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Resumo
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 393-408, maio/ago. 2007 393
as compõem são reguladas, não por leis, meio do degredo tanto para fora do país como
herança de um passado de opressão e internamente. O caso mais chocante e extremo
barbárie; não por autoridades, quer estas é o da criação da cidade de Clevelândia 3, no
sejam levadas ao poder por eleição, quer interior do estado do Amazonas, pelo presiden-
por herança de seus antepassados, mas or- te em exercício, Arthur Bernardes4. A finalidade
ganizadas mediante convênios ou acordos daquela cidade — meio-fantasma, meio-ficção —
entre as partes componentes, livremente era abrigar os “desordeiros sociais" e forçá-los a
aceitas e a todo o tempo revogáveis, ga- contrair malária, à época, sem cura.
rantidos por hábitos e costumes sociais que A par disso, o desconhecimento da teo-
longe de se petrificarem pela lei, pela rotina ria e da prática socialistas libertárias explica-se
ou pela superstição, incessantemente evo- pela dificuldade de acesso às obras essenciais
luem e continuamente se ajustam às novas de pensadores desse movimento, mesmo com
necessidades de uma vida livre, pelo pro- tentativas esporádicas de atualização bibliográ-
gresso das ciências, das invenções e do fica. Também não é possível pelas fontes pri-
constante engrandecimento dos mais ele- márias, tais como periódicos e folhetos, que
vados ideais humanos. [...] Liberdade de raras vezes são conservados em bibliotecas e
ação ao indivíduo para o integral desenvol- arquivos oficiais. Acrescente-se, a estes obstá-
vimento de todas as suas capacidades na- culos, o fato de quase inexistirem memórias
turais de modo a assegurar de fato a sua escritas de militantes anarquistas. Nem mesmo
plena individualização, isto é, do que nele o jornalista e ativista Edgard Leuenroth, cujo
possa haver de pessoal, de original. Por nome é legenda dentro do movimento anar-
outros termos: nada de coação, nada de quista brasileiro, deixou registrada sua autobi-
que resulte uma imposição ao indivíduo sob
a ameaça do temor ou do castigo, qualquer 2. Conferir "A formação do PCB". In: PEREIRA, A. Ensaios históricos e
que seja a forma adotada, ou de punição políticos . São Paulo: Alfa-Omega, 1979, p. 41/161.
3. "O depoimento de um antigo ministro da Agricultura, Miguel du Pin e
sobrenatural ou mística; a sociedade nada Almeida, sobre a repressão durante o governo Artur Bernardes (1992-
solicitará do indivíduo que este não haja 26), permite reconstituir essa continuidade velada: ‘Desde o começo da
República que sempre se entendeu que as deportações, em caso de estado
livremente consentido; portanto, igualdade de sítio, deviam ser feitas do Sul para as zonas de fronteira nos estados do
absoluta de direitos de todos. (p. 89-90) Pará e Amazonas, talvez em virtude do princípio constitucional que atribui
à União jurisdição sobre aqueles trechos do território nacional.’ [...] Este
arbítrio do Estado pode ser constatado de forma viva e alargada durante o
No Brasil, o (quase) desconhecimento do governo Artur Bernardes, quando se tornou tão notório como naquele perí-
socialismo libertário pode ser explicado, em odo de desterro de cidadãos envolvidos nas revoltas tenentistas, militan-
tes, trabalhadores e desempregados. O envio para Clevelândia, apesar das
parte, pela perda da hegemonia dos militantes alegações do antigo ministro que examinamos, representava alguma coisa
anarquistas do comando das lutas sociais, em equivalente a uma sentença de morte. Um relatório encaminhado na época
meados dos anos 1920, com a criação do Par- ao ministro da Agricultura, ‘Viagem ao Núcleo Colonial Cleveland’, mostra
que, em 1926, dos 946 prisioneiros desterrados para Clevelândia, depois
tido Comunista2. Contudo, o novo aglutinante da revolta de 1924, 444 haviam morrido. [...] Alguns [militantes operári-
das lutas sociais herdou um ativo de greves, os] foram expulsos do Brasil, outros enviados ao presídio na ilha Rasa e
maioria foi mandada para o campo de internamento em Clevelândia, como
centros culturais, escolas racionalistas, publica- os redatores de A Plebe de São Paulo". PINHEIRO, P. S. Estratégias da
ções jornalísticas e livrescas, bibliotecas, mon- ilusão: a Revolução Mundial e o Brasil, 1922-1935. 2. ed. São Paulo: Cia.
tagens teatrais, meetings, conjugados com o das Letras, 1991, p. 87-88-109.
4. À guisa de ilustração da justiça poética, eis o poema O Iluminado, em
forte espírito de combate e de esperança dos homenagem a Artur Bernardes:
militantes anarquistas, nada desprezível. “Os inimigos diziam: / - Ninguém até hoje viu, / Ninguém não viu esse
homem. / Além disto ele é malvado, / É rancoroso, tirano / Joga gente pela
Deve-se acrescentar que a perda da janela; / No palácio do governo / Tem 'squemas de suplícios, / Tem alça-
hegemonia político-social é tributária, também, pões complicados. / Mata homem que nem formiga. / Mandou para a
Clevelândia / Seiscentos bons cidadãos / Num navio envenenado. / Este
do desfalque nos quadros da militância libertária homem não é homem, / É um punhal de pince-nez". MENDES, M. História
mais ativa, promovido pela repressão policial por do Brasil (1932). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 77.
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triais possíveis, de tal forma que, se é afastado ção de separar a ciência e a ideologia, mas
de um ramo pelo emprego de uma nova má- concreta e materialmente, ela pode ser apreen-
quina ou por uma mudança na divisão do tra- dida no exame das instituições criadas pela
balho, possa instalar-se noutro lado o mais classe (uniões, ligas, sindicatos, jornais, partidos
facilmente possível"9. Porquanto, “a miséria não etc.) e nas relações mantidas por essas diferen-
ensina apenas o homem a orar, mas ainda muito tes instituições com as classes dominantes, os
mais: a pensar e a agir"10, frente às vicissitudes setores sociais intermediários e o Estado. Isto
do capital em relação ao trabalho. é, a formação e o desenvolvimento das formas
O autodidatismo tem sido um tema caro assumidas pelo coletivo da classe operária re-
aos filósofos das Luzes e filho dileto da teoria alizam-se no interior do processo de luta de
educacional libertária, em parte, porque a mai- classes"12. Tais considerações encontram sus-
oria dos militantes anarquistas foram autodida- tentação no conceito de classe social elabora-
tas, num tempo em que o militante carecia de do por E. P. Thompson 13, pensado como cate-
compreender as contradições da ordem capita- goria histórica, inseparável da luta de classes.
lista e, para além delas, encaminhar ações po- Sob essa concepção, a classe não teria existên-
líticas reivindicatórias. O mais destacado auto- cia anterior aos conflitos sociais. E se tomada
didata com altura intelectual inconteste foi fora do contexto histórico dos embates socio-
Joseph Proudhon (1809-1865), cuja obra e políticos reivindicatórios, as classes sociais não
ação política inspiraram movimentos sociais têm realidade própria. O conceito de classe
relevantes, como o sindicalismo, o mutualismo social estará referenciado às experiências coti-
e o pacifismo. Experiências pedagógicas do dianas de seus componentes, à vida, às relações
autodidatismo, obra do professor francês Joseph sociais, políticas, culturais e econômicas.
Jacotot, foram estudadas por Rancière em Le Para o caso brasileiro, verificou-se o
maître ignorant: cinq leçons sur l'émancipacion surgimento de uma classe operária, “sem víncu-
intellectuelle11. Jacotot ensinara francês a alunos los diretos com uma ‘cultura nacional’, mas ao
belgas, sendo que ele mesmo desconhecia o contrário, sendo uma combinação internacional
flamengo. O fenômeno do autodidatismo de de tradições culturais européias diversas, trazidas
quadros de militantes anarquistas brasileiros, por com os imigrantes, com a experiência... advinda
meio sobretudo da prática do ensino mútuo, é do trabalho camponês, do passado escravista e
fato atrelado aos Centros de Cultura, as verda- do pequeno setor artesanal das cidades"14, o que
deiras universidades, como lócus de encontros tem dado a especificidade histórico-social ao caso
políticos, leituras, discussões teóricas e práticas. pátrio. E o movimento operário sob inspiração
Para o autodidata libertário não interessa socialista libertária constituiu a expressão mais
somente a aquisição dos “mecanismos" de leitu- radical da luta social no começo do século pas-
ra, mas, para além do domínio das conexões das sado. Vigoroso em seu início, minoritário nas
letras, palavras, números, juízos, são as reflexões décadas de 1930 e 1940, o que parece ser a
e as análises críticas da realidade imediata e expressão das remodelações e racionalizações na
mediata que são almejadas. Porque o autodidata
anarquista opera o auto-aprendizado em vista de 9. Citação extraída de DANGEVILLE, R. Crítica da educação e do ensino:
Karl Marx e Friedrich Engels. Trad. Ana Maria Rabaça. Lisboa: Moraes,
um horizonte político e ético de negação da 1978, p. 74.
ordem dada, construído desde a reflexão cotidi- 10. Idem, p. 69.
ana acerca do trabalho, das lutas sociais, e de 11. RANCIÉRE, J. Le maître ignorant : cinq leçons sur l'émancipacion
intellectuelle. Paris: Fayard, 1987.
bem com o progresso geral da humanidade. 12. HARDMAN, F. F. Op. cit., p. 29.
Contudo, como escreveu Hardman: “a 13. Ver ARRUDA, J. J. de A. “Experiência de Classe e Experimento
Historiográfico em E. P. Thompson”. In: Projeto História. N. 12. Revista do
consciência de classe do proletariado não deve Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
ser buscada numa abstrata e ideológica opera- História da PUC-SP. São Paulo: Educ, 1995, p. 97-101.
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