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Nadia Somekh
Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.211/6825
Galeria Metrópole, 1959/1960. Arquitetos Gian Carlo Gasperini e Salvador Candia
Foto Rafael Schimidt [Fotoarquitetura]
As cidades contemporâneas vêm passando por transformações que podem ser elencadas
apontando a necessidade de ampliar a importância da proteção do patrimônio cultural,
bem como dos espaços públicos, garantindo identidade e democracia urbana. As cidades
brasileiras vêm sendo produzidas em um modelo urbano sem urbanidade. O binômio
demolição/construção resultou em uma verticalização que destruiu o patrimônio da
cidade. As transformações recentes da indústria e a reestruturação produtiva
trouxeram para as nossas cidades a convivência de velhos e novos problemas. Esta
reestruturação deixou áreas, bem equipadas, vazias, ampliando o processo de
expansão e consequente dilapidação dos recursos naturais. Por outro lado
desigualdades sociais persistem principalmente na questão habitacional.
Nesse sentido, entendemos que construção de cidade significa atacar velhos e novos
problemas: ampliar a oferta habitacional de diversas faixas de renda, reduzindo a
gentrificação, (re)estabelecendo uma mobilidade que atenda a redução do aquecimento
do planeta e produzir espaços públicos de qualidade com preservação do patrimônio
histórico, reforçando núcleos identitários e cidadãos globalizados.
Entendemos também que a proteção do patrimônio deve ser tratada dentro da questão
urbana. Nos anos 70, o patrimônio histórico foi tratado pelo órgão de planejamento
e, ao longo da sua atuação, foi se fragmentando e se desarticulando da questão
urbana. Dentro desse quadro, como então formular uma política de preservação do
patrimônio cultural levando em conta o desenvolvimento sustentável? Como construir
cidade a partir do patrimônio?
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses vai além dessa perspectiva integradora: propõe
que o Ministério ou as Secretarias de Cultura deveriam se responsabilizar não só
pela administração de instituições de eventos “culturais, mas sobretudo na
identificação da dimensão cultural em todas as políticas públicas de um governo”
(9).
No caso de São Paulo a ação municipal de preservação teve sua origem em 1974 na
Coordenadoria Geral de Planejamento – Cogep, entidade instalada originalmente no
gabinete do prefeito, com a lista de bens culturais a serem protegidos solicitados
aos professores Benedito Lima de Toledo e Carlos Lemos, posteriormente incorporada
ao zoneamento a partir da definição das zonas especiais Z8-200 (10). A criação em
São Paulo do Departamento de Patrimônio Histórico – DPH e do Conselho Municipal de
Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental – Conpresp representou
uma fragmentação nesse processo de revisão urbanística que agora começa a ser
retomada.
Grandes projetos urbanos são marca nas cidades contemporâneas e podem considerar
ou não preexistências que se fundamentam na história e na memória urbana. Mas, na
esteira dos movimentos de retomada do espaço público ao redor do mundo, a
transformação urbana pode incorporar as múltiplas formas de apropriação cidadã.
Xis, SNJ, Z’África Brasil, Lurdez da Luz, Rashid, Dexter e Thaide em apresentação no
Theatro Municipal
Foto divulgação
Dentro da ideia da ampliação e democratização do conceito de patrimônio, a Jornada
trouxe apresentações ligadas ao hip hop, movimento que já é reconhecido
popularmente como uma manifestação emblemática da cultura paulistana. E como
exemplo da programação relativa às religiões de matriz africana, a Casa Sertanista
– casa de taipa do século 17 – recebeu a Cia. Treme Terra, que fez uma intervenção
de música, dança e performance chamada “Macumba Jam”.
Para valorizar as 22 companhias de teatro que, assim como o samba, foram registradas
como patrimônio imaterial paulistano, a Jornada teve a apresentação de 26 peças
dessas companhias durante o final de semana em edifícios de valor histórico e
patrimonial, como o Teatro Municipal, a Casa do Povo (espaço de sociabilidade
fundado por judeus migrantes do Leste Europeu e que serviu como local de resistência
à Ditadura), Solar da Marquesa (raro exemplar de residência urbana do século 18) e
o Tribunal de Justiça de São Paulo.
Esses são apenas alguns exemplos da programação, que também teve uma parte especial
para crianças. Foram mais de noventa espetáculos, peças, oficinas em edifícios ou
locais históricos. Alguns desses edifícios abertos ao público pela primeira vez,
como a casa de Vilanova Artigas no Campo Belo, da família do arquiteto, e a casa
de Nhonhô Magalhães, propriedade do Shopping Pátio Higienópolis, no bairro de mesmo
nome.
No caso de São Paulo a primeira ação municipal surgiu em 1974, com a lista de bens
culturais 28-200, elaborada pelos professores Carlos Lemos e Benedito Lima de
Toledo encomendadas pela Cogep do Município de São Paulo. Com a criação do DPH em
1975 e do Conpresp em 1985, o Município de São Paulo pode tombar de forma
desvinculada da legislação de planejamento. A identificação e o tombamento focam
as recuperações características da ação patrimonial paulistana. Hoje existem 3559
bens tombados e identificados, mas poucos efetivamente conservados e protegidos.
Escadaria do Bexiga
Foto Abilio Guerra
O Bairro do Bexiga, tradicionalmente excluído de planos e projetos urbanos, por
ser composto por operários, pobres, negros, italianos e anarquistas, teve seu
casario, pelas mesmas razões de exclusão, preservado da febre imobiliária de São
Paulo no século 20.
Com uma perspectiva de adensamento previsto pelo plano Diretor 2014 e pela lei de
zoneamento de 2015, e tendo como realidade física um tecido social forte e um
quadro construído em processo de deterioração física, foi formulado o instrumento
inovador denominado Fábrica de Restauro do Bexiga. A ideia é estabelecer um modelo
que possa ser replicado em conjuntos urbanos e também constituir-se experiência
piloto para dar origem a uma empresa pública SP Restauro.
Considerações finais
Ações de sensibilização como a Jornada do Patrimônio, com seus roteiros ancorados
no território, a celebração dos patrimônios imateriais, a visitação a edifícios, a
vivência do centro e da memória que ele guarda de uma vida de fato urbana, fazem
parte desse processo de projetação e despertar da consciência para além do véu do
espetáculo, por meio do qual a mercadoria passa a ocupar a vida social de forma
total (12).
notas
NA – Texto apresentado na Sessão temática “Patrimônio ambiental urbano” do IV Enanparq
– Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo,
Porto Alegre, 25 a 29 de julho de 2016.
1
ROGERS, Richard; GUMUCHDJIAN, Philip. Cidades para um pequeno planeta. Barcelona,
Gustavo Gili, 2001.
2
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Patrimônio ambiental urbano: do lugar comum ao lugar
de todos. CJ Arquitetura, São Paulo, v. 5, 1978, p. 18-20.
3
Idem, ibidem.
4
YÁZIGI, Eduardo. Patrimônio ambiental urbano: refazendo um conceito para o planejamento
urbano. Simpósio de Geografia Urbana da Universidade de São Paulo, 2001.
5
Cf. MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Op. cit.
6
BIASE, Alessia de. Hériter de la Ville: Pour une Anthropologie de la Transformation
Urbaine. Paris, Donner Lieu, 2014.
7
LUSTOZA, Regina E. Patrimônio ambiental urbano: revendo conceitos. 9º Seminário Docomomo
Brasil – interdisciplinaridade, experiências em documentação e preservação do patrimônio
recente. Brasília, Docomomo, 2011.
8
BONDUKI, Nabil. Intervenções urbanas na recuperação de centros históricos.Brasília,
Iphan, 2012.
9
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cidade com bem cultural – áreas envoltórias e
outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In
MORI, Victor Hugo; SOUZA, Marise Campos de; BASTOS, Rossano Lopes; GALLO, Haroldo
(Orgs.). Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo, Iphan, 2006, p. 33-76.
10
SOMEKH, Nadia. Patrimônio cultural em São Paulo: resgate do contemporâneo? Arquitextos,
São Paulo, ano 16, n. 185.08, Vitruvius, out. 2015
<www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.185/5795>. Da mesma autora, ver:
SOMEKH, Nadia (Org.). Preservando o patrimônio histórico: um manual para gestores
municipais. São Paulo, CAU-SP/MackPesquisa/DPH, 2015; SOMEKH, Nadia; CORREA,
Vanessa. Transformação urbana e patrimônio cultural: sensibilização e projeto de futuro
em São Paulo. Diálogos França/Brasil IV, Salvador, 2016; SOMEKH, Nadia. Patrimônio
ambiental urbano, urbanidade e construção de cidade. IV Enanparq, Porto Alegre, 2016.
11
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Lei nº 16.546, 21 set. 2016
<http://documentacao.camara.sp.gov.br/iah/fulltext/leis/L16546.pdf>.
12
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 2015.
13. O presente artigo conta ainda com a seguinte bibliografia de apoio: ARENDT, Hannah. A
condição humana. 11a edição revisada. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010;
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo, Ática, 2001; BAUMAN, Zygmunt. A
cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2013; BAUMAN,
Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005; LEFEBVRE,
Henri. O direito à cidade. São Paulo, Centauro, 2001; MOSTAFAVI, Mohsen; DOHERTY,
Gareth. Porque um urbanismo ecológico? Porque agora? Urbanismo Ecológico. Barcelona,
Harvard University Graduate School of Design/Gustavo Gili, 2014; SANTOS, Milton. Espaço
e método. São Paulo, Nobel, 1988.
sobre a autora
Nadia Somekh é professora emérita da Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi
Presidente do Conpresp e diretora do DPH (2013-2016).