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Palavras-chave: Platão; Fédon; narrativa e


ficção.

Abstract: This article aims to problematize


narrative aspects of the Plato’s work. For
example: in the Phaedo the author's own name is
mentioned as a character missing in the dramatic
scene for issues of disease. The Platonic text,
Platão, personagem ausente: entre considered in their narrative features, is wrapped
under a haze of apparent reality, so to speak,
objetividade narrativa e ficção
being perhaps the dialogic form responsible for
conferring to their reports certain verisimilitude.
Plato, absent character: between
Emphasising here the absence of Plato in the
objective narrative and fiction
scene by himself configured in the Phaedo, what
can we think of the real meaning of the work of
1
David Junio Moraes Plato? We could take his writings merely as
Universidade Federal de Ouro Preto trusted reports that he would have experienced in
the circle of lovers of knowledge? How to deal
with the alleged objectivity narrative often imputed
Resumo: O presente estudo propõe
to your text? The constant absence of Plato at the
problematizar aspectos narrativos da obra de
dramatic scene, wouldn't be eschewing possible
Platão. No Fédon, por exemplo, o nome do
inaccuracies of the reported facts? Or: Plato
próprio autor é mencionado como um
would be waving that the plot of the narration was
personagem ausente na cena dramática por
fictional? The systematic rejection of a supposed
questões que, acredita Fédon interpelado por
autobiographical character of the dialogue seems
Equécrates, sejam de doença. O texto platônico,
to be a narrative strategy, or a way to convince us
considerado em suas feições narrativas,
that your text is not simply a subjective narrative,
apresenta-se envolvido sob uma névoa de
but it is a fiction that is built on the factual
realidade aparente, por assim dizer, sendo talvez
circumstances.
a forma dramática dos diálogos a responsável por
conferir a seus relatos certa verossimilhança. Keywords: Plato; Phaedo; narrative and fiction.
Sublinhando aqui a ausência de Platão na cena
por ele próprio configurada no Fédon, o que se
pode pensar do real significado da obra de
Platão? Poderíamos tomar seus escritos
meramente como relatos fidedignos do que ouvia
ou do que teria vivenciado no círculo dos amantes “Se esta história não existe, passará a
do saber? Como lidar com a suposta objetividade existir.”
narrativa muitas vezes imputada ao seu texto? Ao [Clarice Lispector; A hora da estrela]
se retirar da cena dramática, não estaria
abstendo-se das possíveis imprecisões dos fatos
É frequente, ao longo da tradição
relatados? Ou, ainda: Platão estaria insinuando
que a trama da narração era fictícia? A rejeição filosófica, a abordagem do conceito de sujeito
sistemática de um suposto caráter autobiográfico
a partir desta ou daquela teoria filosófica.
dos diálogos parece consistir bem mais numa
estratégia narrativa, no sentido de nos convencer Busca-se apreender a noção de sujeito ou de
que seu texto não é simplesmente uma narrativa subjetividade exposta num texto, e como tal
subjetiva, mas trata-se, antes, de uma ficção que
se constrói sobre circunstâncias factuais. noção repercute dentro de um dado sistema
ou escola filosófica. Desse modo temos, na
1 história da filosofia, vasto repertório descritivo
Mestrando em Estética e Filosofia da Arte.
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e crítico, debruçado sobre a discussão dos Paideia, comentara que essa concepção do
conceitos de sujeito e de subjetividade. No poeta como educador “foi familiar aos gregos
entanto, pouca atenção é dada, como chama desde a sua origem e manteve sempre a sua
atenção Jeanne Marie Gagnebin (2006), ao importância. Homero foi apenas o exemplo
sujeito que se apropria da palavra, o emissor mais notável dessa concepção geral e, por
da teoria filosófica: costuma-se tratar do assim dizer, a sua manifestação clássica”
sujeito segundo uma teoria ou autor, e não (JAEGER, 2013, p. 60). Conecta-se ao
do sujeito do discurso, ou como se apresenta caráter de educador atribuído ao poeta sua
aquele que discorre sobre um tema qualquer. intenção de fazer justiça à memória dos
Tomando essa observação como introdução personagens heroicos para o mundo grego.
ao problema maior acerca da relação entre a Novamente com Jaeger, pode-se admitir que
voz que enuncia um discurso filosófico e as o “coração do poeta está com os homens
posições do autor e do narrador firmadas que representam a elevação da sua cultura e
também em outras formas discursivas como costumes”, e que a “contínua exaltação que
a poesia, propõe-se, aqui, pensar o sujeito do se faz das suas qualidades tem, sem dúvida,
discurso filosófico de Platão. Para tanto, uma intenção educativa” (JAEGER, op. cit.,
devem ser considerados aspectos de sua p. 43). O poeta propõe-se a erguer um
construção narrativa, na busca de entender monumento aos prodígios dos heróis,
como o modo de enunciação do filósofo se cantando sua glória (kléos) e mantendo sua
coloca dentro da própria obra, bem como ela lembrança viva na cultura, salvando-os do
se situa entre as outras narrativas correntes esquecimento eterno, muito pior, em tal
em seu tempo, nas quais o autor parece contexto, do que a morte física.
deixar clara sua intenção ao narrar. Pois bem, o discurso filosófico de
O discurso poético, no caso, fornece o Platão surge, aqui, tanto como uma forma
grande modelo de autor, narrador e, por discursiva que declara oposição a outras
conseguinte, de educador, reconhecido no práticas de fala e escrita estabelecidas à sua
tempo da emergência da filosofia socrático- época – pois a figura do filósofo não só vai se
platônica. Temos, então, neste ponto, uma opor a do poeta, mas também ao sábio, ao
primeira intenção que pode ser identificada retor e ao sofista –, quanto se esforça por
nesse modo de discurso ou enunciação – instaurar um discurso não menos
uma intenção pedagógica, no sentido de paradigmático nem menos memorável, na
transmitir aos novos a tradição e os feitos medida em que, ao ressaltar a especificidade
heroicos precedentes. Luc Brisson apontara da filosofia e da atividade do filósofo, elegerá
que o poeta, na condição de “educador”, “dá Sócrates como modelo, narrando, por assim
forma e transmite aquilo que faz a identidade dizer, seus “feitos heroicos”, afirmando sua
de uma comunidade, sua consciência e sua dignidade, e sua distinção frente aquelas
cultura” (BRISSON, 2014, p. 22. Grifo meu.). figuras instituídas. É notável que um dos
Werner Jaeger, em sua indispensável
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traços comuns a todo diálogo socrático2 é poderia ser confundida com a postura de
que ele, sofistas famosos – lembrando que tanto
sobre Sócrates quanto sobre Protágoras
[...] quer seja composto por Platão,
Xenofonte ou Ésquines de Esfeto, não tem pesavam acusações semelhantes: o ateísmo
por finalidade inculcarmos uma doutrina [...] e uma influência distanciada das pautas
mas apresentarmos uma imagem, a
imagem radiosa do filósofo assassinado, tradicionais entre os mais jovens. A
defender e perpetuar a sua memória e,
dessa maneira, trazer-nos a sua pertinácia de Platão em firmar o título de
mensagem. (KOYRÉ, 1984, p. 10) filosofia para a atividade de Sócrates, bem
Entretanto, o esforço de Platão ao se como a consideração de que seu discurso é
lançar como autor de um discurso com essas filosófico, e não é, portanto, poético ou
pretensões – quais sejam: fazer frente a um sofístico, chama atenção para a dificuldade e
discurso estabelecido e que se impõe sem a necessidade dessa distinção. As noções de
crítica, e lançar Sócrates como modelo de sujeito do discurso e autoria serão
vida filosófica – não é apenas o de realçar os importantes nesse âmbito para pensar o
aspectos específicos à prática discursiva da desempenho de Platão no que diz respeito a
filosofia, mas vencer o risco de que seu essa distinção imperativa.
discurso pudesse ser assimilado a outros Seguindo a proposta de Gagnebin
tipos de enunciação bastante conhecidos do (op. cit.), vale examinar alguns traços que
público. Ao pretender apresentar um discurso definem as atribuições do sujeito/autor da
valendo-se da narrativa e da descrição de um poesia épica e do sujeito/autor do diálogo
modelo de vida, sua filosofia poderia ser filosófico platônico. O convívio conturbado
tomada como uma atividade, se não idêntica, que a obra de Platão entretém com a obra
ao menos muito próxima da do canto dos homérica, por um lado, e com o discurso
poetas, que também narravam e sofístico por outro, pode ser descrito como
apresentavam modelos de vida; ou, pior, uma relação que envolve amor e ódio,
colocaria em perigo a mestria socrática, que admiração e crítica, consideração e
desconfiança. No texto da República, por
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De um modo geral são considerados exemplos exemplo, são dirigidas críticas à influência de
de “diálogos socráticos” o conjunto dos diálogos Homero na formação do caráter do indivíduo,
escritos, sobretudo por Platão, e que
normalmente são situados como as primeiras não sem o personagem Sócrates reconhecer
produções do filósofo (diálogos de juventude)
bem como as imediatamente seguintes (diálogos a participação de Homero na sua própria
de maturidade). Argumenta-se que nesses formação; na mesma direção vemos
diálogos, diversamente do que ocorre nos
chamados diálogos de velhice, Sócrates declarada hostilidade à atividade dos sofistas
desempenha um papel central. Também é
característico dos diálogos socráticos o interesse
uma vez que estes se ocupam da formação
por problemas morais e, ainda, o aspecto dos mais jovens, mas seus interesses são
inconcluso das investigações, isto é, seu traço
aporético. Ver também, sobre essa discussão: mercenários, como caracterizado no Sofista.3
VLASTOS, G. (1991). “Socrates contra Socrates
in Plato”. In: ________. Socrates: ironist and
3
moral philosopher. Cambridge, Cambridge Na República são dirigidas críticas à influência
University Press, p. 45-80. de Homero na formação do caráter do indivíduo,
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No caso específico da poesia, Platão delineia à ordem do dizer – função narrativa da


com diversas informações o domínio do palavra – e não da elaboração que constituirá
poeta épico, e também o transforma. Nesse a composição platônica – intenção
sentido, Gagnebin (op. cit.) aponta que demonstrativa da palavra. As formas
Platão realizaria uma dupla transformação: tradicionais apresentavam suas concepções
tanto da função da memória quanto da de mundo dogmática ou liricamente através
função do autor ou do sujeito emissor do de poemas ou lições, impondo-se como boas
discurso. Com relação à memória, Platão não ou verdadeiras; discorrendo acerca dos fatos,
somente parece investido na preservação de o dizer bastava-se a si mesmo. Os
uma imagem socrática, quanto acaba indo, enunciados revelados religiosamente vão
sobretudo, além disso, ao empreender um experimentar, pois, a situação de um dizer
discurso bem mais de defesa da dignidade injustificado, exatamente porque não
de seu personagem. A outra mudança explicam a razão de dizer isto em lugar
incorporada na obra de Platão consistiria na daquilo, ao serem confrontados com um
alteração de tonalidade da voz que emite a espaço público que se transforma: onde a
palavra, redefinindo assim a força de palavra ganha cada vez mais importância e
enunciação da palavra em termos de atenção.
transmissão da verdade. A prosa platônica A esta altura, Platão parece
estaria propondo, sim, uma narrativa ou um compreender a necessidade de rever o
discurso com grandes pretensões, mas não estatuto do discurso. Ao buscar isso, a
amparada num lugar sagrado de enunciação proposta platônica será a elaboração de um
a fim de se estabelecer entre os diferentes discurso que se constrói e acontece como
discursos. uma construção, que procura superar o que
A palavra poética, sob a perspectiva se estabelece e se impõe de maneira
tradicional, ao expressar a rememoração e o injustificada e sem discussão. Ocorre que,
louvor contra o esquecimento e a morte, num momento em que a palavra (lógos) está
acaba por conferir ao poeta o título de alojada no domínio do discurso público, a
“mestre da verdade” (a-létheia) e adorna sua palavra poética, situada no domínio divino-
função de uma força tanto religiosa, por sua religioso, vai se encontrar em desvantagem
ligação às origens e aos mortos, quanto em relação ao lógos. A autoridade do
técnica, pelo domínio da memória e das discurso filosófico, portanto, não poderá
técnicas de memorização. As formas pré- permanecer amparada na autoridade do
filosóficas de discurso pertenciam sobretudo sujeito de enunciação, na autoridade do
autor. Isso já era prerrogativa de legitimação
não sem o personagem Sócrates reconhecer a do discurso poético, uma vez que o autor
participação de Homero na sua própria formação;
na mesma direção vemos declarada hostilidade à poeta era inspirado diretamente pelas Musas.
atividade dos sofistas uma vez que estes se
Soma-se a isso o fato de a escrita platônica,
ocupam da formação do mais jovens, mas seus
interesses são mercenários, como caracterizado como lembra Donaldo Schüler, romper
no Sofista.
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compromissos com a memória, “recurso de produção escrita, mas fazer com que a
poetas para legitimar os versos com a validade de seu discurso independa de seu
autoridade das Musas”, substituindo “a lugar como autor, quanto menos como
memória pelo texto escrito, ambíguo, testemunha de algo.4 No Fédon, teríamos de
lacunoso, feito para refletir e não para algum modo exposta essa intenção quando
recordar” (SCHÜLER, 2001, p. 17-18). Por da justificação para a ausência de Platão na
esse aspecto, Platão parece bem mais cena dramática, na lista dos amigos que
preocupado em preservar vigorosa a visitaram Sócrates na prisão, no último dia da
inventividade socrática, pouco se importando vida do mestre. Satisfazendo a curiosidade
em atestar as palavras de seu mestre de de Equécrates sobre os que estiveram ao
maneira documental, o que também, vale lado de Sócrates naquele momento, Fédon
observar, abre caminhos para uma filosofia responde: [...] “Além do mencionado
muito mais próxima da ficção. Apolodoro estavam lá, de sua terra, Critobulo
De acordo Michael Erler, a maneira com seu pai, e também Hermógenes,
como Platão compõe sua narrativa envolve Epígenes, Ésquines e Antístenes. Lá se
historicidade e ficcionalidade, chamando encontravam ainda Ctesipo de Peânia,
atenção o seu esforço em “ancorar as Menexeno e alguns outros da mesma região.
conversas de um modo bastante Platão, creio, estava doente” (Pl. Phd. 59b).
impressionante no mundo da vida, dando aos Esta passagem, como tudo ou quase
seus diálogos a aparência de autenticidade” tudo na obra de Platão, se assim é possível
[...] (ERLER, 2013, p. 72). Os diálogos afirmar, não está ali por acaso. A brevíssima
partem sempre de situações concretas do menção do nome do autor numa justificativa
cotidiano, situações verossímeis da vida em para sua ausência pode motivar um sem
que os personagens estão envolvidos, e, número de questões, como tem servido de
destas situações, constrói-se um caminho, no
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decurso do qual pode já não mais importar o Mesmo quando presente na cena dramática,
não se ouve a voz do personagem Platão nem é
que cada um dos personagens representa, descrita qualquer ação sua. Vlastos (1991)
observa que a Apologia (Pl. Ap. 34a; 38b)
mas o discurso que se exprime por meio consiste numa exceção; nela, Platão surpreende
deles. O ponto é tal que já não é de si ao chamar atenção para sua presença no
julgamento de Sócrates. A presença do autor,
próprios que os personagens falam nem são mesmo que furtiva, na cena por ele descrita, seja
como for, contribuiu para algumas defesas acerca
mais suas opiniões que exprimem; eles do valor histórico e documental da Apologia. No
fazem falar uma outra realidade que é o entanto, segundo Erler (2013), não teríamos o
direito de tomar este escrito como um documento
discurso ele mesmo. E o autor, ausente do histórico; a própria figura de Sócrates incorpora
componentes considerados históricos, mas
próprio discurso, só parece intensificar que conjugados com a idealização que Platão elabora
discurso fale por si. Ao ausentar-se da cena como traços do verdadeiro filósofo. De todo
modo, Platão permanecerá sempre ausente como
dramática dos diálogos, Platão parece personagem em toda a obra posterior à Apologia,
embora não seja também certo que esse texto
querer, por essa estratégia de ocultamento,
seja um dos escritos da primeira fase criativa do
não somente permanecer ausente de sua filósofo (HEITSCHE, 2002, p. 177-180 apud
ERLER, op. cit., p. 108).
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ponto de partida para os apontamentos do que povoam os diálogos, “não temos todavia
presente e pequeno estudo. É possível que a nenhuma razão séria para duvidar que
disposição para o filosofar em Platão, exprimam a admiração de Platão por seu
sobretudo por sua dedicação em escrever mestre”, assinala Dorion (op. cit., p. 30).
diálogos filosóficos, a despeito de toda É interessante observar que a
ressalva com relação à escrita, advém não elaboração do personagem Sócrates por
apenas da busca apaixonada pela verdade, Platão caminha em direção diametralmente
como também do dever, pode-se dizer, que a oposta à elaboração depreciativa que ocorre,
obra de Platão assume em defesa da notadamente, em Aristófanes. Se o Platão
memória, da honra e do kléos do mestre idealiza Sócrates ao exaltá-lo, Aristófanes o
morto, Sócrates. Isso aparece sobretudo nos idealiza depreciativamente. Tal nota contribui
diálogos centrados na morte e processo de para pensar que ambos os personagens – o
Sócrates, a saber, a Apologia e o Críton, Sócrates platônico e o Sócrates aristofânico
também o Eutífron e o mencionado Fédon. – são tão possivelmente e amplamente
Recapitular tal evento, entre outras coisas, históricos quanto efetivamente personagens
“significa para Platão instituir um confronto fictícios. Se o Sócrates de Platão se
entre a cultura tradicional, de onde vinha a comporta no plano da idealidade heroica e
maior parte das acusações a Sócrates, e a trágica, dando forma a um ideal positivo, o
nova concepção ética introduzida pelo Sócrates de Aristófanes habita igualmente
próprio Sócrates, raízes nas quais Platão esse plano da idealidade criativa, ficcional e
queria enxertar seu próprio projeto filosófico”, literária, produzindo, por seu lado, uma figura
observa Franco Trabattoni (2010, p. 35). de traços cômicos, caricatural, configurando
Nesse confronto instituído, Sócrates um ideal negativo (COSTA, 2014). Nesse
vai se tornar, ao que tudo indica, o herói da sentido, chama-se atenção novamente para
concepção de mundo platônica. De acordo a elaboração e a postura narrativa de Platão,
Louis-André Dorion (2011), é indubitável que que segue em alguma medida o processo
Sócrates constitui o modelo de piedade no poético de composição e configuração dos
Eutífron, e será proposto como modelo de personagens dramáticos. Como disse Henri
moderação (sophrosýne) no Cármides, com Bergson, ainda com respeito à idealização de
a coragem acentuada no Laques, dotado de Sócrates por Platão, o filósofo “cede
observância exemplar às leis no Críton, bem continuamente às tendências, a seu
como representado com o amigo por temperamento idealista. Transfigura, como
excelência no Lísis. Mesmo que Platão poeta, tudo aquilo que toca” (BERGSON,
jamais intervenha diretamente em seus 2005, p. 267).
diálogos, como personagem ou como Na Apologia, a defesa da honra
narrador, e os elogios que sustentam socrática escrita por Platão apresenta-se
Sócrates como modelo de virtude sejam como se transcrevesse a defesa que
pronunciados pelos variados personagens Sócrates teria feito de si mesmo perante o
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tribunal. O personagem Sócrates chega a de sua defesa; está em jogo defender a


comparar sua escolha por uma vida lembrança de um homem julgado e
empenhada na busca da verdade à célebre condenado injustamente. Trata-se, portanto,
escolha de Aquiles na Ilíada, não obstante mais de um esforço de reabilitação do
essa escolha tenha lhe acarretado mestre, cujo lugar na memória da pólis
numerosos oponentes, expondo-o, inclusive, parece não estar assegurado. Cumpre, pois,
à morte. Aquiles, acautelado por Tétis, sua defende-lo das acusações que pesam sobre
mãe, de que se ele vingar o amigo Pátroclo ele, para, enfim, poder celebrar sua memória;
com a morte de Heitor, ele mesmo morreria defendê-lo das acusações de ateísmo e de
em breve, escolhe permanecer lutando em ser um sofista (na Apologia), ou da covardia
Troia, malgrado o risco de uma vida curta, e da passividade por não tentar escapar à
contra a possibilidade de retorno à pátria e a prisão (a argumentação introdutória do
espera de uma morte tranquila após uma Críton). Platão não pode, então,
longa vida (Pl. Ap. 28b-d). O herói opta pela simplesmente narrar os feitos do passado
glória e pela imortalidade memoráveis na incorporados à tradição da cidade, deve,
posteridade, em lugar de uma vida longa, antes, construir uma versão diversa do
mas sem brilho. Tal episódio define toda uma acontecimento recente. Sendo assim, sua
linhagem heroica na qual Sócrates parece voz não pode reivindicar para si aquela
ser inscrito manifestamente por Platão. função sagrada que ligava o poeta ao
Diante disso, pode-se apontar que Platão passado e às origens. Cabe a ele oferecer e
assume, em relação à memória do mestre defender uma outra interpretação de um fato
morto, ao menos num período significativo de singular. E essa diferença de tonalidade
sua produção escrita, a atribuição apropriada implica, por sua vez, uma mudança no
ao poeta com respeito aos heróis mortos: estatuto de verdade da palavra.
manter vivos sua palavra e seu gesto para a Considerando que a palavra poética, por sua
posteridade. origem inspirada, estava desobrigada a
Agora, se a intenção de Platão se subscrever-se na cartilha que opunha
assemelha à atividade poética, nesse verdade e mentira/ficção, pois o que
aspecto sua prosa filosófica parece, importava era seu poder mágico e a eficácia
entretanto, constituir-se de uma matéria efetiva desse poder, a prosa de Platão deve
diversa, pois há, em Platão, uma se debater entre “um discurso mentiroso,
transformação tanto da função da memória mas que parece verdade, e um discurso
como da função do autor. Embora a memória verdadeiro que não consegue impor sua
seja essencial para a reflexão filosófica veracidade”, como problematiza Gagnebin
elaborada por Platão, a rememoração da (op. cit., p. 198).
figura de Sócrates, especificamente, é O texto platônico, considerado em
assumida não apenas no sentido de sua suas feições narrativas, apresenta-se
preservação, mas, sobretudo, com o intuito envolvido sob uma névoa de realidade
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aparente, por assim dizer, sendo talvez a que a tradição filosófica varia de inúmeras
forma dramática dos diálogos a responsável maneiras: o sujeito que enuncia o discurso
por conferir a seus relatos certa filosófico deve se apagar em proveito da
verossimilhança, entendida no sentido coisa mesma, tò òn ontôs” (GAGNEBIN, op.
mesmo de factibilidade. É verdade que um cit., p.199).
texto ficcional não é um relato factual do que Platão, ao que sabemos, jamais está
aconteceu, mas aquilo que poderia ter presente em seus textos, seja como narrador
acontecido, e que ao irromper na consciência ou personagem direto. A rejeição sistemática
do escritor, toma a forma de discurso. Os de um suposto caráter autobiográfico dos
diálogos de Platão consistiriam num gênero diálogos, portanto, parece consistir bem mais
muito particular que oscila entre a ficção, o numa estratégia narrativa, no sentido de
relato subjetivo e a objetividade (ou aparente convencer que seu texto não é simplesmente
objetividade) a ser conferida ao relato. Platão uma narrativa subjetiva, mas trata-se, antes,
teria construído uma ficção sobre uma de uma elaboração que visa ultrapassar
verdade factual, qual seja, a atividade de qualquer garantia fundada apenas na
Sócrates e as implicações dessa atividade, enunciação do sujeito/autor, pois visa a uma
mediante uma elaborada narrativa: sua verdade que independeria de sua voz. A
perspectiva sobre um fato singular. Para relação do autor com o texto, que Platão
tanto, o filósofo lançou mão de estratégias parece propor com tal gesto, pode ser lida
variadas, no sentido de convencer o leitor de em termos de que o autor filósofo não tem a
que seu texto não se trata de uma versão posse do seu discurso, ou ainda, mais
subjetiva ou um relato autobiográfico, por um radicalmente, que a voz do autor não é por si
lado, nem tampouco um texto que expõe os só capaz de conferir a verdade do discurso.
fatos sem qualquer elaboração sobre eles, Um problema, porém: não estaria o filósofo,
como um relato jornalístico ou de cunho aqui, novamente, em situação semelhante à
meramente documental, diríamos hoje, que dos poetas, quando estes afirmam cantar tão
se pretendesse isento de parcialidade. Uma somente aquilo que as Musas lhes inspiram?
dessas estratégias pode ser aquela Como o poeta, o filósofo platônico não é
sublinhada no Fédon, quando da denegação soberano no discurso que comunica. O
do possível caráter autobiográfico da filósofo não faz questão de ser o senhor dos
narrativa, ao colocar na boca de Fédon que, seus lógoi, como se eles pudessem ser
ele, Platão, está ausente da cena dramática apropriados com exclusividade.
constituída pelos momentos derradeiros do Diferentemente do poeta, entretanto,
mestre, por motivos que, acredita Fédon, o discurso filosófico seria movido pelo próprio
sejam de doença. Como se essa fraqueza do lógos, sua verdade não está assentada na
sujeito-autor fosse necessária, nas palavras autoridade e inspiração divinas, mas no
de Gagnebin, “para garantir a força de esforço da razão. O poeta parece ter uma
verdade do discurso filosófico, [...] num gesto garantia que o filósofo, de saída, não tem,
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pois o sucesso do filósofo dependeria de um Referências:


exercício, do esforço em conseguir com que
BERGSON, H. (2005). Cursos sobre a
o lógos fale por si. Nesse sentido, o disfarce filosofia grega. Tradução de Bento Prado
Neto. São Paulo, Martins Fontes.
do sujeito-autor, ou o estabelecimento de sua
ausência (mesmo que ficcionalmente), é o BRISSON, L. (2014). Introdução à filosofia do
mito. 2. ed. Tradução de José Carlos Baracat
que resguardaria o discurso da filosofia de
Junior. São Paulo, Paulus.
ser tomado por uma validade meramente
COSTA, A. (2014). De Sócrates a Sócrates:
subjetiva, permitindo-o outrossim concorrer
as formas do drama entre Platão e
com os demais discursos cujos valores de Aristófanes. Viso: cadernos de estética
aplicada, Rio de Janeiro, v. 6, n. 15, pp. 27-
verdade são dados por inquestionáveis,
34, jan./jun. 2014. Disponível em:
como é o caso da poesia. A supressão do <http://revistaviso.com.br/visArtigo.asp?sArti=
137>. Acesso em: 01 dez. 2014.
sujeito-autor, portanto, “parece ser possível
mediante um refinamento extremo da DORION, L-A. (2011). A figura paradoxal de
Sócrates nos diálogos de Platão. In:
estratégia retórica-literária, por um perpétuo
FRONTEROTTA, F.; BRISSON, L. (Org.).
fazer de conta que não há ninguém atrás do Platão: leituras. Tradução de João Carlos
Nogueira. São Paulo, Loyola.
palco do diálogo, pois esse palco filosófico
seria o próprio real” (GAGNEBIN, 2006, p. ERLER, M. (2013). Platão. Tradução de Enio
Paulo Giachini. São Paulo, Annablume
199). Gagnebin indica que essa estratégia
Clássica; Brasília, Editora Universidade de
platônica confere ainda à filosofia uma Brasília.
distinção digna de nota em relação às
GAGNEBIN, J. M. (2006). Platão, creio,
práticas retórica e sofística, pois a validade estava doente. In: ________. Lembrar
esquecer escrever. São Paulo, Ed. 34.
destas não estava amparada na soberania
do lógos ou no compromisso com o JAEGER, W. (2013). Paideia: a formação do
homem grego. Tradução de Artur M. Parreira.
verdadeiro; e afasta a filosofia também do
6. ed. São Paulo, Martins Fontes.
discurso da história, que, com Tucídides, por
KOIRÉ, A. (1984). Introdução à leitura de
exemplo, se tornara postulante de uma visão
Platão. Tradução de Helder Godinho. 2. ed.
(“racional”) da Guerra do Peloponeso. O Lisboa, Editorial Presença.
gesto ambíguo de Platão enquanto um autor
PLATÃO. (2008). Apologia de Sócrates,
que se oculta, além de original, permanece Eutífron, Críton. Tradução de André Malta.
Porto Alegre, L&PM.
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ed. (1979) Tradução e notas de José
convida a ser um discurso sem sujeito
Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João
singular, tendo em vista sua busca por uma Cruz Costa. São Paulo, Abril Cultural. (Os
pensadores.)
linguagem que diga a verdade, ou, de outra
maneira, deixe a verdade falar por si mesma. SCHÜLER, D. (2001). Eros: dialética e
retórica. 2. ed. São Paulo, Ed. USP.

*** TRABATTONI, F. (2010). Platão. Tradução


de Rineu Quinalia. São Paulo, Annablume.
16

VLASTOS, G. (1991). “Socrates contra


Socrates in Plato”. In: ________. Socrates:
ironist and moral philosopher. Cambridge,
Cambridge University Press, pp. 45-80.

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