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RESUMO:
Este trabalho pretende analisar as personagens femininas na tragédia Medeia, de
Eurípides, e no filme Anticristo, de Lars von Trier, sob o enfoque de sua sexualidade,
a fim de identificar os nexos que unem a “maldade” tradicionalmente associada a uma
“natureza feminina” e a manifestação não tradicional de suas paixões e sexualidades.
Para tanto, utiliza-se a revisão bibliográfica a fim de lastrear a análise das fontes
primárias, quais sejam, o texto da peça grega e o filme de 2009. Dessa análise foi
possível verificar que, em ambos os casos, os autores explicitam a ideia, construída
historicamente sobre o feminino, de que há algo de menos racional e mais passional
sobre as mulheres, notadamente aquelas que ousam viver suas paixões fora das
fronteiras construídas socialmente para aquilo que é esperado de uma “mulher ideal”.
De outro lado, também se verifica um caráter inovador – em que pese nem sempre
construtivo na busca pela igualdade de gêneros – em Eurípides, ao dar voz à
personagem feminina que, mais humanizada do que em outros tragediógrafos de seu
tempo, assume protagonismo na trama, e em Trier, ao lançar mão de uma estética e
uma lente que permite que vejamos, em sua história, como esta ideia do “feminino
ideal” não é nada além de construção de um contexto social patriarcal que necessita
manter as mulheres inferiorizadas e submissas para que se mantenha a hierarquia
entre os gêneros e, por conseguinte, a hegemonia do masculino nos espaços que
extrapolam o doméstico, ou seja, aqueles em que as discussões e decisões políticas
e de impacto na ordem social acontecem.
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Advogada (UFRGS/2011), mestra em direito penal (UERJ/2015), doutoranda em estudos de língua – ênfase
em linguística/análise do discurso (UERJ).
jribeiroaz@gmail.com
2
INTRODUÇÃO
A tragédia de Eurípides (480 a.C. – 406 a.C.) é uma dentre tantas leituras do
mito grego da feiticeira Medeia e a versão a que, neste trabalho, limitarei a análise,
por razões de espaço e tempo de investigação. Necessário, neste momento,
contextualizar brevemente a obra do tragediógrafo que, contrariamente a seus
contemporâneos Ésquilo (524 a.C. – 455 a.C.) e Sófocles (496 a.C. – 405 a.C.),
mostra-nos uma humanização de suas personagens, que amam e odeiam, traduzindo
a complexidade social de sua época, em contraposição ao centramento das obras dos
demais na intervenção das forças e atos divinos sobre os conflitos dos mortais por
eles retratados. (FERRAZ, 2014)
Nas palavras de DUTRA (s.d., p.4):
Em sua Medéia, encenada pela primeira vez em 431 a.C., Eurípides
representa muito bem a sua tendência a ressaltar a singularidade da alma
2 Verso inicial da canção “Angélica”, de Chico Buarque, na qual o compositor fala da mulher que
lamenta a perda do filho. Embora em contextos muito distintos (a música faz referência às mães que
tiveram seus filhos desaparecidos durante o período da ditadura civil-militar no Brasil), um mesmo
lamento, fundado na construção da responsabilidade por excelência da mãe sobre o cuidado dos
filhos, pode ser identificada em todas estas personagens.
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Abandonada pelo marido, temida por todos e condenada ao exílio pelo rei
Creonte, Medeia inicia a peça lamentando sua condição que a levará, posteriormente,
à cruel vingança que já conhecemos: o filicídio. É da passionalidade, do desejo pelo
homem e da culpa que advém por todos os males em nome dele causados, que deriva
a permanente hybris em que se encontra a personagem.
Passando agora ao filme de Lars Von Trier, temos uma personagem sem nome,
interpretada por Charlotte Gainsbourg, que sofre um luto desmedido após a morte do
filho, que caíra da janela enquanto os pais mantinham uma relação sexual. Obra
realizada no século XXI, o filme está inserido em um contexto no qual as discussões
sobre gênero, as estratégias de dominação e a sociedade patriarcal encontram-se já
muito em debate. Não por outra razão é que grande parte da crítica condenou o
trabalho do cineasta dinamarquês por considerá-lo irremediavelmente misógino
(KRUGER, 2014).
No longa de 2009, o cineasta apresenta-nos um casal formado pela
personagem de Gainsboug, pesquisadora de questões de gênero com uma tese
incompleta sobre o feminicídio, e pelo personagem de Willem Dafoe, um
psicoterapeuta experiente e, aparentemente, muito comedido.
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em que Von Trier nos mostra, em uma cena nada realista, dezenas de corpos de
mulheres junto ao dela.
No epílogo, com sua culpa talvez expiada pelo sacrifício da mulher, o
personagem de Dafoe vaga pela floresta (provavelmente retornando para casa), onde
encontra centenas de mulheres sem rosto que caminham em sua direção.
Em ambas histórias, portanto, é possível observar um nexo quase “natural”
entre a paixão e a sexualidade desmedidas destas mulheres e as atrocidades por elas
praticadas.
3“Seremos repreendidos, talvez, por haver abordado com muito detalhe certos fenômenos sexuais,
que uma hipocrisia convencional pretende manter velados completamente aos olhos do mundo; mas
nesse caso não valeria publicar este livro, pois se suprimimos os fenômenos sexuais, a mulher
criminosa não existe mais, e menos ainda a prostituta.” (tradução livre) LOMBROSO (1986, pp. XII-
XIII)
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do próprio filho, Penteu. Em Lisístrata, de Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.), apesar
de de não se tratar de obra trágica, mais uma vez a sexualidade é retratada como
manifestação dos ardis dos quais se valem as mulheres para galgar os fins a que
almejam.
Vale registrar, nesse sentido, que a existência feminina, no período da
antiguidade grega, estava estritamente restrita ao lar e à família, passando do domínio
do pai, para o de um marido, escolhido pelo pai e por ele comprado através do dote.
É o próprio Eurípides que, pelas palavras de Medeia, denuncia-nos esta condição:
BRAZ (2010), por sua vez, realiza estudo sobre feminilidade e loucura, inserido
no campo da psicologia clínica e analítica, no qual analisa a personagem de
Gainsbourg em Anticristo salientando o fato de que a trama concede a ela uma
posição bastante demérita, legatária da identidade tradicionalmente atribuída à
mulher:
Marcada pela falta, pelo conflito da castração e pela eterna busca pela
realização fálica no outro. Diante da perda real da sua realização feminina
pela maternidade, se depara agora com a iminente possibilidade da perda do
falo-marido. Se apodera do seu pênis, tenta prendê-lo a si. Em sua ânsia pelo
gozo sexual, revive sua sexualidade original, sua condição ativa, bem como
toda sua ambivalência de afetos reprimida nessa relação edípica arcaica com
a figura da mãe. (BRAZ, 2010, p. 76)
psiquiatra” (TOOKEY, 2009) por ter tido a audácia de publicar uma história tão terrível
e misógina.
Não obstante, muitos são também os estudos que veem na obra de Eurípides
um caráter vanguardista, pois seria o primeiro desde Homero a dar centralidade às
personagens femininas, como ressaltaram SAVIETTO (1988) e DUTRA (s.d.).
Segundo estes autores, o tragediógrafo, de maneira inovadora, dá voz às mulheres
em suas peças, trazendo à evidência em um campo do qual não era a elas facultado
participar – o político, da tragédia – os pesares e seu descontentamento com os
espaços e os papéis limitadores a que estavam socialmente atadas: a clausura do lar
e dos afazeres domésticos, a maternidade, o casamento com um homem a quem
deveriam ser submissas e sobre o qual não poderiam, em hipótese alguma, fazer
prevalecer seu juízo, já que que não lhes era possível escolher ou refutar o marido
que recebiam.
Ao lançar mão de um coro de mulheres que é interlocutor e cúmplice, em certa
medida, de Medeia, Eurípides consegue fazer emergirem as angústias por muitas
compartilhadas. É o que se pode inferir, por exemplo, dos trechos a seguir:
Medeia
(…) O homem, quando o enfadam os da casa, saindo, liberta o coração do
desgosto. Para nós, força é que contemplemos uma só pessoa. Dizem: como
nós vivemos em casa uma vida sem risco, e ele a combater com a lança.
Insenstos! Como eu preferiria mil vezes estar na linha de batalha a ser uma
só vez mãe!
(…)
Apenas isto de vós quero obter: se alguma solução ou processo eu encontrar
para fazer pagar ao meu marido a pena deste ultraje, guardai silêncio. Aliás,
cheia de medo é a mulher, e vil perante a força e à vista do ferro. Mas quando
no leito a ofensa sentir, não há aí outro espírito que penda mais para o
sangue.
Coro
Assim farei. Com justiça castigarás o teu marido, ó Medeia. Não me admiro
que deplores a tua sorte.
(…)
Coro
Bem enfeitaste, ó Jasão, tuas palavras; mas a mim se me afigura, se bem
que contra a tua opinião fale, que, traindo tua esposa, não fizeste justiça.
(EURÍPIDES)
4 Tradução livre do original: “It is gendered, but more misanthropic than misogynistic. The man's
violence is the heartlessness of rationality. Patronisingly, he sneers at the woman's research project
on gynocide. He is a rationalist cognitive therapist, who bullies her into exposing her inner demons.”
5 Revista do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP.
6 Grifos do original.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
o responsável, por todos os séculos seguintes até hoje, pelas mais violentas formas
de exclusão e controle a que fomos e somos submetidas.
De outro lado, considero apressada a leitura que condena von Trier pela
suposta misoginia destilada em Anticristo. Com efeito, se utilizamos as chaves de
leitura propostas por KRUGER (2016) e identificamos no filme as referências e
recursos estéticos utilizados pelo diretor, salta aos olhos a crítica que é construída
acerca das prisões a que são condenadas as mulheres, especialmente aquelas que
ousam vivenciar o prazer de sua sexualidade.
Desse modo, considero que a personagem de Gainsbourg e sua história
colocam-nos frente à frente com os conflitos que ainda hoje enfrentam as mulheres
que – já inseridas em uma sociedade menos limitadora – assumem papéis outros,
muito além daqueles atribuídos pelo ideal do feminino. A culpa presente na vida da
mulher que não é só mãe e esposa, mas sujeito de seu próprio prazer, que tem ideias,
estuda, escreve teses e busca entender a história, as condições e contradições de
sua época, é um problema que não cala após assistirmos ao filme.
O fato de a personagem, no decorrer de suas pesquisas, ter aderido aos
discursos que buscava criticar em seu trabalho sobre o feminicídio – passando a
concordar com a ideia de que há, sim, nas mulheres, uma natureza inexoravelmente
má –, bem como todas as manifestações de autoflagelo que aparecem no decorrer da
história (o desejo de que o marido a fira durante o sexo, a mutilação do próprio clitóris)
acabam por servir, antes, como alerta ao fato de que estamos ainda presas à mesma
culpa que enlouqueceu Medeia.
Referências:
ARISTÓFANES. Lisístrata
BOURKE, Joanna. Antichrist: a work of genius or the sickest film in the history of
cinema? The Guardian, London, 16 jul. 2009. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/film/2009/jul/16/antichrist-lars-von-trier-feminism> Acesso em:
03 jul. 2017.
BRAZ, Wilza Assunção. Anticristo: feminilidade e loucura na obra de Lars Von Trier. 85
f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010.
DUTRA, Enio Moraes. O mito de Medéia em Eurípides. Santa Maria, s.d. Disponível em: <
https://periodicos.ufsm.br/letras/article/download/11403/6878.>. Acesso em: 27 jun. 2017.
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EURÍPIDES. As Bacantes
______. Medeia
______. Penetrando o Éden: Anticristo, de Lars von Trier, à luz de Bercht, Strindberg e
outros elementos inquietantes. 288 f. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2016.
TOOKEY, Christopher. Anticrist: The man who made this horrible, misogynistic film
needs to see a shrink. Daily Mail, Londres, 24 jul. 2009. Disponível em: <
http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/reviews/article-1201803/ANTICHRIST-The-man-
horrible-misogynistic-film-needs-shrink.html> Acesso em 02 jul. 2017.