da grade
curricular dos cursos de graduação da Instituição, este projeto de extensão nasceu da
necessidade docente de investigar determinados aspectos relacionados à experiência
improvisacional que se encontram por trás das regras de jogo e para além das dinâmicas
cômicas.
Assim, em seu primeiro ano de atividades, o trabalho do grupo se pautou pela
aplicação e desenvolvimento de determinado vocabulário de base visando, sobretudo, a
instrumentalização do ator no uso de técnicas e procedimentos de improvisação. A estrutura
desenvolvida se construiu a partir da criação de cenas curtas elaboradas sobre o pressuposto
de jogo à sombra das noções clássicas da improvisação, pautadas em teóricos como Keith
Johnstone, Viola Spolin e Sandra Chacra, entre outros.
Em sua segunda formação 1 , as atividades do Grupo Tosco se desenvolveram
tomando, como pressuposto, a improvisação não-cômica. Nesta seara – e a título de
instrumentalização de integrantes novos – foram retomadas algumas dinâmicas anteriores
mas, sobretudo, foi-se desenvolvendo um novo vocabulário mais vinculado às práticas de
1
Faz parte da dinâmica do grupo a entrada e saída de integrantes devido ao vínculo com a Instituição durante a
graduação. Outrossim, por se tratar de um projeto de extensão, há a abertura para pessoas da comunidade. A
cada ano, faz-se uma chamada para a seleção de novos integrantes.
corpo, estabelecendo um léxico – oral e também corporal, sintático mas também sinestésico –
a partir do qual as atividades do grupo se apoiaram.
É para a experiência onde se funda este léxico que nos interessa olhar neste texto.
UM LÉXICO
Criar um movimento e repeti-lo. Fluir para outro movimento e mais outro até gerar
uma sequência que se repete. A partir daí, se relacionar com a sequência de movimentos de
outra pessoa até se converter em uma quase-dança que, além de vincular os indivíduos no
jogo também instaura núcleos e determina sua relação com o espaço.
Esta descrição refere-se a um exercício muito importante que costuma ser chamado de
“Chacrinha”. A própria denominação joga com a ideia de brincadeira, em que o que conta é a
possibilidade de se valer de um movimento livre para a elaboração de uma estrutura que vai
se complexizando à medida em que avança.
Assim, uma quase-dança torna-se potente o suficiente para instaurar um ambiente
criativo de múltiplas possibilidades. O pensamento torna-se não mais um reflexo da
linguagem verbal – a despeito do léxico do grupo – mas das imagens que o corpo gera. A
leitura que se estabelece a partir de exercícios com a “Chacrinha” funda um modo de pensar
arraigado sobretudo no corpo e, deste modo, as elucubrações que daí surgem estão fundadas
neste pensamento que é, antes de mais nada, corpóreo.
Trata-se de uma “atividade reflexiva” (SOMBRA, 2006) onde o pensar-em-ação
estabelece contornos muito mais borrados e, portanto, difíceis de definir, para a experiência.
Neste sentido, tais dinâmicas corporais remontam ao pensamento de Merleau-Ponty que
preconizava a importância de se partir da experiência para, então, se chegar ao sentido das
coisas.
José Carvalho Sombra (2006) faz uma bela abordagem desta conjunção ao destacar a
percepção como meio através do qual o corpo desencadeia ocorrências subjetivas, partindo
das singularidades: “o corpo próprio, tal como eu existo e o reconheço como meu corpo, o
corpo que eu vivo, que eu sou e que eu tenho, o qual se conduz como sujeito de meus desejos,
intenções e movimentos” (SOMBRA, 2006, p. 25).
Portanto, se consideramos que o corpo é condutor de leituras que estão para além da
linguagem verbal, o que “lemos” deste corpo é o que ele conduz como mediador, como meio
através do qual as percepções se comunicam, já que “o corpo é sempre o estado de um
processo em andamento de percepções, cognições, ações” (SETENTA, 2008, p. 38).
Ao concatenarmos o entendimento de percepção ao que o corpo comunica,
estabelecemos uma possibilidade de leitura mais vinculada às imagens que lemos e, então, o
sentido das coisas torna-se poroso. Acima de tudo, ao restituir às percepções o caráter
hegemônico das práticas do Grupo Tosco, assumimos que a experiência improvisacional se
concretiza enquanto uma atividade reflexiva, ou seja, no momento mesmo em que se faz, se
pensa e, portanto, se diz.
Nas práticas deste grupo, entende-se desde logo que não é possível falar do que
poderia ser feito senão daquilo que se experienciou, ou melhor, não somos capazes de
elaborar um sentido para uma experiência se não a percepcionamos. Em outras palavras
ainda, não é possível projetarmos o que gostaríamos de ter visto sem ter vivido aquela
experiência. Então, é muito comum falarmos de algo que “pensávamos” ter “lido” no
trabalhos dos atores que jogam acreditando que a cena improvisada teria sido melhor caso
fosse da maneira como a estávamos lendo.
Contudo, há uma estratégia presente nestas dinâmicas do Grupo Tosco que aponta
para a percepção como um princípio maior no(s) olhar(es) que estabelecem estas leituras
todas: a proposição das imagens como dispositivo de jogo a partir do qual a cena é
improvisada. Neste sentido, a profusão de imagens desencadeia um universo narrativo
estabelece pequenas células poéticas que, por sua vez, engendram um discurso cuja cena se
desenvolverá em seu entorno.
Como a geração de mapas está relacionada às percepções do ator em jogo/cena, as
dinâmicas corporais adotadas pelo grupo se mostram mais potentes que a palavra, seja em sua
formulação reflexiva – através das leituras que os integrantes fazem de suas experiências
improvisacionais – seja em seu território de ação – através dos diálogos improvisados em si.
Ocorre que as imagens geradas a cada dinâmica corporal ou em cada cena
improvisada são absolutamente porosas e colocam diante dos atores uma série de fissuras a
serem preenchidas, por isso a importância de ancorar a experiência improvisacional nas
percepções:
As imagens são extremamente maleáveis e transitórias, indicando o princípio
subjacente a todas as percepções: os mecanismos de percepção estão envolvidos em
negociações, acordos de correlações estatísticas com o ambiente, para que se
compreenda porque cada imagem é uma imagem, ou seja, que existe um sentido
transitório em cada imagem. (BITTENCOURT, 2012, p. 29).
Portanto, se o corpo é o espaço físico das ideias e perceber já é agir, as imagens são
geradas através de nossos mapeamentos cerebrais. Trata-se de um fenômeno convergente
entre objetividade e subjetividade, de definição das atividades reflexivas e das elaborações
poéticas que fazemos a partir do vocabulário que define nosso léxico (teórico e prático).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Naturalmente o elo entre o corpo e a alma é indissolúvel. A vida de um gera a vida da outra, e vice-
versa. Em toda ação física, a não ser quando é puramente mecânica, acha-se oculta alguma ação
interior, alguns sentimentos. Assim é que são criados os dois planos da vida de um papel, o plano
interior e o plano exterior. Estão entrelaçados. Um propósito comum os aproxima ainda mais e reforça o
elo inquebrantável que há entre os dois. STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Tradução
de Paulo de Pontes Lima. – 9ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P. 270.
2
“Boa Companhia” (www.boacompanhia.art.br) é o grupo teatral no qual atuo desde 1992 (desde a
Graduação em Artes Cênicas na UNICAMP), como ator e gestor. Dirigido artisticamente por Verônica
Fabrini e sediado em Barão Geraldo o grupo é também formado atualmente pelos atores Alexandre
Caetano, Eduardo Osorio e Moacir Ferraz. Realizei com o grupo mais de 20 peças como ator, entre elas,
“Primus”, „Portela, patrão; Mário, motorista” (também diretor em parceria com Eduardo Osorio e co-
direção de Verônica Fabrini), “O Artista da Fome”, entre muitas outras.
e, ao mesmo tempo, estar aberto a especificidade de cada novo espaço
externo, tal necessidade concreta é que edifica a reflexão sobre os espaços.
Merleau-Ponty diz, na afirmação acima, que o “espaço não é o ambiente (real
ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pela qual a posição das
coisas se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 328). Ao espaço físico,
referente às condições do lugar enquanto arquitetura; que torna possível a
posição das coisas palpáveis chamo de espaço externo (1). As reflexões sobre
esse aspecto se orientam primordialmente pela ocupação coletiva,
coreográfica, e relaciona-se à memória seletiva espacial. O espaço imaginário
(2) está de forma intrínseca ligado ao espaço interior (3), por depender da
relação interior do ator com a circunstância do acontecimento cênico, mas
concerne também a um aspecto coletivo; é o espaço onde os atores estariam
se fossem3 esses personagens. O espaço imaginário não é um espaço
permanente de referência para o ator no momento da atuação, ele diz respeito
à circunstância e gera elementos que podem alimentar a imaginação em lapsos
instantâneos, ou como recurso de concentração e prontidão, por exemplo,
como retomada da memória das circunstâncias. Como ator percebo que, em
momentos pontuais, retomo a atenção ao espaço imaginário, tal retomada me
permite reconstruir minha atenção na cena. Tal classificação, a meu ver, deriva
do conceito stanislavskiano do círculo de atenção:
Na busca por uma reflexão que parta da definição de Kusnet para criar
questões próprias, vejo que voltar a atenção ao espaço imaginário é uma
possibilidade de concentrar-se na circunstância, no sentido de aguçar a
sensação coerente com a cena. Assim, em momentos em que houver
elementos que tendam a dispersar a atuação (lapsos de desconcentração de
um ator, pequenos imprevistos na cena ou na plateia), a retomada da sensação
do espaço imaginário pode reconectar o ator na cena. É um fator que pode
estimular a recuperação do ritmo cênico do ator, inclusive, para ajudar na
reconstrução da atenção coletiva. Seria um “círculo de atenção interior” a partir
de um dado já estruturado; por isso, improvisar como se estivéssemos no
espaço imaginário da fábula são maneiras de proporcionar materiais para o
ator, eventualmente, recorrer diretamente a tais sensações para reestabelecer
3
Mal havia pronunciado o “se” mágico e senti como se alguma coisa me tivesse atingido pelas costas.
Comecei a correr, mal sabia o que estava fazendo, e de repente me achei dentro do meu quarto de hotel
imaginário. STANISLAVSKI, Constantin. A criação do papel, op. cit., p. 265. Stanislavski, em suas
principais obras, constantes de nossa bibliografia, define o mágico se fosse como um recurso para agir na
situação imaginária da personagem: o que eu, ator, faria, se fosse essa personagem, nessa situação. Nesse
caso nos referimos a uma intenção coletiva de criar um espaço imaginário, pois em “Primus”, todos os
atores são o mesmo personagem, na maioria das vezes, na mesma situação; embora cada ator tenha sua
própria imagem e seu próprio espaço interior, o estímulo para a improvisação é de um mesmo espaço
imaginário.
seu espaço interior. O espaço interior é a terceira maneira de olhar para o
espaço da cena que proponho.
Esse terceiro espaço, o espaço da imagem interior do indivíduo, é a
experiência subjetiva do intérprete; uma subjetividade que se liga aos objetivos
da personagem e da encenação; é um espaço psicofísico onde se processam
as memórias pessoais e coletivas, as lembranças, a poesis de cada um, lugar
da carne e do espírito do ator, é a morada da imagem interior. O espaço interior
é o lugar da potência íntima, é onde se dá a manifestação única do indivíduo,
espaço da imaginação do ator, onde ele processa sua pessoalidade. O ator
deve encontrar esse lugar em si mesmo, a cada montagem, com sua temática
e matrizes específicas. No processo de improvisação, as portas desses
espaços se abrem e o ator penetra em seus próprios ambientes secretos,
encontra atalhos, constrói caminhos, esculpe as chaves que voltarão a
conduzi-lo aos seus domínios.
Importante é, sobretudo, compreender cada um desses “espaços” como
um “lugar fenomenal cuja virtualidade de um corpo o define pela sua tarefa e
situação” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 333). Esses espaços existem como
propósito de viver o teatro, a intenção de imaginar um universo poético, de
jogar este jogo. No espaço externo os atores se colocam para viver uma
experiência imaginária, que supõe um espaço imaginário. Através de seus
espaços interiores os atores dão à experiência contornos íntimos, afetivos, no
entanto, de indivíduos que compõem um coletivo.
A tarefa e a situação dos que estão envolvidos no fenômeno conectados
à tarefa e à situação do ser imaginário motivam as conformações espaciais. O
que Merleau-Ponty chama de tarefa e situação, como definidores do espaço,
em afirmação citada4. No caso do ator em cena, relaciona-se com o que
Stanislavski nomeia de objetivo e circunstância5. Assim, o ator definiria o lugar
fenomenal do ser ficcional baseado na circunstância (situação) e no objetivo
(tarefa). Essa conexão (tarefa/ situação e objetivo/ circunstancia), na
improvisação, permite que se inaugure uma maneira de abordar o espaço e
suas características e que se inaugure o lugar fenomenal da cena – uma fusão
do espaço real, do espaço imaginário e do espaço interior. A abordagem ativa
do texto de referência de uma montagem (análise ativa) estabelece uma
ocupação do espaço externo a priori. Esse “desenho espacial” gerado
proporciona uma forma concreta de lidar com o conflito e determina, em certa
medida, uma atitude dos atores em relação às personagens, visto que opera
nas relações tarefa/situação e objetivo/circunstância.
Eugenio Kusnet apontou a associação dos conceitos de Stanislavski às
pesquisas científicas ligadas ao estudo do ser humano e de seus processos
perceptivos, como pode-se ver, de forma semelhante, na obra de Merleau-
Ponty:
4
Idem, ibidem, p. 328.
5
Nessa comparação, a tarefa seria a ação que o personagem realiza para conquistar seu objetivo,
mediante a situação / circunstância em que ele se encontra; essa fusão entre tarefa e situação é elevada a
um grau de complexidade que envolve o objetivo dos atores e o objetivo da encenação. Uso esse paralelo,
entretanto, a tarefa, no âmbito da conceituação de Stanislavski, não é, necessariamente, a ação. A tarefa é
o que a personagem faz, sem, necessariamente, traduzir a complexidade de sua ação maior. Por exemplo,
o personagem lava louça, essa é sua tarefa, contudo, sua ação é mostrar para alguém que também ajuda
nas tarefas domésticas, sua ação é mostrar-se colaborativo, e não apenas lavar louça. Para melhor
entendimento desses conceitos ver STANISLAVSKI, Contantin. A criação do papel, 2003, Op. cit.
A psicologia moderna praticamente confirmou o Método de
Stanislavski, corrigindo apenas a sua terminologia: o que
Stanislavski chamava „Circunstâncias Propostas‟, na linguagem
dos psicólogos, é chamado de „Situação‟; o termo „objetivo da
personagem‟, na psicologia é „necessidade‟, o mágico „SE
FOSSE‟ é „Atitude Ativa‟ na psicologia e, finalmente a fé cênica
de Stanislavski é equivalente a „Instalação” (KUSNET, 1992, p.
58).
Pode o teatro existir sem figurinos e cenário? Sim, pode. Pode existir sem a
música acompanhando a trama? Sim. Pode. Pode existir sem efeitos de luz?
Sim, pode. E sem o texto? Sim; a história do teatro confirma isto. Na
evolução da arte teatral o texto foi um dos últimos elementos a ser
adicionado. (...) Mas pode o teatro existir sem o ator? Eu não conheço nem
um exemplo disto. Alguém poderia mencionar o teatro de bonecos. Mesmo
neste exemplo, porém, o ator encontra-se atrás da cena, embora seja de um
outro tipo. Pode o ator existir sem audiência? Pelo menos um espectador é
preciso para fazer disto uma performance (GROTOWSKI, 1987: 32).
(...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas
representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa
pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo
ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de
todos os aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA, 2009: 82).
(...) o espetáculo de circo-teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito
para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas
especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem
para ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: ele é feito para
agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso
na bilheteria para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte
(SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 36).
BIBLIOGRAFIA
NOTAS
i
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
ii
Ermínia Silva (2007) utiliza a expressão separando as palavras por barras, ao invés de
ligá-las com a conjunção “e”, partindo da ideia de que, no circo, a formação do
individuo, do artista e do ser social ocorre concomitantemente, dentro de um processo
de aprendizagem integrado.
iii
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
iv
Ibidem.
v
Ibidem.
vi
Ibidem. Grifos do autor.
TEMA: O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO.
Autor: Ipojucan Pereira da Silva (Bolsa CAPES – Doutorado; Orientador: Prof. Dr.
Felisberto Sabino da Costa; Universidade de São Paulo; Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas).
Há uma coisa de que o homem não aprendeu ainda a tornar-se senhor; uma coisa
de que não se suspeita mesmo, que está pronta para ser absorvida com amor,
invisível e no entanto sempre presente, magnífica de sedução e pronta a escapar-
se; uma coisa que espera a vinda de homens aptos, pronta a elevar-se com eles
acima do mundo terrestre: e não é senão o Movimento (CRAIG, 1911, p. 78).
Ao se pautar pelo movimento para pensar a arte do teatro, Craig passou a refletir
sobre as maneiras de responder à demanda de tornar o espaço um dos eixos conformadores
da arte da encenação, gerando uma proposta estética que colocava em xeque os excessos
historicistas e o decorativismo ilusionista da cenografia de cunho Realista/Naturalista,
realizando uma transição do estatismo para o dinamismo cênico. Suas considerações sobre
o movimento o levaram a criar uma espacialidade em constante mutação por meio do jogo
conjugado entre a iluminação e os volumes móveis. Contemporaneamente a Craig, Adolphe
Appia também dirá que o movimento é algo essencial para o teatro, levando-o a pensar a
cena em função do deslocamento do corpo do ator, e substituir a bidimensionalidade
cenográfica do telão pintado por um cenário que dialogasse com a tridimensionalidade do
corpo humano e com a sua rítmica. Observando as palavras do pesquisador estadunidense
E. T. Kirby para esse processo, podemos perceber como esses questionamentos estavam
atrelados às discussões da época, no campo das artes plásticas, acerca da abstração como
reação à arte figurativa:
Referências:
AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus Duplos: máscaras, bonecos e objetos. São Paulo: Ed.
SENAC, 2002.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Edusp / Perspectiva, 1989.
COSTA, Felisberto Sabino. A Máscara e a Formação do Ator. Revista Móin-Móin,
Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, vol. 1, 2005, p. 25-51.
CRAIG, E. Gordon. Da Arte ao Teatro. Lisboa: Arcádia, 1911.
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SCHLEMMER, Oskar. Man and Art Figure, in: GROPIUS, Walter (ed.). The Theater of
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WINGLER, Hans. The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. Cambridge,
Massachusetts and London: MIT Press, 1981.
Notas:
1
Esta pesquisa tem o apoio da agência de fomento CAPES/CNPq.
2
Apesar de não ter sido levada adiante como pesquisa de mestrado, essas questões ganharam certo aprofundamento no
artigo: SILVA, Ipojucan Pereira . Corpo/Objeto: o “mascaramento” na cena contemporânea brasileira. Revista Móin-
Móin (UDESC), ano 6, v. 07, 2010, p. 14-26.
3
Para Renato Cohen, em Performace como linguagem: criação de um tempo – espaço de experimentação (São Paulo:
Edusp / Perspectiva, 1989, p. 103), a persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico, e a personagem diz respeito a
algo mais referencial. Segundo ele, o trabalho com a persona se dá geralmente pela forma, de fora para dentro, a partir da
postura, da energia.
4
[...] al realizar sus acciones, el actor genera una energia espacial que va dando forma al espacio escénico, [...]
5
[...] from Gordon Craig (and Neo-Romanticism) through the futurists, Dada, the work of the Russian formalists, the
Expressionists, the Surrealists, the Bauhaus, and so on, [...]We perceive ever more clearly in this work an underlying
intention: the creation of an abstract theatre. Its symbol, and that which clearly represents its function and aesthetics, is the
mask – or the masked actor whom Craig called the Übermarionette.
6
“[...] man and transformed back into nature or the imitation of nature [...] in the theater of illusionistic realism”.
7
A estereometria, ou geometria do espaço, é um ramo da matemática que estuda o volume dos sólidos geométricos e que
nos auxilia na medição do mundo tridimensional que nos rodeia. A planimetria é a representação em um plano de algum
espaço tridimensional; os pontos medidos são projetados sobre uma superfície horizontal.
8
Coordenado pelos professores Dr. Armando Sérgio da Silva e Dr. Eduardo Coutinho, o objetivo principal do CEPECA é
reunir, em grupo de estudos práticos sobre interpretação, professores, alunos de pós-graduação e interessados na área.
Visando a resultados perceptíveis em trabalhos práticos e espetáculos, caminham juntos os aspectos acadêmicos e
criativos, ou seja, professor e alunos se obrigam e se comprometem com os resultados estéticos, a partir de suas escolhas
metodológicas.
9
A partir de cursos ministrados aos alunos de arquitetura da Escola de Belas Artes de Paris (Ecole Nationale Supérieure
des Beaux-Arts), Jacques Lecoq criou, em 1976, o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM), um departamento de
artes plásticas e cenografia experimental da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq. O departamento é consagrado
ao estudo dinâmico do espaço e dos ritmos através da representação plástica, com aulas de movimento, de construção e de
desenho, envolvendo os domínios da arquitetura, do design e da cenografia. Junto ao arquiteto Krikor Belekhian, Lecoq
esteve à frente da direção do LEM até o ano de 2011, quando foi substituído por sua filha, arquiteta e cenógrafa Pascale
Lecoq. Apesar da sua autonomia, a proposta pedagógica do LEM não está desvinculada da Escola Internacional de Teatro
Jacques Lecoq, o que resulta em atividades que dialogam e interagem com a pedagogia da escola.
10
“[...] movement work [...] and [...] creative work that entails the building - and subsequent 'animation' - of structures
which seek to capture, express and bring to life the qualities of the movements explored hitherto.”
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
O conceito de unipersonal surge no contexto teatral argentino das últimas três décadas
e embora seja amplamente utilizado naquele país, aparece ainda timidamente no Brasil. A
dificuldade em se definir o que é um unipersonal para nós, brasileiros, advém de dois
problemas fundamentais, sobre os quais discorro a seguir.
O primeiro está ligado à ressignificação da palavra que é gerada pela tradução do
conceito. Seu correspondente em língua portuguesa - unipessoal - conduz a interpretações e
relações dissociadas do universo teatral.
O segundo problema se deve ao fato de a definição do unipersonal confundir-se com
outras modalidades criativas, com as quais compartilha algumas características. A aparente
ideia de semelhança entre essas formas espetaculares leva a uma generalização que conduz a
equívocos.
Na tentativa de elucidar essas questões, me proponho a investigar o conceito de
unipersonal, considerando, para tanto, as ressignificações que ele adquire a partir de sua
tradução cultural. Realizarei uma análise desde uma perspectiva da etimologia e genealogia
do termo. Também abordo neste artigo o unipersonal a partir de uma perspectiva filosófica,
recorrendo aos conceitos de aporia, de Derrida e antinomia, de Kant.
A palavra unipersonal tem origem no latim: o prefixo uni vem de unos e significa um
e o sufixo personal, vem de personális e significa pessoa. Assim, semanticamente, reunindo
esses dois verbetes, chegaríamos à conclusão de que unipersonal designa algo que é relativo,
correspondente ou pertencente a uma única pessoa. Essa definição é apropriada para nomear
a criação cênica cuja concepção, criação e execução é correspondente a um só indivíduo.
Porém, se aprofundamos a questão, teríamos também a associação aos significados de
uni relacionados a união/universalidade, o que nos leva a uma compreensão inteiramente
oposta, ligada à totalidade, à integração, ao globalizante e ao coletivo. Esse entendimento até
teria alguma relação com o unipersonal se o pensarmos de forma poética, como a
aproximação, o encontro entre os universos do ator e do espectador.
Em nosso idioma, em geral emprega-se a tradução literal de unipersonal, unipessoal,
para referir-se a instâncias, operações e organizações jurídicas formadas por uma só pessoa,
tais como sociedade unipessoal, empresa unipessoal, contrato unipessoal.
Utiliza-se ainda o unipessoal como classificação de verbos que possuem sujeito em
uma única pessoa do discurso – a saber: 3ª pessoa do singular (ele/ela) e do plural (eles/elas).
São os casos, para citar exemplos, dos verbos doer, aprazer, e também daqueles que
exprimem ações ou estados relativos às vozes de animais: latir, miar, ladrar, relinchar, rosnar,
mugir, etc.
Percebemos, portanto, que essas noções de unipessoal escapam completamente ao
contexto cênico. Como vimos, em teatro, a referência ao conceito de unipersonal surge na
Argentina, com mais ênfase dos anos 80 em diante. Essa modalidade aparece, portanto, no
período pós-ditadura, e pode ser percebida como uma necessidade de afirmação da identidade
perdida durante os anos de repressão e como uma busca por uma autoralidade que responda
aos desejos pessoais. A forma cênica unipersonal teve, ao menos em seus primórdios, uma
tradição política.
Nos deparamos, nesse estudo, com a incapacidade discursiva da exatidão e precisão,
uma vez que a linguagem, e em nosso caso uma mesma palavra, produz uma multiplicidade
de significados e faz referência a uma diversidade de fenômenos.
Devido a utilização corrente da palavra em português, com outras acepções diversas
daquela que me interessa, opto pela não tradução literal do termo, e adoto a concepção que
Peter Burke chama de tradução cultural e que vai evidenciar os limites da tradutibilidade.
Para esse pesquisador, a operação de tradução deve ser entendida em um contexto amplo
como sendo o processo interpretativo de entendimento de objetos estrangeiros, um esforço
significativo de encontro entre duas culturas (BURKE, 2009).
Diante do impasse terminológico e a fim de promover uma confluência entre as
culturas brasileira e argentina, procuro abordar outras formas de definição do unipersonal,
que possam esclarecê-lo, senão completamente, ao menos parcialmente. Busco me aproximar
de uma elucidação sobre a que estou me referindo quando utilizo o conceito de unipersonal.
Em virtude das dificuldades apresentadas para definição e utilização do termo
unipersonal no Brasil, proponho uma abordagem filosófica do conceito.
O filósofo francês Jacques Derrida sugere a desconstrução dos conceitos a fim de
demonstrar que o sentido está no domínio do indeterminado. Ele define este tipo de análise
como aporia. Uma investigação aporética pressupõe a definição de um tema central a partir
da refutação de todas as tentativas de definição. Este é um dos procedimentos que tento
realizar com o unipersonal: defini-lo a partir da via negativa, ou seja, busco explicar o que é
um unipersonal a partir daquilo que ele definitivamente não é.
Um solilóquio, por exemplo, não é um unipersonal. O solilóquio é um tipo de
monólogo. O monólogo, embora também seja interpretado por uma só pessoa, não é
sinônimo de unipersonal. Segundo Pavis (2005), o monólogo se caracteriza por ser a
expressão de um só personagem, que em cena não está acompanhado por ninguém e que
elabora um discurso para si mesmo, para um interlocutor imaginário ou para o público. Pode
ser a expressão de seus sentimentos e/ou pensamentos em voz alta, e, nesse caso, o
chamamos de solilóquio. Pode, ainda, ser o anúncio, para o público, de um acontecimento
que está por vir ou comentário sobre outro personagem ou situação que acontece na peça.
Nesse caso, que chamamos de aparte, fica evidente a busca do estabelecimento de
cumplicidade com a plateia.
Nerina Dip (2002), em sua dissertação de mestrado, expõe outras formas cênicas que
podem confundir-se com o unipersonal. Abaixo listo algumas delas:
One-man/one-woman show: forma espetacular que teve origem no music hall, e na
qual um personagem apresenta esquetes, canções, danças e imitações;
Recital: apresentação de um músico ou bailarino que interpreta textos teatrais ou
poemas;
Solo: modalidade cênica que se refere a criações realizadas por um só interprete,
utilizado em outras áreas além do teatro, como na dança, no circo e na música.
Stand up comedy: espetáculo no qual um comediante, geralmente sozinho, se dirige
diretamente ao público, rompendo a quarta parede, com narrativas que tem objetivo
de serem engraçadas.
Mas a pergunta persiste: o que diferencia esses formatos do unipersonal? Talvez o
mais apropriado seria afirmar que a única coisa em que se assemelham a ele é o fato de serem
representados por um único ator/atriz.
Ao contrário do monólogo, do recital, do solo e do one man/woman show, o
unipersonal é composto por uma dupla enunciação: que contempla monólogos, numa relação
lírica ou épica, mas que também apresenta diálogos entre personagens interpretados pelo
mesmo ator e que comunicam-se entre si. No unipersonal, portanto, o ator não apenas unifica
as funções narrativa e representativa, como também interpreta diversos personagens.
Quanto ao stand up, que também emprega as duas estratégias discursivas (monólogo e
diálogo), a diferença em relação ao unipersonal se dá pela temática e pelos objetivos. O stand
up comedy obrigatoriamente pertence ao gênero cômico, trata de temas humorísticos e tem o
intuito de entreter o público. Assim, podemos dizer que um stand up pode ser um
unipersonal, mas um unipersonal não necessariamente será um stand up.
Uma outra característica importante do unipersonal, que nos auxilia a diferenciá-lo
dos outros formatos teatrais, é apontada Nerina Dip. De acordo com a pesquisadora, o
unipersonal procura expor, de forma exarcebada, a condição de solidão do ser humano na
contemporaneidade, tanto na sua forma como no signo, assumindo, portanto, uma dimensão
crítica em relação a esse estar só na sociedade (DIP, 2005).
Todos esses aspectos que mencionei até agora são importantes para a compreensão do
unipersonal, mas talvez o que realmente o fundamente seja a dimensão política que ele
pressupõe.
No unipersonal o intérprete não apenas está só em cena. Existe um poder simbólico
no encontro do público com a visão pessoal do artista que assume todos os riscos do processo
criativo e interpretativo. O unipersonal responde a uma necessidade de expressão artística
suscitada por contextos políticos, sociais, econômicos e pessoais. Dessa maneira o ator,
diante de uma situação insatisfatória, rompe o abismo do silêncio e expressa sua
subjetividade – na voz, no corpo e na cena. Isso talvez explique o aparecimento de traços
autobiográficos em muitas das criações unipersonais.
Conforme Beatriz Trastoy, ao longo da história, os unipersonais foram empregados
como ferramenta de trabalho por setores marginalizados, em confronto com os discursos
dominantes. Este é o caso dos grupos sociais minoritários, como o dos travestis, das
feministas e dos anarquistas (TRASTOY, 2002). A pesquisadora aponta que ainda que não
tenham sido realizados estudos aprofundados a respeito do caráter político do unipersonal, é
impossível considerá-lo alheio às estruturas institucionais e sociais atuais. Ela afirma que
embora as estratégias e formas de encenação tenham se modificado ao longo dos anos, o
aspecto político não deixou de estar presente nos espetáculos teatrais (TRASTOY, 2009).
Essa parece ser uma perspectiva interessante para a compreensão da função política no teatro,
em específico no caso dos unipersonais.
A respeito do caráter político do ato teatral, Javier Daulte sugere a existência de uma
nova “responsabilidade do teatro”. Para ele, após o fim do governo militar, do terrorismo de
estado e da censura, há nas artes uma mudança de eixo político do discurso para o ato
libertário criativo. Conforme esse autor, com o reestabelecimento da democracia, o teatro
recupera sua especificidade, sua própria linguagem, que está relacionada ao estado de jogo
(DAULTE, 2014). Em consonância com o pensamento desse dramaturgo e diretor argentino,
podemos compreender a dimensão política do unipersonal como sendo o próprio jogo que ele
instaura a partir de sua forma.
Com relação às características dessa modalidade cênica e fazendo referência à teoria
semiótica de Tadeusz Kowzan, María Victoria Fornoni afirma que no unipersonal, os signos
teatrais que pertencem ao ator (palavra, entonação, expressão facial, gestual, movimentação
cênica, maquiagem, penteado e figurino) ocupam o primeiro plano na encenação, enquanto
que os signos externos a ele (acessórios, cenário, iluminação, música e som) adquirem uma
função direta com o ator e objetivam direcionar o olhar do espectador para aquele. Outro
traço desta modalidade cênica que a figurinista argentina destaca é a teatralidade que,
segundo ela, é acentuada pela nova relação que se estabelece entre ator e espectador. No
unipersonal a convenção de palco e plateia é interrompida. Essa mudança é atribuída por ela
não somente à nova configuração de cena, que ocorre com a apresentação de unipersonais em
espaços não convencionais - frequentemente locais pequenos e ambientes mais intimistas -
como também ao próprio jogo entre ilusão e verossimilhança, existente neste tipo de
espetáculo (FORNONI, 2014).
Este jogo entre real e ficcional está diretamente relacionado às instâncias de
enunciação, uma vez que no unipersonal se alternam e se imbricam as vozes do narrador, do
personagem e do próprio ator, mesclando relatos e representações ficcionais a acontecimentos
reais e por vezes autobiográficos. Podemos apontar a presença de matrizes biográficas nos
espetáculos unipersonais, como sendo outro traço marcante que os diferencia das demais
formas cênicas realizadas por um único intérprete.
Se por um lado, como vimos, há algumas premissas básicas para que um espetáculo
seja considerado unipersonal, por outro, esta modalidade cênica pode abarcar uma enorme
gama de gêneros e estilos teatrais, que vão desde o teatro de pesquisa ao teatro comercial.
Atualmente, o termo unipersonal é aplicado genericamente para fazer referência a
diversos tipos de espetáculos. Tornou-se comum o seu emprego, nas programações e críticas
jornalísticas, com menção a encenações individuais, cujas funções de dramaturgia e direção
de cena nem sempre coincidem e, muitas vezes, não são desempenhadas pelo mesmo artista
que realiza o espetáculo. Com isso, o unipersonal perdeu a dimensão política e o caráter
autoral que originalmente possuía e que em certa medida justificava o emprego desta nova
nomenclatura em contraponto ao já conhecido monólogo.
Beatriz Trastoy (2002) aponta dois principais motivos para a proliferação massiva
deste tipo de espetáculo na programação teatral argentina: o primeiro deles, relacionado a
fatores econômicos, diz respeito aos reduzidos custos e sua consequente facilidade de
produção e realização. O segundo, ligado a questões estéticas, é atribuído ao alto grau de
exposição e expressão individual que o unipersonal propicia.
Gostaria de propor ainda uma reflexão a partir de uma análise antinômica kantiana. A
antinomia propõe uma abordagem dos fenômenos a partir das contradições. Baseados nessa
perspectiva filosófica, poderíamos tentar entender o surgimento do unipersonal em oposição
ao chamado teatro de grupo e às demais composições cênicas coletivas: companhias, elencos
e associações.
As criações coletivas têm sua expressão máxima nos anos 60/70, época imediatamente
anterior à ascensão do unipersonal, e surgem em contextos ditatoriais como uma resposta à
repressão e ao pensamento autoritário vigente. De acordo com Luís Alberto de Abreu, são
percebidas como uma possibilidade de organização compartilhada com ampla participação e
mútua interferência de todos os integrantes do grupo na elaboração de um espetáculo
(ABREU, 2003).
Assim como a conjuntura social externa interferiu diretamente na forma de expressão
artística durante os governos ditatórias latino-americanos, podemos supor que a sociedade
contemporânea também exerce influência nas realizações criativas atuais.
Pode parecer paradoxal pensar uma obra teatral, prática artística coletiva por
excelência, sendo produzida por um único indivíduo. Contudo, se verificamos as
circunstâncias do surgimento do unipersonal, em nossa sociedade pós-moderna e em um
contexto de valorização da padronização e da uniformidade, essa expressão subjetiva pode
ser percebida como uma forma de resistência e ruptura com um modelo hegemônico, uma
possibilidade de unir pessoas.
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DAULTE, Javier. Juego y Compromiso: responsabilidad y libertad. Revista Conjunto. Cuba, v. 140,
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PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução: Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
_____. Teatro autobiográfico: los unipersonales de los 80 y 90 en la escena argentina. Buenos Aires:
Nueva Generación, 2002.
TEMA: ESPAÇOS DE PEDAGOGIA E FORMAÇÃO
Kysy Amarante Fischer (Bolsa CAPES – mestrado); Orientadora: Prof ª Dra. Maria Brígida
de Miranda; Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)i.
Resumo:
Neste trabalho busco uma reflexão sobre o papel do mestre no Butoh, arte do corpo que não
possui uma definição fechada e única. Para esta análise, utilizo noção de “mestre ignorante”
apresentada por Jacques Rancière e a discussão sobre dialogismo dos comentadores de
Mikhail Bakhtin. O objetivo desta pesquisa foi promover uma discussão acerca do ensino no
Butoh como impossibilidade que gera novos caminhos para pensar treinamento.
Abstract:
In this work I pursue a reflection on de master’s role in Butoh, art of the body that doesn’t
have a closed and unique definition. For this analysis, I use the notion of the ignorant
schoolmaster that is presented by Jacques Rancière and the discussion about dialogism from
Mikhail Bakhtin´s commentators. The aim of this investigation was to promote a discussion
concerning the teaching in Butoh as an impossibility that brings new paths to conceive the
training.
nada tem a ensinar, no que se refere à análise intelectual, nem impõe qualquer
conjunto de doutrinas a seus seguidores. Nesse sentido o Zen é caótico. Seus adeptos
podem formular conjuntos de doutrina, formulando-as, porém, por sua conta e para
benefício próprio e não do Zen (SCOFANO, 2007, p.109).
O que o aluno aprende não é necessariamente o que o outro sabe, ele pode inclusive
aprender o que o mestre não sabe. Vejo que no Butoh se caminha por essa via quando se trata
do “ensino”. Assim como Jacotot afirmava que “é preciso que eu lhes ensine que nada tenho a
ensinar-lhes” (JACOTOT apud RANCIÈRE, 2002, p. 27), em Campinas, Tadashi Endo nos
disse que não havia aprendido Butoh com Kazuo Ohno e que tampouco nos ensinaria Butoh,
visto que não se trata de dança, mas sim de uma escolha de vida. Ou seja, ser um dançarino e
ser um butoísta são coisas diferentes. É preciso viver o Butoh. É preciso caminhar sozinho.
Sendo assim, é impossível definir quando começa e quando termina o aprendizado em Butoh.
É preciso abrir a percepção para a vida e encontrar nela o Butoh, a poesia ou a própria vida.
No livro Kazuo Ohno: el último emperador de la danza, Gustavo Collini Sartor diz que:
Uma lição de Kazuo Ohno não é uma lição normal. Quando começa? Talvez quando
tomamos o trem de Tóquio até Yokohama? Quando nos sentamos no seu estúdio, ao
redor da mesa, tomando uma xícara de chá e o escutando antes de trabalhar?
(SARTOR, 1995, p.123).
No caso do mestre ignorante e no caso do Butoh, o mestre ocupa o lugar de verificar
se o aluno está engajado em sua busca. Deste modo, o percurso lógico de uma proposta de
treinamento pode não ser claro. Por vezes uma proposta de experiência traz consigo uma
tentativa de criar espaços de vida. Isso me remete à quando, no meio do workshop O visível e
o invisível no trabalho do ator-dançarno, Tadashi e Simioniiv nos convidaram para passar um
dia na casa do segundo e nos propuseram uma série de ações. Nos dividimos em equipes.
Alguns fariam diferentes molhos, outros fariam a salada e outros ainda a sobremesa, os
mestres fariam macarrão. Pela manhã, nos encontramos para comprar ingredientes, esperar
algum colega que se atrasa ou se perde. Quando chegamos na casa, estivemos conversando e
esperando que algo acontecesse. Quando fomos cozinhar a instrução que recebemos foi que
não poderíamos falar uns com os outros. Imediatamente nossas teimosias começaram a
aparecer na feitura do molho. Nossos entendimentos pelo olhar também. As ações simples
envolvidas no cozinhar, exigiam de nós a mobilização de nossas sensibilidades. Enquanto
isso, os dois proponentes passavam por nós, observavam e davam algumas risadinhas.
Uma outra ação proposta foi a de que cada um tomasse a iniciativa de cantar uma
canção de sua infância enquanto os demais se manteriam em silêncio. Toda a casa se
envolveu numa nuvem de ternura e saudade, parecendo que o silêncio cantado era mais
silencioso. Quando uma linda mesa estava arrumada fomos convidados a procurar o envelope
de hashi que nos pertencia pois o nosso nome estava escrito lá, em japonês. Quando cada um
estava com o seu envelope, Tadashi foi passando e reorganizando a distribuição dos hashis, se
divertindo como os nossos enganos. Comer aquela comida estava envolvido por tudo o que
sentimos enquanto cozinhávamos. Conversamos muito, contamos nossas histórias do Brasil,
Colômbia, Equador, Dinamarca, Espanha.
Nessas duas propostas de ações fomos levados a nos encontrar conosco mesmos de
diferentes maneiras, e diferentes “nós mesmos”. Estas propostas não contêm em si, nenhuma
relação direta com a dança. É um treinamento do sensível, da relação e do invisível. A partir
dessa experiência em Campinas, penso que o mestre deixa, com suas ações, espaços vazios
que os discípulos devem preencher. Por exemplo, vivendo o que me é proposto, posso me
questionar sobre o que o mestre quer de mim, o que está pensando sobre mim ou sobre como
eu danço. Este trabalho de preencher esta falta é também falho em muitos sentidos, o que
produz uma busca constante. A busca de quem faz Butoh, e os resultados que isso produz,
gera o que pode vir a ser Butoh. Este trabalho é feito conversando sobre o que faz sentido
para a minha dança, é feito quando alguém escreve um artigo sobre Butoh, um poema, ou
quando se tem a coragem de dizer: o que eu faço é Butoh.
O movimento gerado pela dúvida é fértil. Mas para que ocorra criação a partir destas
dúvidas e incertezas é necessário que o sujeito se coloque em uma posição de não saber e de
perseguição deste saber. Por exemplo, uma fala relativamente clara pode ser endereçada a
alguém, e ainda assim, este que recebe essa mensagem produzir questionamentos a partir
disso. Percebo esta postura quando Kazuo Ohno conta que Yukio Mishima sempre dizia “sua
dança é boa”, e Ohno relata que pensava:
Dizer que alguma coisa é boa pode ser interpretado de várias maneiras. O que, na
verdade, ele queria significar com isso? [...] eu pensava comigo mesmo: “Minha
dança é boa, mas o que é bom?” Poderia valer menos que o ruim, então significaria
“o que você faz é ruim”. Isso me deixou pensando durante anos (OHNO, 1995,
p.130).
Portanto, não é apenas o mestre que coloca espaços vazios na sua mensagem, por
vezes é o próprio ouvinte que demanda a busca de mais sentidos naquilo que lhe é oferecido.
E, como afirma Rancière, o querer saber é a condição fundamental para o processo do
conhecer.
REFERÊNCIAS
BAIOCCHI, M. Butoh: dança veredas d’alma. São Paulo: Palas Athena, 1995.
NOTAS:
i
Agência financiadora da pesquisa: CAPES.
ii
O Zen-Budismo surgiu como uma adaptação japonesa do Tch’an (corrente budista chinesa) que chegou ao
Japão no século XII, a pedagogia do Zen manteve a meditação assentada (zazen) e os enigmas verbais (koans).
Segundo Scofano (2007), o Zen não se funda na lógica ou na análise, “ele apenas sugere o caminho. A menos
que consideremos este sugerir como ensinamento, nada há no Zen propositalmente estabelecido como doutrina
primordial ou filosofia fundamental” (SCOFANO, 2007, 109 -110).
iii
Esses embates entre línguas maternas geram matizes de entendimento que se perdem, se recriam e que podem
apontar para algo interessante a ser estudado. Pois no Brasil, o acesso restrito a traduções e aos próprios mestres,
pode gerar uma maneira bastante autônoma de criar pensamento e dança em Butoh.
iv
Carlos Simioni é ator do Lume – núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNICAMP – que em quase
30 anos de existência, estabelece alguns diálogos com o Butoh, principalmente através dos contatos com Anzu
Furukawa, Natsu Nakajima e Tadashi Endo.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
INTRODUÇÃO
Um quarto escuro, um menino doente em uma cama e uma janela por onde
se pode ver o mundo... No quintal, brincam esquilos. Na rua, passam o vendedor de
coalhada, o guarda do pequeno lugarejo, o chefe da guarda, uma menina vendedora de
flores, algumas crianças e também um falso faquir. Nos pensamentos do pequeno
enfermo, montanhas, rios, oceanos, ilhas, aldeias distantes, e histórias fantásticas
ganham forma através da imaginação de quem não pode sair de casa. Estas são algumas
das imagens que nos vêm à mente ao falarmos de O Mensageiro do Rei.
Escrita pelo primeiro não-europeu a conquistar, em 1913, o prêmio Nobel de
Literatura, o poeta e filósofo Rabindranath Tagore, a peça O Mensageiro do Rei (1912)
conta, na perspectiva oriental, a história de Amal. Um menino que, após perder seus
pais, é adotado por seus tios, vivendo sob rígidas ordens médicas, confinado em seu
quarto. Doente, observa os dias passarem através de uma janela frontal a uma casa de
Correios. O lugar no qual, segundo o garoto, chegará uma mensagem enviada a ele pelo
próprio rei, libertando-o para correr mundo afora.
A peça que trata, de maneira lúdica e lírica, a temática da morte e da
liberdade, vem sendo levada à cena por egressos e concluites do curso de graduação em
Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Ficando em cartaz durante os meses de
Maio e Junho de 2014, na cidade de Uberlândia-MG, o espetáculo infantojuvenil ganha
forma através da encenação assinada por Mário Piragibe, lançando mão da linguagem e
dos recursos do Teatro de Formas Animadas (bonecos, objetos, sombras e máscaras)
para abordar as questões filosóficas que se fazem presentes na trama mensionada.
Neste sentido, o texto de Tagore torna-se apenas um pretexto para a
montagem em questão. A encenação, construída com base na representação metafórica
do desejo de Amal: curar-se e correr todo o mundo, insere na área de atuação um par de
sapatos inertes, os quais o menino poderá calçar, um dia, quando livre de sua
enfermidade. Uma alusão à liberdade que a morte pode simbolizar. Liberdade que
permitiria a Amal romper com espaço da casa que o aprisiona, e conhecer os lugares dos
quais apenas ouvira falar, desenhados em seu pensamento.
Com o objetivo de compartilhar algumas reflexões sobre o espetáculo citado
acima, foco da pesquisa de mestrado “A linguagem cênica no Teatro Infantojuvenil: O
Mensageiro do Rei como objeto de análise” (PPGA – UFU), neste breve artigo,
falaremos sobre a presença dos diferentes espaços na montagem em questão. Ou seja,
tal como nos apresenta Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro (2008, p. 132): o
espaço dramático – “espaço dramatúrgico e ficcional, no qual o texto indica ocorrer a
ação dramática” - , e o espaço cênico – “espaço concreto que se configura como área de
atuação dos atores”. E, ainda, aquele evocado pelas falas dos personagens, e que não
pode ser caracterizado como dramático ou cênico, que aqui chamaremos de espaço
imaginativo.
O ESPAÇO DRAMÁTICO
Ao nos depararmos com o texto O Mensageiro do Rei, podemos perceber a
existência de diferentes espaços nos quais a ação dramática se desenrola. Na
dramaturgia em questão, constituída por três atos, em um primeiro momento, temos a
ambientação dos acontecimentos no interior da casa dos tios de Amal. Já em um
segundo momento, - ou segundo ato - , o espaço externo à casa, provavelmente uma rua
vista pelo menino através da janela de seu quarto, serve como pano de fundo para a
história. E, no terceiro ato, novamente, a trama volta a acontecer no interior da casa,
agora, especificamente, no quarto de Amal.
Logo na primeira cena do texto de Tagore, ao sermos apresentados ao
conflito da peça: a doença de Amal, através da figura do Doutor que vem examinar o
menino, proibindo-o de sair ao ar livre, podemos levantar algumas informações sobre o
espaço. Estas, em colaboração com os indícios extraídos das falas da segunda e da
terceira cena, ajudam-nos a entender o contexto no qual a criança está inserida. Amal
vive em um pequeno vilarejo indiano, na casa de seus tios, enclausurado em seu quarto,
sob prescrições médicas. O ano dos acontecimentos não é apresentado, sendo que por
este motivo, podemos considerar a história atemporal.
Além disso, de acordo com as palavras do Doutor, sabemos que a estação do
ano é o outono (um verdadeiro veneno para a doença do menino). E, como podemos
inferir por meio das falas do velho Takurda, - na segunda cena - , a morada de Amal não
é um ambiente simplório, nem luxuoso. Madhav Dutta, o tio, é um pequeno
comerciante, proprietário de uma casa com um quintal repleto de esquilos. Quintal este
onde sua esposa mói lentilhas, e para o qual, nem ao menos, Amal pode se deslocar.
O segundo ato do texto nos apresenta a rua para onde a janela do quarto de
Amal é direcionada. Neste ambiente público, pessoas vem e vão preocupadas com seu
cotidiano. E são justamente estas pessoas, – tais como o vendedor de coalhada, o guarda
do vilarejo, o chefe da guarda, a menina florista, e alguns meninos que brincam na
calçada - , que Amal cumprimenta, estabelecendo uma relação de amizade.
Um dos personagens citados acima adquire importância impar, neste ato, ao
nos referirmos ao espaço, redimensionando a concepção de Amal quanto à rua. Trata-se
do guarda, o responsável por desfazer a curiosidade do garoto quanto o que seria a
enorme casa com uma bandeira no alto, fronteira a sua janela. Ele dirá a Amal ser a
nova casa de Correios, um empreendimento do rei. E, também, que um dia chegará ali
uma carta do próprio rei destinada ao garoto. Uma carta que será entregue pelos
mensageiros do rei: homens que correm de um lado para o outro, com insígnias
douradas em seus peitos.
Ainda com relação ao segundo ato, a rua e seus transeuntes assumem um
caráter afetivo para o menino, através da amizade travada com as crianças que brincam
em sua calçada, e com a florista Shudha. No primeiro caso, Amal se reconhece como
toda criança de sua idade, que não vê o tempo passar ao brincar, quando acompanhado
de outras crianças, livre da solidão imposta por sua doença. Já no segundo caso, o
garoto começa a nutrir um sentimento amoroso, próprio do primeiro amor da infância,
pela pequena vendedora de flores, a única personagem feminina que aparece em cena
durante toda a peça.
O terceiro ato do texto do qual estamos falando, retoma o espaço fechado da
casa de Madhav. Contudo, agora, ao invés de uma possível sala de visitas, em que
ocorrem as três primeiras cenas, que juntas constituem o primeiro ato da peça, o
ambiente no qual a ação dramática se desenvolve é o interior do quarto do menino.
Amal está em sua cama, proibido pelo Doutor de permanecer na janela, sob o pretexto
de que ficar ali piora ainda mais a sua doença.
Neste contexto, em que a doença de Amal configura-se como exacerbada,
algumas visitas se fazem presentes nos últimos momentos de vida do garoto,
imprimindo ao espaço ternura e tensão. São elas: a de Takurda, fantasiado de faquir, a
do Doutor para seus exames periódicos, e a do chefe da guarda, que tendo conhecido o
menino no segundo ato, acha uma afronta a ideia do mesmo de esperar uma carta do rei,
e resolve, por maldade, levar uma falsa carta a Amal, afim de zombar de Madhav, com
quem teve desavenças no passado.
No entanto, uma pancada é dada na porta de entrada da casa dos Dutta, e
pedidos de “abram a porta” são escutados, calando todos os visitantes. A porta da casa é
derrubada, e com a penetração de um feixe de luz advindo da rua do pequeno lugarejo,
veem-se duas figuras sobrenaturais. O arauto e o médico do rei visitam Amal, pedindo
para que todas as portas e janelas da casa sejam abertas. A casa sofre, assim, um
processo de metamorfose. De gaiola que aprisiona Amal, agora, passa a ser leito do
corpo que jaz, ao mesmo tempo em que o menino liberto de sua dimensão material, o
corpo, ganha asas e corre o mundo.
O ESPAÇO CÊNICO
...no contexto do teatro infantil está o que eu chamo de “área de jogo” do ator
ou espaço cenográfico lúdico. A cenografia nesse caso existe para colocar o
jogo teatral num contexto simbólico que organiza o olhar do espectador. Um
cenário que expressa uma “concepção visual”, uma intenção plástica ao
articular imagens, cores e formas, para organizar o olhar do espectador,
provocar sensações e sensibilizar o olhar da criança, um cenário que serve
também de apoio espacial e temporal para o ator se manifestar. Esse ambiente
deveria permitir articulações lúdicas, transformações, jogos e possibilidades
de movimentação para os atores e para os desenhos de direção. (GABRIELI,
2003, p. 77)
O ESPAÇO IMAGINATIVO
Para falarmos sobre a existência do(s) espaço(s) evocado(s) pelas falas dos
personagens, e que não pode(m) ser caracterizado(s) como dramático ou cênico: o(s)
espaço(s) imaginativo(s), utilizaremos como exemplo uma das cenas do terceiro ato de
O Mensageiro do Rei. Esta é caracterizada pelo diálogo entre o pequeno Amal
(interpretado por Renata Sanchez) e o velho Takurda (personagem de Lucas Larcher).
Entre outros assuntos, os dois conversam sobre as viagens a lugares fantásticos
realizadas pelo falso faquir, e de como o garoto imagina os mensageiros do rei que
trarão a carta que ele tanto aguarda.
Na descrição realizada por Amal, o menino diz a seu senhoril amigo que vê
diante de seus olhos um mensageiro do rei atravessando colinas com uma lanterna na
mão e uma sacola de cartas às costas. Mesmo sabendo ser fruto de sua imaginação essa
imagem, Amal descreve todo o caminho trilhado pelo funcionário real para finalmente
chegar à casa de seus tios, e entregar-lhe a mensagem escrita pelo rei. Um campo de
milho, uma cachoeira, um canavial, barulhos de grilos, e aves balançando as caldas
formam a imagem sinestésica descrita pelo garoto.
Já o velho Takurda, fantasiado de faquir, conta a Amal histórias de suas
viagens, que segundo ele, não dependem de gastos, nem econômicos, nem temporais.
Suas incursões por lugares distantes são realizadas por meio de seu pensamento,
frisando a importância da dimensão não-material do ser humano. Takurda diz que
acabara de chegar das Ilha dos Papagaios, um lugar fantástico, onde só vivem os
pássaros, sem qualquer ser humano por perto. Nesta ilha, ninguém fala e ninguém anda,
todos apenas cantam e voam.
Ainda com relação a Ilha, o falso faquir diz a Amal que esta porção
delimitado de espaço físico-imaginativo é coberta por colinas, nas quais a grama parece
brilhar feito ouro. E, também, é cercada por uma água clara, feito diamante derretido,
que escorre até alcançar o oceano... Sendo que ninguém, nem mesmo um doutor (alusão
ao Doutor que cuida de Amal) poderá fazê-la parar por um segundo que seja.
Podemos aproximar Takurda, desta maneira, da figura de um contador de
histórias, ou de um narrador que verbaliza suas experiências (ficcionais, ou não),
compartilhando-as com Amal. Walter Benjamin em seu famoso artigo O narrador,
oferece-nos subsídios para o entendimento desta figura. Para o autor, podemos dividir
ou classificar os narradores segundo dois grupos que se interpenetram: os nômades, ou
seja, os narradores que vem de longe, partindo da premissa de que “quem viaja tem
muito que contar”; e os sedentários, que correspondem ao homem que ganhou sua vida
honestamente sem sair de seu país, e que conhece suas histórias e tradições. Nas
palavras do autor:
Deste modo, sendo o narrador alguém que tem algo da tradição ou de terras
distantes a ser contado, sua relação com os ouvintes é dominada pelo interesse destes
em apreender aquilo que é narrado, tal como acontece quando Amal escuta Takurda,
formulando em seu pensamento imagens dos lugares que não conhece, já que não pode
sair de casa. Por isso, podemos dizer que a cada narrativa de Takurda, Amal imagina
uma nova história, repleta de novas imagens, acrescendo à narrativa sua própria
experiência visual, ou ainda, seu espaço imaginativo.
ESTADO DE JOGO:
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO CORPO NA BUSCA DO ATRITO
Lucas Heymanns (CNPQ – PIBIC; Iniciação Científica); Orientador: André Carreira; CEART;
UDESC.
Creio que tal unidade de fundo pode ser ressaltada imediatamente em toda sua
evidência se reformularmos e definirmos o tema desta investigação do século XX
em uma pergunta: como (o quê) fazer para que a ação na cena seja real (quer dizer,
obviamente não realística senão eficaz, crível, sincera, segundo os distintos léxicos
que encontraremos). (DE MARINIS, 2005:47)
Perspectivas históricas
Nos escritos de Stanislavski é evidente a busca por uma atuação orgânica, onde ação,
pensamento e sentimento estivessem juntos. O ator e diretor russo usava-se constantemente da
metáfora interno – externo: a ação externa, a forma, deveria ser preenchida, animada pelo processo
interior, a vivência. Em um primeiro momento de suas investigações, Stanislavski apostou em
procedimentos interiores como forma de preencher e justificar as ações da personagem, através de
técnicas que ficaram muito conhecidas tais como o pensamento em ação, o se mágico, a memória
emotiva. À grosso modo, tais procedimentos consistiam em buscar uma justificação interna para as
ações que deveriam ser realizadas, partindo de lembranças, pensamentos, intenções, sub-texto. É
mais para o fim de sua vida que Stanislavski desloca o foco desses procedimentos mais
explicitamente mentais para o corpo através das ações físicas. Porém, antes de nos aprofundarmos
na questão da ação física, é importante deixar claro que essa mudança de foco representa uma
mudança de ponto de partida que visa no entanto a mesma união entre dimensão interior e exterior
da ação, como atesta essa sua declaração:
(…) A relação entre corpo e alma é indivisível. Da vida do corpo nasce a vida da
alma e vice-versa. Em toda ação física que não seja puramente mecânica e sim
animada desde o interior, se encontra a ação interna; quer dizer, a vivência. Dessa
maneira se criam duas plataformas da vida do papel: interna e externa. As duas se
infiltram mutuamente. Seu fim comum as atrai e fixa sua inseparável relação.
(STANISLAVSKI, 1990:259)
Ao viajante não lhe interessa os trilhos e sim o que há do lado de fora ou no interior
do vagão. Viajando em trem vemos sempre novas regiões, recebemos sempre novas
impressões. As vivenciamos, nos conduzem ao êxtase ou nos inspiram tristeza;
comovem e mudam a cada momento o estado de ânimo do viajante e também o
transformam. (STANISLAVSKI, 1990:278)
No trecho que segue, Stanislavski afirma que as tarefas físicas, realizadas com o corpo, são
as mais adequadas para compor os trilhos, já que “o material psíquico não possui propriedades de
constância, se fixa dificultosamente”. (STANISLAVSKI, 1990:278). A metáfora dos trilhos
reverberaria em muitas discussões do trabalho do ator representando a dialética entre precisão e
espontaneidade. Grotowski, alguns anos depois, desenvolveria a partir dos estudos de Stanislavski
um trabalho com ações físicas através de partituras precisas que podem ser vistas como a
radicalização do método das ações físicas, envolvendo um intenso trabalho sobre si mesmo no
sentido de desautomatizar hábitos corporais e livrar-se de bloqueios que impedissem o fluxo de
impulsos e associações desencadeadas pelas ações. As influências das filosofias e práticas orientais
foram também determinantes nesse entendimento de corpo-mente indissociáveis e no
desenvolvimento de técnicas de trabalho sobre si mesmo, a exemplo do yoga e de práticas
meditativas que muito influenciariam a pesquisa teatral do século XX.
Tais influências seriam tema para um longo ensaio. São muitos os exemplos e implicações
da noção de ação eficaz que se desenvolveram desde então, e não cabe aqui citá-los
exaustivamente. O que é de maior importância para nossa abordagem é o crescente deslocamento
da arte do ator como representação de uma personagem e de uma fábula para uma noção de ator-
performer fortemente estruturada na materialidade do corpo e no contato direto entre o ator e
espectador em um mesmo tempo-espaço. Se em Stanislavski as ações físicas ainda eram
direcionadas para a construção de uma personagem coerente com o texto dramático, a tendência das
pesquisas experimentais subsequentes foi explodir cada vez mais a noção fechada de personagem.
E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que
pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do
objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o
procedimento da singularização1 dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de
percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio
de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado" não importa para a arte.
(CHKLOVSKY, 1978)
Considerações Finais
Essa breve exposição pretende evidenciar como estão fundas as raízes que apoiam as
práticas contemporâneas de investigação da arte do ator e dos estudos da performance. O
entendimento do corpomente unificado em detrimento do dualismo de substância entre corpo e
mente pode ser uma das chaves para compreender a crise da representação do teatro contemporâneo
e a busca por um teatro fundado no encontro de corpos e presenças. O teatro que é reivindicado a
partir desse entendimento não é apenas uma recusa à literatura, mas um processo paulatino de
destronamento de um outro teatro pautado por uma comunicação exclusivamente linguística e
logocêntrica, que relegava a segundo plano elementos essenciais e originários do teatro enquanto
expressão humana e forma artística pelo menos desde os primeiros registros do que chamamos de
civilização. Essa mudança acontece de forma lenta e o cenário atual abriga as mais diversas matizes
desse continuum entre representação/ilustração e apresentação/performance – de fato, esses
binômios tendem a ser cada vez menos polos antagônicos de uma mesma linha e imbricam-se nas
novas teorias que surgem.
A recusa da ilustração, referenciada em Chklovski como o ato de percepção prolongada, de
1 No original em russo, ostranenie (остранение). Existe muito debate quanto a tradução do termo, e em diversas
línguas utiliza-se alternativas como estranhamento ou desfamiliarização.
experimentar o devir do objeto, pode nos dizer muito sobre a construção de formas de arte, e no
caso deste artigo, procedimentos de atuação, menos dominadores e fechados em si mesmo. Este
procedimento de singularização dos objetos é conceito que daria forma ao Verfrendungeffect
brechtiniano e tem grande potência em definir a arte em sua função de desnaturalização do
cotidiano, questionamento do hábito.
A ação eficaz, entendida como ação do total engajamento psicofísico do performer, é ainda
hoje uma sedutora ideia da eficácia do teatro e de sua possível função na sociedade atual, marcada
por uma virtualização cada vez mais intensa da experiência cotidiana. A ação física e a unidade
psicofísica engendrada por ela é um dos principais elementos que tem mantido vivo e inquieto uma
importante parte da investigação teatral contemporânea. Os paralelismos entre o trabalho sobre si
proposto por estes grandes pesquisadores do teatro moderno e as pesquisas científicas sobre o
entendimento do corpomente e da relação entre ação-percepção comprovam o potencial do teatro
como forma de arte e conhecimento fundado na práxis e na experiência do próprio corpo. Que é,
afinal, tudo que há.
Referências Bibliográficas
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SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon: David Sylvester. 2a. edição, São Paulo:
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STANISLAVSKI, Konstantin. El trabajo del actor sobre sí mismo: El trabajo sobre sí mismo en
el proceso creador de la encarnación. La Habana: Ediciones Alarcos, 2009.
STANISLAVSKI, Konstantin. El trabajo del actor sobre sí mismo: El trabajo sobre sí mismo en
el proceso creador de las vivencias. La Habana: Ediciones Alarcos, 2011.
Introdução e Discussão
A pesquisa em questão se pretende à investigação da interface a voz e o sagrado,
para refletir sobre o tema voz/canto, espiritualidade e presença. Entende-se aqui a
espiritualidade como espaço de investigação e trabalho sobre si, conectado ao
alargamento da percepção de si e do mundo, de que fala Grotowski. Na realização do
projeto será feita pesquisa de campo em dois contextos distintos. Um deles é o trabalho
realizado por Cecília Valentim, cuja pedagogia da voz é pensada para cura e
desenvolvimento da expressividade do “ser cantante”. O segundo contexto é o trabalho
feito por Maria Thaís, da companhia Balagan em São Paulo, no recente espetáculo
Recusa, cujo processo criativo abarcou a pesquisa com cantos da tradição indígena.
Propõe-se então, a partir deste texto, à apresentação do projeto de mestrado intitulado
“A voz e o sagrado: radiografias de poéticas do canto em dois contextos” em suas
primeiras reflexões.
O canto e a voz poética sempre estiveram presentes em meu percurso - pois
somos seres cantantes. Ainda que o canto e a voz pareçam corrompidos pela
“profissionalização” e “comercialização” do ser, que delegam a possibilidade de cantar
apenas aos cantores, sabemos que há espaços onde o canto é mantido como prática de
todos e como expressão do ser ligado ao cotidiano e à cultura, um espaço cultivado e
fundamental. Neste sentido acredito que porque a palavra tenha se tornado, em um
contexto amplo, mero “utensílio de barganha” (NOVARINA, 2009), e, porque
parecemos nos distanciar da “voz poderosa”, talvez seja realmente importante propor
uma aproximação de trabalhos que envolvam o canto como experiência, seja na cena ou
fora dela.
Em minha trajetória pessoal reconheço um espaço considerável em que
experimentei a voz e o canto cotidianamente. Na infância em escolas de música e coral,
no teatro através de processos nos quais tomei parte como atriz, e depois no Grupo de
Pesquisa Sobre Práticas e Poéticas Vocais, no qual investigamos desde 2010 o limiar
entre fala e canto e praticamos canções entre os atores do grupo. Neste espaço, temos a
canção como possível disparadora da criação dramatúrgica e da exploração da
potencialidade poética da voz no trabalho do ator.
Em nossa herança indígena, o ser é entendido como corpo-som. Tupã significa
Grande Som, na língua abanhaenga, que originou o tupy. Tu é som e barulho e pan é a
expansão. O humano é considerado Tu-py: flauta- em- pé, ou som- em- pé - “(...) os
antigos afinavam o espírito a partir dos tons essenciais do ser, tons que participam de
todos os seres (o que a civilização reconhece como vogais).” ( JECUPÉ, 1998) . Nós,
que somos este “corpo-som”, colocamos e praticamos ações às vezes a serviço do
desserviço de nós mesmos; e se de um lado nossos ancestrais indígenas cantavam,
nomeavam ou entoavam sons com o intuito de fortalecer-se e conectar-se com o entorno
de uma forma a viver a experiência de integração, hoje são poucos os espaços em que
são mantidos/cultivados processos em que a identidade experimenta uma dissolução
parcial ou imersão no sentimento de comunidade e no exercício de totalidade, conexão
com o “sagrado” .
Recentemente duas experiências se articularam a essa trajetória anterior e
mobilizaram meu interesse pela interface entre voz e espiritualidade, tais experiências
são oriundas de contextos diferentes, e têm como ponto de interseção os canto de
tradições e a ligação com o sagrado ( ainda que de formas diferentes). Interessa-me
justamente os pontos de distinção entre tais contextos e as suas semelhanças:
Cecília Valentim:
Cecília Valentim é cantante, psicoterapeuta e educadora vocal. Especializou-se
em Música Antiga na Inglaterra e Espanha e em Healing Voice (Cura da Voz) e
Overtone Chanting (Canto dos Harmônicos) na Inglaterra. Aproximei-me de seu
trabalho fazendo uma oficina de quatro dias (2012/Jan) e um workshop no Seminário de
Voz II, realizado em Florianópolis (2012/Nov). Neste ano, no processo de escrita do
projeto, participei de outro curso com duração de um mês e também de um círculo de
práticas de cantos de tradições religiosas e mantras conduzido por ela. Esta aproximação
e experiência têm sido muito reveladoras, em parte porque reconheço alguns princípios
em comum trabalhados por nós no Grupo de Práticas e Poéticas Vocais – a imagem de
oposição entre topo da cabeça/céu e base/chão; a voz como corpo, que se propaga ao
contrário da ideia de projeção do som, etc. - e em parte porque me leva a pensar no
recorte canção/voz e espiritualidade movida por uma curiosidade e desejo de
aproximação. No trabalho de Cecília Valentim ela aborda dimensões humanas que se
engajam na prática do cantar, e nas quais ocorre uma alteração
física/psíquica/emocional que aproxima o ser da experiência corpórea-espiritual
Os campos do artístico e do espiritual estão em permanente deslizamento de
modo que é impossível compreender a pesquisa de Grotowski atendo-se apenas a um
desses campos. É justamente na arte que Grotowski vai encontrar a possibilidade de ser
um ‘investigador espiritual’, pois o terreno da arte permaneceria como um espaço de
pesquisa não submetido a correntes religiosas ou de fé. A noção de ‘trabalho sobre si’,
que Grotowski pegou emprestado de Stanislavski, é uma das que ajuda a manter esse
deslizamento arte/ sagrado em ação sem obrigar o pesquisador a optar por um dos
terrenos. Essa noção revela também o grau de ‘investigação’ e de não dogmatismo com
que Grotowski abordou o terreno do ‘espiritual’.( LIMA, 2010)
Maria Thaís:
Maria Thaís é professora da ECA/USP e encenadora da Cia Balagan de Teatro
na cidade de São Paulo. A companhia que dirige tem particular interesse nos cantos de
tradições e investigam este campo em seus trabalhos. A experiência que tive com o seu
trabalho e que me mobilizou, enquanto espectadora, foi a fruição de dois espetáculos da
Companhia Balagan, dirigidos pela encenadora, em que me impressionei com a
sonoridade/musicalidade da cena e em especial o trabalho com cantos da tradição grega
e indígena. Interessou-me investigar o processo de pesquisa do trabalho Recusa, pois a
qualidade da cena apresentada transcendia, para mim, o simples virtuosismo, parecendo
revelar-se como resultado de um mergulho nas potências do canto em conexão com o
campo da espiritualidade.
Metodologia
A investigação pretendida trata-se, nas terminologias, de uma pesquisa empírica,
porque se baseia na experiência e na observação. Foucault (LIMA, 2013) afirmava
que em nossa civilização desde o “momento cartesiano” nos separamos do acesso ao
conhecimento que subentedia uma transformação do ser, o conhecimento desvinculou-
se da ideia de lugar de emergência. Opto então, neste projeto, por uma abordagem
metodológica que me coloca no encontro com o outro e com o que me acontece a partir
dele.
Aquele que descobre o corpo, descobre os corpos no plural (...) Aquele que
descobre seu corpo, para descobri-lo deve descobrir o corpo de um outro. Não como um
estudioso, mas como quem ama. E então ele descobre o corpo de todas as coisas”
(GROTOWSKI,1978 apud LIMA, 2013)
Para a aproximação dos sujeitos escolhidos paras estudo, embasar-me-ei
conceitualmente, como ponto de diálogo, no “olhar fenomenológico” (MERLEAU-
PONTY,1999), buscando despir o olhar de pré-conceitos e julgamentos para encontrar o
outro na sua alteridade. Quanto à metodologia de escrita, dialogo com o conceito de
“descrição densa” (GEERTZ, 1989) que trata o observado não como objeto, incluindo
os sujeitos e suas vozes, e incluindo-se também como sujeito na observação.
Ainda sobre a escrita e o diário de bordo da pesquisa, Sally Ann Ness (1992), em
sua experiência etnográfica sobre as danças balinesas, sugere que seus leitores olhem
para a escrita como processo, ainda em movimento, o que ela chamou de “performative
mode”. A autora diz que está rascunhando uma nova forma de texto, um texto que
fracassa a tentativa comum de brilhar como um produto acabado e polido. Um texto que
diz NÃO ao “documento”; abrindo espaço para novas percepções do trabalho escrito de
etnografia, fazendo conexão entre os seres humanos envolvidos e que retrataria o evento
etnográfico como ocorrências em acontecimento.
Como procedimentos/ações da metodologia pretendo realizar observações
diretas, entrevistas e frequente escrita em diários de bordo conectados à literatura da
pesquisa.
Possíveis perguntas
Referências Bibliografias
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GESTOS COMO RUÍDOS, ESPACIALIDADE COMO MEIO DE
COMUNICAÇÃO
Resumo:
Este artigo tem por objetivo relatar interesses e descobertas dentro de um
processo de investigação sobre o trabalho do ator. Momentos vividos em uma monitoria
da disciplina Técnicas Vocais I, ministrada pelo Professor Dr° Fernando Aleixo, no
Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Trabalho realizado junto à
aluna Lorenna Karla do Curso de Teatro da UFU, no qual o objetivo fora observar a
disponibilidade natural com a qual a aluna utiliza dos ressonadores e o espaço em prol
da comunicação e do trabalho do ator, trabalho este que fez compreender uma
necessidade real de aprofundamento no universo do surdo. O texto apontará indagações
que estão presentes nesta trajetória de investigação, questões que surgiram ao pensar a
composição vocal, a construção do personagem e a espacialidade no contexto de
pessoas surdas. A apropriação de informações em benefício da pesquisa. O estudo de
pensamento de autores voltado ao fazer teatral, que mesmo sem mencionar a questão da
surdez, certamente é uma forte ferramenta para atingir o objetivo da investigação.
Conhecimentos que serão peça chave para possibilitar a execução de um projeto serão
compartilhados neste texto. Se não para responder, para questionar.
Introdução:
1
Trata-se realização de um projeto de pesquisa, em andamento, que compreende a
voz como extensão do corpo. Relatos de informações contidas em textos de autores que
exploram o fazer teatral em seus estudos. Embora não tenha encontrado ainda, leitura
diretamente direcionada ao trabalho teatral com surdos, no que diz respeito à sonoridade
possível a essas pessoas, ao trabalho vocal, a poetização da fala e o espaço como meio
de comunicação, o objetivo é, por meio deste texto, traçar um paralelo com alguns
autores que embora não falem dos surdos, oferecem material que permite pensar a
questão teatral, corpo, sonoridade, vocalidade, inseridos no universo desses indivíduos
que usam o corpo, a expressão facial e corporal e o espaço como meio de comunicação.
Movimento de mãos e do corpo que contam história, expressões que substituem a voz
falada. Os relatos tratarão de uma apropriação de informações para construir um
caminho traçado em busca de perguntas e respostas, no qual o fazer teatral, além das
ferramentas comuns ao teatro, terá a experiência junto à aluna Lorenna Karla enquanto
da utilização dos ressonadores para auxiliar a emissão sonora possível à aluna, também
como facilitador da comunicação, e ainda contaremos com a LIBRAS (Língua
Brasileira de Sinais) a favor da cena.
Apresentação
2
curso, com relação à utilização dos ressonadores como potencializador de sons, assim a
possibilidade de investigação no que diz respeito à utilização desses ressonadores, do
espaço e ainda o aprendizado da LIBRAS com o contato direto com a aluna surda.
Para melhor compreender essas questões foi preciso ampliar os estudos com
relação à pessoa surda, e assim voltar à atenção para toda e qualquer informação que
pudesse auxiliar de alguma forma. Além das disciplinas obrigatórias seria necessário
participar de palestras ministradas por profissionais do Teatro, encontros com pessoas
surdas e ainda pesquisar sobre a história dos surdos, um pouco de sua trajetória e de
como a LIBRAS chegou à suas vidas, para assim melhor entender o contexto explorado
pelos eles, questões espaciais e corporais, ou seja, locais usados no corpo e no espaço
para expressão, para comunicação.
3
da liberdade no mundo e o lugar onde a humanidade vive o seu
próprio drama sob a máscara de personagens lendários ou inventados,
que no espetáculo das tensões, se enfrentam no nível mais complexo e
profundo da experiência coletiva”. (Florentino, 2013)3
4
diferentes padrões as pregas vocais e, consequentemente, alcançar um
repertório amplo de registros vocais”. (ALEIXO. 2007, p. 51)
5
pais não aceitavam ter filhos surdos, faziam o possível e o impossível para que eles
ouvissem ou ao menos, falassem.
Até hoje ouvimos histórias de pais que fazem visitas constantes aos
fonoaudiólogos na expectativa de conseguir que o filho ouça e fale. Durante os
encontros com jovens surdos4 surgem relatos, que quando adolescentes, muitos deles se
revoltam, evitam os fonoaudiólogos, arrancam seus aparelhos auditivos e recusam
qualquer atitude ou pessoa que acreditam estar querendo que eles falem. Essas
informações são encontradas também na internet e são sempre passadas pelos
professores dos cursos oferecidos na UFU e também na ASUL (Associação dos Surdos
de Uberlândia – MG), eles fazem questão que saibamos desses momentos na trajetória
dos surdos.
Quando tratamos de um assunto fica difícil ter propriedade do que se diz se não
existe ainda um número considerável de autores que discutiram sobre o assunto, para
auxiliar na fundamentação teórica. Sem embasamento a preocupação esta na veracidade
4
Jovens surdos que participam de estudos bíblicos organizados pela Igreja Shalom; Comunidade Cristã
em Uberlândia – MG.
6
das informações passadas. O “achismo” pode comprometer o texto. Essa preocupação
era um empecilho até que houve a descoberta do livro: Teatro, Teoria e Prática: mais
além das fronteiras de Josette Féral. “O livro aborda a questão dos vínculos entre teoria
e prática e das censuras inevitáveis dos quais toda profissão parece carregar a marca,
tanto na América como na Europa”. Um livro que com certeza auxiliará muito, para
fazer pensar a pesquisa, descobrir que pode-se escrever sobre relatos de pesquisas sem
medo de informações que não se tenham plena propriedade, afinal trata-se de uma
investigação, uma pesquisa em andamento. “Este livro convida ao leitor a uma simbiose
entre prática e teoria num esforço constante por limitar um pouco mais, o frágil terreno
do desenvolvimento teatral”. (Féral, p. 11). Leitura importantíssima para dar suporte a
uma pesquisa, já que há dificuldades para encontrar embasamento no campo teórico.
Teoria e prática são ferramentas indispensáveis ao desenvolvimento de um projeto. “Um
corpo no espaço: percepção e projeção”. (Féral p.13). O objeto foco da pesquisa seria a
utilização dos vibradores/ressonadores, no entanto o convívio com pessoas surdas abriu
um leque de possibilidades em se pensar o fazer teatral. O corpo dessas pessoas que
possui a expressão corporal e facial como meio de comunicação. Sinais que são
definidos a partir da expressão corporal e facial, como também a colocação espacial.
Saibam que vários sinais sofrem alterações quanto se posicionam diferentemente no
espaço, ou ainda a expressão facial que muda totalmente o significado de um sinal,
como por exemplo: sentimento, depende da expressão facial pra identificar se trata-se
de um sentimento bom ou ruim.
Esse momento de leitura é muito importante pra fazer pensar o que entendemos
por metodologia. A aproximação com o objeto de pesquisa leva-nos a uma metodologia
na qual cada decisão de um procedimento é relacionada à necessidade do andamento da
7
pesquisa. O que seria necessário fazer para atingir este ou aquele ponto que acreditamos
ser crucial. Então o que foi colocado no projeto com relação à Metodologia, entregue na
intenção de pesquisa, às vezes cai por terra. Estratégias foram criadas, mudanças foram
feitas. Algumas ações não foram possíveis, outras foram transformadas, outras
intensificadas, como por exemplo; aprender a Língua Brasileira de sinais exige mais
tempo que o previsto para aprender a língua. Féral fala ainda da teoria empírica da
produção, então pensar a respeito da escassez de material teórico para estudos. Segundo
Féral;
Pensando em teoria e prática Féral fala do tradutor, diz que sempre escapa algo
numa tradução. Esta fala faz lembrar o intérprete/tradutor dos surdos, geralmente não
conhecem os termos teatrais, pois não convivem com o universo teatral, então busca,
dentro do contexto da linguagem de sinais, uma aproximação ao dito, isso dentro da
interpretação dessa pessoa que não estudou teatro e sim LIBRAS. A tradução nunca é
fiel. E às vezes peca, nega ou modifica o que está sendo revelado.
“Um não pode fazer sem o outro, já que traduzir consiste em instituir
essa passagem em uma mesma inspiração, para criar, negando ao
mesmo tempo a possibilidade de uma transferência perfeita, de uma
adequação exata entre a fonte e o destino. Entre ambos se cria uma
abertura, uma brecha dentro da qual surge toda a inventividade do
tradutor”. (Féral, pg 46)
8
Como a linguagem de sinais abre mão da conjugação verbal e de detalhes, o
intérprete se vê a vontade para passar ao surdo algo próximo, e então a poesia se perde,
detalhes importantíssimos são deixados de lado. Digo isto, porque ao acompanhar a
aluna Lorenna Karla na disciplina de Teatro Brasileiro II5, pude observar ocasiões que a
intérprete não passou exatamente o que foi intencionado a dizer, ou por descuido, ou
ainda porque a informação se tratava de assuntos relacionados a abuso sexual,
falávamos da Ditadura Brasileira, momentos de torturas aplicados a mulheres e homens,
artistas da época, o qual a intérprete se envergonhou em passar, pois falava de
penetração anal e ou, vaginal, o professor explicava do porque da posição que a moça
era pendurada para tortura, a qual seria para a exploração com sexo oral, pois a cabeça
ficava pendurada e os órgãos genitais, o ânus ficavam expostos para facilitar a
penetração, tanto do pênis do torturador, quanto de materiais pontiagudos, vários outros
momentos foram observados, omissões que comprometeram o aprendizado da aluna
surda. Questões a serem exploradas em outras pesquisas. Logicamente deverá haver
uma delimitação, pois é tudo muito extenso, materiais deverão ser guardados para uma
próxima pesquisa.
Teatro Brasileiro II: Disciplina do Curso de Teatro da UFU, ministrada pelo Professor Luiz Humberto
Arantes.
9
falando, ele precisa estar qualificado ou nunca funcionará conforme as exigências do
teatro.
Com um simples sinal junto a um movimento o surdo diz uma frase inteira. E
como no teatro, não basta saber técnicas, ter domínio sobre termos, posso afirmar que
teatro e LIBRAS, são duas linguagens próximas, o mais próximo que se possam
imaginar. Ambas exigem o total envolvimento do individuo que resolve dedicar à
exploração desses universos, no qual o corpo é o coordenador das ações. O
envolvimento da pessoa que queira aprender LIBRAS, surda ou ouvinte é o mesmo da
pessoa que quer fazer teatro. Em ambos os casos o corpo, o desejo de se comunicar e de
se libertar de couraças adquiridas pela imposição da sociedade ou mesmo ligadas à
identidade da pessoa, precisam ser trabalhadas para atingir um estado de naturalidade de
ações. No palco ou no universo do surdo, o corpo precisa estar disponível para falar.
Nem todo surdo tem essa naturalidade, pois alguns falam LIBRAS do berço, outros, por
questões familiares, aprendem a língua depois de crescidos e levam algum tempo para
10
se soltarem em prol da comunicação. Isso acontece porque muitos pais de surdo, não
aceitando a condição do filho, e com esperança que o filho fale, insistem com
fonoaudiólogos, outros por falta de informação não dedicam ao aprendizado dos filhos
para auxiliá-los. Existem filhos de surdos, embora ouvintes, que falam LIBRAS
perfeitamente, e ainda pais de surdos que sendo ouvintes, dedicam ao aprendizado da
língua para comunicar com os filhos e com os amigos surdos dos filhos. E ainda filhos
de surdos que se envergonham dos pais e se recusam a aprender LIBRAS. Ou ainda
surdos que não tiveram acesso ao estudo da linguagem e criaram sinais próprios para se
comunicar e conseguem viver dessa forma, isso acontece entre pessoas com mais idade,
certamente de quando o acesso ao estudo da língua de sinais era mais restrito. Mas em
todos os casos a “presença cênica” é notória. No palco da vida o surdo explora a
expressão corporal, a visão periférica e o espaço para comunicarem-se.
Todas estas questões antes não pensadas, por não terem sido vivenciadas, aparecem
durante o trabalho como metas a serem atingidas. Como diz Cecília Almeida Salles em
Gesto Inacabado: processo de criação artística. “O tempo do trabalho é o grande
sintetizador do processo criador. A concretização da tendência se dá exatamente ao
longo desse processo permanente de maturação”. (SALLES, 2009).
11
o descontentamento com o fazer teatral realizado na academia. Outro fato contra os
interesses do grupo citado são dramaturgias sangrentas, violências, sexo, nada disso
seria aceitável pelo grupo. Acreditam ainda que na academia os atores utilizem drogas e
bebidas alcoólicas, também proibidas pela igreja. Então a estratégia seria, para este
momento, um acordo entre suas questões pessoais e o trabalho a ser desenvolvido.
Pensar nesta constatação para situar informações advindas dos encontros com os
surdos. Aprendizado conseguido através da observação, importante quanto qualquer
leitura o aprendizado realizado observando seu objeto de pesquisa, acredito, é
extremamente considerável as informações obtidas através da pesquisa prática, viver o
que se estuda, relacionar com o sujeito da pesquisa é um grande aprendizado.
12
visível, pode-se reconhecer que a ideia cientifica muito usual fica
carregada de um concreto psicológico pesada demais, que ela reúne
inúmeras analogias, imagens, metáforas, e perde aos poucos seu vetor
de abstração, sua afiada ponta abstrata”. (BACHELARD, 1996, p. 20)
13
sempre será bem vinda para que a investigação aconteça e some ao conhecimento
conquistado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FÉRAL, Josette. Teatro, Teoria y Prática: más allá de las fronteras. 1ª ed. Buenos
Aires. Colección Teatrologia: Galerna., 2004.
DE MARINIS, Marco. En busca del actor y del espectador: compreender el teatro II.
Buenos Aires: Galerna, 2005.
14
GROTOWSKI, Jerzy. Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Editora
Perspectiva S.A. 2007.
SALLES, Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística.. São Paulo, 2009.
15
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
Patricia Leandra Barrufi Pinheiro (Capes – FAPESC, Doutorado); André Luiz Antunes Netto
Carreira (orientador); PPGT - UDESC
NOTAS
1
Lillian Diana de Guiche (1893 - 1993) foi uma atriz norte-americana
2
David Wark Griffith, geralmente conhecido por D.W. Griffith (1875 - 1948) era um diretor de cinema estadunidense.
3
Clube londrino com temática fetichista.
4
Aristóteles pode ser considerado, inclusive, o pai da Cinesiologia (ciência que analisa os movimentos).
5
Metodologia biomecânica que se destina à obtenção de variáveis cinemáticas para a descrição de posições ou
movimentos de um ou mais corpos no espaço.
6
O Kinect, por exemplo, é um dispositivo de captura de movimentos do console de videogames XBox360 da
Microsoft© com um custo acessível e diversas funcionalidades.
7
Ator e Cineasta britânico nascido em 1964. Especializado em atuação atráves de Captura de Movimentos e
Performance. Ficou famoso ao atuar como o personagem Gollum na trilogia “Senhor dos Anéis” com direção de Peter
Jackson.
8
Correspondente internacional do site brasileiro Omelete – http://omelete.uol.com.br/.
REFERÊNCIAS
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Madri: Luarna Ediciones, 2010.
BADDELEY, Gavin. Goth Chic: um guia para a cultura dark. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2o ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BONFIM, Mariana. Lillian Gish: Musa do cinema mudo. Site Monalisa de Pijamas, Seção Mona
Cine. http://monalisadepijamas.virgula.uol.com.br/monacine/mona-cine-lillian-gish-musa-do-
cinema-mudo acesso em 04 set 2009.
FLAM, David Lunardi. OpenMoCap: uma aplicação de código livre para a captura óptica de
movimento. Dissertação (mestrado) — Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de
Ciência da Computação. Belo Horizonte, 2009.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2010.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.
PACELLI, Shirley. Projeto de captura de movimento integra produções do Giramundo e do
Galpão. Em.com.br. Belo Horizonte (MG). Publicação em 01/12/2011. Disponível em:
http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2011/12/01/interna_tecnologia,265109/projeto- de-
captura-de-movimento-integra-producoes-do-giramundo-e-do-galpao.shtml acesso em 8/maio/2013.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
WEINTRAUB, Steve. O Hobbit – Uma jornada inesperada. Omelete entrevista Andy Serkis.
Canal Omeleteve. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=rSRHAcaNjwM acesso em
01/nov/2013.
WILLEMIN, Pierre. O Martírio de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, 1928). Site
Cinema Filia. http://cinema-filia.blogspot.com/2007/11/o-martrio-de-joana-darc-la-passion-de.html
acesso em 19 set. 2009.
O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
O POLÍTICO NA RELAÇÃO ARTISTA-ESPAÇO
Raquel Purper (bolsa Capes); Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço; Programa de Pós-
Graduação em Teatro; Universidade Estadual de Santa Catarina.
Para quem pesquisa arte nos dias de hoje, existe ou deveria existir uma
preocupação em desenvolver um pensamento crítico sobre o papel sociopolítico da arte
e uma reflexão acerca da prática artística que compreende a relação artista-espaço como
condição fundamental da constituição de um espaço político. Uma prática artística que
se constitui como espaço político é aquela que carrega quais características? Sua
existência é determinada pelo que? Pelo modo como as relações entre os artistas são
desenvolvidas no espaço e/ou pela maneira como a relação do artista com o próprio
espaço é desenvolvida? Essas são algumas indagações que norteiam a reflexão sobre
como as relações estabelecidas entre os artistas no ou com o espaço são determinantes
para que se construa um espaço político.
A referência de espaço aqui apresentada é o espaço social, o qual é produzido
pelas interferências subjetivas e que está em permanente mutação. Milton Santos1
(1999) alerta que o viver com o outro – presença inevitável no espaço – supõe sempre
um saber acerca daqueles com os quais se interage e observa que é, principalmente pela
linguagem, que se realiza essa conexão de conhecimentos não-pensada, mas sempre
presente, e que isto inclui as rotinas de comportamento que assimilamos na interação
cotidiana e pela qual somos informados a respeito de algumas regras de sociabilidade. O
autor aponta que os olhares e gestos que trocamos, localizados em determinado registro
lingüístico, indicam certas formas de comportamento e, simultaneamente, de
motivações. Esse espaço construído pela interação, pela rotina de comportamentos,
pelas regras sociais, pelos olhares e pelos gestos irá conectar-se, a seguir, a uma
definição de política que fará com que possamos refletir sobre as relações que
constituem o caráter político do espaço.
Hannah Arendt2 (2004) entende que a política é baseada na pluralidade dos
homens e que trata da convivência entre os diferentes, ou seja, que os homens se
organizam politicamente para certas coisas em comum a partir do caos absoluto das
diferenças. A política, segundo Arendt, surge no “entre os homens” e se estabelece
como relação. Para Jacques Rancière3 (2009), a política é assunto de sujeitos, ou
melhor, de modos de subjetivação que, compreendidos por Foucault4 (2009), são as
escolhas estética e política por meio da qual se acolhe um determinado tipo de
existência. Ou seja, o modo como cada artista se relaciona com seus parceiros de
trabalho e com o espaço são determinados pelas suas escolhas políticas e estéticas. Se
levarmos em conta que a política é baseada na pluralidade dos homens, o modo como
cada indivíduo responde, se adapta ou se opõe a essa organização plural constrói um
espaço político.
1
Geógrafo brasileiro
2
Filósofa política alemã de origem judaica
3
Filósofo francês e professor emérito da Universidade de Paris.
4
Filósofo francês
Alan Badiou5 (2000) entende que o ato político é algo que cria tempo e espaço.
Cria espaço porque diz: “Vou transformar esse lugar em um lugar político”. Badiou
constata que o problema é saber se, atualmente, nós queremos e sabemos criar tempo e
espaços políticos. Para refletir sobre a questão de Badiou relacionada à arte, convoco
Rancière (2009), o qual acredita que “as práticas artísticas são maneiras de fazer que
intervém na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as
maneiras de ser e formas de visibilidade” (p.17) O pensamento de Rancière sugere que a
prática artística transforma o espaço em político, pois ela reconfigura as maneiras de
fazer, de ser e de ser visível de todo o contexto social, não só da própria arte. Então,
para contemplar Badiou, querer e saber criar espaço político na arte depende da vontade
do artista em modificar a distribuição geral das maneiras de fazer. Badiou (2000) reflete
sobre a capacidade política das pessoas e de como se organiza essa capacidade, com
uma lógica distinta da lógica do poder. Rancière (2010) fala da política como não sendo
uma busca pelo poder, e sim, um regime de distribuição do poder:
5
Filósofo, dramaturgo e romancista francês.
A articulação entre estética e política se define através da
“partilha do sensível”, que é este sistema de evidências sensíveis que
dá a ver ao mesmo tempo a existência de um comum e as decupagens
que definem nele os lugares e as partes respectivas (...) Essa repartição
das partes e dos lugares se funda sobre a partilha de espaços, de
tempos, de formas de atividades que determinam a maneira pela qual
um comum se presta à participação e pela qual uns e outros tomam
parte nessa partilha (...) Atos estéticos são, portanto, configurações de
experiências que fazem existir novos modos de sentir e induzem a
novas formas de subjetividade política (RANCIÈRE, 2009, p.7-12)
6
Filósofo e pensador russo
7
Filósofo holandês
Espaço político: consenso e/ou dissenso?
O espaço político constitui-se pela criação de espaço e tempo. Após as
reflexões sobre o conceito de política em Arendt, Rancière e Badiou conclui-se que,
através da convivência entre os diferentes em um grupo criador, locutores e
interlocutores vão revezando-se nos papéis, afim de que o poder possa ser distribuído.
No entanto, ainda é preciso pensar em como as questões são abordadas dentro desse
grupo, em como as opiniões e decisões são conduzidas. Será que, em um espaço que se
pretende político, a noção predominante é a de consenso ou a de dissenso? Ou será que
é possível uma interlocução entre as duas?
8
Filósofo e sociólogo alemão. Conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e
a esfera pública.
9
Filósofo argentino que trabalha sobre temas específicos: metapolítica, teoria do dissenso e
teoria da virtude
sociedade plural, ao mesmo tempo em que invalida qualquer tentativa homogeneizadora
ou totalitária.
Rancière (2010) nota, por outro lado, a existência do consenso, que é o modo
de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da
política: o dissenso, o qual não é simplesmente o conflito de valores ou de interesse
entre grupos, mas a possibilidade de opor um mundo comum a outro. É possível
observar, na reflexão de Rancière, as noções de consenso e dissenso sendo entrelaçadas,
atuando de forma interdependente: são consensos que interagem na forma de dissenso,
verificando também a possibilidade de haver dissenso dentro dos mundos comuns dos
próprios consensos. Peter Pál Pelbart10 (2008) alerta que é preciso pensar a questão do
comum quando se considera um grupo, um conjunto humano. O autor explica que as
formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum e asseguravam
alguma consistência ao laço social, entraram definitivamente em colapso:
Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a
encenação política, os consensos econômicos consagrados, a
militarização da existência para defender uma forma de vida dita
comum. No entanto, sabemos que essa forma de vida não é realmente
comum, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras,
esses pânicos, esses circos políticos ou mesmo essa linguagem que
fala que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um
seqüestro. (PELBART, 2008, p.2,3)
10
Filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil.
Pelbart (2008) questiona se as relações podem compor-se para formar uma
nova relação mais abrangente ou se os poderes podem se organizar de modo a constituir
uma potência mais intensa e ainda: como um ser pode tomar outro no seu mundo, mas
conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios? O autor suscita algumas
questões que devem ser discutidas por aqueles que pesquisam ou simplesmente se
interessam em aprofundar estudos sobre o espaço como político e as relações contidas
nele. É importante salientar que, embora haja inúmeras proposições possíveis a serem
feitas acerca da relação do artista com o espaço e do próprio espaço como políticos, a
reflexão aqui apresentada acredita que a qualidade das intersubjetividades, o aumento da
potência de agir e o modo de operação relacionado ao dissenso determinam a existência
do político.
Referências:
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
BADIOU, Alain. Qué es la política? Conferência de Alain Badiou 24 e 25 de abril de
2000. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/54532605/Badiou-Alain-Que-es-la-
politica>. Acesso em: 25 jun.2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 7ª edição. São Paulo: Hucitec, 1995.
BUELA, Alberto. Teoria do dissenso. 2011. Disponível em: <http://legio-
victrix.blogspot.com.br/2011/10/teoria-do-dissenso.html>. Acesso em: 05. jul. 2014.
ESPINOSA, Bento de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Os pensadores.
Traduzido por Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. São Paulo: Nova Cultural,
1997.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios.
Traduzido por Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Catedra, 2001.
Ricardo Miguel Branco de Azevedo; Orientação: Ana Cristina Fabricio; Universidade Estadual do
Paraná – Campus de Curitiba II – FAP – Faculdade de Artes do Paraná
RESUMO
INTRODUÇÃO
1
Disparadores são dispositivos que usamos para atualizar a ação que se desenvolve.
deveríamos selecionar para nos relacionar e deixar afetar. Foi neste contexto que os
temas percepção e escuta passaram a fazer parte das discussões do grupo, que
compreendia a necessidade de reconhecer como estes princípios operam dentro do
nosso processo criativo que se desenvolve já numa perspectiva espetacular.
Alguns dos exercícios que utilizamos conseguem se manter vivos por bastante
tempo, principalmente os que tem uma estrutura espacial mais bem delimitada, como
por exemplo o QUAD, que é baseada na peça televisiva homônima de Samuel Beckett
(1981)2, este exercício foi trazido para nos ajudar no sentido de desenvolver uma
melhor noção do coletivo no espaço, passou a fazer parte de nossos aquecimentos e de
disparador inicial de alguns espetáculos. Neste exercício, depois de vencida a fase de
apropriação de sua topologia, passamos a ter uma estrutura muito rica em
possibilidades de criação e conexão, vários jogos rítmicos passaram a acontecer na
relação entre a sonoplastia e as percepções individuais, pois
2
Vídeo disponível em: http://palcoprincipal.sapo.pt/bandasMain/beckett/video/LPJBIvv13Bc
[...] se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o
mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência
é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. (Bondía, 2002).
3
Para Bogart, “resposta Cinestésica”.
Esse estado de atenção ativa, que definimos dentro do grupo como percepção,
não tem sido alcançado plenamente. Uma das razões apontadas em nossas discussões é
a de não compreensão do que realmente constitui esse estado, no qual ficamos
especialmente alertas e paradoxalmente tranquilos. Talvez seja, ainda, algo acima da
nossa capacidade atual. Porém prefiro considerar que o exercício continuado nos
permita avançar e vencer estas dificuldades.
Entretanto, em vez de nos atrapalhar, a imobilidade que gerou crise, nos serve
como propulsora para que as discussões ganhem consistência e crie-se o estado de
escuta almejado. Lidamos interminavelmente com nossas fragilidades perante todo o
processo, sendo criticados e apontados quando essas fragilidades atrapalham o
andamento ou quando nos fazem esquecer da percepção, automatizando a atenção,
para uma reação rápida e sem base numa real afecção.
Com o artigo de Tatiana Motta Lima (2012) no qual questiona a escuta, por
meio de exemplos que ela presenciou, começamos a nos dar conta da cristalização de
alguns conceitos, nos vimos espelhados em seus alunos. Mas assim como ela,
entendemos que as sutilezas que envolvem a percepção não encontram soluções claras,
apenas geram novas reflexões sobre o modo de operar e de pensar a escuta, mas não
nos trás uma resposta definitiva.
Após diversas leituras e reflexões para tentar entender como opera a percepção
para o improvisador e como se pode alcançar uma construçaão coletiva através dela. A
imagem do Cubo de Necker, (NECKER, Louis Albert 1832) 4 é uma metáfora visual
que pode melhor traduzir o que tentamos materializar através da percepção no grupo.
4
Trata-se de uma ilusão ótica representada por oito círculos pretos posicionados no que seriam os vértices de
um cubo. Cada círculo possui um vértice, em branco, no centro composto por três linhas. A ilusão se dá pelo
cérebro ao ler a imagem como um cubo branco em um fundo branco, com apenas as informações dos círculos.
Imagem disponível em http://www.chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/gestalt/imagens/9d-necker55.gif
proporcionada pela percepção a possibilidade do cubo como uma narrativa para quem
assiste a cena.
É nas relações possíveis a partir daí que as cenas se constroem, que posição o
círculo, que seria o improvisador, ocupa; quais linhas está mostrando; como ele vê os
demais círculos e as demais linhas; e como todos juntos constroem a possibilidade de
visualizar uma imagem maior, ou seja, a cena, para o espectador.
Uma das frases que mais motivou a pesquisa e me ajudou a manter o foco foi
de LIMA(2012) “O mais importante aqui é podermos pensar sobre o que nomeamos e
praticamos como o ‘estar aqui e agora’”.As definições de percepção e escuta propostas
aqui são suficientes, neste momento, para responder aos questionamentos e crises que
tive ao pensar sobre a conceituação dessas duas palavras. Porém, como afirma Bondía
(2002) “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.”, portanto
é necessário levar essas conceituações para a sala de encontros do grupo e experenciá-
las, com todos juntos, e descobrir se fazem sentido no coletivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Para Appia, a força do ator em relação ao espaço está em sua vitalidade expressa
pelo movimento. É a ação e a presença do ator que transforma, delimita, identifica ao
público que se trata de um espaço da cena e não mais um espaço “em devir”, infinito.
Mas não é simplesmente o movimento que altera o espaço. Um ventilador pode mover-
se e ainda assim não alterar o espaço que ocupa. O ator vivo ou o objeto que simule vida
autônoma move-se para realizar vontades, necessidades, desejos. O movimento do corpo
ao respirar, um olhar fixo em determinado ponto, o deslocamento do ator entre dois
objetos de cena, apontar o dedo para alguém da plateia, são movimentos que
circunscrevem o espaço de atuação, determinam ao público o que e onde está acontecendo
a ação. Contudo, para apropriar-se dessa “porção de espaço” e poder condicioná-la à sua
vontade para a plateia, é fundamental que o ator seja capaz de perceber este espaço por
ele ocupado da forma mais plena possível. Percebendo o espaço e percebendo-se no
espaço é que o ator se torna capaz de relacionar-se com o mesmo.
Para o prosseguimento desta reflexão, entende-se por “percepção” como “a
capacidade de vincular os sentidos a outros aspectos da existência, como o
comportamento, no caso dos animais em geral, e o pensamento, no caso dos seres
humanos”. (VEZZÁ e MARTINS, 2008, p.04). Ou seja, a percepção seria a capacidade
de atribuir significados aos estímulos sensoriais captados pelo corpo, a interpretação das
informações recebidas. Segundo Vezzá e Martins (2008),
Sendo a percepção formada por esse sistema cognitivo que parte das sensações, é
interessante notar que há três principais grupos de aferências sensoriais no corpo que
chegam ao sistema nervoso central: sensações interoceptivas (ou introspectivas),
sensações exteroceptivas (ou extrospectivas) e a propriocepção. As sensações
interoceptivas são aquelas provenientes de dentro do corpo, que informam ao sistema
nervoso central sobre as condições internas do organismo e, dessa forma, percebemos
quando estamos com fome, sede ou cólica intestinal. As sensações exteroceptivas, por
sua vez, são provenientes de fora do corpo, captadas pelos nossos cinco sentidos (visão,
olfato, audição, paladar e tato). Já a propriocepção, é um sistema sensorial que une
informações internas e externas ao corpo, com a finalidade de identificar a si próprio entre
suas partes e sua condição referente ao espaço que ocupa. Sobre a propriocepção, Alain
Berthoz discorre:
Apesar de parecer ser algo tão terrível ao ator algumas vezes, a professora Ana
Maria Amaral esclarece a contrapartida da máscara:
AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo:
SENAC, 2002.
FO, Dario; RAME, Franca. Manual mínimo do ator. 3. ed. São Paulo: Ed. SENAC,
2004.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. 2 ed. São
Paulo: Ed. SENAC, 2001.
Resumo
O presente texto apresenta uma reflexão sobre o espetáculo “Moleque tão Grande Otelo” e as
questões étnico-raciais que envolvem a peça e permearam a vida do artista. O artigo fala de como
os acontecimentos da vida do ator Grande Otelo tiveram implicações em sua arte, os fatos que
marcaram sua carreira e que são mostrados no espetáculo, “misturam” arte, vida, fantasia e
realidade. Com o intuito de desvendar o ator, a autora também faz referência a sua própria
história enquanto atriz e a similaridade de suas raízes com as de Sebastião Bernardes de Souza
Prata que se tornou para o mundo o Grande Otelo.
Palavras chave:
Grande Otelo, espetáculo, vivência.
O moleque Otelo
O espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo” revelara os bastidores da vida de Grande Otelo,
mostrando seus duplos, homem de teatro com grande poder de comunicação e talento em
contraponto com uma vida desregrada como boêmio e ébrio. Sebastião Bernardes de Souza Prata
vivia seu Grande Otelo com o intuito de trazer a alegria que, muitas vezes, não possuía. Sua arte
como ator foi usada para encarar, com riso, as angústias e o preconceito que vivenciava. Ele não
era somente artista, fazia da sua arte o alento para a sua vida, o que lhe gerou infortúnios. O
próprio Otelo traz, em seus depoimentos risonhos, brincantes, como bom palhaço, o fato de que
vivia “escondendo no riso a sua dor”. Sua arte possui um caráter libertador que escamoteava suas
dores e angústias, e se próprio biógrafo relata a respeito: “absolve-se ou condena-se Grande Otelo
por sua vida errante e, ao mesmo tempo, encantadora. Compreendemos que a arte o liberta”
(SANTOS, 2011).
O processo criativo do espetáculo, desenvolvido pelo encenador Luiz Humberto Arantes, foi
marcado pela construção a partir das memórias, sejam elas biográficas pelo livro de Sergio
Cabral, ou autobiográficas, pelos depoimentos e entrevistas em vídeo e em texto do próprio
artista. Todas estas fontes apontaram em uma montagem carregada de memórias híbridas, de um
lado do próprio artista e, em outra perspectiva, aliado ao contexto histórico social da época.
Nesse caso, trabalhando a partir de conceitos stanilavskianos, como a “memória emotiva”,
“mergulhei” em meu próprio universo e, revisitei etapas de meu processo formador como mulher
negra e atriz, me nutrindo de um arcabouço emocional que me forneceu material suficiente para
me aproximar, com cautela e denodo, dos sofrimentos e alegrias da arte de se fazer artista como
Otelo se fez. Entremeada por emoções variadas, vivenciadas ao longo de minha trajetória de
formação revisitando meu passado e vivência ao lado de meus irmãos, acionei o material de que
necessitava para revigorar meu trabalho cênico. Corpo e memória atrelados em conexão com o
passado e a reconstrução da história de Otelo, lugares comuns que se convergem, experiência e
memória. Em meu corpo, memória e experiências me trouxeram entendimento e me conectaram
com Otelo. Esta relação de experiências vividas fisicamente, que podem nos levar a um lugar de
compreensão do mundo através do sensorial resguardado no corpo é relatada pelo encenador
Constántin Stanislavski:
A teoria ilumina a experiência (...) Por isso a experiência pessoal não faz
parte,mas está onde lhe cabe,nas notas de pé de página,como” matéria
prima” da análise.(...) a experiência se mede pela teoria que pode explicá-
la,a experiência não é rememorada mas analisada.(Beatriz
Sarlo,p.79,2007)
Assim, o espetáculo mostrou as raízes de Sebastião Bernardes de Souza Prata, através da
mãe, da avó, e de como foi construído esse artista que viveu uma infância extremamente pobre e
com escassos recursos culturais. Da mesma forma, eu também vivi com uma família grande e
com poucos recursos financeiros. Ao representar a cena da avó de Otelo, eu revia as nossas
correrias de crianças no quintal, e a entrada nas casas sempre tão escuras, mesmo durante o dia,
momento em que olhávamos e observávamos a lenha ao lado do fogão, esperando para ser
queimada.
Quanto mais mergulho nas minhas memórias sobre as cenas do “Moleque Tão Grande
Otelo”, mais reflito na importância, e na contribuição do teatro para a sociedade, ao permitir que
atores e público vivenciem, sintam e compartilhem uma experiência, ao invés de obter
informação como vemos nos veículos de comunicação de massa que bombardeiam notícias
diversas, mas que não propiciam uma vivência e experimentação sensorial que realmente
promova uma transformação interior dos indivíduos. Informação não transforma, idéia defendida
por Jorge Larossa, que afirma a respeito:
Referências bibliográficas
CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007.
LARROSA, Jorge. Ensaios Eróticos – Experiência e paixão. In: Linguagem e Educação Depois
de Babel. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p. 151- 165.
SANTOS, Regma. Sobre o grande moleque Tião que se tornou Otelo. Artigo disponibilizado
no site http://brevidades-regma.blogspot.com, acesso em 7/09/2011.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
Trabalho do Ator e Teatralidade
Espaço rítmico: Provocações da Escuta
O conceito espaço rítmico foi investigado e idealizado por Adolphe Appia (1862-
1928) por volta de 1909. No seu livro A Obra de Arte Viva (L’Oeuvre d’Art Vivant –
1921), as últimas páginas são destinadas a algumas propostas de cenários, os quais são
apresentados pelas seguintes palavras: “Espaços rítmicos: os desenhos a seguir, datam de
1909 e são parte de uma série de projetos idealizados junto ao pensamento de Jaques-
Dalcroze. São destinados à criação de uma melhoria específica do corpo humano, sob as
ordens da música. – Sem outro destino, eles são um ponto de partida (1)” (APPIA, 1921,
p. 164).
Os desenhos que surgem após estas palavras não se aproximam do teatro realista
e mesmo simbolista que eram representados no mesmo período na Europa. A principal
inspiração do cenógrafo suíço para chegar a estas sugestões foi sua parceria com Jaques-
Dalcroze (1865-1950), como ele mesmo cita no trecho acima. Em 1906, Appia conhece
o trabalho de Dalcroze e declara o seu fascínio numa carta que escreve ao novo amigo. A
partir deste momento até 1909, acompanhou as conferências, se matriculou, em Genebra,
no “Normalcursus für das Studium der Methode der Rhythmischen Gymnastik von E.
Jaques-Dalcroze (Curso Normal destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica de
E. Jaques-Dalcroze) e assistiu as demonstrações de trabalho que Dalcroze fez pela Europa
(BABLET in APPIA, 1988, p. 3 e 30).
Neste período, Dalcroze começa chamar a atenção para a sua pesquisa devido às
demonstrações práticas que começa realizar por toda a Europa. Estudos que iniciaram por
volta de 1892 quando lecionou no Conservatório de Música de Genebra, as disciplinas de
“Harmonia Teórica” e “Solfejo Superior”, onde se defrontou com as dificuldades dos
alunos na compreensão do elemento rítmico e harmônico na música. A educação musical
do momento valorizava o músico virtuose com habilidades técnicas, desconsiderando
suas qualidades sensíveis e, por isso, os alunos eram estimulados a se fixar na anotação
musical e não na sonoridade dos acordes e melodias. Para combater estes preceitos e
contribuir para uma melhor formação, Dalcroze idealizou um trabalho para desenvolver
a sensibilidade dos alunos, de modo que fossem preparados para pensar e fazer arte, de
perceber toda a profundidade da música, entendendo que ela também sensibiliza e
influencia diretamente as emoções (JAQUES-DALCROZE, s/d. p. VI).
Intencionado em educar músicos que dissessem “eu sinto” ao invés de “eu sei”
(JAQUES-DALCROZE, s/d. p. IV), Dalcroze constrói uma pedagogia que alia escuta e
ritmo e a chamou de Ginástica Rítmica (Rhythmische Gymnastik) ou, simplesmente, de
Rítmica (Rythmique). Para Santos (2001. p. 20) a Ginástica Rítmica foi um marco
operativo para concretizar uma educação musical porque: explorava a sensibilidade, a
percepção; igualava o ritmo a todos os demais elementos musicais e o dissociava da
métrica, sendo valorizado como fator importante para a vida, para a sensibilidade, para a
expressão de toda arte; e introduziu o movimento para dilatar o senso rítmico do aluno e
a sua sensibilidade corporal. Assim, os estudantes deveriam se movimentar para
evidenciar os seus sentimentos e os conteúdos aprendidos nas aulas, de modo que o
movimento fosse a expressão de uma experiência de aprendizagem. Segundo Santos
(2001. p. 19-20), para Dalcroze o movimento possibilitaria o desenvolvimento de
questões duais como corpo e mente, pensamento e emoção, consciente e subconsciente,
interioridade e exterioridade, dionisíaco e apolíneo e, ainda, proporcionar uma
experiência estética da sensação do pulso e do tempo.
Dalcroze alegava que toda a sua pedagogia era para a formação de músicos
sensíveis. Nem ao menos almejava formar bons instrumentistas, queria apenas que seus
alunos fossem capazes de “perceber a música como algo divino, além de harmonia,
melodia...” (MADUREIRA, 2008. p. 123). Para isso, a Rítmica foi idealizada para ajudar
o rythmicien a desenvolver sua inteligência, vontade, compreensão da relação entre
música e movimento, ritmo e gesto, expressividade corporal e musical, valorização da
auto expressão, conscientização do espaço e das infinitas possibilidades de expressão
sobre os mais diferentes planos. Habilidades que deveriam ser ampliadas em todo artista
das mais diversas áreas. Deste modo, para ele, “os estudos de Rítmica constituíam-se
como o ABC da técnica corporal necessária a todo artista completo. Pois eles se destinam
à inteligência e à vontade” (JAQUES-DALCROZE apud MADUREIRA, 2008. p. 118).
Dalcroze defendia que a Rítmica servia de preparação, de iniciação do artista, mas não
como substituta das demais metodologias de formação das artes como a dança, canto,
teatro, ou mesmo dos estudos pianísticos (MADUREIRA, 2008. p. 30). Por volta de
1905, Dalcroze começa excursionar pela Europa com alguns alunos para mostrar a sua
pesquisa e torna-se alvo de atenção de muitos artistas, inclusive de Appia, como já foi
colocado acima.
Os espaços rítmicos foram cridos a partir da parceria que surgiu entre Appia e
Dalcroze e ao ler A Obra de Arte Viva é impossível não fazer correlações entre os
pensamentos dos dois artistas. Como coloca Madureira, Appia fez o Curso Normal
destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica e devido a esta experiência,
possivelmente, pôde vivenciar pessoal e esteticamente a Rítmica, que o teria conduzido a
concluir que “ser artista é, em primeiro lugar, não ter vergonha do próprio corpo, mas
amá-lo em todos os corpos, incluindo o seu” (MADUREIRA, 2008: 92). A Obra de Arte
Viva é um tratado de como valorizar, explorar e amparar o corpo no teatro. Postura esta
que contraria o pensamento artístico teatral do período, já que há uma valorização, por
parte dos artistas do teatro, da dramaturgia como principal mote de criação e como
identidade do teatro. Os dramaturgos escreviam tratados sobre o teatro, de como montar
e atuar em seus textos, como pensar o teatro enquanto arte dramática. Havia ainda, devido
à influência de Richard Wagner (1813-1883) (2), a crença de que a arte dramática deveria
ser a reunião harmoniosa de todas as artes, a síntese de todas elas de forma que se tornasse
a “obra de arte do futuro” (APPIA, s.d, p. 19-22). Contrário a estes princípios fomenta a
crise do teatro com o palco italiano e valoriza o ator como artista fundamental e, apoia o
surgimento da função do encenador que começa despontar no cenário (MOTA, 2012, p.
44). “A arte dramática dirige-se, como as artes representativas, aos nossos olhos, aos
nossos ouvidos, ao nosso entendimento – em suma, à nossa presença integral. Porque
reduzir à nada – e antecipadamente – qualquer esforço de síntese? Saberão os nossos
artistas informar-nos?” (APPIA, s.d, p. 29). Appia tem a resposta: o movimento do ator é
capaz de unir e tornar cada arte harmoniosa, fazer a junção entre elas:
O movimento, a mobilidade, eis o princípio diretor e conciliatório que regulará
a união das nossas diversas formas de arte, para fazê-las convergir,
simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática; e, como é único
e indispensável, ordenará hierarquicamente essas formas de arte,
subordinando-as umas às outras, tendendo para uma harmonia que,
isoladamente, teriam procurado em vão (APPIA, s.d, p. 31).
O movimento corporal do ator surge como o elo fundamental para a prática teatral,
assim como é para a pedagogia de Dalcroze. Para Appia, todo e qualquer elemento do
teatro deve ser idealizado para promover o movimento corporal do ator, sem este esforço,
o teatro está morto. Uma obra viva requer que todos os recursos estejam em função do
movimento, que é a vida no teatro. Para Appia “o movimento não é, em si, um elemento;
o movimento, a mobilidade, é um estado, uma maneira de ser. Trata-se, pois, de examinar
que elementos das nossas artes seriam capazes de abandonar a imobilidade que lhes é
própria, que está no seu carácter” (APPIA, s.d, p. 31). Deste modo, o movimento do ator
significa, resignifica todas estas artes juntas, unindo, por meio do movimento e da
plasticidade do corpo, as artes do tempo (música e texto) e do espaço (Luz, arquitetura,
cenário).
Na sua proposta de valorizar o corpo para animar o espaço e torna-lo vivo, sugere
tirar toda e qualquer móvel feito para aconchegar o corpo. Sugere formas planas e rígidas
para tornar o corpo nú mais presente e valorizado esteticamente. “Sobre uma escada sem
tapetes, serão, simplesmente, pés nus e cheio de expressão” (APPIA, s.d, p. 86). O espaço
deve causar resistência ao corpo porque é desta resistência que surge a sua presença, que
torna o trabalho do ator mais efetivo sem ser figurativo. O movimento, para Appia, não é
representação de ideia, portanto, o cenário não deve ser figurativo. Assim, sua proposta é
que, as formas do espaço, não se harmonizem com as formas do corpo, porque, uma vez
em sintonia, o corpo estará presente, mas sem efeito corporal. Por isso, critica os cenários
e o modo de pensar o espaço cênico do período. Estes deveriam ser idealizados para
valorizar, ampliar, reforçar a expressividade do corpo do ator. Deste modo, para Appia,
por mais que o corpo do ator fosse plástico, se aproximando da forma escultural, não pode
ser feita uma identificação entre corpo e escultura porque, o primeiro é móvel. Por ser
tridimensional, o corpo recusa a pintura, ou seja, os telões com as suas formas e luzes
pintadas pois, não valorizam a sua mobilidade. Pelo contrário, devido à forma fixa, há um
estranhamento que diminui a potencialidade do corpo (APPIA, s.d, p. 40), jogando fora
toda todo o esforço do ator.
Para receber do corpo vivo a sua parte da vida, o espaço deve opor-se a esse
corpo; adquirindo as nossas formas, aumenta ainda a sua própria inércia. Por
outro lado, é a oposição do corpo que anima as formas do espaço. O espaço
vivo é a vitória das formas corporais sobre as formas inanimadas. A
reciprocidade é perfeita. Este esforço torna-se-nos sensível de duas maneiras:
quer pela oposição das linhas quando olhamos um corpo em contato com as
formas rígidas do espaço; quer quando o nosso próprio corpo experimenta a
resistência que essas formas lhe opõem. A primeira é apenas um resultado; a
outra, uma experiência pessoal e, por isso, decisiva. – Tomemos um exemplo
e suponhamos um pilar vertical, quadrado, de ângulos rectos inteiramente
definidos. Este pilar repousa, sem base, sobre lajes horizontais. Dá impressão
de estabilidade e resistência. Aproxima-se um corpo. Do contraste entre o seu
movimento e a imobilidade tranquila do pilar nasce já uma sensação de vida
expressiva, que o corpo sem pilar e o pilar sem corpo que avança não teriam
atingido. Além disso, as linhas sinuosas e arredondadas do corpo diferem
essencialmente das superfícies planas e dos ângulos do pilar e esse contraste é,
por si só, expressivo. Mas o corpo toca no pilar; a oposição acentua-se ainda
mais. Finalmente, o corpo apoia-se no pilar, cuja imobilidade lhe oferece um
ponto de apoio sólido: o pilar resiste, age! A oposição criou a vida da forma
inanimada: o espaço tornou-se vivo! – suponhamos, agora, que o pilar não é
rígido senão na aparência e que a sua matéria, ao mínimo contacto estranho,
pode adquirir a forma do corpo que a toca. O corpo vivo incrusta-se, portanto,
na matéria mole do pilar e sepulta a sua vida; e, no mesmo instante, matará o
pilar (APPIA, s.d, p. 87-88).
A ESCUTA CORPORAL
O ritmanalista não seria obrigado a pular de dentro para fora dos corpos
observados. Ele poderia ouvi-los como um todo e unificá-los usando seus
próprios ritmos como referência: integrando o fora com o dentro e vice-versa.
Para o ritmanalista nada é imóvel. Ele ouve o vento, a chuva, a tempestade, a
parede, um baú [trunk], entende sua lentidão, seu ritmo interminável. Seu
objeto não é inerte. O tempo não é colocado de lado pelo sujeito. Ele só é lento
em relação ao nosso tempo, ao nosso corpo, a medida dos ritmos. Um objeto
aparentemente imóvel, a floresta, move de múltiplos modos: os movimentos
combinados da terra, da Terra, do sol. Ou os movimentos das moléculas e
átomos que os compõem (o objeto, a floresta). O objeto resiste a milhares de
agressões, mas se quebra em umidade ou em condições de vitalidade, uma
profusão de vida minúscula. Para o ouvido atento, esta vida minúscula é como
uma concha marinha (5) (LEFEBVRE, 2005, p. 20).
John Cage, Anne Bogart e Lefebvre pensam a escuta como um recurso que
contribui na percepção a partir da exploração e ampliação da atenção, percepção,
concentração e recepção; como interação do corpo no processo, seja ele artístico ou
científico, que compreende a fisiologia interior e exterior, de modo que estas estejam em
constante abertura e flexibilidade com o meio à volta, de forma a entender o ritmo, o
espaço, a relação entre objetos e pessoas; como meio para despertar e pôr em interação o
tato, o caminhar, a respiração, o fluxo sanguíneo, o olfato para perceber e explorar
sonoridades, acentos, ruídos, silêncios de forma a estabelecer um dialogo com o espaço,
com as cores, odores, com elementos externos e internos de forma não hierárquica.
Proposta que vai em direção às intenções e ao pensamento de Appia: foco sobre o corpo
como o elo fundamental da arte e a busca por um treinamento que objetiva sensibilizar o
artista aos elementos espaciais, textuais e rítmicos.
Neste sentido, a escuta pode ser uma prática interessante para pensar o espaço
rítmico. Appia o idealizou como um elemento fundamental que contribuísse no
desenvolvimento da expressividade do ator, para que ela fosse o elo entre todos os demais
elementos teatrais. A partir da exploração da sua percepção, o ator entende que qualquer
espaço tem seus ritmos, porque ele os ouve, os sente, os cheira, os tateia, se movimenta,
os degusta. Com os sentidos dilatados, há a ampliação da atenção, da percepção, da
concentração e da recepção do ator que reage a qualquer elemento que capta: não deixa
escapar a densidade do ar, cujas qualidades, dinâmicas e características mobilizam o ator,
inspirando-o a reagir; sensibiliza-se com as cores das paredes e do chão, com a entrada
da luz das janelas, com seus desenhos e formatos que criam imagens, possibilidades de
criação; não ignora os sons que chegam a este espaço, sejam eles provocados ou não,
confortáveis ou ruidosos porque, as sensações que provocam são potencialidades para
composições rítmicas do movimento; não dispensa a temperatura, os cheiros, os gostos
que geram mobilizações internas e externas, suscitando no corpo diferentes reações.
A escuta cria uma disposição corporal a todos estes elementos, despertando o ator
a dialogar, a responde-los com movimentos. O universo externo, a sala de ensaio, o palco,
mesmo estando vazios, o ator os vê cheios de provocações que lhe causam sensações, que
lhe convidam a brincar, compor dramaturgias, músicas que dialoguem entre si. Se o ator
estiver sensibilizado corporalmente para ocupar o espaço e o tempo no qual está inserido,
eles serão rítmicos, tendo formas retas, irregulares, escadas, praticáveis, rampas ou não
porque, qualquer elemento, mesmo o menos perceptível poderá ser estímulo mobilizador
da criação. A partir da escuta corporal, o ator não apenas está no espaço, mas o ocupa,
interage com ele, o desconstrói, o constrói, o transforma poeticamente. Por estas
considerações, acredita-se que a partir de um estado de escuta, de percepção dilatada, de
uma sensibilidade aguçada, o ator pode perceber o espaço, mesmo vazio, como um lugar
que habita os mais diferentes ritmos, assim como pode explorar com mais propriedade
provocações cenográficas como as de Appia.
Notas:
(*) Bolsista Capes, doutoranda em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC) na linha de pesquisa Linguagem, Corpo e Subjetividade. Bacharel
em interpretação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Mestre em Teatro pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC). As suas pesquisas estão na área da formação do ator: Interpretação,
Improvisação, Preparação Corporal e Ritmo da cena.
(1) Les dessins suivants, qui datent de 1909, font parti d’une série de projets appartenant à Jaques-
Dalcroze, et destinés à la création d’un style propre à la mise en valeur du corps humain sous les
ordres de la musique. – Sans autre destination, ils sont un point de départ.
(2) Appia tem um livro dedicado a esta temática La Mise em Scène du Drama Wagneriano (1895).
Há a tradução de alguns textos deste livro feito pelo Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro na revista
Urdimento, N. 12, disponível em: http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/
(3) Point out that this sensibility of alertness, quickness, availability and openness to one another, and
the sense that anything might happen […].Tradução da autora.
(4) Movimento artístico que surgiu em 1909, rejeitando o moralismo e o passado, cujas obras
baseavam-se na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos do final do século XIX.
(5) The rhythmanalyst will not be obliged to jump from the inside to the outside of observed bodies;
he should come to listen to them as a whole and unify them by taking his own rhythms as a
reference: by integrating the outside with the inside and vice versa. For him, nothing is immobile.
He hears the Wind, the rain, storms: but if he considers a stone, a wall, a trunk, he understands
their slowness, their interminable rhythm. This object is not inert; time is not set aside for the
subject. It is only slow is relation to our time, to our body, the measure of rhythm. An apparently
immobile object, the forest, moves in multiple ways: the combined movements of the soil, the
Earth, the sun. Or the movements of the molecules and atoms the compose it (the object, the
forest). The object resists a thousand aggressions but breaks up in humidity or conditions of
vitality, the profusion of miniscule life. To the attentive ear, it makes a noise like a seashell
(LEFEBVRE, 2005, p. 20). Tradução da autora
BIBLIOGRAFIA
APPIA, Adolphe. L’Oeuvre d’Art Vivant. Suisse: Édition Atar, 1921. Disponível em:
https://archive.org/stream/loeuvredartvivan00appiuoft#page/n7/mode/2up
BABLET, Denis in APPIA, Adolphe. Oeuvre Compléte. Tomo III. Suisse: L’Age
D’homme, 1988. Direção Científica da edição de Denis Bablet. O livro fala de seu período
de 1906 a 1921. Disponível em:
http://books.google.fr/books?id=yly2GoeEPxYC&pg=PA519&lpg=PA519&dq=l%27oeuvre+compl%C3
%A9te+de+Appia&source=bl&ots=Kx12fN2uhP&sig=PBBnolUO6MM4qIbLK4B-c_pB3Bk&hl=pt-
BR&sa=X&ei=KFmwU-
nfNsLlsASq0IDICA#v=onepage&q=l%27oeuvre%20compl%C3%A9te%20de%20Appia&f=false
BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints Book. A practical guide to viewpoints
and composition. New York: Theatre Communications Group, 2005
DALCROZE, E. J. Rythm, Music & Education. London: The Dalcroze Societz, 1980.
SANTOS, Fátima Carneiro (2004). Por uma Escuta Nômade: a música dos sons da rua.
São Paulo: EDUC/Fapesp, 2 ed.
SCHAEFFER, Pierre. Tratados dos Objetos Musicais: Ensaio Interdisciplinar. Tradução
de Ivo Martinazzo. Brasília: Edunb – Editora da Universidade de Brasília, 1993.
Conclusão
Referências Bibliográficas
O intuito inicial era mostrar uma cena de quinze a dezessete minutos na qual o
universitário experimenta desenvolver poéticas na cena teatral, e assim compreendia
enquanto resultado da disciplina a apresentação da cena. No entanto, é da nossa essência
compreender o encontro na sala, como um espaço dialógico, de autonomia na criação
artística. Assim, o processo criativo tem-se uma forte ligação com as teorias
pedagógicas discutidas por Paulo Freire (1996). O qual foi educador e filósofo
brasileiro, referência mundial no estudo da pedagogia. A sua prática didática
fundamentava-se por acreditar que o educando assimilaria o objeto de estudo fazendo
uso de uma prática dialética com a realidade, em contraposição à denominada educação
bancária. O educando criaria sua própria educação, fazendo ele próprio o caminho, e
não seguindo um já previamente construído. Acredito que cabe a ambos, ator, diretor,
educador ou educando entender, independente de ser ensaio, cada encontro é único, e o
processo depende de todos, é como se cada participante fosse um ingrediente, então essa
foi à imagem propulsora e pulsante que carregamos durante esse processo.
No livro o autor trata a questão da mulher do século XIX, bem como sua posição
nessa época, trazendo à tona a personagem Lucíola, que apesar de viver em um período
complexo para a sociedade, não se mostra submissa ao homem, quebrando assim, tabus.
Trata-se de uma prostituta, de personalidade forte que se apaixona por um homem, esse
é respeitado diante da sociedade, vivendo assim uma ardente e impossível história de
amor, que ela deseja a vida inteira.
Lucíola vive assim a situação da mulher que se apaixona por um homem que
vive num mundo oposto ao seu. Prostituição, mulher, mãe e filha. A amante que a vida
inteira sofre o preconceito da sociedade, a mãe que pensa mais no bem-estar da filha do
que no seu próprio conforto. Esse jogo da mulher de atitude, de diversas
responsabilidades, nos inspira enquanto mulher, fazendo assim, parte do nosso universo,
no qual pensamos a sociedade enquanto um lugar que deve ser justo e livre de qualquer
intolerância ou condição imposta à limitação da mulher na sociedade.
Essa personagem nos fascina porque ela busca seus desejos, rompe barreiras,
quebra paradigmas sociais, fica com o personagem Paulo, vivendo um amor
incondicional. Será que a mulher não tem direito de amar e de ser amada, independente
do que ela seja? Esse experimento teatral reflete sobre as fases do relacionamento entre
homem e mulher, entre a sociedade e seus conceitos de aceitação ou negação do amor
não convencional, bem como ressaltar a poesia que embala a vida de um casal em
“Cartas Para Lúcia”.
Nessa metáfora, corpo e alma buscamos atingir uma ligação interna, da nossa
vida com o processo, e de qualquer maneira , quando estamos na sala de ensaio lidamos
com o imaterial, de difícil mensuração, embora tenha consequências diretas na cena, por
este motivo é importante à compreensão e aceitação do tempo de cada participante
dentro do percurso criativo. Os diálogos que tínhamos eram carregados de emoção,
onde estavam presente as nossas sensibilidades, os nossos discursos pessoais
transformado em cena de forma crítica.
O corpo imaginário situa-se, por assim dizer, entre corpo real e psicologia do
ator, influenciando a ambos com igual força. Passo a passo começa a
movimentar-se, a falar e a sentir de acordo com ele, quer dizer sua
personagem vive agora dentro de você (ou se prefere, você habita dentro
dela). (CHEKHOV, 2003, p.101)
Acreditamos que para isto, cabe aos integrantes buscar construir um trabalho
cênico, mergulhar na sala de ensaio carregado de inspirações para transforma-las em
arte, por outro lado, nunca se sabe como iremos sair dessa sala, após o ensaio, assim,
também na sala de aula, um espaço no qual vivemos o novo, o tempo do presente que
pertence a cada momento, por mais que haja plano de aula o acontecimento sempre será
uma surpresa para todos. Pertence a esse acontecimento a esperança de que esse
momento será transformador e é a sala que é prova dessas sensações e luta, seja por
parte do condutor na montagem de uma peça ou no desenvolvimento de uma aula, onde
o professor tem a disponibilidade de conduzir e organizar o trabalho. Em Pedagogia da
Autonomia, Paulo Freire nos coloca a importância da esperança nesse processo de
transformação:
A encenação Cartas para Lucia, a cada ensaio se revelava mais viva e pulsante
em nosso corpo. Acreditamos na importância desse experimento como evolução da
individualidade para o coletivo, assim buscando abranger também a plateia enquanto
espectadores ativos, e também criadores da cena, não ignorando sua importância.
Dispensamos a hierarquia das ordens de poder e demos ênfase as nossas
particularidades, enquanto artistas, criadores, trouxemos a nossa experiência para
auxiliar na inspiração do texto, o qual trazia propostas relevantes à construção cênica ao
olho de cada participante. Enxergamos a troca de experiências, enquanto ponte
dialógica nos processos. Essa percepção, Paulo Freire nos possibilita enxergar, enquanto
caminho propulsor dessa transformação:
Considerações Finais
Percebi que esse processo foi importante para nosso desenvolvimento tanto
acadêmico quanto artístico. Pelo simples motivo de ter ficado impresso no corpo do ator
todo o trabalho exercido em sala de ensaio, e pelo momento vivido que foi
compartilhado entre todos, tanto presentes ao longo do processo, quanto presentes
durante a apresentação do resultado positivo e negativo do experimento.
Referências:
RESUMO
Este artigo pretende trabalhar a noção de Linha de Fuga, proposta pelo filósofo Gilles
Deleuze, em relação aos teatros de Jacques Lecoq e Vsiévolod Meyerhold. Observar quais eram
seus territórios de estratificação (molar) e seus territórios de resistência. Meyerhold e Lecoq,
assim como outros, mostraram resistências aos processos Stanislavskianos, de modo diferente,
dado os contextos em que cada um viveu e desenvolveu seu trabalho, ao mesmo tempo em que
caminhavam em direção à estratificação, à institucionalização, do próprio modo de fazer. A linha
de fuga é sempre em relação a uma estratificação, a uma iluminação do estado, que ilumina por
que quer capturar, mas no que ele ilumina aparecem novas possibilidades de fuga.
ABSTRACT
This article intends to work with the notion Line of Flight proposed by the philosopher Gilles
Deleuze in relation to the theater of Jacques Lecoq and Vsiévolod Meyerhold. Observe what
their territories stratification (molar) and its territories resistance. Meyerhold and Lecoq, as well
as others, have shown resistance to Stanislavski processes, differently, given the contexts in
which each lived and developed his work, while they walked toward stratification, the
institutionalization of the way to make itself. The line of flight is always in relation to a situation,
a lighting of a state, which illuminates why wants to capture, but what it illuminates is new
possibilities of escape to appear.
Os escritos de Michel Foucault (1995) sobre “tecnologia disciplinar” são a base para a seguinte
discussão teórica sobre métodos do treinamento do ator. Nos escritos de Foucault, o poder
disciplinar é uma força produtiva, e essas “tecnologias” produzem um tipo especifico de corpo.
Foucault explica que ele está interessado em “mapear” as “técnicas essenciais” que viajam de uma
instituição para outra, ao invés de investigar um história particular de cada instituição disciplinar
(1995:139). Ele examina as técnicas, processos e mecanismos que moldam o corpo. No entanto,
ele analisa e desenha exemplos de especificas instituições sociais, principalmente a prisão, o
exército e instituições de ensino, com o objetivo de descrever como praticas disciplinares operam
e como especificas “tecnologias disciplinares” são disseminadas para outras esferas da sociedade.
(MIRANDA, M. B. 2010, p. 61) [2]
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a
sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar as “disciplinas”. [...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia
o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, M. 1977, p. 133/134)
Observa-se então que a disciplina diz mais de um método de coerção/exploração dos corpos, do
que de treinamento do ator. A palavra método vem do grego, metáhodos: metá (reflexão,
raciocínio, verdade) + hódos (caminho, direção). Méthodes refere-se a um certo caminho que
permite chegar a um fim. No caso da disciplina em Foucault, ela é caminho e fim ao mesmo
tempo, diferente da disciplina no treinamento do ator, que é um caminho (possível, dentre
outros) para a composição.
Como a própria Miranda coloca:
De acordo com Foucaul, “docilidade” é a noção “que reúne o corpo analisável com o corpo
manipulável” (1995:136); isso é o proposito do ator. A particular docilidade de um ator é que ele
ou ela também é esperado para ter a capacidade de analisar a si próprio e moldar ele ou ela mesma
fisicamente de acordo com o objetivo teatral. (MIRANDA, M. B. 2010, p. 65) [3]
A linha que deve descrever o centro de gravidade é muito simples e, pelo que ele pensava, deve
ser recta na maior parte dos casos... mas de um outro ponto de vista, esta linha tem qualquer coisa
de excessivamente misterioso, porque, segundo ele, é apenas o tracejado da alma do bailarino...
(KLEIST, H. apud DELEUZE, G. PARNET, C. 2004, p. 152.)
Dividindo cada gesto dos estudos em movimentos exatos, Meyerhold foi capaz de aplicar ao ator
os princípios tayloristas de economia de movimentos e a teoria da emoção de James, fazendo com
que ele automaticamente experimentasse uma gama de emoções, devido a uma constante mudança
de organização de sua musculatura. Isso também habilitava o ator a estabelecer de forma precisa a
relação entre sua aparência física e suas impressões nervosas mais íntimas. (GORDON, M. 1973,
p. 10)
A integração do cinema ao ato teatral se faz pelo modo pelo qual suas técnicas e imagens
alimentaram e ainda alimentam a arte da encenação. Esta é trabalhada pelas noções de montagem,
de enquadramento e, mais recentemente, pela noção de movimento de aparelhos. O close se tornou
uma das noções-chave de encenação de teatro, que levou em conta também, no tratamento do
dispositivo, da luz, dos objetos e da atuação, as exigências do olho do olhador, segundo a
expressão de Marcel Duchamp, acarretadas pela riqueza composicional das imagens fílmicas.
(PICON-VALLIN, B. 2013, p. 120; 121)
“No novo teatro, a necessidade de introduzir nos planos uma construção rigorosamente submetida
ao movimento rítmico das linhas e da harmonia das cores vem substituir a sobrecarga absurda das
cenas do teatro naturalista”, observa Meyerhold em 1907. O teatro se torna, assim, a arte da
composição, e escreverão a respeito de o inspetor geral, encenado pelo mestre russo, que nada,
“nem o ângulo de um cotovelo, é [ali] deixado ao acaso.” (PICON-VALLIN, B. 2013, p. 112;
113)
A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem do que se trata.
Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas eles acham que fugir é sair do mundo, mística
ou arte, ou então que é algo covarde, por que se escapa aos compromissos e às responsabilidades.
Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do
imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer
fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma
cartografia. (DELEUZE, G. PARNET, G. Apud ZOURABICHVILI, F. 2004, p. 29)
Isso, evidentemente, não poderia significar o desaparecimento dos jogos brutais. Sua prática se
torna apenas mais controlada, mais regrada. As rixas se deslocam, transitando dos espaços ao ar
livre para os espaços escondidos, deixando os ambientes rurais e indo para as salas dos fundos dos
cafés, para os recintos adaptados, os locais fechados. Os golpes são disciplinados, as
aprendizagens são codificadas, as praticas de combate, ensinadas; mestres se impõem com suas
salas, suas concorrências, suas lições. (VIGARELLO, G. HOLT, Richard. 2008, p. 396)
E Lecoq vai ver o treinamento do ator com as lentes de um educador físico, no começo de
sua pesquisa. Ao continuar o desenvolvimento desta, com suas viagens e cursos, logo começa a
compor uma resistência ao teatro de caráter psicológico, ou de memória, ou escravo do texto, ou
da cópia exata da natureza. Em sua escola ensinava princípios de várias formas e técnicas de
teatro: a tragédia, o bufão, o clown, a comédia dell’art, Chegando a criar, por exemplo, a
“ginástica do arlequim”. Não para produzir virtuosismo, e é aqui que ele extrapola a questão da
disciplina que migrou, de certo modo, para o seu teatro através do esporte, mas para entender o
que do mundo habita cada um desses teatros e como deixar isso afetar o público através do
corpo. A partir do traçar de todas essas linhas molares, as diversas técnicas, a disciplina, o
conhecimento do corpo, fez emergir um ator aberto aos afetos e aos encontros. Buscou em todo
comportamento de matéria possível, a água, o fogo, o ar, a terra, o plástico e o ferro, um
comportamento da matéria corpo, e criou um ator tradutor que se deixa afetar, que busca os
motores da ação. O afeto é o que te movimenta. A própria máscara neutra, a neutralidade, surge,
se não, para dar a possibilidade de ser tingido, atingido por acontecimentos do mundo, depois de
uma escuta e espera atenta.
É preciso, então, começar eliminando as formas parasitárias, que não lhes pertencem, retirar tudo
aquilo que possa impedi-los de encontrar a vida em sua forma mais próxima daquilo que ela é.
Temos que retirar um pouco daquilo que sabem, não para simplesmente eliminar o que sabem, mas
para criar uma página em branco, disponível para receber os acontecimentos externos. (LECOQ, J.
2010, p. 57)
E ainda mais, Lecoq, preocupado como pedagogo em como direcionar suas críticas,
descobriu um dispositivo de composição que se baseia no que ali está, apenas, invés de verdades
pré-concebidas, isso se dava através de constatações:
A constatação é o olhar que se foca na coisa viva, tentando ser o mais objetivo possível. A crítica
feita a um trabalho não é uma crítica do bem ou do mal, é uma crítica do justo, do longo demais,
do curto demais, do interessante, do desinteressante. Isso pode parecer pretensioso, mas só nos
interessa o que nos é justo: uma dimensão artística, uma emoção, um ângulo, uma relação de
cores. Tudo isso existe em obras que, independentes da dimensão histórica, duram. Isso todos
podem senti-lo, e o publico sabe perfeitamente quando é justo. Se ele não sabe por quê, nós
devemos sabe-lo, pois somos, além de tudo... especialistas. (LECOQ, J. 2010, p. 48)
Meyerhold e Lecoq conseguiram produzir, cada um, uma diferença, um dado, do qual
não se pode ignorar, do qual reorganizou todo o teatro, extrapolaram-no, fizeram-no saltar de
plano, arrastaram o que já estava estratificado assim como se arrebenta um tubo. E outros
também o fizeram. Fizeram isso sem ressentir ao que tinham, aos problemas que tinham, aos
materiais disponíveis. Agora resta perguntar: Quais linhas eles deixaram, quais foram
estratificadas? Como usá-las, ou como estão sendo usadas, no teatro de hoje para se produzir
novas linhas de fuga? Seja nos grupos ou nos indivíduos: o teatro no mundo, na Europa, no
Brasil, em Curitiba, o seu teatro. E não lamentar opressões, pois o estado não oprime, o estado
ilumina, ilumina por que quer capturar, mas no que ele ilumina, aparecem novas possibilidades
de fuga.
NOTAS:
1 - Apoio: Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2 - O livro: Playful Training - Towards Capoira in the physical training of actors, de Maria Brigida de Miranda, foi
escrito originalmente em inglês e essa tradução não é oficial. Segue a mesma citação no original: Michel Foucault’s
(1995) writings about “disciplinary technology” are the basis for the following theoretical discussion about actor
training methods. In Foucault’s writings disciplinary power is a productive force, and its “technologies” produce a
specific kind of body. Foucault explains that he is interested in “map[ping]” the “essential techniques” that travel
from one institution to another, rather than investigating the particular history of each disciplinary institution
(1995:139). He examines the techniques, processes and mechanisms that forge bodies. Nonetheless he analyses and
draws examples from specific social institutions, mainly prison, the army and educational institutions, in order to
describe how disciplinary practices operate and how specific “disciplinary technologies” are disseminated to other
spheres of society.
3 - No original: According to Foucault, “docility” is the notion “which joins the analysable body to the manipulable
body” (1995:136); this is the actor’s purpose. The particular docility of an actor is that he or she is also expected to
have the capacity to analyse his or herself and mould him or herself physically according to the theatrical task.
REREFÊNCIAS:
FOUCAULT, Michel; Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1977.
GORDON, Mel. A Biomecânica de Meyerhold. The Drama Review, 1973. pp. 73-78),
tradução de Maria Elizabeth Jhin.
LECOQ, Jacques. O Corpo Poético: Uma Pedagogia da Criação Teatral. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010.
Sobre os encontros
Montagu (1988), autor do livro que Angel recomendou a devida leitura, chama
esta minha experiência com a mestra de sentido háptico. O tato é, na verdade, um
grande conjunto de diferentes sentidos táteis e
prédio localizado à frente da casa de cada um. Esta memória, presente no corpo de Artur
Ribeiro, o afetou profundamente: “Naquele dia, eu me dei conta de que ela não estava
falando sobre a cor da janela do prédio, mas sim sobre a importância de eu perceber a
pessoa que está ao meu lado. Eu só posso interpretar a vida se eu tiver um olhar sobre o
meu próximo. Como eu posso criar diferentes personagens e falar do mundo se eu não
tenho um olhar voltado para o outro? Se eu não paro e observo o outro? Este, para mim,
é um dos fundamentos da dança contemporânea e do teatro que eu aprendi.” (LUNA,
2014).
A experiência de Artur Ribeiro com o ensinamento de Angel Vianna sobre parar
para olhar, parar para perceber o outro e o mundo vai ao encontro do artigo de Jorge
Larossa Bondía (2002) denominado Notas sobre a experiência e o saber da experiência.
Nele, o autor descreve o quanto o excesso de informação, de opinião, de trabalho, a
pressa e a falta de tempo, características dos tempos atuais fragilizam a experiência.
Esta, “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca.” (2002, p.2). Para Bondía (2002, p. 5),
Sobre o treinamento
De acordo com Josette Féral, em Você disse “training”? (2000), o termo
training - de origem inglesa - tem sido cada vez mais utilizado na França desde a década
de 80, do século XX. A palavra treinamento, originalmente ligada às práticas esportivas
e militares, começou a perder força oral no campo teatral para a palavra training. Esta
parece ampliar a noção de treinamento da palavra francesa pelo fato de conseguir unir
todos os processos existentes referentes ao trabalho e à formação do ator. Parte desta
influência se deve ao teórico do teatro Eugenio Barba, que procurou difundir o conceito
training de maneira intercultural, em que o mesmo pudesse ser utilizado em diferentes
locais do mundo com equivalente caráter e definição. Além dele, a teórica (2000)
aponta outros pensadores e reformadores do teatro que contribuíram para tal
apropriação léxica na França, tanto na forma oral como, encontrada mais recentemente,
na forma textual. Entretanto, embora a palavra training possua certa interferência no
campo teatral francês, Féral (2000) afirma que as práticas de treinamento de origem
anglo-americana parecem não ter a mesma preponderância.
Féral (2000) relata que no início do século XX, as práticas de treinamento atoral
que emergem na Europa e América do Norte buscam reformar a figura do ator. Os
movimentos estudantis de culto ao corpo na Alemanha, as vanguardas russas, os teatros-
laboratório, os teatros-escola são alguns exemplos dos diversos experimentos existentes
na época criados pelos seus teóricos, artistas, pedagogos e reformadores que desejavam
uma nova teatralidade e um novo ator. Féral (2000) cita Jacques Copeau, Charles
Dullin, Louis Jouvet, Étienne Decroux, Jacques Lecoq, Gordon Craig, Adolphe Appia,
Èmile Jaques-Dalcroze, Max Reinhardt, Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski,
Yevgeny Vakhtangov e Alexander Tairov como alguns dos responsáveis pelas
reformulações da educação atoral.
As novas pedagogias e treinamentos sistemáticos, que trabalhavam os corpos
por meio do método e repetição, possuíam características peculiares que as
diferenciavam umas das outras. Contudo, convergiam em relação ao conhecimento do
ator, que deveria ser galgado paulatinamente, num processo contínuo, que o
acompanhasse durante toda a sua vida contemplando ao mesmo tempo, a sua
fisicalidade e interioridade. Féral (2000) corrobora o pensamento dos reformadores ao
afirmar que esta duração potencial do treinamento estimula no ator, uma constante
capacidade de criação, visto que este novo olhar sobre o processo de treinamento não
objetiva um resultado, um fim, mas uma nova corporeidade atoral e um novo
entendimento sobre o teatro:
Escutar, tocar, degustar, cheirar e olhar: sentir, perceber, criar e construir. Eis
aqui o que comprovei ser o primeiro processo de um dos eixos do treinamento dos
atores-dançarinos da companhia franco-brasileira de teatro gestual Compagnie Dos à
Deux11.
A fórmula, que de início, parece ser uma tarefa simples, possui, na verdade
grandes desafios: criar novas sensações, propriocepções, autoimagens, dinâmicas
espaço-temporais, experiências e tonicidades gestuais específicas que ultrapassem a
subjetividade dos seus corpos. Independente da técnica corporal, do estilo e da
linguagem que utilizem, se tal técnica vem da dança ou do teatro, o fato é que, para
construir uma partitura gestual e compor assim os seus personagens é imprescindível
que haja primeiro, entre os atores-dançarinos receptividade, abertura, porosidade e
poesia, para enfim dedicarem-se às técnicas corporais escolhidas para o treinamento.
Desenvolver a escuta, aprender a receber o toque e transformar a qualidade do
toque, compreender como acontece a respiração para que o seu corpo ganhe
profundidade e globalidade, exercitar a visão periférica, estimulando assim, a
possibilidade de enxergar de modo amplo, são alguns dos princípios que sustentam a
metodologia do trabalho diário deles e dos seus atores-dançarinos. É preciso estar atento
ao outro e a tudo que possa transformar os estados corporais de seus personagens. Para
Artur Ribeiro e André Curti, qualquer microgesto é capaz de influenciar e modificar a
qualidade de uma cena e até mesmo, do espetáculo inteiro.
A teatralidade dos atores-dançarinos da Compagnie Dos à Deux nasce da
dedicação que os seus diretores investem em relação às ações sensoriais durante o seu
treinamento. O mais importante não é a reprodução de uma técnica, mas a maneira
como os corpos serão estimulados para a mesma. Para que os seus atores-dançarinos
conquistem um maior vocabulário gestual teatral é fundamental que ampliem o modo
como executam os exercícios. O treinamento só começa a acontecer a partir do
momento em que os atores-dançarinos abrem os seus corpos para sensações
desconhecidas, ampliando assim, a sua percepção corporal.
As diversas e significativas experiências sensoriais que potencializam a
percepção, assim como a utilização de técnicas corporais que treinem ginasticamente os
seus atores-dançarinos, como a Mímica Corporal Dramática, de Étienne Decroux, as
danças balinesas e o contato-improvisação, dentre outras, faz com que eles conquistem
um controle gestual em cada cena de seus espetáculos. Este controle não nasce apenas
da repetição de movimentos exigidos nas técnicas corporais utilizadas em seu
treinamento. O controle gestual tem antes, a ver com a respiração. De acordo com Jean-
Jacques Roubine (2011):
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DRAKE, Richard L., VOGL, Wayne & MITCHELL, Adam W. M..Gray’s, anatomia
clínica para estudantes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005
FÉRAL, Josette. Você disse training?. In: BARBA, Eugenio et alii, p. 7-27. O training
do ator. Arles/Paris: Actes Sud Papiers/Conservatoire National Supérieur d’Art
Dramatique, 2000
LUNA, Carolina Gosch Figner de. Cadernos de notas, anotações pessoais sobre a
pesquisa de campo com a Compagnie Dos à Deux. Mestrado em Teatro da
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Rio de Janeiro, 2014
1
Tema da pesquisa de Mestrado em Teatro financiada pela CAPES, que realizo no Programa de Pós-
Graduação PPGT; do Centro de Artes – CEART; da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
sob a orientação da Professora Doutora Maria Brígida de Miranda. A Dos à Deux é uma companhia de
teatro gestual franco-brasileira reconhecida e premiada mundialmente, fundada pelos artistas André Curti,
Artur Ribeiro e a colaboração da produtora Nathalie Redant em 1998, na cidade de Paris, França. (Nota
minha).
2
“O mais profundo é a pele.” (VALÉRY apud GOUVÊA, 2007).
3
MONTAGU, Ashley. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
4
“O períneo situa-se inferiormente ao assoalho pélvico entre os membros inferiores. Sua margem é
formada pela saída pélvica (abertura inferior da pelve). Uma linha imaginária entre as tuberosidades
isquiáticas divide o períneo em duas regiões triangulares: anteriormente o triângulo urogenital contém as
raízes da genitália externa e, nas mulheres, as aberturas da uretra e da vagina. Nos homens, a parte distal
da uretra está envolvida por tecidos eréteis e abre-se na extremidade do pênis. Posteriormente o triângulo
anal contém a abertura anal.”. (DRAKE, MITCHELL & VOGL, 2013, p.372).
5
Realizada em Belo Horizonte, no dia 05 de abril de 2014. (Nota minha).
6
“Quando o embrião ainda tem menos do que 2, 5cm de comprimento da cabeça e tronco (Os membros
do embrião encontram-se flexionados e encostados ao peito e abdômen, não sendo assim considerados
nesta medição), quando ainda tem menos de seis semanas de vida, um leve acariciar do lábio superior, ou
das abas do nariz, fazem o pescoço se curvar e o tronco se afastar da fonte de estimulação. Nesse estágio
de seu desenvolvimento, o embrião ainda não tem olhos ou orelhas. Contudo, sua pele já está altamente
desenvolvida, embora de modo algum num nível comparável ao de seu ulterior desenvolvimento. (...)
Tanto a pele quanto o sistema nervoso originam-se da mais externa das três camadas de células
embriônicas, a ectoderme. A ectoderme constitui uma superfície geral que envolve todo o corpo
embriônico. A ectoderme também se diferencia em cabelo, dentes e nos órgãos dos sentidos do olfato,
paladar, audição, visão e tato, ou seja, em tudo que acontece fora do organismo. O sistema nervoso
central, cuja função principal é manter o organismo informado do que está se passando fora dele,
desenvolve-se como a porção da superfície geral do corpo embriônico que se vira para dentro. O restante
do revestimento de superfície, após a diferenciação do cérebro, da medula espinhal e de todas as demais
partes do sistema nervoso central, torna-se pele e seus derivados: pelos, unhas e dentes. Portanto, o
sistema nervoso, é uma parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele, pode ser considerada como a
porção externa do sistema nervoso.”. (MONTAGU, 1988, p.22-23).
7
“Na Educação Somática (sic) a ênfase está no próprio indivíduo, na percepção das sensações internas
produzidas no organismo. [...] Por meio do desenvolvimento do sentido cinestésico- a propriocepção –
essas práticas [Eutonia, Alexander Technique, Feldenkrais, Pilates, Barthenieff Fundamentals, entre
outras] colaboram com o refinamento motor, como também possibilitam a melhora da expressividade do
movimento.” (COELHO, 2011, p. 65-66).
8
“Nós agimos de acordo com a nossa auto-imagem (sic). Esta, que por sua vez, governa todos os nossos
atos – é condicionada em graus diferentes por três fatores: hereditariedade, educação e auto-educação
(sic). A parte herdada é a mais imutável. A herança biológica do indivíduo, a capacidade e a forma do
seu sistema nervoso, sua estrutura óssea, tecidos, glândulas, pele, sentidos – tudo isso é determinado pela
sua hereditariedade física, muito antes que ele tenha qualquer identidade estabelecida. Sua auto-imagem
(sic) desenvolve-se de suas ações e reações no curso normal da experiência.” (FELDENKRAIS, 1977, p.
19).
9
André Curti é brasileiro e Artur Ribeiro é angolano, naturalizado brasileiro. (Nota minha).
10
Embora concorde com a autora sobre o tempo do treinamento e da constante aprendizagem, discordo da
ideia, utilizada pela teórica, do corpo como instrumento e justifico-me através de duas citações, a seguir:
“A esta docilidade da linguagem equivale uma violência real exercida sobre o corpo: quanto mais sobre
ele se fala, menos ele existe por si próprio.” (GIL, 1997, p. 13).
“Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um
espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo?” (UNISINOS. Instituto Humanitas Unisinos.
Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-
foucault#.Uc-c_xLbGa >. Acesso em: 17 jul. 2013).
11
Dado construído após pesquisa de campo realizada nos meses de novembro e dezembro de 2013, na
sede brasileira da companhia. Para chegar a esse resultado, participei ativamente de workshop com os
diretores Artur Ribeiro e André Curti, adquiri alguns materiais audiovisuais com Artur Ribeiro, além de
entrevista-lo no final deste primeiro processo da pesquisa. (Nota minha).
TEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
Resumo: Executar uma ação. Logo, pensar em como executá-la. Então, imprimir
significado a ela. Ter como premissa um verbo de ação – empurrar, puxar, acenar, etc. –
e a partir daí deslocar o corpo de modo que uma ação cotidiana transite para um lugar não
habitual, dotado de outro fluxo de energia. Este artigo traz reflexões em torno de um
estudo prático-teórico sobre o trabalho do ator com partituras de ações como
procedimento para a sua criação artística e sobre os desdobramentos desse trabalho na
apropriação do espaço cênico. Inserida no contexto de montagem do espetáculo Calígula,
da obra de Albert Camus, esta escrita traz questionamentos a respeito do processo de
criação de um grupo de atores da cidade de Fortaleza através da composição de partituras
corporais engendradas por verbos de ação que sofrem interferência das qualidades e
significados presentes no espaço cênico.
Com frequência chamamos esta força do ator de “presença”. Mas não se trata
de algo que está, que se encontra aí, a nossa frente. É contínua mutação,
crescimento que acontece diante de nossos olhos. É corpo-em-vida. O fluxo de
energia que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi redirecionado. As
tensões que secretamente governam nosso modo normal de estar fisicamente
presentes, vem à tona no ator, tornam-se visíveis, inesperadamente. (BARBA.
1995. P. 54).
Diante desse processo de montagem teatral que nos impulsionou a perceber outras
instâncias do trabalho do ator, neste caso, enquanto pesquisa de partituras corporais,
abriram-se caminhos para a redescoberta dos corpos presentes na sala de ensaio, fazendo
uso da ponte corpo e pensamento como um só lugar de mutação e movimento.
Nesse processo de criação, ainda em andamento, de caráter inédito para o grupo de atores,
com direção de Renata Lemes, diretora da Companhia do Miolo de São Paulo, atualmente
professora do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, temos
trabalhado com verbos de ação – empurrar, lançar, acenar, etc. – como premissas para a
composição de ações que atravessam a obra de Camus e se constroem como partituras
relacionadas à pessoalidade de cada ator.
O trabalho com partituras de ação
O primeiro verbo trabalhado em sala de ensaio foi empurrar. A partir dele surgiram três
ações que constituíram a primeira partitura pensada individualmente por cada ator. Os
movimentos criados se relacionavam de maneiras distintas com o verbo, na mesma
proporção que formavam uma liga entre si, de modo a gerar uma unidade entre as ações,
compondo uma partitura de ação.
Embora partindo do mesmo princípio, no caso o verbo empurrar, cada partitura possuía
qualidades muito singulares, que ao longo do processo, se revelaram como uma condição
inerente ao trabalho com partituras de ação. Em cada jogo de ações pensadas pelos atores,
também se faziam presentes as qualidades dos próprios artesãos e não somente do verbo
em questão, ou seja, as características presentes nos corpos de cada ator, as diferentes
experiências vivas na memória corporal também trabalhavam na composição das
partituras.
Neste sentido, a partir de um mesmo verbo surgiram imagens carregadas de força com
movimentos mais amplos, como também imagens caracterizadas por uma leveza e
precisão nas ações. As partituras nos mostravam como um mesmo impulso criativo podia
nos gerar significados opostos.
Quais verbos de ação impulsionam cada cena e congregam as principais ideias da obra?
A partir daí, outras maneiras de construção das partituras foram surgindo em sala de
ensaio, agora com um direcionamento maior sobre a elaboração das ações diante do
contexto das cenas, as composições ganharam qualidades inerentes ao jogo de ideias da
obra, como também uma nova distribuição no espaço cênico.
Desse modo, pensando para além da criação individual e alcançando outras perspectivas
desse trabalho, começamos a pensar em outros espaços de investigação para além da sala
de ensaio com paredes brancas.
Partituras corpóreas fora da sala de ensaio
A frase dita pelo personagem Hélicon da obra de Camus, foi trabalhada em sala de ensaio
por um dos atores como um fator de transformação da partitura de ação elaborada a partir
dos verbos esfregar e lançar. Quatro ações juntas formaram a primeira partitura.
Nesta etapa do nosso processo de pesquisa, deslocamos o trabalho com partituras de ação
para fora da sala de ensaio, teríamos a totalidade do prédio do Instituto de Cultura e Arte
da Universidade Federal do Ceará como fator propulsor de transformações nas partituras
anteriormente criadas na sala de ensaio.
Nossa proposta foi fazer exatamente o oposto, procurar um espaço não-vazio, repleto de
suas características e signos. Um espaço em que suas condições intervissem nas ações já
criadas e modificassem a partitura nos seus mais diversos aspectos.
A partitura inicial com o texto de Hélicon possuía ações de esfregar os pés no chão, lançar
algo com a mão direita, com movimentações em níveis alto e médio. Saímos da sala de
ensaio para perceber o espaço do prédio, onde o ator poderia investigar as diferentes
possibilidades de intervenção na partitura inicial.
E assim aconteceu com as demais partituras de ação, uma rampa que transformava a
qualidade do caminhar, um chão áspero que modificava a intensidade do movimento, etc.
O espaço vazio
Do mesmo modo, o trabalho no espaço vazio voltou nossa atenção para outros aspectos
da criação artística. Na proporção que os estímulos pareciam estar menos presentes, o
grupo se tornava mais sensível aos mínimos impulsos provenientes do espaço e do
coletivo. Esses estímulos nos chegavam de variadas formas: sons, movimento, cheiro,
etc.
Essa outra maneira de se relacionar com o espaço, marcada por linhas bem definidas,
áreas limitadas e um espaço desnudado para encenação, retoma aspectos semelhantes a
um jogo muito presente em nosso processo de criação, o jogo Coro-Corifeu². Demarcando
a área de jogo – um quadrado grande – como um espaço vazio na sala, o primeiro corifeu
(jogador) entra e ocupa este espaço a sua maneira, ressaltando a importância da
consciência corporal do ator para a criação artística. Em seguida, entra o segundo corifeu
(jogador), nesse momento se estabelece as duas instâncias do jogo, o primeiro jogador
torna-se coro, enquanto o segundo assume a posição de corifeu, devendo continuar se
relacionando com o espaço, mas também com o coro presente, o qual irá reagir – a seu
modo – a qualquer estímulo oferecido pelo corifeu. Um jogo de ações se estabelece no
espaço vazio. Assim, à medida que um novo corifeu entra no espaço, a unidade do coro
aumenta seu tamanho.
Existe uma relação de suspensão dentro do jogo de teatro, uma marca pela espera do
acontecimento, um olhar vivo, um corpo-em-vida³ do ator que potencializa as ações do
jogo e da cena. Retomando as relações do jogo coro-corifeu, me questiono também sobre
a qualidade dos estímulos gerados para o coro: Como fortalecer a relação coro-corifeu
pensando não somente na receptividade do outro, mas também naquilo que eu jogo para
o outro.
Em paralelo, podemos refletir em torno da relação dos atores em cena, como também da
relação ator-espectador. Um canal de troca se estabelece entre essas instâncias, as duas
vias tornam-se abertas para que haja um atravessamento das partes. A suspensão é
rompida pelo acontecimento que vem do outro e que nos impulsiona ao novo, a outro
lugar, que nos permite trocar com o outro ator em cena ou com o espectador ali presente.
Neste contexto do jogo coro-corifeu, jogamos com verbos de ação no espaço cênico, os
verbos ficavam dispostos ao redor do tabuleiro como ferramentas para o jogo e
impulsionavam as ações criadas dentro do espaço. Verbos do texto de Camus que
ganhavam forma no corpo do corifeu e, de maneira análoga, reverberavam nas imagens
do coro. Criavam-se partituras corporais pelos estímulos do jogo, marcadas pela presença
do coro, pela força do coletivo e por outras qualidades de composição.
Redescobrir o corpo em cena através do nada, estar suspenso a qualquer impulso que
tenha origem em qualquer ponto do espaço, redescobrir a descoberta.
Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente
discursiva. Essa parte da mente divide, reparte, etiqueta – empacota o mundo
e o envolve como se ele fosse “entendido”. Nossas experiências vão se
tornando cada vez mais rasas, e deixamos de perceber as “coisas” diretamente,
como fazem as crianças, para percebê-las como se fossem signos de um
catálogo que já nos é familiar. (RICHARDS. 2008. P. 4).
Ocupar o espaço cênico com o desejo de redescobri-lo, perceber detalhes, falhas, formas
a serem exploradas, retomar o sentindo da criança quando rola pelo chão e procura o
novo, busca e se ocupa do inédito. Perceber como apropriar-se dessas sensações dentro
do processo de criação do ator, como redescobrir o próprio trabalho, fazer uso disso, por
exemplo, no trabalho com partituras de ação, na relação partituras corporais e espaço
cênico.
i
Notas:
¹ Grupo composto por atores cearenses em formação vinculados ao curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Ceará. A realização da pesquisa prática tem apoio do Instituto de Cultura e Arte
da UFC.
² O jogo coro-corifeu possui diversas abordagens dentro das diferentes linguagens artística. Nesta
pesquisa, ele foi usado como um dispositivo de trabalho da relação corpo-cena na perspectiva teatral.
³ Expressão oriunda do livro A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral de Eugenio Barba.
Faz parte do segmento o corpo dilatado de sua obra.
Bibliografia
ÁQIS: Núcleo de pesquisas sobre processos de criação artística. Estados: Relatos de uma
experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis. UDESC, 2011.
RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo.
Perspectiva, 2008.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
A TRANSFORMAÇÃO DO ATOR EM PERFORMER
Cristina Sanches Ribeiro; Orientador: Edélcio Mostaço; Universidade do Estado de
Santa Catarina
O corpo redescoberto
Performance
Quilici (2012) situa o produto-espetáculo como algo que “automize” o ator, não
dando a brecha necessária para essa nova arte que desloca a reflexão para os processos
de transformar os modos de arte e vida. O treinamento do performer passa pela
necessidade de dominar outras áreas do conhecimento.
Já Marinis (2000) vê o trabalho de Grotowski como uma passagem do ator ao
performer através da cultura teatral do corpo ao ultrapassar as fronteiras tradicionais do
teatro, partindo da ação física do ator. É na ação física que o ator desvenda algo que vá
além do trabalho direcionado para o espetáculo e espectador, associando esse processo
“orgânico” do ator de teatro ao performer, como um ser atuante, que cria a ação e a vive.
O ritual é uma parte muito importante no trabalho de Grotowski, situado como o
ato em si, a ação consumada, o desempenho e a forma como que cada experiência se
eleva a partir da corporeidade e processo conjunto.
O ator e o performer
Para Féral (2009), o ator torna-se performer quando em suas ações, o seu corpo,
seu jogo e suas competências técnicas são colocadas à frente da representação. O
público então navega entrando e saindo da narrativa de acordo com as imagens que
aparecem em seu olhar. “O espectador, longe de buscar um sentido para a imagem,
deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa (Féral, 2009)”.
Para Schechner (2006), as ações performativas não podem ser classificadas de
verdadeiras, falsas, certas ou erradas, elas simplesmente acontecem, sobrevêm. Uma
classificação importante da performance é o caráter de evento, colocando o processo em
cena, aumentando o aspecto lúdico de quem faz e de quem participa. O performer se
coloca em risco na frente de quem o assiste.
Féral (2009) então explica que duas ideias estão no centro do ato performativo: de
um lado, as ações que são realizadas pelo performer e no outro, o caráter descritivo dos
fatos. A performance cria seu lugar no real e desconstrói essa noção de realidade ao
mesmo tempo. O espectador é obrigado a se adequar ao jogo de signos instáveis que se
apresentam a ele:
Muitos de nós temos uma história com sapatos apertados. É comum querermos muito
um sapato mesmo que este não sirva bem. Talvez pelo modelo, talvez pela moda, talvez pelo
simples fato de ser um sapato que agrade ou ainda, pela necessidade de se calçar um sapato,
qualquer que seja, apenas para ter um sapato que calçar.
Quando usamos um sapato menor que nosso tamanho, vivemos a sensação do aperto,
do sufocamento. Sentimos nossos pés espremidos, sem espaço para respirar, para se adequar.
Sentimos, ainda, a dificuldade de pisar com firmeza, de equilibrar nosso peso e nossa
velocidade no caminhar, tentando ser mais leves ou mais lentos, experimentando pisar em
terrenos mais suaves ou menos acidentados.
Quando caminhamos calçando um sapato apertado, vivemos a sensação de querer
chegar logo ao nosso destino para libertar os pés, para respirarmos aliviados, para pisarmos
com tranquilidade no chão e esparramarmos nosso corpo sobre a carne amassada e sentir-se
livres.
Neste texto, serão discutidas algumas ideias e determinadas noções que fazem uma
aproximação poética com esta experiência dos sapatos apertados. O intuito principal é
apresentar alguns contornos de uma experiência improvisacional bastante relevante no
contexto não só das práticas artísticas mas da conformação de uma possível metodologia para
o ensino de novos procedimentos improvisacionais bem como sua aplicação nos mais
diversos processos criativos.
Aqui, serão tratadas algumas questões sobre as estratégias de criação e os
procedimentos de trabalho do Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade. A
constituição deste grupo se deu a partir de um Projeto de Extensão da professora Ana Cristina
Fabrício que desenvolve, há muitos anos, pesquisas práticas a partir da improvisação. Como
um desdobramento natural da disciplina “Jogos e Improvisação”, componente da grade
curricular dos cursos de graduação da Instituição, este projeto de extensão nasceu da
necessidade docente de investigar determinados aspectos relacionados à experiência
improvisacional que se encontram por trás das regras de jogo e para além das dinâmicas
cômicas.
Assim, em seu primeiro ano de atividades, o trabalho do grupo se pautou pela
aplicação e desenvolvimento de determinado vocabulário de base visando, sobretudo, a
instrumentalização do ator no uso de técnicas e procedimentos de improvisação. A estrutura
desenvolvida se construiu a partir da criação de cenas curtas elaboradas sobre o pressuposto
de jogo à sombra das noções clássicas da improvisação, pautadas em teóricos como Keith
Johnstone, Viola Spolin e Sandra Chacra, entre outros.
Em sua segunda formação 1 , as atividades do Grupo Tosco se desenvolveram
tomando, como pressuposto, a improvisação não-cômica. Nesta seara – e a título de
instrumentalização de integrantes novos – foram retomadas algumas dinâmicas anteriores
mas, sobretudo, foi-se desenvolvendo um novo vocabulário mais vinculado às práticas de
1
Faz parte da dinâmica do grupo a entrada e saída de integrantes devido ao vínculo com a Instituição durante a
graduação. Outrossim, por se tratar de um projeto de extensão, há a abertura para pessoas da comunidade. A
cada ano, faz-se uma chamada para a seleção de novos integrantes.
corpo, estabelecendo um léxico – oral e também corporal, sintático mas também sinestésico –
a partir do qual as atividades do grupo se apoiaram.
É para a experiência onde se funda este léxico que nos interessa olhar neste texto.
UM LÉXICO
Criar um movimento e repeti-lo. Fluir para outro movimento e mais outro até gerar
uma sequência que se repete. A partir daí, se relacionar com a sequência de movimentos de
outra pessoa até se converter em uma quase-dança que, além de vincular os indivíduos no
jogo também instaura núcleos e determina sua relação com o espaço.
Esta descrição refere-se a um exercício muito importante que costuma ser chamado de
“Chacrinha”. A própria denominação joga com a ideia de brincadeira, em que o que conta é a
possibilidade de se valer de um movimento livre para a elaboração de uma estrutura que vai
se complexizando à medida em que avança.
Assim, uma quase-dança torna-se potente o suficiente para instaurar um ambiente
criativo de múltiplas possibilidades. O pensamento torna-se não mais um reflexo da
linguagem verbal – a despeito do léxico do grupo – mas das imagens que o corpo gera. A
leitura que se estabelece a partir de exercícios com a “Chacrinha” funda um modo de pensar
arraigado sobretudo no corpo e, deste modo, as elucubrações que daí surgem estão fundadas
neste pensamento que é, antes de mais nada, corpóreo.
Trata-se de uma “atividade reflexiva” (SOMBRA, 2006) onde o pensar-em-ação
estabelece contornos muito mais borrados e, portanto, difíceis de definir, para a experiência.
Neste sentido, tais dinâmicas corporais remontam ao pensamento de Merleau-Ponty que
preconizava a importância de se partir da experiência para, então, se chegar ao sentido das
coisas.
José Carvalho Sombra (2006) faz uma bela abordagem desta conjunção ao destacar a
percepção como meio através do qual o corpo desencadeia ocorrências subjetivas, partindo
das singularidades: “o corpo próprio, tal como eu existo e o reconheço como meu corpo, o
corpo que eu vivo, que eu sou e que eu tenho, o qual se conduz como sujeito de meus desejos,
intenções e movimentos” (SOMBRA, 2006, p. 25).
Portanto, se consideramos que o corpo é condutor de leituras que estão para além da
linguagem verbal, o que “lemos” deste corpo é o que ele conduz como mediador, como meio
através do qual as percepções se comunicam, já que “o corpo é sempre o estado de um
processo em andamento de percepções, cognições, ações” (SETENTA, 2008, p. 38).
Ao concatenarmos o entendimento de percepção ao que o corpo comunica,
estabelecemos uma possibilidade de leitura mais vinculada às imagens que lemos e, então, o
sentido das coisas torna-se poroso. Acima de tudo, ao restituir às percepções o caráter
hegemônico das práticas do Grupo Tosco, assumimos que a experiência improvisacional se
concretiza enquanto uma atividade reflexiva, ou seja, no momento mesmo em que se faz, se
pensa e, portanto, se diz.
Nas práticas deste grupo, entende-se desde logo que não é possível falar do que
poderia ser feito senão daquilo que se experienciou, ou melhor, não somos capazes de
elaborar um sentido para uma experiência se não a percepcionamos. Em outras palavras
ainda, não é possível projetarmos o que gostaríamos de ter visto sem ter vivido aquela
experiência. Então, é muito comum falarmos de algo que “pensávamos” ter “lido” no
trabalhos dos atores que jogam acreditando que a cena improvisada teria sido melhor caso
fosse da maneira como a estávamos lendo.
Contudo, há uma estratégia presente nestas dinâmicas do Grupo Tosco que aponta
para a percepção como um princípio maior no(s) olhar(es) que estabelecem estas leituras
todas: a proposição das imagens como dispositivo de jogo a partir do qual a cena é
improvisada. Neste sentido, a profusão de imagens desencadeia um universo narrativo
estabelece pequenas células poéticas que, por sua vez, engendram um discurso cuja cena se
desenvolverá em seu entorno.
Como a geração de mapas está relacionada às percepções do ator em jogo/cena, as
dinâmicas corporais adotadas pelo grupo se mostram mais potentes que a palavra, seja em sua
formulação reflexiva – através das leituras que os integrantes fazem de suas experiências
improvisacionais – seja em seu território de ação – através dos diálogos improvisados em si.
Ocorre que as imagens geradas a cada dinâmica corporal ou em cada cena
improvisada são absolutamente porosas e colocam diante dos atores uma série de fissuras a
serem preenchidas, por isso a importância de ancorar a experiência improvisacional nas
percepções:
As imagens são extremamente maleáveis e transitórias, indicando o princípio
subjacente a todas as percepções: os mecanismos de percepção estão envolvidos em
negociações, acordos de correlações estatísticas com o ambiente, para que se
compreenda porque cada imagem é uma imagem, ou seja, que existe um sentido
transitório em cada imagem. (BITTENCOURT, 2012, p. 29).
Portanto, se o corpo é o espaço físico das ideias e perceber já é agir, as imagens são
geradas através de nossos mapeamentos cerebrais. Trata-se de um fenômeno convergente
entre objetividade e subjetividade, de definição das atividades reflexivas e das elaborações
poéticas que fazemos a partir do vocabulário que define nosso léxico (teórico e prático).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Naturalmente o elo entre o corpo e a alma é indissolúvel. A vida de um gera a vida da outra, e vice-
versa. Em toda ação física, a não ser quando é puramente mecânica, acha-se oculta alguma ação
interior, alguns sentimentos. Assim é que são criados os dois planos da vida de um papel, o plano
interior e o plano exterior. Estão entrelaçados. Um propósito comum os aproxima ainda mais e reforça o
elo inquebrantável que há entre os dois. STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Tradução
de Paulo de Pontes Lima. – 9ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P. 270.
2
“Boa Companhia” (www.boacompanhia.art.br) é o grupo teatral no qual atuo desde 1992 (desde a
Graduação em Artes Cênicas na UNICAMP), como ator e gestor. Dirigido artisticamente por Verônica
Fabrini e sediado em Barão Geraldo o grupo é também formado atualmente pelos atores Alexandre
Caetano, Eduardo Osorio e Moacir Ferraz. Realizei com o grupo mais de 20 peças como ator, entre elas,
“Primus”, „Portela, patrão; Mário, motorista” (também diretor em parceria com Eduardo Osorio e co-
direção de Verônica Fabrini), “O Artista da Fome”, entre muitas outras.
e, ao mesmo tempo, estar aberto a especificidade de cada novo espaço
externo, tal necessidade concreta é que edifica a reflexão sobre os espaços.
Merleau-Ponty diz, na afirmação acima, que o “espaço não é o ambiente (real
ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pela qual a posição das
coisas se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 328). Ao espaço físico,
referente às condições do lugar enquanto arquitetura; que torna possível a
posição das coisas palpáveis chamo de espaço externo (1). As reflexões sobre
esse aspecto se orientam primordialmente pela ocupação coletiva,
coreográfica, e relaciona-se à memória seletiva espacial. O espaço imaginário
(2) está de forma intrínseca ligado ao espaço interior (3), por depender da
relação interior do ator com a circunstância do acontecimento cênico, mas
concerne também a um aspecto coletivo; é o espaço onde os atores estariam
se fossem3 esses personagens. O espaço imaginário não é um espaço
permanente de referência para o ator no momento da atuação, ele diz respeito
à circunstância e gera elementos que podem alimentar a imaginação em lapsos
instantâneos, ou como recurso de concentração e prontidão, por exemplo,
como retomada da memória das circunstâncias. Como ator percebo que, em
momentos pontuais, retomo a atenção ao espaço imaginário, tal retomada me
permite reconstruir minha atenção na cena. Tal classificação, a meu ver, deriva
do conceito stanislavskiano do círculo de atenção:
Na busca por uma reflexão que parta da definição de Kusnet para criar
questões próprias, vejo que voltar a atenção ao espaço imaginário é uma
possibilidade de concentrar-se na circunstância, no sentido de aguçar a
sensação coerente com a cena. Assim, em momentos em que houver
elementos que tendam a dispersar a atuação (lapsos de desconcentração de
um ator, pequenos imprevistos na cena ou na plateia), a retomada da sensação
do espaço imaginário pode reconectar o ator na cena. É um fator que pode
estimular a recuperação do ritmo cênico do ator, inclusive, para ajudar na
reconstrução da atenção coletiva. Seria um “círculo de atenção interior” a partir
de um dado já estruturado; por isso, improvisar como se estivéssemos no
espaço imaginário da fábula são maneiras de proporcionar materiais para o
ator, eventualmente, recorrer diretamente a tais sensações para reestabelecer
3
Mal havia pronunciado o “se” mágico e senti como se alguma coisa me tivesse atingido pelas costas.
Comecei a correr, mal sabia o que estava fazendo, e de repente me achei dentro do meu quarto de hotel
imaginário. STANISLAVSKI, Constantin. A criação do papel, op. cit., p. 265. Stanislavski, em suas
principais obras, constantes de nossa bibliografia, define o mágico se fosse como um recurso para agir na
situação imaginária da personagem: o que eu, ator, faria, se fosse essa personagem, nessa situação. Nesse
caso nos referimos a uma intenção coletiva de criar um espaço imaginário, pois em “Primus”, todos os
atores são o mesmo personagem, na maioria das vezes, na mesma situação; embora cada ator tenha sua
própria imagem e seu próprio espaço interior, o estímulo para a improvisação é de um mesmo espaço
imaginário.
seu espaço interior. O espaço interior é a terceira maneira de olhar para o
espaço da cena que proponho.
Esse terceiro espaço, o espaço da imagem interior do indivíduo, é a
experiência subjetiva do intérprete; uma subjetividade que se liga aos objetivos
da personagem e da encenação; é um espaço psicofísico onde se processam
as memórias pessoais e coletivas, as lembranças, a poesis de cada um, lugar
da carne e do espírito do ator, é a morada da imagem interior. O espaço interior
é o lugar da potência íntima, é onde se dá a manifestação única do indivíduo,
espaço da imaginação do ator, onde ele processa sua pessoalidade. O ator
deve encontrar esse lugar em si mesmo, a cada montagem, com sua temática
e matrizes específicas. No processo de improvisação, as portas desses
espaços se abrem e o ator penetra em seus próprios ambientes secretos,
encontra atalhos, constrói caminhos, esculpe as chaves que voltarão a
conduzi-lo aos seus domínios.
Importante é, sobretudo, compreender cada um desses “espaços” como
um “lugar fenomenal cuja virtualidade de um corpo o define pela sua tarefa e
situação” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 333). Esses espaços existem como
propósito de viver o teatro, a intenção de imaginar um universo poético, de
jogar este jogo. No espaço externo os atores se colocam para viver uma
experiência imaginária, que supõe um espaço imaginário. Através de seus
espaços interiores os atores dão à experiência contornos íntimos, afetivos, no
entanto, de indivíduos que compõem um coletivo.
A tarefa e a situação dos que estão envolvidos no fenômeno conectados
à tarefa e à situação do ser imaginário motivam as conformações espaciais. O
que Merleau-Ponty chama de tarefa e situação, como definidores do espaço,
em afirmação citada4. No caso do ator em cena, relaciona-se com o que
Stanislavski nomeia de objetivo e circunstância5. Assim, o ator definiria o lugar
fenomenal do ser ficcional baseado na circunstância (situação) e no objetivo
(tarefa). Essa conexão (tarefa/ situação e objetivo/ circunstancia), na
improvisação, permite que se inaugure uma maneira de abordar o espaço e
suas características e que se inaugure o lugar fenomenal da cena – uma fusão
do espaço real, do espaço imaginário e do espaço interior. A abordagem ativa
do texto de referência de uma montagem (análise ativa) estabelece uma
ocupação do espaço externo a priori. Esse “desenho espacial” gerado
proporciona uma forma concreta de lidar com o conflito e determina, em certa
medida, uma atitude dos atores em relação às personagens, visto que opera
nas relações tarefa/situação e objetivo/circunstância.
Eugenio Kusnet apontou a associação dos conceitos de Stanislavski às
pesquisas científicas ligadas ao estudo do ser humano e de seus processos
perceptivos, como pode-se ver, de forma semelhante, na obra de Merleau-
Ponty:
4
Idem, ibidem, p. 328.
5
Nessa comparação, a tarefa seria a ação que o personagem realiza para conquistar seu objetivo,
mediante a situação / circunstância em que ele se encontra; essa fusão entre tarefa e situação é elevada a
um grau de complexidade que envolve o objetivo dos atores e o objetivo da encenação. Uso esse paralelo,
entretanto, a tarefa, no âmbito da conceituação de Stanislavski, não é, necessariamente, a ação. A tarefa é
o que a personagem faz, sem, necessariamente, traduzir a complexidade de sua ação maior. Por exemplo,
o personagem lava louça, essa é sua tarefa, contudo, sua ação é mostrar para alguém que também ajuda
nas tarefas domésticas, sua ação é mostrar-se colaborativo, e não apenas lavar louça. Para melhor
entendimento desses conceitos ver STANISLAVSKI, Contantin. A criação do papel, 2003, Op. cit.
A psicologia moderna praticamente confirmou o Método de
Stanislavski, corrigindo apenas a sua terminologia: o que
Stanislavski chamava „Circunstâncias Propostas‟, na linguagem
dos psicólogos, é chamado de „Situação‟; o termo „objetivo da
personagem‟, na psicologia é „necessidade‟, o mágico „SE
FOSSE‟ é „Atitude Ativa‟ na psicologia e, finalmente a fé cênica
de Stanislavski é equivalente a „Instalação” (KUSNET, 1992, p.
58).
Pode o teatro existir sem figurinos e cenário? Sim, pode. Pode existir sem a
música acompanhando a trama? Sim. Pode. Pode existir sem efeitos de luz?
Sim, pode. E sem o texto? Sim; a história do teatro confirma isto. Na
evolução da arte teatral o texto foi um dos últimos elementos a ser
adicionado. (...) Mas pode o teatro existir sem o ator? Eu não conheço nem
um exemplo disto. Alguém poderia mencionar o teatro de bonecos. Mesmo
neste exemplo, porém, o ator encontra-se atrás da cena, embora seja de um
outro tipo. Pode o ator existir sem audiência? Pelo menos um espectador é
preciso para fazer disto uma performance (GROTOWSKI, 1987: 32).
(...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas
representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa
pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo
ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de
todos os aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA, 2009: 82).
(...) o espetáculo de circo-teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito
para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas
especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem
para ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: ele é feito para
agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso
na bilheteria para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte
(SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 36).
BIBLIOGRAFIA
NOTAS
i
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
ii
Ermínia Silva (2007) utiliza a expressão separando as palavras por barras, ao invés de
ligá-las com a conjunção “e”, partindo da ideia de que, no circo, a formação do
individuo, do artista e do ser social ocorre concomitantemente, dentro de um processo
de aprendizagem integrado.
iii
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
iv
Ibidem.
v
Ibidem.
vi
Ibidem. Grifos do autor.
TEMA: O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO.
Autor: Ipojucan Pereira da Silva (Bolsa CAPES – Doutorado; Orientador: Prof. Dr.
Felisberto Sabino da Costa; Universidade de São Paulo; Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas).
Há uma coisa de que o homem não aprendeu ainda a tornar-se senhor; uma coisa
de que não se suspeita mesmo, que está pronta para ser absorvida com amor,
invisível e no entanto sempre presente, magnífica de sedução e pronta a escapar-
se; uma coisa que espera a vinda de homens aptos, pronta a elevar-se com eles
acima do mundo terrestre: e não é senão o Movimento (CRAIG, 1911, p. 78).
Ao se pautar pelo movimento para pensar a arte do teatro, Craig passou a refletir
sobre as maneiras de responder à demanda de tornar o espaço um dos eixos conformadores
da arte da encenação, gerando uma proposta estética que colocava em xeque os excessos
historicistas e o decorativismo ilusionista da cenografia de cunho Realista/Naturalista,
realizando uma transição do estatismo para o dinamismo cênico. Suas considerações sobre
o movimento o levaram a criar uma espacialidade em constante mutação por meio do jogo
conjugado entre a iluminação e os volumes móveis. Contemporaneamente a Craig, Adolphe
Appia também dirá que o movimento é algo essencial para o teatro, levando-o a pensar a
cena em função do deslocamento do corpo do ator, e substituir a bidimensionalidade
cenográfica do telão pintado por um cenário que dialogasse com a tridimensionalidade do
corpo humano e com a sua rítmica. Observando as palavras do pesquisador estadunidense
E. T. Kirby para esse processo, podemos perceber como esses questionamentos estavam
atrelados às discussões da época, no campo das artes plásticas, acerca da abstração como
reação à arte figurativa:
Referências:
AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus Duplos: máscaras, bonecos e objetos. São Paulo: Ed.
SENAC, 2002.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Edusp / Perspectiva, 1989.
COSTA, Felisberto Sabino. A Máscara e a Formação do Ator. Revista Móin-Móin,
Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, vol. 1, 2005, p. 25-51.
CRAIG, E. Gordon. Da Arte ao Teatro. Lisboa: Arcádia, 1911.
GRANERO, Maria Victoria V. Machado. A Aventura do Teatro da Bauhaus. Tese de
Doutorado, São Paulo, ECA-USP, 1995.
IRAZÁBAL, Federico. Francisco Javier: la renovación de la escena argentina está
alojada em las pequeñas salas. Cuadernos de Picadero, año 2, no 4, diciembre
2004, Instituto Nacional del Teatro, Buenos Aires, p. 4-11.
JAVIER, Francisco. El Espacio Escénico como Sistema Significante. Buenos Aires: Ed.
Leviatán, 1998.
KIRBY, E. T. The Mask: abstract theatre, primitive and modern. The Drama Review
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Senac São Paulo / Ed. SESC SP, 2010.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
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SCHLEMMER, Oskar. Man and Art Figure, in: GROPIUS, Walter (ed.). The Theater of
the Bauhaus. London: Eyre Methuen Ltd., 1961, p. 17-46.
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sistema pessoal de atuação. Dissertação de Mestrado, São Paulo, ECA-USP, 2008.
WINGLER, Hans. The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. Cambridge,
Massachusetts and London: MIT Press, 1981.
Notas:
1
Esta pesquisa tem o apoio da agência de fomento CAPES/CNPq.
2
Apesar de não ter sido levada adiante como pesquisa de mestrado, essas questões ganharam certo aprofundamento no
artigo: SILVA, Ipojucan Pereira . Corpo/Objeto: o “mascaramento” na cena contemporânea brasileira. Revista Móin-
Móin (UDESC), ano 6, v. 07, 2010, p. 14-26.
3
Para Renato Cohen, em Performace como linguagem: criação de um tempo – espaço de experimentação (São Paulo:
Edusp / Perspectiva, 1989, p. 103), a persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico, e a personagem diz respeito a
algo mais referencial. Segundo ele, o trabalho com a persona se dá geralmente pela forma, de fora para dentro, a partir da
postura, da energia.
4
[...] al realizar sus acciones, el actor genera una energia espacial que va dando forma al espacio escénico, [...]
5
[...] from Gordon Craig (and Neo-Romanticism) through the futurists, Dada, the work of the Russian formalists, the
Expressionists, the Surrealists, the Bauhaus, and so on, [...]We perceive ever more clearly in this work an underlying
intention: the creation of an abstract theatre. Its symbol, and that which clearly represents its function and aesthetics, is the
mask – or the masked actor whom Craig called the Übermarionette.
6
“[...] man and transformed back into nature or the imitation of nature [...] in the theater of illusionistic realism”.
7
A estereometria, ou geometria do espaço, é um ramo da matemática que estuda o volume dos sólidos geométricos e que
nos auxilia na medição do mundo tridimensional que nos rodeia. A planimetria é a representação em um plano de algum
espaço tridimensional; os pontos medidos são projetados sobre uma superfície horizontal.
8
Coordenado pelos professores Dr. Armando Sérgio da Silva e Dr. Eduardo Coutinho, o objetivo principal do CEPECA é
reunir, em grupo de estudos práticos sobre interpretação, professores, alunos de pós-graduação e interessados na área.
Visando a resultados perceptíveis em trabalhos práticos e espetáculos, caminham juntos os aspectos acadêmicos e
criativos, ou seja, professor e alunos se obrigam e se comprometem com os resultados estéticos, a partir de suas escolhas
metodológicas.
9
A partir de cursos ministrados aos alunos de arquitetura da Escola de Belas Artes de Paris (Ecole Nationale Supérieure
des Beaux-Arts), Jacques Lecoq criou, em 1976, o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM), um departamento de
artes plásticas e cenografia experimental da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq. O departamento é consagrado
ao estudo dinâmico do espaço e dos ritmos através da representação plástica, com aulas de movimento, de construção e de
desenho, envolvendo os domínios da arquitetura, do design e da cenografia. Junto ao arquiteto Krikor Belekhian, Lecoq
esteve à frente da direção do LEM até o ano de 2011, quando foi substituído por sua filha, arquiteta e cenógrafa Pascale
Lecoq. Apesar da sua autonomia, a proposta pedagógica do LEM não está desvinculada da Escola Internacional de Teatro
Jacques Lecoq, o que resulta em atividades que dialogam e interagem com a pedagogia da escola.
10
“[...] movement work [...] and [...] creative work that entails the building - and subsequent 'animation' - of structures
which seek to capture, express and bring to life the qualities of the movements explored hitherto.”
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
O conceito de unipersonal surge no contexto teatral argentino das últimas três décadas
e embora seja amplamente utilizado naquele país, aparece ainda timidamente no Brasil. A
dificuldade em se definir o que é um unipersonal para nós, brasileiros, advém de dois
problemas fundamentais, sobre os quais discorro a seguir.
O primeiro está ligado à ressignificação da palavra que é gerada pela tradução do
conceito. Seu correspondente em língua portuguesa - unipessoal - conduz a interpretações e
relações dissociadas do universo teatral.
O segundo problema se deve ao fato de a definição do unipersonal confundir-se com
outras modalidades criativas, com as quais compartilha algumas características. A aparente
ideia de semelhança entre essas formas espetaculares leva a uma generalização que conduz a
equívocos.
Na tentativa de elucidar essas questões, me proponho a investigar o conceito de
unipersonal, considerando, para tanto, as ressignificações que ele adquire a partir de sua
tradução cultural. Realizarei uma análise desde uma perspectiva da etimologia e genealogia
do termo. Também abordo neste artigo o unipersonal a partir de uma perspectiva filosófica,
recorrendo aos conceitos de aporia, de Derrida e antinomia, de Kant.
A palavra unipersonal tem origem no latim: o prefixo uni vem de unos e significa um
e o sufixo personal, vem de personális e significa pessoa. Assim, semanticamente, reunindo
esses dois verbetes, chegaríamos à conclusão de que unipersonal designa algo que é relativo,
correspondente ou pertencente a uma única pessoa. Essa definição é apropriada para nomear
a criação cênica cuja concepção, criação e execução é correspondente a um só indivíduo.
Porém, se aprofundamos a questão, teríamos também a associação aos significados de
uni relacionados a união/universalidade, o que nos leva a uma compreensão inteiramente
oposta, ligada à totalidade, à integração, ao globalizante e ao coletivo. Esse entendimento até
teria alguma relação com o unipersonal se o pensarmos de forma poética, como a
aproximação, o encontro entre os universos do ator e do espectador.
Em nosso idioma, em geral emprega-se a tradução literal de unipersonal, unipessoal,
para referir-se a instâncias, operações e organizações jurídicas formadas por uma só pessoa,
tais como sociedade unipessoal, empresa unipessoal, contrato unipessoal.
Utiliza-se ainda o unipessoal como classificação de verbos que possuem sujeito em
uma única pessoa do discurso – a saber: 3ª pessoa do singular (ele/ela) e do plural (eles/elas).
São os casos, para citar exemplos, dos verbos doer, aprazer, e também daqueles que
exprimem ações ou estados relativos às vozes de animais: latir, miar, ladrar, relinchar, rosnar,
mugir, etc.
Percebemos, portanto, que essas noções de unipessoal escapam completamente ao
contexto cênico. Como vimos, em teatro, a referência ao conceito de unipersonal surge na
Argentina, com mais ênfase dos anos 80 em diante. Essa modalidade aparece, portanto, no
período pós-ditadura, e pode ser percebida como uma necessidade de afirmação da identidade
perdida durante os anos de repressão e como uma busca por uma autoralidade que responda
aos desejos pessoais. A forma cênica unipersonal teve, ao menos em seus primórdios, uma
tradição política.
Nos deparamos, nesse estudo, com a incapacidade discursiva da exatidão e precisão,
uma vez que a linguagem, e em nosso caso uma mesma palavra, produz uma multiplicidade
de significados e faz referência a uma diversidade de fenômenos.
Devido a utilização corrente da palavra em português, com outras acepções diversas
daquela que me interessa, opto pela não tradução literal do termo, e adoto a concepção que
Peter Burke chama de tradução cultural e que vai evidenciar os limites da tradutibilidade.
Para esse pesquisador, a operação de tradução deve ser entendida em um contexto amplo
como sendo o processo interpretativo de entendimento de objetos estrangeiros, um esforço
significativo de encontro entre duas culturas (BURKE, 2009).
Diante do impasse terminológico e a fim de promover uma confluência entre as
culturas brasileira e argentina, procuro abordar outras formas de definição do unipersonal,
que possam esclarecê-lo, senão completamente, ao menos parcialmente. Busco me aproximar
de uma elucidação sobre a que estou me referindo quando utilizo o conceito de unipersonal.
Em virtude das dificuldades apresentadas para definição e utilização do termo
unipersonal no Brasil, proponho uma abordagem filosófica do conceito.
O filósofo francês Jacques Derrida sugere a desconstrução dos conceitos a fim de
demonstrar que o sentido está no domínio do indeterminado. Ele define este tipo de análise
como aporia. Uma investigação aporética pressupõe a definição de um tema central a partir
da refutação de todas as tentativas de definição. Este é um dos procedimentos que tento
realizar com o unipersonal: defini-lo a partir da via negativa, ou seja, busco explicar o que é
um unipersonal a partir daquilo que ele definitivamente não é.
Um solilóquio, por exemplo, não é um unipersonal. O solilóquio é um tipo de
monólogo. O monólogo, embora também seja interpretado por uma só pessoa, não é
sinônimo de unipersonal. Segundo Pavis (2005), o monólogo se caracteriza por ser a
expressão de um só personagem, que em cena não está acompanhado por ninguém e que
elabora um discurso para si mesmo, para um interlocutor imaginário ou para o público. Pode
ser a expressão de seus sentimentos e/ou pensamentos em voz alta, e, nesse caso, o
chamamos de solilóquio. Pode, ainda, ser o anúncio, para o público, de um acontecimento
que está por vir ou comentário sobre outro personagem ou situação que acontece na peça.
Nesse caso, que chamamos de aparte, fica evidente a busca do estabelecimento de
cumplicidade com a plateia.
Nerina Dip (2002), em sua dissertação de mestrado, expõe outras formas cênicas que
podem confundir-se com o unipersonal. Abaixo listo algumas delas:
One-man/one-woman show: forma espetacular que teve origem no music hall, e na
qual um personagem apresenta esquetes, canções, danças e imitações;
Recital: apresentação de um músico ou bailarino que interpreta textos teatrais ou
poemas;
Solo: modalidade cênica que se refere a criações realizadas por um só interprete,
utilizado em outras áreas além do teatro, como na dança, no circo e na música.
Stand up comedy: espetáculo no qual um comediante, geralmente sozinho, se dirige
diretamente ao público, rompendo a quarta parede, com narrativas que tem objetivo
de serem engraçadas.
Mas a pergunta persiste: o que diferencia esses formatos do unipersonal? Talvez o
mais apropriado seria afirmar que a única coisa em que se assemelham a ele é o fato de serem
representados por um único ator/atriz.
Ao contrário do monólogo, do recital, do solo e do one man/woman show, o
unipersonal é composto por uma dupla enunciação: que contempla monólogos, numa relação
lírica ou épica, mas que também apresenta diálogos entre personagens interpretados pelo
mesmo ator e que comunicam-se entre si. No unipersonal, portanto, o ator não apenas unifica
as funções narrativa e representativa, como também interpreta diversos personagens.
Quanto ao stand up, que também emprega as duas estratégias discursivas (monólogo e
diálogo), a diferença em relação ao unipersonal se dá pela temática e pelos objetivos. O stand
up comedy obrigatoriamente pertence ao gênero cômico, trata de temas humorísticos e tem o
intuito de entreter o público. Assim, podemos dizer que um stand up pode ser um
unipersonal, mas um unipersonal não necessariamente será um stand up.
Uma outra característica importante do unipersonal, que nos auxilia a diferenciá-lo
dos outros formatos teatrais, é apontada Nerina Dip. De acordo com a pesquisadora, o
unipersonal procura expor, de forma exarcebada, a condição de solidão do ser humano na
contemporaneidade, tanto na sua forma como no signo, assumindo, portanto, uma dimensão
crítica em relação a esse estar só na sociedade (DIP, 2005).
Todos esses aspectos que mencionei até agora são importantes para a compreensão do
unipersonal, mas talvez o que realmente o fundamente seja a dimensão política que ele
pressupõe.
No unipersonal o intérprete não apenas está só em cena. Existe um poder simbólico
no encontro do público com a visão pessoal do artista que assume todos os riscos do processo
criativo e interpretativo. O unipersonal responde a uma necessidade de expressão artística
suscitada por contextos políticos, sociais, econômicos e pessoais. Dessa maneira o ator,
diante de uma situação insatisfatória, rompe o abismo do silêncio e expressa sua
subjetividade – na voz, no corpo e na cena. Isso talvez explique o aparecimento de traços
autobiográficos em muitas das criações unipersonais.
Conforme Beatriz Trastoy, ao longo da história, os unipersonais foram empregados
como ferramenta de trabalho por setores marginalizados, em confronto com os discursos
dominantes. Este é o caso dos grupos sociais minoritários, como o dos travestis, das
feministas e dos anarquistas (TRASTOY, 2002). A pesquisadora aponta que ainda que não
tenham sido realizados estudos aprofundados a respeito do caráter político do unipersonal, é
impossível considerá-lo alheio às estruturas institucionais e sociais atuais. Ela afirma que
embora as estratégias e formas de encenação tenham se modificado ao longo dos anos, o
aspecto político não deixou de estar presente nos espetáculos teatrais (TRASTOY, 2009).
Essa parece ser uma perspectiva interessante para a compreensão da função política no teatro,
em específico no caso dos unipersonais.
A respeito do caráter político do ato teatral, Javier Daulte sugere a existência de uma
nova “responsabilidade do teatro”. Para ele, após o fim do governo militar, do terrorismo de
estado e da censura, há nas artes uma mudança de eixo político do discurso para o ato
libertário criativo. Conforme esse autor, com o reestabelecimento da democracia, o teatro
recupera sua especificidade, sua própria linguagem, que está relacionada ao estado de jogo
(DAULTE, 2014). Em consonância com o pensamento desse dramaturgo e diretor argentino,
podemos compreender a dimensão política do unipersonal como sendo o próprio jogo que ele
instaura a partir de sua forma.
Com relação às características dessa modalidade cênica e fazendo referência à teoria
semiótica de Tadeusz Kowzan, María Victoria Fornoni afirma que no unipersonal, os signos
teatrais que pertencem ao ator (palavra, entonação, expressão facial, gestual, movimentação
cênica, maquiagem, penteado e figurino) ocupam o primeiro plano na encenação, enquanto
que os signos externos a ele (acessórios, cenário, iluminação, música e som) adquirem uma
função direta com o ator e objetivam direcionar o olhar do espectador para aquele. Outro
traço desta modalidade cênica que a figurinista argentina destaca é a teatralidade que,
segundo ela, é acentuada pela nova relação que se estabelece entre ator e espectador. No
unipersonal a convenção de palco e plateia é interrompida. Essa mudança é atribuída por ela
não somente à nova configuração de cena, que ocorre com a apresentação de unipersonais em
espaços não convencionais - frequentemente locais pequenos e ambientes mais intimistas -
como também ao próprio jogo entre ilusão e verossimilhança, existente neste tipo de
espetáculo (FORNONI, 2014).
Este jogo entre real e ficcional está diretamente relacionado às instâncias de
enunciação, uma vez que no unipersonal se alternam e se imbricam as vozes do narrador, do
personagem e do próprio ator, mesclando relatos e representações ficcionais a acontecimentos
reais e por vezes autobiográficos. Podemos apontar a presença de matrizes biográficas nos
espetáculos unipersonais, como sendo outro traço marcante que os diferencia das demais
formas cênicas realizadas por um único intérprete.
Se por um lado, como vimos, há algumas premissas básicas para que um espetáculo
seja considerado unipersonal, por outro, esta modalidade cênica pode abarcar uma enorme
gama de gêneros e estilos teatrais, que vão desde o teatro de pesquisa ao teatro comercial.
Atualmente, o termo unipersonal é aplicado genericamente para fazer referência a
diversos tipos de espetáculos. Tornou-se comum o seu emprego, nas programações e críticas
jornalísticas, com menção a encenações individuais, cujas funções de dramaturgia e direção
de cena nem sempre coincidem e, muitas vezes, não são desempenhadas pelo mesmo artista
que realiza o espetáculo. Com isso, o unipersonal perdeu a dimensão política e o caráter
autoral que originalmente possuía e que em certa medida justificava o emprego desta nova
nomenclatura em contraponto ao já conhecido monólogo.
Beatriz Trastoy (2002) aponta dois principais motivos para a proliferação massiva
deste tipo de espetáculo na programação teatral argentina: o primeiro deles, relacionado a
fatores econômicos, diz respeito aos reduzidos custos e sua consequente facilidade de
produção e realização. O segundo, ligado a questões estéticas, é atribuído ao alto grau de
exposição e expressão individual que o unipersonal propicia.
Gostaria de propor ainda uma reflexão a partir de uma análise antinômica kantiana. A
antinomia propõe uma abordagem dos fenômenos a partir das contradições. Baseados nessa
perspectiva filosófica, poderíamos tentar entender o surgimento do unipersonal em oposição
ao chamado teatro de grupo e às demais composições cênicas coletivas: companhias, elencos
e associações.
As criações coletivas têm sua expressão máxima nos anos 60/70, época imediatamente
anterior à ascensão do unipersonal, e surgem em contextos ditatoriais como uma resposta à
repressão e ao pensamento autoritário vigente. De acordo com Luís Alberto de Abreu, são
percebidas como uma possibilidade de organização compartilhada com ampla participação e
mútua interferência de todos os integrantes do grupo na elaboração de um espetáculo
(ABREU, 2003).
Assim como a conjuntura social externa interferiu diretamente na forma de expressão
artística durante os governos ditatórias latino-americanos, podemos supor que a sociedade
contemporânea também exerce influência nas realizações criativas atuais.
Pode parecer paradoxal pensar uma obra teatral, prática artística coletiva por
excelência, sendo produzida por um único indivíduo. Contudo, se verificamos as
circunstâncias do surgimento do unipersonal, em nossa sociedade pós-moderna e em um
contexto de valorização da padronização e da uniformidade, essa expressão subjetiva pode
ser percebida como uma forma de resistência e ruptura com um modelo hegemônico, uma
possibilidade de unir pessoas.
BIBLIOGRAFIA
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Cadernos da Escola Livre de Teatro de Santo André. Santo André, ano I, n. 0, março de 2003. p.
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BURKE, Peter; HSIA, Ronnie Po-chia (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa
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DAULTE, Javier. Juego y Compromiso: responsabilidad y libertad. Revista Conjunto. Cuba, v. 140,
n.1, maio de 2006. Disponível em:
<http://www.casa.cult.cu/publicaciones/revistaconjunto/140/dualte.htm>. Acesso em: 20 jun 2014.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução: Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
_____. Teatro autobiográfico: los unipersonales de los 80 y 90 en la escena argentina. Buenos Aires:
Nueva Generación, 2002.
TEMA: ESPAÇOS DE PEDAGOGIA E FORMAÇÃO
Kysy Amarante Fischer (Bolsa CAPES – mestrado); Orientadora: Prof ª Dra. Maria Brígida
de Miranda; Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)i.
Resumo:
Neste trabalho busco uma reflexão sobre o papel do mestre no Butoh, arte do corpo que não
possui uma definição fechada e única. Para esta análise, utilizo noção de “mestre ignorante”
apresentada por Jacques Rancière e a discussão sobre dialogismo dos comentadores de
Mikhail Bakhtin. O objetivo desta pesquisa foi promover uma discussão acerca do ensino no
Butoh como impossibilidade que gera novos caminhos para pensar treinamento.
Abstract:
In this work I pursue a reflection on de master’s role in Butoh, art of the body that doesn’t
have a closed and unique definition. For this analysis, I use the notion of the ignorant
schoolmaster that is presented by Jacques Rancière and the discussion about dialogism from
Mikhail Bakhtin´s commentators. The aim of this investigation was to promote a discussion
concerning the teaching in Butoh as an impossibility that brings new paths to conceive the
training.
nada tem a ensinar, no que se refere à análise intelectual, nem impõe qualquer
conjunto de doutrinas a seus seguidores. Nesse sentido o Zen é caótico. Seus adeptos
podem formular conjuntos de doutrina, formulando-as, porém, por sua conta e para
benefício próprio e não do Zen (SCOFANO, 2007, p.109).
O que o aluno aprende não é necessariamente o que o outro sabe, ele pode inclusive
aprender o que o mestre não sabe. Vejo que no Butoh se caminha por essa via quando se trata
do “ensino”. Assim como Jacotot afirmava que “é preciso que eu lhes ensine que nada tenho a
ensinar-lhes” (JACOTOT apud RANCIÈRE, 2002, p. 27), em Campinas, Tadashi Endo nos
disse que não havia aprendido Butoh com Kazuo Ohno e que tampouco nos ensinaria Butoh,
visto que não se trata de dança, mas sim de uma escolha de vida. Ou seja, ser um dançarino e
ser um butoísta são coisas diferentes. É preciso viver o Butoh. É preciso caminhar sozinho.
Sendo assim, é impossível definir quando começa e quando termina o aprendizado em Butoh.
É preciso abrir a percepção para a vida e encontrar nela o Butoh, a poesia ou a própria vida.
No livro Kazuo Ohno: el último emperador de la danza, Gustavo Collini Sartor diz que:
Uma lição de Kazuo Ohno não é uma lição normal. Quando começa? Talvez quando
tomamos o trem de Tóquio até Yokohama? Quando nos sentamos no seu estúdio, ao
redor da mesa, tomando uma xícara de chá e o escutando antes de trabalhar?
(SARTOR, 1995, p.123).
No caso do mestre ignorante e no caso do Butoh, o mestre ocupa o lugar de verificar
se o aluno está engajado em sua busca. Deste modo, o percurso lógico de uma proposta de
treinamento pode não ser claro. Por vezes uma proposta de experiência traz consigo uma
tentativa de criar espaços de vida. Isso me remete à quando, no meio do workshop O visível e
o invisível no trabalho do ator-dançarno, Tadashi e Simioniiv nos convidaram para passar um
dia na casa do segundo e nos propuseram uma série de ações. Nos dividimos em equipes.
Alguns fariam diferentes molhos, outros fariam a salada e outros ainda a sobremesa, os
mestres fariam macarrão. Pela manhã, nos encontramos para comprar ingredientes, esperar
algum colega que se atrasa ou se perde. Quando chegamos na casa, estivemos conversando e
esperando que algo acontecesse. Quando fomos cozinhar a instrução que recebemos foi que
não poderíamos falar uns com os outros. Imediatamente nossas teimosias começaram a
aparecer na feitura do molho. Nossos entendimentos pelo olhar também. As ações simples
envolvidas no cozinhar, exigiam de nós a mobilização de nossas sensibilidades. Enquanto
isso, os dois proponentes passavam por nós, observavam e davam algumas risadinhas.
Uma outra ação proposta foi a de que cada um tomasse a iniciativa de cantar uma
canção de sua infância enquanto os demais se manteriam em silêncio. Toda a casa se
envolveu numa nuvem de ternura e saudade, parecendo que o silêncio cantado era mais
silencioso. Quando uma linda mesa estava arrumada fomos convidados a procurar o envelope
de hashi que nos pertencia pois o nosso nome estava escrito lá, em japonês. Quando cada um
estava com o seu envelope, Tadashi foi passando e reorganizando a distribuição dos hashis, se
divertindo como os nossos enganos. Comer aquela comida estava envolvido por tudo o que
sentimos enquanto cozinhávamos. Conversamos muito, contamos nossas histórias do Brasil,
Colômbia, Equador, Dinamarca, Espanha.
Nessas duas propostas de ações fomos levados a nos encontrar conosco mesmos de
diferentes maneiras, e diferentes “nós mesmos”. Estas propostas não contêm em si, nenhuma
relação direta com a dança. É um treinamento do sensível, da relação e do invisível. A partir
dessa experiência em Campinas, penso que o mestre deixa, com suas ações, espaços vazios
que os discípulos devem preencher. Por exemplo, vivendo o que me é proposto, posso me
questionar sobre o que o mestre quer de mim, o que está pensando sobre mim ou sobre como
eu danço. Este trabalho de preencher esta falta é também falho em muitos sentidos, o que
produz uma busca constante. A busca de quem faz Butoh, e os resultados que isso produz,
gera o que pode vir a ser Butoh. Este trabalho é feito conversando sobre o que faz sentido
para a minha dança, é feito quando alguém escreve um artigo sobre Butoh, um poema, ou
quando se tem a coragem de dizer: o que eu faço é Butoh.
O movimento gerado pela dúvida é fértil. Mas para que ocorra criação a partir destas
dúvidas e incertezas é necessário que o sujeito se coloque em uma posição de não saber e de
perseguição deste saber. Por exemplo, uma fala relativamente clara pode ser endereçada a
alguém, e ainda assim, este que recebe essa mensagem produzir questionamentos a partir
disso. Percebo esta postura quando Kazuo Ohno conta que Yukio Mishima sempre dizia “sua
dança é boa”, e Ohno relata que pensava:
Dizer que alguma coisa é boa pode ser interpretado de várias maneiras. O que, na
verdade, ele queria significar com isso? [...] eu pensava comigo mesmo: “Minha
dança é boa, mas o que é bom?” Poderia valer menos que o ruim, então significaria
“o que você faz é ruim”. Isso me deixou pensando durante anos (OHNO, 1995,
p.130).
Portanto, não é apenas o mestre que coloca espaços vazios na sua mensagem, por
vezes é o próprio ouvinte que demanda a busca de mais sentidos naquilo que lhe é oferecido.
E, como afirma Rancière, o querer saber é a condição fundamental para o processo do
conhecer.
REFERÊNCIAS
BAIOCCHI, M. Butoh: dança veredas d’alma. São Paulo: Palas Athena, 1995.
NOTAS:
i
Agência financiadora da pesquisa: CAPES.
ii
O Zen-Budismo surgiu como uma adaptação japonesa do Tch’an (corrente budista chinesa) que chegou ao
Japão no século XII, a pedagogia do Zen manteve a meditação assentada (zazen) e os enigmas verbais (koans).
Segundo Scofano (2007), o Zen não se funda na lógica ou na análise, “ele apenas sugere o caminho. A menos
que consideremos este sugerir como ensinamento, nada há no Zen propositalmente estabelecido como doutrina
primordial ou filosofia fundamental” (SCOFANO, 2007, 109 -110).
iii
Esses embates entre línguas maternas geram matizes de entendimento que se perdem, se recriam e que podem
apontar para algo interessante a ser estudado. Pois no Brasil, o acesso restrito a traduções e aos próprios mestres,
pode gerar uma maneira bastante autônoma de criar pensamento e dança em Butoh.
iv
Carlos Simioni é ator do Lume – núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNICAMP – que em quase
30 anos de existência, estabelece alguns diálogos com o Butoh, principalmente através dos contatos com Anzu
Furukawa, Natsu Nakajima e Tadashi Endo.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
INTRODUÇÃO
Um quarto escuro, um menino doente em uma cama e uma janela por onde
se pode ver o mundo... No quintal, brincam esquilos. Na rua, passam o vendedor de
coalhada, o guarda do pequeno lugarejo, o chefe da guarda, uma menina vendedora de
flores, algumas crianças e também um falso faquir. Nos pensamentos do pequeno
enfermo, montanhas, rios, oceanos, ilhas, aldeias distantes, e histórias fantásticas
ganham forma através da imaginação de quem não pode sair de casa. Estas são algumas
das imagens que nos vêm à mente ao falarmos de O Mensageiro do Rei.
Escrita pelo primeiro não-europeu a conquistar, em 1913, o prêmio Nobel de
Literatura, o poeta e filósofo Rabindranath Tagore, a peça O Mensageiro do Rei (1912)
conta, na perspectiva oriental, a história de Amal. Um menino que, após perder seus
pais, é adotado por seus tios, vivendo sob rígidas ordens médicas, confinado em seu
quarto. Doente, observa os dias passarem através de uma janela frontal a uma casa de
Correios. O lugar no qual, segundo o garoto, chegará uma mensagem enviada a ele pelo
próprio rei, libertando-o para correr mundo afora.
A peça que trata, de maneira lúdica e lírica, a temática da morte e da
liberdade, vem sendo levada à cena por egressos e concluites do curso de graduação em
Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Ficando em cartaz durante os meses de
Maio e Junho de 2014, na cidade de Uberlândia-MG, o espetáculo infantojuvenil ganha
forma através da encenação assinada por Mário Piragibe, lançando mão da linguagem e
dos recursos do Teatro de Formas Animadas (bonecos, objetos, sombras e máscaras)
para abordar as questões filosóficas que se fazem presentes na trama mensionada.
Neste sentido, o texto de Tagore torna-se apenas um pretexto para a
montagem em questão. A encenação, construída com base na representação metafórica
do desejo de Amal: curar-se e correr todo o mundo, insere na área de atuação um par de
sapatos inertes, os quais o menino poderá calçar, um dia, quando livre de sua
enfermidade. Uma alusão à liberdade que a morte pode simbolizar. Liberdade que
permitiria a Amal romper com espaço da casa que o aprisiona, e conhecer os lugares dos
quais apenas ouvira falar, desenhados em seu pensamento.
Com o objetivo de compartilhar algumas reflexões sobre o espetáculo citado
acima, foco da pesquisa de mestrado “A linguagem cênica no Teatro Infantojuvenil: O
Mensageiro do Rei como objeto de análise” (PPGA – UFU), neste breve artigo,
falaremos sobre a presença dos diferentes espaços na montagem em questão. Ou seja,
tal como nos apresenta Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro (2008, p. 132): o
espaço dramático – “espaço dramatúrgico e ficcional, no qual o texto indica ocorrer a
ação dramática” - , e o espaço cênico – “espaço concreto que se configura como área de
atuação dos atores”. E, ainda, aquele evocado pelas falas dos personagens, e que não
pode ser caracterizado como dramático ou cênico, que aqui chamaremos de espaço
imaginativo.
O ESPAÇO DRAMÁTICO
Ao nos depararmos com o texto O Mensageiro do Rei, podemos perceber a
existência de diferentes espaços nos quais a ação dramática se desenrola. Na
dramaturgia em questão, constituída por três atos, em um primeiro momento, temos a
ambientação dos acontecimentos no interior da casa dos tios de Amal. Já em um
segundo momento, - ou segundo ato - , o espaço externo à casa, provavelmente uma rua
vista pelo menino através da janela de seu quarto, serve como pano de fundo para a
história. E, no terceiro ato, novamente, a trama volta a acontecer no interior da casa,
agora, especificamente, no quarto de Amal.
Logo na primeira cena do texto de Tagore, ao sermos apresentados ao
conflito da peça: a doença de Amal, através da figura do Doutor que vem examinar o
menino, proibindo-o de sair ao ar livre, podemos levantar algumas informações sobre o
espaço. Estas, em colaboração com os indícios extraídos das falas da segunda e da
terceira cena, ajudam-nos a entender o contexto no qual a criança está inserida. Amal
vive em um pequeno vilarejo indiano, na casa de seus tios, enclausurado em seu quarto,
sob prescrições médicas. O ano dos acontecimentos não é apresentado, sendo que por
este motivo, podemos considerar a história atemporal.
Além disso, de acordo com as palavras do Doutor, sabemos que a estação do
ano é o outono (um verdadeiro veneno para a doença do menino). E, como podemos
inferir por meio das falas do velho Takurda, - na segunda cena - , a morada de Amal não
é um ambiente simplório, nem luxuoso. Madhav Dutta, o tio, é um pequeno
comerciante, proprietário de uma casa com um quintal repleto de esquilos. Quintal este
onde sua esposa mói lentilhas, e para o qual, nem ao menos, Amal pode se deslocar.
O segundo ato do texto nos apresenta a rua para onde a janela do quarto de
Amal é direcionada. Neste ambiente público, pessoas vem e vão preocupadas com seu
cotidiano. E são justamente estas pessoas, – tais como o vendedor de coalhada, o guarda
do vilarejo, o chefe da guarda, a menina florista, e alguns meninos que brincam na
calçada - , que Amal cumprimenta, estabelecendo uma relação de amizade.
Um dos personagens citados acima adquire importância impar, neste ato, ao
nos referirmos ao espaço, redimensionando a concepção de Amal quanto à rua. Trata-se
do guarda, o responsável por desfazer a curiosidade do garoto quanto o que seria a
enorme casa com uma bandeira no alto, fronteira a sua janela. Ele dirá a Amal ser a
nova casa de Correios, um empreendimento do rei. E, também, que um dia chegará ali
uma carta do próprio rei destinada ao garoto. Uma carta que será entregue pelos
mensageiros do rei: homens que correm de um lado para o outro, com insígnias
douradas em seus peitos.
Ainda com relação ao segundo ato, a rua e seus transeuntes assumem um
caráter afetivo para o menino, através da amizade travada com as crianças que brincam
em sua calçada, e com a florista Shudha. No primeiro caso, Amal se reconhece como
toda criança de sua idade, que não vê o tempo passar ao brincar, quando acompanhado
de outras crianças, livre da solidão imposta por sua doença. Já no segundo caso, o
garoto começa a nutrir um sentimento amoroso, próprio do primeiro amor da infância,
pela pequena vendedora de flores, a única personagem feminina que aparece em cena
durante toda a peça.
O terceiro ato do texto do qual estamos falando, retoma o espaço fechado da
casa de Madhav. Contudo, agora, ao invés de uma possível sala de visitas, em que
ocorrem as três primeiras cenas, que juntas constituem o primeiro ato da peça, o
ambiente no qual a ação dramática se desenvolve é o interior do quarto do menino.
Amal está em sua cama, proibido pelo Doutor de permanecer na janela, sob o pretexto
de que ficar ali piora ainda mais a sua doença.
Neste contexto, em que a doença de Amal configura-se como exacerbada,
algumas visitas se fazem presentes nos últimos momentos de vida do garoto,
imprimindo ao espaço ternura e tensão. São elas: a de Takurda, fantasiado de faquir, a
do Doutor para seus exames periódicos, e a do chefe da guarda, que tendo conhecido o
menino no segundo ato, acha uma afronta a ideia do mesmo de esperar uma carta do rei,
e resolve, por maldade, levar uma falsa carta a Amal, afim de zombar de Madhav, com
quem teve desavenças no passado.
No entanto, uma pancada é dada na porta de entrada da casa dos Dutta, e
pedidos de “abram a porta” são escutados, calando todos os visitantes. A porta da casa é
derrubada, e com a penetração de um feixe de luz advindo da rua do pequeno lugarejo,
veem-se duas figuras sobrenaturais. O arauto e o médico do rei visitam Amal, pedindo
para que todas as portas e janelas da casa sejam abertas. A casa sofre, assim, um
processo de metamorfose. De gaiola que aprisiona Amal, agora, passa a ser leito do
corpo que jaz, ao mesmo tempo em que o menino liberto de sua dimensão material, o
corpo, ganha asas e corre o mundo.
O ESPAÇO CÊNICO
...no contexto do teatro infantil está o que eu chamo de “área de jogo” do ator
ou espaço cenográfico lúdico. A cenografia nesse caso existe para colocar o
jogo teatral num contexto simbólico que organiza o olhar do espectador. Um
cenário que expressa uma “concepção visual”, uma intenção plástica ao
articular imagens, cores e formas, para organizar o olhar do espectador,
provocar sensações e sensibilizar o olhar da criança, um cenário que serve
também de apoio espacial e temporal para o ator se manifestar. Esse ambiente
deveria permitir articulações lúdicas, transformações, jogos e possibilidades
de movimentação para os atores e para os desenhos de direção. (GABRIELI,
2003, p. 77)
O ESPAÇO IMAGINATIVO
Para falarmos sobre a existência do(s) espaço(s) evocado(s) pelas falas dos
personagens, e que não pode(m) ser caracterizado(s) como dramático ou cênico: o(s)
espaço(s) imaginativo(s), utilizaremos como exemplo uma das cenas do terceiro ato de
O Mensageiro do Rei. Esta é caracterizada pelo diálogo entre o pequeno Amal
(interpretado por Renata Sanchez) e o velho Takurda (personagem de Lucas Larcher).
Entre outros assuntos, os dois conversam sobre as viagens a lugares fantásticos
realizadas pelo falso faquir, e de como o garoto imagina os mensageiros do rei que
trarão a carta que ele tanto aguarda.
Na descrição realizada por Amal, o menino diz a seu senhoril amigo que vê
diante de seus olhos um mensageiro do rei atravessando colinas com uma lanterna na
mão e uma sacola de cartas às costas. Mesmo sabendo ser fruto de sua imaginação essa
imagem, Amal descreve todo o caminho trilhado pelo funcionário real para finalmente
chegar à casa de seus tios, e entregar-lhe a mensagem escrita pelo rei. Um campo de
milho, uma cachoeira, um canavial, barulhos de grilos, e aves balançando as caldas
formam a imagem sinestésica descrita pelo garoto.
Já o velho Takurda, fantasiado de faquir, conta a Amal histórias de suas
viagens, que segundo ele, não dependem de gastos, nem econômicos, nem temporais.
Suas incursões por lugares distantes são realizadas por meio de seu pensamento,
frisando a importância da dimensão não-material do ser humano. Takurda diz que
acabara de chegar das Ilha dos Papagaios, um lugar fantástico, onde só vivem os
pássaros, sem qualquer ser humano por perto. Nesta ilha, ninguém fala e ninguém anda,
todos apenas cantam e voam.
Ainda com relação a Ilha, o falso faquir diz a Amal que esta porção
delimitado de espaço físico-imaginativo é coberta por colinas, nas quais a grama parece
brilhar feito ouro. E, também, é cercada por uma água clara, feito diamante derretido,
que escorre até alcançar o oceano... Sendo que ninguém, nem mesmo um doutor (alusão
ao Doutor que cuida de Amal) poderá fazê-la parar por um segundo que seja.
Podemos aproximar Takurda, desta maneira, da figura de um contador de
histórias, ou de um narrador que verbaliza suas experiências (ficcionais, ou não),
compartilhando-as com Amal. Walter Benjamin em seu famoso artigo O narrador,
oferece-nos subsídios para o entendimento desta figura. Para o autor, podemos dividir
ou classificar os narradores segundo dois grupos que se interpenetram: os nômades, ou
seja, os narradores que vem de longe, partindo da premissa de que “quem viaja tem
muito que contar”; e os sedentários, que correspondem ao homem que ganhou sua vida
honestamente sem sair de seu país, e que conhece suas histórias e tradições. Nas
palavras do autor:
Deste modo, sendo o narrador alguém que tem algo da tradição ou de terras
distantes a ser contado, sua relação com os ouvintes é dominada pelo interesse destes
em apreender aquilo que é narrado, tal como acontece quando Amal escuta Takurda,
formulando em seu pensamento imagens dos lugares que não conhece, já que não pode
sair de casa. Por isso, podemos dizer que a cada narrativa de Takurda, Amal imagina
uma nova história, repleta de novas imagens, acrescendo à narrativa sua própria
experiência visual, ou ainda, seu espaço imaginativo.
ESTADO DE JOGO:
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO CORPO NA BUSCA DO ATRITO
Lucas Heymanns (CNPQ – PIBIC; Iniciação Científica); Orientador: André Carreira; CEART;
UDESC.
Creio que tal unidade de fundo pode ser ressaltada imediatamente em toda sua
evidência se reformularmos e definirmos o tema desta investigação do século XX
em uma pergunta: como (o quê) fazer para que a ação na cena seja real (quer dizer,
obviamente não realística senão eficaz, crível, sincera, segundo os distintos léxicos
que encontraremos). (DE MARINIS, 2005:47)
Perspectivas históricas
Nos escritos de Stanislavski é evidente a busca por uma atuação orgânica, onde ação,
pensamento e sentimento estivessem juntos. O ator e diretor russo usava-se constantemente da
metáfora interno – externo: a ação externa, a forma, deveria ser preenchida, animada pelo processo
interior, a vivência. Em um primeiro momento de suas investigações, Stanislavski apostou em
procedimentos interiores como forma de preencher e justificar as ações da personagem, através de
técnicas que ficaram muito conhecidas tais como o pensamento em ação, o se mágico, a memória
emotiva. À grosso modo, tais procedimentos consistiam em buscar uma justificação interna para as
ações que deveriam ser realizadas, partindo de lembranças, pensamentos, intenções, sub-texto. É
mais para o fim de sua vida que Stanislavski desloca o foco desses procedimentos mais
explicitamente mentais para o corpo através das ações físicas. Porém, antes de nos aprofundarmos
na questão da ação física, é importante deixar claro que essa mudança de foco representa uma
mudança de ponto de partida que visa no entanto a mesma união entre dimensão interior e exterior
da ação, como atesta essa sua declaração:
(…) A relação entre corpo e alma é indivisível. Da vida do corpo nasce a vida da
alma e vice-versa. Em toda ação física que não seja puramente mecânica e sim
animada desde o interior, se encontra a ação interna; quer dizer, a vivência. Dessa
maneira se criam duas plataformas da vida do papel: interna e externa. As duas se
infiltram mutuamente. Seu fim comum as atrai e fixa sua inseparável relação.
(STANISLAVSKI, 1990:259)
Ao viajante não lhe interessa os trilhos e sim o que há do lado de fora ou no interior
do vagão. Viajando em trem vemos sempre novas regiões, recebemos sempre novas
impressões. As vivenciamos, nos conduzem ao êxtase ou nos inspiram tristeza;
comovem e mudam a cada momento o estado de ânimo do viajante e também o
transformam. (STANISLAVSKI, 1990:278)
No trecho que segue, Stanislavski afirma que as tarefas físicas, realizadas com o corpo, são
as mais adequadas para compor os trilhos, já que “o material psíquico não possui propriedades de
constância, se fixa dificultosamente”. (STANISLAVSKI, 1990:278). A metáfora dos trilhos
reverberaria em muitas discussões do trabalho do ator representando a dialética entre precisão e
espontaneidade. Grotowski, alguns anos depois, desenvolveria a partir dos estudos de Stanislavski
um trabalho com ações físicas através de partituras precisas que podem ser vistas como a
radicalização do método das ações físicas, envolvendo um intenso trabalho sobre si mesmo no
sentido de desautomatizar hábitos corporais e livrar-se de bloqueios que impedissem o fluxo de
impulsos e associações desencadeadas pelas ações. As influências das filosofias e práticas orientais
foram também determinantes nesse entendimento de corpo-mente indissociáveis e no
desenvolvimento de técnicas de trabalho sobre si mesmo, a exemplo do yoga e de práticas
meditativas que muito influenciariam a pesquisa teatral do século XX.
Tais influências seriam tema para um longo ensaio. São muitos os exemplos e implicações
da noção de ação eficaz que se desenvolveram desde então, e não cabe aqui citá-los
exaustivamente. O que é de maior importância para nossa abordagem é o crescente deslocamento
da arte do ator como representação de uma personagem e de uma fábula para uma noção de ator-
performer fortemente estruturada na materialidade do corpo e no contato direto entre o ator e
espectador em um mesmo tempo-espaço. Se em Stanislavski as ações físicas ainda eram
direcionadas para a construção de uma personagem coerente com o texto dramático, a tendência das
pesquisas experimentais subsequentes foi explodir cada vez mais a noção fechada de personagem.
E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que
pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do
objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o
procedimento da singularização1 dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de
percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio
de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado" não importa para a arte.
(CHKLOVSKY, 1978)
Considerações Finais
Essa breve exposição pretende evidenciar como estão fundas as raízes que apoiam as
práticas contemporâneas de investigação da arte do ator e dos estudos da performance. O
entendimento do corpomente unificado em detrimento do dualismo de substância entre corpo e
mente pode ser uma das chaves para compreender a crise da representação do teatro contemporâneo
e a busca por um teatro fundado no encontro de corpos e presenças. O teatro que é reivindicado a
partir desse entendimento não é apenas uma recusa à literatura, mas um processo paulatino de
destronamento de um outro teatro pautado por uma comunicação exclusivamente linguística e
logocêntrica, que relegava a segundo plano elementos essenciais e originários do teatro enquanto
expressão humana e forma artística pelo menos desde os primeiros registros do que chamamos de
civilização. Essa mudança acontece de forma lenta e o cenário atual abriga as mais diversas matizes
desse continuum entre representação/ilustração e apresentação/performance – de fato, esses
binômios tendem a ser cada vez menos polos antagônicos de uma mesma linha e imbricam-se nas
novas teorias que surgem.
A recusa da ilustração, referenciada em Chklovski como o ato de percepção prolongada, de
1 No original em russo, ostranenie (остранение). Existe muito debate quanto a tradução do termo, e em diversas
línguas utiliza-se alternativas como estranhamento ou desfamiliarização.
experimentar o devir do objeto, pode nos dizer muito sobre a construção de formas de arte, e no
caso deste artigo, procedimentos de atuação, menos dominadores e fechados em si mesmo. Este
procedimento de singularização dos objetos é conceito que daria forma ao Verfrendungeffect
brechtiniano e tem grande potência em definir a arte em sua função de desnaturalização do
cotidiano, questionamento do hábito.
A ação eficaz, entendida como ação do total engajamento psicofísico do performer, é ainda
hoje uma sedutora ideia da eficácia do teatro e de sua possível função na sociedade atual, marcada
por uma virtualização cada vez mais intensa da experiência cotidiana. A ação física e a unidade
psicofísica engendrada por ela é um dos principais elementos que tem mantido vivo e inquieto uma
importante parte da investigação teatral contemporânea. Os paralelismos entre o trabalho sobre si
proposto por estes grandes pesquisadores do teatro moderno e as pesquisas científicas sobre o
entendimento do corpomente e da relação entre ação-percepção comprovam o potencial do teatro
como forma de arte e conhecimento fundado na práxis e na experiência do próprio corpo. Que é,
afinal, tudo que há.
Referências Bibliográficas
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LASSALLE, Jacques; RIVIÈRE, Jean-Loup. Conversas sobre a formação do ator. São Paulo:
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STANISLAVSKI, Konstantin. El trabajo del actor sobre sí mismo: El trabajo sobre sí mismo en
el proceso creador de la encarnación. La Habana: Ediciones Alarcos, 2009.
STANISLAVSKI, Konstantin. El trabajo del actor sobre sí mismo: El trabajo sobre sí mismo en
el proceso creador de las vivencias. La Habana: Ediciones Alarcos, 2011.
Introdução e Discussão
A pesquisa em questão se pretende à investigação da interface a voz e o sagrado,
para refletir sobre o tema voz/canto, espiritualidade e presença. Entende-se aqui a
espiritualidade como espaço de investigação e trabalho sobre si, conectado ao
alargamento da percepção de si e do mundo, de que fala Grotowski. Na realização do
projeto será feita pesquisa de campo em dois contextos distintos. Um deles é o trabalho
realizado por Cecília Valentim, cuja pedagogia da voz é pensada para cura e
desenvolvimento da expressividade do “ser cantante”. O segundo contexto é o trabalho
feito por Maria Thaís, da companhia Balagan em São Paulo, no recente espetáculo
Recusa, cujo processo criativo abarcou a pesquisa com cantos da tradição indígena.
Propõe-se então, a partir deste texto, à apresentação do projeto de mestrado intitulado
“A voz e o sagrado: radiografias de poéticas do canto em dois contextos” em suas
primeiras reflexões.
O canto e a voz poética sempre estiveram presentes em meu percurso - pois
somos seres cantantes. Ainda que o canto e a voz pareçam corrompidos pela
“profissionalização” e “comercialização” do ser, que delegam a possibilidade de cantar
apenas aos cantores, sabemos que há espaços onde o canto é mantido como prática de
todos e como expressão do ser ligado ao cotidiano e à cultura, um espaço cultivado e
fundamental. Neste sentido acredito que porque a palavra tenha se tornado, em um
contexto amplo, mero “utensílio de barganha” (NOVARINA, 2009), e, porque
parecemos nos distanciar da “voz poderosa”, talvez seja realmente importante propor
uma aproximação de trabalhos que envolvam o canto como experiência, seja na cena ou
fora dela.
Em minha trajetória pessoal reconheço um espaço considerável em que
experimentei a voz e o canto cotidianamente. Na infância em escolas de música e coral,
no teatro através de processos nos quais tomei parte como atriz, e depois no Grupo de
Pesquisa Sobre Práticas e Poéticas Vocais, no qual investigamos desde 2010 o limiar
entre fala e canto e praticamos canções entre os atores do grupo. Neste espaço, temos a
canção como possível disparadora da criação dramatúrgica e da exploração da
potencialidade poética da voz no trabalho do ator.
Em nossa herança indígena, o ser é entendido como corpo-som. Tupã significa
Grande Som, na língua abanhaenga, que originou o tupy. Tu é som e barulho e pan é a
expansão. O humano é considerado Tu-py: flauta- em- pé, ou som- em- pé - “(...) os
antigos afinavam o espírito a partir dos tons essenciais do ser, tons que participam de
todos os seres (o que a civilização reconhece como vogais).” ( JECUPÉ, 1998) . Nós,
que somos este “corpo-som”, colocamos e praticamos ações às vezes a serviço do
desserviço de nós mesmos; e se de um lado nossos ancestrais indígenas cantavam,
nomeavam ou entoavam sons com o intuito de fortalecer-se e conectar-se com o entorno
de uma forma a viver a experiência de integração, hoje são poucos os espaços em que
são mantidos/cultivados processos em que a identidade experimenta uma dissolução
parcial ou imersão no sentimento de comunidade e no exercício de totalidade, conexão
com o “sagrado” .
Recentemente duas experiências se articularam a essa trajetória anterior e
mobilizaram meu interesse pela interface entre voz e espiritualidade, tais experiências
são oriundas de contextos diferentes, e têm como ponto de interseção os canto de
tradições e a ligação com o sagrado ( ainda que de formas diferentes). Interessa-me
justamente os pontos de distinção entre tais contextos e as suas semelhanças:
Cecília Valentim:
Cecília Valentim é cantante, psicoterapeuta e educadora vocal. Especializou-se
em Música Antiga na Inglaterra e Espanha e em Healing Voice (Cura da Voz) e
Overtone Chanting (Canto dos Harmônicos) na Inglaterra. Aproximei-me de seu
trabalho fazendo uma oficina de quatro dias (2012/Jan) e um workshop no Seminário de
Voz II, realizado em Florianópolis (2012/Nov). Neste ano, no processo de escrita do
projeto, participei de outro curso com duração de um mês e também de um círculo de
práticas de cantos de tradições religiosas e mantras conduzido por ela. Esta aproximação
e experiência têm sido muito reveladoras, em parte porque reconheço alguns princípios
em comum trabalhados por nós no Grupo de Práticas e Poéticas Vocais – a imagem de
oposição entre topo da cabeça/céu e base/chão; a voz como corpo, que se propaga ao
contrário da ideia de projeção do som, etc. - e em parte porque me leva a pensar no
recorte canção/voz e espiritualidade movida por uma curiosidade e desejo de
aproximação. No trabalho de Cecília Valentim ela aborda dimensões humanas que se
engajam na prática do cantar, e nas quais ocorre uma alteração
física/psíquica/emocional que aproxima o ser da experiência corpórea-espiritual
Os campos do artístico e do espiritual estão em permanente deslizamento de
modo que é impossível compreender a pesquisa de Grotowski atendo-se apenas a um
desses campos. É justamente na arte que Grotowski vai encontrar a possibilidade de ser
um ‘investigador espiritual’, pois o terreno da arte permaneceria como um espaço de
pesquisa não submetido a correntes religiosas ou de fé. A noção de ‘trabalho sobre si’,
que Grotowski pegou emprestado de Stanislavski, é uma das que ajuda a manter esse
deslizamento arte/ sagrado em ação sem obrigar o pesquisador a optar por um dos
terrenos. Essa noção revela também o grau de ‘investigação’ e de não dogmatismo com
que Grotowski abordou o terreno do ‘espiritual’.( LIMA, 2010)
Maria Thaís:
Maria Thaís é professora da ECA/USP e encenadora da Cia Balagan de Teatro
na cidade de São Paulo. A companhia que dirige tem particular interesse nos cantos de
tradições e investigam este campo em seus trabalhos. A experiência que tive com o seu
trabalho e que me mobilizou, enquanto espectadora, foi a fruição de dois espetáculos da
Companhia Balagan, dirigidos pela encenadora, em que me impressionei com a
sonoridade/musicalidade da cena e em especial o trabalho com cantos da tradição grega
e indígena. Interessou-me investigar o processo de pesquisa do trabalho Recusa, pois a
qualidade da cena apresentada transcendia, para mim, o simples virtuosismo, parecendo
revelar-se como resultado de um mergulho nas potências do canto em conexão com o
campo da espiritualidade.
Metodologia
A investigação pretendida trata-se, nas terminologias, de uma pesquisa empírica,
porque se baseia na experiência e na observação. Foucault (LIMA, 2013) afirmava
que em nossa civilização desde o “momento cartesiano” nos separamos do acesso ao
conhecimento que subentedia uma transformação do ser, o conhecimento desvinculou-
se da ideia de lugar de emergência. Opto então, neste projeto, por uma abordagem
metodológica que me coloca no encontro com o outro e com o que me acontece a partir
dele.
Aquele que descobre o corpo, descobre os corpos no plural (...) Aquele que
descobre seu corpo, para descobri-lo deve descobrir o corpo de um outro. Não como um
estudioso, mas como quem ama. E então ele descobre o corpo de todas as coisas”
(GROTOWSKI,1978 apud LIMA, 2013)
Para a aproximação dos sujeitos escolhidos paras estudo, embasar-me-ei
conceitualmente, como ponto de diálogo, no “olhar fenomenológico” (MERLEAU-
PONTY,1999), buscando despir o olhar de pré-conceitos e julgamentos para encontrar o
outro na sua alteridade. Quanto à metodologia de escrita, dialogo com o conceito de
“descrição densa” (GEERTZ, 1989) que trata o observado não como objeto, incluindo
os sujeitos e suas vozes, e incluindo-se também como sujeito na observação.
Ainda sobre a escrita e o diário de bordo da pesquisa, Sally Ann Ness (1992), em
sua experiência etnográfica sobre as danças balinesas, sugere que seus leitores olhem
para a escrita como processo, ainda em movimento, o que ela chamou de “performative
mode”. A autora diz que está rascunhando uma nova forma de texto, um texto que
fracassa a tentativa comum de brilhar como um produto acabado e polido. Um texto que
diz NÃO ao “documento”; abrindo espaço para novas percepções do trabalho escrito de
etnografia, fazendo conexão entre os seres humanos envolvidos e que retrataria o evento
etnográfico como ocorrências em acontecimento.
Como procedimentos/ações da metodologia pretendo realizar observações
diretas, entrevistas e frequente escrita em diários de bordo conectados à literatura da
pesquisa.
Possíveis perguntas
Referências Bibliografias
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Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica, PUC/SP. São Paulo,
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GESTOS COMO RUÍDOS, ESPACIALIDADE COMO MEIO DE
COMUNICAÇÃO
Resumo:
Este artigo tem por objetivo relatar interesses e descobertas dentro de um
processo de investigação sobre o trabalho do ator. Momentos vividos em uma monitoria
da disciplina Técnicas Vocais I, ministrada pelo Professor Dr° Fernando Aleixo, no
Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Trabalho realizado junto à
aluna Lorenna Karla do Curso de Teatro da UFU, no qual o objetivo fora observar a
disponibilidade natural com a qual a aluna utiliza dos ressonadores e o espaço em prol
da comunicação e do trabalho do ator, trabalho este que fez compreender uma
necessidade real de aprofundamento no universo do surdo. O texto apontará indagações
que estão presentes nesta trajetória de investigação, questões que surgiram ao pensar a
composição vocal, a construção do personagem e a espacialidade no contexto de
pessoas surdas. A apropriação de informações em benefício da pesquisa. O estudo de
pensamento de autores voltado ao fazer teatral, que mesmo sem mencionar a questão da
surdez, certamente é uma forte ferramenta para atingir o objetivo da investigação.
Conhecimentos que serão peça chave para possibilitar a execução de um projeto serão
compartilhados neste texto. Se não para responder, para questionar.
Introdução:
1
Trata-se realização de um projeto de pesquisa, em andamento, que compreende a
voz como extensão do corpo. Relatos de informações contidas em textos de autores que
exploram o fazer teatral em seus estudos. Embora não tenha encontrado ainda, leitura
diretamente direcionada ao trabalho teatral com surdos, no que diz respeito à sonoridade
possível a essas pessoas, ao trabalho vocal, a poetização da fala e o espaço como meio
de comunicação, o objetivo é, por meio deste texto, traçar um paralelo com alguns
autores que embora não falem dos surdos, oferecem material que permite pensar a
questão teatral, corpo, sonoridade, vocalidade, inseridos no universo desses indivíduos
que usam o corpo, a expressão facial e corporal e o espaço como meio de comunicação.
Movimento de mãos e do corpo que contam história, expressões que substituem a voz
falada. Os relatos tratarão de uma apropriação de informações para construir um
caminho traçado em busca de perguntas e respostas, no qual o fazer teatral, além das
ferramentas comuns ao teatro, terá a experiência junto à aluna Lorenna Karla enquanto
da utilização dos ressonadores para auxiliar a emissão sonora possível à aluna, também
como facilitador da comunicação, e ainda contaremos com a LIBRAS (Língua
Brasileira de Sinais) a favor da cena.
Apresentação
2
curso, com relação à utilização dos ressonadores como potencializador de sons, assim a
possibilidade de investigação no que diz respeito à utilização desses ressonadores, do
espaço e ainda o aprendizado da LIBRAS com o contato direto com a aluna surda.
Para melhor compreender essas questões foi preciso ampliar os estudos com
relação à pessoa surda, e assim voltar à atenção para toda e qualquer informação que
pudesse auxiliar de alguma forma. Além das disciplinas obrigatórias seria necessário
participar de palestras ministradas por profissionais do Teatro, encontros com pessoas
surdas e ainda pesquisar sobre a história dos surdos, um pouco de sua trajetória e de
como a LIBRAS chegou à suas vidas, para assim melhor entender o contexto explorado
pelos eles, questões espaciais e corporais, ou seja, locais usados no corpo e no espaço
para expressão, para comunicação.
3
da liberdade no mundo e o lugar onde a humanidade vive o seu
próprio drama sob a máscara de personagens lendários ou inventados,
que no espetáculo das tensões, se enfrentam no nível mais complexo e
profundo da experiência coletiva”. (Florentino, 2013)3
4
diferentes padrões as pregas vocais e, consequentemente, alcançar um
repertório amplo de registros vocais”. (ALEIXO. 2007, p. 51)
5
pais não aceitavam ter filhos surdos, faziam o possível e o impossível para que eles
ouvissem ou ao menos, falassem.
Até hoje ouvimos histórias de pais que fazem visitas constantes aos
fonoaudiólogos na expectativa de conseguir que o filho ouça e fale. Durante os
encontros com jovens surdos4 surgem relatos, que quando adolescentes, muitos deles se
revoltam, evitam os fonoaudiólogos, arrancam seus aparelhos auditivos e recusam
qualquer atitude ou pessoa que acreditam estar querendo que eles falem. Essas
informações são encontradas também na internet e são sempre passadas pelos
professores dos cursos oferecidos na UFU e também na ASUL (Associação dos Surdos
de Uberlândia – MG), eles fazem questão que saibamos desses momentos na trajetória
dos surdos.
Quando tratamos de um assunto fica difícil ter propriedade do que se diz se não
existe ainda um número considerável de autores que discutiram sobre o assunto, para
auxiliar na fundamentação teórica. Sem embasamento a preocupação esta na veracidade
4
Jovens surdos que participam de estudos bíblicos organizados pela Igreja Shalom; Comunidade Cristã
em Uberlândia – MG.
6
das informações passadas. O “achismo” pode comprometer o texto. Essa preocupação
era um empecilho até que houve a descoberta do livro: Teatro, Teoria e Prática: mais
além das fronteiras de Josette Féral. “O livro aborda a questão dos vínculos entre teoria
e prática e das censuras inevitáveis dos quais toda profissão parece carregar a marca,
tanto na América como na Europa”. Um livro que com certeza auxiliará muito, para
fazer pensar a pesquisa, descobrir que pode-se escrever sobre relatos de pesquisas sem
medo de informações que não se tenham plena propriedade, afinal trata-se de uma
investigação, uma pesquisa em andamento. “Este livro convida ao leitor a uma simbiose
entre prática e teoria num esforço constante por limitar um pouco mais, o frágil terreno
do desenvolvimento teatral”. (Féral, p. 11). Leitura importantíssima para dar suporte a
uma pesquisa, já que há dificuldades para encontrar embasamento no campo teórico.
Teoria e prática são ferramentas indispensáveis ao desenvolvimento de um projeto. “Um
corpo no espaço: percepção e projeção”. (Féral p.13). O objeto foco da pesquisa seria a
utilização dos vibradores/ressonadores, no entanto o convívio com pessoas surdas abriu
um leque de possibilidades em se pensar o fazer teatral. O corpo dessas pessoas que
possui a expressão corporal e facial como meio de comunicação. Sinais que são
definidos a partir da expressão corporal e facial, como também a colocação espacial.
Saibam que vários sinais sofrem alterações quanto se posicionam diferentemente no
espaço, ou ainda a expressão facial que muda totalmente o significado de um sinal,
como por exemplo: sentimento, depende da expressão facial pra identificar se trata-se
de um sentimento bom ou ruim.
Esse momento de leitura é muito importante pra fazer pensar o que entendemos
por metodologia. A aproximação com o objeto de pesquisa leva-nos a uma metodologia
na qual cada decisão de um procedimento é relacionada à necessidade do andamento da
7
pesquisa. O que seria necessário fazer para atingir este ou aquele ponto que acreditamos
ser crucial. Então o que foi colocado no projeto com relação à Metodologia, entregue na
intenção de pesquisa, às vezes cai por terra. Estratégias foram criadas, mudanças foram
feitas. Algumas ações não foram possíveis, outras foram transformadas, outras
intensificadas, como por exemplo; aprender a Língua Brasileira de sinais exige mais
tempo que o previsto para aprender a língua. Féral fala ainda da teoria empírica da
produção, então pensar a respeito da escassez de material teórico para estudos. Segundo
Féral;
Pensando em teoria e prática Féral fala do tradutor, diz que sempre escapa algo
numa tradução. Esta fala faz lembrar o intérprete/tradutor dos surdos, geralmente não
conhecem os termos teatrais, pois não convivem com o universo teatral, então busca,
dentro do contexto da linguagem de sinais, uma aproximação ao dito, isso dentro da
interpretação dessa pessoa que não estudou teatro e sim LIBRAS. A tradução nunca é
fiel. E às vezes peca, nega ou modifica o que está sendo revelado.
“Um não pode fazer sem o outro, já que traduzir consiste em instituir
essa passagem em uma mesma inspiração, para criar, negando ao
mesmo tempo a possibilidade de uma transferência perfeita, de uma
adequação exata entre a fonte e o destino. Entre ambos se cria uma
abertura, uma brecha dentro da qual surge toda a inventividade do
tradutor”. (Féral, pg 46)
8
Como a linguagem de sinais abre mão da conjugação verbal e de detalhes, o
intérprete se vê a vontade para passar ao surdo algo próximo, e então a poesia se perde,
detalhes importantíssimos são deixados de lado. Digo isto, porque ao acompanhar a
aluna Lorenna Karla na disciplina de Teatro Brasileiro II5, pude observar ocasiões que a
intérprete não passou exatamente o que foi intencionado a dizer, ou por descuido, ou
ainda porque a informação se tratava de assuntos relacionados a abuso sexual,
falávamos da Ditadura Brasileira, momentos de torturas aplicados a mulheres e homens,
artistas da época, o qual a intérprete se envergonhou em passar, pois falava de
penetração anal e ou, vaginal, o professor explicava do porque da posição que a moça
era pendurada para tortura, a qual seria para a exploração com sexo oral, pois a cabeça
ficava pendurada e os órgãos genitais, o ânus ficavam expostos para facilitar a
penetração, tanto do pênis do torturador, quanto de materiais pontiagudos, vários outros
momentos foram observados, omissões que comprometeram o aprendizado da aluna
surda. Questões a serem exploradas em outras pesquisas. Logicamente deverá haver
uma delimitação, pois é tudo muito extenso, materiais deverão ser guardados para uma
próxima pesquisa.
Teatro Brasileiro II: Disciplina do Curso de Teatro da UFU, ministrada pelo Professor Luiz Humberto
Arantes.
9
falando, ele precisa estar qualificado ou nunca funcionará conforme as exigências do
teatro.
Com um simples sinal junto a um movimento o surdo diz uma frase inteira. E
como no teatro, não basta saber técnicas, ter domínio sobre termos, posso afirmar que
teatro e LIBRAS, são duas linguagens próximas, o mais próximo que se possam
imaginar. Ambas exigem o total envolvimento do individuo que resolve dedicar à
exploração desses universos, no qual o corpo é o coordenador das ações. O
envolvimento da pessoa que queira aprender LIBRAS, surda ou ouvinte é o mesmo da
pessoa que quer fazer teatro. Em ambos os casos o corpo, o desejo de se comunicar e de
se libertar de couraças adquiridas pela imposição da sociedade ou mesmo ligadas à
identidade da pessoa, precisam ser trabalhadas para atingir um estado de naturalidade de
ações. No palco ou no universo do surdo, o corpo precisa estar disponível para falar.
Nem todo surdo tem essa naturalidade, pois alguns falam LIBRAS do berço, outros, por
questões familiares, aprendem a língua depois de crescidos e levam algum tempo para
10
se soltarem em prol da comunicação. Isso acontece porque muitos pais de surdo, não
aceitando a condição do filho, e com esperança que o filho fale, insistem com
fonoaudiólogos, outros por falta de informação não dedicam ao aprendizado dos filhos
para auxiliá-los. Existem filhos de surdos, embora ouvintes, que falam LIBRAS
perfeitamente, e ainda pais de surdos que sendo ouvintes, dedicam ao aprendizado da
língua para comunicar com os filhos e com os amigos surdos dos filhos. E ainda filhos
de surdos que se envergonham dos pais e se recusam a aprender LIBRAS. Ou ainda
surdos que não tiveram acesso ao estudo da linguagem e criaram sinais próprios para se
comunicar e conseguem viver dessa forma, isso acontece entre pessoas com mais idade,
certamente de quando o acesso ao estudo da língua de sinais era mais restrito. Mas em
todos os casos a “presença cênica” é notória. No palco da vida o surdo explora a
expressão corporal, a visão periférica e o espaço para comunicarem-se.
Todas estas questões antes não pensadas, por não terem sido vivenciadas, aparecem
durante o trabalho como metas a serem atingidas. Como diz Cecília Almeida Salles em
Gesto Inacabado: processo de criação artística. “O tempo do trabalho é o grande
sintetizador do processo criador. A concretização da tendência se dá exatamente ao
longo desse processo permanente de maturação”. (SALLES, 2009).
11
o descontentamento com o fazer teatral realizado na academia. Outro fato contra os
interesses do grupo citado são dramaturgias sangrentas, violências, sexo, nada disso
seria aceitável pelo grupo. Acreditam ainda que na academia os atores utilizem drogas e
bebidas alcoólicas, também proibidas pela igreja. Então a estratégia seria, para este
momento, um acordo entre suas questões pessoais e o trabalho a ser desenvolvido.
Pensar nesta constatação para situar informações advindas dos encontros com os
surdos. Aprendizado conseguido através da observação, importante quanto qualquer
leitura o aprendizado realizado observando seu objeto de pesquisa, acredito, é
extremamente considerável as informações obtidas através da pesquisa prática, viver o
que se estuda, relacionar com o sujeito da pesquisa é um grande aprendizado.
12
visível, pode-se reconhecer que a ideia cientifica muito usual fica
carregada de um concreto psicológico pesada demais, que ela reúne
inúmeras analogias, imagens, metáforas, e perde aos poucos seu vetor
de abstração, sua afiada ponta abstrata”. (BACHELARD, 1996, p. 20)
13
sempre será bem vinda para que a investigação aconteça e some ao conhecimento
conquistado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FÉRAL, Josette. Teatro, Teoria y Prática: más allá de las fronteras. 1ª ed. Buenos
Aires. Colección Teatrologia: Galerna., 2004.
DE MARINIS, Marco. En busca del actor y del espectador: compreender el teatro II.
Buenos Aires: Galerna, 2005.
14
GROTOWSKI, Jerzy. Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Editora
Perspectiva S.A. 2007.
SALLES, Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística.. São Paulo, 2009.
15
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
Patricia Leandra Barrufi Pinheiro (Capes – FAPESC, Doutorado); André Luiz Antunes Netto
Carreira (orientador); PPGT - UDESC
NOTAS
1
Lillian Diana de Guiche (1893 - 1993) foi uma atriz norte-americana
2
David Wark Griffith, geralmente conhecido por D.W. Griffith (1875 - 1948) era um diretor de cinema estadunidense.
3
Clube londrino com temática fetichista.
4
Aristóteles pode ser considerado, inclusive, o pai da Cinesiologia (ciência que analisa os movimentos).
5
Metodologia biomecânica que se destina à obtenção de variáveis cinemáticas para a descrição de posições ou
movimentos de um ou mais corpos no espaço.
6
O Kinect, por exemplo, é um dispositivo de captura de movimentos do console de videogames XBox360 da
Microsoft© com um custo acessível e diversas funcionalidades.
7
Ator e Cineasta britânico nascido em 1964. Especializado em atuação atráves de Captura de Movimentos e
Performance. Ficou famoso ao atuar como o personagem Gollum na trilogia “Senhor dos Anéis” com direção de Peter
Jackson.
8
Correspondente internacional do site brasileiro Omelete – http://omelete.uol.com.br/.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. De Motu Animalium. In: Obra Biológica. Tradução do grego: Rosana Bartolomé.
Madri: Luarna Ediciones, 2010.
BADDELEY, Gavin. Goth Chic: um guia para a cultura dark. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2o ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BONFIM, Mariana. Lillian Gish: Musa do cinema mudo. Site Monalisa de Pijamas, Seção Mona
Cine. http://monalisadepijamas.virgula.uol.com.br/monacine/mona-cine-lillian-gish-musa-do-
cinema-mudo acesso em 04 set 2009.
FLAM, David Lunardi. OpenMoCap: uma aplicação de código livre para a captura óptica de
movimento. Dissertação (mestrado) — Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de
Ciência da Computação. Belo Horizonte, 2009.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2010.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.
PACELLI, Shirley. Projeto de captura de movimento integra produções do Giramundo e do
Galpão. Em.com.br. Belo Horizonte (MG). Publicação em 01/12/2011. Disponível em:
http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2011/12/01/interna_tecnologia,265109/projeto- de-
captura-de-movimento-integra-producoes-do-giramundo-e-do-galpao.shtml acesso em 8/maio/2013.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
WEINTRAUB, Steve. O Hobbit – Uma jornada inesperada. Omelete entrevista Andy Serkis.
Canal Omeleteve. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=rSRHAcaNjwM acesso em
01/nov/2013.
WILLEMIN, Pierre. O Martírio de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, 1928). Site
Cinema Filia. http://cinema-filia.blogspot.com/2007/11/o-martrio-de-joana-darc-la-passion-de.html
acesso em 19 set. 2009.
O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
O POLÍTICO NA RELAÇÃO ARTISTA-ESPAÇO
Raquel Purper (bolsa Capes); Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço; Programa de Pós-
Graduação em Teatro; Universidade Estadual de Santa Catarina.
Para quem pesquisa arte nos dias de hoje, existe ou deveria existir uma
preocupação em desenvolver um pensamento crítico sobre o papel sociopolítico da arte
e uma reflexão acerca da prática artística que compreende a relação artista-espaço como
condição fundamental da constituição de um espaço político. Uma prática artística que
se constitui como espaço político é aquela que carrega quais características? Sua
existência é determinada pelo que? Pelo modo como as relações entre os artistas são
desenvolvidas no espaço e/ou pela maneira como a relação do artista com o próprio
espaço é desenvolvida? Essas são algumas indagações que norteiam a reflexão sobre
como as relações estabelecidas entre os artistas no ou com o espaço são determinantes
para que se construa um espaço político.
A referência de espaço aqui apresentada é o espaço social, o qual é produzido
pelas interferências subjetivas e que está em permanente mutação. Milton Santos1
(1999) alerta que o viver com o outro – presença inevitável no espaço – supõe sempre
um saber acerca daqueles com os quais se interage e observa que é, principalmente pela
linguagem, que se realiza essa conexão de conhecimentos não-pensada, mas sempre
presente, e que isto inclui as rotinas de comportamento que assimilamos na interação
cotidiana e pela qual somos informados a respeito de algumas regras de sociabilidade. O
autor aponta que os olhares e gestos que trocamos, localizados em determinado registro
lingüístico, indicam certas formas de comportamento e, simultaneamente, de
motivações. Esse espaço construído pela interação, pela rotina de comportamentos,
pelas regras sociais, pelos olhares e pelos gestos irá conectar-se, a seguir, a uma
definição de política que fará com que possamos refletir sobre as relações que
constituem o caráter político do espaço.
Hannah Arendt2 (2004) entende que a política é baseada na pluralidade dos
homens e que trata da convivência entre os diferentes, ou seja, que os homens se
organizam politicamente para certas coisas em comum a partir do caos absoluto das
diferenças. A política, segundo Arendt, surge no “entre os homens” e se estabelece
como relação. Para Jacques Rancière3 (2009), a política é assunto de sujeitos, ou
melhor, de modos de subjetivação que, compreendidos por Foucault4 (2009), são as
escolhas estética e política por meio da qual se acolhe um determinado tipo de
existência. Ou seja, o modo como cada artista se relaciona com seus parceiros de
trabalho e com o espaço são determinados pelas suas escolhas políticas e estéticas. Se
levarmos em conta que a política é baseada na pluralidade dos homens, o modo como
cada indivíduo responde, se adapta ou se opõe a essa organização plural constrói um
espaço político.
1
Geógrafo brasileiro
2
Filósofa política alemã de origem judaica
3
Filósofo francês e professor emérito da Universidade de Paris.
4
Filósofo francês
Alan Badiou5 (2000) entende que o ato político é algo que cria tempo e espaço.
Cria espaço porque diz: “Vou transformar esse lugar em um lugar político”. Badiou
constata que o problema é saber se, atualmente, nós queremos e sabemos criar tempo e
espaços políticos. Para refletir sobre a questão de Badiou relacionada à arte, convoco
Rancière (2009), o qual acredita que “as práticas artísticas são maneiras de fazer que
intervém na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as
maneiras de ser e formas de visibilidade” (p.17) O pensamento de Rancière sugere que a
prática artística transforma o espaço em político, pois ela reconfigura as maneiras de
fazer, de ser e de ser visível de todo o contexto social, não só da própria arte. Então,
para contemplar Badiou, querer e saber criar espaço político na arte depende da vontade
do artista em modificar a distribuição geral das maneiras de fazer. Badiou (2000) reflete
sobre a capacidade política das pessoas e de como se organiza essa capacidade, com
uma lógica distinta da lógica do poder. Rancière (2010) fala da política como não sendo
uma busca pelo poder, e sim, um regime de distribuição do poder:
5
Filósofo, dramaturgo e romancista francês.
A articulação entre estética e política se define através da
“partilha do sensível”, que é este sistema de evidências sensíveis que
dá a ver ao mesmo tempo a existência de um comum e as decupagens
que definem nele os lugares e as partes respectivas (...) Essa repartição
das partes e dos lugares se funda sobre a partilha de espaços, de
tempos, de formas de atividades que determinam a maneira pela qual
um comum se presta à participação e pela qual uns e outros tomam
parte nessa partilha (...) Atos estéticos são, portanto, configurações de
experiências que fazem existir novos modos de sentir e induzem a
novas formas de subjetividade política (RANCIÈRE, 2009, p.7-12)
6
Filósofo e pensador russo
7
Filósofo holandês
Espaço político: consenso e/ou dissenso?
O espaço político constitui-se pela criação de espaço e tempo. Após as
reflexões sobre o conceito de política em Arendt, Rancière e Badiou conclui-se que,
através da convivência entre os diferentes em um grupo criador, locutores e
interlocutores vão revezando-se nos papéis, afim de que o poder possa ser distribuído.
No entanto, ainda é preciso pensar em como as questões são abordadas dentro desse
grupo, em como as opiniões e decisões são conduzidas. Será que, em um espaço que se
pretende político, a noção predominante é a de consenso ou a de dissenso? Ou será que
é possível uma interlocução entre as duas?
8
Filósofo e sociólogo alemão. Conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e
a esfera pública.
9
Filósofo argentino que trabalha sobre temas específicos: metapolítica, teoria do dissenso e
teoria da virtude
sociedade plural, ao mesmo tempo em que invalida qualquer tentativa homogeneizadora
ou totalitária.
Rancière (2010) nota, por outro lado, a existência do consenso, que é o modo
de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da
política: o dissenso, o qual não é simplesmente o conflito de valores ou de interesse
entre grupos, mas a possibilidade de opor um mundo comum a outro. É possível
observar, na reflexão de Rancière, as noções de consenso e dissenso sendo entrelaçadas,
atuando de forma interdependente: são consensos que interagem na forma de dissenso,
verificando também a possibilidade de haver dissenso dentro dos mundos comuns dos
próprios consensos. Peter Pál Pelbart10 (2008) alerta que é preciso pensar a questão do
comum quando se considera um grupo, um conjunto humano. O autor explica que as
formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum e asseguravam
alguma consistência ao laço social, entraram definitivamente em colapso:
Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a
encenação política, os consensos econômicos consagrados, a
militarização da existência para defender uma forma de vida dita
comum. No entanto, sabemos que essa forma de vida não é realmente
comum, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras,
esses pânicos, esses circos políticos ou mesmo essa linguagem que
fala que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um
seqüestro. (PELBART, 2008, p.2,3)
10
Filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil.
Pelbart (2008) questiona se as relações podem compor-se para formar uma
nova relação mais abrangente ou se os poderes podem se organizar de modo a constituir
uma potência mais intensa e ainda: como um ser pode tomar outro no seu mundo, mas
conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios? O autor suscita algumas
questões que devem ser discutidas por aqueles que pesquisam ou simplesmente se
interessam em aprofundar estudos sobre o espaço como político e as relações contidas
nele. É importante salientar que, embora haja inúmeras proposições possíveis a serem
feitas acerca da relação do artista com o espaço e do próprio espaço como políticos, a
reflexão aqui apresentada acredita que a qualidade das intersubjetividades, o aumento da
potência de agir e o modo de operação relacionado ao dissenso determinam a existência
do político.
Referências:
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
BADIOU, Alain. Qué es la política? Conferência de Alain Badiou 24 e 25 de abril de
2000. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/54532605/Badiou-Alain-Que-es-la-
politica>. Acesso em: 25 jun.2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 7ª edição. São Paulo: Hucitec, 1995.
BUELA, Alberto. Teoria do dissenso. 2011. Disponível em: <http://legio-
victrix.blogspot.com.br/2011/10/teoria-do-dissenso.html>. Acesso em: 05. jul. 2014.
ESPINOSA, Bento de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Os pensadores.
Traduzido por Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. São Paulo: Nova Cultural,
1997.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios.
Traduzido por Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Catedra, 2001.
Ricardo Miguel Branco de Azevedo; Orientação: Ana Cristina Fabricio; Universidade Estadual do
Paraná – Campus de Curitiba II – FAP – Faculdade de Artes do Paraná
RESUMO
INTRODUÇÃO
1
Disparadores são dispositivos que usamos para atualizar a ação que se desenvolve.
deveríamos selecionar para nos relacionar e deixar afetar. Foi neste contexto que os
temas percepção e escuta passaram a fazer parte das discussões do grupo, que
compreendia a necessidade de reconhecer como estes princípios operam dentro do
nosso processo criativo que se desenvolve já numa perspectiva espetacular.
Alguns dos exercícios que utilizamos conseguem se manter vivos por bastante
tempo, principalmente os que tem uma estrutura espacial mais bem delimitada, como
por exemplo o QUAD, que é baseada na peça televisiva homônima de Samuel Beckett
(1981)2, este exercício foi trazido para nos ajudar no sentido de desenvolver uma
melhor noção do coletivo no espaço, passou a fazer parte de nossos aquecimentos e de
disparador inicial de alguns espetáculos. Neste exercício, depois de vencida a fase de
apropriação de sua topologia, passamos a ter uma estrutura muito rica em
possibilidades de criação e conexão, vários jogos rítmicos passaram a acontecer na
relação entre a sonoplastia e as percepções individuais, pois
2
Vídeo disponível em: http://palcoprincipal.sapo.pt/bandasMain/beckett/video/LPJBIvv13Bc
[...] se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o
mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência
é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. (Bondía, 2002).
3
Para Bogart, “resposta Cinestésica”.
Esse estado de atenção ativa, que definimos dentro do grupo como percepção,
não tem sido alcançado plenamente. Uma das razões apontadas em nossas discussões é
a de não compreensão do que realmente constitui esse estado, no qual ficamos
especialmente alertas e paradoxalmente tranquilos. Talvez seja, ainda, algo acima da
nossa capacidade atual. Porém prefiro considerar que o exercício continuado nos
permita avançar e vencer estas dificuldades.
Entretanto, em vez de nos atrapalhar, a imobilidade que gerou crise, nos serve
como propulsora para que as discussões ganhem consistência e crie-se o estado de
escuta almejado. Lidamos interminavelmente com nossas fragilidades perante todo o
processo, sendo criticados e apontados quando essas fragilidades atrapalham o
andamento ou quando nos fazem esquecer da percepção, automatizando a atenção,
para uma reação rápida e sem base numa real afecção.
Com o artigo de Tatiana Motta Lima (2012) no qual questiona a escuta, por
meio de exemplos que ela presenciou, começamos a nos dar conta da cristalização de
alguns conceitos, nos vimos espelhados em seus alunos. Mas assim como ela,
entendemos que as sutilezas que envolvem a percepção não encontram soluções claras,
apenas geram novas reflexões sobre o modo de operar e de pensar a escuta, mas não
nos trás uma resposta definitiva.
Após diversas leituras e reflexões para tentar entender como opera a percepção
para o improvisador e como se pode alcançar uma construçaão coletiva através dela. A
imagem do Cubo de Necker, (NECKER, Louis Albert 1832) 4 é uma metáfora visual
que pode melhor traduzir o que tentamos materializar através da percepção no grupo.
4
Trata-se de uma ilusão ótica representada por oito círculos pretos posicionados no que seriam os vértices de
um cubo. Cada círculo possui um vértice, em branco, no centro composto por três linhas. A ilusão se dá pelo
cérebro ao ler a imagem como um cubo branco em um fundo branco, com apenas as informações dos círculos.
Imagem disponível em http://www.chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/gestalt/imagens/9d-necker55.gif
proporcionada pela percepção a possibilidade do cubo como uma narrativa para quem
assiste a cena.
É nas relações possíveis a partir daí que as cenas se constroem, que posição o
círculo, que seria o improvisador, ocupa; quais linhas está mostrando; como ele vê os
demais círculos e as demais linhas; e como todos juntos constroem a possibilidade de
visualizar uma imagem maior, ou seja, a cena, para o espectador.
Uma das frases que mais motivou a pesquisa e me ajudou a manter o foco foi
de LIMA(2012) “O mais importante aqui é podermos pensar sobre o que nomeamos e
praticamos como o ‘estar aqui e agora’”.As definições de percepção e escuta propostas
aqui são suficientes, neste momento, para responder aos questionamentos e crises que
tive ao pensar sobre a conceituação dessas duas palavras. Porém, como afirma Bondía
(2002) “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.”, portanto
é necessário levar essas conceituações para a sala de encontros do grupo e experenciá-
las, com todos juntos, e descobrir se fazem sentido no coletivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS