Sie sind auf Seite 1von 15

1

“MULHERES DE SANTO”: GÊNERO E LIDERANÇA


FEMININA NO CANDOMBLÉ

Jaqueline Sant’ana Martins dos Santos (PPGSA/UFRJ)i

Resumo: Entrelaçando gênero e religiosidade, este trabalho se propõe a


apresentar uma breve reflexão sobre o papel da mulher e os desafios enfrentados pelas
lideranças femininas no Candomblé. Vencendo resistências e preconceitos, o
protagonismo das mulheres é tido como um elemento característico desta religião de
matriz africana profundamente ligada ao culto à natureza e à ancestralidade. Nos
terreiros, elas se desdobram em muitas funções, ora provendo sustento e comandando
rituais, ora preparando refeições, zelando pelos “iniciados no santo” e acolhendo
aqueles que precisam de ajuda espiritual.

A despeito do reconhecido pioneirismo e da grande visibilidade das mães de


santo na cultura popular brasileira, o machismo e a desigualdade de gênero são
frequentemente mencionados em entrevistas e estudos acadêmicos focados nas
“mulheres de santo”, tais como os trabalhos de Dani Bastos e Patrícia Birman. Para
além da observância de tabus que atingem as mulheres de forma específica e colocam o corpo
feminino em evidência, como a menstruação, a existência de uma forte divisão sexual de
tarefas executadas nesses espaços de culto, delimitando funções exclusivamente
femininas e outras exclusivamente masculinas, acaba por refletir a forma diferenciada e
desigual com que homens e mulheres participam da sociedade brasileira e nos permite
discutir noções de poder e tradição, elementos muito caros ao campo da religião.

Palavras-chave: religião, candomblé, gênero, mulheres.


2

 Introdução

Neste artigo, pretendemos elaborar uma breve reflexão sobre a liderança


feminina no candomblé, um fenômeno de extrema relevância para o aprofundamento
reflexivo das questões de gênero na sociedade brasileira e para o fortalecimento
identitário negro. Inicialmente, discutiremos como o conceito de gênero pode ser
utilizado como uma ferramenta de compreensão das múltiplas dinâmicas do poder,
explicitando não somente diferenças, mas também desigualdades entre homens e
mulheres e entre diferentes formas de exercício desses papeis sociais. Considerando a
participação das mulheres na vida pública das terras iorubás e como essas posições de
prestígio foram reordenadas no Brasil colonial e escravocrata, observaremos o
surgimento das lideranças femininas nas casas de culto de matriz africana. Guiando
nossa análise de volta ao tempo presente, iremos considerar alguns aspectos da
cosmovisão do candomblé e a diversidade de representações em torno das mulheres
reunidas nas figuras das yabás, as orixás femininas do panteão nagô, e comentar
algumas questões em torno desse ideário, que engedra tensões, alianças e conflitos no
cotidiano dos terreiros.

 Gênero na Compreensão do Mundo Social

Ocupando um espaço central nos principais debates da História recente e alvo de


constantes ataques por parte dos setores mais conservadores da sociedade, o conceito de
gênero pode ser compreendido como um instrumento que nos ajuda a pensar práticas,
discursos e valores que classificam e organizam o mundo social de forma binária,
relacional e estruturante, operando na produção de diferenças entre pessoas, objetos e
atividades a partir das noções de masculino e feminino. Muitas dessas diferenças são
ordenadas socialmente de forma hierarquizada, criando desigualdades sociais que
comprometem o pleno desenvolvimento e a inclusão de milhares de indivíduos. A
(re)produção de desigualdades ligadas ao gênero não se dá apenas entre homens e
mulheres, mas também intragrupos, ordenando diferentes formas de exercício de
masculinidades e feminilidades – algumas delas sendo coletivamente reconhecidas e
prestigiadas, outras não. Muito do que foi escrito dentro dessa temática ao longo da
segunda metade do século XX diz respeito à separação entre sexo e gênero, delimitando
3

aquilo que pertenceria ao plano natural, biológico e inato (sexo) e aquilo que estaria
ligado a uma construção social, ou seja, adquirido através da cultura e, portanto,
passível de mudanças conforme determinações histórias e contextos locais (gênero).

A historiadora Joan Scott (1989) apresenta o gênero como uma categoria


analítica que ajuda a pensar as relações de poder na sociedade. Para a autora, gênero se
refere à organização social da relação entre os sexos, e seu uso recente seria derivado de
pensadoras feministas norte-americanas que queriam destacar o caráter
fundamentalmente social das distinções a partir do sexo, rejeitando o determinismo
biológico e sublinhando o “aspecto relacional das definições normativas de
feminilidade” (p. 1) e a função estruturante e organizadora da sociedade que o gênero
possui. Em uma definição mais concisa, Scott nos diz que “Gênero (...) é uma maneira
de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e
das mulheres. O gênero é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre
um corpo sexuado” (p. 3).

As construções sociais que incidem sobre os corpos, contudo, não se limitam ao


gênero, operando também através de marcadores como classe e raça. Não é possível
isolar o machismo e a violência de gênero sofrida por essas mulheres do racismo
estrutural, do preconceito religioso e das representações estereotipadas das mulheres
negras em nossa sociedade. Nesse sentido, cabe pensar a interseccionalidade, ou seja, o
entrecruzamento ou articulação de marcadores sociais de gênero, raça, religiosidade e
geração.

Sabe-se que os valores igualitários que moldaram as sociedades burguesas


modernas não eram, de todo, igualitários. Jeni Vaitsman (1994), socióloga e
pesquisadora de gênero e organizações públicas, defende que as mulheres foram
excluídas da concepção de indivíduo moderno no contexto de desenvolvimento do
capitalismo industrial primeiramente a partir da “diferenciação institucional entre
distintas atividades sociais, fazendo com que a família perdesse seu caráter de unidade
produtiva voltada para o mercado” (p. 29), e depois pela hierarquização entre o trabalho
produtivo (remunerado), de domínio masculino, e o trabalho improdutivo (doméstico),
de domínio feminino.

A antropóloga Adriana Piscitelli (2008) localiza no final da década de 1990 a


emergência de categorias que aludem à multiplicidade de diferenciações que atravessam
4

o mundo social articuladas ao gênero. Estas categorias de articulação, ou


“interseccionalidades”, cujos conteúdos se diferenciam bastante de acordo com a
abordagem ou recorte teórico adotado, surgem a partir de uma leitura crítica de
conceitualizações generalistas sobre um padrão “universal”, tais como aquelas que
dizem respeito a uma única “experiência feminina”. Nomes como Joan Scott, Judith
Butler e Marilyn Strathern são citados pela antropóloga como autoras de textos críticos
que já no final da década de 1980 questionavam as primeiras formulações em torno do
conceito de gênero, apontando uma “universalização do quadro ideológico do poder e
das relações de poder presentes no paradigma ocidental das relações de gênero” e os
limites de uso de noções em torno de “relações de dominação e subordinação,
exploração, coerção, controle e desigualdade” (p. 264). Esta questão, contudo, se
desenvolveu não apenas como um problema teórico, mas também político, já que tem
demandado a visibilidade de outras identidades dentro de movimentos feministas que
são agora interpelados por terem criado um sujeito político feminista universal branco,
de classe média e ocidental, excluindo e apagando a luta de mulheres negras, lésbicas,
trabalhadoras, aquelas oriundas de países de Terceiro Mundo e ex-colônias, orientais,
etc. Um dos destaques dessa linha de pensamento é a produção da pesquisadora norte-
americana Kimberlé Crenshaw (2002), que analisa como os chamados “direitos
universais” não contemplam as especificidades de determinados grupos, ignorando
vulnerabilidades e mantendo certas identidades em um local periférico.

A discussão sobre a maneira como se entrecruzam marcadores de diferenciação


como geração, classe, raça, escolaridade, etc., implica em uma ênfase aos contextos,
com um apelo à observação do contingente, do nacional e de questões históricas
específicas atreladas à localização e ao desenvolvimento de determinados grupos
sociais. A valorização da experiência, da subjetividade, da agência dos indivíduos e das
vivências pessoais são pautas importantes na contemporaneidade e dizem respeito aos
processos de subjetivação e criação de identidades, mas chamam atenção também para
as oportunidades ou vulnerabilidades de pessoas e grupos nas estruturas e hierarquias
sociais. Crenshaw (2002) escreve:

Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de


algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é
verdade que outros fatores relacionados à suas identidades sociais, tais
5

como classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem nacional e


orientação sexual são ‘diferenças que fazem a diferença’ na forma
como vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação (p. 173).

Sabemos que a produção do conhecimento ocidental obedece a ditames


excludentes e/ou pouco representativos, uma tendência que se repete inclusive dentro de
movimentos sociais dispostos a reivindicar os direitos de grupos marginalizados, tais
como mulheres, negros e LGBTs. Comentando o movimento feminista, fortemente
representado pela clássica imagem das sufragistas europeias brancas, Sueli Carneiro
(2003) ressaltou “a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes
expressões do feminino construídas em sociedades multirraciais e pluriculturais” (p.
118). Dentro desse escopo, um dos exemplos mais óbvios é a reivindicação de
“enegrecer o feminismo”, uma expressão que coloca em xeque a invisibilidade das
mulheres negras e de suas pautas mesmo dentro do movimento brasileiro de mulheres.

 Identidade Negra e Poder Feminino

Segundo a filósofa e educadora Sueli Carneiro (2008), pensar o papel da mulher


e sua representação mítica nos cultos afro-brasileiros “se constitui em importante
elemento no resgate da identidade feminina negra” (p. 117). Falar de candomblé é
refletir sobre uma visão de mundo, uma prática social e uma disposição simbólica que
está intimamente ligada à identidade negra e afro-brasileira. Em um contexto de
afirmação e revisão de identidades periféricas, nos propomos a pensar as trajetórias
excepcionais de mulheres majoritariamente negras, pouco escolarizadas e pertencentes
às camadas mais populares da sociedade brasileira, notadamente violenta, machista e
excludente. Muitas vezes vítimas de abusos, preconceitos e violências, essas mulheres
encontram no candomblé um espaço de resignificação de uma trajetória de vida
especialmente pautada pelo sofrimento e pela privação, ora material ou simbólica, tal
como apontou a antropóloga Patrícia Birman (1995).

A reflexão sobre a liderança feminina no candomblé e a importância das mães de


santo não é um assunto recente nas Ciências Sociais: em um pioneiro trabalho realizado
ainda na primeira metade do século XX, em meio à ditadura varguista, a antropóloga
norte-americana Ruth Landes (2002) descreveu minuciosamente os desdobramentos do
poder religioso feminino na cidade de Salvador (BA). Segundo a autora, eram as
mulheres do candomblé que canalizavam a vida do povo, um contraponto muito
6

interessante àquilo que se entende, até os dias de hoje, como o habitual no que diz
respeito aos papeis de gênero e aos espaços ocupados pelos sujeitos sociais, com o
espaço doméstico associado ao feminino e o espaço público ao masculino. Essa divisão
sexual do trabalho faz muito sentido quando falamos da burguesia urbana e das classes
remediadas do passado brasileiro, mas não necessariamente das classes populares, sejam
elas urbanas ou rurais, e da população negra em geral. Quem sempre teve que trabalhar
para conseguir seu sustento e manteve a unidade familiar como uma fonte de produção
de bens de consumo conseguiu manter uma mobilidade única nos espaços públicos.

Em artigo, a socióloga Teresinha Bernardo (2005) destacou alguns fatores que


permitiram a proeminência das mulheres negras no comando dos terreiros de
candomblé. Segundo a pesquisadora, enquanto os homens negros se concentraram nas
fazendas, se dedicando ao trabalho braçal e ao cultivo agrícola, as mulheres
conseguiram se adequar às mudanças sociais e econômicas do período colonial
ocupando funções domésticas e comerciais diversificadas nos centros urbanos, com uma
espécie de “livre trânsito” entre a casa e a rua que auxiliou sua circulação no espaço
público, garantindo a possibilidade de preparar suas oferendas aos orixás e depositá-las
nas ruas. Além disso, o trabalho como escravas de ganho, com a venda de quitutes,
frutas e verduras em tabuleiros, envolviam as mulheres nas trocas materiais e simbólicas
da sociedade escravocrata, lhes permitindo negociar com desenvoltura pelas feiras livres
e ruas das principais cidades do país. Essa função permitiu o acúmulo de certo capital
monetário que foi amplamente utilizado na aquisição de cartas de alforria e no
estabelecimento de pequenos negócios locais que garantiam o sustento das famílias
libertas, que se encontravam profundamente vinculadas à figura da mãe provedora.

Esse cenário de destaque nas trocas não é inédito e evoca a liberdade de


circulação e o destaque nos negócios obtido pelas mulheres iorubás, uma tradição que se
adaptou e continuou no Brasil. Bernardo (2005) destaca a relevância do lugar social
ocupado pelas mulheres iorubás para o exercício de um poder essencial para a vida e
ressalta não somente as trocas de bens de consumo como também de bens simbólicos
nesses espaços - a circulação de notícias, o estreitamento das relações sociais, as
negociações familiares. A circulação entre o espaço doméstico e o espaço público e a
participação feminina nos espaços públicos já era uma realidade nas cidades iorubás no
século XVIII, quando data a fundação de duas associações femininas extremamente
7

importantes - as sociedades Ialodê ("senhora encarregada dos negócios públicos“, em


tradução do iorubá), de administração e participação política, e Gueledé, ligada ao
misticismo dos rituais de fecundidade, fertilidade e ao simbolismo feminino. No Brasil,
o estabelecimento das primeiras casas de culto de matriz africana passa por esses
aspectos políticos, econômicos e históricos, como veremos a seguir.

 As Origens da Liderança Feminina nos Terreiros Brasileiros

No Brasil, a fundação da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô
Oká) é considerada um marco institucional do candomblé. O Terreiro da Casa Branca
foi fundado em Salvador (BA) na década de 1830 a partir da mudança de endereço do
Terreiro da Barroquinha, fundado por lideranças femininas nagô vindas das cidades de
Oyó e Ketu. Trazidas para o Brasil na condição de escravas, as princesas Iyá Detá, Iyá
Kalá e Iyá Nassô comandavam os rituais em engenhos de cana de açúcar e tiveram que
mudar seu endereço de culto por temerem a perseguição das autoridades da época,
consolidando a Casa Branca nas terras do Engenho Velho do Rio Vermelho de Baixo,
arrendadas por Iyá Nassô. O nome do terreiro faz referência a essa fundadora, que
atendia por uma alcunha que não corresponde a um nome próprio, mas sim a um
importante título de sacerdotisa do império iorubá de Oyóii.

A partir dessa matriz, nomeada Patrimônio Histórico do Brasil em 1984


(SERRA, 2008), foram criados outros terreiros de prestígio como o Terreiro do Gantois
(Ilê Iyá Omi Axé Yámassê)iii e o Ilê Axé Opô Afonjáiv, que tiveram suas fundadoras
iniciadas na Casa Branca e preservaram uma tradição de liderança feminina no comando
das casas de culto. A transmissão desses postos se dá ora pelo jogo de búzios, ora por
laços consanguíneos, conforme a tradição das casas. Contudo, a despeito de dissidências
familiares ou disputas legais, a evocação de certa descendência matrilinear se mantém.

Em entrevista realizada pela professora e pesquisadora da UFBA Agnes Mariano


em 2001, a famosa Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi comenta a preponderância das
lideranças femininas nos terreiros mais antigos e tradicionais da Bahia:

Isso se deve às pioneiras do candomblé no Brasil, três mulheres que depois


da libertação tiveram condições de abrir uma casa para culto aos orixás. Elas
é que formaram a primeira casa que se tem conhecimento da nação iorubá no
8

Brasil, que seria a Casa Branca. Então, essa casa foi crescendo, fazendo
muitos filhos e ficaram essas três senhoras como responsáveis. Daí vem o
valor feminino, porque essa casa tinha a característica de não iniciar homens.
Se não iniciava homens e todos eram do gênero feminino, é lógico que não
podia ter homem na direção. Então, a casa foi crescendo e sempre quando a
coisa cresce, às vezes acontece um racha, não é? Foi o que houve na ocasião
de Maria Júlia, a senhora que fundou o Gantois. Quando fundaram o Gantois,
a característica também era a de não ter homem como líder, como pai de
santo da casa. (...) Depois do Gantois, aconteceu com Mãe Aninha, que
fundou essa casa (o Ilê Axé Opô Afonjá) e que também seguiu essa mesma
norma, que homem não seria líder da casa de Xangô, que é aqui o São
Gonçalo. Aqui também se iniciam homens, mas homens iniciados aqui ou no
Gantois já sabem que não podem ser pais de santo na casa de origem. Mas
como essas duas casas iniciam homens e sabe-se que todo mundo, depois de
determinado tempo, quando está completamente pronto para o orixá, poderá
assumir uma liderança, alguns desses homens fundaram as suas casas, tanto
do Gantois quanto do São Gonçalo. Não é proibido ser pai de santo, mas
dentro dessas casas, na liderança, somente mulheres v.

Em consonância com esse depoimento, Birman (1995) afirma que “O candomblé


tradicional da Bahia sempre atribuiu à família da mãe de santo um papel crucial – é
através das relações de descendência por linha materna que este reproduz a sua principal
liderança” (p. 176). As mulheres são responsáveis pela tradição e pela ortodoxia
religiosa do candomblé, e é justamente daí que elas extraem reconhecimento, respeito e
prestígio, ainda que inseridas em uma realidade opressora. Para Teresinha Bernardo
(2005), a matrifocalidade vivida pela mulher negra no candomblé não seria “encarada
como sofrida, pesada; pelo contrário, acentua sua autonomia, traz satisfação” (p.11), e
isso porque aqui a mulher também seria vista como uma reprodutora, mas em uma
dimensão muito mais ampla, abarcando as esferas do material e do simbólico e
superando, de modo voluntário, questões aparentemente irreconciliáveis. Aqui, elas
seriam de fato livres para serem mães, experimentando uma maternidade plena,
diferente daquela que envolvia suas antepassadas e os filhos das sinhás, crianças
brancas nutridas e cuidadas enquanto seus próprios filhos negros eram explorados e
mantidos afastadosvi.
9

A mulher negra teve que contar apenas consigo mesma tanto no Brasil como em
África, “e isso se combinava com a sua eminência no candomblé para dar um tom
matriarcal à vida familiar entre os pobres. Era um desejável equilíbrio, supunha, para o
rude domínio dos homens em toda a vida latina” (LANDES, 2002, p. 119). A
valorização do trabalho feminino no candomblé redimensiona o papel da mulher tanto
em uma esfera mística quanto no sentido social, de modo que o candomblé acaba se
configurando não apenas como uma possibilidade que a mulher negra possui para
realizar-se religiosamente, mas também política e socialmente.

 O Feminino no Candomblé

Para além das trajetórias de luta e resistência das mulheres negras da diáspora
africana e de fatores históricos que permitiram a manutenção das lideranças femininas
nos terreiros ao longo dos anos, cabe pensarmos também nos elementos míticos do
candomblé que sustentam costumes e práticas. Com exceção de Olodumaré e Exu,
entidades quase que unânimes, a maioria dos orixás cultuados no Brasil é desconhecida
na terra iorubá. Originalmente compreendidos em África como ancestrais divinizados,
forças puras que tiveram uma existência terrena e que diferem de família para família e
de cidade para cidade, no Brasil os orixás foram ordenados em um único e diversificado
panteão, cultuados em diferentes festas e rituais.

Mitos e lendas que remontam tempos imemoriais apresentam alguns dos orixás
como divindades “femininas”, ainda que em suas histórias elas apresentem diversos
comportamentos disruptivos em relação ao ideal de feminilidade ocidental,
especialmente atrelado a elementos como passividade, domesticidade e obediência.
Deusas guerreiras, mães fortes, mulheres sensuais e temíveis dotadas de imenso poder,
mantedoras da vida e controladoras da destruição, essas orixás femininas, também
chamadas de yabásvii (“mães rainhas”, em iorubá), combinam as imagens de virgem,
esposa, mãe, amante e anciã e representam uma pluralidade de formas de ser mulher
que passa longe da negação da força ou a recusa do poder, englobando “defeitos”,
“virtudes” e contradições muito humanas. No pensamento iorubá, a sensualidade pode
existir lado a lado com a doçura, assim como a agressividade e a força.
10

[Figura 1] Representação das yabás Iansã, Iemanjá, Obá, Oxum e


Nanãviii

Neste artigo, defendo que é justamente esta miscelânea de representações em


torno das construções de gênero o que garante um quadro mais amplo de papeis
femininos, especialmente quando colocamos a representação mítica da mulher no
candomblé lado a lado com outras religiões ocidentais, tais como o catolicismo ou o
protestantismo cristão. No candomblé, assim como em outras religiões de matriz
africana, polarizações absolutas e estáticas tais como bem versus mal, positivo versus
negativo, masculino versus feminino ou luz versus trevas não fazem sentido. Aspectos
aparentemente opostos coexistem e não se anulam, entrelaçando-se em uma constante
busca por equilíbrio e garantindo uma multiplicidade bastante complexa.

 Papeis de Gênero nos Terreiros

A liderança feminina em terreiros e casas de culto de matriz africana destaca a


importância da mulher e sua força nestes espaços, onde se desdobram em mil funções,
ora provendo sustento, “cortando para Exu” e comandando rituais, ora dando conselhos
e acolhendo aqueles que precisam de ajuda espiritual. Contudo, os terreiros de
11

candomblé, ainda que marginalizados por uma considerável camada da população,


fazem parte da nossa sociedade e, assim como qualquer outra instituição, são
atravessados por questões estruturantes, reproduzindo desigualdades e hierarquizações
das mais diversas ordens que muitas vezes acabam sendo naturalizadas e deixadas em
segundo plano. No que diz respeito ao gênero enquanto uma categoria de análise social,
vale ressaltar como os valores patriarcais da nossa cultura acabam deturpando uma série
de preceitos religiosos, segregando e marginalizando muitas das funções femininas nos
terreiros através de uma ótica machista. No livro Matriarcado e Fé, a pesquisadora Dani
Bastos (2014) destaca como muitas vezes é difícil encontrar respostas que justifiquem
as interdições que as mulheres sofrem para além do “homem pode, mulher não pode”.

A maior parte dos empecilhos para as atividades femininas está relacionada com
o tabu da menstruação e das relações sexuais, aspectos que interferem na preservação do
corpo limpo, um requisito para determinados rituais e cerimônias festivas que marca o
domínio das vontades carnais e o respeito pelo axé e pelo orixá que deve ser seguido por
todos, homens ou mulheres, mas que recai socialmente sobre as mulheres através da
intensa vigilância sobre seu corpo e sua sexualidade.

A divisão das funções do terreiro de acordo com o gênero, por exemplo, é uma
realidade que se aproxima da tradicional divisão sexual do trabalho ocidental, onde as
mulheres majoritariamente se ocupam do trabalho doméstico e os homens ocupam
posições de maior prestígio no espaço público. Ainda que os ensinamentos do
candomblé tragam em si uma ideia de complementaridade de papeis, e não do
predomínio de um gênero sobre o outro, muitas “mulheres de santo” denunciem
situações de opressão, com desmandos de pais de santo e exploração dos papeis a serem
executados dentro das casas de culto. Em depoimento, Mãe Fátima de Oxum, Ialôrixá
de Recife (PE), afirma que “o papel da mulher no Candomblé não é só a cozinha”
(BASTOS, 2014, p. 111). Seguindo as reflexões críticas de Patrícia Birman (1995)
sobre Candomblés da Bahia, estudo de maior destaque de Édison Carneiro, é possível
admitir o pleno funcionamento de um terreiro formado somente por mulheres e com
ogãsix “emprestados” de outros terreiros, mas um terreiro formado apenas por homens
jamais gozaria de legitimidade e reconhecimento público. Para além do sentido de
complementaridade, “resultante da concepção que norteia a organização religiosa como
família” (p. 178), existe a inegável necessidade de mulheres que se comprometam com
o trabalho no interior dos terreiros, cuidando dos aspectos domésticos e da organização
12

cotidiana dessas casas de culto - nenhum terreiro se sustenta sem mulheres para cuidar
das tarefas que soam “degradantes” aos homens do local, tais como a limpeza, a
organização e a cozinha.

A centralidade da comida nesta religião de matriz africana, muitas vezes


utilizada como oferenda aos orixás e de suma importância nas festas religiosas, por
exemplo, concentra essa aparente contradição entre valorização e desdém das atividades
exclusivamente femininas, sendo entendida como um privilégio dentro do candomblé e
uma função “menor” no mundo laico. O preparo dos alimentos possui uma função
sagrada, ritual e simbólica, que alimenta corpo e espírito e opera como moeda de troca
entre humanos e orixás, os ancestrais divinizados ligados a elementos da natureza.

Ainda que não se possa afirmar que o candomblé seja uma religião só de
mulheres ou só de negros, como declarou a Ialorixá Mãe Stella na já citada entrevistax,
é necessário sublinhar a fundamental importância do trabalho feminino não só como
líderes ou fundadoras das casas de santo, mas também naqueles cargos responsáveis
pela manutenção cotidiana desses locais. Landes (2002) já havia percebido esse papel
aparentemente secundário dos homens no candomblé em suas primeiras observações ao
Terreiro da Casa Branca, afirmando que “(...) os homens, embora desejados e
necessários, eram principalmente espectadores” (p. 88).

 Conclusão

Partindo do pressuposto que o cânone da História foi escrito e respaldado por


homens brancos que atendem aos interesses das classes hegemônicas, podemos entender
como a ocupação dos mais altos postos hierárquicos dos terreiros de candomblé muitas
vezes é compreendida por pesquisadores e estudiosos como o exato “oposto” da
realidade cotidiana da nossa sociedade, onde a exclusão da mulher negra em espaços de
prestígio da sociedade se configura como uma inegável verdade histórica.

A despeito da forte divisão de tarefas a serem executadas de acordo com o


gênero, como funções exclusivamente femininas e outras masculinas, o protagonismo
das mulheres surge como um elemento característico do candomblé. Isso se deve, em
grande parte, à matrifocalidade, dando importância à figura da mãe e das mulheres
enquanto geradoras e cuidadoras da vida, além de guardiãs da ancestralidade, do
segredo (o awó, em iorubá) e do conhecimento. A cultura iorubá é intimamente ligada à
13

noção de família numerosa, que engloba antepassados e viventes e ressalta a força da


linhagem e a potência do devir de cada ser. Trata-se de um conhecimento que se
legitima pelo seu poder místico e dinâmico, aliado a saberes ancestrais passados de
geração em geração, de pais e mães de santo para seus “filhos” através da tradição oral,
das histórias mitológicas e dos segredos, que são revelados conforme os iniciados
avançam dentro da hierarquia dos terreiros.

O candomblé exalta e coloca em posições de liderança e prestígio as pessoas que


ocupam os espaços mais incômodos e malvistos da sociedade brasileira – aqueles que
não são masculinos, brancos, cristãos, com grandes titulações e rendas. Ao falarmos das
mulheres de santo, damos visibilidade a grandes figuras que são bem-sucedidas não
apenas na criação de novos “filhos de santo”, mas também pelo seu papel na gerência
cotidiana das casas de culto e pela projeção conquistada na vida pública do país,
liderando movimentos pela liberdade religiosa e dando visibilidade ao candomblé. A
despeito de todo o preconceito, toda a resistência e toda a intolerância, elas são
lideranças fortes que preservam saberes e costumes tradicionais, denunciam violências e
muitas vezes tomam a dianteira em movimentos pelo reconhecimento do candomblé e
pela defesa da diversidade religiosa como um todo. Longe de encerrar nossas principais
questões, concluo que, no esforço de pensar uma identidade feminina e negra como algo
reconhecidamente poderoso e forte, nos deparamos com alguns dos muitos desafios
históricos enfrentados pelas mulheres brasileiras que foram e continuam sendo
resignificados no cotidiano. Nossa luta continua.

Referências Bibliográficas

BASTOS, Dani. Matriarcado e Fé – A História de Mãe Fátima de Oxum. Recife:


Editora Universitária, 2014.
BASTOS, Ivana Silva. Mulheres Iabás: Sexualidade, transgressão no candomblé. - João
Pessoa: UFPB, 2011.
BERNARDO, Teresinha. O Candomblé e o Poder Feminino. Revista de Estudos da
Religião, nº 2, 2005.
BIRMAN, Patrícia. Fazer estilo criando gêneros: estudo sobre a possessão e a diferença
de gêneros em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/EdUERJ, 1995.
14

CARNEIRO, Sueli e CURY, Cristiane. O Poder Feminino no Culto dos Orixás. In:
NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Guerreiras de natureza: mulher negra,
religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, v. 17 (49), 2003.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas 1, 2002.
LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
MORIM, Júlia. Terreiro Casa Branca / Ilê Axé Iyá Nassô Oká. Pesquisa Escolar
Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível
em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em 03 de Outubro de 2016.
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v. 11, nº 2, 2008.
PRANDI, Reginaldo. Modernidade com Feitiçaria: Candomblé e Umbanda no Brasil do
Século XX. Tempo Social, v. 2, n. 1, 1990. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
20701990000100049&lng=en&nrm=iso> Acesso em 18 de Setembro de 2016.
SCOTT, Joan W. Gender: A useful category of historical analysis. The American
Historical Review, v. 91, n. 5, dez. 1989.
SERRA, Ordep. Ilê axé Iyá Nassô Oká/Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho -
Laudo Antropológico de autoria do professor doutor Ordep José Trindade Serra da
Universidade Federal da Bahia. 2008. Disponível em:
<http://ordepserra.files.wordpress.com/2008/09/laudo-casa-branca.pdf>. Acesso em 03
de Outubro de 2016.
SOUZA, Ester Monteiro de. Akodidé - Poder Feminino e Relações de Gênero no contexto
dos Afoxés de Pernambuco. Fazendo Gênero, 2008. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST16/Ester_Monteiro_de_Souza_16.pdf> Acesso em
16 de Outubro de 2016.

VAISTMAN, Jeni. Flexíveis e plurais. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

 Internet
- Entrevista com Mãe Stella de Oxóssi
https://historiasdopovonegro.wordpress.com/fe-2/no-candomble-e-a-gente-que-se-
supera-nao-tem-que-superar-o-outro-entrevista-com-mae-stella-de-oxossi/> Acesso em
17 de Outubro de 2016.

i
Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).
ii
O Império de Oyó durou até 1835 e se situava na África Ocidental, onde atualmente temos o sudoeste da
Nigéria e do Benim.
15

iii
Fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré em 1849. O terreiro do Gantois nasceu a após a morte da
mãe de santo Iyá Marcelina, que comandava o terreiro da Casa Branca. Com a morte da Ialorixá, suas
duas filhas, Maria Júlia da Conceição e Maria Julia Figueiredo, disputaram a chefia do candomblé. A
liderança da casa coube à Maria Julia Figueiredo, já que esta era a substituta legal. Com esta decisão,
Maria Julia da Conceição afasta-se do terreiro com alguns dissidentes e funda o Terreiro do Gantois.
iv
Um grupo dissidente do Terreiro da Casa Branca, comandado por Eugênia Anna dos Santos, fundou em
1910 o Terreiro Kêtu do Axé Opô Afonjá numa roça adquirida no bairro de São Gonçalo do Retiro.
v
Disponível em <https://historiasdopovonegro.wordpress.com/fe-2/no-candomble-e-a-gente-que-se-
supera-nao-tem-que-superar-o-outro-entrevista-com-mae-stella-de-oxossi/> Acesso em 17 de Outubro de
2016.
vi
Esta situação histórica se arrasta, com atualizações, desde o período colonial escravocrata até a
atualidade, onde milhares de mulheres negras mantêm posições em casas abastadas como babás ou
empregadas domésticas e pouco convivem com seus próprios filhos. As mulheres são a ampla maioria
entre os empregados domésticos, representando 96,5% de um total de 634 mil em 2014. Entre elas, as
negras são a maioria, registrando salários menores, as condições de trabalho mais precárias e a
predominância enquanto chefes de família. Fonte: <http://economia.uol.com.br/empregos-e-
carreiras/noticias/redacao/2015/04/23/parcela-de-empregadas-domesticas-em-sp-e-a-menor-desde-1985-
diz-estudo.htm> Acesso em 15 de Outubro de 2016.
vii
No Brasil, a Festa das Yabás acontece geralmente no mês de Dezembro em louvação a seis poderosas
orixás femininas responsáveis pelo equilíbrio da terra e da vida: Iemanjá, Oxum, Iansã, Obá, Nanã e Ewá.
viii
Fonte: <http://3.bp.blogspot.com/-
biWEhc6CwD4/UMnIPLStXaI/AAAAAAAAAG4/PPy4UXb8J2Q/s1600/Iab%25C3%25A1s.jpg>
Acesso em 18 de Outubro de 2016.
ix
A tradução do termo “ogã”, de origem bantu, é “chefe”, mas este cargo diz respeito a um homem que
não incorpora nenhuma entidade, ficando responsável pelo canto e pelo toque dos atabaques para que os
orixás possam dançar.
x
Em entrevista, a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi diz o seguinte: “Podemos dizer que o candomblé, na
atualidade, não é uma crença, uma religião só de negros, nem só de mulheres. Os orixás são simbolizados
pelas forças naturais, que são os fenômenos da natureza, e são coisas que não têm sexo. O vento tem
sexo? Qual é o sexo do vento? Apesar de simbolizar o orixá chamado Iansã, o espiritual não tem sexo,
não tem raça, nada disso”. A compreensão de elementos da natureza de forma sexuada, contudo, é uma
realidade.

Das könnte Ihnen auch gefallen