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Introdução
Para falar das Organizações Sociais e gestão dos equipamentos públicos de saúde,
como é a proposta do Ministério da Administração e Reforma do Estado, é
necessário recorrermos aos seus antecedentes para visualizar o cenário e as forças
políticas implicadas na questão. Neste texto, discutimos primeiro as origens
contemporâneas do projeto neoliberal que datam da década de 40, no período
imediato do pós guerra. Após disputar a hegemonia do modelo econômico, na
retomada do desenvolvimento nos países centrais, e ser derrotado neste propósito,
pelo fato dos dirigentes da época haverem optado pelo modelo keynesiano, a
proposta neoliberal entra numa fase de "latência" e ressurge com força na década
de 80. Neste período, ganha fôlego suficiente para hegemonizar as políticas
públicas nos países desenvolvidos e em efeito dominó, na periferia do capitalismo.
1
http://www.datasus.gov.br/cns/temas/as_organiza%C3%A7%C3%B5es_sociais_e_o_sus.htm (junho de
1998).
Organizações Sociais - OS - joga em dois sentidos. De um lado, tenta dar aparência
de uma proposta com uma faceta "popular", quando admite que qualquer
Organização não Governamental - ONG - ou Associação de Usuários, pode se
habilitar a assumir um estabelecimento de saúde, desde que seus estatutos
estejam adequados aos critérios impostos pela Medida Provisória que cria as OS,
inclusive constem que estas entidades "não têm fins lucrativos", mas por outro
lado, a proposta é clara ao definir que estas entidades são de "direito privado". A
natureza privada das OS define seu caráter e abre a possibilidade de maior
participação portanto, do setor privado na gestão da saúde.
Este texto apresenta subsídios a esta discussão, que deverá continuar ao longo do
tempo, para conclusões definitivas a partir da experiência em curso de
implementação da proposta do Ministério da Administração e Reforma do Estado -
MARE - e a inserção das Organizações Sociais na gestão da saúde.
Quando o inglês Friedrich von Hayek publicou seu livro "O Caminho da Servidão"
em 1944, considerado o manifesto fundador do neoliberalismo, pensava ele em
disputar a hegemonia do modelo econômico a ser implantado nos países centrais,
no pós guerra. E o que propunham os neoliberais em relação à gestão do estado,
no quadro em que se encontrava o mundo naquele período? "O ‘saneamento’ ,
encarnado em medidas como: redução da despesa pública; redefinição (e
limitação) das funções do Estado; redução do número de funcionários públicos e
para-públicos; revisão dos sistemas previdenciários, bem como de toda a legislação
social; desregulamentação e privatizações, submetendo serviços públicos à
concorrência; ajuste fiscal" .
"O Caminho da Servidão" tinha como alvo a doutrina keynesiana para direção do
estado e gestão econômica. Esta propunha a planificação e intervenção estatal na
economia, no sentido de se estabelecer o mínimo de regulação que impedisse o
"caos econômico" gerado pela concorrência desenfreada entre os donos do capital e
por outro lado, protegesse parte da população dos efeitos colaterais da economia
capitalista, garantindo aos pobres, os serviços públicos minimamente essenciais. A
organização deste modelo que regulasse ainda, o nível de atividade econômica
(inclusive o emprego) deveria utilizar de instrumentos monetários e o ordenamento
da despesa pública para alcançar seus objetivos.
As propostas de um "Estado de Bem Estar" vinham sendo gestadas desde o início
deste século em função das crises cíclicas da economia capitalista, e ganha maior
fôlego após a grande crise do capital em 1929.
Como um germe que se mantém latente e depois ressurge com toda sua força
destrutiva, o projeto neoliberal avança sobre o planeta, como uma onda que toma
conta da vida econômica, política, cultural, influencia o modo de vida e as relações.
Vira modismo, questiona valores, muda comportamentos. No que diz respeito ao
estado e à economia, segue trabalhando basicamente o binômio: privatizar e
desregulamentar. As duas diretrizes, que se transformam rapidamente em políticas
de governo, são faces da mesma moeda. Desregulamentar, para dar "liberdade" ao
capital de atuar livremente e deixar que a "mão invisível do mercado" atue como a
fonte reguladora por excelência da economia. Assim, fica a população à mercê das
leis e dinâmicas mercantis que lhes são impostas. Privatizar, para restringir a ação
do estado, àquilo que lhe é próprio, sua atribuição exclusiva, o cuidado com os
negócios jurídicos, da segurança e administração das coisas próprias do governo.
Desta forma, a ação do mercado fica libre não apenas ao setor da produção de
bens e o comércio, mas também ao segmento que diz respeito aos serviços,
inclusive os que são hoje oferecidos pelo governo.
As Organizações Sociais
Outra questão importante, diz respeito ao fato de que não foram definidos critérios
para a escolha das entidades que receberão recursos orçamentários do governo,
podendo aí prevalecer o clientelismo ou apadrinhamento.
Os Contratos de Gestão surgiram a primeira vez na França, no final dos anos 60,
como instrumento que define a relação entre entidades públicas, estabelecendo
petições e compromissos entre as mesmas. Foi adotado por diversos países da
Europa e no Brasil foi introduzido em 1992, quando o Governo Federal assinou
Contrato de Gestão com a Companhia Vale do Rio Doce. Só agora estão sendo
propostos para regular a relação entre o poder público e entidades privadas.
As Organizações Sociais na Saúde
No que diz respeito à gestão dos serviços, o Relatório "recomenda que os países de
renda média (como o Brasil) devem concentrar-se em pelo menos quatro áreas
básicas de reforma de políticas: eliminar gradualmente os subsídios públicos aos
grupos mais abastados; ampliar a cobertura do seguro de saúde; dar opção de
seguro aos consumidores; e estimular métodos de pagamentos que permitam
controlar os custos". Na assistência, propõe ações básicas tais como "programa
ampliado de imunizações, incluindo suplementação de micronutrientes; programas
sanitários escolares para tratar as verminoses e a deficiência de micronutrientes, e
também para transmitir noções de higiene; programas para esclarecer o público
sobre planejamento familiar e nutrição, sobre a conveniência da automedicação ou
buscar tratamento, e sobre o controle de vetores e doenças; programas para
reduzir o consumo de tabaco, álcool e drogas; e programas para prevenção da
AIDS, com ênfase nas DST". Acrescenta a estas ações, "intervenções clínicas" de
cinco tipos, divididas nos seguintes grupos: "1. Serviços de assistência à gestante
(atendimento pré-natal, no parto e pós-parto); 2. Serviços de planejamento
familiar; 3. Controle de tuberculose; 4. Controle das DST; e 5. Atendimento das
doenças graves comuns em crianças pequenas" .
No que diz respeito à esfera pública e privada, o Banco Mundial vai direto à idéia da
"terceirização" e da "concorrência administrada", argumentando da seguinte forma:
"Em muitos países em desenvolvimento os sistemas sanitários administrados pelo
governo são grandes demais e deveriam ser reduzidos. Para tanto, são necessários
alterações jurídicas e administrativas que facilitem a prestação de serviços pela
iniciativa privada (ONG ou entidades com fins lucrativos), e é necessário também
que as ONG recebam subsídios públicos para prestarem os serviços do pacote
essencial e que haja corte de novos investimentos em hospitais públicos terciários".
"A concorrência entre fornecedores de um pacote de serviços de saúde, claramente
especificados e previamente pagos, contribui para melhorar a qualidade e aumentar
a eficiência". "Quando o seguro social cobre serviços prestados por hospitais do
governo, a concorrência com o setor privado pode contribuir para melhorar o
desempenho" .
Após longa discussão, finalmente entre maio e junho de 1998 o governo federal
aprova a Lei que regulamenta os planos de saúde. Embora tenha havido
contestação por parte de algumas empresas, sobre as regras estabelecidas, a nova
Lei deixa aberto o leque de possibilidades de atuação dos seguros e planos de
saúde privados a cinco modalidades diferentes, direcionadas a públicos (diga-se
mercados) específicos o que arma uma boa base para operação da medicina
supletiva, que hoje já atende a 40 milhões de usuários no país.
Este quadro é demonstrativo de uma primeira mostra do apetite que se tem para
terceirizar e agora usando a modalidade de OS, equipamentos de saúde pública. O
impacto assistencial só será sentido no decorrer do próximo período. No entanto, as
experiências com equipamentos públicos, administrados por entidades privadas no
setor saúde, têm resultado em redução dos índices de acesso, equidade e
resolutividade. Desta forma, contribui para redução do coeficiente de cidadania
conquistado com o SUS.
Aurélio Buarque de Holanda nos conta, em seu precioso verbete, que Sistema é o
"conjunto de instituições políticas e/ou sociais, e dos métodos por elas adotados,
encarados quer do ponto de vista teórico, quer do de sua aplicação prática". Um
dos avanços importantes de se constituir um Sistema de Saúde Público no Brasil, a
partir da Constituição de 1988, é justamente o fato de articular em torno da
"Saúde", todas as organizações e estabelecimentos públicos, com o cuidado de
inserir neste sistema, os estabelecimentos privados conveniados ou contratados
pelo poder público. Temos assim, uma estrutura com funcionamento definido a
partir da legislação infra constitucional e uma mesma normatização. Constituiu-se
assim, um conjunto articulado nacionalmente, sob a batuta de um "comando único"
em cada esfera de governo, o Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e
Secretarias ou Departamentos Municipais de Saúde, que tem seus mecanismos de
democracia - principalmente os conselhos de saúde - permeando esta estrutura.
A única entidade capaz de garantir que este Sistema permaneça funcionando desta
forma e garanta os princípios constitucionais que regulam o SUS, é o estado, como
pensado na Lei Orgânica do SUS, gerido democraticamente e com o controle da
sociedade através de organismos de participação direta, como são os Conselhos de
Saúde. Assim, quando foi homologada a Constituição de 1988, fez-se este
compromisso, outorgando direitos de cidadania à população brasileira. Em grande
parte, isto foi garantido face à conjuntura política de ascenso dos movimentos
populares urbanos que alimentavam o poderoso "movimento pela reforma
sanitária", com um congresso portanto, permeável às pressões populares e um
contexto que tinha como pano de fundo o estado de "Bem-estar Social", ou seja, os
ares neoliberalizantes que já encharcavam a Europa, não haviam chegado até as
terras brasileiras.
Como já foi dito antes, a pressão dos países desenvolvidos e suas agências de
financiamento, a crise fiscal e de investimentos do Brasil, associado a uma
conjuntura interna adversa aos interesses populares, com a eleição de presidentes
(Collor e FHC) identificados com o projeto neoliberal, alteraram sobremaneira a
situação interna, criando uma forte pressão sobre propostas como a do SUS, que
têm no poder público, sua fonte de financiamento e garantias de funcionamento.
Que conseqüências poderiam advir, com a entrada do setor privado na gestão dos
hospitais públicos (como está na proposta do MARE) através das OS?
Como os hospitais, gerenciados por uma entidade de direito privado, a OS, passaria
a trabalhar sob a lógica do mercado, há grande possibilidade da cadeia de serviços
que garante ao SUS a condição de SISTEMA, interromper sua linha de transmissão,
ou seja, deixar de operar de forma integrada, como o faz hoje. Interrompe
também, o ideal de solidariedade que perpassa o Sistema Único de Saúde.
Hoje, o SUS é praticamente refém do setor privado que detém mais de 75% dos
leitos hospitalares. Esta correlação foi construída históricamente, inclusive com
financiamento do governo à construção do setor hospitalar privado. Estes hospitais
na maioria da vezes agem contra o SUS e os usuários do sistema de saúde, na
medida que, tendo como objetivo central da sua atividade, o lucro sobre a doença,
fazem atendimento seletivo, internando somente os casos onde o tratamento é
lucrativo. Não garantem sua inserção no sistema de referência e contra-referência
de uma determinada rede assistencial de saúde por se negarem a uma relação
efetiva com a rede básica do SUS. Produzem procedimentos muitas vezes
desnecessários, conduzidos apenas pela lógica da produção/faturamento. Esta
situação deverá se agravar mais ainda, na medida em que ocorrer o repasse para
as OS de estabelecimentos hoje sob gestão do poder público.
O quadro estatutário atual da saúde, será gradativamente extinto para dar lugar a
um quadro contratado via CLT. Haverá portanto, uma gradativa substituição do
quadro funcional nestes estabelecimentos, com a consequência imediata da falta de
estabilidade, abrindo margem para o clientelismo na contratação de pessoal para
estes estabelecimentos sob gestão das OS.
O objetivo de se construir um quadro de servidores da saúde, com isonomia, plano
de cargos e carreiras, ou mesmo de elaborar uma NOB para o RH, como tem sido
discutido em fóruns de Recursos Humanos da saúde, fica muito mais longínquo se a
proposta das OS ganhar contornos nacionais e expansão junto ao SUS.
A OS, vai dividir os serviços que presta, com dois tipos diferentes de clientela: 1. O
usuário dependente do sistema público. 2. O usuário que paga pela assistência
através dos seguros e planos de saúde privados. Operando sob o ideário neoliberal,
sendo uma entidade de direito privado, as leis mercantis definirão em muito a
relação do hospital sob gestão da OS e os usuários. O mercado é assaz impessoal e
cruel para priorizar o lucro através da sua atividade e não a resolução do problema
de saúde que aparece, caótico muitas vezes, na unidade assistencial. Estes
estabelecimentos naturalmente, darão prioridade ao atendimento à população
pagante, reduzindo a oferta de serviços no sistema Universal, contribuindo para um
menor grau de cidadania em relação aos direitos à assistência à saúde.
Há duas razões para se duvidar de que haverá controle social dos estabelecimentos
geridos pelas OS. A primeira delas diz respeito ao fato de que, na Medida Provisória
aprovada, que cria as OS, não há nenhuma menção ao controle externo das
mesmas. Por serem estabelecimentos regulados através de um contrato de gestão
com o poder público, o seu funcionamento será fiscalizado pelo governo que fará o
controle da entidade. Pela MP, o Ministério Público só agirá contra os dirigentes das
OS a chamado do governo, limitando assim, a ação controladora da sociedade.
Outra razão, diz respeito ao fato de que os órgãos de controle social do SUS, os
Conselhos de Saúde, embora detenham poder para controlar e fiscalizar Sistema
Único de Saúde, e assim poderão exercer pressão sobre os estabelecimentos
administrados pelas OS, têm limites óbvios quando se trata de uma entidade de
direito privado, e pouco poderão fazer no que diz respeito às ações resultantes da
natureza privada destas entidades.
Bibliografia: