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: Dax “Ecologia” e condi¢gées fisicas da reprodu¢ao social: alguns fios condutores marxistas Arricos FRANCOIS CHESNAIS e CLAUDE SERFATI" 1. Introducio A idéia central apresentada neste artigo é a seguinte: hoje em dia, por tras de palavras como “ecologia” e “meio ambiente”, ou ainda nas expressdes “questes ecolégicas” ¢ “questdes ambientais”, encontra-se nada menos do que a perenidade das condigdes de reprodugao social de certas classes, de certos povos e, até mesmo, de certos pafses. Como esses esto, mais freqiientemente, situados seja no que se denomina, hoje, de “Sul” ou no antigo “Leste”, a ameaga parece longinqua e, por- tanto, abstrata nos paises do centro do capitalismo mundial. O tempo de gestagao muito longo dos plenos efeitos de mecanismos presentes no capitalismo desde suas origens foi e continua sendo, mais do que nunca, um fator de inércia nos pafses capitalistas avangados?. Os grupos industriais e os governos dos paises da OCDE tiram, amplamente, partido desse fato para difundir a idéia de que a degradagio das condigdes fisicas da vida social faria parte dos males “naturais” a que alguns povos seriam chamados a submeter-se. Para esses, seria uma “infelicidade” suplementar. Na apresentacdo dominante, as degradacdes ambientais planetérias exigiriam, pois, dos pafses avangados que adotassem, quando muito, mudangas marginais em suas * Frangois Chesnais e Claude Serfati so professores, respectivamente, na Université de Paris- Nord (Villetaneuse} e na Université de Versailles-Saint Quentin. Tradugao de Maryse Farhi. 1 Sobre a questo de duragio e dos longos tempos proprios 4 ecologia, ver Jean-Paul Deléage, Une hiswire de récologie. Paris, Editions de la Découverte, 1991, ¢ novamente publicade no Points Seuil, p. 246 ¢ ss. CRITICA MARXISTA ¢ 39 escolhas tecnolégicas e em seu modo de vida quotidiano. Da mesma forma, 0 tinico “modelo de desenvolvimento” proposto aos pafses “atrasados” continuaria sendo aquele difundido pelos meios de comunicagées a partir dos centros do capitalismo mundial ¢ a ter por base as mercadorias e as formas de vida social produzidas pelos grandes grupos industriais ¢ financeiros. As palavras “ecologia” e “meio-ambiente” mantém um grau elevado de neutra- lidade diante dessa realidade. Elas tornaram-se impréprias e perigosamente inade- quadas, de forma que seria necess4rio substituf-las por outras mais apropriadas. Isso 86 poder ser feito no quadro de uma critica renovada do capitalismo que vinculari de forma indissociavel, a exploragdo dos dominados pelos possuidores de riquezae a destruigdo da natureza e da biosfera. Esse objetivo teérico € partilhado por outros além de nds, mas ainda esta longe de fazer parte das posigSes comuns a todos os marxistas ou ao conjunto das correntes revolucionarias. Essas notas? expdem fios condutores marxianos ou marxistas, mas elas se dirigem a todos os que se preocupam com a renovagao de uma critica radical do capitalismo ¢ que buscam, pois, a se apro- priar novamente o pensamento das correntes fundadoras de tal critica. 1.1, Retornar aos fundamentos das relagées sociais capitalistas Se nés (entendido, aqui, como a civilizagio humana) entramos numa fase da hist6ria do capitalismo em que as conseqiiéncias ambientais da acumulagio no quadro da dominag%io mundial do capital financeiro tendem a materializar-se sob formas extremamente graves e num ritmo que se acelera, os mecanismos que leva- ram a essa situagao estavam presentes desde as origens do capitalismo. Para enten- der as relagdes do capitalismo com suas condigées de produgio “externas”, € ne- cessério retornar as origens e aos fundamentos sociais desse modo de produgao e de dominagio social. Esse é o objeto da primeira parte deste texto, A guerra travada pelo capital para arrancar o campesinato & terra e para submeter a atividade agricola inteira ¢ exclusivamente ao lucro, da qual vivemos novos episédios hoje em dia, € uma guerra fundadora do novo modo de produciio e das formas sociais de dominacao que Ihe so pr6prias. Os dois mecanismos complementares de predago capitalista, dos quais se pode analisar 0 jogo os efeitos, remontam & primeira fase do capita- lismo. Um deles tem por fundamento a propriedade privada da terra e dos recursos do subsolo permitindo a apropriagao das rendas. O outro repousa sobre uma das afirmagoes fundadoras da economia politica (denominada, hoje em dia, de “ciéncia econ6mica”), a de que os elementos do mundo natural, outros que a terrae o subsolo, inicialmente abundantes em demasia para serem facilmente submetidos, como hoje, » O termo “notas” traduz, a0 mesmo tempo, 0 fato de que é a primeira vez que nds (os autores) abordamos essas questes de uma forma que nio seja alusiva e que, por essa razio, somos obrigados a tratar de um leque bastante amplo de questées sem realmente aprofundé-las. 40 * “ECOLOGIA” E CONDIGOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL a um mecanismo de apropriag&o ou de exploragio privado — a 4gua ¢ o ar e, por extensio, a biosfera — seriam inesgotaveis e, portanto, gratuitos. Os fundamentos sociais do capitalismo fornecem igualmente a chave dos mecanismos bem espectti- cos de selegdo social das técnicas que esse modo de produgio ¢ de dominagao social criou, das quais a civilizagio do automével ¢ os organismos geneticamente modificados (OGM) s4o a expresso contempordnea. Todos esses mecanismos ¢ as tendéncias que eles suscitam estavam inscritos nos préprios fundamentos do modo de produgao, bem como nos modos de dominacao de classe, nacionais ¢ internacio- nais (imperialistas). ‘Ao longo das trés décadas de forte crescimento do pés-guerra, houve consi- derdvel aceleragao do jogo dos mecanismos cumulativos, destruidores dos equi- librios ecolégicos, sob 0 efeito das formas de produgao ¢ de consumo tanto do “fordismo” quanto da economia “planificada” staliniana. A crise ecoldgica pla- netéria tem sua origem nos fundamentos e nos princfpios de funcionamento do capitalismo, desdobrados das conseqiiéncias da organizacio politica e econdmi- ca dos Estados burocraticos, inclusive a China. Mas, j4 que esses mecanismos estavam associados a uma importante clevagao do nivel de vida, embora prepon- derantemente nos pafses desenvolvidos, reflexos de cegueira coletiva prevalece- ram, Governos, empresas, partidos e sindicatos operarios entenderam-se de for- ma ticita para silenciar as questdes ecoldgicas. Hoje, a gravidade das agressbes & biosfera € conhecida. Os trabalhos da comissao cientffica, criada pelas Nagées Unidas para estudar as mudangas climaticas*, estabeleceram que em certos domi- nios, tais como os recursos nao-renovaveis e, possivelmente, a biodiversidade, as degradagdes atingiram patamares de irreversibilidade ou, pelo menos, esto pré- ximos a eles. Nem por isso, os governos dos pafses capitalistas desenvolvidos e as instituigdes internacionais deixam de engajar-se na via de um agravamento da situacdo pela ampliagao de “direitos a poluir” que sistematizam o cardter intangi- vel da propriedade privada bem como o direito do, capital & pilhagem da natureza. Do lado daqueles que, hoje, sdo designados sob o termo de “antimundialistas”, constata-se simultaneamente uma consciéncia bastante forte da existéncia de um vinculo entre tais degradacées ¢ a liberalizagao e a destegulamentagao que colo- cam 0 poder econémico efetivo entre as maos dos “mercados”, ¢ uma forte relu- tancia em pér em causa 0 capitalismo, bem como as formas dominantes da proprie- dade dos meios de produgio, de comunicagao ¢ de troca. Hoje, “nossa espécie yiolenta o movimento global da natureza™: cla o faz no quadro de um modo de 3 No que conceme a questo do aquecimento climatico e suas conseqiléncias sociais, essa acelera- (go constitu um das principais resultados do segundo relatério da Comisso das Nagoes Unidas. + Jean-Paul Déleage, Une histoire de I’écologie, op. cit., p. 289. CRITICA MARXISTA ¢ 41 produgo bem especifico. Tragos contemporaneos aceleram seu ritmo, s6 deixan- do a cada indivfduo ou a cada conjunto microssocial uma margem de manobra muito fraca em relag&o a sua participago ou nao nesse processo. Em muitos casos, as respostas sio mundiais e se situam no modo de produgao e de domina- a0 tomado enquanto tal. Este texto pretende contribuir, na Franga, a dar as ques- tes relativas as condigées fisicas da reproducao da vida em sociedade (no ime- diato, aquela de sociedades determinadas) o estatuto de questdes tedricas e politicas de primeira grandeza. A idéia explorada na segunda parte deste texto € que a situagdo que se criou constitui uma crise para a humanidade, uma crise da civilizagao humana; mas, no que tange ao capitalismo, as coisas nao podem ser analisadas tio simplesmente. A crise ecol6gica planetéria ou as crises ecolégicas, cujos efeitos se repartem de forma muito desigual, s40 produto do capitalismo, mas nem por isso sao fator central de crise para este. Hoje, ela se desenvolve de modo acelerado sob 0 efeito da busca pelo capital de “solugdes” para suas contradigdes profundas (taxa e massa de mais-valia, taxa de lucro, superacumulagiio endémica etc.) numa desa- brida fuga para a frente, tornada possfvel pela liberalizagao, a desregulamentagao e a globalizagao. Tomada por este Angulo, a crise ecolégica planetéria é, pois, uma “crise capitalista”. Mas, ela testemunha a plena reafirmacaio da vontade e da recorrente capacidade do capital em transferir a seu meio “externo” geopolitico e ambiental (a biosfera) as conseqiiéncias de contradigdes que sio, exclusiva- mente, suas, no sentido de que surgiram das relagdes de produgao e de proprieda- de que o fundam. Ficou claro que nés (neste caso, os autores desta nota) nio compartilhamos a idéia de que, pelo viés da destruigao ou de danos graves ao ambiente natural, o capitalismo poria em perigo, e até destruiria, suas préprias condigdes de reprodu- co e de funcionamento enquanto capitalismo. Nao aderimos & tese da “segunda contradigao”s. E no amago dos mecanismos de criagao e de apropriagao da mais- valia que jazem as contradig6es que fazem com que “a verdadeira barreira da producao capitalista seja o proprio capital”’, Na esfera do ambiente natural, 0 capital representa uma barreira, ou, mais exatamente, uma ameaga premente para a humanidade — ¢, no imediato, para certas parcelas especificas dessa -, mas ndo para o capital em si. No plano econdmico, o capital transforma as poluigdes industriais, bem como a rarefagio e/ou a degradaco de recursos, como a 4gua e até o ar, em “mercados”, isto €, em novos campos de acumulagao. Em dominios ® James O’Connor, “La seconde contradiction du socialise: causes et conséquences”, Actuel Marx, n. 12, “L“€cologie, ce matérialisme historique”, Paris, 1992, p. 30-6. “ Karl Marx, Le capital. Paris, Fditons Sociales, liv. Ill, . 6, cap. XV, p. 263. [Ed. bras.: © capital, Sao Paulo, Abril Cultural, Coleco Os Economistas, 1983.] 42 “ECOLOGIA” E CONDICGES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL como o das repercussées da decodificacto do genoma ou 0 dos OGMs, vemos estratégias de dominagao econémica politica sem precedentes em sua forma e seus objetivos”, acompanhadas por “apostas” tecnolégicas cegas, de uma irrespon- sabilidade social total. Freqiientemente, seu motor é a satisfagaéo do “valor aciondrio” demandado por investidores institucionais ¢ pelos mercados de agoes. No plano politico, o capital é plenamente capaz de transferir 0 peso das degrada- gGes para pafses e classes mais fracas. Em caso de necessidade, ele pode, em Ultimo recurso, dirigir toda a poténcia militar dos imperialismos dominantes para tarefas de “manutengao da ordem” em todas as partes do mundo em que as degrada- des das condigées de existéncia dos povos, sob efeito das destruigdes ambientais, possam provocar levantamentos. 1.2. O que é um modo de produgéo O que esta em causa, no plano te6rico, € 0 contetido que seria necessério dar A nogdo de “modo de produgao”. Pensamos que, para Marx, o termo designa um modo de dominagao social tanto quanto uma forma de organizagao da produgao material, Parece-nos, igualmente, profundamente erréneo reduzir a reproducao do capital &s suas simples dimensdes econdmicas*. A esse respeito, 0 trabalho te6rico sobre a mundializagao contempordnea do capital? e do imperialismo em suas formas mais atuais (as da guerra do Kosovo e do “pés 11 de setembro”) é de grande utilidade™. E evidente que estamos diante de mecanismos ¢ de politicas conscientes de reprodugdo de uma dominagao social mundializada. No nivel atingido pela polarizagao da riqueza, essa dominagao é aquela, na escala global, de uma pequena, ou até mesmo de uma muito pequena, fragao da humanidade, em sua maioria, concentrada nos paises capitalistas avangados. A domina¢io repousa em bases onde 0 “econdmico” ¢ o “politico” esto, inextricavelmente, emaranhados. E impossfvel dissociar as destruicdes ambientais e ecolégicas das agressdes desfechadas contra as condigdes de vida dos proletatios urbanos ¢ ru- ais e de suas familias, notadamente dos que vivem nos patses ditos do Sul, sob Isto foi estabelecido, com todos os detalhes cientificos necessérios, em Jean-Pierre Berlan (coo denador e principal autor), La guerre au vivant, OGM et mistifications scientifiques, Marselha, Agone, 2001. ® Alain Bihr, em La reproduction du capital: prolégomenes 8 une théorie génerale du capitalisme. Lausanne, Editions Page Deux, 2001, fornece elementos tteis nesse sentido. * Francois Chesnais, La mondialisation du capital, Paris, Syros, 1994 e 1997 (edigio revista € ampliada). © Sobre as dimens6es militares cujos lagos cam as “desordens” de origem ecolégica serdo cada vez mais estreitos, ver Claude Serfati, La mondialisation armée, le déséquilibre de fa terreur, Textuel, La Discorde, 2001. CRITICA MARXISTA © 43 dominagao imperialista. Também é impossivel dissociar as formas econémicas da dominagio ¢ da violéncia de suas formas politicas e militares". Tomadas em seu conjunto, as destruigdes ambientais ¢ ecolégicas e as agressdes contra as condigées de vida dos proletarios sao resultado dos efeitos cumulativos de meca- nismos secretados pelo funcionamento, hd décadas, do modo de produgio capita- lista e da dominagao contempordnea, renovada ¢ quase sem limites, do capital financeiro. A esséncia rentista da finanga ¢ suas estreitas relagdes com as situagdes de renda do solo e das produgdes do subsolo sao fatores particularmente criti- cos no bloqueio de solugdes, mesmo muito parciais ¢ insuficientes, propostas para diferentes aspectos da crise ecolégica. Contrariamente a tese da “segunda contradigao”, o capital cntende fazer um mercado da “repatagau” das degrada- gies ecolégicas. Longe de afetar sua reprodugdo como capital, essas se torna- r&o uma imensa fonte de lucros e de sustentagao dos precos das agoes. Parale- lamente, os governos dos paises ricos, ou pelo menos alguns dentre eles (os que tém a “fibra ecolégica” no sentido banal e, finalmente, bastante reacionario do termo), cuidardo para que as conseqiiéncias da “crise ecolégica” afetem o me- nos e o mais tarde possfvel as condigdes de reprodugao do modo de vida dos proprietérios do capital, de seus dependentes e das camadas sociais que fazem causa comum com eles. Desse ponto de vista, ao afirmar a intangibilidade do modo de existéncia material dos norte-americanos, tinico fundamento possfvel de seu nivel de vida, George Bush exprimiu em voz alta uma posigao partilhada pelos principais grupos industriais e financeiros mundiais (nfo somente norte- americanos), bem como por numerosos governos que nao ficaram zangados que ele tenha tomado a si a responsabilidade de torpedear 0 acordo ad minima de Kyoto. A situacao que esta reservada aos “paises do Sul” testemunha a pere- nidade das relagées de dominagio imperialista, mas num contexto em que as populagées dos paises podem ser deixadas sob o controle de “leis naturais” propostas por Malthus na alvorada do século XIX. 2. Algumas questées prévias Antes de aprofundar um pouco o enunciado dessas duas idéias que coman- dam nossa teflexdo neste texto, queremos dizer algumas palavras sobre pontos de natureza prévia. Trata-se para nds de uma obrigagao pessoal, no momento em que abordamos pela primeira vez um terreno em que obram muitos especialistas, mas que os teéricos do capitalismo pouco exploraram. Sobre o lugar da Otan na defesa do regime de propriedade privada, ver os materi Claude Serfati, La mondialisation armée, op. cit. 44 © “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL 2.1. Um imenso atraso teérico e politico a recuperar O atraso € aquele que nds (os autores deste texto) reconhecemos a titulo pessoal, do ponto de vista de nosso trabalho sobre a critica do capitalismo. Mas nos parece que, de forma geral, esse mesmo atraso também € o da mais ampla maioria daqueles que se reclamam do marxismo. A andlise ¢ a discussio das questdes relativas ao meio ambiente e as ameagas ecoldgicas cada vez mais pre- mentes que pesam sobre as condigdes fisicas ¢ sociais da reprodugo em partes determinadas do globo se fizeram — e continuam ainda a se fazer — muito larga- mente fora de uma referéncia forte a uma problemética marxiana e/ou marxista’*. Elas se fizeram, salvo excegao, sem que se estabelecessem lagos fortes com as molas da acumulagao capitalista, que se efetua, hoje, sob a égide de uma nova configuragao do capital financeiro. Flas se fizeram sem que houvesse um enuncia- do claro do fato de que as relagdes de produgao capitalistas so também, e de forma simultanea, relagdes de dominagAo, cuja reprodugio ¢ expansao se operam no quadro de relagées imperialistas renovadas. Elas se fizeram fora da andlise critica das relagées sociais fundadas sobre a propriedade privada ¢ da demonstra- ¢4o de suas implicagSes cotidianas. O fato de que seu tempo de gestagao tenha sido muito longo permitiu seja ignord-los quase totalmente seja trabalhar tedrica e politicamente na idéia de que tais tendéncias seriam barradas e suas conseqiién- cias retificadas, consertadas apés a revolugao, no quadro do socialismo. A responsabilidade dessas caréncias ¢ desses atrasos incumbe aos marxistas tanto e, no que nos concerne, mais do que aos ecologistas. E, evidentemente, inegavel que, em sua grande maioria, os ecologistas acreditaram poder ou quiseram, deliberadamente, evitar fundamentar suas propostas numa critica do capitalismo de tipo marxiano ou marxista, Atenuaram, ou até apagaram, a importncia das rela- Ges entre o que chamam de “produtivismo” e a lgica do Jucro, da mesma forma que fizeram siléncio sobre o papel central da propriedade privada na crise ecolégi- ca, Isso contribui fortemente para explicar que seu combate tenha sido destinado ao fracasso ou, pior, & recuperagao pelo sistema. A auséncia de uma postura anticapitalista levou a maioria dos partidos verdes europeus a se tornarem simples parceiros “ecorreformistas” da gestdo social-liberal do capitalismo pelos governos dirigidos por partidos sociais-democratas ou stalinistas arrependidos. Mas a subida do pensamento ecologista e das formagées politicas que dele se reclamam nfo teria 7 © importante livro, de origem marxiana, de Christian DeBresson, sobre a mudanca técnica, se baseia, quase que exclusivamente, em suas relagées com e seus efeitos sobre o trabalho, bem como sobre as maneiras que 0s operdrios podem tentar para transformar esse terreno em um campo de mobilizagao. A questo ecolégica é apenas mencionada. Ver Christian DeBresson, Comprendre Je changement technique, Otawa/Bruxelas, Les Presses de l'Université J'Otlawa ¢ Les Editions de I’Université de Bruxelles, 1993. CRITICA MARXISTA ¢ 45 sido possfvel sem o terrivel vécuo teérico e politico que se formou do lado dos marxistas ¢ que durou ao menos até o inicio dos anos 19908. Esse atraso muito importante da andlise marxista € o resultado combinado de numerosos fatores. Suas rafzes esto mergulhadas na leitura unilateralmente “produtivista” do trabalho de Marx e de Engels efetuada durante décadas. Na concepgao que prevaleceu, o “envelope” institucional e organizacional no qual se efetua o desenvolvimento produtivo, incluindo o da ciéncia, € reconhecido como sendo capitalista de cabo a rabo, mas sem que isso afete, sendo de forma superficial, a orientacfo e os resultados desse desenvolvimento. A ciéncia, a tecnologia e as “formas de cultivar ¢ de fabricar” ou, dito de outra forma, as formas das relagdes com a natureza seriam para o socialismo ao mesmo tempo uma “heranga” ¢ um “trampolim”. Elas constituiriam primeiro uma “heranga” que o socialismo poderia aceitar apés inventério, mas um inventério bastante sumario. Em seguida, seriam um “trampolim” a partir do qual a humanidade po- deria avangar sem ter que realizar mais do que inflexdes de rota e sem ter de gerenciar imensos estragos ao tentar reverter, pelo menos parcialmente, suas con- seqiiéncias. E sobre essa base que 0 movimento operério tradicional — os sindica~ tos € os partidos sociais-democratas, bem como os comunistas — puderam cons- truir as posigdes que fazem deles os defensores tanto da energia nuclear quanto da indtstria automobilfstica. Para os PCs ocidentais e os sindicatos ligados & Federagio Sindical Mundial (FSM), tratava-se de defender a experiéncia desas- trosa, do ponto de vista ecolégico como em todos os outros planos, do “socialis- mo real” e da dominagao social da burocracia staliniana', As mudangas nas cotrelagdes de forca entre o capital e o trabalho nascidos da “contra-revolugao conservadora” ¢ da liberalizagao ¢ desregulamentagao, im- postas as classes operarias e aos assalariados de todos os pafses, s6 pioraram as coisas. A “salvaguarda do emprego” tornou-se 0 objetivo prioritério, senZo tini- co, da agio do movimento operdrio, transformando-se num dos maiores argu- mentos contra toda proposta séria de limitagao do uso do automével e até da simples aplicagao dos textos de lei, bastantes limitadas, em matéria de controle de certas poluigdes, por exemplo, nas indistrias quimicas, A ‘“defesa do empre- go” é mobilizada para que a agricultura produtivista ¢ poluidora, bem como os 1 Michael Lowy, em seu artigo “De Marx a I’écosocialisme”, atraiu nossa aten¢do para textos de Walter Benjamin e do militante socialista austriaco Julien Dickmann datados dos anos trinta. Mas, foi necessario esperar até os anos 1990, com os ensaios de James O’Connor, de Tiziano Bagarolo [ver "Essai sur marxisme et écologie”, Quatriéme Internationale, n. 44, maio-julho (de 1992) e ntimeros especiais de revistas americanas como Science and Society e Monthly Review). \* Na Franga, 0 Gnico autor de csqucrda que reuniu elementos sobre essa experiencia € Jean-Paul Déleage, Une histoire de I’écologie, op. cit., p. 287 e ss. 46 * “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL poderosos interesses agroalimentares, a ela ligados e gravemente postos em cau- sa devido & “doenga da vaca louca”, sejam atingidos da forma mais limitada pos- sivel, ou nem um pouco. No que concerne @ corrente trotskista da qual somos oriundos, a repeti¢ao das posigdes dos principais dirigentes ¢ tedricos do partido bolchevista datando dos anos 1920 veio confortar posigdes largamente conformes as dos aparelhos da CGT e da FO. A posigio dos dirigentes do partido bolchevique em atraso tedrico € politico om relac&o Aqueles que, por outras vias, mantiveram ¢ desenvolveram a critica do capitalismo ¢ a estenderam, de forma sistematica, por exemplo ao mili- tarismo, deve evidentemente ser situada no contexto preciso em que se desenvol- veu. A vitéria da primeira revoluco proletaria num pafs pouco industrializado ¢ com fraco desenvolvimento das capacidades de pesquisa cientifica ¢ técnica acen- tuou, muito fortemente, a abordagem fundada na “dominagao das leis naturais” e na dominagao da “natureza”. Ela explica 0 elogio de Lénin ao taylorismo, os discursos sobre a ciéncia e a técnica de Trotski'§, naquela época, ¢ as posigdes sobre a ciéncia e a técnica de Bukharin, fortemente tingidas de positivismo"’. 2.2. Reler Marx e Engels e utilizar essa leitura no contexto historico atual Assim, € preciso retornar a Marx e Engels para relé-los ¢ voltar a trabalhar a critica do capitalismo, da qual eles langaram os fundamentos. Da mesma forma, 6 preciso recusar também, e de forma muito mais firme do que se tem feito até agora, a critica “ecologista” das formas materiais da civilizagio do capital finan- ceiro monopolista. Retornar a Marx ndo quer dizer tentar sustentar que ele, bem como Engels, com ele ¢ apés ele, nao tenham escrito coisas contraditérias ou defendido posi- ges cuja conciliagao nem sempre é evidente. Ao lado de elementos criticos mui- to importantes, que foram durante muito tempo completamente negligenciados pelos teéricos marxistas aps Marx, 0 fato € que existem em seu trabalho nume- rosos textos — de que puderam, e ainda podem, se valer os defensores da “ciéncia, fator de progresso” — que fazem o panegfrico do capitalismo no plano da ciéncia e da tecnologia. © Ver, em particular, Leon Trotski, Marxism and Science. Trata-se de dois discursos de 1925 1926, publicados em inglés em 1938, com fortes avisos no curto prefacio escrito por Trotski € que nao foram levados em conta pelas organizagbes trotskistas que 0 utilizam como um texto de formagao. \ John Belamy Foster, em Marx’s Ecology: Materialism and Nature, Nova York, Monthly Review Press, 2000, acha que Bukharin foi, apesar de tudo, 0 Gnico dirigente bolchevista a ter tido algumas intuigdes sobre a importancia da biosfera. CRITICA MARXISTA ¢ 47 Esses textos & gloria da ciéncia, bem como os que fazem o panegirico da obra realizada pelo capitalismo ¢ pela burguesia, devem ser recolocados em seu contexto, aquele das primeiras grandes exposig6es universais que marcaram todos que as viram. Se Marx ¢ Engels nao tivessem sido sensiveis a elas, pode-se estar certo de que os que Ihes movem um processo acusando-os de positivismo e de cientificismo, os acusariam de ter vivido fora de seu tempo! Esses textos devem também, e sobretudo, ser situados na perspectiva hist6rica e nos prazos de trans- formagao social que so os de Marx, como de todos 0s teéricos revolucionarios, pelo menos até a Segunda Guerra Mundial. No espitito de Marx, enquanto siste- ma, marcado por crises econémicas graves e recorrentes, 0 capitalismo deveria desaparecer bastante depressa. A humanidade dele poderia se desfazer pela revo- lugio assim que fossem reunidas as condigdes objetivas © subjetivas de sua ultra- Ppassagem: os novos meios de produgao e de transporte maritimo e terrestre, os primeiros meios de comunicagio e uma classe operdria concentrada, pronta a ser organizada no plano sindical e no plano politico numa perspectiva de derrubada do capitalismo. E bastante sabido que os textos sobre o carater progressista do capitalismo no plano da criagao cientffica e tecnolégica s4o constantemente qualificados sob © Angulo de suas conseqiiéncias muito negativas para os trabalhadores!”. Menos freqiientemente, apontou-se que alguns desses textos" foram igualmente qualifi- cados sob o angulo de suas conseqiléncias nefastas para a “terra”, termo que é preciso considerar como uma abreviag&o para designar de modo muito mais am- plo as condigSes naturais, fisicas, da produgao e da reprodugao. Uma das passagens em que Marx é mais explicito em relaco as conseqtiéncias “ecolégicas” do capitalismo € aquele que encerra a longa quarta seco do livro I de O capital, sobre a produgiio da mais-valia relativa. Nessa passagem, ele trata da exploracdo (do “martirolégio”) dos operatios agricolas e industriais no quadro de desenvolvimentos mais amplos sobre a relagao entre a agricultura ¢ a grande indiistria. Uma leitura minimamente atenta indica até que ponto, para Marx, a idéia de progresso esté subordinada & de revolugéio: Com a crescente preponderdncia da populago das cidades que ela aglomera em grandes centros, a produgio capitalista, de um lado, acumula a forca motora da histé- ria; de outro lado, destréi nao somente a satide fisica dos operérios urbanos e a vida "Na medida em que esses textos sdo muito sistematicamente negligenciados ou, em todos os casos, minorados em seu contetido analitico de transformacao das forcas produtivas em fatores destrutivos, permitimo-nos recomendar a releitura dos capitulos X a XV do livro | de O capital. '* Esses textos criticos acabam de ser reunidos e reapreciados por Paul Burkert, Marx and Nature: A Red and Green Perspective, ¢ por John Bellamy Foster, Marx's Ecology: Materialism and nature, op. cit. 48 « “ECOLOGIA” E CONDICGES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL intelectual dos trabalhadores risticos, mas ainda perturba a circulagao material entre ohomem e a terra (ete.).” Hoje como ontem, em condigées hist6ricas distintas, toda a questo esté na capacidade de auto-organizagio dessa populacao™, majoritariamente urbana, de vendedores de sua forga de trabalho (de assalariados ¢ de desempregados que sto “proletérios” mesmo se, em sua maioria, deixaram de ser operérios), a ponto de ser capaz de desempenhar esse papel de “forga mottiz da histéria”, isto é, de sujeito politico decidido a acabar com o capitalismo. Na auséncia ou huma situagdo de paralisia de tal sujeito politico, o que domina é a consolidagio e a acentuag%o de um processo em que cada progresso da agricultura capitalista é um progresso nao somente na arte de ex- plorar o trabalhador, mas também na arte de depenar o solo; cada progresso na arte de aumentar a fertilidade por um certo tempo torna-se um progresso na ruina das fontes duradouras da fertilidade. Quanto mais um pafs, os Estados Unidos por exem- plo, se desenvolve na base da grande industria, mais rapido ocorre esse processo de destruigao. E Marx terminava com essa frase, da qual se fez. uma utilizago tedrica muito limitada: “A produc capitalista s6 desenvolve a técnica (...) esgotando as duas fon- tes das quais jorram toda a riqueza: a terra e o trabalhador”?. 3. Tracos predadores e processos destruidores com tempo de gestagiio longo As revolug6es do século XX foram desfeitas — por seu interior tanto ou até mesmo mais do quc pelo exterior. Nao ocorreu a passagem do capitalismo para uma forma de organizacio social na qual a humanidade passaria a controlar as condig6es materiais de sua reproduco, incluindo, ou melhor, comegando sobre- tudo por seu ambiente natural planetario e sua biosfera. E, pois, no quadro da hipétese pessimista, em que “o processo de destruigao se realiza rapidamente”, que estamos obrigados a nos situar. Certamente, Marx pensava poder indicd-lo simplesmente “para manter em meméria”, por assim dizer. Bancando a aposta da extensio da revolugdo, notadamente na Alemanha, os bolchevistas ainda podiam pensar, algumas décadas depois, em tomar emprestado do capitalismo suas © “A grande inddstria e a agricultura", Le capital, livro |, dltima seco do capitulo XV. 2° No Manifesta do Partido Comunista, a formacio do “partido” é indissociével desse movimento de auto-organizacao. Longe de ser exterior a ela, esse movimento é uma de suas formas. ® Karl Marx, op. cit,, livro |, tiltima secao do cap. XV. CRITICA MARXISTA © 49 tecnologias como trampolim para uma situag&o em que liberariam a ciéncia e a técnica de seu invdlucro capitalista. Hoje, somos obrigados a proceder de forma bem diferente. Somos constrangidos a tentar desvencilhar-nos do economicismo ambiente. Nada seria mais urgente do que modificar o terreno e os termos atuais do didlogo dos marxistas com as correntes de pensamento dominantes, mesmo as “heterodo- xas”, com 0 fim de voltar a se apropriar de uma critica tao radical quanto possivel do capitalismo, bem como da dominagao burguesa. Hoje, ser fiel a Marx é relé-lo para procurar com ele (¢ nao apenas em seu trabalho) todos os tragos predatérios e parasitdrios, assim como todas as tendéncias & transformagao das forgas inicial- mente ou potencialmente produtivas em forcas destrutivas, que estavam inscritas nos fundamentos do capitalismo desde 0 inicio, mas cujo tempo de gestagio ¢ de maturagio foi muito longo. Sempre houve, em Marx, uma incitagao a critica a mais radical possfvel, ao “catastrofismo”, como alguns gostam de chamé-la. Hoje, pare- ce que se tornou necessério deixar livre curso a essa critica radical, “pessimista”. &, ento, necessdrio buscar levar mais longe observagées do tipo da que se encontra em A ideologia alemd, quando Marx observa que, no desenvolvimento das forcas produtivas, chega-se a um estégio em que nascem forcas produtivas e meios de circulacaio que s6 podem tornar-se nefastas no quadro das relagées existentes; elas nao so mais forgas produtivas mas forcas destrutivas (0 maquinismo e 0 dinheiro):” Em A ideologia alema, Marx nao leva a idéia além dessa constatagao. Tampouco é certo que, ao falar desses dois mecanismos destrutivos, Marx pensasse na destruicao da “natureza”. Aqui, como nos escritos filosoficos anteriores e como depois em O capital, Marx se refere sobretudo ao destino dos proletarios ¢ de suas familias, bem como das camadas nao proletarizadas mais exploradas. Lembremos em que termos Marx enunciava, no livro I de O capital, a maneira pela qual a lei que pe 0 homem social em condigao de produzir mais com menos trabalho transforma-se no meio capitalista — onde nao so os meios de produgio que esto a servigo dos trabalhadores, mas os trabalhadores que esto a servico dos meios de produgdo — em uma lei contréria, isto é, quanto mais o trabalho ganha em recursos € em poténcia, quanto mais ha pressao dos trabalhadores sobre seus meios de empre- go, mais a condigo de existéncia do assalariado, a venda de sua forga de trabalho, torna-se precéria.® 2 dem, LIdéologie Allemande. Paris, Editions Sociales, p. 67-8 2 Idem, Le capital, op. ci livro |, cap. XXV, par. IV. 50 * *ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL Hoje, Marx enunciaria uma “lei” (isto 6, um mecanismo macrossocial que repousa sobre as relagées de propriedade e as finalidades decorrentes da valori- zagio do capital e que possui efeitos muito amplos) complementar, relativa & destruigdo pelo capitalismo do ambiente natural, dos recursos naturais € da biosfera. O termo complementar € indispensdvel, j4 que € no processo de constituigao inicial, isto é, da expropriagdo das condigdes de existéncia anteriores dos “prole- tarios”, dos homens e mulheres que formarao o “proletariado” (aqueles que sé devem viver da venda de sua forga de trabalho), ¢ de sua dominagao pelo capital, que jazem alguns dos mais importantes mecanismos de destruigéo deste meio ambiente. ‘Ao se colocar numa perspectiva de gestaco longa, esta segaio ird, assim, focalizar-se nos mais importantes mecanismos econdmicos € soviais que sao « origem das tendéncias, despercebidas por muito tempo, do capitalismo & predagio, ao parasitismo ¢ & transformagao de forcas inicialmente ou potencialmente pro- dutivas em forgas destrutivas™ no campo do meio ambiente natural ¢ da biosfera. Embora coexistam com as tendéncias “progressistas” sobre as quais a énfase foi posta por todos os comentadores de Marx até os trabalhos acima citados, clas caracterizam, desde 0 infcio, as relagdes que o capitalismo estabelece com as condigdes externas de produgao encontradas no momento de seu surgimento eno quadro das quais se move. A diltima parte dessa se¢do buscaré apontar, muito brevemente, as conseqiiéncias da centralizagdo e da concentragao do capital e a formagao de alguns dos mais poderosos oligopélios ao redor de atividades, de inddstrias e de formas da vida quotidiana, que tém os mais fortes efeitos destrui- dores das condig6es naturais de reprodugio da vida. ms 3.1. Da expropriagdo do campesinato & “expropriagéo do vivente E no mundo rural ¢ pela penetragao das relagdes de produgio capitalistas na agricultura e na pecudria que é preciso comegar. Ali se situa um dos fundamentos mais cruciais do modo de produgao e de dominacAo ao qual estamos submetidos encontra-se também a origem de um dos mais permanentes mecanismos de agressiio aos metabolismos sobre os quais a reprodugio fisica da sociedade hu- mana repousa. Estamos em presenga de uma esfera em que o capital financeiro * Esta & a posigdo doravante assumida por Michael Lowy, pelo menos no campo da ecologia, na linha de Tiziano Bagarolo (ver nota 6 para as duas referéncias). Nosso primeito trabalho teérico sobre a transformagio de forcas inicialmente ou potencialmente produtivas em forcas destrutivas remonta, para um de nés (Chesnais) a um artigo de 1967 em La Verité (sob o nome Etienne Laurent). © artigo aplicava a idéia ao proletariado, as crises e ao desenvolvimento da ciéncia sob 0 império do militarismo e das indistrias de guerra, 25 No sentido desenvolvido por R. Lewontin ¢ J. P, Berlan; ver La guerre au vivant, op. cit. CRITICA MARXISTA © 51 prossegue, mais ferozmente ainda, sua busca simultanea de lucro e de forgas renovadas de dominagio social. Ele se apéia num processo que remonta aos primérdios do capitalismo, mas que conheceu fases de trégua que, hoje, fazem figura da “idade de ouro”, ‘A expropriagdo dos produtores camponeses diretos ¢ a submissao da produ- gio agricola e animal ao mercado e ao lucro so mecanismos que datam da for- magao do capitalismo na Inglaterra®*. E sabido o papel fundamental que desem- penhou aqui a expropriacao dos agricultores ingleses do século XVI ao século XVII, notadamente pelo movimento de apropriacio privada dos terrenos comu- nais, dito das enclosures, decretado por Thomas More como um mecanismo social ao fim do qual os rebanhos “comem os homens” (‘sheep devouring men”), Marx colocou 0 processo de expropriagao do campesinato no cerne dos mecanismos de acumulagao primitiva. Mas, esse processo nunca deixou de existir ¢ prossegue até nossos dias, ¢ nao é atribuivel somente as politicas do Fundo Monetério Inter- nacional (FMI), por mais que seja necessério incriminé-las. E no nécleo das rela- gGes de produgao e de dominacio que ele se situa. Desde as primeiras colonizagées, a histéria econ6mica ¢ social dos paises do “Sul” subordinados ao imperialismo € aquela, no que aqui nos concerne, de ondas sucessivas de expropriagao dos camponeses em proveito de formas con- centradas de exploraciio da terra (desflorestamento, plantagdes, pecudria extensi- va etc.) para a exportacaio aos paises capitalistas centrais. Quando se examina a situag&o dos maiores exportadores de matérias-primas ndo minerais — o Brasil, a Indonésia ou os paises do Sudeste da Asia — encontramo-nos diante de um pro- cesso em que as destruigdes ambientais ¢ ecolégicas cada vez mais irreversiveis estéo acompanhadas por agressOes constantes desferidas contra as condigdes de vida dos produtores ¢ de suas familias, de forma que é impossivel dissociar a questo social da questo ecolégica. Os beneficidrios sempre foram os mesmos: os grandes grupos de comércio e, depois, de produgao agroalimentar, aliados, em configuragées muiltiplas ¢ mut4veis, as classes dominantes locais, oligarquias rentistas ou capitalistas. O ataque do capital contra a produgio direta fomentou a Tata de classes no campo, primeiro nos paises capitalistas mais antigos e, no sécu- lo XX, nos paises do Sul. Hoje, a novidade consiste numa tomada de consciéncia da interconexio entre as destruigdes ecoldgicas e as agressdes contra as condi- gGes de existéncia dos produtores, que é um dos tragos ~ na América Latina como na Asia — dos movimentos camponeses contemporaneos (por exemplo, o Movi- mento dos Sem-Terra do Brasil). % Ver, para uma sintese recente, E. M. Wood, The Origin of Capitalism. Nova York, Monthly Review Press, 1999. 52 « “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL O interesse teérico da agricultura é a ilustragao das implicagdes da questéio do controle pelos produtores diretos de suas condi¢ées de produgdo. 6 uma das dimen- sdes de sua imensa importancia social. Na agricultura, a separago ou a perda de controle ocorreu duas vezes, em dois contextos econémicos, sociais € técnicos distin- tos. No caso dos pafses com implantagao capitalista mais remota, essas duas expro- priagdes sucessivas tiveram lugar com séculos de intervalo. Na primeira vez, a sepa- Tago dos produtores diretos de suas condig6es de produgao confundiu-se com 0 movimento de expropriago macica do campesinato, Em muitas passagens de O ca- pital ou dos Grundrisse, Marx, a0 mesmo tempo em que explicita as condigées ¢ as conseqiiéncias humanas, considera-a como inevitavel e até mesmo necessatia. A pas- sagem a uma agricultura moderna, se apoiando-se na agronomia dos “gentlemen farmers” dos séculos XVII e XIX ¢ capaz de reciclar seus refugos segundo os pre ceitos da nova quimica do solo, Ihe parece-Ihe um ponto de passagem incontornével num desenvolvimento social que ele considera ainda como colocado sob 0 signo do progresso. Isso ocorre mesmo depois que ele toma rapidamente consciéncia que a submissao da agricultura aos ritmos de crescimento comandados pela répida industri- alizagdo vai transtornar os metabolismos naturais ¢ dar infcio ao movimento de fuga para a frente, em que “cada progresso da arte de elevar a fertilidade por um tempo [6] um progresso na ruina de suas fontes duradouras de fertilidade”””. Na Inglaterra primeiro ¢ depois, com muito tempo de atraso, em quase todos 0s pafses que tiveram uma revolugao democratica burguesa e desenvolvimento ca- pitalista, o primeiro movimento de expropriagio foi seguido por uma fase mais ou menos longa em que parece se formar um novo equilibrio, Tem-se a impressao de assistir ao estabelecimento de uma nova forma de controle pelos produtores diretos de suas condigdes de produgao capitalista na base de pequenas ou médias explora- Ges trabalhando para os mercados locais e urbanos. Somente os Estados Unidos constituem aqui, como em tantos outros dominios, uma excegao. Sao os primeiros a destruir seus “agricultores” e a implantar, muito mais cedo do que em qualquer outro lugar, uma agricultura altamente mecanizada, com utilizagdo intensa de pro- dutos quimicos e com um forte dispéndio de energia®. Esse controle parcialmente recuperado, sem diivida largamente em aparéncia e de forma totalmente momenta- nea, se dé no quadro das propriedades capitalistas de tamanho médio ¢ nas explora- ¢0es camponesas cujos proprietdrios beneficiaram-se de uma formagao agronémi- ca. Bom niimero dentre cles pode praticar uma agricultura aproximando-se, pelo menos um pouco, do tipo ideal descrito por Berlan, ® Sobre a nogo de metabolismo, bem como da divida de Marx em relacao a Leibig, consultar John Belamy Foster, Marx’s Ecology: Materialism and Nature, op. cit. % David Pimentel, “Food Production and the Energy Crisis”, Science, n. 182, 1973. CRITICA MARXISTA ¢ 53 inovagées resultantes de una inteligéncia coletiva, associando 0 conhecimento cien- tifico com 0 conkecimento camponés para, em seguida, se prestar @ partilha e sa- bendo convencer a natureza a trabalhar amigavelmente para nbs.” Esse controle recuperado foi tornado passageiro pelo ritmo da industrializagiio e da urbanizagio ¢ sobretudo pela necessidade absoluta, do ponto de vista da acumu- lagdo do capital, que as mercadorias desempenhando um papel central no custo da reprodugio da forga de trabalho (0s “bens-salério”) fossem as mais baratas possfveis. O aumento, custe o que custar, da produtividade agricola teve dois efeitos: ela desem- bocou no que hoje se chama ¢ se critica muito hipocritamente como o “produtivismo a toda” e a “agricultura poluidora”. Faz-se de conta que € possivel “esquecer” que eles sio o resultado de politicas deliberadas, altamente subvencionadas, que tiveram também por resultado entregar a agricultura & grande indiistria agroquimica, onde se desenvolvem hoje as biotecnologias. Passo a passo, 0 agricultor € submetido, hd trinta anos na Europa (e muito antes nos Estados Unidos), a uma nova fase de expropria- ao. Seu objetivo € a instalagdo de um imenso dispositivo tecnolégico ¢ institucional destinado a por fim ao que sempre tinha parecido um processo imutavel, isto é, a manutengao do controle dos agricultores sobre suas reservas de sementes. Trata-se de proibir aos agricultores o plantio de parte dos gros que colhem, tanto pela lei interna- cional, a da protegdo pela Organizagio Mundial do Comércio (OMC) do paten- teamento sobre 0 vivente, quanto por uma técnica de transgénese — batizada pela Monsanto pelo nome explicito ¢ jé célebre de Terminator, que permite produzir um grdo (e, em breve, muitas outras sementes) estéril, que nfo pode ser novamente plan- tado. As conseqtiéncias previsiveis em caso de sucesso do capital financeiro sao de uma gravidade incomensurdvel nos paises pobres com grande populagéio campone- sa. A menos que haja uma resist@ncia social e politica de grande forga, 0 capitalismo teréi conseguido alcangar 0 término de seu processo de expropriagao dos produtores ¢ de dominagao do vivente. Teré passado da expropriaciio dos camponeses 4 expropria- do do direito geral dos seres humanos de reproduzir, e em breve de se reproduzir, sem empregar técnicas patenteadas, sem pagar um pesado tributo ao industrial e, por detras desse, a seus acionistas e as bolsas de valores”. 3.2. A renda no coracéo do esgotamento dos recursos naturais A chave da posigao do capital em relaco aos recursos naturais foi formulada por Jean-Baptiste Say, quando disse que as riquezas naturais que nfo podem ser 2 Jean-Pierre Berland, La guerre au vivant, op. cit, p. 7. 29 Sobre todas esas questdes, é indispensdvel ler Jean-Pierre Berland, La guerre au vivant, op. cit. 54 * “ECOLOGIA" E CONDICOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL “nem multiplicadas, nem esgotadas, nao so 0 objeto da ciéncia econémica’™!. Por af, ele pretende afirmar que o capital s6 se interessa por um recurso natural em dois casos. O primeiro é quando esse pode ser “multiplicado”, isto é, produzi- do com lucro no quadro da valorizagao do capital, seja ao ser submetido a um proceso de transformagao ou de prestagaio de servigos, seja ao ser oferecido no mercado sob forma de substituto industrial que, se necessdrio, sera imposto con- tra o verdadeiro produto natural pelo emprego de estratégias semelhantes as em- pregadas pelos grupos de agroquimica para os produtos hibridos e os OGM. O segundo caso € 0 do recurso natural, inicialmente considerado inesgotavel, cuja rarefagdo progressiva ou mesmo as perspectivas de esgotamento torna suscetivel de dar margem a rendas para os que controlam seu acesso. A renovagiio de uma economia critica ¢ radical pressupoe que se dé teoria da renda 0 maior desenvolvimento possfvel e se aprofunde a andlise do lugar reservado no capitalismo aos rentistas de todas as categorias. Ao mesmo tempo, a questo da propriedade se torna incontornvel. A propriedade privada do solo e dos recursos naturais agricolas e minerais a ela relativos, e portanto a possibilida- de que se abre de receber um certo tipo de rendimento — a renda — cuja particula- ridade é de s6 estar fundado no fato de gozar da propriedade exclusiva dos recur- ‘sos em questo, nasceu antes do capitalismo. A relagdo que deve ser qualificada objetivamente, cientificamente, de parasitdria (mesmo se alguns podem objetar que esse termo comporta um julgamento de valor) — aquele que o proprietério estabelece com os recursos sobre os quais esté “sentado” ¢ com aqueles que os valorizam por seu trabalho — é bem anterior ao capitalismo. Para nos mantermos apenas na hist6ria ocidental, ela foi a fundacio da economia rural na época feu- dal. Mas a economia mercantil em sua fase de expansao primeiro mundial e no capitalismo, em seguida, deu A renda um formidavel desenvolvimento. E facil entender porqué. Um sistema ¢ um modo de dominagio social, que se baseiam na propriedade privada dos meios de produgao e sobre o dinheiro como forma de riqueza universal e de poderio social, so naturalmente inclinados a legitimar a propriedade privada sob todas suas formas. Passado um muito curto pertodo de conflito entre os capitalistas e os proprietérios fundiérios agricolas (conflito largamente circunscrito & Franga, com 0 desmantelamento da propriedade eclesidstica e a abolicao dos direitos feudais, e a Inglaterra, com a estigmatizagao da renda na teoria da acumulago de Ricardo ¢ a discérdia sobre as leis que taxavam a importagao de trigo), o lucro fez as pazes % J.-B. Say, Cours complet d’économie politique, 1840. [Ed. bras.: S40 Paulo, Abril Cultural, Cole- 40 Os economistas, 1983.] Devemos essa citagdo a J.-M. Hambey em L “économie éconame: le développement soutenable par la réduction du temps de travail, Paris, 1997, LHarmatian, p. 93, mas propomos uma interpretacdo distinta da sua, CRITICA MARXISTA ° 55 com a renda. A terra agricola foi reconhecida como fonte de renda, bem como os rios ¢ as quedas de Agua industrialmente exploraveis, as minas de ferro, de carvao e de todos os metais nfo-ferrosos, e, mais tarde, as jazidas de petr6leo, os terre- nos adequados & construgdo e o solo urbano, Um amplo leque de mecanismos assegurou uma osmose entre renda ¢ lucro. No livro III de O capital, Marx exa- mina um caso que nos interessa diretamente, jd que diz respeito & renda tirada da propriedade de quedas de agua necessérias & indistria téxtil —renda sobre a 4gua, um recurso que Say declarava “gratuito porque inesgotavel”™. Os mecanismos de interpenetragio da renda ¢ do lucro foram, mais tarde, consolidados pela ampliagao do poder daqueles que Marx chamava os capitalistas “passivos”, beneficidrios de uma renda baseada na posse de capital-dinheiro. Como sc sabe, temos af um capital cuja valorizagiio repousa sobre um direito de proprie dade (hoje em dia, sobretudo materializado em agdes) ou sobre um crédito (dos titulos de dfvida piiblica, notadamente) dos quais seus detentores esperam obter uma renda “t@o naturalmente quanto a pereira carrega péras”’. Marx analisou as singularidades dos tipos de renda decorrentes pura ¢ simplesmente de um direito de propriedade, o fez precisamente no quadro da andlise da renda da terra posterior a instaurag&o do capitalismo. Ele a comparou aos titulos representativos da divida publica e escreveu que, como esses, “o titulo de propriedade fundiaria nada tem a yer com 0 capital investido, Seu valor é fundado numa antecipagao”™. Em outro texto, esclarecia 0 prego a pagar por esse direito que se outorga 0 rentista: ‘Uma antecipagiio do futuro — uma verdadeira antecipacao, em geral, s6 ocorre na produgao da riqueza quando é relativa ao trabalhador ¢ & terra. O futuro de ambos pode efetivamente ser antecipado e devastado pelo desgaste prematuro e pelo esgo- tamento, pela ruptura do equilfbrio entre despesas e receitas. Isso se produz para um para o outro na produgio capitalista.** Com a palavra “esgotamento”, Marx nos pde em presenca de uma nogio- chave. O proprietério de um titulo de propriedade de terras, mas também de agGes ¢ obrigagées, espera que suas rendas decresgam. Seu tnico reflexo, decorrente da “racionalidade econémica”, é fazer avaliagdes sobre o montante e a duragdo dos fluxos rentistas com o fim de negocia-los nos mercados especializados. Isto é tudo. A relagdo 6, de forma inerente, parasitdria. As idéias de manutengao, de % Essa discusso encontra-se na seco do livro Ill de O capital, consagrada a renda fundidria, no capitulo XXXVIII que tem o elogtiente titulo de “Conversio do sobre-lucro em renda fundidria”. * Karl Marx, Le capital, op. cit, livro Ill, t. 7, cap. XXIV, p. 56. 2 Idem, ibidem, op. cit, livro Ill, cap. XLVI, p. 188. “8 Idem, Théories sur les plus-values. Paris, Editions Sociales, 1976, t. 3, p. 359. [Cd. bras.: Teorias da mais-valia. Rio de Janeiro, Bertrand, 3 v.) 56 © “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL restituigaio, de gestao ao longo do tempo podem se impor ao proprietario ou (caso mais freqiiente) Ihe serem impostas em certas circunstdncias. Elas nao Ihe ocor- rem espontaneamente. A tendéncia natural do rentista é simplesmente desfrutar dos fluxos de renda enquanto esses durarem. O proprietario de obrigagdes do Estado nao se importa com 0 custo que aqueles sobre os quais pesam os impostos devem suportar para que ele receba seus juros, verdadeiro tributo perpétuo. O detentor de agGes nao se importa com o custo suportado pelos assalariados, en- quanto puder embolsar, gragas & gestfio de empresas baseada na “criagao de valor para o acionista”, seus dividendos e mais-valias cujo montante é diretamente pro- porcional a baixa do custo da forga de trabalho. Longe de considerar que 0 comportamento dos rentistas diz, unicamente, respeito a esfera financeira, Marx nos diz, em vez disso, que eles estfio absoluta- mente presentes na relago que o capital estabelece com os trabalhadores e com a terra. A luta de classes passou a conter em parte a tendéncia ao esgotamento dos primeiros e 0 progresso cientifico ¢ tecnolégico veio, em parte, para transferir certos efeitos para mais tarde no caso da segunda. No entanto, a vitdria conseguida pelo capital financeiro no quadro da globalizacao capitalista contemporanea, oriun- da da liberalizagao e da desregulamentagio deu um formidével impulso ao capi- talismo predador e & apropriacio rentista. As medidas politicas destinadas a de- senvolver os mercados financeiros (a “globalizag4o financeira”) tiveram por objetivo ampliar consideravelmente a variedade de ativos financeiros ¢ a diversi- dade das esferas de valorizagao do capital rentista ao prego de um esgotamento acelerado “do trabalhador e da terra”. Tomemos 0 exemplo da transformagao da devastagao da natureza em cam- po de valorizagao do capital portador de rendimentos para os acionistas. A de- ntincia dos desastres pelos relat6rios dos peritos cientificos, as associagées eco- légicas, os movimentos de resisténcia das populagGes diretamente atingidas levaram os governos e as organizacoes internacionais a cuidar dessa questao. Eles 0 fizeram com a preocupagao de permitir que a acumulagio do capital rentista 0 modo de consumo fundado na destruigao ecolégica prosseguissem. Assim, as politicas neoliberais enfatizaram a criagao de mercados financeiros especializados, cujo objetivo é a imposicio de direitos de propriedade sobre elementos vitais como 0 ar, mas também a biosfera enquanto tal, que devem deixar de ser “bens livres” e tornar-se “esferas de valorizagao” fundadas pela instauragao de direitos de propriedade de um tipo novo (0s “direitos de poluir”) e de “mercados ad hoc”. Tal € 0 contetido real da transformacao da natureza em “capital natural” pela teoria neoclassica, da qual Jean-Marie Harribey fez uma critica acirrada**, A na- % Harribey, op. cit. CRITICA MARXISTA © 57 tureza adquire 0 estatuto de um “fator de produgiio” e se torna um “capital natu- ral” cuja combinagao com os outros fatores, 0 trabalho ¢ 0 capital fisico, permite o crescimento””. Nesse quadro analitico, a existéncia desse capital repousa sobre a determinagao de uma taxa de atualizag4o que permite calcular o valor presente de um calendério de rendimentos, da mesma forma que a dfvida piblica torna-se um capital pela atualizagio dos fluxos de juros. A “capitalizago da natureza”* nao exprime sua “transformagao em mercadoria”. Ela cria para os proprietérios desse capital um novo campo de acumulagdo de riqueza que se alimenta da des- truigdo acelerada dos recursos naturais e, no caso dos “direitos de poluir”, de danos sem diivida irreversiveis 4 biosfera. 3.3. Néo hd “desenvolvimento sustentdvel” sem pér em causa as indistrias dominantes e uma parte das tecnologias Uma das dimensoes essenciais da ameaga que a dominagao prolongada do capitalismo faz pesar contra o futuro da ou das sociedade(s) humana(s) estd ligada ao fato de que a acumulagao encarnou-se, de forma cada vez mais imobilizada, em indtistrias, em ramos e em trajetrias tecnolégicas determinadas. A maior parte dessas, sendo todas, tém fortes efeitos poluidores. Uma das maiores expressées da fraqueza do pensamento antiliberal critico (ou pretensamente tal), em particular do que se interessa pelo “desenvolvimento sustentavel”, € aceitar essas indiistrias ¢ essas tecnologias como “irreversiveis”, como as tnicas possfveis. Jean-Marie Harribey conclui seu capitulo sobre essa nogio pela constatagao seguinte: na medida em que a grande maioria dos intervenientes sobre esta questo accita, ou tenta fazer admitir, que na medida em que todos os pafses do planeta promovem. ainda em seu seio um crescimento econdmico forte e quase eterno, 0 conceito de desenvolvimento duradouro nao abre novo paradigma, mas permanece fundamental- mente no interior do desenvolvimento (entendido como sinénimo de crescimento produtivista, FC. e C.S.).” Dirfamos, mais precisamente, que eles procuram (e conseguem, diante da atual auséncia de toda oposigAo teérica ou pratica forte & propriedade privada dos meios de produgao) fazer admitir que os cenérios de desenvolvimento devem ser construfdos ~ ¢ s6 assim podem sé-lo — tomando como base relagdes de proprie- dade ¢ de producao imutaveis (ou, entdo, mudados no sentido da reintroducao da ¥ Os tebricos neoclissicos se dividem entre os partidérios da sustentabilidade “fraca”, na qual 0 capital reprodutivel (trabalho e capital fisico) e o capital natural so substituiveis na funca0 de producdo e os adeptos da sustentabilidade “forte” para quem eles no 0 so. % Segundo a expressao de M. O’Connor. » Harribey, op. cit., p. 157-8. 58 * “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL propriedade privada como é, agora, 0 caso da China) ¢, portanto, também de tecnologias e indiistrias largamente, senao totalmente, idénticas as que caracteri- zam hoje os paises capitalistas avangados. No nivel conceitual, a extensao internacional do capitalismo se define como a extensio da relagao de produgao capitalista, da relagdo entre capital e trabalho assalariado. Mas, nao se pode negligenciar a encarnagao material dessa exten- sdo, a saber, a exportagdo e a implantagdo de indistrias especificas, notadamente as que se tornaram centrais para a acumulagao, como a automobilistica ou a qui- mica pesada. Sao, justamente, as mais poluidoras ¢ as mais perigosas para a des- truigao da biosfera. Para além de divergéncias teéricas e politicas radicais sobre outros pontos, quase todas as correntes que se reclamam do marxismo tém privi- legiado a dimensdu da formagiv nos pafses coloniais © semivoloniais de uma classe operaria suscetfvel de dirigir 0 combate antiimperialista desembocando num combate pelo socialismo. Mas, no plano da teoria do desenvolvimento e da escolha das indtstrias e das tecnologias, os melhores teéricos, como Charles Bettelheim, compartilharam o paradigma dominante. Nossa geracdo e a dos que nos seguem nao podem mais fazé-lo. Face & impossibilidade de continuar a passar as formas materiais concretas do desenvolvimento para segundo plano (ou até a calar totalmente sobre elas), é preciso retornar a Marx. Se aceitarmos proceder a uma releitura de O capital a luz dos problemas contemporaneos, encontraremos os fios condutores que ele oferece para efetuar a andlise critica do rumo tomado pela evolucao da tecnologia e da ciéncia, Entender-se-4 até que ponto essas foram moldadas pelos objetivos da dominagao social e do lucro; da mesma forma, perceber-se-4 que € devido a mecanismos especificos de selecdo que devemos as indiistrias especfficas que formaram a estrutura da acumulag&o, uma vez passada a primeira fase de emer- géncia do modo de produgio. E na quarta segao do livro I de O capital, nas paginas que preparam a tran- sigdo do capitulo sobre a manufatura ao do maquinismo e da grande industria ¢ depois nos primeiros subtitulos desse capitulo, que encontramos dois fios condu- tores de importancia maior. O primeiro tema é 0 da reversio da relagdo entre 0 operario e a ferramenta: “Na manufatura e no oficio artesanal, o operario se serve de sua ferramenta; na fabrica, ele serve & maquina (...) os operdrios sao incorpo- rados a um mecanismo morto que existe independentemente deles’”’. O segundo fio condutor é a idéia da integragio ou da absorgdo da ciéncia pelo capital como instrumento de dominagao, a cada vez ou a partir do momento em que suas apli- cages praticas tornam-se conhecidas: “as poténcias intelectuais so transforma- * K, Marx, Le capital, op. cit, liv. I, cap. XV, par. IV. CRITICA MARXISTA ° 59 das em poder do capital sobre o trabalho”; elas so apropriadas pelo capital a ponto de parecer ser um de seus atributos. Af esté a chave da distingdo feita por Marcuse entre, de um lado, a técnica (enquanto aparelho técnico, industrial, de transporte e de comunicag6es) e, de outro, a tecnologia (da qual a técnica € s6 uma parte), que constitui um modo de produgao e de dominagao®. Sob um angu- lo diferente, Jacques Ellul falaré do “movimento de autonomizagao da técnica” ou ainda da constituigiio de uma “ecnoestrutura” colocada acima da sociedade. Sea técnica tomou a aparéncia de uma poténcia independente frente & socie- dade, € porque ela foi primeiro utilizada para dominar o trabalhador em seu local de trabalho e durante o processo de produgo, porque, anteriormente, © meio de trabalho foi erguido como um aut6mato frente ao operdtio, no decorrer do proprio processo de trabalho, sob forma de capital, de trabalho morto que domina e que suga sua forga de trabalho. A relagao com as questées tratadas pela ecologia é uma relagdo direta: A economia dos meios coletivos de trabalho, ativada e amadurecida como numa estufa quente pelo sistema de fabrica, torna-se nas mos do capital um sistema de furtos cometidos sobre as condiges vitais do operério durante seu trabalho, sobre o espago, o ar, a luz (...).4 Um modo de produgiio que criou 0 habito de tais v6os, desde seu nascimen- to, € pouco suscetfvel de perdé-los*s, sobretudo quando 0 ciclo de valorizagio se faz num contexto de expansao global muito, muito lenta e que os grupos devem satisfazer os apetites insacidveis dos acionistas. Essas so algumas das pistas de pesquisa, que esperamos possam incitar a uma retomada das pesquisas sobre 03 mecanismos de orientagao da ciéncia ¢ da tecnologia préprias ao capitalismo. Eles sao bem anteriores a0 momento em que os orgamentos militares de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) primeiro, ¢ depois dos colossais orgamentos de P&D dos grupos de quimica, de farmacia e de eletrénica passaram a orientar seu rumo de caso pensado. O desenvolvimento da ciéncia e da tecnologia nunca foi neutro. Por detras da “autonomia da pes- *" Ibidem. * H. Marcuse, Technology, War and Fascism, Routledge,1998. [Ed. bras.: Tecnologia, guerra e fascismo. $20 Paulo, Unesp, 1999.] © K. Marx, Le capital, op. ci ro 1, cap. XV, par. IV. *" Ibidem, fim do pardgrafo IV. * Ver, por exemplo, “Dans l’enfer de I’amiante, un crime social parfait’, Le Monde Diplomatique, abril de 2002. 60 © “ECOLOGIA” E CONDIGGES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL quisa” (que 0 capital financeiro nao tolera nem mais como um mito), sempre houve possantes mecanismos objetivos (o financiamento, os modos de recom- pensa do sucesso) ¢ subjetivos (a interiorizagao dos valores da sociedade bur- guesa) que a orientaram segundo os impulsos da acumulagao ¢ da hierarquia dos objetivos do capitalismo. Por enquanto, ao tratar brevemente do “maquinismo”, abordamos apenas a primeira das duas formas designadas em A ideologia alemé como destinadas a se transformar em forgas destrutivas. Assim, seria preciso agora examinar tudo que deve ser reunido sob a palavra “dinheiro”. Em nossa opiniao, € necessério reunir ali tudo que, na sociedade burguesa, busca despertar e alimentar cons- tantemente o individualismo ¢ 0 sentimento da propriedade privada individual, embora isso seja contraditério com as tendéncias de uma sociedade que socia- lizou e internacionalizou os meios de produgao, de comunicagao ¢ de troca a um grau inaudito (basta pensar na Internet). Isso implicaria, notadamente, exa- minar 0 lugar do carro individual e papel do automével ao mesmo tempo como um dos principais campos da acumulagio e um dos eixos do processo de centralizagio e de oligopolizago do capital, mas também de dominagio social. Com efeito, parece-nos dificil considerar o fetichismo do automével de outra forma que como um dos complementos, uma das mais generalizadas particula- rizag6es do fetichismo do dinheiro ¢ da propriedade individual, um simbolo da dominagio ideolégica e politica perene & qual a burguesia aspira. Hoje, “o horizonte intransponivel do capitalismo” tem como coroldrio “o horizonte intransponfvel da civilizagao do automével”. Segundo certos célcu- los, ao se generalizar ao conjunto da populagdo mundial o consumo médio de energia dos Estados Unidos, as reservas conhecidas de petrleo se esgotariam em dezenove dias*. O conjunto da populagao mundial nao € 0 objetivo que os grupos industriais e financeiros dos pafses da Trade miram imediatamente. Em compensagao, substituir os transportes piblicos ¢ a bicicleta pelo automovel para uma frago mesmo pequena (10%) do bilhdo e cem milhdes de habitantes da China é, com o consentimento da burocracia chinesa e dos capitalistas lo- cais, 0 objetivo dos grandes grupos do automével ¢ do petréleo. Atingir esse objetivo lhes asseguraria, quem sabe, uma década de «crescimento» e, portanto, um fluxo correspondente de dividendos e de mais-valias. O que poderia, por sua vez, ajudar fortemente as bolsas de Wall Street, de Téquio e da Europa, onde esses grupos sao os pilares da liquidez, a se beneficiarem de mais alguns anos de uma maior estabilidade altista relativa. “© M. Mies, “Liberacién del consumo o polinizacién de la vida cotidiana”, Mientias Tanto, n. 48, Barcelona, 1992, p. 73, citado por Michael Lowy (ver reteréncia anterior). CRITICA MARXISTA 61 Somos, pois, confrontados & existéncia e As agdes ofensivas ¢ defensivas de um extremamente poderoso “bloco de interesses” de grupos industriais com forte intensidade poluidora. Sua constituig&o é 0 resultado de mecanis- mos de centralizagao e de concentrag&o do capital que resultaram na forma- ¢4o de alguns dos mais poderosos oligopélios mundiais, erguidos ao redor de indistrias como as do automével ¢ do petréleo, sendo que essa Ultima tem interesse estratégico e militar para os pafses imperialistas e europeus. A exis- téncia desses oligopélios depende mesmo da perenidade dos modos de vida quotidianos (0 automével e as escolhas urbanas dele decorrentes etc.), tendo os mais fortes efeitos destruidores das condigdes gerais da reprodugio da vida, E esse “american way of life” cuja defesa e reprodugao importam a George W. Bush, sejam quais forem as conseqiiéncias para as saciedades que serao expostas em primeiro lugar e mais gravemente as conseqiiéncias da mu- danga climatica. 4. A crise ecolégica, crise da civilizacio humana mas nio crise do capital E nos fundamentos das relagdes de propriedade e de dominagao capita- listas que se situam as origens de sua relacdo com os recursos naturais ¢ a biosfera. O capital nao poe em perigo suas proprias condigdes de reprodugio ¢ de funcionamento ao destruir ou danificar gravemente o ambiente natural. Segundo nossa compreensao, por essas destruigées cada vez mais graves e, em alguns casos, irreversiveis, o capital pée em perigo as condigées de vida e a propria existéncia de certas comunidades, e até mesmo de certos pafses. Mas ele nao coloca diretamente em perigo as condigées de sua dominagio. Nés nao aderimos a tese da “segunda contradi¢o” por um conjunto de ra- z6es, no cerne das quais encontra-se nossa interpretagao do lugar preciso em que se situam as tinicas contradigdes que afetam verdadeiramente 0 capital. No que concerne as condi¢Ges “externas”, “ambientais” de seu funcionamen- to, 0 capital, bem como os Estados que embasam sua dominago e as classes sociais que a ele esto ligadas, t¢m os meios tanto para suportar as conseqiién- cias dessa destruigao de classes, comunidades e Estados mais fracos, quanto para transformar a “gestdo de recursos que se tornaram raros” e a “reparagiio das degradagées” em campos de acumulagao (em “mercados”) subordinados ou subsidiarios. 4.1. O local em que se situam as contradigées do capital enquanto tal Eem sua sede de apropriagdo da mais-valia, nos mecanismos que emptega para tentar estanc4-la ¢ nos impasses aos quais tanto essa necessidade quanto os meios empregados para atingi-la 0 conduzem que jazem as contradigées que fa 62 * “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL zem com que “a verdadeira barreira para a produgio capitalista € 0 préprio capital™”, A liberalizago, a desregulamentagao e a privatizagio, a partir de 1978- 79, bem como as formas precisas da “mundializaciio do capital” que elas engen- draram, devem ser consideradas como a mais recente maneira contemporanea de expressar novamente a posigdo de Marx, segundo a qual a produgio capitalista tende sem cessar a ultrapassar esses limites que Ihe sio imanentes, mas ela s6 consegue fazé-lo empregando meios que, novamente ¢ numa escala mais imponente, erguem diante dela as mesmas barreiras.** A cadeia de contradigSes que desenha o percurso da fuga para a frente do capital pode ser apresentada assim. Ao redor de 1970, 0 capital se encontrava confrontado a uma crise cujo fundo era (e assim permanece) uma insuficiéncia de mais-valia, menos em azo de uma taxa demasiadamente baixa do que de uma insuficiéncia da massa produzida devido a um ritmo muito fraco de acumulagio, com as tinicas excegdes do Sudeste da Asia ¢ da China. A mundializagao do capital em conjunto com as tecnologias de informagao e de comunicagao abriram o caminho para uma elevacao muito forte da taxa de exploragao da forga de tra- balho. A elevagao da produtividade e da intensidade do trabalho, meios “classi- cos” de atingir esse objetivo, conjuga-se doravante com a queda do custo de reprodugdo da forga de trabalho, o que indica que o valor da forga de trabalho tem, em larga parte, uma dimensfo “hist6rica e moral”. P6r em situagao de com- peticaio um exército de reserva de centenas de milhGes de individuos facilita enor- memente a implantagao de medidas que vao nesse sentido. O que se passa dé uma singular acuidade as observagGes de Engels acrescentadas na terceira edi¢ao de O capital: Em nossos dias (...), gragas & concorréncia cosmopolita na qual o desenvolvimento da produgio capitalista langou os trabalhadores do globo (...) ndo se trata somente de reduzir os salérios ingleses ao nfvel dos salérios da Europa Continental, mas de fazer cair, num futuro mais ou menos prximo, o nivel europeu ao nivel chinés.” O proletariado e as classes oprimidas dos pafses atrasados do “Sul” sao incapazes de oferecer uma real resisténcia nesse plano, tendo em vista 0 carter seletivo e limitado das necessidades do capital. A populagio pode ser deixada as “leis naturais”, onde a propria reprodugao € posta em questio. Por enquanto, as coisas so um pouco diferentes nos paises avangados, em que os ataques contra K. Marx, Le capital, op. cit. livro Ill, t. 6, cap. XV, p. 263. * Ibidem, p. 262. * Ibidem, livro |, t. 3, p. 41. CRITICA MARXISTA ¢ 63 0s assalariados passam pela redugdo das despesas puiblicas destinadas & sua repro- dugao e pelo investimento pelo capital nos segmentos de atividades de satide e de formagao suscetiveis de valorizar-se. O objetivo do Acordo Geral sobre 0 Co- mércio de Servicos na OMC é fazer com que esse processo dé tal salto qualitativo. No entanto, o capital j4 vislumbra as mesmas “barreiras” se erguerem no- vamente contra ele, Ele continua a nfo produzir suficiente mais-valia. O capital 86 pode tirar um partido limitado da elevagao da taxa de explorago, porque ele s6 pode empregar em escala mundial uma pequena frago da forca de trabalho que se apresenta no mercado de trabalho. De modo que a massa de mais-valia cria- da nao se elevou (sem diivida, ela o faz cada vez menos) nas mesmas propor- Ges que a taxa de mais-valia, j4 que 0 ritmo de acumulagao 6 fraco demais. Essa situag’o nova pode ser explicada da seguinte forma. A liberalizagao, a desregulamentago ¢ a mundializagao do capital serviram de trampolim para sua “financeirizagao”®. Assistiu-se a uma elevagao, sem precedentes na hist6- ria do capitalismo, do ntimero de detentores de titulos de propriedade e de crédito, isto é, de detentores de direitos a participar da partilha da mais-valia ¢ a exigir seu aumento, Essa elevagdo se mede pelo ntimero de focos de acumulagao financeira, sua riqueza em termos nominais de capitalizagao e sua forga em termos de alavanca do poder econémico e politico™. A burguesia financeira ¢ as camadas sociais que ela associa a esse modo de remunerago dispdem de poderosos meios de apropriagio da mais-valia. Em virtude do peso social € politico dessas classes, nas duas Gltimas décadas, esses efeitos de pungao se expandiram muito. Ora, do ponto de vista da reprodugao do conjunto do capi- tal, o consumo das classes dominantes deve ser deduzido da mais-valia destina- daa ser acumulada. Assim, nao se poderia atribuir a esse consumo o poder de elevar o nivel da taxa de acumulagio (a menos que se adote uma interpretagao “subconsumista” das crises, segundo a qual o consumo insuficiente dos assala- tiados poderia set compensado pelo das outras classes) que permitiria ao capi- talismo conhecer uma fase de expansio duradoura. Assim, a nova configuracdo da partilha da mais-valia entre rendimentos financeitos ¢ lucro reinvestido na produgo (a acumulagao no sentido da repro- dugio ampliada) produz um afastamento importante, que se aparenta a um “efeito de tesouras”, entre a taxa de acumulacdo que permitiria tirar todo o partido possi- * Ver, por exemplo, nossas contribui¢des respectivas em G, Duménil e D. Levy, Le triangle infer- nal: crise, mondialisation, financiarisation, Actuel Marx Confrontation, Paris, PUF, 1999; bem ‘como em Appel des économistes pour sortir de la pensée unique: les piéges de la finance mondiale, ‘obra coordenada por F. Chesnais e D. Plihon, Paris, Editions La Découverte e Syros, 2000. ® Ver André Orléan, Le pouvoir de Ia finance, Paris, Odile Jacob, 1999, e Frédéric London, Fonds de pension, pidge a cons? Mirage de la démocratie actionnariale, Pais, Raisons U’Agit, 2000. 64 ¢ “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL vel da elevacio da taxa de exploracdo, de um lado, ¢ a parte da mais-valia que deve ser distribufda para satisfazer as exigéncias dos detentores de titulos de propriedade e de crédito, por outro lado. Lembremo-nos aqui que Marx via na burguesia uma classe que tinha sido “progressista” em relago as outras classes dominantes, ao mesmo tempo em que mostrava como essa classe estava, rapida- mente, em vias de integrar ¢ assimilar 0 comportamento social das outras classes proprietérias que seus economistas estigmatizavam como classes parasitarias. Para Marx, esse comportamento era indissocivel da via catastr6fica para os assalaria- dos a qual Ievavam sua dominagao e as leis do capital: Depois de mim, o diltivio! Tal é a divisa de todo capitalista e de toda nagao capitalis- ta. O capital s6 se preocupa, pois, com a satide ¢ a duragio de vida do trabalhador se a isso for constrangido pela sociedade.** #0 que se passou durante um periodo, com a regulamentagao da explora- ao. Uma legislagao do trabalho, hoje em vias de ser desmantelada, foi introduzida, sob 0 efeito de imensas lutas sociais, mas também de relagdes politicas entre as classes tornadas momentaneamente favordveis aos trabalhadores pelas dissen- sdes das burguesias entre si®. Hoje, é preciso apreciar plenamente a interagao entre a atitude da burguesia financeira ¢ a trajet6ria do capitalismo nesses tltimos vinte anos. A transforma- Gao da destruigdo da natureza em “campo de acumulagao” para os proprietirios do capital, a busca do controle dos processos do vivente pelo capital, so produ- tos deliberados de decisées politicas. Ao mesmo tempo, elas também sao ~ numa configuragao das forgas sociais particulares que é a da dominagao do capital fi- nanceiro — 0 remédio encontrado as contradigdes do modo de produgao fundado sobre a dominagao do capital. Essa situaco indica que é mais do que nunca necessério distinguir entre, de um lado, a extensio da dominagiio do capital e das relagdes de produgdo sobre as quais se baseia — ou seja, no sentido estrito, a extensio do espago da reprodugao das relagées sociais — e, de outro lado, um aumento verdadeiro da acumulagao do capital, isto é, uma reprodugao ampliada do valor criado. A “mundializagao do capital” combina essas duas caracterfsti- cas. Ela manifesta a supremacia de um modo de dominagio social no qual as formas de apropriagdo do valor pela renda ou a pura predag&o gragas a uma 5K, Mans, Le capital, op. cit, livro |, t, 1, cap. X, p. 264 (destaques nossos). Hoje, pode se acres- centar “Depais de mim o dilivio, tal 6 também a divisa dos capitalistas” para a agua, a biosfera, 05 recursos que no se renovam ou s6 0 fazem muito lentamente etc. ® Ver Frangois Chesnais, La théorie du régime d’accumulation financiére: contenu, portée et intérrogations, Forum de la Régulation, outubro de 2001 (disponivel em CD-Rom no CEPREMAP e na Universidade Pierre Mendés-France em Grenoble). CRITICA MARXISTA © 65 extensio dos direitos de propriedade (territorial, mas também sobre a natureza, 0 ar etc.) levam a melhor sobre as formas de sua criagdo maciga. Em certas regides do mundo, ela se traduz até por uma contragao da produgio. As crises econémicas, as guerras, a elevagao a um grau inédito do militaris- mo (que Rosa Luxemburgo mostrava, j4 no inicio do século XX, ser “um campo de acumulagao para o capital”) nos paises vencedores da Segunda Guerra Mun- dial indicam 0 modo pelo qual o capitalismo do século XX (0 imperialismo) ultrapassou provisoriamente suas contradiges, suas “préprias barreiras”. Elas ergueram-se novamente no final dos anos 1960. Sao elas que o capitalismo vai buscar transpor, ao mesmo tempo, pela acentuagdo de suas agressdes contra os trabalhadores ¢ pela exploragao cada vez mais insana de suas condig6es exterio- res ambientais. 4.2. A tese da segunda contradigao e suas fontes tedricas O ponto de vista de que as questées ecolégicas nao podem ser analisadas fora das relagdes de propriedade, de produgao e de poder dominantes € compar- tilhado, ao menos em parte, por aqueles que se auto-intitulam “ecomarxistas”. Aqui, a contribuig&o mais significativa é a de J. O’Connor e tem por quadro a teoria das crises. Ele ndio considera que a andlise marxista das crises seja obsoleta, mas que se pode tentar enriquecé-la. A “primeira contradigdo” do capitalismo se situa, segundo ele, no nivel da superprodugao de mercadorias e da supera- cumulagao de capital, sendo esta que teria chamado a atengao de Marx. Hoje, 0 capitalismo estaria confrontado a uma “segunda contradig&o”, que se situaria no nivel das “condigdes gerais de produgao”, das quais O’Connor faz, segundo sua propria expresso, uma “reconstrugao” a partir das idéias de Marx. A definicao que apresenta é de que essas condigdes de produgio, indispensdveis & acumula- gao, “no so produzidas como mercadorias segundo a lei do valor ou as leis do mercado, mas sao tratadas pelo capital como se fossem mercadorias”™. Elas in- cluem os meios de comunicagdo e as infra-estruturas, as condigdes pessoais de produgao do trabalhador, as condigées fisicas externas (meio ambiente). As con- digdes de produgao sao o lugar da “segunda contradigao”: “os custos do trabalho, da natureza, da infra-estrutura e do espacgo aumentam de modo significativo, pon- do em evidéncia uma segunda contradigao, uma crise econémica vinda do lado da oferta”, Esses custos aumentam por duas raz6es. Primeiro, quando o capital, % J. O'Connor, “Capitalism, Nature, Socialism: a theoretical introduction”, Capitalism, Nature, Socialism, n. 1, outono 1988, p. 307. 55 J. O'Connor, “ls Capitalism Sustainable?”, em O'Connor (ed.), Is capitalism sustainable? Political Economy and the Political Ecology, The Giliord Press, 1994, p. 162. 66 * “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL a fim de manter seus lucros, recusa as despesas necessétias & manutengio das infra-estruturas necessérias A produgdo, Sua inevitavel degradagao acaba por ele- var 0s custos de reparos. Em segundo, quando o movimento social exige a manu- tengo de suas condigdes de vida, a proteco do meio ambiente etc. A primeira contradigao analisada por Marx é fundada numa crise de demanda, a segunda sobre uma crise do lado da oferta. As posiges de J. O’Connor exprimem uma aprecidvel vontade de integracao das questdes ambientais na andlise marxista. Entretanto, elas so criticaveis. Con- centrar-nos-emos no ponto que ele chama de “condigdes de produgao”. Sua defi- nigdo € bastante préxima da que Polanyi, ao qual ele se refere explicitamente, dé das “mercadorias ficticias” (0 trabalho, a terra, a moeda). Ora, Polanyi constréi sua categoria de “mercadorias ficticias” porque reduz o capitalismo a tinica di- mensdo de mercado auto-regulador, 0 que é implicitamente uma negagio da teo- tia do valor-trabalho. Assim, € levado a ver no Estado um instrumento de protegao e de regulagio da sociedade®, deixando sob siléncio seu papel central na manuten- gio da dominagao de relagdes de propriedade mereantis capitalistas e na imple- mentago da politica de destruigdo da forga de trabalho. Pensamos, ao contrério, numa perspectiva marxista “ortodoxa” (aqui, rei- vindicamos esse termo), que, no quadro do capitalismo, a forga de trabalho € a mercadoria por exceléncia , j4 que é a tinica que produz mais valor do que custa objetivo dos capitalistas sempre foi o de reduzir seu prego, possibilidade que foi decuplicada pela mundializagao do capital e as polfticas neoliberais. A degra- dado das condig6es de satide dos assalariados justamente sublinhada por O’Connor nfo reflete uma contradicio. Ela reflete a liberdade recuperada do capital em explorar um exército industrial de reserva mundial que leva o capital a buscar eliminar aquilo que, agora, considera como um constrangimento insupor- tavel”. E verdade que, em certas circunstancias j4 mencionadas por Marx (as “epidemias que decorrem da superexploragao”), “uma reagio da sociedade con- tra ela mesma” toma a forma de direitos sociais que limitam o direito a explora- gio da mao-de-obra e elevam seu custo, Mas essa reagao € essencialmente a dos proprios operdrios. Repitamos, aqui, que as forgas compulsivas do capital nao vao nesse sentido. O modo com que 0 capital, secundado pelas politicas neoliberais, 5* K. Polanyi, La grande transformation; aux origines politiques et Economiques de notre temps, Paris, Gallimard, 1983, p. 180. [Edicao bras.: A grande transformagao. Rio de Janeiro, Campus, 2000.) % No tratado do NAFTA (Acordo de Livre Comércio Norte-americano), as legislacoes sobre a sati- de eo meio ambiente s80 absticulos ao cométcin © A liherdade de investimento. Decisoes judiciais impuseram essa posi¢ao no Canada e no México. CRITICA MARXISTA © 67 pode se desfazer, em menos de duas décadas, dos direitos e conquistas obtidos por décadas de combate dos assalariados, mostra como a diminuigao do valor da forga de trabalho permanece o objetivo central. Quanto aos meios de comunicagao, as infra-estruturas que Marx designa sob © termo de capital fixo imobilizado, eles apresentam, decerto, particularidades im- portantes do ponto de vista da acumulacao. E um tipo de capital especffico que responde a exigéncias e a constrangimentos distintos dos outros tipos de capitais. Um grau elevado de concentragao do capital € necessfrio e esse deve ser, sistema- ticamente, avangado por meio de emissdes de agbes e de crédito (Engels). Nesses setores, 0 retorno sobre 0 investimento € mais fraco e mais lento. Se acrescentar- mos um uso misto, jé que os meios de transporte ¢ de comunicagao servem, a0 mesmo tempo, de meios de produg&io mas também de consumo para as famflias, pode ocorrer que 0 capital nao gerencie diretamente a exploragdo € a confie ao Estado. Mas tudo isso nada tem a ver com uma mercadoria “ficticia”. No total, a situagio criada para a forga de trabalho bem como para as condi- Ges exteriores de produgio (a “natureza”) nfo traduz um estatuto de mercadorias ficticias, mas, pelo contratio, de mercadorias cujo custo deve ser reduzido sem levar em consideragao sua reprodugao. Tal situagao nos confronta com 0 movimen- to antagOnico de um modo de produgao em que o desenvolvimento das forcas pro- dutivas tem por corolério um processo paralelo de destruigao. No capitalismo, um dos fundamentos da acumulagao de capital consiste em reduzir as “despesas supér- fluas”, a “externalizé-las”, isto €, a fazer com que outros se encarreguem daquilo que ele s6 reconhece como “custos”. A anarquia do modo de produgao capitalista nao se manifesta somente nas crises, que sio os momentos de paroxismo desse proceso, Ela se manifesta permanentemente no desperdicio das forcas produtivas, do qual o capital tenta descarreyur a responsabilidade e 0 custo sobre a sociedade. A exploragao do homem e da natureza até o esgotamento nfo reflete uma contradi- 40 do capitalismo, mas 0 antagonismo profundo entre ele e as necessidades da humanidade. A “crise ecolégica” € a manifestagao da destruigao das forgas produ- tivas, entre as quais os recursos naturais, para as necessidades da acumulacao e num contexto hoje agravado pela dominaco do capital financeiro. 5. O imperialismo do inicio do século XXI A atitude dos paises capitalistas desenvolvidos em relagio aos pafses que cram, anteriormente, coldnias ou neocolénias indica claramente que este é 0 cerne de um antagonismo maior, indissocidvel da dominagio social do capital, j4 anali- sado pelos te6ricos do imperialismo. Entretanto, veremos que, com a mundia- lizagao do capital, as ameagas contra as condigGes fisicas de reprodugiio da vida alingem, cm numerosos paises ¢ até em regides inteiras, uma dimensado muito mais wagica que no inicio do século XX. 68 * “ECOLOGIA” E CONDIGOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL 5.1. Um fardo menos pesado gragas as “leis natura. Nao se pode entender o impasse no qual os pafses do Sul se encontram, hoje em dia, sem inscrevé-los ha longa hist6ria da dominagao capitalista. No quadro da divisao internacional do trabalho, esses pafses, colonizados ou nao, serviram de fornecedores de recursos naturais para os grupos industriais das “metropoles”. Acconquista de novos mercados ¢ o emprego de uma mio-de-obra superexplorada, utilizada no local ou importada, foram igualmente os motores da expansao capi- talista do século XIX e do inicio do século XX. O movimento de independéncia politica que se seguiu & Segunda Guerra Mundial ¢ as lutas anticolonialistas nao alterou fundamentalmente as relagdes de dominagao impostas 4 maioria dos paf- ses que, antes, eram col6nias. No entanio, os anos 1980 marcaram uma mudanga qualitativa na situagao da maioria dos pafses do Sul. O desdobramento espacial dos grupos multinacionais, 0 controle que eles exercem sobre os fluxos de capitais ¢ de mercadorias, a base oligopolista sobre as quais repousa sua estratégia e 0 apoio de que beneficiaram por parte de “seus” Estados no seio das organizagées internacionais aniquilaram as esperangas “desenvolvimentistas” dos anos 1950 € 1960. Os mecanismos econ6- micos institucionalizados implantados pelo capitalismo financeiro se identificam, cada vez mais, a puros e simples processos predatérios que destroem as condigdes de reprodugao das populagées operdrias, camponesas e todas as que nao tém nem mais esse estatuto. Para todos os paises, a divida constitui um tributo perpétuo que s6 podem continuar a servir pagando 0 prego da destruigiio das populagées ¢ da pilhagem dos recursos naturais. A transferéncia das atividades industriais dos gru- pos multinacionais sé diz respeito a uma minoria de paises, aqueles que combinam baixos custos salariais e uma mao-de-obra freqiientemente qualificada e, se possi- vel, uma demanda interna de dimensao importante. Em outros paises, a exploragtio dos recursos naturais permanece como 0 maior objetivo do capital acompanhado, hoje em dia, da apropriagao dos processos do vivente pelos grupos financeiros da quimica e da farmécia. Hoje, o destino designado para numerosos pafses dominados, comegando pelos da Africa, é por vezes comparado a sua situag%o no decorrer da fase de dominagao do imperialismo no comego do século XX, quando os paises da me- trépole buscavam proteger suas col6nias ¢ implantavam seu modo de dominagao politica (embora sob formas diferentes no império francés ¢ na Commonwealth). Entretanto, a situagdo atual é bem diferente. As politicas do FMI e do Banco Mundial e, depois, as medidas tomadas no quadro da OMC nio se limitaram a confortar as exigéncias do capital financeiro. Blas contribufram para a decompo- sigdo politica e a explosao social de numerosos pafses coloniais ou semicoloniais, tornados independentes. As despesas piiblicas indispensdveis As populagées (sati- de, educacdo) ou & simples continuidade da atividade econémica (infra-estruturas) CRITICA MARXISTA * 69 foram macigamente reduzidas. Essas politicas contribuem para a multiplicacao da pentiria, da fome e das doengas que exterminam as populagées. Na Africa, 0 continente mais atingido, as guerras so, ao mesmo tempo, um produto ¢ um componente da mundializagao do capital. Por pouco que o consideremos como um conjunto funcionando em escala mundial, 0 modo de reprodugio do capital 86 tem exigéncias muito seletivas em relagio a parte importante das populagdes dos paises do Sul. A “lei de Malthus”, que preconizava manter a populacdo no limiar da pentria para evitar um crescimento demogrifico excessivo, esté hoje em obra pela fome, pela doenga e pelas guerras®. 5.2. Biopirataria e poluigao para os patses dominados E somente no quadro da mundializagio do capital que se pode analisar a amplitude dos desastres ecolégicos sofridos pelos paises do Sul. Também é por esses pafses que se pode compreender, primeiramente, que a destruigao de qual- quer forma de resisténcia politica das populagées é a condig&io para que a pilha- gem dos recursos naturais se amplifique. Esta é uma das fungdes desempenhadas pelos programas das organizagdes econdmicas internacionais. Porque, por detras da hipocrisia da compaixao pelas populagées do Sul, as relagdes com essas orga- nizagGes apertam 0 cerco: a solugao reside no prosseguimento das politicas neoliberais em proveito dos grupos financeiros multinacionais ¢ a privatizagao dos servigos piblicos ¢ das infra-estruturas de base sao elevadas & condigao de objetivo prioritério. Essa conjungao entre repor em questo as condigdes de exis- téncia das populagdes e a destruigfo da natureza, flagrante nos pafses domina- dos, torna-se correlagao e até causalidade na interpretacao neoliberal: as popula- Ges so pobres demais para se interessar pelo meio ambiente. “Pobres demais para serem verdes”, segundo a expressao de J. Martinez-Allier. Do ponto de vista ambiental, um dos papéis designados aos pases do Ter- ceiro Mundo € de receptéculo de refugos. Os promotores das politicas neoliberais nao somente reconheceram tal papel, como procuraram teorizé-lo, Num relatério que, & época, foi objeto de “vazamentos”, L. Summers, economista do Banco Mundial, escrevia: a medida do custo necessério para enfrentar as conseqiténcias da poluigéo sobre a satide depende da amplitude da redugdo dos custos inducidos por uma mortalidade * C. Serfati, Le mondialisme armé, Textuel, La Discorde, 2001 * C. Meillassoux, “économie de la vie: démographie du travail, Les Cahiers Libres, Edition Page, 1997. “° J, Martinez-Allier, Getting Down to Earth: Practical Applications of Ecological Economics, Island Press, 1996. 70 ¢ “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL uma morbidade aumentadas. Desse ponto de vista, a poluicéo danosa para a sati- de deveria estar nos patses em que esses custos sGo 0s menos elevados, que sto os patses com os custos salariais mais baixos.* Interpretagiio livre da teoria das vantagens comparativas ricardianas, essa anélise serve de fato como suporte das politicas aplicadas em escala internacio- nal. Os acordos de Kyoto (1997) sobre a redugio do efeito estufa, cujo objetivo era muito modesto (redugiio de 6 a 8% das emissées de CO, entre 2008 e 2010 em relago ao nfvel atingido em 1990), criaram uma op¢ao para os paises emissores que Ihes permite comprar “direitos de poluir”. Esse quadro analitico ¢ esses acor- dos servem igualmente para justificar a transferéncia das atividades poluentes dos grupos multinacionais para os paises do Sul. Neste texto, j4 sublinhamos que a ofensiva do capital em diregao a “exploptia- do do vivente” marca 0 término de um processo de dominagao ¢ de expropriagao plurissecular, Sem repor em causa as relagGes sociais que fundamentam essa ex- propriacio, a exigéncia de dentincia dos desastres ecolégicos provocados pela vo- racidade do “complexo genético-industrial”, segundo a expresso de Berlan € Lewontin, corre alto risco de ser desviada e que ilusdes sejam semeadas sobre a natureza das negociagées e das resolugdes internacionais. Assim, a Convengao do Rio (1992), por vezes apresentada como uma etapa importante na protegao da eco- logia planetiria, é, de fato, um vetor do reforgo dos direitos do capital sobre a natureza. Decerto, ela reconhece que os camponeses e as comunidades utilizaram ¢ conservaram os recursos genéticos, desde tempos imemoriais, mas nao Ihes conce- de nenhum direito de gestio ou de propriedade sobre esses recursos. De fato, a conferéncia consagrou os direitos de propriedade intelectual sobre o vivente, legi- timando em escala internacional aquilo que os grupos americanos tinham comega- do a obter em seu pats desde o infcio dos anos 1980. A Convengao de 1992 abria igualmente 0 caminho & pesquisa sobre novos recursos genéticos que poderiam apresentar um interesse farmacéutico. Essa prospegio foi qualificada de pirataria organizada pelas ONGs. Ademais, sob a pressao dos Estados Unidos, a Convengao excluiu uma parte decisiva desses recursos localizados em bancos nacionais e in- ternacionais de genes, fonte de lucros para os grupos do setor alimenticio que ven- dem as sementes. O tom é dado pela OCDE: A preservagiio dos recursos da biodiversidade estaria mais bem assegurada se fosse privatizada, em vez de ser submetida a um regime de livre acesso, no qual os utilizadores praticariam uma exploragao de curto prazo segundo o principio “primei- ro a chegar, primeiro a ser servido”. © L, Summers, “Let Them Eat Pollution”, The Economist, 8 de fevereiro de 1992. CRITICA MARXISTA # 71 E nesse quadro de “regulago pela privatizagaio” que € preciso situar as dis- cussdes no seio da OMC, da qual uma prefiguragio se encontra nas conseqiiéncias sociais e ambientais desastrosas do exemplo do NAFTA®. 5.3. A “questo urbana” As questdes do espaco ¢ de seu lugar no modo de produgao capitalista fo- ram pouco abordadas pelos marxistas. Segundo David Harvey, que preconiza um “materialismo hist6tico-geogréfico”, os marxistas teriam sempre privilegiado “o tempo © a historia (em detrimento do) espago e da geografia”®. Com efeito, 0 espaco, enquanto tal, representa uma esfera de valorizacao para o capital, embora com- porte singularidades (papel central da especulacao financeira, imobilizagao mui- to longa do capital fixo etc.) que precisariam ser situadas na acumulagao e em suas contradigdes. Como o sublinhava H. Lefebvre, “ja pode ser dito do espago aquilo que Marx dizia e mostrava de cada coisa produzida: enquanto coisa, ela contém e dissimula relagées sociais” (destaque do original). Entretanto, é pre- ciso evitar todo reducionismo econémico. A histéria do capitalismo mostra que a burguesia nfo construiu o espaco apenas em fungdo de suas necessidades econd- micas (a redugao “do espago pelo tempo”, como dizia Marx), mas com o objetivo Politico de evitar que a classe operéria encontrasse, na concentragio espacial, a forga necessdria ao combate por sua cmancipagdo. A esse respeito, as tecnologias da informagao, ao facilitar a desconcentragao das unidades de produgao, inclusi- ve das indtistrias em que os constrangimentos técnicos pareciam levar a imensas concentragdes (automdveis, quimica), enfraqueceram a organizagao coletiva dos assalariados ¢ sua capacidade de resisténcia a mundializacao capitalista. Entre as questdes “ambientais” criticas, a da urbanizagio maciga do plancta €, sem diivida, uma das mais notérias. O processo foi brutalmente acelerado apos a Segunda Guerra Mundial. Ele € particularmente marcante nos paises antiga- mente colonizados®. A urbanizag&o das tltimas décadas é, antes de tudo, o resul- tado da expropriagao do produtor rural, camponés ou artesio, e foi acelerada pela substitui¢ao das culturas de subsisténcia por produgées destinadas & exportacao gue criaram situagSes de pentiria alimentar dramatica. A “tevolugio verde” foi “ Ver a andlise de Martinez-Allier, op. cit. © D. Harvey, Justice, Nature and the Geography of Difference, Blackwell, 1996. “1, Lefebvre, Espace et politique. 2. ed. Paris, Anthropos, 1976, p. 110. ‘Em 1800, 98% da populacao era rural. Nos paises desenvolvidos essa proporcéo ainda era de 70% e de 82% para os paises do Terceiro Mundo em 1950. Hoje, ela é de 55% na escala do planeta (e 25% nos paises desenvolvidos). Entre 1950 e 1990, a populagao urbana na Africa, Asia € América Latina vivendo em cidades aumento 300%, 72 ¢ “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUCAO SOCIAL um formidavel vetor das exportagdes de fertilizantes e de inseticidas produzidos pelos grupos agroquimicos, contribuindo para acentuar as desigualdades entre camponeses nos pafses em que uma reforma agréria tinha sido executada para conter os movimentos revoluciondrios do campesinato®, O macigo movimento de éxodo rural lembra aquele ocorrido nos paises ca- pitalistas avangados no século XIX. Entretanto, seria um erro ver na situagao atual de Sao Paulo, México, Cairo, Lagos ou Bombaim uma repetigao em maior escala do processo jé visto na histdria do capitalismo. Nao basta observar que as tragédias sanitarias e ambientais que essas populagdes conhecem tém uma ordem de magnitude muito superior as descritas por Engels, nos primérdios do capitalis- mo da grande indistria. E preciso dizer que 0 que se passa nas cidades do Tercei- ro Mundo nio € 0 sintoma de uma doenga infantil que se reabsorvera com 0 desenvolvimento do capitalismo, mas um produto direto da mundializagao do capital. Em suma, se a expressao desenvolvimento desigual e combinado tem um sentido, hoje em dia, é o de sublinhar que a dominagao do capital financeiro nao somente engendra essa situag%o, mas que sua perenidade profbe qualquer pers- pectiva para as populagdes das imensas megalépoles dos pafses dominados outra que 0 questionamento de suas condiges de reprodugao™. As exigéncias das po- Iiticas das organizag6es internacionais impedem a implementacdo das medidas de urgéncia visando evitar a multiplicagao da pentiria e das epidemias. A Admi- nistragao americana, tinica poténcia “global”, esta perfeitamente consciente do que est4 em questo. As concentragdes de populagao sao consideradas como uma ameaga direta & seguranga nacional pelos peritos americanos da defesa, porque privadas de qualquer esperanga de encontrar um trabalho, reduzidas a uma situa- Go de extrema afligao, elas arriscam verter em movimentos insurrecionais®. 6. Em forma de conclusio Neste texto, apresentamos alguns dos processos econdmicos ¢ politicos que conduzem & pilhagem dos recursos naturais, bem como & orientagao dos resulta- dos da ci8ncia para puros fins de dominagao social. Presentes no capitalismo % Sobre a relacao entre a “revolucdo verde”, a expropriacao dos camponeses e as doutrinas malthusianas, ver Eric B. Brosse, The Malthus Facto: Poverty, Politics and Population in Capitalist Development. Londres, Zed Books, 1998. © Por essa razio, 6 surpreendente que D. Harvey, apés ter falado de um “proceso global de urbani- zaco capitalista ou de desenvolvimento espago-temporal desigual”, escreva que “a explicacao do movimento (de urbanizacao nos paises dominados) ndo pode em si mesmo ser atribuido a maquinagdes provenientes de alguma classe capitalista organizada”, op. cit., p. 414-6. 8 Ver C. Serfati, La mondialisation armée, cap. 3. CRITICA MARXISTA © 73 desde suas origens, esses processos foram agravados, sobretudo de forma qua- litativa, pelas novas formas de dominagio do capital financeiro. Esses meca- nismos com tempos de gestacao longos esto no coragao da crise ecolégica 4 qual a humanidade est doravante confrontada e cujos efeitos esto longe de dizer apenas respeito & biosfera. Antes, com a ameaga termonuclear e, agora, a da destruig&o da biosfera, as questées ecolégicas — questdes de reprodugao so- cial — tornaram-se mundiais, mas atingem as distintas partes do mundo de for- ma muito desigual®. A crise ecolégica constitui, de forma imediata, uma amea- ga poderosa as condigdes de existéncia e de reprodugao social de classes e povos determinados. Um dos resultados que emerge diretamente da anélise é que as agressdes do capitalismo contra a “natureza” esto indissociavelmente ligadas & exploragao do trabalho, figurando como agressdes contra povos. A partir de trajet6rias intelectuais distintas das nossas, outros pesquisadores engajados comegam a chegar a conclusées préximas”. Este texto permite uma primeira confrontacio das abordagens. Nesta conclusio, seria necessério abrir, ainda mais que o fizemos, a questo da propriedade e dos direitos de propriedade. Um dos objetivos e um dos resulta- dos mais importantes do processo de liberalizagiio e de privatizagio das duas tiltimas décadas foi estender, de forma consider4vel, a esfera da apropriagiio e da propriedade privada. O desmantelamento dos Estados burocréticos andou de par com 0 movimento pela privatizagao dos servigos ptiblicos de infra-estrutura com 0 objetivo de transformar, por toda parte, o ensino ¢ a satide em mercados acessiveis somente aos que possuem os meios monetérios de satisfazer essas ne- cessidades vitais. O mais recente terreno da ofensiva — que também é, a falta de precedentes para se defender dela, um dos mais gravemente expostos ~ é 0 da apropriagao privada tanto dos conhecimentos cientificos quanto dessa forma par- ticular de patriménio comum da humanidade que so os mecanismos de produ- Ao e de reprodugio bioldgica ¢ da biosfera. Aqui, 0 objetivo da apropriagao est ligado ao lugar assumido pela ciénciae pela tecnologia (0 conhecimento enquanto “forga produtiva direta”) na concor- réncia capitalista, mas também 2 busca obsessiva pelo capital financeiro de cam- pos de valorizacfio que sejam fontes de fluxos regulares de carter rentista. A extensao da “protecdo a propriedade industrial” para permitir a apropriagao do “vivente” corresponde ao movimento que leva o capitalismo a uma apropriagao “total” do conjunto das condigdes da prética social, para transformé-las em ou- ® Ver Jean-Paul Déleage, Une histoire de 'écologie, op. cit., p. 268 € ss. % Joel Kevel, The Enemy of Nature: The End of Capitalism or the End of the World. Londres, Zed Books, 2002, p. 149, 74 © “ECOLOGIA” E CONDICOES FISICAS DA REPRODUGAO SOCIAL tras tantas mediagGes de sua propria reprodugio”, que é, de modo cada vez mais claro, o de um modo de dominaco que interessa a classes e paises determinados. O movimento “antimundialista” deve apropriar-se dessa questao de forma mais resoluta do que o fez até o presente momento. E preciso combater, palmo a pal- mo, a questdo das patentes, nao somente as dos medicamentos, mas igualmente as relativas As sementes e, mais geralmente, todas que dizem respeito & apropriagao da biosfera. Tampouco pode haver combate conseqiiente em questées como a mercanti- lizagio da Agua ¢ do ar, sem que se coloque a questio da propriedade. Tanto o movimento antimundialista quanto 0 movimento operdrio devem voltar a colocé-la. A propriedade social, da qual a propriedade publica e o setor piblico so uma das modalidades, tem dois fundamentus: v cardter social da produgao ca troca, d qual soma-se uma certa idéia de bem comum e de interesse geral que transcendem o individualismo e a defesa estreita de interesses particulares que a glorificacao da propriedade privada fez florescer. No quadro do capitalismo, a questo da proprie~ dade das condigGes de existéncia e de trabalho (em suma, os “meios de produ- do") sempre foi a questo democratica por exceléncia. E nas formas de apropria- ¢&o social, que seriam internacionais em certos casos ¢ mundiais em outros, que se situam muitos dos elementos de solugao da crise ecolégica em suas numerosas facetas e determinagoes. 7 Alain Bihy, La reproduction du capital: prolégomenes une théorie génerale du capitalisme, op. cit. CRITICA MARXISTA © 75

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