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Introdução
aquilo que pertenceria ao plano natural, biológico e inato (sexo) e aquilo que estaria
ligado a uma construção social, ou seja, adquirido através da cultura e, portanto,
passível de mudanças conforme determinações histórias e contextos locais (gênero).
interessante àquilo que se entende, até os dias de hoje, como o habitual no que diz
respeito aos papeis de gênero e aos espaços ocupados pelos sujeitos sociais, com o
espaço doméstico associado ao feminino e o espaço público ao masculino. Essa divisão
sexual do trabalho faz muito sentido quando falamos da burguesia urbana e das classes
remediadas do passado brasileiro, mas não necessariamente das classes populares, sejam
elas urbanas ou rurais, e da população negra em geral. Quem sempre teve que trabalhar
para conseguir seu sustento e manteve a unidade familiar como uma fonte de produção
de bens de consumo conseguiu manter uma mobilidade única nos espaços públicos.
No Brasil, a fundação da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô
Oká) é considerada um marco institucional do candomblé. O Terreiro da Casa Branca
foi fundado em Salvador (BA) na década de 1830 a partir da mudança de endereço do
Terreiro da Barroquinha, fundado por lideranças femininas nagô vindas das cidades de
Oyó e Ketu. Trazidas para o Brasil na condição de escravas, as princesas Iyá Detá, Iyá
Kalá e Iyá Nassô comandavam os rituais em engenhos de cana de açúcar e tiveram que
mudar seu endereço de culto por temerem a perseguição das autoridades da época,
consolidando a Casa Branca nas terras do Engenho Velho do Rio Vermelho de Baixo,
arrendadas por Iyá Nassô. O nome do terreiro faz referência a essa fundadora, que
atendia por uma alcunha que não corresponde a um nome próprio, mas sim a um
importante título de sacerdotisa do império iorubá de Oyóii.
Brasil, que seria a Casa Branca. Então, essa casa foi crescendo, fazendo
muitos filhos e ficaram essas três senhoras como responsáveis. Daí vem o
valor feminino, porque essa casa tinha a característica de não iniciar homens.
Se não iniciava homens e todos eram do gênero feminino, é lógico que não
podia ter homem na direção. Então, a casa foi crescendo e sempre quando a
coisa cresce, às vezes acontece um racha, não é? Foi o que houve na ocasião
de Maria Júlia, a senhora que fundou o Gantois. Quando fundaram o Gantois,
a característica também era a de não ter homem como líder, como pai de
santo da casa. (...) Depois do Gantois, aconteceu com Mãe Aninha, que
fundou essa casa (o Ilê Axé Opô Afonjá) e que também seguiu essa mesma
norma, que homem não seria líder da casa de Xangô, que é aqui o São
Gonçalo. Aqui também se iniciam homens, mas homens iniciados aqui ou no
Gantois já sabem que não podem ser pais de santo na casa de origem. Mas
como essas duas casas iniciam homens e sabe-se que todo mundo, depois de
determinado tempo, quando está completamente pronto para o orixá, poderá
assumir uma liderança, alguns desses homens fundaram as suas casas, tanto
do Gantois quanto do São Gonçalo. Não é proibido ser pai de santo, mas
dentro dessas casas, na liderança, somente mulheres v.
A mulher negra teve que contar apenas consigo mesma tanto no Brasil como em
África, “e isso se combinava com a sua eminência no candomblé para dar um tom
matriarcal à vida familiar entre os pobres. Era um desejável equilíbrio, supunha, para o
rude domínio dos homens em toda a vida latina” (LANDES, 2002, p. 119). A
valorização do trabalho feminino no candomblé redimensiona o papel da mulher tanto
em uma esfera mística quanto no sentido social, de modo que o candomblé acaba se
configurando não apenas como uma possibilidade que a mulher negra possui para
realizar-se religiosamente, mas também política e socialmente.
O Feminino no Candomblé
Para além das trajetórias de luta e resistência das mulheres negras da diáspora
africana e de fatores históricos que permitiram a manutenção das lideranças femininas
nos terreiros ao longo dos anos, cabe pensarmos também nos elementos míticos do
candomblé que sustentam costumes e práticas. Com exceção de Olodumaré e Exu,
entidades quase que unânimes, a maioria dos orixás cultuados no Brasil é desconhecida
na terra iorubá. Originalmente compreendidos em África como ancestrais divinizados,
forças puras que tiveram uma existência terrena e que diferem de família para família e
de cidade para cidade, no Brasil os orixás foram ordenados em um único e diversificado
panteão, cultuados em diferentes festas e rituais.
Mitos e lendas que remontam tempos imemoriais apresentam alguns dos orixás
como divindades “femininas”, ainda que em suas histórias elas apresentem diversos
comportamentos disruptivos em relação ao ideal de feminilidade ocidental,
especialmente atrelado a elementos como passividade, domesticidade e obediência.
Deusas guerreiras, mães fortes, mulheres sensuais e temíveis dotadas de imenso poder,
mantedoras da vida e controladoras da destruição, essas orixás femininas, também
chamadas de yabásvii (“mães rainhas”, em iorubá), combinam as imagens de virgem,
esposa, mãe, amante e anciã e representam uma pluralidade de formas de ser mulher
que passa longe da negação da força ou a recusa do poder, englobando “defeitos”,
“virtudes” e contradições muito humanas. No pensamento iorubá, a sensualidade pode
existir lado a lado com a doçura, assim como a agressividade e a força.
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A maior parte dos empecilhos para as atividades femininas está relacionada com
o tabu da menstruação e das relações sexuais, aspectos que interferem na preservação do
corpo limpo, um requisito para determinados rituais e cerimônias festivas que marca o
domínio das vontades carnais e o respeito pelo axé e pelo orixá que deve ser seguido por
todos, homens ou mulheres, mas que recai socialmente sobre as mulheres através da
intensa vigilância sobre seu corpo e sua sexualidade.
A divisão das funções do terreiro de acordo com o gênero, por exemplo, é uma
realidade que se aproxima da tradicional divisão sexual do trabalho ocidental, onde as
mulheres majoritariamente se ocupam do trabalho doméstico e os homens ocupam
posições de maior prestígio no espaço público. Ainda que os ensinamentos do
candomblé tragam em si uma ideia de complementaridade de papeis, e não do
predomínio de um gênero sobre o outro, muitas “mulheres de santo” denunciem
situações de opressão, com desmandos de pais de santo e exploração dos papeis a serem
executados dentro das casas de culto. Em depoimento, Mãe Fátima de Oxum, Ialôrixá
de Recife (PE), afirma que “o papel da mulher no Candomblé não é só a cozinha”
(BASTOS, 2014, p. 111). Seguindo as reflexões críticas de Patrícia Birman (1995)
sobre Candomblés da Bahia, estudo de maior destaque de Édison Carneiro, é possível
admitir o pleno funcionamento de um terreiro formado somente por mulheres e com
ogãsix “emprestados” de outros terreiros, mas um terreiro formado apenas por homens
jamais gozaria de legitimidade e reconhecimento público. Para além do sentido de
complementaridade, “resultante da concepção que norteia a organização religiosa como
família” (p. 178), existe a inegável necessidade de mulheres que se comprometam com
o trabalho no interior dos terreiros, cuidando dos aspectos domésticos e da organização
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cotidiana dessas casas de culto - nenhum terreiro se sustenta sem mulheres para cuidar
das tarefas que soam “degradantes” aos homens do local, tais como a limpeza, a
organização e a cozinha.
Ainda que não se possa afirmar que o candomblé seja uma religião só de
mulheres ou só de negros, como declarou a Ialorixá Mãe Stella na já citada entrevistax,
é necessário sublinhar a fundamental importância do trabalho feminino não só como
líderes ou fundadoras das casas de santo, mas também naqueles cargos responsáveis
pela manutenção cotidiana desses locais. Landes (2002) já havia percebido esse papel
aparentemente secundário dos homens no candomblé em suas primeiras observações ao
Terreiro da Casa Branca, afirmando que “(...) os homens, embora desejados e
necessários, eram principalmente espectadores” (p. 88).
Conclusão
Referências Bibliográficas
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Internet
- Entrevista com Mãe Stella de Oxóssi
https://historiasdopovonegro.wordpress.com/fe-2/no-candomble-e-a-gente-que-se-
supera-nao-tem-que-superar-o-outro-entrevista-com-mae-stella-de-oxossi/> Acesso em
17 de Outubro de 2016.
i
Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).
ii
O Império de Oyó durou até 1835 e se situava na África Ocidental, onde atualmente temos o sudoeste da
Nigéria e do Benim.
15
iii
Fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré em 1849. O terreiro do Gantois nasceu a após a morte da
mãe de santo Iyá Marcelina, que comandava o terreiro da Casa Branca. Com a morte da Ialorixá, suas
duas filhas, Maria Júlia da Conceição e Maria Julia Figueiredo, disputaram a chefia do candomblé. A
liderança da casa coube à Maria Julia Figueiredo, já que esta era a substituta legal. Com esta decisão,
Maria Julia da Conceição afasta-se do terreiro com alguns dissidentes e funda o Terreiro do Gantois.
iv
Um grupo dissidente do Terreiro da Casa Branca, comandado por Eugênia Anna dos Santos, fundou em
1910 o Terreiro Kêtu do Axé Opô Afonjá numa roça adquirida no bairro de São Gonçalo do Retiro.
v
Disponível em <https://historiasdopovonegro.wordpress.com/fe-2/no-candomble-e-a-gente-que-se-
supera-nao-tem-que-superar-o-outro-entrevista-com-mae-stella-de-oxossi/> Acesso em 17 de Outubro de
2016.
vi
Esta situação histórica se arrasta, com atualizações, desde o período colonial escravocrata até a
atualidade, onde milhares de mulheres negras mantêm posições em casas abastadas como babás ou
empregadas domésticas e pouco convivem com seus próprios filhos. As mulheres são a ampla maioria
entre os empregados domésticos, representando 96,5% de um total de 634 mil em 2014. Entre elas, as
negras são a maioria, registrando salários menores, as condições de trabalho mais precárias e a
predominância enquanto chefes de família. Fonte: <http://economia.uol.com.br/empregos-e-
carreiras/noticias/redacao/2015/04/23/parcela-de-empregadas-domesticas-em-sp-e-a-menor-desde-1985-
diz-estudo.htm> Acesso em 15 de Outubro de 2016.
vii
No Brasil, a Festa das Yabás acontece geralmente no mês de Dezembro em louvação a seis poderosas
orixás femininas responsáveis pelo equilíbrio da terra e da vida: Iemanjá, Oxum, Iansã, Obá, Nanã e Ewá.
viii
Fonte: <http://3.bp.blogspot.com/-
biWEhc6CwD4/UMnIPLStXaI/AAAAAAAAAG4/PPy4UXb8J2Q/s1600/Iab%25C3%25A1s.jpg>
Acesso em 18 de Outubro de 2016.
ix
A tradução do termo “ogã”, de origem bantu, é “chefe”, mas este cargo diz respeito a um homem que
não incorpora nenhuma entidade, ficando responsável pelo canto e pelo toque dos atabaques para que os
orixás possam dançar.
x
Em entrevista, a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi diz o seguinte: “Podemos dizer que o candomblé, na
atualidade, não é uma crença, uma religião só de negros, nem só de mulheres. Os orixás são simbolizados
pelas forças naturais, que são os fenômenos da natureza, e são coisas que não têm sexo. O vento tem
sexo? Qual é o sexo do vento? Apesar de simbolizar o orixá chamado Iansã, o espiritual não tem sexo,
não tem raça, nada disso”. A compreensão de elementos da natureza de forma sexuada, contudo, é uma
realidade.