Sie sind auf Seite 1von 13

A SEXUALIDADE PERIGOSA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA PROJEÇÃO DA

MALDADE SOBRE A SEXUALIDADE NAS PERSONAGENS FEMININAS EM


MEDEIA, DE EURÍPIDES, E ANTICRISTO, DE LARS VON TRIER

Juliana Ribeiro Azevedo1

RESUMO:
Este trabalho pretende analisar as personagens femininas na tragédia Medeia, de
Eurípides, e no filme Anticristo, de Lars von Trier, sob o enfoque de sua sexualidade,
a fim de identificar os nexos que unem a “maldade” tradicionalmente associada a uma
“natureza feminina” e a manifestação não tradicional de suas paixões e sexualidades.
Para tanto, utiliza-se a revisão bibliográfica a fim de lastrear a análise das fontes
primárias, quais sejam, o texto da peça grega e o filme de 2009. Dessa análise foi
possível verificar que, em ambos os casos, os autores explicitam a ideia, construída
historicamente sobre o feminino, de que há algo de menos racional e mais passional
sobre as mulheres, notadamente aquelas que ousam viver suas paixões fora das
fronteiras construídas socialmente para aquilo que é esperado de uma “mulher ideal”.
De outro lado, também se verifica um caráter inovador – em que pese nem sempre
construtivo na busca pela igualdade de gêneros – em Eurípides, ao dar voz à
personagem feminina que, mais humanizada do que em outros tragediógrafos de seu
tempo, assume protagonismo na trama, e em Trier, ao lançar mão de uma estética e
uma lente que permite que vejamos, em sua história, como esta ideia do “feminino
ideal” não é nada além de construção de um contexto social patriarcal que necessita
manter as mulheres inferiorizadas e submissas para que se mantenha a hierarquia
entre os gêneros e, por conseguinte, a hegemonia do masculino nos espaços que
extrapolam o doméstico, ou seja, aqueles em que as discussões e decisões políticas
e de impacto na ordem social acontecem.

Palavras chave: Medeia; Anticristo; sexualidade feminina; maldade; feminino ideal.

1
Advogada (UFRGS/2011), mestra em direito penal (UERJ/2015), doutoranda em estudos de língua – ênfase
em linguística/análise do discurso (UERJ).
jribeiroaz@gmail.com
2

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende analisar criticamente a forma como a sexualidade


feminina aparece associada à maldade nas personagens femininas de Eurípides, em
Medeia e de Lars Von Trier, em Anticristo. Sabe-se que o controle da sexualidade
feminina tem sido, historicamente, mecanismo de dominação das mulheres a serviço
de sociedades centradas na figura masculina. Desse modo, é bastante comum que
encontremos, nas artes, tal associação, voltada quase sempre à construção de
modelos ideais do que deve ser compreendido como um comportamento “adequado”
às mulheres “corretas”.
Em que pese não existisse ainda, na Grécia de Eurípides, a ideia de
subjetividade tal qual a conhecemos hoje e, portanto, não seja possível falar em
“loucura” ou “maldade” como características imanentes ao sujeito Medeia, é possível
vislumbrar, tanto na peça encenada no século V a.C. quanto no filme de 2009 (assim
como em uma série de outras obras artísticas realizadas nos muitos séculos que
separam uma de outro), uma projeção comum do perigo sobre a sexualidade das
mulheres representadas nestas obras.
Outro ponto comum a ser considerado nesta análise é o fato de que, em ambos
os casos, a vivência do desejo feminino conduz a uma ruptura com a esperada
sobreposição do papel materno a todos os outros atribuídos à mulher e,
consequentemente, à morte dos filhos: pelas mãos da própria mãe, em Medeia, por
“negligência” dela, em Anticristo.
Do mesmo modo que não se pode falar em “maldade” como característica
imanente ao sujeito no período em que foi escrita Medeia, talvez não pareça
3

recomendável falar especificamente da sexualidade. Não obstante, é inegável a


presença de uma paixão, um desejo romântico que não atende aos parâmetros de
correção da época e que se constrói como fundamento das atrocidades cometidas
pela mulher. Encontramos nessa construção da personagem uma semente da
sexualidade que será depois largamente julgada e condenada no decorrer da história,
até o presente. É, portanto, esta “protossexualidade” de Medeia, enquanto desejo
feminino, que consideraremos na realização do estudo.
O trabalho será construído iniciando-se por uma breve apresentação das
personagens, das obras em que estão inseridas e do contexto histórico em que foram
produzidas. A seguir, exploraremos a construção histórica do nexo entre perigo (aqui
relacionado a uma maldade inerente ao sujeito mulher) e sexualidade feminina, que
nos conduzirá, por fim, à análise das características constitutivas dessas personagens
a partir da fricção com as ideias estudadas de “normalidade” e “desvio” no que
concerne ao comportamento esperado das mulheres.

“QUEM É ESSA MULHER?”2 – AS PERSONAGENS FEMININAS EM MEDEIA


E ANTICRISTO

A tragédia de Eurípides (480 a.C. – 406 a.C.) é uma dentre tantas leituras do
mito grego da feiticeira Medeia e a versão a que, neste trabalho, limitarei a análise,
por razões de espaço e tempo de investigação. Necessário, neste momento,
contextualizar brevemente a obra do tragediógrafo que, contrariamente a seus
contemporâneos Ésquilo (524 a.C. – 455 a.C.) e Sófocles (496 a.C. – 405 a.C.),
mostra-nos uma humanização de suas personagens, que amam e odeiam, traduzindo
a complexidade social de sua época, em contraposição ao centramento das obras dos
demais na intervenção das forças e atos divinos sobre os conflitos dos mortais por
eles retratados. (FERRAZ, 2014)
Nas palavras de DUTRA (s.d., p.4):
Em sua Medéia, encenada pela primeira vez em 431 a.C., Eurípides
representa muito bem a sua tendência a ressaltar a singularidade da alma

2 Verso inicial da canção “Angélica”, de Chico Buarque, na qual o compositor fala da mulher que
lamenta a perda do filho. Embora em contextos muito distintos (a música faz referência às mães que
tiveram seus filhos desaparecidos durante o período da ditadura civil-militar no Brasil), um mesmo
lamento, fundado na construção da responsabilidade por excelência da mãe sobre o cuidado dos
filhos, pode ser identificada em todas estas personagens.
4

feminina. Enquanto personagem trágica, Medéia encarna o estigma da culpa.


Essa culpa, no entanto, não é determinada por uma ancestralidade
"pecadora", que faz com que a moira implacável persiga os descendentes da
gens. Antes, ela é resultado da realidade social de seu tempo e das emoções
que caracterizam o ser humano. O halo de crueldade e feitiçaria que
acompanha o mito de Medéia dá lugar, na obra, a uma reflexão sobre a
condição de mulher, aviltada depois de sacrificar tudo em nome de uma
paixão. A origem de sua problemática não remonta, portanto, ao cosmos, mas
sim à própria sociedade da época.
A peça tem início em momento cronologicamente posterior à concretização dos
fatos que despertarão na heroína trágica seu desejo de vingança: no Prólogo, a Ama
(criada de Medeia) narra a sucessão de fatos que levaram a princesa da Cólquida a
trair sua família e deixar para trás a terra pátria e uma série de crimes, até aportar em
Corinto acompanhando Jasão, a bordo da nau de Argos.
É a paixão pelo homem, conforme conta-nos a Ama, que leva Medeia a lançar
mão de suas feitiçarias, a fim de auxiliar Jasão em seus trabalhos:
Assim não teria Medeia, minha senhora, navegado para as fortalezas da terra
de Iolcos, ferida no seu peito pelo amor de Jasão. Nem depois de convencer
as filhas de Pélias a matar o pai, habitaria esta terra de Corinto com o marido
e os filhos, alegrando com a sua fuga os cidadãos a cujo país chegara, tudo
concorde com Jasão. Porque é essa certamente a maior segurança que a
mulher não discorde do marido. (EURÍPIDES)

Abandonada pelo marido, temida por todos e condenada ao exílio pelo rei
Creonte, Medeia inicia a peça lamentando sua condição que a levará, posteriormente,
à cruel vingança que já conhecemos: o filicídio. É da passionalidade, do desejo pelo
homem e da culpa que advém por todos os males em nome dele causados, que deriva
a permanente hybris em que se encontra a personagem.
Passando agora ao filme de Lars Von Trier, temos uma personagem sem nome,
interpretada por Charlotte Gainsbourg, que sofre um luto desmedido após a morte do
filho, que caíra da janela enquanto os pais mantinham uma relação sexual. Obra
realizada no século XXI, o filme está inserido em um contexto no qual as discussões
sobre gênero, as estratégias de dominação e a sociedade patriarcal encontram-se já
muito em debate. Não por outra razão é que grande parte da crítica condenou o
trabalho do cineasta dinamarquês por considerá-lo irremediavelmente misógino
(KRUGER, 2014).
No longa de 2009, o cineasta apresenta-nos um casal formado pela
personagem de Gainsboug, pesquisadora de questões de gênero com uma tese
incompleta sobre o feminicídio, e pelo personagem de Willem Dafoe, um
psicoterapeuta experiente e, aparentemente, muito comedido.
5

O filme tem estruturação épica, é dividido em prólogo, quatro capítulos e


epílogo, e tem sua linguagem fortemente influenciada pelo expressionismo,
afastando-se do realismo em cenas que remontam ao onírico, com visões e
acontecimentos fantásticos. (KRUGER, 2014)
Após a morte do filho, a personagem de Gainsbourg passa longo período
internada em um hospital, sob um diagnóstico psiquiátrico de luto profundo.
Questionando esse diagnóstico a partir de sua experiência como psicoterapeuta
cognitivista, o marido decide que o melhor para ela é deixar o hospital e assume seu
tratamento.
Permanentemente confrontada com seus medos e com o terror da culpa pela
morte do filho, a sexualidade da personagem é retratada quase como medida de sua
loucura ou mecanismo de sua autopunição (ou autoindulgência) em relação aos fatos.
Muito presente, seu desejo sexual mistura-se ao alívio (quando, em meio às crises de
pânico que passaram a acometê-la após o retorno para casa, busca desesperada pelo
marido) e a uma espécie de anseio pela dor física (quando, já na cabana do bosque,
pede que o marido lhe bata até doer durante o sexo, por amor). Desse modo, inegável
a associação aqui existente entre a sexualidade desta mulher e sua loucura, a
“maldade” que, a seguir, levará a personagem a torturar violentamente o marido,
durante sua estadia em Éden, a cabana do casal em meio à floresta nos Estados
Unidos.
Como medida de tratamento o personagem de Dafoe propõe à mulher que
construam uma pirâmide de seus maiores medos. É a partir daí que ela revela seu
medo de Éden e dos sentimentos que o local desperta. Ela revela seu medo da
natureza e o espectador fica sabendo que sua tese sobre o feminicídio (que ela se
dispusera a terminar de escrever justamente naquele local, no último verão) restou
inconclusa porque a personagem acabou por aderir ao discurso dos inquisidores que
pesquisava, passando a ver na “natureza feminina” algo de inexoravelmente maligno.
O casal viaja para o local, a fim de que ela enfrente tais medos e, uma vez lá
chegando, uma sucessão de acontecimentos extraordinários a leva a torturar o
marido, centrando sua agressão em seu órgão sexual (que ela atinge repetidamente,
enquanto segue tentando satisfazer seu desejo) e, por fim, a amputar, com uma
tesoura, o próprio clitóris. Após uma sequência de confrontos físicos, já no capítulo
quarto, o marido acaba por estrangular a esposa e queimá-la em uma fogueira (assim
como faziam os inquisidores da tese da dela com as feiticeiras proscritas), momento
6

em que Von Trier nos mostra, em uma cena nada realista, dezenas de corpos de
mulheres junto ao dela.
No epílogo, com sua culpa talvez expiada pelo sacrifício da mulher, o
personagem de Dafoe vaga pela floresta (provavelmente retornando para casa), onde
encontra centenas de mulheres sem rosto que caminham em sua direção.
Em ambas histórias, portanto, é possível observar um nexo quase “natural”
entre a paixão e a sexualidade desmedidas destas mulheres e as atrocidades por elas
praticadas.

SEXUALIDADE PERIGOSA: A NATUREZA FEMININA E A CONSTRUÇÃO DA


MALDADE NAS MULHERES
On nous reprochera peut-être d’avoir abordé avec trop de détails
certains phénomènes sexuels qu’une hypocrisie convenionnelle
prétend voiler complètement aux yeux du monde; mais autant valait
ne pas publier ce livre, car si l’on suprime les phénomènes sexuels,
la femme criminelle n’existe plus, et encore moins la prostituée.3

Neste tópico, pretendo apresentar brevemente algumas ideias e estudos que


buscaram demonstrar uma histórica construção da loucura ou da vileza da “natureza
feminina” sobre as manifestações das paixões e da sexualidade das mulheres. Não
adstrita a isso, porém levando em consideração a experiência da pesquisa já realizada
acerca dos processos de criminalização de mulheres, lançarei mão também de teorias
e discursos nesse contexto estudados e que, como veremos, convergem para o
mesmo caminho a que nos levam os elementos constitutivos das personagens ora
analisadas.
Inicialmente, no entanto, cabe demonstrar a antiguidade do argumento de
controle da sexualidade feminina como mecanismo de manutenção da gens, da
propriedade e, acima de tudo, da dominação masculina.
Ainda na obra de Eurípides, em sua peça “As Bacantes”, é também uma
espécie de sexualidade desenfreada, manifestada durante o transe das mênades
seguidoras de Dionísio, que leva Agave a cometer, sem que o perceba, o assassinato

3“Seremos repreendidos, talvez, por haver abordado com muito detalhe certos fenômenos sexuais,
que uma hipocrisia convencional pretende manter velados completamente aos olhos do mundo; mas
nesse caso não valeria publicar este livro, pois se suprimimos os fenômenos sexuais, a mulher
criminosa não existe mais, e menos ainda a prostituta.” (tradução livre) LOMBROSO (1986, pp. XII-
XIII)
7

do próprio filho, Penteu. Em Lisístrata, de Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.), apesar
de de não se tratar de obra trágica, mais uma vez a sexualidade é retratada como
manifestação dos ardis dos quais se valem as mulheres para galgar os fins a que
almejam.
Vale registrar, nesse sentido, que a existência feminina, no período da
antiguidade grega, estava estritamente restrita ao lar e à família, passando do domínio
do pai, para o de um marido, escolhido pelo pai e por ele comprado através do dote.
É o próprio Eurípides que, pelas palavras de Medeia, denuncia-nos esta condição:

De quanto há aí dotado de alma e de razão, somos nós, mulheres, a mais


mísera criatura. Nós, que primeiro temos de comprar, à força de riquea, um
marido e de tomar um déspota do nosso corpo (…) Entrada numa raça e em
leis novas, tem de ser adivinha sem ter aprendido em casa, de como deve
tratar o companheiro de leito. (EURÍPIDES)

SAVIETTO, ao analisar a obra de Eurípides, também aponta o contexto de


misoginia que vigorava na sociedade ateniense, na qual aos meninos e aos rapazes
“eram abertos os caminhos do saber, ficando as mulheres restritas às ocupações do
lar e ao domínio do homem-pai ou homem-marido” (1988, p. 117).
Avançando no tempo até o período inquisitorial, não será diferente a leitura do
desejo sexual das mulheres: aos grupos de bruxas eram atribuídas, para além da
prática de rituais de adoração ao diabo e outros malefícios decorrentes do
conhecimento medicinal feminino, a realização de orgias sexuais. (GINZBURG, 2012)
Do mesmo modo o conhecimento positivista, permanência histórica ainda hoje
presente especialmente nas ciências naturais, vislumbrava nas manifestações da
sexualidade a prova do maior atavismo e da “natural” inclinação para o mal nas
mulheres. Nesse sentido é o que esclarece MENDES, ao comentar os discursos
positivistas sobre a mulher criminosa:
Enquanto em uma mulher “normal” a sexualidade encontra-se subordinada à
maternidade, o que faz com que a mãe “normal” coloque os/as filhos/as em
prioridade absoluta, entre as criminosas dá-se justamente o oposto. Elas, as
criminosas, não hesitam em abandonar seus/as filhos/as, ou a induzir suas
próprias filhas à prostituição. (2012, p. 47)

Vemos, assim, como historicamente as manifestações do desejo e da


sexualidade nas mulheres vem sendo tratadas: sempre desviantes, associadas a
alguma “anormalidade”, à patologia, ou a uma inescapável natureza vil e ardilosa.
8

A CONSTRUÇÃO DA MALDADE NAS PERSONAGENS FEMININAS EM


MEDEIA E ANTICRISTO À LUZ DE SUA SEXUALIDADE

A um primeiro olhar é de fato facilmente inferir um caráter misógino e


essencializador da mulher nas obras de Eurípides e Von Trier. Tanto na peça clássica
quanto no filme do século XXI é possível identificar nas personagens aquilo que
tradicionalmente se convencionou nas sociedades ocidentais como sendo
características inerentes ao gênero feminino: a maior passionalidade em oposição a
uma racionalidade limitada, a fragilidade emocional e uma natural inclinação à
perversidade e à lascívia exacerbada, seguidas da culpa pelas consequências de não
haverem sido capazes de conter sua natureza quase animal.
Com efeito, é esta a visão que encontramos em trabalhos e discursos sobre
ambos os dramas.
RIBEIRO (2008), ao discutir a Medeia de Eurípides, salienta o fato de que se
trata da visão masculina (do autor) sobre o destino trágico da mulher:
Desde tempos remotos, o homem supõe que seu olhar sobre o feminino é o
olhar válido. Tanto que o institucionalizou. O silêncio e impostos às mulheres
resultam no olhar sobre Medéia, responsável por um ciclo aterrorizante de
morte e destruição. [sic] A tragédia de Medéia, antes de traduzir um drama
existencial e problematizar uma situação humana, seria então uma tragédia
imposta à mulher pelo homem. Ele a silenciou e a conduziu: a voz de Medéia
é uma voz colocada em sua boca, e seus gestos são elaborados por outrem.
(RIBEIRO, 2008, p. 3)

BRAZ (2010), por sua vez, realiza estudo sobre feminilidade e loucura, inserido
no campo da psicologia clínica e analítica, no qual analisa a personagem de
Gainsbourg em Anticristo salientando o fato de que a trama concede a ela uma
posição bastante demérita, legatária da identidade tradicionalmente atribuída à
mulher:
Marcada pela falta, pelo conflito da castração e pela eterna busca pela
realização fálica no outro. Diante da perda real da sua realização feminina
pela maternidade, se depara agora com a iminente possibilidade da perda do
falo-marido. Se apodera do seu pênis, tenta prendê-lo a si. Em sua ânsia pelo
gozo sexual, revive sua sexualidade original, sua condição ativa, bem como
toda sua ambivalência de afetos reprimida nessa relação edípica arcaica com
a figura da mãe. (BRAZ, 2010, p. 76)

No mesmo sentido se dirigiu grande parte da crítica a respeito do filme, como


já mencionei acima, que inclusive recomendou que seu diretor deveria “procurar um
9

psiquiatra” (TOOKEY, 2009) por ter tido a audácia de publicar uma história tão terrível
e misógina.
Não obstante, muitos são também os estudos que veem na obra de Eurípides
um caráter vanguardista, pois seria o primeiro desde Homero a dar centralidade às
personagens femininas, como ressaltaram SAVIETTO (1988) e DUTRA (s.d.).
Segundo estes autores, o tragediógrafo, de maneira inovadora, dá voz às mulheres
em suas peças, trazendo à evidência em um campo do qual não era a elas facultado
participar – o político, da tragédia – os pesares e seu descontentamento com os
espaços e os papéis limitadores a que estavam socialmente atadas: a clausura do lar
e dos afazeres domésticos, a maternidade, o casamento com um homem a quem
deveriam ser submissas e sobre o qual não poderiam, em hipótese alguma, fazer
prevalecer seu juízo, já que que não lhes era possível escolher ou refutar o marido
que recebiam.
Ao lançar mão de um coro de mulheres que é interlocutor e cúmplice, em certa
medida, de Medeia, Eurípides consegue fazer emergirem as angústias por muitas
compartilhadas. É o que se pode inferir, por exemplo, dos trechos a seguir:
Medeia
(…) O homem, quando o enfadam os da casa, saindo, liberta o coração do
desgosto. Para nós, força é que contemplemos uma só pessoa. Dizem: como
nós vivemos em casa uma vida sem risco, e ele a combater com a lança.
Insenstos! Como eu preferiria mil vezes estar na linha de batalha a ser uma
só vez mãe!
(…)
Apenas isto de vós quero obter: se alguma solução ou processo eu encontrar
para fazer pagar ao meu marido a pena deste ultraje, guardai silêncio. Aliás,
cheia de medo é a mulher, e vil perante a força e à vista do ferro. Mas quando
no leito a ofensa sentir, não há aí outro espírito que penda mais para o
sangue.
Coro
Assim farei. Com justiça castigarás o teu marido, ó Medeia. Não me admiro
que deplores a tua sorte.

(…)

Coro
Bem enfeitaste, ó Jasão, tuas palavras; mas a mim se me afigura, se bem
que contra a tua opinião fale, que, traindo tua esposa, não fizeste justiça.
(EURÍPIDES)

Ora, se considerarmos o contexto em que foi escrita a peça é, com efeito,


bastante significativo que o autor não apenas dê voz às mulheres, mas ainda, dê-lhes
a coragem de apoiar umas às outras em seus dramas e apontar, no homem, aquilo
que de injusto pratica a despeito de sua hegemonia política e social.
10

Menos frequentes são as análises de Anticristo que enxergam no filme o


mesmo caráter de inovação e defesa política das mulheres. No entanto, é possível
encontrar – inclusive na crítica –, quem tenha conseguido ver para além da óbvia
estigmatização e da violência misógina. É, por exemplo, a leitura feita por Joanna
BOURKE em sua crítica para o jornal The Guardian:
Ele [o filme] tem gênero, mas mais misantrópico do misógino. A violência do
homem é a falta de coração da racionalidade. De forma condescendente, ele
zomba do projeto de pesquisa da mulher sobre o feminicídio. Ele é um
terapeuta cognitivo racionalista, que a intimida a expor seus demônios mais
íntimos.4 (BOURKE, 2009)

No Brasil, é Patrícia de Almeida KRUGER quem, com mais profundidade,


debruça-se sobre a obra, em sua tese intitulada “Penetrando o Éden: Anticristo, de
Lars von Trier, à luz de Brecht, Strindberg e outros elementos inquietantes” (2016).
Neste trabalho, ela analisa minuciosamente os elementos do longa, dando a eles uma
interpretação para além do que vai implícito e lançando mão de referências vindas do
expressionismo e da psicanálise, por exemplo.
Em artigo publicado na revista Criação & Crítica5, a pesquisadora discute
especificamente o tema da projeção da loucura sobre a personagem feminina e
conclui que o filme constrói uma armadilha, ao não deixar explícita a visão sobre a
qual os acontecimentos se desenrolam: a de seu narrador, o Homem, personagem de
Dafoe, cujos valores e manifestações do inconsciente são constantemente projetados
nas imagens irreais que vemos sucederem-se ao longo de toda a história.
Para a autora, é justamente este recurso que permite
(…) um escancaramento da naturalização de um estado de exceção. Sem
percebermos que o estado atual de coisas é uma construção – a violência
simbólica e física a que as mulheres são expostas; a conjunção do
cristianismo e do racionalismo para a manutenção do patriarcalismo; as
ideologias que determinam de forma estanque como são as subjetividades
masculina e feminina – não percebemos também a chave na qual o filme deve
ser interpretado, ou seja, que seu material é apresentado por meio de um
discurso sexista representado na figura de um narrador 6. Por conseguinte, o
que se estrutura como algo a ser questionado e problematizado, ao se ignorar
a armadilha estética, fica facilmente encarado como pura e imutável ideologia
– a relação íntima da mulher com a natureza, por exemplo, que determinaria
seu caráter inconstante, incompreensível e irracional. (KRUGER, 2014, p. 67)

4 Tradução livre do original: “It is gendered, but more misanthropic than misogynistic. The man's
violence is the heartlessness of rationality. Patronisingly, he sneers at the woman's research project
on gynocide. He is a rationalist cognitive therapist, who bullies her into exposing her inner demons.”
5 Revista do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da USP.
6 Grifos do original.
11

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, muitos são os estudiosos que se debruçaram sobre as questões


femininas nas obras Medeia e Anticristo. Em comum, as duas protagonistas têm uma
existência marcada pelo desejo sexual (nada explícito na primeira, exaustivamente
gráfico na segunda), pela rejeição masculina, pela irracionalidade e pela culpa que
carregam pela morte dos filhos.
Nos mais de dois milênios que separam a realização da peça e do filme, porém,
muito foi possível construir no que se refere às relações sociais e políticas entre
homens e mulheres, seja no sentido de cristalizar desigualdades construídas desde
tempos muito antigos, seja – só mais recentemente – no sentido de questioná-las.
Fundada nas problematizações atuais acerca do tema é que me propus a analisar os
nexos estabelecidos por Eurípides e Lars von Trier entre a sexualidade de suas
personagens e o perigo, maldade que representam.
Levando-se em conta o contexto histórico e social em que escreveu Eurípides
– no qual às mulheres não era autorizada a participação na vida pública e a educação
e, portanto, a criação de obras artísticas –, parece-me forçoso reconhecer, como já
apontaram outros pesquisadores, que o tragediógrafo foi inovador ao dar
protagonismo às personagens femininas. Mais do que isso: Eurípides o fez retratando
a humanidade existente em Medeia, aquilo que, para ele, sobressaía quando
observamos nossos conflitos sem recorrer à intervenção de poderes divinos.
Por óbvio que, ainda que reconheçamos o fato de que o autor confere um novo
status à mulher ao devolver a suas angústias uma voz há muito silenciada, retratando
a configuração da sociedade de sua época, à luz das ideias hoje vigentes é necessário
registrar que se trata de uma visão eminentemente masculina sobre o que seria este
“sujeito mulher”, construída em um contexto no qual também aos homens pouco era
dado a conhecer da realidade dessa personagem, sempre enclausurada no lar.
Se Medeia dá voz às mulheres gregas do século V a.C., é certo também que
contribui para a consolidação de um imaginário irreal acerca do feminino visto
enquanto gênero cercado de mistérios, mais inclinado à irracionalidade e às paixões
e, portanto, constitutivo de um perigo permanente e inevitável à civilização, o qual foi
12

o responsável, por todos os séculos seguintes até hoje, pelas mais violentas formas
de exclusão e controle a que fomos e somos submetidas.
De outro lado, considero apressada a leitura que condena von Trier pela
suposta misoginia destilada em Anticristo. Com efeito, se utilizamos as chaves de
leitura propostas por KRUGER (2016) e identificamos no filme as referências e
recursos estéticos utilizados pelo diretor, salta aos olhos a crítica que é construída
acerca das prisões a que são condenadas as mulheres, especialmente aquelas que
ousam vivenciar o prazer de sua sexualidade.
Desse modo, considero que a personagem de Gainsbourg e sua história
colocam-nos frente à frente com os conflitos que ainda hoje enfrentam as mulheres
que – já inseridas em uma sociedade menos limitadora – assumem papéis outros,
muito além daqueles atribuídos pelo ideal do feminino. A culpa presente na vida da
mulher que não é só mãe e esposa, mas sujeito de seu próprio prazer, que tem ideias,
estuda, escreve teses e busca entender a história, as condições e contradições de
sua época, é um problema que não cala após assistirmos ao filme.
O fato de a personagem, no decorrer de suas pesquisas, ter aderido aos
discursos que buscava criticar em seu trabalho sobre o feminicídio – passando a
concordar com a ideia de que há, sim, nas mulheres, uma natureza inexoravelmente
má –, bem como todas as manifestações de autoflagelo que aparecem no decorrer da
história (o desejo de que o marido a fira durante o sexo, a mutilação do próprio clitóris)
acabam por servir, antes, como alerta ao fato de que estamos ainda presas à mesma
culpa que enlouqueceu Medeia.

Referências:

ARISTÓFANES. Lisístrata

BOURKE, Joanna. Antichrist: a work of genius or the sickest film in the history of
cinema? The Guardian, London, 16 jul. 2009. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/film/2009/jul/16/antichrist-lars-von-trier-feminism> Acesso em:
03 jul. 2017.

BRAZ, Wilza Assunção. Anticristo: feminilidade e loucura na obra de Lars Von Trier. 85
f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010.

DUTRA, Enio Moraes. O mito de Medéia em Eurípides. Santa Maria, s.d. Disponível em: <
https://periodicos.ufsm.br/letras/article/download/11403/6878.>. Acesso em: 27 jun. 2017.
13

EURÍPIDES. As Bacantes

______. Medeia

FERRAZ, Ana Flavia. De Eurípides a Pasolini: apontamentos sobre o mito de Medeia.


Águas Claras, XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste. 8 a 10
maio 2014. Disponível em:
<http://www.portalintercom.org.br/anais/centrooeste2014/resumos/R41-0024-1.pdf>. Acesso
em 27 jun. 2017.

GINZBURG, Carlo. História Noturna – Decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia de


Bolso, 2012.

KRUGER, Patrícia de A. A projeção da loucura na figura feminina em Anticristo, de Lars


von Trier. Revista Criação e Crítica, São Paulo, n. 13, pp. 55-68, 2014. Disponível em: <
http://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/83847> Acesso em; 25 jun. 2017.

______. Penetrando o Éden: Anticristo, de Lars von Trier, à luz de Bercht, Strindberg e
outros elementos inquietantes. 288 f. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2016.

LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. La femme criminelle et la prostituée. Paris:


Félix Alcand Ed., 1896.

MENDES, Soraia da Rosa. (Re)pensando a criminologia: reflexões sobre um novo


paradigma desde a epistemologia feminista. 284 f. Tese (Doutorado) - Universidade de
Brasília, Brasília, 2012.

RIBEIRO, Luiz G. Marques. Desmistificando medéias: um olhar crítico sobre a


representação feminina em obras dramatúrgicas. Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e
Poder. Florianópolis, 25 a 28 ago. 2008. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST4/Luiz_Gustavo_Marques_Ribeiro_04.pdf>.
Acesso 27 jun. 2017.

SAVIETTO, Maria do Carmo. Medéia e Fedra: uma perspectiva racionalista da condição


da mulher e suas emoções. Revista de Letras, São Paulo, v. 28, pp. 117-127, 1988.
Disponível em: <
http://www.jstor.org/stable/27666513?seq=11&loggedin=true#page_scan_tab_contents>
Acesso em 28 jun. 2017.

TOOKEY, Christopher. Anticrist: The man who made this horrible, misogynistic film
needs to see a shrink. Daily Mail, Londres, 24 jul. 2009. Disponível em: <
http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/reviews/article-1201803/ANTICHRIST-The-man-
horrible-misogynistic-film-needs-shrink.html> Acesso em 02 jul. 2017.

TRIER, Lars v, et al. Antichrist. 2009. (108 min)

Das könnte Ihnen auch gefallen