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Dornelles
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ISBN 978-85-11-01229-3
MOÍeção
PASSOS*/
9 788511 012293 229
João Ricardo W. Dornelíes
O QUE SÃO
DIREITOS HUMANOS
2a Edição
São Paulo
editora brasiliense
Copyright <0 hy João Ricardo W. Dornelles, 1989
Ncnluiina parle desia publicação pode ser gravada,
armazenada cm sistemas eletrõnicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização previa da editora.
SUMÁRIO
Primeira edição, 1989
2a edição, 1993
APRESENTAÇÃO .7
5" reimpressão, 2013
FUNDAMENTAÇÃO HISTÓRICA E FILOSÓFICA
Divcrom editorial: Maiia Teresa IS. de Uwti DOS DIREITOS HUMANOS 14
Ediror: Alax Weic/ttttii
} rodução gráfica/editorial: Adriana f7. U. Zerbiitufi
Capa e ilustrações: Shuone Basi/c
Os DIREITOS INDIVIDUAIS 18
Revisno: Tiago Sliachiicas e Eríka Stitie Kntibara
OS DIREITOS COLETIVOS .22
Os DIREITOS DOS POVOS OU OS DIREITOS
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) DA SOLIDARIEDADE . .32
(Câmara Brasileira do Livro, SI1, Brasil)
cclitorabrasilien.se Itda
SOBRE o AUTOR 77
Rua António de Barros, 1839 - Tatuapé
CEP 03401-001 — São Paulo — SP
\v\v\v.edi torsibrasiLicnse.com.br
APRESENTAÇÃO
língua, religião, opinião político ou de outra natureza, ori- ONU, desaparecidos na América Latina, apartheid, as
gem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer madres de Ia Piaza de Mayo, as torturas nas delegacias
outra condição (...). Todo homem tem direito à vida, ò. li- policiais, a pena de morte, a ação dos Esquadrões da
berdade e à segurança pessoal" (artigos l, II e III da Declara- Morte, a devastação da Amazónia, o massacre contra
ção Universal dos Direitos do Homem proclamada, a 10 de as nações indígenas, o assassinato de Chico Mendes, as
dezembro de 1948 pela Assembleia das Nações Unidas). condições de vida dos sem-terra, os favelados, os me-
nores abandonados, etc.
Diferentes declarações, diferentes textos, dife- E lógico que o tema se relaciona com tudo isso e
rentes momentos históricos. Esses trechos, como inú- muito mais, mas é importante "começarmos do come-
meros outros, recheiam os últimos duzentos anos da ço" para entendermos como surgiu e se desenvolveu o
história humana. São fragmentos que representam não que chamamos de direitos humanos.
apenas ideais, mas, muito mais do que isso, são o re- Direitos do homem, direitos naturais, direitos hu-
sultado de grandes lutas travadas pelos povos para se manos, direitos fundamentais, valores superiores, garan-
livrarem das correntes da opressão, da exploração, do tias individuais, direitos concretos, liberdades públicas.
preconceito e da violência. Corno se vê, temos uma grande quantidade de palavras e
São pequenos testemunhos documentais de lu- termos para designar o assunto que pretendemos tratar.
tas descomunais que mobilizaram grandes contingen- Para alguns trata-se de direitos inerentes à vida, à
tes humanos por sua libertação. segurança individual, aos bens que preservam a huma-
Direitos humanos. nidade. Para outros é a expressão de valores superiores
Qual o significado dessas palavras que nesses que se encarnam nos homens. Outros, ainda, enten-
últimos dois séculos passaram a fazer parte do voca- dem que são o produto da competência legislativa do
bulário sócio-político, e que para muitos significa espe- Estado ao reconhecer direitos e estabelecer um equilí-
rança, ilusões, desilusões, luta, necessidades básicas, brio na sociedade.
humanidade? Uns entendem serem direitos inerentes à nature-
Quando hoje, em pleno século XX, ao comemo- za humana; outros afirmam serem a expressão de uma
rarmos os cinquenta anos da Declaração Universal da conquista social através de um processo de luta política.
ONU e os duzentos e vinte anos da Declaração Fran- Enfim, é um tema - como também ocorre com a
cesa, ouvimos alguém falar em direitos humanos, nos democracia, a liberdade e a justiça - que tem recebido
passa pela cabeça urna infinidade de ideias: Revolução uma série de significados e interpretações as mais con-
Francesa, Independência Americana, Declaração da traditórias possíveis. Trata-se, no entanto, de se fazer
10 João Ricardo W. Dornelles O que soo Direitos Humanos 11
uma abordagem que não se restrinja a uma abstrata Alguns autores importantes dizem que todos os
conceituação generalizada, mas que busque dar con- direitos são humanos, pois somente os seres humanos
teúdos precisos a essa "embalagem" utilizada por todos são capazes de serem sujeitos e terem suas faculdades,
com "recheios" diferentes. prerrogativas, interesses e necessidades protegidas,
É, portanto, fundamental entender que os direi- resguardadas e regulamentadas pelo Estado. Trata-se,
tos humanos, antes de qualquer coisa, apresentam um claramente, de urna concepção que entende que não
claro conteúdo político. existe direito sem o consentimento de um poder políti-
Quando o ex-presidente americano (1980-1988) co que se pretende acima da sociedade.
Ronald Reagan se declarava um defensor dos direitos O que outros autores argumentam é que, sem
humanos, ficou bem claro para todos nós a substancial dúvida, todos os direitos se referem aos seres huma-
diferença de conteúdo político e ideológico de sua con- nos, pois são enunciados por Íeis da natureza humana.
cepção em relação à defendida pelos familiares dos de- No entanto, nem todos os seres humanos, durante a
saparecidos durante as ditaduras da Argentina, Brasil, história da humanidade, foram considerados como tal,
Uruguai, Chile, El Salvador, Guatemala, etc. nem seus direitos foram reconhecidos. Na Grécia an-
Desde pequenos nos acostumamos a ouvir que tiga, por exemplo, tinham direitos apenas os cidadãos.
"todos nascem iguais e livres", ou então que "todos Esses eram humanos. Os escravos/como " coisa", não
são iguais perante a lei". O que significa isso? Essa é a eram sujeitos de direito. Eram apenas objetos dos direi-
verdade que vemos nas ruas? Ou são apenas meras de- tos alheios.
clarações formais expressas ern belos documentos que O problema é que apenas alguns dos direitos que
ganharam importância histórica? se enunciam passam a ser considerados fundamentais
Na verdade, as ideias que nos passaram de que ou essenciais. E isso nos obriga a definir esses direitos
todos somos iguais, livres e temos os mesmos direitos que serão fundamentais para o ser humano.
foram enunciadas solenemente em algumas declara- Cada urn de nós, individualmente ou corno parte
ções que passaram para a história dos povos. O que de um segmento social, poderia indicar aqueles direitos
se deve perguntar é se os direitos enunciados em tais que consideramos os mais importantes, os fundamen-
declarações são os verdadeiros ou os únicos direitos do tais para a realização das nossas necessidades, desejos,
homem. E se esses direitos são ou não verdades eter- vontades individuais ou coletivas. Uns podem afirmar
nas, naturais. E no caso de não o serem, como e por que se trata da liberdade de escolha, outros elegem o
que se escolheu apenas esses direitos como os funda- direito à propriedade, ou o direito ao enriquecimento,
mentais para o ser humano. ao lucro, o direito de ir e vir, ou o de usufruir os bens
12 João Ricardo W. Dornelles
uma variaçãor de acordo com o modo de organização da duto ideal de uma força superior ao poder estatal, como
vida social. E, portanto, impossível a existência de uma Deus ou a razão humana. Aqui os direitos não são en-
única fundamentação dos direitos humanos. Na verda- tendidos como inerentes aos seres humanos, pois a sua
de, partimos de três grandes concepções para funda- existência e efetividade dependem do reconhecimento
mentar filosoficamente os direitos da pessoa humana: do poder público. Cada direito somente existe quando
a) concepções idealistas; b) concepções positivistas; c) está escrito na lei. Não é possível uma ordem ideal de
concepções crítico-materialistas. direitos.
A primeira das concepções fundamenta os direi- A terceira concepção se desenvolveu durante
tos humanos a partir de uma visão metafísica e abstraía, o século XIX, partindo de uma explicação de caráter
identificando os direitos a valores superiores informados histórico-estrutural para fundamentar os direitos hu-
por uma ordem transcendental, supraestatal, que pode manos. Surgiu como crítica ao pensamento liberal, e
se manifestar na vontade divina (como no feudalismo) entende que os direitos humanos, como estavam enun-
ou na razão natural humana (a partir do séculor
XVII, ciados nas declarações de direitos e nas constituições
com a moderna Escola do Direito Natural). E dessa con- dos séculos XVIII e XIX, não passavam de expressão
cepção que vem a ideia de que os direitos humanos são formal de um processo político-social e ideológico reali-
inerentes ao homem, ou nascem pela força da natureza zado por lutas sociais no momento da ascensão da bur-
humana. Assim, os homens já nasceriam livres, iguais, guesia ao poder político. A inspiração dessa concepção
dignos, etc., ou pela obra e graça do "espírito santo", ou surge principalmente das obras filosóficas do pensador
como expressão de uma razão natural. Os direitos dos alemão Karl Marx.
seres humanos à vida, à segurança e à liberdade existi- Com base nessas três concepções é que se de-
riam independentemente do seu reconhecimento pelo senvolveram as diferentes explicações sobre os direitos
Estado. Os direitos são um ideal. humanos, marcando profundamente o processo de for-
A segunda concepção apresenta os direitos como mulação e evolução conceituai do terna.
sendo fundamentais e essenciais desde que reconheci-
dos pelo Estado através de sua ordem jurídica positiva.
Ou seja, os direitos humanos seriam um produto que
emana da força do Estado através do seu processo de
legitimação e reconhecimento legislativo, e não o pro-
O que são Direitos Humanos 19
foram a Declaração da Virgínia.de 12 de junho de 1776 pulares, possibilitando condições para uma ruptura com
e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão o antigo regime e instituindo a nova ordem burguesa.
da Assembleia Nacional francesa, de 1789. Foi a partir dessas lutas travadas pela burguesia
Nesse contexto, influenciado pela filosofia ilu- europeia contra o Estado absolutista que se criaram
minista, o pensador Jean-Jacques Rousseau afirmava condições para a instituição formal de um elenco de di-
que existia uma condição natural humana de felicidade, reitos que passariam a ser considerados fundamentais
virtude e liberdade. Ao contrário de Locke, entendia para os seres humanos.
que é a civilização que limita as condições naturais de Esse elenco de direitos coincidia com as aspirações
felicidade humana. Assim, Rousseau afirmou que "os de amplas massas populares ern sua luta contra os privi-
homens são naturalmente livres e iguais, mas encon- légios da aristocracia. No entanto, em última instância
tram-se acorrentados em todas as partes do mundo". eram direitos que primeiramente satisfaziam às necessi-
Não bastava, assim, a garantia da propriedade dades da burguesia, dentro do processo de constituição
para realizar a felicidade humana. Ao contrário, para do mercado livre (direitos da liberdade: livre iniciativa
económica; livre manifestação da vontade; livre-cam-
Rousseau a propriedade era a fonte da desigualdade hu-
bismo; liberdade de pensamento e expressão; liberdade
mana, e, como tal, da perda da liberdade. Os indivíduos
de ir e vir; liberdade política; mão-de-obra livre), e con-
não deveriam abrir mão de sua liberdade, nem de sua
sequentemente criavam as condições da consolidação
soberania, nem de sua igualdade. Portanto, para Rous-
do modo de produção capitalista. Para isso eram funda-
seau, o princípio da igualdade é a condição essencial
mentais a consolidação do Estado liberal e a regulamen-
para o exercício da liberdade.
tação constitucional dos direitos dos indivíduos.
E interessante notar que Rousseau vai além dos Os direitos humanos, em seu primeiro momento
outros pensadores do Iluminismo. Vai além dos princí- moderno, ou, como alguns denominam, em primeira ge-
pios liberais clássicos, introduzindo a concepção demo- ração, são a expressão das lutas da burguesia revolucio-
crático-burguesa. O conteúdo radicai-dernocrático da nária, com base nafilosofia iluminista e na tradição dou-
concepção rousseauniana se enquadra nas especiais trinária liberal, contra o despotismo dos antigos Estados
circunstâncias históricas da França do século XVIII, absolutistas. Materializam-se, portanto, como direitos"
nas quais a burguesia aparecia no cenário político-social civis e políticos, ou direitos individuais atribuídos a urna
como uma classe revolucionária em luta contra o ab- pretensa condição natural do indivíduo. São a expressão
solutismo feudal, capaz de aglutinar em torno dos seus formal de necessidades individuais que requerem a abs-
próprios projetos um enorme contingente de setores po- tenção do Estado para o seu pleno exercício.
4
< 9
O que são Direitos Humanos 23
todos têm direito à vida se não se garantem as condi- direitos humanos. Os direitos fundamentais do ser hu-
ções materiais para se viver. mano seriam os direitos individuais enunciados pelas de-
Ora, se somos todos iguais perante a lei, que essa clarações das revoluções burguesas do século XVIII? Ou
igualdade seja garantida materialmente, pois do contrá- seriam novos direitos de natureza social que garantiriam
rio não existe igualdade, e sim exploração de uma classe coletivamente as condições da existência humana? A
mais poderosa sobre um enorme contingente humano dúvida e a polémica perduram até os dias de hoje.
que nada possui, a não ser a própria pele para vender ao A crítica do pensamento socialista, marcado pelo
preço de mercado, submetendo-se às necessidades da marxismo, e as lutas operárias e populares colocavam a
produção, E no caso de estar desempregado, restaria questão dos direitos sociais, económicos e culturais. A
viver de biscates e outras inúmeras estratégias de so- realidade de crise, de desigualdade social e de concen-
brevivência, que chegam inclusive ao crime. tração do capital tornou insuficientes as interpretações
As opressivas condições de vida impostas aos liberais acerca dos direitos humanos, entendidos como
trabalhadores europeus durante o século XIX levaram inerentes à natureza do homem, independentemente
os sindicatos e partidos operários a reivindicarem a in- da sua condição social e da sua classe de origem.
tervenção do Estado na vida económica e social, visan- Se na concepção liberal caberia ao Estado a abs-
do à regulamentação do mercado de trabalho.
tenção, deixando aos indivíduos a melhor maneira de
Por outro lado, o próprio capitalismo encontrava-
exercer seus direitos individuais, as lutas sociais reivindi-
se em transformação. Era a nova realidade em que o
cavam a presença efetiva do Estado. O movimento ope-
Estado passava a intervir nas atividades económicas e
rário demonstrou que o reconhecimento puro e simples
sociais, deixando de ser o mero árbitro da sociedade.
de um direito inerente ao homem não garantia o seu
Iniciava-se uma nova era do desenvolvimento do
capital (o imperialismo), com os seus espaços de influên- efetivo exercício por aqueles que ocupavam uma posi-
cia e a sua presença no mercado mundial. O capitalismo ção subalterna na estrutura produtiva da sociedade.'
não era mais o simples sistema de livre concorrência en- Assim, a ampliação do conteúdo dos direitos
tre empresas individuais e familiares. Surgiam os grandes humanos se desenvolveu progressivamente. Para isso
conglomerados económicos com base no capital mono- contribuíram as lutas sociais, como também a encíclica
polista. Redefine-se a ideologia liberal clássica. papa! Rerum novarum de 1891, que propunha a inter-
O século XIX viu, portanto, nascer um confron- venção estatal nas questões sociais, formulando a mo-
to que se estende ao século XX, sobre o conteúdo dos derna doutrina social da Igreja.
m
30 João Ricardo W. Dornelles O que soo Direitos Humanos 31
Nas primeiras duas décadas de século XX, a Re- direito a condições de segurança no trabalho; direito aos
volução Mexicana, a Revolução Russa de 1917, a Cons- serviços públicos (transporte seguro e confortável, se-
tituição da República de Weimar na Alemanha, em 1919, gurança pública, saneamento básico, ruas calçadas, ilu-
e a criação da Organização Internacional do Trabalho minação, água encanada e tratada, comunicação, etc.);
(OIT) peloTratado de Versalhes, também em 1919, am- direito à moradia digna; direito de acesso à cultura; di-
pliaram na realidade sociopolítica a abrangência dos di- reito de proteção à infância; direito ao lazer, etc.
reitos humanos, que deixaram de ser entendidos apenas Trata-se, portanto, não apenas de enunciar direi-
corno direitos individuais e passaram a incorporar a ideia tos nos textos constitucionais, mas também de prever
dos direitos coletivos de natureza social. os mecanismos adequados para a viabilização das suas
Para dar conta da expansão do conteúdo concei- condições de satisfação. Nesse campo o Estado passa a
tuai dos direitos humanos passou-se a utilizar a expres- ser um agente promotor das garantias e direitos sociais.
são "direitos sociais, económicos e culturais". Não se
trata mais de admitir a existência de direitos naturais,
anteriores à sociedade e inerentes à pessoa humana.
Os direitos sociais não são proclamados com o intuito
de limitar a intervenção e o poder do Estado (não se
luta mais contra o absolutismo feudal). São direitos que
exigem a ação positiva do poder estatal, criando as con-
dições institucionais para o seu efetivo exercício.
Entre os direitos fundamentais de natureza social,
económica e cultural podemos apontar alguns exem-
plos: direito ao trabalho; direito à organização sindical;
direito à previdência social em caso de velhice, invalidez,
incapacidade para o trabalho, aposentadoria, doença,
etc.; direito à greve; direito à saúde; direito à educação
gratuita; direito a uma remuneração que garanta con-
dições dignas para o trabalhador e sua família; direito a
férias remuneradas; direito à estabilidade no emprego;
*»
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•J
O que soo Direitos Humanos 33
volvirnento dos princípios de direito internacional público sasse a respeitar os direitos enunciados em relação aos
a partir do final do século XIX levaram à valorização do seus habitantes.
tema dos direitos e garantias da pessoa humana também Foi necessária a criação de mecanismos e instru-
nas relações entre os Estados, entre as nações e entre mentos controladores da ação dos Estados no sentido
indivíduos e grupos na ordem internacional. do respeito àqueles que habitam ou se encontram em
Durante o decorrer do século XX, a comunidade seu território e do respeito aos princípios do direito in-
organizada das nações, seja no marco das organizações ternacional. Para tanto, foram organizados sistemas re-
mundiais como as Nações Unidas (ONU), seja no mar- gionais de proteção e promoção dos direitos e garantias
fundamentais, buscando a adesão, por parte dos Esta-
co dos organismos especializados como a Organização
dos, a uma política internacional de resolução pacífica
Internacional do Trabalho (OIT) ou a Organização das
dos conflitos e contradições e de efetivo respeito ao
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
elenco de direitos conhecidos internacionalmente, in-
(UNESCO), seja nos foros regionais de associações
dependentemente de nacionalidade, raça, sexo, idade,
internacionais, corno a Organização dos Estados Ame-
religião, opinião política, condição social, etc.
ricanos (OEA), a Organização da Unidade Africana
O problema colocado para o direito internacional
(OUA) e o Conselho da Europa, tem aprovado inúme-
é que lhe falta o poder coercitivo, por não existir na or-
ros dispositivos, textos, declarações, instrumentos de
dem internacional um órgão controlador direto e fisca-
validade jurídica na defesa e proteção internacional dos lizador com capacidade de exigibilidade sobre as ações
direitos humanos buscando assegurar o respeito e o re- violadoras de um Estado. As ações dos órgãos existen-
conhecimento por parte de governos e de particulares. tes têm apenas um caráter moral, chamando a atenção
Os conflitos internacionais, principalmente as do Estado infrator e da comunidade internacional para
duas grandes guerras mundiais do século XX, os mas- que cesse a violação, mesmo quando se trata dos casos
sacres de populações civis, os genocídios de grupos ét- mais dramáticos e flagrantes, corno os de torturas, de
nicos, religiosos, culturais, etc., e a permanente ameaça desaparecimentos forçados, de restrição às liberdades
à paz internacional demonstraram que não bastava que de-opinião e de credo, de massacres e genocídios noto-
cada Estado aprovasse internamente uma declaração riamente reconhecidos.
de direitos, ou mesmo subscrevesse diferentes docu- O estabelecimento de mecanismos de controle
mentos internacionais para que automaticamente pas- das ações violadoras se chocou, assim, com um con-
40 João Ricardo W. Dornelles O que são Direitos Humanos 41
ceito ilimitado de soberania nacional que tem como co- tiva dos Estados das três Américas sobre o tema dos
rolário o princípio da não-intervenção em assuntos de direitos humanos, e consagrou os princípios básicos de
responsabilidade interna de cada Estado. O conceito tutela dos direitos essenciais no âmbito continental.
irrestrito de soberania nacional impede a ação efetiva Foi a primeira expressão do Sistema Interamericano de
dos organismos criados pela comunidade internacional Proteção aos Direitos Humanos.
para a defesa dos direitos humanos, defesa essa funda-
mental quando se trata de assegurar a paz e a seguran- - Declaração Universal dos Direitos do Homem
ça internacionais. - Elaborada a partir da Carta das Nações Unidas que
A universalização da temática dos direitos huma- criou a Comissão de Direitos Humanos. No dia 10 de
nos é um fenómeno da nossa época, que acompanha o dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU, reuni-
desenvolvimento da política e da economia internacio- da em Paris, aprovou por 48 votos a favor e 8 abstenções
nais e a evolução jurídica da matéria através do direito a Declaração Universal. As abstenções foram da Poló-
internacional. Dessa maneira o ser humano passou a nia, Ucrânia, Jugoslávia, União Soviética, Bielo-Rússia,
ocupar um papel de destaque na vida internacional, ten- Tchecoslováquia, África do Sul e Arábia Saudita. Os
do urna série de direitos universalmente reconhecidos países socialistas se abstiveram por entenderem que a
por todos os Estados. Portanto, o prévio reconhecimen- declaração não tratou adequadamente os direitos so-
to do ser humano como sujeito de direito das normas ciais, económicos e culturais. A Arábia Saudita se abste-
internacionais é a condição indispensável para falarmos ve porque a declaração não r
se pautou pelos princípios da
em proteção internacional dos direitos humanos. religião muçulmana. E a África do Sul deixou de aprovar
A ampliação dos mecanismos de proteção dos di- o texto porque o conteúdo do documento confrontava
r
reitos humanos no plano internacional se expressa em diretamente a política racista do apartheid. E importan-
diferentes documentos, dos quais podemos destacar os te frisar que, mesmo não tendo força de obrigatorieda-
seguintes: de para a ação dos Estados, a Declaração da ONU tem
uma importância histórica por marcar a derrota dos re-
* Declaração Americana de Direitos e Deveres gimes1 totalitários nazi-fascistas, além de constituir um
do Homern - Aprovada pela IX Conferência intera- monumento de natureza moral, servindo de referencial
mericana, reunida na cidade de Bogotá entre março e para a promoção e o respeito efetivo dos direitos huma-
maio de 1948. Foi o primeiro texto elaborado por inicia- nos em todas as partes do mundo.
« j» < j»
42 João Ricardo W. Dornelles O que são Direitos Humanos 43
voivimento. As consignas levantadas pelas lideranças um tipo de poder político que violentava sistematica-
conservadoras são o produto de uma determinada mente os direitos mais elementares da pessoa humana.
concepção de segurança que identifica o Estado com A luta direta contra os regimes militares colocou,
a nação, e tem por base a manutenção da ordem social em um primeiro momento, a questão do direito à vida,
estabelecida com um tipo de desenvolvimento exclu- do direito à integridade física, do direito à liberdade in-
dente, concentrador da renda e elitista. dividual, do direito à livre manifestação de opinião e ex-
A Doutrina de Segurança Nacional foi o suporte pressão, como valores que não podem ser alienados por
teórico dos regimes políticos de ditadura militar implan- razões de Estado ou de segurança nacional. Ou seja,
tados na América Latina e segue sendo, no quadro da de certa forma os movimentos de defesa dos direitos
democratização, a base das ações das forças conserva- humanos recuperaram, em seu embate com os regimes
doras. Tendo como objetivo principal a manutenção do militares, uma ideia jusnaturalista de Rousseau de direi-
status quo, seus princípios criaram a figura do inimigo tos inalienáveis e inerentes à pessoa humana.
No entanto, nos contextos latino-americanos, a
invisível, o "inimigo interno' 1 rotulado de "comunista
luta pelo respeito aos direitos fundamentais da pessoa
ateu >J , que ameaça a civilização cristã-ocidentai da qual
humana converteu-se em ação política real contra o
naturalmente fazem parte os países da América Latina,
autoritarismo do Estado, transcendendo a questão da
entre eles o Brasil.
ilegalidade das práticas governamentais e passando ao
O desenvolvimento da Doutrina de Segurança Na- questionamento da própria legitimidade do poder.
cional se deu no quadro da guerra fria, nas décadas de Assim, os direitos humanos aparecem nesse con-
1950 e 1.960, a partir das necessidades do confronto inter- texto político como um meio de fazer política, de in-
nacional entre o bloco ocidental e os países socialistas. tervir positivamente no jogo político, de confrontar as
Com essa base doutrinária é que as experiên- experiências existentes de exercício do poder e de criar
cias ditatoriais se desenvolveram em nosso continente, alternativas ao poder estabelecido, a partir de um pon-
principalmente a partir de 1964, corn o movimento mi- to de vista popular, através de ações que traduzem o
litar brasileiro. caráter essencialmente político dos direitos humanos.
A colocação na ordem do dia da questão dos direi- Tais ações de grupos e associações de defesa dos
tos humanos pelos movimentos de oposição aos regimes direitos humanos passam a questionar as formas auto-
militares demonstrou a capacidade de confrontação com ritárias do poder contemporâneo, buscando através de
João Ricardo W, Dornelles O que são Direitos Humanos 49
sua prática social constituir novas experiências que am- fundamentais apenas aqueles que se vinculam à ordem
pliem os espaços de liberdade e de exercício efetivo da económica, social e cultural, e que, portanto, exigem a
cidadania coletiva. presença do Estado como agente promotor e regula-
É dessa forma que a questão dos direitos huma- mentador desses direitos.
nos irrompe no cenário político através de novas práti- A contribuição que cada uma dessas concepções
cas políticas e novas formas de organização social como deu à concepção ampliada atual dos direitos humanos -
centros de defesa dos direitos humanos, os comités de direitos civis e políticos por influência liberal, e direitos
anistia, as diferentes entidades de familiares de desapa- sociais, económicos e culturais por influência do pen-
recidos e atingidos pela repressão militar, as Comissões samento socialista - acabou por se transformar em um
de Justiça e Paz, os grupos de mães como as Madres fator de perpetuação de uma falsa oposição, "ideologi-
de Ia Plaza de Mayo, e mesmo através de instituições zando" a questão. De um lado estariam as liberdades
tradicionais da sociedade civil como a Ordem dos Ad- formais burguesas, contrapondo-se com os direitos e
vogados do Brasil, que desempenhou um papel exem- liberdades materiais socialistas, onde os primeiros re-
plar na luta contra o regime militar e pelo respeito aos querem a abstenção da ação do Estado, enquanto os
direitos humanos. segundos necessitam, para a sua existência e efetivida-
A prática das entidades de defesa dos direitos hu- de, da intervenção direta do poder estatal.
manos, em um. quadro de transição democrática, apon- A definição ampliada dos direitos humanos pas-
ta para um entendimento mais amplo desses direitos. sa a perceber a complementaridade que existe entre os
Não apenas direitos individuais, os direitos de caráter chamados direitos da primeira geração (direitos civis e
social. Mas uma prática que percebe que todos esses políticos) e os da segunda geração (direitos sociais, eco-
direitos são integrados. Supera-se na prática sociopo- nómicos e culturais), dentro de um contexto cultural
lítica desses grupos a falsa dicotomia proveniente das plural como os das sociedades contemporâneas.
ortodoxias liberal e marxista. Cada uma dessas con- A dinâmica da luta que se travou contra os re-
cepções exclui da sua órbita de valorização positiva, gimes autoritários, e posteriormente nos períodos de
e de preocupação, uma série de direitos conquistados. recuperação democrática, fez surgir uma série de rei-
Ou seja, a concepção liberal ortodoxa baseia-se ape- vindicações trazidas do seio da sociedade civil, que ori-
nas nos direitos civis e políticos (direitos individuais), e ginou expectativas de reconhecimento e viabilização
a concepção marxista ortodoxa entende serem direitos do exercício desses direitos. Aqui aparecem as quês-
50 João Ricardo W. Dornelles O que soo Direitos Humanos 51
• r , com
do capitalista ,,nm *'" a miséria
_ ^ da 70- Kposição mundial, ~ D em i Dados da FAO (órgão da ONU para alimenta-
.- - r.; n ;<í de existência para a população, rela ção) indicavam que no final da década de 1980 cerca de
condições sócias ^
,. j , rta maior rede de telecomunicações do 86 milhões de brasileiros, quase três quartos da popu-
mundo (RedeaG!obo, plim, plim) assistimos à "ficção do lação, ingeriam diariamente menos de 2 240 calorias,
i» - viabilidade de milhões de brasileiros, ao consideradas como a dieta adequada pela Organização
pais real , arnisei» .. „ „ , ,
j
tratamentoda ^ania M ^ "Ç^nfa hquisicao nas delegacias
A ((s , e-7prest-
, » Mundial de Saúde.
i- ^ - ^rl^rV
dios, a impunidade, * à corrupção,
. , * etc. _A modernidade
, Ainda naquela época, segundo a U N l CEF; cerca de
tecnolóoica literalmente ca. sobre o atraso, quando mo- l 000 crianças entre O e l ano de idade morriam por dia no
derníssimos Boeings passam a poucos metros das cabe- Brasil. No Nordeste o índice de mortalidade infantil era de
ças de favelados para pousar suavemente no aeroporto aproximadamente 250 por l 000; 5 entre cada 10 crianças
de São Paulo, quando não caem no meio dafavela, como não alcançavam os 5 anos de idade. Em Cubatão, o índice
ocorreu ern iQRQ I V õ A FL -ou perverso
H , •quadro, da , - convivência , de mortalidade era de 632 crianças por l 000.
• t- j Acenas
cotidiana de pesbuao M aue sobrevivem de biscates, ou de
empregos que,« Ihp^ ineb rendem
ic< um. salário
^ considerado dos
mais - baixos
i • ^^ munuu,
do mi indo, com as mais avançadas v conquis-
M
tas do mundo contemporâneo.
A 'rtadania, dentro de uma sociedade como a
brasileira, não é uma conquista de igualdade, a não ser
i j. j u; A realidade é outra, marcada pelo exer-
na letrada lei. r\ ( t i -
cicio dos direitos por apenas, uma camada da população
(basicamente o rico Brasil de classe média e alta), que
dificilmente será espancada pela polícia por uma suspei-
ta qualquer, que não vai virar "presunto" nas Baixadas
Fluminenses da vida, que, bem ou mal, consegue fazer
parte do j .^ot-r^rln
meioauu de consumo ^ moderno, cujos > filhos
estudam direitinho (ou mais ou menos), ou tem um
acompanhamento de saúde razoável. E o resto (que é
muita gente!)?
*»
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O que soo Direitos Humanos 55
54 João Ricardo W, Dornelles
que sofrem atentados em sua vida privada (e principal- manos, mas principalmente do Estado. O que ocorre,
mente em seu património). E interessante notar que no entanto, é que somente se fala de uma vítima, e não
entre as vítimas da violência não aparecem, na versão se vê o quadro global da violência em uma sociedade
oficial, as vítimas dos acidentes de trabalho, as vítimas com histórica tradição de violações dos direitos mais
dos escândalos financeiros, as vítimas do salário míni- primários. Além disso, apesar de os defensores da or-
mo, as vítimas assalariadas do "leão do imposto de ren- dem se lembrarem da vítima da violência somente no
da", as vítimas dos crimes ecológicos e nucleares, as momento em que buscam legitimar a ação criminosa
vítimas da violência policial, as vítimas do Esquadrão da dos órgãos repressivos, apenas apresentam como solu-
Morte, as vítimas do sistema penitenciário, as vítimas ção, como medida de proteção, uma espécie de vingan-
do sistema de saúde, as vítimas do latifúndio, enfim, as ça contra o criminoso, que se estende a todos os seg-
vítimas de todas as misérias genuinamente brasileiras. mentos da sociedade identificados como indesejáveis
Divulga-se a ideia de que a proteção dos direitos e perigosos (tenham ou não cometido crimes). Assim,
individuais e coletivos para toda a população e o pleno os defensores da ordem criam um clima de medo e de
exercício da cidadania constituem um meio de estímu- violência contínua, que em nada ajudará na contenção
lo ao crime, de privilégio aos bandidos e de "boa vida" do conjunto de violências praticadas contra toda a po-
aos presos. Corno se esta fosse a realidade vivida pela pulação brasileira.
imensa maioria marginalizada de nossa sociedade. Quando se fala em direitos humanos, não se
Cria-se, assim, um quadro ideologizado que per- pensa em realidades estanques, compartimentadas.
versamente identifica as entidades de defesa dos direi- Não se pensa que apenas os " bons", os "mocinhos da
tos humanos como defensoras de bandidos, como en- história", têm direitos a serem preservados. Quando
tidades ligadas ao mundo do crime e que preferem dar se luta pelos direitos humanos, pensa-se e atua-se in-
atenção aos maus ao invés de se preocuparem com as tegralmente, tendo uma visão global da realidade em
vítimas. Normalmente aparece a pergunta: E os direi- que vivemos.
tos humanos da vítima? Assim, a atuação de defesa intransigente dos
Ora, o ponto não é este! direitos humanos se relaciona com todas as violações
De que vítima estamos falando? ocorridas. Violações em todos os níveis, e que afetem
A vítima de uma violência criminal merece toda a a vida de todos os seres humanos, independentemente
atenção, toda a assistência, toda a preocupação e toda de sua posição social, cor, religião, e mesmo do que te-
a solidariedade das entidades de defesa dos direitos hu- nham cometido.
João Ricardo W. Dornelles O que são Direitos Humanos 61
60
É inacreditável que enquanto os governantes maneira estão nascendo (em locais mais nobres) o es-
gastam mais de dez por cento do orçamento nacional peculador, o corrupto, o poluidor, o torturador, o devas-
com as forças armadas e com armamentos policiais, e tador das florestas, o criminoso de "colarinho branco11
enquanto a política de segurança pública é baseada na do futuro. Hoje está nascendo a sociedade brasileira do
aquisição de "viaturas policiais", de armas pesadas, etc., amanhã. Estão nascendo as duas partes da mesma equa-
as quantias destinadas à educação pública, à saúde públi- ção onde os dois lados são perdedores, os dois lados são
ca, à moradia, ao transporte de massa são escassas. violados em seus direitos de ser humano, mas onde, sem
A relação existente entre a criminalidade, a vio- dúvida, uma parte sempre perde mais do que a outra.
lência, uma política de segurança pública, e o respeito E esta sociedade do futuro que nasce hoje já ga-
aos direitos humanos se inscreve no contexto da desi- rante para alguns um caminho aberto para o sucesso,
gualdade vivida por milhões de brasileiros. para a prosperidade, para a riqueza, para o poder, en-
Em um país com tantas desigualdades, é impos- quanto outros já nascem com o caminho voltado para
sível conter a criminalidade sem uma política social de a marginalização social, para a miséria, para as frustra-
médio e longo prazo, que resolva alguns problemas cró- ções, para a violência e para a morte.
nicos da nossa organização social. Ou melhor, uma po- Se não se tem vontade política de realizar reformas
lítica de segurança pública realmente democrática deve sociais sérias, contando com a participação popular nas
ser entendida não como uma espécie de "política de se- decisões, estaremos apenas reproduzindo o atual qua-
gurança nacional' 1 que garante os privilégios de alguns, dro de crise social e formando hoje os crimes do futuro.
mas sim como uma política de promoção e respeito ao As medidas paliativas repressivas somente satisfazem às
ser humano, onde o Estado se compromete com a se- consciências conservadoras, reproduzindo uma socie-
gurança individual e coletiva da cidadania. dade desigual e injusta, sem alcançar eficácia alguma no
Assim, a ineficácia da repressão policial no com- combate ao crime. E a reprodução desta realidade vio-
bate ao crime deriva do fato de a criminalidade ter raízes lenta é estimulada peias classes privilegiadas, pelo crime
socioeconômicas, tendendo a crescer com o aumento organizado, vinculado ao poder económico e ao poder
das desigualdades sociais, da concentração da renda, político. Assim, dentro de vinte anos o drama da crimina-
com o quadro de profunda crise. lidade estará, na melhor das hipóteses, igual ao de hoje.
Hoje, agora, neste exato momento em que estou Em pesquisa realizada pelo jurista argentino Raul
escrevendo, estão nascendo o assaltante, o assassino, o Zaffaroní sobre sistemas penais e direitos humanos na
estuprador, o pivete, o criminoso do futuro. Da mesma América Latina, conclui-se que existe um desprezo pela
02 João Ricardo W. Dornelles
fensivos enunciados de direitos individuais expressos nas Esse debate, por muitas décadas, ocupou a luta
política e ideológica tanto no plano interno das socieda-
constituições, como se bastasse a letra fria da lei para a
des como nas tribunas dos organismos internacionais,
real proteção dos direitos e liberdades fundamentais.
onde os representantes dos países ocidentais acusavam
Não basta escrevermos na lei que todos têm
os socialistas de desrespeitarem os direitos humanos,
direito à vida, e que nascem iguais, e que são livres. enquanto os representantes dos países do socialismo
E necessário que se garantam verdadeiramente as real acusavam o mundo ocidental de reproduzir cons-
condições para o exercício desses direitos enuncia- tantemente as condições de miséria social para garan-
dos, pois, do contrário, fica ridículo anunciarmos para
tirem seus
f lucros.
o mundo o direito à vida, enquanto milhões morrem E uma falsa polémica que se desenvolve com uma
de fome diariamente, morrem de doenças já controla- retórica ideologizada, não admitindo que a realidade
das, enfim, morrem de miséria. Também poderíamos dos direitos fundamentais é mais ampla e inclui todo o
lembrar que durante o regime militar brasileiro nossa processo de ampliação do conteúdo desses direitos, o
Constituição previa uma série de dispositivos que des- que se deu como produto das lutas sociais.
creviam os direitos dos indivíduos, o que não foi o su- Cada geração de direitos humanos nasceu e se
ficiente para o efetivo respeito aos direitos individuais desenvolveu representando momentos históricos ern
e às liberdades democráticas. que os indivíduos, os oprimidos, os explorados, os ii>
Por outro lado, uma série de "companheiros" justiçados, os expropriados levantaram a bandeira da
da esquerda dizem que os direitos individuais são uma libertação e da emancipação humana, conquistando
mera produção burguesa, e ponto final. Não são priori- duramente espaços democráticos e liberdades possí-
tários enquanto milhões de pessoas viverem uma vida veis no contexto histórico vivido.
miserável. Os "verdadeiros" direitos humanos seriam Não se pode tratar hierarquicamente os direitos
apenas os direitos sociais. Esquecem, no entanto, que humanos. Não existe contradição entre cada geração
as classes populares são aquelas que mais têm sofrido do desenvolvimento do conteúdo dos direitos funda-
f mentais. Todos são anseios e reivindicações legítimos e
violações de seus direitos individuais no cotidiano. E só
vermos o que ocorre com os assassinatos de milhares justos, colocados pelos povos ainda hoje, como provam
de pessoas das classes mais pobres, ou a falta de respei- as lutas contra os regimes militares na América Latina,
Assim, a integração de cada ordem de direitos é
to ao direito à integridade física dessas pessoas - cida-
imposta pelas lutas existentes contra as violações ré-
dãos de segunda categoria.
4»
68 João Ricardo W. Dornelles
que a vida, a integridade física ou a saúde de uma possí- REQUISITOS PARA os PEDIDOS
vel vítima se encontrem ameaçadas, deve ser apresen- a) O nome, nacionalidade, profissão ou ocupação, en-
tada a denúncia mesmo que não se tenham todos os
dereço e a assinatura de quem efetua a denúncia.. Em
detalhes do caso.
relação às entidades não-governamentais de defesa
c) As queixas podem ser comunicadas por cartas, dos direitos humanos, é necessário seu domicílio ou
telefonema, telegrama, e-mail, ou por qualquer outro endereço, o nome e a assinatura de seu representan-
meio disponível pela vítima, familiares, ameaçados ou te ou representantes legais.
entidades de defesa. As denúncias incompletas podem
ser complementadas posteriormente. b) Relação dos fatos ou da situação que se está denun-
ciando, especificando lugar e data das violações ale-
d) No caso em que alguma informação dada não gadas, e se possível o nome das vítimas e o norne de
possa ser confirmada, deve-se escrever "não se aplica"
qualquer autoridade pública que tenha tomado co-
ou "nenhuma informação".
nhecimento dos fatos relatados.
e) As denúncias somente podem ser apresenta-
c) A indicação do Estado que o denunciante considera
das contra Estados membros da Organização dos Esta-
responsável, por ação ou omissão, da violação de di-
dos Americanos (OEA) e devem ser redigidas de forma
clara, direta e sem retórica de caráter político. reitos consagrados.
d) Uma informação sobre a utilização ou não dos recur-
sos da jurisdição interna ou sobre a impossibilidade
As queixas devem ser enviadas: de sua utilização.
Ao Secretário Executivo da Comissão
Interamericanade Direitos Humanos
.1.889 E Street, N. W. MODELO
Washington, D.C. 20006- Estados Unidos
E-mail: cidhoea@oas.org Vítima:.
Telefone: l - 202 - 458-6002 Nome: Idade:
Fax: 1-202-458-3992 Nacionalidade: Ocupação: . . . . . .
Estado Civil: Doe. de identidade:
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72 João Ricardo W. Dornelles
Endereço:
Telefone:
Número de filhos:
Governo acusado da violação:
Violação de direitos alegada. Explique o ocorrido com INDICAÇÕES PARA LEITURA
todos os detalhes possíveis, informando o lugar e a data
da violação:
Nomes e cargos das pessoas (autoridades) que come-
teram a violação: .
Testemunhas da violação:
Endereço e telefone das testemunhas:.
Documentos/provas (por exemplo: cartas, documen- Nos últimos anos, com o avanço dos espaços de-
tos jurídicos, fotos, autópsias, gravações, etc.): . . . mocráticos conquistados ern nosso país, tem aumenta-
Recursos internos que foram utilizados e não surtiram do consideravelmente o número de edições publicadas
efeito (por exemplo: cópias de habeas corpus, ou qual- sobre o tema dos direitos humanos.
quer documento que comprove a tentativa de utiliza- Para traçarmos um possível roteiro de leitura,
ção das vias legais nacionais):. propomos que se inicie com outro livro da presente co-
Indicar se a identidade do denunciante deve ser manti- lação, de autoria do professor Dalmo Dallari, O que são
da em sigilo pela Comissão:
direitos da pessoa. Além desse livro, a Editora Brasiliense
Denunciante: N o m e : . . . . Endereço:
tem se dedicado a publicar alguns títulos que podem ser
Telefone:
importantes para o avanço no entendimento da ques-
Documento de identidade:. . . . . . . .
tão dos direitos humanos em nosso país e na América
Outras informações (por exemplo: nome, ende- Latina. Em coedição com o Instituto Interamericano
reço, telefone de advogados que acompanham o caso, de Derechos Humanos, dentro do Projeto Educação e
de entidades de defesa dos direitos humanos que acom- Direitos Humanos, foram publicados dois volumes do
panham o caso, etc). livro: Direitos humanos: um debate necessário.
O que são Direitos Humanos 75
74 João Ricardo W. Dornelles
Além desses livros, seria interessante uma leitura direitos humanos, a partir de uma concepção dentro do
simples, publicada pela Brasiliense: Direitos humanos: marxismo, é interessante ler o livro Marxy los derechos
perguntas e respostas, de Leah Levin. humanos, de Manuel Atienza, Editorial Mezquita, Ma-
Um livro importante para a compreensão históri- dri, Espanha.
ca dos direitos humanos e que faz parte de uma pesqui- Também em espanhol temos uma infinidade de
sa realizada na Baixada Fluminense junto aos segmen- publicações do Instituto Interamericario de Derechos
tos de comunidades carentes é do autor Ivo Lesbaupin, Humanos, Entre elas destacamos:
As classes populares e os direitos humanos, publicado
a) Organizaciones de derechos humanos de América dei
pela Editora Vozes.
Sur, de Hugo Fruhling, Gloria Alberti e Felipe Porta-
A Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Ad-
vogados do Brasil lançou no ano de 1982 um número es- les, editado pelo 11DH.
pecialmente dedicado aos direitos humanos de sua revis- b) Protección internacional de los derechos humanos,
ta. Nessa publicação se encontram os diferentes textos de Daniel O'Donnell, em coedição do IIDH com a
de documentos internacionais de proteção dos direitos Comissão Andina de Juristas, do Peru, Esse livro é
humanos. Revista n° 19 - OAB/RJ - Direitos Humanos. um cornpletíssimo manual sobre os dispositivos de
Leitura fundamentai para o entendimento dos proteção dos direitos humanos existentes na ordem
acontecimentos ocorridos no Brasil durante o regime au-
internacional.
toritário de 1964 é o já clássico Brasil nunca mais, da Edito-
ra Vozes, com prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns. c) Tratado básico de derechos humanos, de Enrique R
Foi lançado pela Companhia das Letras o livro Haba, publicado pelo Instituto Interamericano de
de Celso Lafer, A reconstrução dos direitos humanos: Derechos Humanos em coedição com a Editorial
Um. diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Juricentro da Costa Rica. E um manual em dois vo-
Também no campo da relação dos direitos hu- lumes, onde existe um aprofundamento doutrinário
manos corn a questão democrática e a luta contra os • sobre o tema dos direitos humanos. •
modelos autoritários, temos o livro de Claude Lefort, A
Sob os auspícios das Nações Unidas foi publicado
invenção democrática, da Brasiliense.
Além dessas publicações, poderíamos indicar al- na Guatemala, pela Editorial Universitária, um ótimo
gumas leituras em espanhol. Para uma visão crítica dos livro de Marco António Sagastume Gemmell, Curso
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