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MILTON SCHWANTES

"A TERRA NÃO PODE


SUPORTAR SUAS
PALAVRAS" (Am 7,10)
Reflexão e estudo sobre Amós
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Schwantes, Milton
"A Terra não pode suportar suas palavras" (Am 7,10): reflexão e
estudo sobre Amós / Milton Schwantes. - São Paulo: Paulinas, 2004.
- (Coleção Bíblia e história)

Bibliografia.
ISBN 85-356-1434-6

1. Bíblia. A.T. Amós - Crítica e interpretação I. Título. 11. Título:


Reflexão e estudo sobre Amós. Ill. Série.

04-7171 CDD-224.806

Índice para catálogo sistemático:


I. Amós : Livros proféticos: Bíblia: Interpretação e critica 224.806

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A paz só visita o povo
que antes justiça hospedou.
Daquela só sabe a bênção
quem esta primeiro abraçou.
A ira abrasa a cidade
que à miséria seu povo forçou.
Silvio Meincke
Para Naor e Marina
em família e na fé,
em gratidão pela amizade.
Apresentação

Com muita alegria apresentamos "A terra não pode


suportar suas palavras" (Am 7,10) - Reflexão e estudo so-
bre Amós. Fiz várias alterações no texto da edição de 1987,
publicada pela editora Sinodal, e sei que outras mais seriam
recomendáveis. Todavia, neste caso, eu teria de reescrever o
livro. Por isso, as mudanças não foram substanciais ao lon-
go dos caps. 1-6. No capítulo 7, introduzi um novo artigo,
que se refere a Amós 7-9.
Originalmente, a maioria dos ensaios contidos nesta
publicação foi formulada com vistas ao 7Q Congresso
Luterano Latino-Americano, realizado em Caracas (Vene-
zuela), em abril de 1986. Seu tema era "Renascer e crescer
na esperança e na paz". Agradeço pela atenção dos congres-
sistas. Aprendi com suas perguntas e críticas.
Para dentro desses ensaios apresentados no Congresso,
fluíram nossas experiências latino-americanas, marcadas por
opressão secular e pelo contínuo e teimoso renascimento liber-
tador. Neste nosso contexto, Amós foi muitas vezes lido e reli-
do. Busquei manter-me em sintonia com essa leitura situada e
latino-americana de nosso profeta. Os seis primeiros ensaios
querem ser uma contribuição nessa caminhada com Amós.
No sétimo capítulo estão acrescentados dois trabalhos
escritos em outro contexto. Em algumas partes repetem
temáticas abordadas nos outros seis capítulos.
9
Cada um dos seis primeiros ensaios tem seu tema es-
pecial, afinal, foram preparados tendo em vista estudos e
reflexões no decorrer do congresso. Embora cada reflexão
seja completa em si mesma, juntas constituem um todo, ex-
pressando uma interpretação de todo o livro de Amós.

São Paulo, janeiro de 2004


Milton Schwantes

10
1. "Nos dias de Jeroboão"

Vede quantos oprimidos no centro de Samaria. I

Assim diz Amós: "Jeroboão morrerá à espada".'

A teologia cristã rechaça a ilusão.


Nem merece ser designada de teologia cristã
quando não persegue essa intenção.
Pois o lugar do Evangelho é a realidade humana. 3

Todo dia é dia...


Deixa o tatu-bola no lugar.
Deixa a capivara atravessar.
Deixa a anta cruzar o ribeirão.
Deixa o índio vivo no sertão.
Deixa o índio vivo nu.
Deixa o índio vivo.
Deixa o índio.
Deixa."

I Am3,9.

2 Am 7,11.

3 KASEMANN, Emst. Vom theo1ogischen Recht historisch-kritischer Exegese. Zeitschrift


fiir Theologie und Kirsche, v. 64, Tübingen, Mohr Siebeck, 1967, p. 259.

4 JOBIM, Antônio Carlos. Borzeguim. Rio de Janeiro, 1986/1987.

11
As "palavras de Amós" (Am I, I) são contextuais.
Dialogam com o ambiente do qual são parte. Assimilam as
circunstâncias. O conceito hebraico de "palavra" (dabar)
inclui também a realidade. Não há "palavra"-dabar sem
contexto! Meditemo-lo.

Por que começamos pelo contexto?


Começamos, pois, pelo contexto. Ao assim proceder-
mos, nesta série de reflexões e estudos, enveredamos por
um dos caminhos possíveis. Por certo, também poderíamos
trilhar outros. Se privilegio a situação como porta de entra-
da, faço-o por certos motivos. Convém explicitá-los.
Habituamo-nos a antepor a experiência da realidade
às definições teológicas. Assim o fomos aprendendo pelos
caminhos da vida. Amigos e amigas de jornada nos falam
das "línguas de um fogo revolucionário que arde nas pro-
fundidades".' Entendem "teologia como reflexão crítica so-
bre a práxis"." Formulam a eclesiologia segundo as "práti-
cas pastorais", segundo a militância;7 vivenciam Igreja como
eclesiogênese, como "reinvenção"." Incorporam decidida-
mente à hermenêutica a "realidade de cada dia" e "as disci-
plinas que explicam o presente"," Teologia é entendida como

5 SHAULL, Richard. A revolução. In: Alves, R. et alii. De dentro do furacão; Richard


Shau\l e os primórdios da Teologia da Libertação. Rio de Janeiro, Cedi, 1985. p. 54.

6 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologiada Libertação; perspectivas. Petrópolis, Vozes, 1975. p. 18.


7 BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder; ensaios de eclesiologia militante. 3. ed.,
Petrópolis, Vozes, 1982 (veja, por exemplo, pp. \3-14).

8 Idem. Eclesiogênese - As Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja. Ca-


dernos de teologia e pastoral, v. 6, Petrópolis, Vozes, 1977.
9 SEGUNDO, Juan Luis. Libertação da teologia. São Paulo, Loyola, 1978. pp. 9-10 (veja,
em especial, pp. 9-43).

12
ato segundo! A novidade desse jeito de experimentar a fé
está em seu método, o qual prioriza as mediações históricas.
A experiência que nos leva a Amós é vida vivida, dia a
dia. É "pé-no-chão"." Afinal, um profeta como Amós ou
Oséias ou Miquéias e outros não conhecem as entranhas do
poder, a desfaçatez nos corredores palacianos. Vivem cená-
rios cotidianos. Por isso, trazem à luz do dia horrores das
esquinas da vida, as violências que ocorrem em quartos es-
condidos, como aquela a que fica submetida a "menina" vio-
lentada pelo "homem e seu pai" (2,7b). Profetas como Amós
não são alto-falantes de escândalos públicos, mas antes "pa-
lavra" de dores do dia-a-dia.
Contudo, uma leitura de Amós com base na vida é não
só nosso jeito, mas também o que se costuma praticar na
exegética bíblica. La hora de Amós é o título de um dos
livros muito difundidos sobre nosso profeta. lI Dois dos co-
mentários de maior solidez exegética - o de Hans Walter
Wolff e o de Wilhelm Rudolph - introduzem suas volumo-
sas obras descrevendo o contexto de Amós." Outros comen-
tários igualmente se dedicam ao tempo do profeta. 13
Por mais que me alegre com essa feliz convergência,
penso que dela não advém razão suficiente para fazer da vida

10 Veja BOFF, Clodovis. Teologia de pé-na-chão. 4. ed., Petrópolis, Vozes, 1984. 227 p.

11 WOLFF, Hans Walter. La hora de Amós. Salamanca, Sígueme, 1984.200 p. (Nueva


Alianza, 92).

12 Idem. Dodekapropheton 2; Joel undAmos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 105-


106 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2); RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-
Obadja-Jona. Gütersloh, Gütersloher Verlag, 1971. pp. 95-96 (Kommentar zum Alten
Testament, 13/2).

13 Veja ANDERSEN, Francis I. & FREEDMAN, David Noel. Amos; A New Translation with
Introduction and Commentary. New York, Doubleday, 1989. pp. 18-23 (The Anchor
Bible, 24A).

13
ponto de partida para meditar Amós. Decisivo é que o próprio
livro de Amós exija, para si, uma abordagem contextual. É o
que nos impõe seu título (Am 1,1), sua porta de entrada:

Palavras de Amós
que viveu entre os criadores de ovelha de Técua,
que viu contra Israel
nos dias de Ozias, rei de Judá,
e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel,
dois anos antes do terremoto.

Duas alas abrem caminho ao livro, de acordo com o


título. Primeira: as "palavras" são mediadas por uma pessoa
concreta, chamada Amós, um vidente. Segunda: foram ditas
numa situação específica e política. Focalizaremos a primeira
ala no segundo estudo. A segunda ala será, agora, nosso tema.
Portanto, o próprio cabeçalho do livro de Amós exige
de nós uma leitura situada. Entendem-se seus nove capítu-
los quando se está com os pés fincados "nos dias de Jero-
boão". Que dias eram esses?

Época de Jeroboão 11
Encontramo-nos em tomo de 760 a.c. Há bons argu-
mentos para essa datação da atuação de Amós. 14
Amós é, pois, em termos históricos, o primeiro dentre
os chamados "profetas clássicos". Com ele começa algo
novo. A profecia ingressa em seu momento mais radical.

14 Veja KIRST, David Noel. Amós; textos selecionados. São Leopoldo, Faculdade de Teo-
logia, 1981. pp. 11-12 (Exegese, 111).Compare, por exemplo, também RUDOLPH, Joel-
Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 114-115 e ANDERSEN & FREEDMAN, Amos; A New
Translation with Introduction and Commentary, cit., pp. 18-23.

14
Na época, dois Estados se sobrepõem à vida do povo
de Deus: no Sul, em Judá, comanda um (Ozias 787-735); no
Norte, em Israel, Jeroboão II detém o poder. Amós atuou
sob Jeroboão lI.
Jeroboão 11 é da dinastia de Jeú, um general que -
com algumas boas intenções e por meio de muitos massa-
cres (cf. Os 1,4! 2Rs 9-10) - galgou o poder em 842.
Jeroboão II mostrou serviço. Atesta-o seu longo go-
verno de quarenta e um anos, desde 787 até 746.
Os anais reais, citados em 2Rs 14,23-29, nos dão uma
idéia de seus grandes "sucessos". Ampliou as fronteiras de
Israel. Impôs o interesse do Estado israelita em Damasco e
em Emat, vizinhos ao norte. No sul, alargou as fronteiras até
o Mar Morto (cf. 2Rs 14,25.28).J5 Não é possível que os
Estados de Damasco e Emat tenham sido mantidos sob ocu-
pação, durante todo o governo de Jeroboão. Afinal, de acor-
do comAm 1,3.13; 6,13 houve lutas fronteiriças em Galaade
(na Transjordânia). Nesses combates muitos civis foram
massacrados, "trilhados com trilhos de ferro" (Am 1,3). Por
sobre defuntos os Estados tratavam de ampliar sua área de
influência. Nos dias de Jeroboão, o Estado de Israel levava a
melhor na disputa contra seus vizinhos. 16
A ampliação de fronteiras em direção ao norte (Da-
masco e Emat) e ao sul (Mar Morto) tinha seus objetivos.

15 Quanto à interpretação desses dois versículos, confira WÜRTHWErN, Emst. Die Bücher
der Kônige 1; Kônige 17 - 2. Kônige 25. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1984.
pp. 374-376 (Das Alte Testament Deutsch, 11/2).

16Cf. BRIGHT, John. História de Israel. 2. ed., São Paulo, Paulus, 1981. pp. 341-356
(Nova Coleção Bíblica, 7); NOTH, Martin. Historia de Israel. Barcelona, Garriga, 1966.
pp. 237-250; TRAPELLO, J. G. Situación histórica dei profeta Amós. Estudios bíblicos,
v. 26, Madrid, Facultad de Teologia "San Dámaso", 1967, pp. 249-274.

15
Servia para aumentar a arrecadação de tributos. E, em especial,
garantia e alargava em muito o controle de rotas comerciais.
Para o Estado de Israel estas últimas eram de importância
vital. Detinha o controle da principal via que interligava as
terras do Rio Nilo e as do Eufrates e Tigre. Comerciantes
egípcios e mesopotâmicos necessariamente passavam pela
Planície de Jezrael, um verdadeiro entroncamento comer-
cial. E ela se situava em território israelita. Além de deter o
controle desse vale - situado praticamente no coração do
Estado de Israel-, Jeroboão II soube fazer valer seus inte-
resses em direção ao norte, em Damasco e no acesso a Emate.
Também as ferozes lutas em torno de Galaade ea extensão
das fronteiras rumo ao sul obedecem primariamente a intui-
tos mercantis, pois a rota transjordaniana permitia participar
do trânsito das mercadorias oriundas do Golfo de Elat (en-
tão em mãos de Judá; 2Rs 14,22).
Amós não se defrontou com um Estado frágil. Depa-
rou-se com o vigor militar e comercial de um soberano bem-
sucedido e de uma economia florescente. Sua análise crítica
certamente não era compartilhada por toda a opinião públi-
ca, como se a opinião do profeta fosse consenso. O que os
olhos que se detinham na superfície viam era esplendor. O
que Amós dizia contradizia a opinião promovida pelo Esta-
do e pela religião. Podemos verificar isso até mesmo num
"colega" de Amós. A passagem de 2Rs 14,25-27 menciona
um profeta chamado Jonas, um cortesão que aplaudia os
sucessos de Jeroboão lI. Jonas era a voz da situação, bem
acolhida e aplaudida na corte de Samaria." Amós era a voz

I7 Veja CRUESEMANN, Frank. Kritik an Amos im deuteronomistischen Geschichtswerk -


Erwãgungen zu 2. Kõnige 14,27, em Probleme biblischer Theologie. München,
Christian Kaiser, 1971. pp. 57-63.

16
que trazia à tona a realidade vivida pelo povo. Sua profecia
era um contradito. Sua ótica vem marcada pela vida. Seu
contradito parte do dia-a-dia. No avesso nasce seu verso.
As dores, porém, que em Amós são ditas não são fruto
das ações dos pequenos. Não que dores não possam ser ge-
radas entre os pequenos. Por todos os lados experimenta-
mos em nossa própria vida que pobres também são capazes
de não crer em pobres, de mutuamente se guerrearem, sem
dó nem piedade. Nas periferias de nossas cidades atuais, as
mulheres conhecem muito bem essa cruel realidade.EmAmós,
todavia, esse não é o interesse maior. Seu foco recai no senho-
rio de Samaria e lá vê a origem das calúnias contra mulheres
e homens empobrecidos. Por isso, nossa atenção primeira
volta-se a esse senhorio e aos conflitos que produzem.

As dores que vêm do senhorio


Víamos que, para o Estado de Israel, o controle das
rotas comerciais era de importância capital. Por quê? Os
motivos, por certo, hão de ser buscados na organização so-
cial de então. Como se produzia naqueles tempos? Quem
detinha os produtos? Qual era o papel do Estado? A temática
é complexa. Restrinjamo-nos ao elementar,"
Trabalho e sobrevivência obedeciam, nos dias de
Amós, a relações peculiares. São distintas das de hoje, a
começar pela predominância cabal da atividade agrícola.
Quase todas as pessoas viviam do plantar e colher. Peque-

IS Veja HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo,


Paulus, 1982. 250 p. (Pesquisa & Projeto, I) e GEBRAN, Philomena, org. Conceito de
modo de produção. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 275 p. (Coleção Pensamento
Crítico, 24).

17
nas eram as cidades, incomparáveis com a moderna urbani-
zação. Ao lado de nossas cidades, nem merecem tal nome.
Não passam de burgos ampliados.
Cidade e campo eram, na época, duas realidades so-
ciais bastante distintas.
No campo vivia a grande maioria da população. Con-
centrava-se em pequenas vilas, militarmente mais ou menos
desprotegidas (sem muros). Convivia-se de acordo com os
costumes clânicos e tribais. Sobrevivia-se pelo trabalho na
roça. Cada clã produzia o necessário para os seus. Por meio
de trocas, eram cobertas necessidades imprevistas. Clã e vila
camponesas eram quase autárquicas. Raramente acontecia
comércio. Quando aparecia, seu efeito tendia a ser desesta-
bilizador para o modo de vida familiar-clânico. A terra, da
qual os camponeses retiravam seu sustento, era posse grupal.
Não se costumava vendê-la. Era herança.
Na cidade ou, se assim quisermos, nesses burgos am-
pliados, viviam poucos. Nela se agrupavam a "classe"-Esta-
do, os segmentos sociais que detinham o controle do con-
junto social. Tratava-se da corte e de seu funcionalismo, dos
sacerdotes do templo citadino e dos comerciantes que, via
de regra, confundiam-se com o próprio funcionalismo esta-
tal. A parte mais considerável das cidades era ocupada pelo
exército, seus soldados e suas armas (carros de combate).
Afora estes, a cidade e seus arredores imediatos também
comportavam escravos e gente empobrecida (viúvas e ór-
fãos) que prestavam serviço ao senhorio. De fato, a cidade
era uma espécie de burgo que exercia controle sobre seus
moradores mais empobrecidos e, principalmente, sobre os
camponeses circundantes e, em conexão com as outras ci-
dades, constituía um estado territorial. Este acelerava a do-
18
minação sobre o campo, valendo-se para tal tanto da coer-
ção dasarmas quanto do fascínio dareligião, ambos emmãos
citadinas, bem como de aliados dentro das próprias vilas
campesinas.
Pelo visto, campo e cidade não só eram distintos, como
também viviam em conflito." Em cada momento da histó-
ria, a luta entre campo e cidade apresentava suas peculiari-
dades. Nos dias de Jeroboão lI, suasprincipais facetas eram
aproximadamente as seguintes:
Em disputa estava a taxa do tributo. O Estado reivin-
dicava seu aumento. A função primeira dessas arrecadações
eracobrir as despesas crescentes do aparelho estatal em sua
política expansionista. Esses tributos confluíampara a capi-
tal, Samaria," por isso é plenamente compreensível que os
profetas não morram de amores por essa central de arreca-
dação (cf. Am 3,3-4,3 e Os 14,1). Contudo, Jeroboão II ne-
cessitava do produto agrícola não só para manter seu Estado
expansionista, mas também para participar ativamente do
comércio internacional quecirculava pela Planíciede Jezrael
e pela via transjordaniana. Nesse comércio, Israel concorria
com produtos agrícolas. Adquiria ferro, ouro e preciosida-
des (cf. Am 3,12-15). Para Israel, essas trocas eram desvan-
tajosas: os produtos de exportação eram de valor menor do

]9 "No âmbito das cidades israelitas também existia a distinçâo de classes, comum na
Antigüidade: o patriciado citadino era credor, e os camponeses ao redor das cidades
eram os devedores." Embora essa afirmação de Max Weber (Das antike Judentum.
4. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr, 1966. p. 26 [Gesammeite Aufsátze zur Reli-
gionssoziologie, 3]) careceria de diversos reparos quanto aos detalhes, certamente
confere quanto ao principal.

20 Veja NOTH, Martin. Das Krongut der israelitischen Kõnige und seine Verwaltung, em
A ufsiitze zur biblischen Landes- und Altertumskunde. Neukirchen, Neukirchener, 1971.
pp. 152-182. Sobre o assunto, veja também DONNER, Herbert. História de Israel e dos
povos vizinhos. São Leopoldo/Petrópolis, SinodalNozes, 1997. pp. 318-329.

19
que os de importação. Por isso, em Estados economicamen-
te "dependentes", como Israel e Judá, o ingresso nas trocas,
no "mercado" internacional, costumava ser catastrófico para
o povo trabalhador. Antes, porém, de realçar a dimensão
crucial da questão, devemos acompanhar, por instantes, o
fluxo das mercadorias oriundas do exterior.
Seu consumo principal acontecia nas cidades. Ates-
tam-no diversos textos proféticos (por exemplo, Am 3,12; Is
2,6-9 e 3,16--4,1). Contudo, uma parte ainda que pequena
dessas mercadorias internacionais era repassada ao campo,
seja para gerar lucros para a cidade (pensemos no ouro), seja
por corresponder à necessidade dos próprios camponeses
(pensemos no ferro). A participação no comércio internacio-
nal não deixava de ter seus efeitos nas vilas palestinenses.
Amós o anota em 8,4-6.
Sobre essa troca entre pessoas e povos, convém acres-
centar aqui mais algumas intuições. A sociedade da época é
de trocas. Trocam-se produtos e serviços, ajudas e amizades
principalmente entre famílias, clãs e tribos. A arqueologia
mostra quão cotidianas eram tais trocas. Afinal, os próprios
textos bíblicos originam-se do intensivo intercâmbio entre
grupos sociais. Entre cidades, até mesmo de povos diferen-
tes, as trocas assumiam contornos peculiares. Pois as cida-
des só podiam obter produtos para troca à medida que os
retirassem, muitas vezes à força, da produção aldeã. Além
disso, centros urbanos estavam conectados entre si sob a tu-
tela de algum centro urbano hegemônico. Ora, no século VIII
a hegemonia encontrava-se na Mesopotâmia, em terras assí-
rias. Para lá "convergiam" trocas, intercâmbios, "comércios".
Quando dizemos que nas terras mesopotâmicas concentra-
vam-se as cidades que centralizavam o comércio, então isso
não significa que houvesse muitas rotas comerciais que con-
20
duziam "diretamente" a esses centros mesopotâmicos. Na-
queles tempos, prevaleciam amplamente as trocas mais ime-
diatas nas relações entre os povos. É como se as relações de
troca funcionassem em forma de corrente. A corrente dos
intercâmbios comerciais era acionada a partir das cidades
mesopotâmicas, mas factualmente as trocas e o comércio
eram feitos nas imediações, dentro dos elos da corrente.
Lembremo-nos de que o horizonte internacional de Amós
corresponde, emAm 1-2, precisamente aos povos vizinhos,
aos elos mais próximos das correntes de relações entre os
povos.
Portanto, dentro de seu espaço específico, em seu elo,
o senhorio do Estado arrecadava para sua auto-manutenção,
para financiar sua política expansionista e para realizar seus
projetos comerciais nas rotas internacionais em direção ao
Egito e, em especial, à Mesopotâmia, onde se concentravam
as potências da época. A ampliação da tributação certamen-
te tinha sua origem principal no projeto político e comercial
de Jeroboão lI. Convém destacá-lo, pois pode-se ser levado
a crer que os tributos tão-somente serviam para satisfazer a
ganância e a luxúria dos ricos. Alguns textos do livro de
Amós até poderiam favorecer essa interpretação (cf. Am
3,12.14-15; 4,1; 5,11; 6,4-6). E não raras vezes optou-se por
essa leitura. Dizia-se, então, que nosso profeta somente cri-
ticava a insaciável ganância dos ricos; restringia-se a inves-
tir contra as pessoas luxuriantes, não contra as estruturas de
opressão que, a partir do Estado, propiciavam ostentação.
Tal abordagem é insuficiente por moralizar o luxo, desen-
raizando-o de sua origem social, descolando-o da opressão.
Requintes luxuriantes, em parte, acompanham a extração de
mais tributos e rendas dos camponeses (cf. Am 4,1) e, em
parte, são reflexo das atividades comerciais internas (cf. Am
21
8,4-7) e, em especial, externas (cf. Am 3,12). As "camas de
marfim" de alguns (cf. Am 6,4) e sua vida fácil estão na
conseqüência do expansionismo de Jeroboão lI.
E o povo? Qual era a situação das mulheres, dos ho-
mens e das crianças do campo nos dias de Jeroboão?

A realidade do povo
A realidade das pessoas era exatamente o inverso do
esplendor das elites e dos que usufruíam as benesses dos
centros urbanos de então. A gente do campo era convocada
a gerar, com seu suor e sua fome, os produtos e as riquezas
necessários para o expansionismo comercial e militar. Area-
lidade do povo era, pois, marcada por dura exploração."
Atenhamo-nos a alguns pormenores e ao funcionamento
dessa espoliação.
Houve aumento na tributação. O Estado acelerou a
concentração dos frutos do trabalho, dos produtos da roça. A
religião desempenhava papel central em tais aumentos de
arrecadação, como podemos ver emAmós (cf. 4,4-5) e tam-
bém em Oséias. Como não havia uma rede estatal apta para
arrecadar os tributos, ou seja, suficientemente organizada
(era recente o sistema estatal persa de eficiente tributação),
recorria-se acima de tudo à religião, aos templos, aos luga-
res altos locais. Nas festas religiosas era entregue parte sig-
nificativa do excedente agrícola e nelas, simultaneamente,
era criado um clima propício para a produção cada vez maior

21 "A prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da socieda-


de que Am6s contemplava e na qual trabalhava... Os pobres eram realmente pobres e
desavergonhadamente explorados" (MOTYER, J. A. O dia do leão; a mensagem de
Am6s. São Paulo, 1984. p. 1).

22
de excedentes. A religião, suas festas e seus ritos, incre-
mentavam tanto a produção quanto a arrecadação tributária.
Por isso é plenamente compreensível que Amós, que expe-
riment, I essa prática a partir dos camponeses, oponha-se jus-
tamente à religião (cf. Am 2,7-8; 4,4-5; 5,21-27; 8,1-3 e
9,1-4). Para ele, as idas ao templo "multiplicam as trans-
gressõe s" (Am 4,4), o que - entre outras coisas - também
signifie a que empobrecem e subjugam as pessoas. Contudo,
não paiece que os donos das instituições somente tenham
recorrido à religião para intensificar seu intuito de acúmulo.
.
A violência fisica não faltou. De acordo com Amós, a
coerçãe brutal foi amplamente usada para manter a hege-
monia dos homens e para acelerar a criação de riqueza. Po-
demos' ê-lo em vários textos (cf. Am 2,7; 3,9-10; 4,1 e 8,4).
Em 3,9-10, a violência é parte das estruturas de Samaria.
Em 2,7 a violência é sexual, de homem contra mulher. Na
concep .ão das elites do Estado e dos que o mantinham, ha-
via "ne: :essidade" de criar tal riqueza "nacional". Diviso três
causas principais para esse processo de acúmulo.
Primeiro: há uma causa interna. À medida que Israel
se milit arizava e se fazia conquistador, cresciam os gastos
adminis trativos e militares. Quanto mais forte era um Esta-
do tribu tário, mais intensos eram seus tributos.
Segundo: há uma causa externa. Sob Jeroboão lI, fo-
ram ampliadas as fronteiras comerciais. Nessas trocas, Is-
rael ingiessava com produtos agrícolas. Por conseguinte, para
poder trocar e "comercializar", Jeroboão II tinha de tributar
seus roe erros,
T,rceiro: a elite de Israel- um pequeno Estado depen-
dente no Antigo Oriente de então - internacionalizava-se.
Seu con sumo seguia padrões novos. Requinte e luxo davam
23
charme (cf. Am 3,12; 6,4). Alguém tinha de fornecê-lo. O
"fornecedor" do luxo eram os camponeses (cf. Am 4,1) e as
camponesas (cf. Am 2,7; 8,3). O povo camponês de Israel
era pisado (cf. Am 2,7a), estuprado (cf. Am 2,7b), aterrori-
zado (cf. Am 3,9), esmagado (cf. Am 4,1), destruído (cf. Am
8,4) pela tributação estatal. Através de seus quarenta e um
anos de bem-sucedidas conquistas, Jeroboão II transformou
as pessoas em não-gente. Amós fala à luz desse reverso da
história.
O povo, porém, não só sangrava em prol do regime
jeroboânico. Se assim fosse, esse soberano talvez não tives-
se podido manter-se por tão longos decênios. A opressão te-
ria sido demasiado evidente. A contradição - classe-Esta-
do versus camponeses - seria deveras patente.
Essa confrontação era cotidiana. Afinal, no dia-a-dia
das casas, homens se impunham a mulheres, adultos a jo-
vens. Uns tinham menos participação social que outros. Sem
tais estruturações e vivências cotidianas de espoliação, difi-
cilmente se manteria um aparato militar urbano. O livro de
Oséias - próximo aos dias de Amós - dá-nos uma idéia
muito viva da exploração à qual mulheres eram expostas.
Grandes poderes não funcionam sem que crianças e mulhe-
res sejam submetidas, como se lê emAm 2,7.
Tais confrontações, nas quais o Estado jeroboânico
estava inserido, eram vivenciadas nas vilas. Por lá certos
setores sociais desempenharam papel decisivo. Refiro-me
aos que tradicionalmente representavam os clãs interioranos
e aos que, sob os auspícios do novo elã comercial, sobres-
saíam-se dentro dos vilarejos por deter certo controle sobre
os metais preciosos (ouro, ferro) e sobre pequenas parcelas
do excedente de produção. Penso principalmente nos anciãos.
24
Eles eram as autoridades clânicas. Eram os juízes. É possí-
vel que dentre eles alguns se dedicassem a formas incipientes
de comércio nas vilas. Os interesses de tais anciãos e dos
que lhes eram próximos (sacerdotes, funcionários, merca-
dores, militares," agricultores mais poderosos") podiam
conflitar com os da corte (lRs 12), mas não raro conver-
giam com os desta (lRs 21). Tais setores intracampesinos
diluíam a confrontação entre Estado tributário e campesinato
tributado. Essa sua função veio particularmente à tona nos
dias de Jeroboão 11, devido a circunstâncias específicas.
Lembremo-nos da decisiva importância da atividade
comercial. A ela se deve o avanço dos limites do Estado.
Contudo, ela não só teve implicações para fora. Teve conse-
qüências internas. Ampliou, por assim dizer, as fronteiras
comerciais internas. O comércio internacional, por certo, foi
chegando até as vilas. Embora nelas continuasse a vigorar a
troca interfamiliar, também se iam constituindo algumas prá-
ticas comerciais. Prata e ouro passavam a assumir papel de
destaque (cf. Am 8",4-6 e Is 2,7). Os interesses do Estado
ingressavam no âmago do campesinato. Implantavam-se nas
relações intraclânicas." Amós atesta essa situação. Consta-
ta a manipulação das práticas processuais nas vilas; a prata

22 A respeito, confira Mq 2,1-5 (HAHN, Noli Bernardo. Miquéias 2,1-5; profecia e luta
pela terra - Uma leitura da influência da situação histórico-social nas últimas décadas
do século VIII a.C., em Judá na vida da antiga ordem tribal. São Paulo, Faculdade de
Teologia Nossa Senhora da Assunção, 1992. 156 p.; A profecia de Miquéias e meu
povo; memórias, vozes e experiências. São Bernardo do Campo, Universidade
Metodista de São Paulo, 2002, 283 p.).
23 A respeito de agricultores - de "homens livres" - de posses mais abastadas, veja,
por exemplo, Ex 21-22.

24 Cf. FENDLER, Marlene. Zur Sozialkritik des Amos - Versuch einer wirtschafts- und
sozialgeschichtlichen Interpretation alttestamentlicher Texte. Evangelische Theologie,
v. 33, München, Christian Kaiser, 1973, pp. 32-53.

25
passa a ditar sentenças (cf. Am 2,6 e 5,7-12). Os juízes, que
são os anciãos, executam em nível local os interesses do
soberano nacional. Em Am 8,4-6, são os comerciantes os
que, no dia-a-dia, efetivam o que Jeroboão II prevê para o
conjunto. À semelhança de Amós, também Oséias, que atuou
de 755 até 722, igualmente em Israel (= Norte), dá destaque
às mudanças em andamento nas vilas camponesas. Contu-
do, Oséias não se atém a observar tanto as corrupções da
jurisprudência (veja, porém, Os 5,1) ou as falsificações co-
merciais (veja, porém, Os 12,7), como Amós, quanto a prá-
tica religiosa. Constata que nas eiras e nos vilarejos há gran-
de entusiasmo pelos ritos de fertilidade. Estes visam ativar a
reprodução humana e a produção, ambos mui necessários
para o expansionismo de Jeroboão II e de seus sucessores."
Pode-se, pois, dizer que tanto Amós quanto Oséias enfocam
as profundas transformações locais que se vão processando
devido ao expansionismo nacional.
A realidade do povo camponês dos dias de Amós era,
pois, marcada por espoliação e violência (cf. Am 3,9-10).
Para manter-se e para ativar as rotas comerciais, o Estado de
Jeroboão II extorquia sua gente e, provavelmente, criava um
incipiente comércio nas vilas. O povo empobrecia. E, além
disso, o projeto jeroboânico encaminhava a todos para um
futuro incerto e obscuro. Afinal o sonho expansionista não
passava de uma alucinação generalesca. Era uma aventura.

25 Veja WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 1; Hosea. Neukirchen, Neukirchener,


1965 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 1411); MEJiA, Jorge. Amor, pecado,
alianza; una lectura deI profeta Oseas. Buenos Aires, Patria Grande, 1975. 155 p.
(Teologia, Estudios y Documentos, 1). Sobre a interpretação de Oséias, veja agora,
em especial, SAMPAIO, Tânia Marta Vieira. Movimento do corpo prostituido da mulher
na beleza do cotidiano; uma aproximação da profecia atribuída a Oséias. São Bernardo
do Campo, 1997,236 p.

26
Para bem entendê-lo, faz-se necessário dar algumas pince-
ladas na caracterização da conjuntura internacional da pri-
meira metade do século VIII.
Lembremo-nos, inicialmente, da real insignificância
de Israel no concerto dos povos da área. Os avanços terri-
toriais obtidos por Jeroboão II em nada alteravam essa situa-
ção. As mais significativas concentrações de poder encon-
tram-se no norte (Urartu, Emat e Damasco) e, em particular,
na Mesopotâmia. (No século VIII, o Egito não se sobres-
saía.) Na região siro-mesopotâmica, não havia, porém, urna
potência hegemônica. Lutava-se pela supremacia. Logo após
747 a.C. - isto é, após Arnós - , a Assíria rapidamente torna
para si, sob o general Tiglate-Pileser, o controle da Mesopo-
tâmia e da Siro-Palestina. Emat e Damasco são subjugadas.
Em 732 a.C., as partes mais ricas e comercialmente mais
interessantes de Israel, em particular a Planície de Jezrael,
são feitas províncias assírias. Em 722 a.C., Samaria é ane-
xada, com o que termina o Estado de Israel dos tempos
veterotestamentários.
Portanto, a expansão jeroboânica ocorre sob o signo
da indefinição da hegemonia na região. Naqueles dias, Is-
rael se beneficia da disputa pelo mando. Embora Jeroboão II
evidentemente não tivesse fôlego para aspirar a direção dos
acontecimentos, as indecisões propiciavam-lhe alguns es-
paços. Contudo, à medida que ingressava ativamente no
âmbito das trocas comerciais internacionais, também criava
as condições da futura invasão assíria. A rota que, sob Jero-
boão Il, levou os cereais israelitas trouxe, alguns anos de-
pois, os soldados assírios. A invasão assíria é urna espécie
de refluxo da expansão jeroboânica. Por conseguinte, a po-
lítica de Jeroboão II não só pauperizou os camponeses
27
israelitas, mas também preparou as condições para sua sub-
jugação pelos assírios. Preparou a catástrofe, da qual Israel
(= Norte) jamais se recuperou. A glória jeroboânica foi o
túmulo do povo.
A deterioração das condições de vida do povo era pal-
pável em toda parte. Violência e maus-tratos, religiosidade
formalista e templos interesseiros, enriquecimento fácil e
suborno, enfim a justiça transformada em veneno (cf. Am
6,12) e o caos social dominavam a cena. Detalhá-lo aqui
equivaleria a antecipar estudos subseqüentes. Voltaremos,
pois, ao enfoque pormenorizado das dores e dos clamores
do povo em Amós.

Retrospectiva
Quisemos delinear o contexto das "palavras de Amós"
(Am 1,1). Em retrospectiva, podemos constatar o seguinte.
Encontramo-nos por volta de 760 a.C., em Israel
(= Norte), na segunda metade do longo reinado de Jeroboão II
(787-746).
Trata-se de uma época de certo vácuo de poder. Não
há poder hegemônico no cenário dos povos vizinhos.
Êxitos significativos marcam a política de Jeroboão lI.
A expansão territorial e o controle de rotas comerciais diri-
gem-se principalmente ao norte (Damasco, Emat).
Formas já existentes de dominação são radicalizadas
e novas são agregadas. A dominação de mulheres e crianças
é radicalizada, como se verifica no próprio livro de Amós
(cf. 2,7), mas principalmente em Oséias, profeta conterrâneo
e praticamente contemporâneo de Amós. A defesa das crian-

28
ças é um dos temas de Isaías (cf. 10,1-2). A essas domina-
ções já históricas são agregadas principalmente aquelas so-
bre a gente que produz no campo. Aumentam a injustiça e a
exploração, seja mediante a tributação seja mediante certa
mercantilização das trocas, no âmbito das vilas interioranas.
Violência e espoliação perfaziam o dia-a-dia das pes-
soas. Na linguagem de Miquéias, dir-se-ia que elas estavam
sendo "devoradas" (cf. Mq 3,1-14).

Tal descrição de circunstâncias é de alguma serventia


para nós que - nesses estudos - queremos avaliar nossa fé
e nossa prática com base em Amós? Afinal, não é a Palavra
o que importa? De que serviriam tais incursões no nível do
circunstancial?
Não resta dúvida, não podemos permanecer no con-
texto. Ele ainda não é a Palavra. Por isso, anseio por avançar
para além dessa sondagem do histórico. Nesse sentido, esta-
mos perdendo tempo ao analisarmos a realidade dos dias de
Jeroboão II?
Sim, nosso intuito é o de dar destaque ao que não é
meramente situacional. Contudo, isso não pode implicar em
descartar o contexto. Afinal, a Palavra jamais se descuida da
realidade. Ela "acampou entre nós" (Jo 1,14). É presença real,
efetiva, corpórea, concreta, factual. Nesses termos, a Palavra,
além de criar contexto, também se faz contexto.
E em Amós isso é muito patente. Expressa-o o cabe-
çalho de seu livro. Ele afirma que no texto que lhe segue se
lêem "palavras de Amós". Esta expressão chama a atenção,
ainda mais quando a comparamos com os títulos de outros

29
livros proféticos. Lá nos são anunciadas "palavra de Javé"
(Os 1,1; Jll,l; Mq 1,1 etc.). Como meditar e entender nosso
livro, sem atentarmos para as condições reais de sua profe-
cia? Sem nos fixar em sua pessoa? No estudo do livro de
Amós - mas certamente não só dele - , a contextualidade
é um requisito teológico. Espiritualidade por suposto não
prescinde de historicidade. Se prescindisse, Amós diria que
nosso entusiasmo religioso só serve para multiplicar o peca-
do (cf. Am 4,4-5; 5,5.21-27), para reproduzir alienação e
ilusionismo.
Avancemos em nossa tarefa. Meditemos adiante so-
bre esse Amós de Técua. Quem é esse pastor, vaqueiro, tra-
balhador sazonal?

30
2. "O Senhor Javé me fez ver"

o outro estudioso escondeu-se, de noite, num canto da casa.


Viu o povo entrar, sem pedir licença, para dançar e brincar,
falar e cantar, para sentir-se à vontade e encontrar-se com
os outros. Gostou de ver essa alegria na casa e esqueceu-
se, por um momento, das riquezas antigas. Gostou tanto,
que entrou na roda e dançou. Dançou e brincou, falou e
cantou, a noite inteira. Coisa que de há muito não mais fa-
zia. Nunca se sentira tão feliz na vida. Descobriu, naquela
hora, que tudo aquilo que tanto estudara tinha sido feito
pelo povo, para o povo poder alegrar-se na vida... Passava
a ser conhecido e acolhido pelo povo que não distingue as
pessoas que nele se misturam. Era um do povo. 1

Na sua origem, o profetismo não surge tanto do lado do


poder... Surge muito mais do lado da poesia, da inspiração,
do transe, da música, do sonho, da visão, da beleza, do po-
pular, da arte, da intuição, do oráculo, da religião, da divin-
dade, da oração, da mística.'

Contactamos, no primeiro capítulo, o contexto. Essa


foi nossa primeira tarefa. As "palavras de Amós" também

1 MESTERS, Carlos. Por trás das palavras, 3. ed., Petrópolis, Vozes, 1977. v. I, pp. 17-18.

2 GRUPO DE REFLEXÃO DA CRB. A leitura profética da história. São Paulo, CRB/Loyola,


1992. p. 17.

31
são seu contexto. Mas não só: são também de Amós. Se fos-
sem de outro, seriam diferentes. Podemos comprovar isso
em Oséias. Fala conforme o mesmo contexto, alguns pou-
cos anos depois. Sua linguagem é outra. Sua ótica é especí-
fica. Não é, pois, indiferente que nosso livro nos apresente
"palavras" oriundas de um tal de Amós, uma pessoa especí-
fica, um grupo profético distinto de outros. Também, por-
que esse Amós, de jeito nenhum, foi recitador de liturgia.'
Nem todos viam o que ele via. Amós nos apresenta a
realidade dos "dias de Jeroboão" em uma ótica muito pecu-
liar. O profeta Jonas de 2Rs 14,25 via as coisas de outro
modo. O sacerdote Amasias, que denunciara Amós junto à
corte (cf. Am 7,10-17), fazia outra análise dos fatos. Amós
perscrutava, pois, o que Jonas, Amasias e outros não enxer-
gavam. Para Amós, essa diferença tem origem em sua expe-
riência de Deus: "Falou o Senhor Javé, quem não profetiza-
rá?" (Am3,8). Javé o "fez ver" (Am 7,1.4.7; 8,1; 9,1). Nisso
reside a alteridade de nosso Amós. Sua visão da realidade é
teológica, é mística.
Não se trata de querer repetir o culto ao individualis-
mo, como por vezes se fazia em outros tempos.' Nem pre-
tendo adentrar na alma de nosso profeta. Não conhecemos
sua psique, só temos seus textos. Contudo, também não po-
demos desalmá-lo, nem só objetivá-lo em seus textos. Amós

3 A relação entre Amós e a liturgia templar é estudada por Hennig Grafvon Reventlow. Vê
em nosso profeta uma espécie de recitador, de liturgo de agenda. Veja REVENTLOW, Hennig
Grafvon. Das Amt des Propheten bei Amos. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962
(Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments, 80).

4 Veja DUHM, Bernhard. Israels Propheten. 2. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr, 1922 (a 1.


ed. é de 1916). Confira também KRAUS, Hans-Joachim. Geschichte der historisch-
kritischen Erforschung des Alten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwart.
4. ed., Neukirchen, Neukirchener, 1988. pp. 275-283.

32
porcerto tinha seujeito e suas emoções. Imaginemo-lo pro-
ferindo aquelas palavras de Am 4,1 sobre os senhores' de
Samaria: "Ouvi, vacas de Basã!" Não as terá dito sem tre-
mor e emoção. Imaginemo-lo em sua confrontação com
Amasias (cf. Am 7,10-17). Ojavismo do sacerdote de Betel
divergia do javismo do pastor de ovelhas de Técua. Amós
tinha um jeito muito peculiar de articular a fé em Javé e de
confessá-lo em público. Esse profeta é diferente.
Nãohádúvida, o contexto fezcomque Amós falasse. To-
davia, igualmente, é evidente que Amós fezcomque o contexto
falasse. Tentemos percebê-lo neste nosso segundo estudo.

As visões
As visões, contidas emAm 7-9, permitem-nos conhe-
cer algo de Amós. Por certo, não foram anotadas para bio-
grafar o profeta. Seu objetivo é outro. Querem-nos testemu-
nhar os conteúdos e as conseqüências das palavras proféti-
cas. Mas, enquanto perseguem essa meta, nas entrelinhas
também deixam transpirar algo dapessoa de Amós. Atente-
mos para essas entrelinhas.
Cinco são as visões espalhadas porAm 7-9. São elas:
7,1-3; 7,4-6; 7,7-8.9; 8,1-2.3 e 9,1-4. 6 Certamente se

5 Ressalto que em Am 4,1-3 a maioria dos sufixos alude a um masculino, e não a um


feminino. Logo, as tais "vacas de Basã" não hão de ser mulheres, mas senhores.

6 O texto original dessas visões não está bem preservado. Persistem muitas incertezas.
Não posso pormenorizá-Ias. Sugiro uma comparação com comentários especializados.
Os problemas estão bem trabalhados em: KiRST, Nelson. Amós; textos selecionados,
São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1981. pp. 41-92 (Exegese, 111). Veja também
meu próprio ensaio: Jacó é pequeno - Visões em Amós 7~9. Revista de Interpretação
BíblicaLatino-Americana, v. I, Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 81-92. Este v. I foi reeditado
em 2. ed. em 1990. O ensaio em questão encontra-se, agora, no Anexo do presente livro.

33
correlacionam. Formam um só ciclo.' No atual texto deAm
7-9 estão separadas, ao meu ver, porque foram usadas pelos
redatores para estruturar o conjunto desses três últimos ca-
pítulos do livro.' Inicialmente nos interessa enfocar o ciclo
das cinco visões à parte de seu atual contexto literário. Num
segundo passo, também perguntarei pelas intenções que
orientaram a composição de Am 7-9.
O ápice do ciclo é a quinta visão (9,1-4). As quatro ante-
riores compõem dois pares. Juntas estão, por um lado, 7,1-3 e
7,4-6 e, por outro, 7,7-9 e 8,1-3. A disposição é, pois, 2 + 2 + 1.
A progressão entre os conjuntos é evidente. A última visão
constitui o auge. Entre o primeiro e o segundo par há um cres-
cendo. Constato, pois, que a disposição e a seqüência desse
nosso ciclo de visões de modo algum são fortuitas. Ao medi-
tá-lo, temos de fazer jus a essa sua peculiaridade, temos de
integrar-nos em seu fluxo. Vejamos o que Amós viu.

7 Não pretendo comprová-lo uma vez mais. A esse respeito há várias pesquisas a com-
parar, por exemplo: SElERSTAD, Ivar P. Die Offenbarungserlebnisse der ProphetenAmos,
Jesaja und Jeremia; eine Untersuchung der Erlebnisvorgãnge unter besonderer
Berücksichtigung ihrer religiõs-sittlichen Art und Auswirkung. Oslo, Uni ver-
sitetsforlaget, 1965; WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2; Joel und Amos.
Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 337-394 (Biblischer Kommentar Altes Testament,
14/2); BARTCZEK, Günter, Prophetiec und Vermittlung; Zur literarischen Analyse und
theologischen Interpretation der Visionberichte des Amos. Frankfurt, Peter Lang, 1980
(Europãische Hochschulschriften, 23); TOURN, Giorgio. Amós; profeta de la justicia.
Buenos Aires, 1978. pp. 49ss; KIRST, Amós; textos selecionados, cit., pp. 41-92; LETE,
Gregorio dei Olmo. La vocación del lider en el antiguo Israel; morfología de los
relatos bíblicos de vocación. Salamanca, Univ. Pontificia, 1973. pp. 179-207 (Biblio-
teca Salmanticensis, 3/2); ANDERsEN, Francis I. & FREEDMAN, David Noel. Amos; A
New Translation with Introduction and Commentary. New York, Doubleday, 1989.
pp. 609-860 (The Anchor Bible, 24A); PAUL, Shalom M. Amos; A Commentary on the
Book of Amos. Minneapolis, Fortress Press, 1991. pp. 226-281 (Hermeneia).

8 Veja ANDINACH, Pablo Rúben. Amos - Memoria y profecia - Análisis estructural y


hermenéutica. Revista Biblica, ano 45, v. 12, Buenos Aires, Sociedad Argentina de
Profesores de Sagrada Escritura, 1983, pp. 239ss.

34
o primeiro par de visões está em 7,1-3 e 7,4-6. Focaliza
a vida no campo. Trata de planta (7,1-3) e de "herança"/roça
(7,4-6), do lavrador e também do pastor. Em jogo está a so-
brevivência da gente do campo. Amós vê ameaças terríveis:
praga de gafanhotos (7,1-3) e seca (7,4-6). Os gafanhotos
ameaçam liquidar os camponeses. O tributo real j á os ex-
plorara, ao se assenhorar da primeira colheita, isto é, da co-
lheita mais rentável (v. 1). Agora, gafanhotos estavam por
devorar a segunda, a que sobraria para a gente do campo.
Haveria fome. Além dessa praga, está a caminho uma seca
arrasadora. O manancial de águas subterrâneas estava sendo
consumido por um fogo terrível, cósmico (v. 4). Haveria sede.
Fome e sede ameaçavam, pois, a sobrevivência no campo.
Amós intercede e é atendido. Seu argumento, à pri-
meira vista, surpreende. Recorre à pequenez de Jacó (v. 2 e
v. 5). A fragilidade dos lavradores - afinal, estes são Jacó,
no concreto - é o argumento decisivo para a suspensão da
ameaça. Para o campo empobrecido, há perdão. As ameaças
da natureza - pragas e secas - , por mais terríveis que se-
jam, não aniquilam. O Deus criador não é tão mesquinho.
Nem secas e nem pragas "pisam", "eliminam" (Am 8,4) e
"devoram" (Mq 3,1-4) os pobres. Suas dores têm outras ori-
gens. E é disso que nos fala o segundo par de visões.
As próximas duas cenas (7,7-9 e 8,1-3) são especialmen-
te dificeis de interpretar. Referem-se a um prumo? (7,7-9) e a
um cesto (8,1-3). O prumo certamente tem a função de veri-
ficar a estabilidade do muro. Este está prestes a ruir. O cesto
contém frutas de verão (figos, azeitonas, uvas). Ambas as

9 A respeito de 7,7-9, veja a leitura de Haroldo Reimer em seu valioso livro: Richtet auf
das Recht!; Studien zur Botschaft des Amos. Stuttgart, Katholisches Bibelwerk, 1992.
pp.175-189.

35
visões predizem o fim de "meu povo Israel" (7,8; 8,2). Para
entendê-las, não basta fixar-se nos objetos (prumo/muro e
cesto). É preciso atentar para as conseqüências concretas da
ameaça, isto é, proponho interpretar a terceira e quarta visão
segundo 7,9 e 8,3, respectivamente. 10 As conseqüências con-
cretas das ameaças simbolizadas nas visões de um prumo
junto ao muro e de um cesto de frutas são: aniquilamento
dos "altos" (isto é, dos locais de culto a Baal), dos santuá-
rios estatais, da dinastia no poder (cf. 7,9) e morte no palá-
cio (cf. 8,3). Generalizando podemos dizer que a terceira
e quarta visão ameaçam os poderosos, sua religião ("altos" e
"santuários") e seus representantes (dinastia e palácio).
Quando Amós se refere, pois, a "meu povo Israel", não
pensa no conjunto de todas as pessoas, mas especificamente
nas instituições de poder do reino do Norte. 11 A partir daí,
também as coisas vistas tomam sentido. Não é por acaso
que Amós vê um cesto de frutas de verão (cf. 8,1-2). Isso há
de aludir ao cenário da principal festa da colheita, realizada
no final do ano agrícola palestinense. Na oportunidade, os
santuários arrecadavam seus tributos (cf. 9,1-4 e 2,13). Igual-
mente, não é por acaso que Amós vê um muro prestes a ruir
(cf. 7,7-8). Afinal, o poder opressor era, naqueles tempos,
um poder citadino. Para a cidade e o Estado, seus muros e
palácios, suas festas de colheitas e espoliações não há futuro.
Portanto, esse segundo par de visões (7,7-9 e 8,1-3) é
oposto ao primeiro (7,1-3 e 7,4-6). Aquele se refere ao cam-

10 Para Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 131-135, 340-
341 e 367), Am 7,9 e 8,3 são adendos posteriores. Veja também KIRST, Amós; textos
selecionados, pp. 58-59 e 70-71.

11 Veja KIRST, Amós; textos selecionados, cit., p. 63; WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel
und Amos, cit., p. 348.

36
po, este, à cidade-Estado. Para a fragilidade de Jacó, há fu-
turo. Para a opressão citadina, haverá morte. Campo conju-
ga com vida. Cidade-Estado caminha para a morte. A última
visão (9,1-4) formulará a conseqüência mais radical desses
antagonismos.
Novamente deparamos com uma passagem complica-
da, quando nos voltamos para 9,1-4. Os problemas começam
com o texto original; sua preservação não é das melhores.
Ainda assim é possível reconhecer seu conteúdo principal.
Trata-se da ameaça ao templo e aos que dele se beneficiam.
A cena chega a ser chocante e grotesca. Javé como que está
parado sobre o altar de holocaustos (localizado em frente ao
templo); de lá golpeia os capitéis. Demole o santuário, fa-
zendo-o ruir sobre seus ocupantes. Nessa quinta (cf. 9,1-4),
culmina o conjunto das visões (7,1-3; 7,4-6 e 7,7-9; 8,1-3).
O próprio Javé se volta contra o lugar e os ritos que mais
querem prestigiá-lo.
Por quê? Porque esse santuário é serviçal aos muros
citadinos (cf. 7,7-8), tanto a seus idolatrismos quanto às suas
dinastias (7,9). Serve ao acúmulo tributário por meio das
festas da colheita (cf. 8,1-2), em favor dos palácios e contra
as escravas (cf. 8,3). O santuário é a coroa da opressão
exercida contra o campo e as escravas. Nas visões de Amós,
ele coroa as ameaças. O templo seria lugar predileto da pro-
moção da vida; por meio de suas amarras citadinas e pala-
cianas foi feito lugar privilegiado da morte.
O ciclo das visões, por certo, não é biografia. Tem como
objetivo não a pessoa de Amós, mas sim o conteúdo de sua
mensagem. Ainda assim é evidente que essas visões tam-
bém nos permitem entrever a pessoa de nosso profeta. Antes
de mais nada, no-lo apresentam como um vidente, um visio-
37
nário (confira tambémAm 1,1; 7,12). Essa é por assim dizer
sua especialidade. O vidente enxerga o que está na raiz das
coisas e em suas conseqüências. Olha para a frente e vai ao
fundo. Ao ir à raiz, Amós constata opressão de cidades e do
Estado sobre a gente pobre do campo. Ao olhar o futuro,
vislumbra o fim dos totalitários. A visão profética não é, pois,
nenhum jogo fortuito com símbolos indecifráveis. Ela re-
vela e des-vela, com perspicácia e radicalidade, o que está aí
e o que está por vir. Toma as coisas transparentes. Tamanha
perspicácia, porém, não é só fruto de exercícios de êxtase ou
de sábia reflexão pessoal. É também episódio sociorreligioso,
cujo controle situa-se além da própria pessoa. Situa-se no
tempo e espaço religiosos que, simultaneamente, estão inse-
ridos no comunitário e social. Em tal visão ocorre um en-
contro entre a experiência pessoal de Amós e o ambiente de
dor comunitária de sua gente aldeã. É o que se pode desig-
nar de dádiva. Javé faz ver, vocaciona Amós a ser vidente.
Não fosse essa perspectiva vocacional, as visões de nosso
profeta poderiam não passar de sensacionalismo e soberbia.
Só o próprio Javé, com quem Amós dialoga em relação pes-
soal, poderia denunciar que os templos a ele dedicados não
eram de seu agrado. Essa dádiva divina da visão não parece
ter tomado nosso profeta de sobressalto, de uma hora para
outra. Trata-se de uma trajetória vocacional. Amós percorre
todo um caminho visionário. As próprias visões deixam en-
trever isso, com bastante nitidez. A visão dos gafanhotos (cf.
7,1-3) cabe no início do ano agrícola. A da seca (cf. 7,4-6),
em pleno verão. A do cesto (cf. 8,1-3) dá-se no outono. Es-
tas visões cobrem, no mínimo, meio ano. Talvez seja o perío-
do em que Amós é preparado, de modo incisivo, para seu
ministério." O ciclo das visões leva-no a perscrutar os si-
nais dos tempos: a dor dos camponeses e o luxo de palácios

38
e templos. Essas coisas não se clareiam, miraculosamente,
de um dia para o outro; clareiam-se na caminhada.
Essas visões têm um sentido como conjunto. São per-
tinentes também à pessoa de Amós e a seu meio ambiente
social. Mas também assumem um sentido específico dentro
de seu atual contexto literário, constituído por Am 7-9. São
o lastro sobre o qual estão assentados estes capítulos. Aqui,
não posso deter-me a meditar os alcances dessa composi-
ção. Restrinjo-me a assinalar dois aspectos.
Por um lado, o ciclo é amplificado. Em 8,4-14, a amea-
ça também passa a incluir o comércio. Este igualmente de-
vora os camponeses pauperizados, o Jacó enfraquecido.
Contra o povo estão não só cidades muradas, templos, palá-
cios e Estado, como acentuam as visões, mas também os
comerciantes.
Por outro lado, o ciclo é radicalizado. Ao incluírem a
confrontação com Amasias (cf. 7,10-17) entre a terceira (cf.
7,7-9) e a quarta (cf. 8,1-3) visão, os redatores exemplificam
numa cena o antagonismo entre a profecia que vem do cam-
po e o sacerdócio amarrado aos interesses do Estado e de
seu templo oficial. A mesma critica à conjugação entre po-
der e religião é tematizada em 9,7-8 e nas utopias messiânicas
de 9,11-12 e 9,13-15. Desse modo os compiladores de Am
7-9 quiseram denunciar o caráter funesto das alianças entre
templo e palácio. Ao proceder assim, evidenciam-se como
bons discípulos de Amós.

12 Assim KIRST, Amós; textos selecionados, cit., pp. 42 e 90. Sobre a questão, confira
também TOURN, Amós; profeta de la justicia, cit., pp. 67-69.

39
"Rugiu o leão - Javé me agarrou"
Algumas outras passagens focalizam a dimensão voca-
cional da atuação de Amós. Assemelham-se ao que viemos
a conhecer por meio do ciclo das visões. Penso em Am 3,8 e
emAm 7,14-15.
Em ambas, o tema não é Amós, mas sua mensagem e
a autoridade desta. Por um lado, a passagem em questão
autentica a ameaça à Samaria (cf. 3,8), por outro, evidencia
a necessidade da confrontação com Amasias (cf. 7,14-15).
Am 3,8 reveste-se de importância especial à luz de seu
contexto literário. Acontece que Am 3,3--4,3, provavelmen-
te, compõe um antigo panfleto, contendo cinco ditos profé-
ticos de Amós (cf. 3,3-8; 3,9-11; 3,12; 3,13-15 e 4,1-3).13
Todos eles afrontam explícita (cf. 3,9-11; 3,12; 4,1-3) ou
implicitamente (cf. 3,13-15) Samaria. Seu conteúdo é es-
pantoso. Afinal, a capital é denunciada como berço de terror
e horror. Sua destruição perpassa cada dito, como grande
anseio. Um tal panfleto deve ter escandalizado e espantado.
Fazia-se necessário embasar seu conteúdo. E essa é a fun-

13 Essa tese ainda carece de uma verificação detalhada, na qual se comprovaria que 3,1-
2 é, ao menos em parte, uma introdução secundária (deuteronomistica?) e que o apelo
à atenção de 4, I poderia tanto ser do próprio Amós (confira 3,13 e 8,4) quanto estar
influenciado pela linguagem redacional de 3,1 e 5,1. Indicios importantes que auxi-
liam a embasar a tese, segundo a qual Am 3,3-4,3 é um antigo panfleto, podem ser
encontrados em KOCH, Klaus. Amos untersucht mit den Methoden einer strukturalen
Formgeschichte. Neukirchen, Neukirchener, 1976 (Alter Orient und Altes Testaent,
30), veja em especial p. 126 da I'parte e pp. 76-77 da 2ªparte. Veja também SCHMlDT,
Werner Hans. Die deuteronomistische Redaktion des Amosbuches - Zu den
theologischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwort und seinem Sammler.
Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin, Walter de Gruyter,
1965, pp. 168-193. Outra é a posição de PFEIFER, Gerhard, Amos und Deuterojesaja
denkformenanalytisch verglichen. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft,
v. 93, Berlin, Walter de Gruyter, 1981, pp. 439-443. Confira item Exército, cidade e
templo, p. 62.

40
ção de 3,3-8, em cujo auge está nosso v. 8. Ele faz as vezes
de assinatura teológica para o atestado de morte passado à
Samaria nesse nosso panfleto.
Amós 3,3-6.8 14 é uma obra de arte da sabedoria popu-
lar. No estilo da pergunta e resposta, correlacionando causa
e efeito, Amós leva seu ouvinte a ter de admitir que suas
ameaças proféticas à cidade (v. 6), isto é, no panfleto Samaria,
tem sua origem em Javé. Partindo das coisas cotidianas-
quase banais e infantis" - , esses versículos chegam ao pro-
blema elementar da profecia: os profetas têm de falar. Amós
profetiza por obrigação, não por deleite. Está sob coação
divina:

Rugiu o leão!
Quem não temerá?
Falou o Senhor Javé!
Quem não profetizará? (Am 3,8).

Profecia por coação - esta experiência contundente


autentica a assombrosa ameaça que segue nos quatro ditos:
Samaria, a capital do bem-sucedido Jeroboão 11, será destro-
çada. A função da profecia é proclamá-lo.
Não parece que 3,8 queira referir-se a um aconteci-
mento vocacional único. Seu propósito é antes apresentar as
razões teológicas para o conjunto da atuação profética, em
particular para os diversos ditos contra Samaria. Nesse ponto
reside uma diferença em comparação com o ciclo das visões.

14 V. 7 deve ser um adendo deuteronomístico, como foi demonstrado por SCHMIDT, Die
deuteronomistische Redaktion des Amosbuches, cit., pp. 183-188.

15 RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-Jona. Gütersloh, Gütersloher, 1971. p. 156


(Kommentar zum Alten Testament, 13/2).

41
Lá conhecíamos Amós no começo e quiçá no gradual desen-
volvimento de sua profecia. Aqui vemo-lo explicitar o mo-
tivo de sua ação e palavra proféticas.
Em Am 7,14-15, o profeta se refere a suas experiên-
cias vocacionais e pessoais à semelhança de 3,8. Atenhamo-
nos, por instantes, a esses dois versículos.
Com eles retomamos ao contexto literário do ciclo das
visões. Em 7,10-17,16 os discípulos relatam uma das cenas
marcantes da vida do mestre. É marcante porque confronta,
sem meios-termos, duas propostas: a do vidente e a do sa-
cerdote, a de Amós e a de Amasias, a da crítica ao Estado e
a do serviço a ele, a do campo e a da cidade. Esse cenário de
antagonismos interrompe o ciclo das visões e, simultanea-
mente, explica-o, num paradigma concreto. Novamente, a
questão tematizada não é Amós, é sua palavra profética. Esta
está no centro. A importância de Amós deriva da relevância
da palavra, do dabar!
E é por causa dessa palavra que Amós recorre a seu
passado, nos versículos que estão em jogo. Amasias pro-
punha acomodar a palavra profética às condições de um
santuário do rei e aos interesses do Estado. Tratava de nego-
ciar (cf. vv. 12-13), naturalmente cheio de boas intenções.
Amós refuta tais tratativas. É intransigente. Não por uma
qualidade sua, mas devido à qualidade da palavra. Esta não
se ajusta e nem se acomoda ao Estado jeroboânico, idólatra
(cf. 7,9) e opressor (cf. 8,3.4-6). Para confirmar a intransi-
gência da palavra de Javé, Amós recorre a sua experiência
vocacional e a seu modo de vida.

16 Cf. VIRGULIN, Stefano. Os doze profetas e Daniel. Petrópolis, Vozes, 1978. pp. 39-44
(Introdução à Bíblia, 2/4).

42
A experiência vocacional confere com a de 3,8, em-
bora os termos sejam outros. Javé tomou, agarrou, constran-
geu (cf. v. 15). Amós foi feito vidente, um tanto na marra.
Nem mesmo o conteúdo de sua fala corresponde a uma op-
ção sua. Também este lhe foi dado. Há que se direcionar a
Israel (cf. v. 15), ameaçá-lo na pessoa de seus reis (cf. vv.
9.10-11), sacerdotes (cf. vv. 16-17) e similares. Na raiz de
tamanha radicalidade está a vocação: "Javé me agarrou!"
Nisso 7,14-15 está próximo de 3,8, como víamos. Mas tam-
bém vai além.
Em 7,14-15 transparece um interesse especial em
elucidar as conseqüências concretas e atuais da vocação para
a profecia radical, para "o não'"? derradeiro. Por um lado, é
destacado que Amós não é "profeta" e nem mesmo "filho/
discípulo de profeta".18 Portanto, não deve ser confundido com
os profetas vinculados a santuários oficiais e deles dependen-
tes (cf. 2Sm 7 ou Mq 3,5-8), se bem que em dado momento
chega a desempenhar funções proféticas (por exemplo, ao in-
terceder em 7,2.5).19 A rigor, Amós não é profeta, é "pro-
fetizador" (cf. 3,8; 7,15.16). Por outro lado, seu modo de vida
e de subsistência passa a desempenhar papel de realce. Seu
pão não lhe vem de sua função de profeta (o que nega ser).

17 Esse é o título de um belo ensaio de SMEND, Rudolf. Das Nein des Amos. Evangelische
Theologie, v. 23, München, Christian Kaiser, 1963, pp. 404-423.
rs Sobre a correta tradução de 7,14, há longa discussão. Há quem queira traduzir: "Eu
não era (!) profeta e nem era (!) filho de profeta" (confira, por exemplo, KIRST, Amós;
textos selecionados, pp. 95 e 113-116 ou PAUL, Amos; A Commentary on the Book of
Amos, cit., pp. 238-252). A meu ver, Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2; Joel
und Amos, pp. 359-361) reuniu os argumentos decisivos para que se traduza: "Eu não
sou (!) profeta e nem sou (!) filho de profeta".

19 Quanto aos profetas como intercessores, veja RAD, Gerhard von. Los falsos profetas,
em Estudios sobre el Antiguo Testamento. Salamanca, Sígueme, 1976. pp. 445-459
(Biblioteca de Estudios Bíblicos, 3).

43
Ganha-o como trabalhador. Vv. 14-15 ressaltam-no (veja tam-
bémAm 1,1). Havemos de retomar ao assunto (confira item
Amós - Um trabalhador, p. 49). Desde já posso constatar que
para os narradores do episódio de 7,10-17, o ganha-pão de
Amós não é indiferente ao conteúdo de sua profecia. Afinal,
seu trabalho dá autenticidade a suas palavras. Entre o Amós
trabalhador e sua profecia radical contra os totalitários deve
haver uma relação. O trabalhador e o "profetizador" se
correlacionam, embora este não dependa daquele.
Em 3,8 e 7,14-15, conhecemos, pois, um Amós voca-
cionado como profetizador. Foi feito agente da palavra (do
dabar).Isso já era relevante para o próprio Amós. Sua tarefa
era profetizar (cf. 3,8; 7,12.15-16) e proclamar (cf. 3,8; 7,16).
Os compiladores lhe deram destaque ainda maior, ao se va-
lerem do conceito da palavra (do dabar) para intitular o li-
vro (cf. 1,1) ou partes dele (cf. 3,1; 4,1; 5,1, confira 7,16).
Amós atua, pois, por meio da fala, da palavra. Pode-se cons-
tatar isso em mais outra característica dos textos. Refiro-me
às fórmulas que se encontram no começo, no meio e no fim
dos ditos. Atentemos para elas.

"Assim disse Javé"


O início de muitos ditos é marcado pela expressão "as-
sim disse Javé" (1,3.6.9.11.13; 2,1.4.6; 3,11.12; 5,3.4.16;
7,17). Seu equivalente no final das unidades é "disse Javé"
(1,5.8.15; 2,3; 5,17.27; 7,3.6; 9,15).
Outra expressão muito freqüente e via de regra usada
para concluir é "dito de Javé" (Almeida costuma traduzir
por "disse Javé"). Encontramo-la em: 2,11.16; 3,6.10.15;
4,3.5.6.8.9.10.11; 6,8.14; 8,3.9.11; 9,7.8.12.13.

44
Nesse contexto também caberia mencionar a formula-
ção "jurou Javé". É bem menos usual (cf. 4,2; 6,8; 8,7). Sua
função assemelha-se a "assim disse Javé".
Essas expressões nem em todas as passagens remon-
tam ao próprio Amós. Mas, no geral, este é o caso." Por
isso, pode-se afirmar que desempenham um papel de desta-
que, em relação à nossa temática. Hão de ter um sentido
especial para nosso "profetizador". Para perceber isso, te-
mos de meditar sobre essas expressões, particularmente so-
bre as mais freqüentes: "assim disse Javé" e "dito de Javé".
Ambas têm origens distintas. "Assim disse Javé" pro-
vém do envio de mensagens. Com essa fórmula o mensagei-
ro introduzia seu recado. Existem muitos textos para com-
prová-lo. No próprio livro de Amós temos um. Quando o
sacerdote Amasias denuncia Amós diante da corte, faz in-
troduzir sua mensagem por: "assim disse Amós". Veja tam-
bém Gn 32,4-6 e Jz 11,14-15. Portanto, a expressão "assim
disse Javé" é uma fórmula oriunda da troca de mensagens."
De outro âmbito provém o "dito de Javé". Tem seu lugar
vivencial entre visionários (Nm 24,3-4.15-16; 2Sm 23,1). A
expressão é usada quando o visionário transmite a visão a
outros. Trata-se, pois, de uma fórmula originária da experiên-
cia visionária.
De acordo com essas duas fórmulas, podemos dizer que
Amós se entende como portador e transmissorde visões e, prin-
cipalmente, de mensagens. É um emissário, um mensageiro.

20 A respeito, confira WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 109-110,
165-166 e 174.
21 Veja WESTERMANN, Claus. Grundformen prophetischer Rede. 4. ed., München, Christian
Kaiser, 4. ed., 1971 (Beitrãge zur evangelischen Theologie, 31).

45
o que diz não tem origem nele. Tem origem em quem o fez ver,
em quem o enviou ou, nos termos de 7,15, em quem o faz an-
dar. Aquele que o pôs a caminho definiu sua mensagem.
Em vistas a essas definições de Amós como visioná-
rio, "profetizador" e mensageiro, alguém poderia concluir
que nosso profeta é homem não de ação, mas só de palavra.
E nisso não deixaria de haver algo de correto. Nosso livro,
de fato, apresenta-nos Amós como agente de palavras (cf.
Am 1,1!). Sua tarefa precípua é a fala, a percepção, a análi-
se. Estaríamos equivocados, porém, se dicotomizássemos a
palavra profética da realidade popular, se restringíssemos
Amós a um verbalista, a um falador. Aí convém recordar,
uma vez mais, que o dabar/palavra não pode ser restrito à
esfera das manifestações verbais ou - como noutros tem-
pos se gostava de fazer - à esfera das idéias e conceitua-
lizações. O dabar/palavra envolve e inclui a realidade. Vem
carregado de vigor histórico. Acontece em meio ao real.
Portanto, como agente da palavra, Amós é agente da histó-
ria." Como mensageiro, é transformador de realidade. O
conflito com Amasias (cf. 7,10-17) comprova-o.
Poderíamos, pois, dar-nos por satisfeitos ao distinguir
nosso Amós com o atributo de mensageiro. Poderíamos con-
tentar-nos com a solução. E assim também procedemos.
Apesar disso, porém, não podemos deixar de assinalar o pro-
blema que estamos trazendo à tona, justamente ao caracteri-
zar nosso profeta de mensageiro. Acontece que a função
precípua do mensageiro é transmitir literalmente aquilo que
lhe foi dito. Nisso reside sua tarefa. Isso perfaz sua dignida-

22 Veja RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Aste, 1974. v. 2,
pp. 80-96; SCOTT, R. B. Y. Os profetas de Israel; nossos contemporâneos. São Paulo,
Aste, 1968. pp. 89-107.

46
de (veja 2Sm 18,19-33; Pr 10,26). Em sentido teológico, é o
que também vale para o profeta. É um transmissor. Todavia,
na realidade, a questão se apresenta de modo bem mais com-
plexo. Aí o profeta-mensageiro difere do mensageiro do dia-
a-dia. Enquanto a dignidade deste reside na fidelidade de
portador e na exatidão da transmissão, a daquele consiste na
atualidade e pertinência da mensagem que transmite. O pro-
feta-mensageiro fala também em responsabilidade própria.
É evidente que esta questão há tempo foi observada. Uma
das soluções encontradas postula o seguinte: a ameaça é o
conteúdo primário da mensagem profética; é o que foi reve-
lado aos profetas em sua vocação." Essa proposta tem seus
argumentos. Ela, porém, por certo dicotomiza indevidamente
entre ameaça e denúncia, entre prognose e diagnose. Para os
profetas, denúncia e ameaça estão intimamente relaciona-
das. Sua ameaça já está contida em sua denúncia. Sua
diagnose já é prognose e vice-versa. Comprovam-no, por
exemplo, seus ditos introduzidos por "ai" (Am 5,18; 6,1; Is
5,8-23 etc.). Não só é viável desconectar a ameaça da de-
núncia, mas também não é aconselhável querer fazer con-
vergir para a ameaça o conteúdo concedido por Deus na
vocação. Uma comparação mais intensiva entre os profetas
poderia elucidar isso. Entre Amós e Oséias já existem signi-

23 "Não se poderá dizer que, na profecia, o prognóstico é o resultado do diagnóstico. Os


relatos das mensagens que eram recebidas de Deus e a sua própria estrutura indicam
exatamente o oposto: era a certeza do profeta sobre uma iminente punição que o leva-
va a reconhecer, no ambiente social, a razão para a referida punição. Em geral, a
seqüência de estágios, por meio dos quais os profetas adquiriram seu conhecimento,
vinha do prognóstico ao diagnóstico" (WOLFF, Hans Walter. Bíblia Antigo Testamen-
to; introdução aos escritos e aos métodos de estudo. 2. ed., São Paulo, Paulus, 1982.
p.77 [Biblioteca de Estudos Biblicos, 3]. Confira também WOLFF, Dodekapropheton
2; Joel und Amos, cit., p. 108. Essa posição é detalhada por SCHMIDT, Werner Hans.
Zukunflsgewíssheít und Gegenwartskrítík; Grundzüge prophetischer Verkündigung.
Neukirchen, Neukirchener, 1973 (Biblische Studien, 64).

47
ficativas diferenças. Se vejo bem, a ameaça oseânica ao es-
tado é bem mais radical do que a que encontramos emAmós.
Mas, efetivamente, flagrantes são as incompatibilidades en-
tre Miquéias e Isaías quanto ao futuro de Sião. Para Isaías, o
templo permanecerá (cf. Is 8,14-15.18); para Miquéias, não
ficará pedra sobre pedra (cf. Mq 3,12). Essa breve argumen-
tação já é capaz de assinalar que não convém fazer das amea-
ças o núcleo do conteúdo revelado aos profetas. Conclui-se,
pois, que tanto as denúncias ou a diagnose quanto as amea-
ças ou a prognose foram formuladas por cada profeta. Nelas
o profeta fala em responsabilidade própria. Embora ele teo-
logicamente se entenda tão-somente como transmissor, efe-
tivamente e em realidade também é emissor. Não basta, pois,
que se queira ver no profeta uma espécie de alto-falante que
faz seu serviço sem participação própria e pessoal. Um profe-
ta como Amós não só traz uma mensagem, pronta e concluí-
da. Ele é, na verdade, intérprete de mensagem, evidencia-a,
explicita-a, aplica-a, atualiza-a. Um tal intérprete chamaría-
mos de hermeneuta, alguém que explica a Palavra de Deus
numa atualidade específica e num contexto determinado.
Amós é um hermeneuta, fala a "palavra de Javé" (7,15) nas
"palavras de Amós" (1,1). Não só traz mensagem, também a
desvenda em seu contexto. Profecia nesses termos é questão
não só de vocação, mas também de análise. Pergunto, pois:
é possível entender o profeta-mensageiro Amós, teologica-
mente, como hermeneuta contextual, como um intérprete
com liberdade?" Em todo caso, uma tal proposta evitaria
transformar um profeta em alto-falante ou em querer redu-
zi-lo a portador de catástrofe.

24 Nesse contexto, merece ser considerado: WESTERMANN, C1aus. Golfes Engel brauchen
keine Flügel. München, Siebenstem Taschenbuch, 1965 (Siebenstem-Taschenbuch, 52).

48
Quem é, no concreto, este vocacionado, este visioná-
rio, "profetizador" e mensageiro, este hermeneuta da pala-
vra da liberdade, chamado Amós? Passaremos a esta tarefa.

Amós - Um trabalhador
Para aqueles que nos legaram o livro, apessoa de Amós
sempre permaneceu em segundo plano. Em primeiro estava
a mensagem. O que sabemos de Amós está na dependência
de sua atuação. Fomos informados a respeito do profeta à
medida que seus discípulos consideraram isso relevante para
entender os conteúdos proféticos. Cientes dessa perspectiva
adotada pelos compiladores (certamente em consonância com
a ótica do próprio profeta), não havemos de estranhar que
sabemos muito pouco sobre Amós. E, além disso, boa parte
do que poderíamos saber ainda por cima é arduamente de-
batido e controverso."
Seu nome deve ser a forma abreviada de 'amos-yah,
isto é, "Javé carrega/sustenta"." No Primeiro Testamento,
este nome não se repete, mas tem seu similar em 2Cr 17,16.
Nosso Amós é originário de Técua, um povoado ao sul de
Jerusalém, situado, portanto, em Judá." Não se trata de uma
localidade muito conhecida no Primeiro Testamento. Fazia
parte das fortificações no Sul (cf. 2Cr 11,6; 20,20; Jr 6,1,

25 Boa parte da literatura e dos detalhes em debate pode ser encontrada em SCHWANTES,
Milton. Profecia e Estado - Uma proposta para a hermenêutica profética. Estudos
teológicos, v. 22, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1982, pp. 125-144.
26 Confira STAMM, Johann Jakob. Der Name des Propheten Amos und sein sprachlicher
Hintergrund. Beiheft zur Zeitschrifi fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 150,
Berlin, Walter de Gruyter, 1980, pp. 137-142.

27 Quanto à localização, veja WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit.,


pp. 153-154.

49
veja também 2Sm 23,26; 1Cr 11,28). Afora isso, um dos epi-
sódios na vida de Davi tem uma mulher sábia de Técua como
personagem central (cf. 2Sm 14). É possível que Tecua te-
nha sido uma das aldeias em que a sabedoria popular era
especialmente cultivada. Em todo caso, a sabedoria c1ânica
é a matriz intelectual da profecia de Amós. Tradições cúlticas
ou inteligência cortesã não são o lar espiritual de nosso pro-
feta. Seu ninho efetivamente é a cultura sapiencial popular
do jeito como era cultivada em aldeias interioranas." Amós
é voz do campo.
Nosso profeta aparentemente não chegou a atuar em
Judá (veja porém Am 1,2; 5.5; 6,1.5). Foi a Israel (7,15). Ao
meu ver, restringiu-se ao Norte, a Israel." Profetizou, com
certeza, em Samaria (cf. 3,3-4,3; 6,1) e em Betel (cf. 4,4; 5,4;
7,10-17), possivelmente também em Guilgal (cf. 4,4; 5,4).
Fez-se, pois, presente nos dois centros de poder do reino de
Israel, na capital, Samaria, e no principal centro cultual, Betel,
de onde foi expulso (cf. 7,10-17). Teria retomado ao Sul?
Nessa ocasião teria cessado de profetizar? Não o sabemos.

28 os argumentos decisivos em prol dessa tese estão em WOLFF, Hans Walter. Amos
geistige Heimat, Neukirchen, Neukirchener, 1964 (Wissenschaftliche Monographien
zum Alten und Neuen Testament, 18). A discussão que se seguiu à publicação de H.
W. Wolff (veja, por exemplo, RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 98-99), ao
meu ver, evidencia quão necessário se toma distinguir, na literatura sapiencial colecio-
nada no livro de Provérbios, entre o que nela é sabedoria ciânica, oriunda da aldeia, e
o que é sabedoria sentencial, oriunda da cidade e representada pelos editores (cf. Pr
25, I). Essa tarefa ainda está por ser feita. Veja a respeito meu ensaio "A glória dos
governantes consiste em investigar a corrupção" - Um estudo de Provérbios 25. Estu-
dos teológicos, v. 24, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1984, pp. 39-82.
29 Uma interpretação peculiar sobre a presença de urnjudeu de Técua no reino do Norte
é apresentada por POLLEY, Max E. Amos and the Davidic Empire; A Socio-Historical
Approach. New York, Oxford University Press, 1989.243 p. Sua tese é que Amós é
a prophet ofthe southern kingdom ofJudah, went north to condemn Israel s division
ofthe Davidic /dngdom [um profeta do reino do sul, de Judá, que foi ao norte para
condenar a separação de Israel do reino davidico, p. 3].

50
Em todo caso, sua atuação em tomo de 760 a.C. (veja capí-
tulo 1) deve ter sido breve. Não foi muito além de um ano
(cf. Am 1,1; 7,1-9; 8,1-3; 9,1-4). Quem fez o registro de
seus primeiros ditos mencionava queAmós fora profeta "dois
anos antes do terremoto". Isso indica que sua atuação foi
breve. O Estado de Israel não pôde suportá-lo por mais tem-
po (cf. 7,10).
Intenso é o debate em tomo da "profissão'?" ou me-
lhor da origem social. As opiniões são desencontradas. Para
uns, Amós viria dos setores abastados. Para outros, seria ori-
ginário dos setores empobrecidos. Ambos se apóiam nos
mesmos textos, em especial 1,1 e 7,14-15. Aqui, não posso
esmiuçar os argumentos em debate. Devo restringir-me ao
resultado. 31 Constato que Amós sobrevive à base de três
ocupações: pastor de ovelhas (cf. 7,15), pastor de gado/va-
queiro (cf. 7,14, veja também 1,1) e talhador de sicômoros"
(cf. 7,14). Por ocasião de sua atuação profética em Bete1,
sobrevivia como vaqueiro e, simultaneamente, como traba-
lhador sazonal, tarefa para pobres." Pelo visto, temos de
localizar Amós entre a gente empobrecida do campo" que
tratava de ganhar a vida à base de diversas ocupações e de

30 Veja STROEBE, Hans Joachim. Der Prophet Amos und sein bürgerlicher Beruf Wort
und Dienst, v. 5, Bethel, Kirchliche Hochschule Bethel, 1957, pp. 160-181.

31 Confira meu ensaio publicado em Estudos Teológicos, mencionado anteriormente na


nota 25, em especial as pp. 138-144.

32 WRIGHT, T. J. Amos and the "Sycomore Fig". Vetus Testamentum, v. 26, Leiden, E.
Brill, 1976, pp. 362-368.

33 Veja a literatura mencionada em RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 257-258.

34 Curiosa é a posição de GÓMEZ, Humberto Jiménez & CARDONA, Lucia Victoria


Hernández. Profetas. Medellín, Universidad de Antioquia, 1992. Dizem que Amós
não era ni inculto, ni pobre (p. 88). No período anterior, porém, haviam dito que o
profeta era pastor, boyero, agricultor, cultivador de sicómoros, era rude.

51
trabalhos sazonais. Amós é parte do campesinato pauperi-
zado" pela economia expansionista de Jeroboão 11, no Nor-
te (e de Ozias, no Sul). Hoje seria uma espécie de bóia-fria.
Pode um pobre como Amós ser fonte de literatura?
Pode! A literatura reunida em nosso livro tem até uma das
principais marcas da literatura popular: agrupa pequenos
textos, breves ditos, perícopes, que evidentemente nasceram
como fala. A situação do campesinato sob o tributarismo é
propícia até mesmo para a criação de literatura."
Enfim, ao enfocarmos a pessoa de Amós, não devería-
mos isolá-la em demasia. Não se pode individualizá-la. Por
um lado, o aparecimento do livro de Amós só se toma viável
quando se percebe o quanto nosso profeta estava rodeado de
amigos e discípulos. O relato de 7,10-17 é um exemplo des-
se carinho que outros tiveram por Amós. Contudo, também
os panfletos proféticos, hoje integrados ao livro (pensemos
em 1,3-2,16, em 3,3--4,3, em 7,1-9; 8,1-3; 9,1-4), tiveram
sua origem na roda dos adeptos do nosso visionário. E o
próprio surgimento do livro dá provas dessa comunhão pro-
fética, da qual Amós era parte. Por outro lado, o próprio con-
teúdo da fala pública de nosso mensageiro/hermeneuta não
parece ser uma criação individual, fruto de uma só cabeça
pensante e crente. Pensemos nas denúncias formuladas nos
ditos. Elas não só refletem as experiências pessoais de um
indivíduo, mas também são as experiências de dor de todo

35 Outra é a opinião de R. Martin-Achard: "a sua [=Amós] atitude não era, portanto,
determinada por reivindicações sociais que o tocassem diretamente" (Os profetas e os
livros proféticos. São Paulo, Paulus, 1992. p. 42 [Biblioteca de Ciências Bíblicas]).
36 Veja BAND, Ion. La formación social "asiática" en la perspectiva de la filosofia orien-
tal antigua. In: BARTRA, Roger. El modo de producción asiático. 3. ed., México, Era,
1975. pp. 297-316.

52
um conjunto social camponês extorquido. Amós é porta-voz
de suas dores. É um de seus companheiros.
Em resumo, Amós é gente do campo. Parece ser um
trabalhador migrante. Sua origem em Técua propiciou-lhe o
acesso à cultura popular e à inteligência clânico-sapiencial,
bem como às tradições pastoris e a algum conhecimento da
atividade comercial, já que sua terra natal fazia limite com o
deserto e, simultaneamente, estava próxima à rota comer-
cial pelas montanhas (Bersabéia-Hebron-Jerusalém).

Retrospectiva
Tematizamos a pessoa de Amós. Em retrospectiva pre-
tendo sintetizar os principais acentos dessa nossa segunda
reflexão. Destaco o seguinte:
Amós, por certo, não constitui o tema do livro que
contém suas palavras. A memória delas prevalece sobre a
pessoa dele.
A vocação desempenha papel decisivo em sua argu-
mentação teológica. Poder-se-ia falar de um processo voca-
cional, com início (cf. 7,15), maturação (cf. 7,1-9; 8,1-3;
9,1-4), atualidade (cf. 3,8).
Em Amós, como em outros profetas, vocação se apro-
xima de coação. Testemunha a necessidade de proclamar a
palavra de Javé (cf. 3.8). Essa "necessidade" de viver nos
caminhos do dabar realiza, como que contraditoriamente,
vida em liberdade capaz de enfrentar as autoridades do Es-
tado e da própria religião templar.
Amós é vidente, é "profetizador", é mensageiro. Nega-
se a assumir o título de profeta, certamente porque este esta-

53
va vinculado aos santuários. Em sua atuação, a palavra é
central.
Não deveríamos querer aproximar Amós de um alto-
falante, mero transmissor. Atua em liberdade e em respon-
sabilidade própria. É um hermeneuta que relê as tradições e
toma a realidade transparente.
Amós é a voz do campo. É parte do campesinato em-
pobrecido pelo projeto expansionista, implantado por
J eroboão II, no Norte, e por azias, no Sul.

Se neste estudo insisti em enfocar a pessoa de Amós,


então nisso também me orienta um interesse atual. Ao con-
cluir, gostaria de explicitá-lo.
A -ênfase na pessoa é parte das tradições dos últimos
séculos. As sociedades se imbuíram de uma nova concep-
ção da pessoa e de sua liberdade. Essa nova visão da digni-
dade do sujeito e da pessoa teve a parceria das Igrejas. Ela
faz parte, hoje, de nossa cultura e autocompreensão. Nin-
guém de nós quererá dispensar, nem na fé e nem na política,
a categoria dos direitos humanos. A gente é sujeito!
Os movimentos populares de nossos dias fazem, a seu
modo, experiência similar. A experiência pessoal é um dos
componentes vitais das organizações populares. Trata-se de
exercitar em grupos de ação nosso caráter de sujeitos das
coisas. Trata-se de uma reapropriação da história, nas pe-
quenas tarefas e nas lutas mais elementares. Os grupos po-
pulares de Igreja representam um espaço dentro da grande
gama de manifestações em busca de espaço pessoal, cultu-
ral e social. Esses grupos eclesiais às vezes são algo como

54
laboratórios, em que pessoas redescobrem sua dignidade,
exercitam caminhar de rosto erguido, com destemor diante
dos senhores e opressores.
Há relatos incríveis sobre a descoberta da dignidade
pessoal. A sistemática exploração dos pobres arrasa-os fisi-
camente pela fome e desnutrição e aniquila-os psiquicamente
por lhes imputar a culpa por sua situação. Desintegra as pes-
soas por fora e por dentro. Quando essa gente empobrecida
passa a entender sua própria vida, quando começa a inter-
pretar sua histórica opressão, passa a adquirir sua dignida-
de. Exercita-se no enfrentamento de seus verdugos em casa,
no trabalho, na sociedade. Experimenta pequenos ensaios
de partilha e cooperação. Há testemunhos comoventes so-
bre estas redescobertas da dignidade pessoal.
O Amós de hoje são esses pobres, mulheres e homens
que descobrem sua dignidade de gente e assumem seus pas-
sos. Por isso não poderíamos deixar de acentuar que Amós
era gente. Ele é gente.

55
3. "Eliminarei o reino de sobre a face
da terra"

Estou aqui no Lago da Pedra. A situação é muito difícil:


No dia 2 de outubro (de 1985) foi invadido pelos policiais
o povoado de Serra Bonita. Foram presos 15 homens e le-
vados justamente à capela católica do lugar. Lá ficaram
presos e foram maltratados por dois dias. Da casa de Deus
os policiais fizeram uma cadeia, botando a placa "delega-
cia" na porta da igreja. O líder do sindicato dos trabalhado-
res rurais de Serra Bonita foi forçado a cavar um túmulo e
depois foi enterrado até o pescoço. Outros foram queima-
dos com cigarros.
No dia 23 de novembro foi invadido o povoado de Pau Santo
por 115 soldados, a maioria com farda. Bagunçaram e da-
nificaram todas as casas. Botaram mulheres e crianças a
fugir pelo mato. Os policiais rodearam a casa do dirigente
da comunidade. Mas ele estava trabalhando na roça longe
da casa. Em casa só ficara o pai dele. Este velho de 76 anos
quis esconder uma espingarda que se encontrava na casa.
Mas, enquanto fugia pelos fundos com a espingarda, foi
morto com cinco tiros. Os jornais e a rádio mentem quando
dizem: "Os policiais tiveram que enfrentar os homens a
tiros. O mais furioso era um velho. Não havia outro jeito,
exceto matá-lo".
No dia seguinte, 24 de novembro, foi invadido o povoado
da Serraria por cerca de 100 soldados. Todos fugiram. Che-

57
gou um caminhão da prefeitura para tirar os restos de ar-
roz e feijão das casas. Porcos e galinhas foram levados
pelos próprios policiais. O pretexto desta barbárie foi a
morte de um jagunço que fora mandado pelo grileiro para
ofender os lavradores. Os poderosos fazem de tudo para
expulsar o povo da terra. Até o governador do Maranhão
colabora dizendo: "De segunda a sexta-feira sou gover-
nador, mas de sexta a segunda sou fazendeiro" (carta de
um seminarista).

Verificamos o contexto. Atentamos para o mensageiro.


Porém, nem a reflexão sobre o contexto e nem o estudo sobre
o mensageiro chegam ao âmago da questão. Na atuação de
Amós e em seu livro, a mensagem é o decisivo. O sentido
de Amós coincide com o sentido de suas palavras. São estas
suas palavras que, agora, passam a requerer nossa atenção.
A ameaça caracteriza a mensagem de nosso profeta.
Podemos verificá-lo, por exemplo, na cena de confrontação
com Amasias (cf. Am 7,10-17). Ao denunciar seu oponente
junto à corte em Samaria, o sacerdote Amasias constata que
"a terra não pode suportar suas palavras" (7,10). Seus ditos
insuportáveis justamente consistem na ameaça de morte do
soberano Jeroboão II e da deportação de Israel. A relevância
da ameaça também salta aos olhos no próprio cabeçalho do
livro. Lá é dito que o texto a seguir contém o que Amós "viu
contra Israel" (1,1). Esses dois exemplos mostram quão cen-
tral é a previsão de desgraça.
Por certo, não podemos isolar esse conteúdo do res-
tante do livro. Não é a única faceta. A ameaça precisa ser
correlacionada aos demais aspectos, tais como a denúncia e
a utopia. A ameaça é central, mas a profecia de Amós não se
resume nela.

58
Se a previsão de infortúnios é tão relevante, a definição
mais exata de seu conteúdo passa a ser uma tarefa decisiva.
Qual é o conteúdo da ameaça? Quem é ameaçado? Essas
inquietações nortearão os próximos passos desta reflexão.

Os ameaçados - Uma listagem


Sobre a mesa temos, pois, uma questão simultanea-
mente central e complexa. Sua definição refletir-se-á decisi-
vamente sobre o todo da interpretação de Amós. Parece-me
até que nos dias atuais a compreensão da ameaça é o calca-
nhar-de-aquiles da avaliação das "palavras de Amós". Por
isso, convém progredir a passo lento na sondagem da pro-
blemática. Proponho iniciar mediante um levantamento de
dados. Inicialmente apresento uma listagem dos ameaçados.
A tarefa é espinhosa. Via de regra, nosso profeta não
se atém a detalhes ao ameaçar. Para seus ouvintes, tudo era
claro, pois Amós agregava um gesto ou aludia a um episó-
dio conhecido de todos. Para nós, leitores atuais, as coisas já
ficam mais complicadas. E cada passagem acaba tendo di-
versas possibilidades de interpretação. Nesse emaranhado,
tomo a liberdade de me servir de atalhos e simplificações.
Começo pelo mais evidente. Um dos ameaçados até
conhecemos nominalmente. Refiro-me a Amasias e à sua
família, intimidados com extermínio e desonra (cf. 7,16-17).
Amasias era o sacerdote do santuário estatal de Betel (cf.
7,10.13). O prenúncio de desgraça igualmente diz respeito a
sacerdotes em 9,1-4. Estes também são apresentados como
culpados em 2,8. O aniquilamento de sacerdotes, dos luga-
res sagrados e de sua clientela é previsto em diversos ditos
(cf. 3,14; 4,4-5; 5,4-5.21-27; 6,5[?]; 8,9-10.14; 9,1-4). Pelo

59
que se observa, Amós dá realce ao fim do templo, do sacer-
dócio, dos ritos festivos, da freguesia do sagrado.
Parece que Am 8,4-8 visa a comerciantes. A eles tam-
bém se dirige o ataque em algumas outras passagens (cf.
1,9; 2,6). O comércio também estaria na mira em 5,7.12;
6,12; 7,7-8[?]. Indiretamente, é aludido nas passagens que
focalizam o luxo promovido com mercadorias importadas
(cf. 3,12.15; 6,4). Amós sentencia, pois, concomitantemente
o comércio externo e o interno. Em suas predições, não há
espaço para comerciantes.
Juízes são penalizados em algumas passagens. Refe-
rem-se a eles 2,6 e 5,12. Possivelmente 5,10 visa a juízes,
mas também inclui testemunhas. De maneira mais genérica
diversos versículos realçam a precariedade da jurisprudên-
cia; a justiça está deitada por terra (cf. 2,7; 5,7.15.24; 6,12).
Sabemos que, nos tempos de então, os processos eram feitos
nas próprias vilas e cidades, sem ingerência direta do Esta-
do. O júri era composto pelos "homens livres" da localida-
de, constituindo-se de caso para caso. Não parece que tenha
havido juízes profissionais.' Quando Amós sentencia, pois,
juízes, testemunhas e tribunais corruptos, certamente tem
em vista o controle do judiciário exercido pelos mais abas-
tados dentre os "homens livres".
Sob juízo são colocados os senhores de escravas e de
escravos. Escravos são mencionados em 1,6; 2,6; 8,6 e, tal-
vez, em 5,16. Escravas em 2,7 e 8,3.

I Veja KOEHLER, Ludwig. Die hebrãische Rechtsgemeinde. In: Der hebrãische Mensch;
eine Skizze, Tübingen, Mohr 1953. pp. 143-171; MACHOLZ, Georg Christian. Die
Stellung des Kõnigs in der israelitischen Gerichtsverfassung; Zur Geschichte der
Justizorganization in Juda. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 84,
Berlin, Walter de Gruyter, 1972, pp. 157ss e 314ss.

60
Chocante é o sarcasmo de Amós contra a elite da capi-
tal Samaria (cf. 4,1-3). Essa ameaça às "vacas de Basã" está
situada no contexto de outras dirigidas às pessoas que vi-
vem em meio ao luxo, às festanças e às mordomias. A profe-
cia recai preferencialmente sobre o centro do poder, Samaria,
e entre os governantes. Refiro-me, além de 4,1-3, a passa-
gens como 3,12.13-15; 5,11; 6,1-7.8.11.
Latifundiários aparentemente não são mencionados.
Talvez pudéssemos querer encontrá-los em 5,11 e 5,16. To-
davia, em 5,11 o "fraco"/magro, em todo caso, não é um
sem terra. É antes um agricultor dependente. Em 5,12 o "la-
vrador" provavelmente é uma espécie de diarista, possivel-
mente um sem terra. Essa ausência de uma menção mais
continuada de latifundiários só surpreende se a gente enten-
de a sociedade israelita de então nos moldes do feudalis-
mo.? Como se trata, porém, de tributarismo,' é normal esse
silêncio de Amós a respeito de latifundiários.
Destaque todo especial Amós dá ao exército. Privile-
gia-o em suas ameaças. Do primeiro ao último capítulo há um

2 Compare ALT, Albrecht. Der Anteil des Kõnigtuns an der sozialen Entwicklung in den
Reichen Israel und Juda; Micha 2,1-5 - Gés Anadasmós in Juda. In: Kleine Schriften
zur Geschichte des Volkes Israel. 2. ed., München, C. H. Beck'sche Veriagsbu-
chhandlung, 1968. v. 3, pp. 348-372, 373-381. Veja também DiAZ, José Luis Sicre.
Diversas reacciones ante el latifundismo en el Antiguo Israel em Simposio Bíblico
Espaiiol. Madrid, Universidad Complutense 1984. pp. 393ss. Veja agora também HAHN,
Noli Bernardo. Miquéias 2,1-5; profecia e luta pela terra - Uma leitura da influência
da situação histórico-social nas últimas décadas do século VIII a.C., em Judá na vida
da antiga ordem tribal. São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assun-
ção, 1992, 156 p. (dissertação de mestrado), e do mesmo autor, A profecia de Miquéias
e meu povo; memórias, vozes e experiências. São Bernardo do Campo, Universidade
Metodista de São Paulo, 2002. 283 p. (dissertação de doutorado).

J HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo, Paulus,


1982. pp. 18-20 e 54-64 (Pesquisa & Projeto, I); BARTRA, Roger. Tributarismo e pos-
se da terra na sociedade asteca. In: GEBRAN, Ph., org. Conceito de modo de produção.
Rio de Janeiro, Paz e terra, 1978. pp. 157-180 (Coleção Pensamento Critico, 24).

61
tom antimilitar: 1,3.6.13; 2,7.14-16; 3,9-11; 5,1-3; 6,1-3.8-
10.13-14; 9,10. Podemos dizer, sem sombra de dúvida, que
em Arnós o exército é um dos principais alvos da ameaça.
Urna constatação corno a anterior requer explicação.
Por que o exército recebe tamanha atenção? Para alcançar
urna resposta consistente, ter-se-á de colocar o problema no
quadro geral das previsões do profeta. Aí não basta que sim-
plesmente se faça urna listagem dos círculos ameaçados por
nosso profeta. Antes, porém, de encaminhar essa nova tare-
fa, proponho urna retrospectiva sobre o que já alcançamos.
Vimos que diversos grupos sociais são atingidos pelas
profecias de destruição de Amós: sacerdotes, comerciantes,
juízes, donos de escravos, elite da capital e, em especial,
militares. São afrontadas as pessoas que vivem em ouro, luxo
e suntuosidade. Todavia, esses ameaçados encontram-se não
só na cúpula do poder (elite da capital Samaria, sacerdotes
corno Amasias, comandantes militares), mas também nos
povoados e vilarejos camponeses (juízes, comerciantes, do-
nos de escravos)."

Exército, cidade e templo


Mediante a listagem anterior, verificamos haver urna
variedade de ameaçados. Perguntemo-nos, agora, se é pos-
sível estabelecer urna seqüência, se há prioridades. Há o que
catalise os diversos grupos postos sob ameaça? Há um teto
comum para a diversidade observada?

4 Ressaltou-o, ao meu ver, corretamente o ensaio de FENDLER, Marlene. Zur Sozialkritik


des Amos - Versuch einer wirtschafts- und sozialgeschichtlichen Interpretation
alttestamentlicher Texte. Evangelische Theologie, v. 33, München, Christian Kaiser,
1973, pp. 32-53.

62
Acabamos de constatar que deve haver esse teto co-
mum. Pois, nos ditos, o exército é especialmente visado. É o
grupo mais malhado pelos prenúncios, No livro, existe até
uma composição dedicada a perscrutar caminhos e desca-
minhos do exército. Trata-se de Am 1,3-2,16, o chamado
ciclo dos povos. Essa composição em muito se assemelha
ao ciclo das visões (confira item As visões, p. 33). Também
é uma conjugação de cinco ditos,' dispostos em pares (1,3-5
+ 1,6-8 e 1,13-15 + 2,1-3), tendo seu auge no quinto (2,6-
9.13-16). A seqüência dos povos, ao meu ver, obedece ao
trajeto das rotas comerciais. O primeiro par (1,3-5 + 1,6-8)
agrupa Damasco e Gaza (e as demais cidades filistéias). Essa
seqüência deve-se à rota comercial que, a partir da Mesopo-
tâmia, segue por Damasco, pela Planície de Jezrael e pela
terra dos filisteus, até o Egito. O segundo par (1,13-15 +
2,1-3) reúne Amon e Moab, por onde transita, vindo de Da-
masco, a rota transjordaniana que se dirige ao Golfo de
Ácaba. No centro, rodeado por essas duas rotas (Damasco-
Filistéia e Damasco-Amon-Moab), encontra-se Israel, para
o qual converge a principal atenção do ciclo. Nesse Israel, o
profeta denuncia esmagamento e opressão social, em grande
quantidade (2,6-9). Israel tritura seus pobres, seus próprios
irmãos. Nos povos vizinhos, o profeta denuncia crimes de
guerra (cf. 1,3.6.13; 2,1). As nações trituram a população
civil de seus inimigos derrotados. Pelo que já se pode ver,
ao menos entre os povos o exército é o principal culpado.

5 Apesar da contestação de RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-Jona. Gütersloh,


Gütersloher Verlag, 1971. pp. 118ss (Kommentar zum Aiten Testament, 13/2), a ar-
gumentação apresentada por SCHMIDT, Werner Hans. Die deuteronomistische Redaktion
des Amosbuches - Zu den theologischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwort
und seinem Sammler. ZeitschriftjUr die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin,
Walter de Gruyter, 1965, pp. 174-183, ao meu ver, continua evidenciando que 1,9-
10.11-12; 2,4-5.10-12 são adendos deuteronomísticos.

63
Passemos, agora, a observar com maior atenção o papel dos
militares no todo do ciclo. No primeiro par (1,3-5 + 1,6-8)
só o exército é acusado. Seus crimes são de guerra, como já
mencionei: massacre da população civil de Galaad (cf. 1,3)
e deportação de populações derrotadas (cf. 1,6). A ameaça
talvez ainda nem mencione esses culpados. Menciona: a di-
nastia, os castelos, as cidades, os muros e os soberanos (cf.
1,4-5.7-8). Não há, pois, referência explícita ao exército. É
evidente, porém, que ele está incluído. Afinal, a destruição
de soberanos e cidades implica anterior ou simultâneo esfa-
celamento das forças armadas. Com base nisso poder-se-ia
até supor que a ameaça ao "povo de Aram" (1,5) e ao "resto
dos filisteus" (1,8) diz respeito ao exército, pois o Primeiro
Testamento seguidamente usa o termo "povo" como equi-
valente de "grupo armado"? e pensa num resto do exército
derrotado ao se valer do conceito do "resto" (cf. Am 5,3;
6,8-10).7 À luz do conjunto do ciclo, essas suposições atin-
gem o grau do provável. Progridamos, pois, em direção a
esse todo. No próximo, segundo par (1,13-15 + 2,1-3), no-
vamente só o exército é denunciado. Seus crimes são de
guerra: chacina de mulheres grávidas (cf. 1,13) e sacrilégio
de cadáver (cf. 2,1). E dessa vez a ameaça já se refere ao
futuro dos militares. Como no par anterior, novamente são
elencados como passíveis de destroçamento: cidades, mu-
ros, soberanos e "príncipes" (Almeida). Esses "príncipes"
podem ser tanto altos funcionários (ministros) quanto coman-
dantes militares. Estes últimos, em todo caso, estão incluí-
dos em 2,3, pois aí são mencionados "todos (!) príncipes".

6 Veja HULST, A. R. Pueblo. In: JENNI, E. & WESTERMANN, C., orgs. Diccionario teoló-
gico manual dei Antiguo Testamento. Madrid, Cristiandad, 1985. v. 2, pp. 387-388.
7 Compare MUELLER, Werner E. & PREUSS, Horst Dietrich. Die Vorstellung vom Rest
im Alten Testament. Neukirchen, Neukirchener, 1973.

64
A referência ao exército, porém, já está em 1,14. Nessa pas-
sagem, a demolição de muros de Rabá e de seus castelos
ocorre em meio à guerra: "Com alarido de dia de batalha e
com turbilhão de dia de tempestade". Conquista de muros e
castelos evidentemente só se toma possível após a derrota
do exército defensor. O mesmo encontramos em 2,2, onde
se repete, à semelhança de 1,14, a alusão ao cenário da guer-
ra: "Em estrondo, alarido e som de trombeta". A diferença
reside em que, agora, é expressamente mencionado quem
sucumbirá: "Morrerá Moab". Estranha que não seja citado o
exército ou um de seus setores, como ocorre em 2,14-16,
mas que "Moab", isto é, o conjunto social seja ameaçado. A
essa questão teremos de retomar no decorrer da avaliação
do quinto e mais importante dito: 2,6-9.13-16, que forma o
ápice do ciclo. Até aí Amós certamente terá contado com a
simpatia de seus ouvintes e leitores; afinal, é bom que al-
guém fale mal dos estrangeiros. A partir deste último dito,
no mínimo terá perdido a complacência do poder das armas,
mas não só deles, como veremos. A denúncia (cf. 2,6-8) res-
tringe-se a questões internas. Apresenta sete cenas da opres-
são dos pobres. Essa esmagação dos fracos é especialmente
escandalosa porque nega, na prática, a história salvífica, na
qual Javé justamente se evidenciara como intransigente de-
fensor dos frágeis contra "cedros" e "carvalhos" (2,9). A
ameaça (cf. 2,13-16) começa com uma figura de dificil com-
preensão (cf. 2,13), mas é bem explícita em sua parte princi-
pal (cf. 2,14-16). Nela somente é atingido o exército: sua
"infantaria" ("o ágil", "o forte", "o valente", "o ligeiro de
pés"), que era o setor mais numeroso, sua "artilharia" ("o
arqueiro"), sua "cavalaria" ("o que vai montado a cavalo"),
ou melhor: "o que conduz o cavalo" (isto é, o carro de com-
bate) e, por fim, sua "oficialidade" ("o valente") e seu

65
"generalato" ("o mais corajoso entre os valentes"). Todos
serão assolados pelo medo e devorados pela morte, com ex-
ceção de "o mais corajoso entre os valentes" (o "general"
ou/e "rei"?), que em desonra total "fugirá nu". Os militares
são o único alvo da ameaça nessa culminância do ciclo dos
povos. Observávamos o quanto o todo dessa composição de
cinco ditos encaminha-se para o auge. Nos dois primeiros
pares, a denúncia é qual um refrão antimilitar. E concomi-
tantemente, de par em par, a ameaça vai explicitando, cada
vez melhor, o aniquilamento dos senhores das armas, até
que esse crescendo alcança em seu apogeu seu som mais
límpido: "O mais corajoso entre os valentes fugirá nu"! Uma
vez que se percebe que o exército está no núcleo de interes-
ses do ciclo e, em particular, do dito sobre Israel, passa-se a
estranhar ainda mais o conteúdo de 2,6-8. Afinal, nenhuma
só dessas sete denúncias diz expressamente respeito a mili-
tares. Culpados pela opressão dos pobres são: juízes, comer-
ciantes, senhores de escravas, sacerdotes. O início do v. 7
("pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos") talvez
pudesse aludir à violência policial-militar, mas isso não pas-
sa de uma possibilidade. Como explicar o descompasso en-
tre os culpados pelos casos denunciados (que não são mili-
tares) e os ameaçados (que somente são gente do exército)?
Por que os militares são castigados por crimes que pessoal-
mente nem cometeram? Respondo: o exército viabiliza e dá
cobertura aos que espoliam e arrasam os pobres. Os milita-
res garantem juízes, comerciantes, senhores e sacerdotes em
suas investidas contra escravas e camponeses espoliados.
Estruturalmente participam, pois, da pilhagem dos fracos
denunciada em 2,6-8. Aliás, isso que acabamos de afirmar o
próprio dito de 2,6-16 chega a formular. Nele são denuncia-
dos e ameaçados "os crimes de Israel". Nesse dito, "Israel"

66
evidentemente não são os pobres, mas sim os militares e
seus aliados. Que aqui "Israel" seja, no concreto, o exército,
fica confirmado também em 2,2, onde semelhantemente
Moab é a força militar. Portanto, para Amós o exército é não
simplesmente um setor da sociedade, mas também um de
seus núcleos responsável pela manutenção do todo da estru-
tura de dominação. Conforme esse caráter constitutivo atri-
buído ao exército no ciclo dos povos, também as demais
passagens, em que Amós ameaça os senhores das armas,
crescem em significado. Nelas, nosso profeta ataca não um
segmento social qualquer, mas sim o âmago. Aniquila o abri-
go dos espoliadores.
Pelo visto, nossa intuição de ir à cata do teto comum
dos ameaçados é promissora. Já alcançamos um resultado
efetivo. Prossigamos nesse trilho.
Constatação similar à que fazíamos a respeito do exér-
cito pode ser feita em relação a mais outro objeto de amea-
ças. Refiro-me à cidade. Amós sempre a vê negativamente
(9,14 é adendo). Seu destroçamento é iminente. Os ditos
asseveram-no repetidas vezes: 1,4-5.7.14; 2,2; 3,9-11.12; 4,1-
3.4; 5,3.5.6.16; 6,1.8; 7,7-8. É, pois, flagrante que a profecia
de Amós representa uma contestação à cidade. Esse dado
cresce em significado quando se observa que a cidade reúne
e aglutina, em seus muros, os setores fustigados por Amós.
Lá estão: governantes (cf. 1,4-5.8.14-15; 2,3; 6,1-7; 7,10-
17), os castelos dos abastados (cf. 1,5[?].8[?].14-15; 2,2-3;
3,11; 5,3; 6,8-10), os ricos e abastados (cf. 3,9-11.12.13-15;
4,1-3[.6]; 5,11-16.17; 6,4-6.11), os templos e sacerdotes (cf.
3,13-15; 4,4-5; 5,4-5.21-27; 7,10-17; 8,1-3; 9,1-4), os do-
nos de escravas (cf. 8,3), o palácio real (cf. 8,3), ajurispru-
dência injusta (cf. 5,12.15), os exploradores (cf 3,9-10; 4,1;

67
5,11; 6,3). Enfim, a cidade é o abrigo para quem a profecia
prevê a desgraça. É como se fosse o catalisador de todos os
ameaçados. A gente começa a entender mal nosso profeta
quando passa de largo por esta evidência: em Amós, a cida-
de é a sede dos ameaçados, ninho do mal. Existe até uma
composição literária que agrupa vários ditos referentes à
principal das cidades de Israel. Refiro-me ao ciclo anti-
Samaria de Am 3,3-4,3 (confira item "Rugiu o leão - Javé
me agarrou, p. 40). Nele, a capital é apresentada como fonte
do terror social contra os fracos e como alvo de todos maus
presságios. Cinco é novamente o número dos ditos reunidos
pela coletânea. Sua disposição, porém, é outra da que tínha-
mos no ciclo das visões (cf. Am 7-9) e no dos povos (cf. Am
1-2). Lá a composição convergia para o final. Aqui, em 3,3-
4,3, o peso está no começo. A porta de entrada já causa im-
pacto: 3,3-6.8 legitima o que se segue. Avaliza-o. A profecia
é qual coação; é reação à fala de Javé (cf. 3,8). Um de seus
conteúdos principais é anunciar a desgraça que, da parte de
Javé, sobrevirá à cidade (cf. 3,6). O primeiro dito (cf. 3,9-
11) explicita essa "desgraça na cidade" e, simultaneamente,
faz as vezes de uma condensação dos ditos subseqüentes.
Esses acrescentam detalhes ao que aquele já dissera em sín-
tese. A denúncia (cf. 3,9-10) é bastante abrangente: os "opri-
midos" são alvos de "enorme terror" (v. 9), de "violência" e
"rapina" (v. 10). Esse contundente diagnóstico é válido tam-
bém com vistas a 3,12 e 3,13-15, em que o acento recai so-
bre a desgraça vindoura, sem que haja nova denúncia. Esta
reaparece no último dito (cf. 4,1-3), em que os "oprimidos"
(3,9) são definidos como os "magros" e "pobres" (4,1) e o
"enorme terror" (3,9), como "oprimir" e "dobrar" (cf. 4,1).
A última denúncia (4,1) apresenta, pois, novos detalhes, mas
não traz uma nova diagnose em relação a 3,9-10. Ainda as-

68
sim, seu papel é relevante: realça no final da composição
que a desgraça que sobrevirá à cidade tem sua causa na ex-
torsão dos pobres. Por ofender os fracos, a capital não tem
futuro. A falta de perspectiva para a cidade é enfocada pelas
ameaças. Novamente 3,9-11 contém o prenúncio de maior
abrangência, em seu v. 11. A "desgraça" (3,6) destroçará: "a
terra", "tua força" e "teus castelos". Os dois primeiros re-
ferem-se, respectivamente, ao território do Estado de Israel
(= "a terra") e ao exército (= "tua força"); o terceiro ("teus
castelos") é evidente por si. Embora as denúncias digam res-
peito só à própria capital (cf. 3,9-10; 4,1), as ameaças de
3,11 vão muito além dessa cidade específica. Por conseguinte,
os três ditos subseqüentes adicionam não novidades, mas
detalhes e aspectos. O primeiro (cf. 3,12) focaliza os que
vivem no luxo. O versículo talvez pense especificamente
nos que governam, deleitando-se no melhor dos confortos
("os que se assentam" = governantes"). O segundo (cf. 3,13-
159 ) prioriza, no v. 15, tamanho, luxo e sofisticação das ca-
sas, que devem ser aqueles castelos, mencionados em 3,9-11.
Além disso, também são demolidos os altares (a menção de
Betel poderia ser posterior 10 ). O último dito (cf. 4,1-3) atém-
se à elite de Samaria, pois as "vacas de Basã" não são só um
feminino, são também, e em especial, um masculino, pois

8 Quanto a essa interpretação de "os sentados", confira GOITWALD, Norman K. As tri-


bos de Iahweh; uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. São Paulo,
Paulus, 1986. pp. 517ss (Bíblia e Sociologia, 2).

9 A delímitação e o sentido exato tanto de 3,12 quanto de 3,13-15 estão em debate. A


respeito, confira RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 164-165; MITTMANN,
Siegfried. Amos 3,12-15 und das Bett der Samarier. Zeitschrift des Deutschen
Poldsüna-Vereins, v. 92, Wiesbaden, Komissionsverlag Otto Harrassowitz, 1976,
pp. 149ss.

10 WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton; 2 Joel undAmos. Neukirchen, Neukirchener,


1969. pp. 237ss (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2).

69
os sufixos que se referem às "vacas" estão no masculino."
Dela nada restará. Vê-se, pois, que os três ditos finais (3,12
+ 3,13-15 + 4,1-3) esmiúçam a ameaça, formulada de ma-
neira ampla em 3,9-11. Portanto, Amós e os redatores desse
ciclo não vêem a cidade de modo isolado. Vêem-na em suas
relações, em seu significado social. Analisam-na como es-
trutura de dominação. Por isso, falam dela como lugar que
tem castelos com muitas riquezas (cf. 3,10), que mantém
exército (cf. 3,11), que propicia vida doce a senhores ele-
gantes (cf. 3,12.15; 4,1), que tem seus templos (cf. 3,14),
que garante seu território (cf. 3,11), que funciona como an-
tro que extorque camponeses e os empobrece. Essa cidade-
capital curiosamente não é só designada de Samaria. Outros
títulos bem mais amplos podem ser-lhe atribuídos: "filhos
de Israel" (que em 3,12 não são todos, mas apenas os que
vivem em regalias), "casa de Jacó" (3,13) e, até mesmo, "Is-
rael" (3,14). Isso lembra o ciclo dos povos em que uma en-
tidade específica (no caso de 2,6-16 o exército) era qualifi-
cada com um conceito amplo (no caso igualmente "Israel").
A esse fenômeno teremos de retomar mais adiante (confira
item Os governantes e o Estado monárquico, p. 73). Por
ora, basta que se repita o seguinte: em Amós, a cidade não é
uma grandeza fortuita, mas organizada e estruturada.
Nela, o altar (cf. 3,14) e o templo desempenham pa-
péis muito relevantes. O santuário citadino - e só este, por-
que Amós não se refere a lugares sagrados menores do cam-
po (cf. 2,8a[?]; 7,9[?]) - recebe destaque (confira item Os
ameaçados - Uma listagem, p. 59). Existe até uma compo-
sição que culmina na demolição do templo. Refiro-me ao

'I I'FX)(J,José Luiz Gonzaga do. () clamor do pobre pelajustiça: tradução popular do
profeta Amós. São Paulo, 1978. p. 17.

70
ciclo das visões: Am 7,1-3+ 7,4-6+ 7,7-9+ 8,1-3+ 9,1-4,
em cujo auge fala-se do templo (confira item As visões,
p. 33). Nesse ciclo e nas demais menções a lugares sagrados,
Amós é antagônico aos templos. No ciclo das visões, esse
antagonismo chega a ser expresso de modo chocante por
falar da figura quase grotesca de que Javé/profeta está para-
do sobre o altar (localizado na frente da construção templar)
para demolir o santuário a pancadas. Haveria maneira mais
contundente para falar da oposição da profecia ao templo?
O mesmo fervor perpassa as demais passagens e reflete-se,
em especial, na confrontação com Amasias (cf. 7,10-17). O
conflito entre Amós e Amasias não está no âmbito pessoal,
mas é uma particularização da oposição profética ao tem-
plo. No texto de 7,16-17, isso fica muito claro, por exemplo
quando o final do v. 17 constata que a sorte de Amasias será
compartilhada por Israel (cf. v. 11). Sim, justamente esse
episódio revela por que a profecia de Amós é irreconciliável
com o santuário. Este representa os interesses da cidade. Na
própria terceira visão (cf. 7,7-9), pode-se observá-lo quando
a demolição do muro (?) da cidade (cf. 7,7-8) implica a ruína
de "altos" e "santuários". E o próprio Amasias acaba formu-
lando a questão crucial ao impedir a profecia de Amós em
Betel com a justificativa: "Este é santuário do rei, esta é a
casa do reino"! O simples fato de nosso profeta centrar fogo
contra Betel (cf. 3,14[?]; 4,4-5; 5,4-5; 7,9.10-17) mostra que
sua questão era não o templo em si e em geral, mas sim o
que está amarrado aos interesses da cidade e do reino. Ora,
no reino do Norte, em Israel, historicamente o principal cen-
tro cúltico não estava na capital (como ocorria no Sul, em
Judá, com Jerusalém). Estava em Betel (e em Dã), como
pode-se verificar em 1Rs 12,26-33. Essa estreita relação entre
reino e templo não se deve só à necessidade de encontrar

71
razões religiosas e divinas para a existência do Estado e os
caprichos dos soberanos. (Este certamente também era o
caso, como pode-se deduzir das palavras de Amós [cf. 8,14]
e de salmos como o Sl2 ou 45.) Deve-se principalmente ao
papel do templo como lugar de arrecadação dos produtos da
roça (cf. 8,1-3; 2, 13[?]), por meio de festas de peregrinação
e de sacrificios (cf. 4,4-5; 5,4-5.21-27). No tributarismo, os
templos veiculam a espoliação dos camponeses." Os cen-
tros religiosos aos quais Amós se opõe radicalmente são os
que agilizam a exploração dos pobres e a sustentação religiosa
dos soberanos. Esses templos não estão à parte, são parte
destacada de todo um sistema de opressão que, agora, deve-
mos passar a entender em seu conjunto. Antes, porém, de
nos encaminharmos para essa tarefa decisiva, cabe-nos olhar
para trás, para o caminho que acabamos de percorrer.
Iniciáramos alistando os grupos ameaçados (confira
item Os ameaçcados - Uma listagem, p. 59). Coube-nos
constatar, agora, que há evidente inter-relação entre esses
grupos. Ativemo-nos a três setores: militares, cidadãos e sa-
cerdotes; exército, cidade e templo. Verificamos que entre
essas três instituições há correlação; apóiam-se mutuamente
e são opostas aos pobres, à gente do campo. Igualmente,
verificamos que esses grupos e instituições são agrupados,
seguidamente, sob um mesmo conceito. "Israel" era um de-
les. Nessa direção proponho perguntar adiante: em Amós,
os ameaçados chegam a constituir um só conjunto? Qual
seria essa grandeza aglutinadora?

12Veja HOUTART, Religião e modos de produção pré-capitalistas, cit., em especial pp.


18-20 e 54-64.

72
Os governantes e o Estado monárquico
Acabamos de anotar que o templo está integrado num
sistema maior. Algo semelhante verificávamos em relação
ao exército e à cidade. Essas instituições assemelham-se a
engrenagens de um conjunto. Contudo, sua integração não é
automática. Um santuário, a rigor, nada tem que ver com o
exército. Há um grupo social específico, cuja tarefa reside
em inter-relacionar diferentes segmentos sociais; sua fim-
ção é dar coesão a cidade, exército, templo, comércio. Estou
pensando nos governantes. E é deles que, agora, devemos
passar a falar.
Até aqui não dei destaque a essa dimensão. Ela, po-
rém, é central. É o que leio no próprio livro de Amós. A
única cena que tematiza o profeta (cf. 7,10-17) põe-no em
conflito com o governante. Amós se tomou insuportável para
"a terra", como diz Amasias (cf. 7,10). Ao agredir o rei, o
profeta passou dos limites. Com base nessa constatação,
convém auscultar, antes de mais nada, o todo da profecia de
Amós a respeito de sua palavra aos governantes.
Verifico que são três os principais contextos literários
nos quais Amós tematiza as autoridades governamentais:
Cito, primeiro, o ciclo dos povos, anteriormente deta-
lhado (confira item Exército, cidade e templo, p. 62). Nos
quatro ditos contra os povos vizinhos, há constantes amea-
ças contra os soberanos: 1,4.5.8.15; 2,3. Tamanha insistência
no aniquilamento de reis permite-me perguntar se aquele
"mais corajoso entre os valentes" de 2,16, que antes definía-
mos como "general", não poderia ser identificado também
com o rei israelita que, afinal, também era comandante do
exército.

73
Passo, depois, para 6,1-7. Considero provável que essa
unidade seja urna pequena composição de breves ditos pro-
féticos." Em todo caso, esse hino fúnebre ("ai") denuncia
(vv. 1-6) e ameaça (v. 7) os governantes de Samaria, "a casa
de Israel" (v. 1b). Em sua soberba, adoram a doce vida (vv. 4-
6a, cf. 3,12), mostram-se incapazes de avaliar a situação in-
ternacional (v. 2) e nacional (vv. 3a.6b) e só servem para
promover violência (vv. 3b, cf. 3,9-10). Essas cabeças do
governo serão as cabeças da deportação (v. 7).
E chego, por fim, ao complexo que mais malha as au-
toridades. Em seu centro está a narração de 7,10-17: Amós é
enxotado do santuário estatal de Betel porque ameaçou a
vida do rei, isto é, nas palavras de Amasias, o profeta cons-
pirou contra o governante (v. 10). Essa narrativa é circunda-
da por duas visões (7,7-9 e 8,1-3) que reforçam e radicalizam
os prenúncios de desgraça contra o soberano: 7,9 agoura a
morte da "casa/dinastia de Jeroboão", e 8,3, o extermínio de
todo palácio.
Os governantes são os articuladores de cidade, tem-
plo, exército. Transformam-nos numa engrenagem. E Amós
não os poupa. Em especial, profetiza morte ao rei. E com
isso escandalizou.
Todavia, não se faz jus a Amós e nem mesmo se con-
segue perceber a radicalidade última de sua profecia se a
gente entende sua ameaça corno restrita à pessoa de go-
vernantes ou a algumas instituições. Essa questão nevrálgica

i3 Há muitos indícios que apontam para o caráter de composição dessa unidade. Alguns
deles estão mencionados em WOLFF, Dodekapropheton: 2 Jocl und Amos, cit., pp.
314ss e, em especial, em WEISER, Artur. Das Buch der zwolfKleinen Propheten. 5.
ed., Góttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1967, pp. 175s5 (Das Alte Testament
Deutsch, 24).

74
precisa ser discernida com especial carinho. Certas pessoas
são ameaçadas de morte, como é o caso do rei, de Amasias,
das "vacas de Basã", isto é, das autoridades de Samaria.
Determinadas instituições são eliminadas e varridas do mapa,
como as cidades, a capital, o exército, os templos, o palácio
real, a dinastia, os governantes. Sim, a rigor, todas as insti-
tuições citadinas e dominantes são arrasadas. Entretanto, nem
as pessoas e nem as instituições são liquidadas como fenô-
menos isolados. São destruídas como um só conjunto, como
estando vinculadas umas às outras. E a esse todo Amós cha-
ma de "Israel" ou de "a terra". Tratamos de verificá-lo em
algumas passagens.
Já constatei que, em 2,6-16, "Israel" engloba o exérci-
to e os grupos sociais por ele protegidos (juízes, senhores de
escravos, sacerdotes etc.). É aqui sinônimo de reino.
O mesmo sentido "Israel" assume no ciclo anti-Samaria
(3,3---4,3). Nele, aparecem, além da capital: o exército (cf. 3,11),
os castelos (cf. 3,9-11.15), o altar (de Betel? 3,14), governantes
de vida fácil (cf. 4,1), designados de "filhos de Israel" em
3,12. O conceito de "Israel" (3,14) refere-se a todos eles. Equi-
vale novamente à monarquia, ao Estado. (A expressão "casa
de Jacó" tem quase o mesmo sentido em 3,13.) "A terra",
mencionada em 3,11, é o território desse Estado.
O mesmo significado de "a terra" encontro em 7,10
(cf. v. 12). Na disputa com Amasias (cf. 7,10-17), "Israel"
novamente é o reino (vv. 11.16-17), em especial a elite diri-
gente, já que via de regra só esta era afetada por deportações
(cf. 6,7; 7,11.17). Nesse caso, "Israel" é sinônimo de "casa
de Israel" (v. 10) e de "casa de 1sac" (v. 16).
Restrinjo-me a essas passagens. Estão no lugar de ou-
tras tantas, nas quais em especial o conceito de "Israel" é

75
interpretável como reino, Estado. 14 Por isso, o dito de 9,8 -
seja ele uma formulação de Amós" ou de seus discípulos 16 -
pode ser considerado representativo:

Atenção!
Os olhos do Senhor Javé são contra o reino pecador.
Eliminá-lo-ei de sobre a face da terra!
Contudo, não destruirei de todo a casa de Javé.
Dito de Javé .

Nessa passagem (diferente que em 3,13), "casa de


Jacó" justamente é o não-reino. É o povo. Para ele há futuro.
Para o reino, só resta a destruição e, na linguagem de 3,6, a
"desgraça". 17
Enfim, Amós não só se opõe à pessoa dos governantes.
Não só propõe extirpar os abusos das instituições dos domi-
nantes. Não prevê substituições de reis ou melhoramentos
de estruturas citadinas. Ele, efetivamente, prenuncia a eli-
minação do reino, isto é, da monarquia, do Estado e de tudo
que este representa. "EI tema decisivo de Amós era el anun-
cio del derrumbamiento del Estado de Israel.'?"

14 Cf. SCHWANTES, Milton. Profecia e Estado - Uma proposta para a hermenêutica


profética. Estudos teológicos, v. 22, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1982,
pp. 131-134.

15 RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 171ss.

16 WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cit., pp. 395ss.

17 Veja sobre a temática CRUESEMANN, Frank. Der Widerstand gegen das Kõnigtum; Die
antikõniglichen Texte des Alten Testamentes und der Kampf um den frühen
israelitischen Staat. Neukirchen, Neukirchener, 1978 (Wissenschaftliche Mono-
graphien zumAlten und Neuen Testament, 49).

18 WOLFF, Hans Walter.La hora de Amós. Salamanca, Sígueme, 1984. v. 92, p. 27 (Nueva
Alianza). H. W. Wolfffaz essa afirmação em relação ao redator de Am 7,10-17.

76
Esperança para os ameaçados?
Há alguma esperança para os atingidos pelas ameaças
de Amós? Há alguma sobrevida para os objetos da desgraça
anunciada pelo profeta? Essas perguntas requerem um não
estridente e um sim consolador como respostas.
Não há dúvida nenhuma de que não resta esperança
alguma para as instituições ameaçadas, por exemplo para o
exército (cf. 2,14-16; 6,8-10) ou para o templo (cf. 9,1-4).
Anteriormente já o evidenciei. Não vejo necessidade de re-
peti-lo. Concluo, pois, constatando que para "Israel" (reino,
monarquia/Estado) não resta esperança de acordo com a pro-
fecia do mensageiro de Técua."
Ainda assim resta um futuro. Há esperança para pes-
soas. Até acho que Amós é bastante explícito quanto a esse
resto de esperança possível até para quem está vinculado às
instituições opressoras e radicalmente ameaçadas. Veri-
fiquemo-lo passo a passo.
De início aponto para algumas passagens que usualmen-
te não seriam mencionadas no contexto dessa nossa pergunta
sobre a esperança para os ameaçados. Chama-me a atenção
que Amós se preocupe com o enterro de opressores, com os
donos da cidade e das terras (cf. 5,16-17) e com os senhores
do palácio real (cf. 8,3). Poder-se-ia dizer que tais cenários
fúnebres querem realçar o prenúncio da desgraça. E isso por
certo confere (cf. 5,18-20). Ainda assim permanece a pergun-
ta sobre se por meio dessas cenas não fica também garantida
certa dignidade ao defunto. Afmal, ele é condignamente se-
pultado. E isso já é alguma coisa. Basta conferir Jr 22,18-19.

19 "A morte está presente em toda essa mensagem" (MARTIN-ACHARD, R. Os profetas e


os livros proféticos. São Paulo, Paulus, 1992. p. 50 [Biblioteca de Ciências Biblicas D.

77
Poder-se-ia, pois, dizer que, em Amós, o opressor defunto não
é "desumanizado". Nesse contexto, convém apontarparaAm
2,1, em que nosso profeta denuncia Moab por haver transfor-
mado em calos ossos de um rei. O morto, também o rei, me-
rece respeito. Lógico, isso não vem a ser grande expectativa.
Todavia, no contexto do que a seguir esboçarei não deixa de
ter seu significado.
Em vários textos, verifico que dentre os opressores
ameaçados há os que sobrevivem. Observo-o até mesmo em
2,14-16: de alguns do exército não é dito, expressamente,
que morrerão e do "general" ("rei"?) até se constata a fuga.
No entanto, as principais passagens que contam com sobre-
viventes são as que anunciam deportação: 1,5.15; 4,3[?];
5,5.27; 6,7; 7,11.17; 9,9. Nisso não há grande vantagem.
Enfim, os deportados de 587 a.C. comprovam que também
exilados podem ser portadores de grandes esperanças. Ora,
foram tais exilados e deportados que, relendo o livro de
Amós, agregaram-lhe esperanças para a "tenda de Davi" e
para a terra das promessas (cf. 9,11-12.13-15)
A partir daí, 5,3 alcança um significado bem especial.
Nele é profetizado que do exército das cidades só restará a
décima parte. Para um exército isso significa derrota arrasa-
dora. Para os soldados que conseguirem retomar do campo
de batalha, porém, isso significa nova chance de vida. Para um
Estado, a décima parte do exército equivale a nada; para as
pessoas envolvidas significa tudo.
E, afinal, Amós ou ao menos seus discípulos, falavam
da eventualidade e possibilidade, do "talvez" da compaixão
divina (cf. 5,14-15). Apelam para que se busque Javé, a fim
de evitar o pior (cf. 5,6). Os padrões éticos e teológicos des-
ta busca são reafirmados ou tidos por conhecidos. É o que se
78
lê em: 2,9; 3,10; 5,4-5.6.14-15. Em 5,24 encontra-se a frase
central que condensa a exigência de vida:

Corra como água o direito!


A justiça como ribeiro perene!

Amós contrapõe essa reivindicação às festas e aos ri-


tos sacerdotais. Segui-la significaria vida, certamente tam-
bém para a gente do templo.
Portanto, há esperança, não para o reino e suas mani-
festações, mas para pessoas, também para as que vivem a ilu-
são da soberba do Estado (cf. 6,8 !). Para os ameaçados, essas
expectativas não são nada alvissareiras e, por Amós, nem
mesmo chegaram a ser formuladas com destaque. Era-lhe
exigido profetizar preferencialmente desgraça para a cidade
(cf. 3,6.8) e ruína para o reino de "Israel" (cf. 7,9.10-17).

Retrospectiva
Neste estudo tematizei a mensagem de Amós. Bus-
quei detalhar o sentido da ameaça, o conteúdo central de sua
mensagem. Em retrospectiva sintetizo as descobertas feitas.
O eixo central da ameaça é a eliminação do reino, da
monarquia, do Estado. Esse é, de fato, o teto que organiza e
abriga os diversos segmentos, estamentos ou setores amea-
çados. Amós o designa de "Israel". Prenuncia, pois, a des-
truição desse "Israel".
Dentre as organizações ou instituições integradas a
"Israel" e visadas pelos maus agouros proféticos, merecem
destaque especial: a capital, o exército e o templo. As três
composições ou também chamados ciclos são dedicados a

79
estas três instituições. O ciclo dos povos (1,3-2,16) alcança
seu auge no destroçamento do exército. O ciclo anti-Samaria
(3,3--4,3) detalha a ruína da capital Samaria. E o ciclo das
visões (Am 7-9) tem seu ápice na demolição do templo.
A ênfase principal recai sobre o fim de "Israel" e das
instituições citadinas de dominação. Amós, porém, não dei-
xa de realçar também as instâncias da vida campesina e al-
deã que reproduzem no âmbito local os interesses do Esta-
do. O ataque ao comércio e à jurisprudência merece ser es-
pecialmente mencionado nesse contexto.
Na interpretação, parece ser decisivo não isolar as
diversas ameaças, mas abrigá-las sob o teto comum da eli-
minação do reino. Caso contrário, pode ocorrer que os pre-
núncios de desgraça ou não são generalizados como se vi-
sassem a toda a população de Israel ou são segmentados
em uma grande quantidade de ameaças sem interligação. A
suspeita hermenêutica de que se faz necessário avaliar a
mensagem de desgraça numa perspectiva política eviden-
cia-se, pois, como muito decisiva para a compreensão da
mensagem do visionário de Técua.
Não há futuro para os ameaçados como tutelados pelo
reino. Há esperança, porém, para pessoas dentre os ameaça-
dos. No entanto, Amós não se esmerou em pormenorizar
esse aspecto de sua mensagem. Suas palavras estavam prin-
cipalmente dirigidas "contra Israel" (Am 1,I).

Não se pode querer transpor essa visão de Amós de


maneira direta para nossa situação. Vivemos em outro mo-
mento histórico. O Estado dos dias de Amós não é idêntico

80
ao de nossos dias. As perspectivas políticas de então não são
iguais às nossas.
Amós fala no mundo tributário. O tributarismo conhe-
ce uma visão de contestação e crítica radicais ao Estado."
Essa era uma experiência histórica possível dentro do modo
de produção tributário. O próprio Israel dos séculos XIII-XI
surgiu de uma tal experiência. Reuniu os mais diferentes gru-
pos palestinenses e extrapalestinenses para a formação de um
sistema tribal. Os que vieram do Egito e os que se agregaram
oriundos daprópria Palestina provinham do tributarismo. Nas
montanhas, esses grupos conscientemente não reproduziram
o sistema tributário, isto é, não constituíram rei e Estado (Jz
8,22-23), mas optaram pelo sistema tribal. Formaram, pois,
um sistema social antiestatal." Nessa tradição estão as pala-
vras de Amós. É água do poço do tribalismo.
Certamente não estamos em condições de repetir essa
experiência. Ainda assim, as palavras de nosso visionário co-
locam sobre a mesa a questão do poder e do Estado. E o fa-
zem numa perspectiva bem mais crítica do que habitualmen-
te a situamos à luz de Rm 13 ou de lPd 2. Não seria hora de
nos colocarmos mais decididamente na tradição de Amós?
Nossa situação latino-americana, marcada pela opressão or-
ganizada de nossos povos, não está a requerer uma re-criação
do Estado, à luz da crítica do trabalhador sazonal de Técua?

20 CLASTERS, Pierre. A sociedade contra o Estado. In: PINSKY, Jaime, org. Modos de pro-
dução na Antigüidade; textos. São Paulo, Global, 1982. v. 2, pp. 61-79; CRUESEMANN,
Der Wzderstand gegen das Kõnigtum, Die antikdniglichen Texte des Alten Testamentes
und der Kampf um den frühen israelitischen Staat, cit.

21 GOTTWALD, Norrnan K. As tribos de Iahweh; uma sociologia da religião de Israel li-


berto 1250-1050 a.C, São Paulo, Paulus, 1986 (Bíblia e Sociologia, 2); BOFF, Clodovis.
Como Israel se tomou povo? Evolução de Israel do estado de clã até a monarquia.
Estudos Bíblicos, v. 7, Petrópolis, Vozes/Sinodal, 1985, pp. 7-41.

81
-----~ ---

4. "Vede quão grande terror"

Aqui, neste barco, ninguém quer a sua orientação.


Não temos perspectiva, mas o vento nos dá direção.
A vida que vai à deriva é nossa condução,
Mas não seguimos à toa, não seguimos à toa.'

Nos perseguieron en la noche


Nos perseguieron en la noche,
nos acorralaron
sin dejamos más defensa que nuestras manos
unidas a millones de manos unidas.
Nos hicieron escupir sangre,
nos azotaron;
llenaron nuestros cuerpos con descargas eléctricas,
y nuestras bocas las llenaron de cal;
nos dejaron noches enteras junto a las fieras,
nos arrojaron en sótanos sin tiempo,
nos arrancaron las unas;
con nuestra sangre cubrieron hasta sus tejados,
hasta sus propios rostros,
pero nuestras manos
siguen unidas a millones de manos unidas.'

1 ANTUNES, Arnaldo. Voltepara o seu lar, 1997~

2 NAJLIS, Michele. Nos perseguieron en la noche, Nuevo Amanecer Cultural, Managua,


ano 6, n. 263 (sábado 29 de junho de 1985), p. 4.

83
o livro de Amós coleciona palavras. Estas são o que
há de mais decisivo nesse profeta. A mensagem de Amós
tem a primazia por sobre sua pessoa e seu contexto.
Ao ser enxotado de Betel pelo sacerdote Amasias (cf.
7, I0-17), o motivo era sua mensagem. Suas palavras toma-
ram-se insuportáveis para "a terra", o território do Estado
monárquico de Israel (v. 10). Era, pois, a mensagem de des-
graça a que maior impacto causou. Pôs de sobressalto os
interesses de elites. Na reflexão anterior, estudávamos esse
aspecto central do que Amós "viu contra Israel" (Am 1,1).
Viu a eliminação do reino. Tamanha radicalidade não era
conhecida na profecia anterior a Amós. Não a encontramos
nem mesmo em Elias ou Eliseu (cf. 1Rs 17-2Rs 10)3 e mui-
to menos em personagens como Natã (2Sm 7; 12; lRs 1).4
Com a ameaça ao próprio Estado, começa algo até então
desconhecido na trajetória do ministério profético.
Contudo, esse prenúncio da eliminação do reino não
acontece isolado. Não aparece desvinculado da crítica a esse
mesmo reino. A radicalização da ameaça e o aprofundamento
da crítica parecem-se muito com dois lados de uma mesma
moeda. Andam juntos. Complementam-se.
Nesta nossa quarta reflexão, deteremo-nos na denún-
cia de Amós. Qual é o conteúdo de sua crítica? Que pessoas
são defendidas por suas acusações?

J Quanto à diferença entre a profecia "literária" e a "pré-literária", compare a pesquisa


de JEREMIAS, Jõrg. Kultprophetie und Gerichtsverkündigung in der spiiten Kõnigszeit
Israels. Neukirchen, Neukirchener, 1970 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten
und Neuen Testament, 35).

4 Veja SCHWANTES, Milton. Natã precisa de Davi - Na esperança da Igreja profética.


Estudos teológicos, v. 18, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1978, pp. 99-118.

84
"Total terror!"
Além de delinear a ameaça, praticamente cada dito de
nosso profeta contém a denúncia. Esta seguidamente é bem
mais extensa que a ameaça. É o que, por exemplo, constato
em 3,9-11 e 6, 1-7. Onde as acusações não chegam a ser for-
muladas explicitamente, como, por exemplo, em 3,12 ou
5,18-20, ao menos estão implícitas. Portanto, a temática da
denúncia perpassa a profecia de Amós.
Inicialmente nos dediquemo a refletir sobre seu con-
teúdo. Que questões são enfocadas? Qual é o conteúdo res-
saltado?
Junta-se a isso a pergunta a respeito das pessoas atin-
gidas pelos desmandos denunciados. Em defesa de quem
vai o visionário?
Tratemos, pois, de obter, antes de mais nada, um qua-
dro geral da denúncia de Amós. E, depois, de acordo com a
visão geral, haveremos de definir melhor as vítimas dos cri-
mes denunciados.
Primeiro: ao ler o texto, percebe-se que diversas ques-
tões são denunciadas. Observo as seguintes:
A exploração econômica, em geral, ocupa lugar de
destaque: 3,10.12.13-15; 4,1; 5,11; 6,4-5.11. Há "opressão"
(3,10) generalizada. Essa exploração é expressa em verbos,
tais como: "entesourar"/"amontoar" (3,10), "oprimir" (3,9;
4,1), "extorquir tributo" (5,11).
Grande é a agressão contra pessoas: 2,7; 3,10; 4,1; 5,12;
6,3; 8,4. "Violência" (3,10; 6,3) está na ordem do dia. Apa-
recem verbos como "pisar" (2,7; 8,4), "esmagar" (4,1), "afli-
gir" (5,12). Pessoas chegam a ser enxotadas (cf. 7,12-13) e
eliminadas (cf. 8,4). A brutalidade controla os espaços.

85
Populações civis indefesas são massacradas: 1,3.6.13;
2,1. Os exércitos andam altivos e aterrorizam (cf. 6,2.13-14).
A arrogância militar espraia-se pelas ruas.
Gente livre é feita gente escrava, quer pela guerra (cf.
1,6), quer pela subjugação social (2,6; 8,6). Vende-se e com-
pra-se gente. Escravas são usadas (cf. 2,7; 8,3).
E a corrupção da justiça grita aos seus céus: 2,6.7a;
5,7.10.12.15; 6,12. Processos são cancelados por ordens su-
periores (cf. 2,7a; 5,7; 6,12). Testemunhas são molestadas
(cf. 5,10), juízes têm preço (cf. 2,6; 5,12).
Todas essas denúncias são de caráter social. E até mes-
mo ao se opor ao culto, Amós o faz movido pela injustiça
social, promovida pelo templo. Já o verificávamos na inter-
pretação do ciclo das visões em Am 7-9 (veja item As vi-
sões, p. 33). Isso também é evidente em outras passagens:
2,8; 4,4-5; 5,4-5.21-27; 7,9.10-17; 8,14. AcrÍlica social está
tão no âmago das denúncias de nosso profeta que é até dis-
cutível que nas versões mais antigas das memórias de Amós
haja referência a uma crítica à idolatria, como em Oséias
(cf. 8,5-6). Em Amós, há referências à idolatria em 2,7b.8;
5,26; 7,9; 8,14. É possível, porém, que aí se trate de acrésci-
mos e releituras posteriores.'
Portanto, nas denúncias de Amós, o social é central e
prioritário. Praticamente é sua única acusação "contra Israel"

5 Quanto aos detalhes, confira as respectivas páginas em WOLFF, Hans Walter.


Dodekapropheton; 2 Joel und Amos. Neukirchen, Neukirchener, 1969 (Biblischer
Kommentar Altes Testament, 14/2). Vejatambém WOLFF, Hans Walter. La hora de Amós.
Salamanca, Sigueme, 1984. 1'1'. 185-200 (Nueva Alianza, 92). Veja também BARSTAD,
Hans M. "Thc Religious Polemics of Amos - Studies in the Preaching of Am 2,7b-8;
4,1-13; 5,1-27; 6,4-7; 8,14. Supplements to Vetus Testamentum, v. 34, Leiden, E. J. Bril1,
1984. Quanto aAm 5,21-27, confira KrLPp, Nelson. Meditação sobreAm 5,21-24. Pro-
clamar libertação, v. 7, São Leopoldo, Sinodal, 1981,1'1" 76-81.

86
(Am 1,1). Em 3,9, encontro uma expressão que, nas pala-
vras do próprio profeta, poderia sintetizar sua denúncia: "total
terror"." Quem são os "objetos" desse inusitado terror?
Segundo: "Israel" ou - como, por exemplo, em Mq
3,1-4 - "o povo" não é mencionado como "objeto" do ter-
ror. As vítimas são outras. Diversos termos as designam.
Alguns deles repetem-se várias vezes. Proponho tomá-los
como pontos de partida em nossas observações.
Em 2,6-7; 4,1; 5,11.12; 8,4.6, são usados diversos ver-
betes para identificar as pessoas que sofrem o terror. Trata-
se de sinônimos. São paralelos entre si, como, por exemplo,
vê-se comparando 2,7 com 4,1. São permutáveis, como com-
prova a comparação de 2,6 com 8,6. Afirmações similares
- no caso a respeito da corrupção da justiça -- podem ser
feitas usando ora um (cf. 2,7) ora o outro (cf. 5,12) verbete.
Portanto, os termos aplicados aos aterrorizados, nos textos
de antes, não se referem a diferentes pessoas ou grupos, mas
designam as mesmas pessoas ou grupos segundo diferentes
ângulos. Realçam aspectos.
Para perceber essas nuanças, temos de atentar também
para a terminologia. Comecemos, pois, por definir o sentido
dos termos usados por Amós ao se referir às vítimas.
Três ou até quatro palavras entram em questão. Cada
uma ressalta uma faceta específica, diferenciadora.
Com a maior freqüência é usado o termo' ebyon. No
singular, encontramo-lo em 2,6; 8,4.6. No plural, em 4,1 e
5,12. A etimologia é discutível. O mais provável é que se

6 Quanto ao sentido exato dos termos confira, WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und
Amos, cit., p. 231.

87
deva traduzir 'ebyon por "pobre", "aquele que tem necessi-
dade".' Nesse caso, o termo mais freqüente em Amós si-
multaneamente seria o mais abrangente.
Quase tão freqüente como o "pobre" é o daI. No sin-
gular, só aparece em 5,11. No plural, seu uso se repete por
três vezes: 2,7; 4,1; 8,6. Este daI, sem dúvida, é o "fraco", o
"magro". Sua aparência fisicajá denota sua condição social
(cf. Gn 41,19; 2Sm 13,4; Is 11,4).
Só duas vezes Amós se refere ao 'ani, sempre no plu-
ral, em 2,7 e em 8,4. Este 'ani é o "oprimido" (cf. Is 11,4).
Esses três termos são, em Amós, os mais importantes
para designar as pessoas e os grupos, em defesa dos quais
vai sua profecia. "Pobres", "fracos"/"magros" e "oprimidos"
também se encontram agrupados como sinônimos em ou-
tras passagens veterotestamentárias, como em SI 72,2-4.12-
13; Is 10,2; 14,30.32. Esses, porém, não são os únicos ver-
betes relevantes em nosso contexto.
Antes de mais nada, cabe citar o sadiq, mencionado
paralelo ao "pobre" em 2,6 e 5,12. O vocábulo sadiq enfoca
não só a situação socioeconômica, mas, em especial, a soli-
dariedade social. É sadiq quem contribui e constrói comuni-
dade (Gn 38,26), quem não tem o que temer em tribunais. É
o "justo", o solidário, o que vive pelo "direito" e a "justiça"
(5,7.15.24; 6,12). Para Amós, o "pobre" é o "justo".
Mencione-se que há duas referências a escravas. A
menina moça de 2,7b certamente é uma escrava, da qual se
aproveitam o patrão e seu filho. As "cantoras do palácio" de

7 Confira detalhes em SCHWANTES, Milton. Das Recht der Armen. Frankfurt, Peter Land,
1977. pp. 29-34 (Beitrãge zur biblischen Exegese und Theologie, 4).

88
8,3 8 também são escravas, desta vez do âmbito da corte.
Quiçá também o 'ikar de 5,16 esteja nesse nível. Esse 'ikar
é um lavrador sem terra." Enfim, convém não deixar de
mencionar 3,9, em que a capital Samaria é denunciada, em
âmbito internacional, devido a seu "terror total" e aos
"oprimidos" em seu interior. Aí o conceito de "oprimidos"
assemelha-se ao de "pobres". Ambos são abrangentes e in-
clusivos. É possível que isso valha em especial para o de
"oprimidos", em 3,9. Mais adiante retomaremos à questão.
Por ora podemos dar por concluída nossa tarefa inicial.
Perguntávamos pelo conteúdo da denúncia. Consta-nos ser
de ordem social. Inquiríamos sobre as vítimas. Pudemos defi-
ni-las como "pobres" e "oprimidos", "magros" e "justos".'?
É evidente, porém, que não basta diferenciar o vocabulário.
Aí recém começa a tarefa mais relevante, qual seja a de loca-
lizar socialmente os "oprimidos". Quem são, em Amós, as
vítimas em termos sociais? Esta é nossa próxima tarefa.

8 Veja KIRST, Nelson. Amós; textos selecionados. São Leopoldo, Faculdade de Teolo-
gia, 1981. pp. 65-71 (Exegese 1/1).

9 GESE, Hartmut. Kleine Beitrâge zum Verstãndnis des Amosbuches. Vetus Testamentum,
v. 12, Leiden, E. J. Brill, 1962, pp. 432-436. Veja também RUDOLPH, Wilhelm. Joel-
Amos-Obadja-Jona, Gütersloh, Gütersloher, 1971. pp. 196 (Kommentar zum Alten
Testament, 13/2).
lO TAMEz, Eisa. A Bíblia dos oprimidos; a opressão na teologia bíblica. São Paulo, Paulus,
1980 (Libertação e Teologia, 5); GERSTENBERGER, Erhard. Querer. In: JENNI, E. &
WESTERMANN, C., orgs. Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento. Madrid,
Cristiandad, 1978. v. I, co!. 61-68; MARTIN-AcHARD, R. Ser mísero. In: JENNI &
WESTERMANN, orgs., Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, cit., v. 2,
co!. 435-447; BOTTERWECK, Johannes G. Pobre. In: JENNI & WESTERMANN, orgs.,
Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, cit., v. I, co!. 28-43; FABRY,
H. J. Dal, em Theologisches Wôrterbuch zum Alten Testament. Stuttgart, Kohlhammer
1977. v. 2, co!. 221-244; MAAG, Victor. Text, Wortschatz und BegrifJswelt des Buches
Amos. Leiden, Brill 1951. pp. 228-235; KOCH, Klaus. Die Propheten I; Assyrische
Zeit. Stuttgart, Kohlhammer, 1978. pp. 55-62 (Urban-Taschenbücher, 280). Veja tam-
bémnota 7.

89
Quem são os pobres?
Os textos permitem estabelecer, com certa facilidade,
os contornos negativos de quem sejam os pobres. Não são
mendigos, porque, se fossem, não poderiam ser fonte de abas-
tança, como se vê por exemplo em 3,9-10 e 4,1. Não são
propriamente escravos, porque 2,6 e 8,6 apresentam-nos
como pessoas que estão sendo transformadas em escravos.
Por certo, também não são gente da cidade, porque, se assim
fossem, a ameaça à cidade não deveria ser tão genérica, como
a que lemos em 3,3-4,3 ou em 6,8-10, e nem faltaria uma
menção a órfãos e viúvas, que aparecem em textos oriundos
da cidade, como comprova a profecia de Isaías (Is 1,23; 10,2).
Essas delimitações já estão indicando a direção na qual de-
vemos buscar os "pobres", "magros" e "oprimidos" dos quais
fala Amós.
Eloqüentes são as passagens que mencionam os po-
bres no contexto da jurisprudência. Refiro-me às seguintes:

Compram por prata o justo,


o pobre por um par de sandálias (2,6).
Entortam o caminho dos oprimidos (2,7).
Hostilizam o justo,
tomam suborno,
rejeitam os pobres no portão (5,12).

Emjogo está a jurisprudência no portão (cf. 5,12.15),


a que tinha lugar em cada vila e cidade, decidindo autono-
mamente sobre as questões jurídicas que surgissem. A ela
tinham direito todos os "homens livres" da localidade. "Ho-
mens livres" eram, basicamente, os que tinham acesso à terra,

90
à herança. 11 Os "pobres" de certo modo ainda pertencem a
esses "homens livres" e por isso suas causas jurídicas são
decididas no portão e não na casa, onde eram definidos, pela
autoridade patriarcal, os processos de mulheres, escravos e
outros dependentes (cf. por exemplo, Gn 16 e a carta a Filê-
mon). Embora os pobres ainda tenham direito ao portão, sua
situação social e econômica é tão precária e a dos donos de
prata e subornos tão avantajada que os primeiros são facil-
mente sobrepujados e marginalizados pelos últimos.
Esses pobres são a fonte das riquezas citadinas. São,
na verdade, gente empobrecida. São carentes, porque foram
espoliados e explorados, porque alguém lhes está tirando o
couro (cf. Mq 3,1-4). Verifico que três passagens se detêm
em nos dar um quadro dessa pauperização: 3,9-10; 4,1; 5,11.
Em 3,10, o senhorio de Samaria é denunciado, pois

amontoam/entesouram violência e opressão em seus castelos.

Nesse versículo, "violência" e "opressão" são os meios


pelos quais os "oprimidos" (v. 9) são espoliados. E essa ex-
torsão visivelmente é rentável: resulta em montes e tesouros
nos castelos senhoriais. Quadro semelhante apresenta-nos a
famosa denúncia de 4,1 às elites da capital, pois

oprimem os fracos/magros,
esmagam os pobres e dizem aos donos deles:
"Trazei para que bebamos!".

II Veja KClEIlLER, Ludwig. Dic hebrãische Rechtsgemeinde, em Der hebrãischeMensch;


eine Skizze. Tübingen, Mohr, 1953. pp. 143-171. Confira também nota 1 do capítulo 3.

91
A abastança da gente fina vem do esmagamento dos
"fracos" e desdentados, dos "pobres" e doentes. Há quem
pense que esses "fracos" e "pobres" seriam vinhateiros," se
bem que seja mais provável que a menção ao beber seja
paradigmática para a gula das elites. Essa gula usufrui os
frutos do trabalho dos "oprimidos". Com base em 5,11, che-
ga-se a entender um pouco o funcionamento desta extorsão.
Aí é posta à luz do dia a origem da suntuosidade de quem
vive em "casas de cantaria":

Extorquis renda do fraco,


dele exigis tributo de trigo.

Os termos hebraicos usados nesse versículo infeliz-


mente são de dificil compreensão, como se verifica na com-
paração de traduções. Ainda assim, não resta dúvida de que,
aqui, o "fraco"l"magro" é um lavrador que não produz ape-
nas para outrem, como sucede com o escravo ou o assala-
riado. O "fraco" ainda detém parcela de sua produção e, em
especial, a produz livremente. A espoliação acontece em re-
lação não ao ato de produzir, mas sim ao produto acabado.
(A palavra usada para "trigo" refere-se, especificamente, ao
produto acabado.) Ao lavrador também se referem 5,16 e -
outra passagem de dificil interpretação - 2,8. Portanto, as
vítimas, em cuja defesa vai Amós, são pobres por trabalha-
rem. São justos.
A situação desses lavradores empobrecidos é grave. Em
8,4-6, obtemos um quadro de sua fome. Denunciam-se aí os
comerciantes, em particular talvez os pequenos mercadores.

12 KOCIl, Klaus. Die Entstehung der sozialen Kritik bei den Profethen. In: Wolff, Hans
Walter, org. Probleme biblischer Theologie. München, Christian Kaiser, 1971. p. 243.

92
Os "pobres" aparecem como fregueses principais desses
vendedores afoitos e gananciosos. Espoliados e empobreci-
dos tomam-se presa fácil, quando necessitam adquirir de
terceiros sua comida de cada dia. São aniquilados (v. 4), trans-
formados em mercadoria (v. 6), em escravos. A escravidão
dos lavradores deve ter abalado nosso profeta de maneira
muito intensa. Afinal, menciona-a diversas vezes. Denuncia
a transformação de pobres em escravos por causa de suas
dívidas e por causa de crimes de guerra:

Vendem... o pobre por um par de sandálias (2,6).


Levaramcativotodopovoadopara o entregara Edom (l,6).

Poder-se-ia discutir se, na época, um par de sandálias


representava uma bagatela, uma dívida de alguma monta ou
até uma dívida proveniente da aquisição da indumentária
exigida de um jovem ao alistar-se no exército. Importa que,
em 2,6, uma dívida é a causa da escravização (cf. 8,6; com-
pare Ex 21,2-11). Em 1,6, o saque de guerra dá origem à
escravatura. Amós contesta ambas as maneiras de subjuga-
ção de "pobres" lavradores e de "povoados" campesinos. Já
em 8,6, a questão não é a transformação de lavradores em
escravos, mas sim a comercialização destes últimos:

Para comprarfracos por prata


e pobres por um par de sandálias.

"Prata" e "par de sandálias" são o preço da mercado-


ria chamada lavrador escravizado. A vida de tais pessoas era
degradante. Em 2,7 obtemos, num breve relance, um dos
destinos de uma menina moça escravizada:

Um homem e seu pai coabitam com a mesmajovem.


93
Essa "jovem" certamente era uma escrava, usada como
objeto sexual pela família de seu proprietário. Cena seme-
lhante visualiza-se em 8,3: as escravas cantoras animavam
as festanças no palácio. Essas moças eram as filhas dos po-
bres, dos lavradores empobrecidos.
Por fim, em sua fraqueza, os roceiros empobrecidos
ficavam à mercê da própria violência fisica dos mais abasta-
dos. Sobreviviam em condições deprimentes:

Pisam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos (2,7).


Pisam o pobre (8,4).
Hostilizam o justo (5,12).
Esmagam os pobres (4,1).
Essa vida dos pobres é não-vida. É uma trajetória de
dores e ofensas, em cujo topo está a própria eliminação do
camponês massacrado pela extorsão de seus produtos, pela
escravidão de sua família e dele mesmo, por sua expropria-
ção, por sua mercantilização. E, de fato, no fim do túnel da
opressão, Amós denuncia o próprio genocídio:

Eliminam os oprimidos da terra (8,4).

o martírio de camponeses é, pois, a última etapa na


escalada do ajuntamento de tesouros nos castelos (cf. 3,10).
Permanecem perguntas em relação a pormenores das di-
versas passagens aludidas. Em traços gerais, porém, consegui-
mos definirquem sejam as e os sofredoresemAmós. São a gente
lavradora empobrecida! São os "oprimidos no campo" (8,4b).13

Quanto a essa interpretação de Am 8,4b, veja SCHWANTES, Das Recht .der Armen, cit.,
pp.97-98.

94
Em boa medida ainda são "homens livres" com acesso à
terra/herança, à jurisprudência local e com algum controle
sobre sua própria produção. Todavia, já estão tão empobre-
cidos e endividados que são alijados do portão, feitos presas
fáceis dos vendedores, transformados em escravos e escra-
vas, e sujeitos a toda sorte de violência e massacre. Esses
camponeses pauperizados e humilhados foram uma parte
significativa dentre a gente do campo nas terras de Israel,
em especial nas Montanhas de Efraim. Sobre eles recaíam
as despesas produzidas pelo expansionismo de Jeroboão 11.
Pagam com sua vida pela grandeza do Estado. 14
À medida que definirmos a gente empobrecida, pela
qual bate o coração do profeta, como sendo o campesinato
israelita e efraimita em fase de pauperização aguda, em con-
seqüência das despesas causadas pelo longo regime jero-
boânico, ganha em importância a pergunta por algum con-
ceito abrangente que conjugue sob um mesmo teto: "pobres",
"fracos"I"magros", "oprimidos", "justos", "escravas", "la-
vradores". Ao dar primazia ao termo "pobre" ('ebyon) , o
próprio visionário opta pelo conceito que também abarca os
demais. Também constatamos que, em 3,9, Amós está a ca-
minho de um designativo mais genérico, quando se refere,
em geral, aos "oprimidos"." Algo semelhante valeria para

14 Compare ainda quanto à questão social em Amós: SCHOTTROFF, Willy. Der Prophet
Amos - Versuch der Würdigung seines Auftretens unter sozialgeschichtlichem Aspekt,
em Der Gott der kleinen Leute. 2. ed., München, Christian Kaiser, 1979. v. I, pp. 39-
59 (em especial pp. 49-59); CRUESEMANN, Frank. Bewahrung der Freiheit; das Thema
des Dekalogs in sozialgeschichtlicher Perspektive, München, Christian Kaiser, 1978.
pp. 28-35 (Kaiser Traktate, 78) [Ed. bras.: Preservação da liberdade; o decálogo numa
perspectiva histórico-social. São Leopoldo, Sinodal, 1995.88 p.]

15 O termo hebraico em questão também poderia ser traduzido por "opressão" ou "ex-
torsão". Cf. GESENIUS, Wilhelm. Hebrãisches und aramàisches Handwôrterbuch. 17.
ed., Berlin, Springer, 1962. p. 625.

95
8,4, em que a expressão "oprimidos no campo" alcança o
nível da generalidade. Essas observações já mostram que
Amós soube aglutinar, sob uma conceituação mais ampla,
os diferentes tipos de pessoas e os variados setores que de-
fendia. E é no ciclo das visões que essa sua tendência en-
contra a melhor expressão (confira item As visões, p. 33).
Ao interceder pela plantação e pela herança camponesa, jus-
tifica seu apelo com a pergunta: "Como subsistirá Jacó, pois
é pequeno?" (7,2.5). Aqui, "Jacó" é a gente espoliada pela
"ceifa do rei", ameaçada em sua sobrevivência pelos gafa-
nhotos (v. 1) e pela seca que liquidaria a roça (v. 4). São,
pois, o campesinato, os "pobres" e, na linguagem de 7,2.5,
os "pequenos". Em 9,8, fala-se de modo similar da "casa de
Jacó". Próximo também está o "meu povo Israel" de 7,15
(cf. 9,14). (De modo distinto, o profeta refere-se a "Jacó" e a
"meu povo Israel" em outras passagens, como 3,13; 6,8; 7,8;
8,3.7.) Intitulando o campesinato de "pequeno" "Jacó", nosso
mensageiro de Técua recorre à história do povo (Gn 26-36).
Para Amós, Jacó, o "pequeno", era o verdadeiro Israel, ou
melhor, na linguagem de 5,15, o "resto de José" (cf. 5,6).
As pessoas sofredoras não são, pois, uma grandeza
fortuita e amorfa. Não parecem ter sido citadas ao acaso.
Pelo contrário. Chega até a haver uma conceituação abran-
gente e ancorada nas raízes históricas do povo para caracte-
rizar essas vítimas. Cabe, pois, a pergunta: Esse "Jacó", es-
ses "pequenos" e "pobres" estavam organizados?

Lavradores organizados
A pergunta pela organização das pessoas defendidas
pela profecia em geral e, em nosso caso, por Amós em espe-
cial raramente tem sido feita. Aliás, até mesmo é irrelevante,
96
urna vez que se vê nos profetas personalidades únicas e in-
dividualidades incomparáveis. A questão, porém, está sen-
do levantada." Impõe-se. Ao percebermos haver afinidade
entre o trabalhador sazonal Amós de Técua e os lavradores
empobrecidos, por ele defendidos, ternos de passar a per-
guntar pelo nível de organização desse campesinato. A sus-
peita é a seguinte: as denúncias têm sua origem tão-somente
nas observações pessoais de nosso visionário, ou também
estão enraizadas em organizações e movimentos sociais com
os quais um profeta corno Amós tinha algum vinculo?" Há
uma práxis social na base da crítica social?
O século VIII de modo algum foi um período de absoluta
subjugação da gente do campo. Pelo que sabemos, aparente-
mente não houve contestação ao longo reinado de Jeroboão II
(787-746), naturalmente afora as profecias deArnós (760) e de
Oséias (755-721). Contudo, o sucessor de Jeroboão, seu filho
Zacarias, já não pôde manter-se no poder além de seis meses
(cf.2Rs 15,8). Seu sucessor, Selum, que só reinou um mês (cf.
2Rs 15,13), visivelmente tinha suas bases políticas entre as pes-
soas do campo. Podemos deduzi-lo tanto de sua provável ori-
gem transjordaniana quanto da resistência que o povoado cam-
ponês de Tersa opôs a Manaém (746-736), que depusera Selum.
A desinstabilização da dinastia de Jeú - da qual Jeroboão II e
Zacarias foram os últimos representantes - foi, pois, uma con-
quista dos lavradores. E esse era um dos conteúdos das amea-

16 Veja, por exemplo, BERGER, Peter. Carisma e inovação religiosa - A localização social
da profecia israelita. In: IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL, org.
Profetismo; coletânea de estudos. São Leopoldo, Sinodal, 1985. pp. 86-106; WILSON,
Robert R. Prophecy and Society in Ancient Israel. New York, Fortress Press, 1983.
pp. 201-234 (The Bible and Liberation - Political and Social Hermeneutics).
17 Exercitei essa questão em SCHWANTES, Milton. Profecia e organização- Anotações à luz
de um texto (Amós 2,6-16). Estudos Biblicos, v. 5, Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 26-39.

97
ças de Amós e Oséias. Entre esses profetas e os camponeses
que em 747 desmontam a dinastia há, pois, flagrante sintonia.
Há evidente convergência. No século VIII, porém, o ascenso
do campesinato ec1ode, em 747, não só por ocasião da derroca-
da do regime jeroboânico. Sua presença volta a fazer-se sentir
na derrubada de Facéias, filho de Manaém, que, após dois anos
de governo (735-734),é destituídopor galaaditas(cf.2Rs 15,25).
E também a política instável do último soberano de Israel
(= Norte), Oséias (732-722), em parte, devemos atribuir à in-
fluência dos camponeses junto à corte.
Todavia, nesse período os agricultores aparecem como
força política não só em Israel. O mesmo se dá em Judá. É o
"povo de Judá", isto é, o campesinato judeu, 18 que entroniza
Ozias/Asarias (773-735), em 773, quebrando assim a hege-
monia de Jerusalém na definição dos sucessores (cf. 2Rs
14,17-22). E esses eventos tiveram lugar, mais ou menos,
treze anos antes da atuação profética de Amós.
Podemos, pois, dizer que, no século VIII, em Judá e em
Israel o campesinato é um fator político, capaz de articular
sua insatisfação diante de regimes opressivos, como o de
Jeroboão Il, e de decidir sucessões." A profecia do século

18 Sobre o assunto, destaco duas publicações mais recentes: Estudos Bíblicos, v. 44,
Petrópolis, Vozes, 1994, 86 p., e também a tese doutoral de SIQUEIRA, Tércio Macha-
do. O povo da terra no período monárquico. São Bernardo do Campo, Universidade
Metodista de São Paulo, 1997. 195 p. Em ambas o conceito de "povo da terra"l'am
ha- 'arez é relacionado aos camponeses livres e bem situados de Judá, capazes de
participar das decisões políticas em seu Estado, em Judá.
19 Sobre os movimentos sociais dos séculos XI e VIII, veja FERNÁNDEZ, Pedro Julio
Triana. Profecia, resistência e sobrevivência; um estudo sobre a vida do povo de
Israel durante a dinastia de Jeú, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de
São Paulo, 1998. 334 p. (dissertação de doutorado), e DREHER, Carlos A. Os exércitos
do reino do Norte; sua constituição, sua função e seus papéis políticos no conflito
social no sistema tributário, segundo distintas avaliações. São Leopoldo, Escola Su-
perior de Teologia, 1999.410 p. (dissertação de doutorado).

98
VIII, e a de Amós em especial, não só tem esse contexto como
pano de fundo, ela mesma é uma das vozes da gente do cam-
po. A base social e organizativadessa profecia é o campesinato.
Existem diversos intentos de relacionar a literatura
profética do século VIII com determinadas organizações,
embora raras vezes se tenha insistido em sua localização
social. Antes de nos concentrarmos em Amós, convém abrir
uma janela para essas pesquisas já empreendidas. Referi-
me, antes, à proposta de localizar Amós na sabedoria dos
clãs." Miquéias foi definido como "ancião de Moresete e
integrante do colégio dos anciãos de Judá"." Oséias provi-
ria de um grupo levítico de oposição." Em círculos seme-
lhantes ter-se-á originado o Deuteronômio original (Dt 12-
26),23 a partir do final do século VIII. Já existem, pois, di-

20 WOLFF, Hans Walter. Amos' geistige Heimat. Neukirchen, Neukirchener, 1964


(Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 18). Veja item
Amós - Um trabalhador, p. 49.

21 Idem. Mit Micha reden; einst und heute. München, Christian Kaiser, 1978. p. 16. Veja
também WOLFF, Hans Walter. Wie verstand Micha von Moreschet sein prophetisches
Amt? Supplements to Vetus Testamentum, v. 19, Leiden, E. 1. Bri11, 1978, pp. 403-417.

22 Idem. Hoseas geitige Heimat. Theologische Bücherei, v. 22, München, Christian Kaiser,
1964, pp. 232-250.

23 Sobre a origem do Deuteronômio existe toda uma gama de valiosos ensaios. Menciono
alguns: RAD, Gerhard von. EI pueblo de Dios en el Deuteronomio. Biblioteca de Estudios
Biblicos, v. 3, Salamanca, Sígueme, 1976, pp. 283-376; ALT, Albrecht. Die Heimat des
Deuteronomiums, em Kleine Schrifien zur Geschichte des VolkesIsrael. 3. ed., München,
C. H. Beck, 1964. v. 2, pp. 250-272; RAD, Gerhard von. Deuteronomium-Studien.
Theologische Bücherei, v. 48, München, Christían Kaiser, 1973, pp. 109-153; KOCH,
Klaus. Propheten lI; babylonisch-persische Zeit. Stuttgart, 1980, pp. 9-20 (Urban-
Taschenbücherei, 281); CRUESEMANN, Frank. "... damit er dich segue in aliem Tun deiner
Hand..." (Deuteronomium 14,29) - Die Produktionsverhâltnissc der spãten Kõnigszeit,
dargete11t am Ostrakon von Mesad Hashavjahu, und die Sozialgesetzgebung des
Deuteronomiums, In: SCHOTTROFF, Luise & Wi11y, orgs. Mitarbeiter der Schõpfung; Bibel
und Arbeitswelt. München, Kaiser, 1983. pp. 72-103; NAKA,'10SE, Shigeyuki. Para en-
tender o livro do Deuteronômio - Uma lei a favor da vida? Revista de Interpretação
Blblica Latino-Americana, v. 23, Petrópolis, Vozes, 1996, pp. 176-193.

99
versas tentativas para localizar parcelas significativas da li-
teratura do século em questão entre as camadas populares,
embora estas não primem por uma identificação social mais
pormenorizada do Sitz im Leben. Prossigamos, pois, tentan-
do realizar essa tarefa em relação a nosso visionário de Técua.

A própria existência do livro de Amós é inconcebível


sem pressupor grupos organizados de pessoas que o consi-
deraram valioso. Deram-lhe sua forma atual provavelmente
na época pós-exílica, quando lhe adicionaram os versículos
finais (cf. 9,11-15) e talvez incluíram os refrões litúrgicos
de 4,13; 5,8-9; 9,5-6 com vistas à leitura no culto comunitá-
rio. Nos decênios do exílio e antes dele, outros grupos dedi-
caram-se aos textos do profeta, estudando-os e aplicando-os
à sua situação específica, como se vê, por exemplo, em 1,2;
2,4-5; 4,6-12 etc. Portanto, o livro de Amós chega a nossas
mãos graças a grupos organizados - certamente nem de
longe majoritários em suas sociedades - que por séculos
reviviam a memória do mensageiro de Técua.
Também a primeira composição do livreto aflora em
meio a um extraordinário esforço organizativo. Afinal, Amós
foi enxotado de Bete! (cf. 7,10-17) e havemos de pressupor
que com isso encerrou sua atuação profética em Israel. Saiu
derrotado. Amasias e Jeroboão 11 deram-se por vitoriosos.
Ao menos num primeiro momento, pouca coisa falava a fa-
vor da profecia de Amós. Os fatos eram-lhe contrários e
hostis. Contudo, exatamente nessa situação de aparente der-
rota há algumas pessoas que se agrupam em tomo de Amós
e seus discípulos. Testemunham a validade e veracidade do
que o profeta dissera. Organizam um livreto, que deve ter

100
ficado pronto antes mesmo da conquista de Samaria, em
722.24 As palavras de Amós continuavam ecoando. Encon-
travam ouvidos. Agrupavam pessoas, em Judá e Israel, par-
ticularmente dentre a gente do campo. Nesse ninho foi
gestado o esboço do livreto de Amós, em sua extensão me-
nor do que nossa versão atual, contendo, porém, uma
amostragem do que de mais decisivo fora pronunciado pelo
profetizador.
Esse livreto que foi sendo organizado nos decênios
após a expulsão de Betel não parece ter sido a primeira com-
pilação de palavras de Amós. Os primeiros agrupamentos
de ditos são bem anteriores a esse livreto. Remontam à épo-
ca da atuação. São simultâneos a suas profecias. No decor-
rer dos capítulos anteriores falávamos dessas coletâneas. Aí
as designávamos de ciclos. Em Am 1-2, deparamos com o
ciclo dos povos (veja item Exército, cidade e templo, p. 62).
Em Am 7-9, com o ciclo das visões (veja item As visões,
p. 33). Um ciclo anti-Samaria pensamos haver encontrado
em Am 3,3--4,3 (veja item Exército, cidade e templo, p. 62).
Coletâneas parecidas, talvez não tão bem estruturadas, pos-
sivelmente poderiam ser encontradas em 5,1-17; 6,1-7; 8,4-
14. Esse tipo de agrupamento de ditos, designado de ciclo,
em parte ainda espelha a própria atuação do profeta e em
parte já vai forjando e consolidando suas palavras. Da fala
pública é feita memória. Ela é "gravada" na lembrança seja
do próprio profeta, seja do círculo de seus amigos. Por isso,
essas coletâneas apresentam muitos fenômenos mnemo-
técnicos, a começar pela quantia de ditos (três, cinco, sete),
passando por repetições intencionais de vocábulos ou ex-

24 Veja os argumentos em WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cít., pp. 131-135.

101
pressões inteiras e chegando à própria disposição dos diver-
sos ditos. Contudo, tais agrupamentos de ditos não são só
memoriais. Não correspondem apenas à transmissão oral.
Já se encontram na passagem para a escrita. A memória oral
passa à categoria do "rascunho de urna atuação pública",
corno dizia alguém." Vira panfleto, corno eu preferiria di-
zer. Tanto o processo de sedimentação da fala profética em
memoriais ou ciclos quanto sua fixação literária em "rascu-
nhos" ou panfletos representam fenômenos organizacionais
de primeira ordem. Representam um considerável grau de
aceitação popular da profecia e de organização do grupo em
tomo do profeta. Afinal, panfletos serviam para a difusão
das propostas proferidas por determinado visionário, em
nosso caso Amós. Sua função primária não era interna. Vi-
sava-se a leitores fora do círculo profético camponeses em
Israel e Judá. Os panfletos mostram, pois, que a profecia é
sustentada por gente organizada, concretamente, pelas pes-
soas do campo.
A esta altura de nossa reflexão cabe anotar o que se
entende, em nosso contexto, por lavradores organizados,
evidentemente sem delongas. O clã ou a grande família é o
núcleo elementar do povo camponês no contexto do tribu-
tarismo. Por meio dele as pessoas estão organizadas. Dele
brota a resistência contra a espoliação citadina e estatal. Seus
representantes tradicionais são os anciãos. No geral, estes
últimos estavam comprometidos com os anseios de sua gen-
te (cf. Jr 26,17-19). Por vezes, porém, também se aliavam
aos interesses da corte (cf. 1Rs 21), dando espaço a que ou-
tros viessem a representar e articular a gente do campo, tais

25 WOUF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cit., pp. 238 e 275-295.

102
como levitas e curandeiros populares, sábios e profetas.
Contudo, o papel decisivo na organização do povo da roça
não é desempenhado pelos anciãos, mas sim pelos próprios
clãs. Estes são a espinha dorsal da articulação e da força
campesinas.
Especificando o que, neste contexto, entende-se por
povo camponês organizado, retomamos à nossa questão. E,
de imediato, passamos ao ponto nevrálgico. Trata-se de ex-
plicar o próprio dito profético conforme à práxis organizativa.
Afinal, Amós não só expressa o que pessoalmente experi-
mentou. Ele é pastor de origem, vaqueiro e talhador de sicô-
moros por circunstâncias da vida. No centro de suas denún-
cias está não essa sua experiência, mas sim a de lavradoras e
lavradores. Há semelhanças entre uma e outra. Ambas são
feitas sob a opressão citadina e monárquica. Isso as toma
identificáveis. Aproxima-as, embora, no âmbito pessoal, a
vida de Amós não seja coincidente com a dos pobres com os
quais se solidariza. Sim, a profecia não é do tamanho da
experiência pessoal. É do tamanho da experiência coletiva
dos empobrecidos.
É fácil perceber que a denúncia não visa a um caso
isolado. Quando isso acontece, o caso é paradigmático (cf.
lRs 21; Am 4,1). Via de regra, a denúncia junta diversos
casos de injustiça. Soma experiências de opressão. Agrupa
dores. Organiza os clamores da gente da roça. Até mesmo
podemos observá-la em acusações que, à primeira vista, pa-
recem referir-se a uma só situação. Penso, por exemplo, em
4,1 e 5,11. Contudo, até aí são criticados, em cada versículo,
dois conteúdos diferentes. Nas outras acusações, isso é ain-
da mais patente. Pensemos na diversidade de crimes mencio-
nados no ciclo dos povos (cf. Am 1,3-2,16). Observemos o

103
verdadeiro catálogo de atrocidades sociais elencado na de-
núncia a Israel, em 2,6-8 (cf. nota 17). A denúncia contra
Samaria em 3,9-10 é composta de duas formulações distintas:
v. 9 e v. 10. Em 5,1-17, estão reunidas diagnoses das mais
diversas, de ordem econômica (v. 7) e jurídica (vv. 7.10.12),
a respeito de testemunhas (v. 10) e juízes (v. 12). Em 6,1-6
temos outra listagem, em que o v. 2 não se ajusta ao v. 3 e
este difere dos subseqüentes. Também 8,4-6 não chega a ser
coeso, como fica patente no v. 6b. Portanto, nas denúncias
estão reunidas as dores de muita gente. E isso se deve à reu-
nião dessas pessoas. O somatório de casos pressupõe seu
anterior intercâmbio. Em sua base está a organização. Ao
denunciar, o profeta mencionava não só o que seus olhos
viam, mas principalmente o que seus ouvidos escutavam.
Tomava-se porta-voz das opressões sofridas pelos clãs e por
eles contestadas. Por meio da denúncia profética, dá voz ao
povo do campo organizado. Neste o profeta está enraizado.
Passemos a uma síntese. Quis saber se os "pobres",
defendidos por Amós, estavam organizados. Para essa per-
gunta parti do pressuposto de que esses "pobres" são as pes-
soas do campo. Pude constatar que o campo, particularmen-
te pauperizado por Jeroboão, conseguiu articular-se a ponto
de interferir no ápice do poder, ao liquidar, na pessoa do
sucessor de Jeroboão 11, a própria dinastia. Daí deduzi que
uma profecia como a de Amós deve ter tido vínculos com
um tal campesinato organizado. Com base nessa suspeita,
passei a inquirir o próprio texto de Amós a fim de saber se
não poderia ser expressão de organização camponesa. Cons-
tatei que o texto de Amós, em geral, é um acontecimento
organizacional. E as críticas são, de modo bem especial,
desaguadouros do protesto social. Na base das denúncias de

104
Amós encontra-se, pois, o povo organizado do campo. Práxis
social camponesa é a base social da crítica de Amós.

Esperança para os empobrecidos?


Há esperançapara aspessoas espoliadas, para as pes-
soas empobrecidas no campo, mas organizadas?
O livro de Amós culmina num belíssimo cântico utó-
pico (cf. 9,11-15). Nele, é descrita a vida do camponês liber-
to da opressão (vv. 13.15). Contudo, essa canção utópica é
posterior a Amós. Quem a acrescentou a nosso livro talvez
tenha tido a impressão de que nele falava-se muito pouco de
promessa.
E, de fato, a ameaça a rei e reino e a defesa dos "po-
bres" e do "pequeno" "Jacó" perfazem os conteúdos princi-
pais das "palavras de Amós". Amós não chegou a tematizar a
promessa. Isso talvez também se deva à brevidade de sua atua-
ção. Portanto, quando se inquire as "palavras de Amós" quan-
to a suas promessas, coloca-se a elas uma questão que não
chegou a ser elaborada. Isso não significa que a pergunta pelo
teor da esperança não fosse válida. Significa que há proble-
mas especiais a enfrentar na obtenção de uma resposta.
Embora a utopia não seja tema precípuo das "palavras
de Amós", encontra-se nas entrelinhas. Atentemos para elas.
Em Amós os empobrecidos são apresentados, ao mes-
mo tempo, como vitimados e como justos, portanto como
atuantes em justiça comunitária. São gente destruída, mas
são também gente que constrói. Pois são "justos" (2,6 e 5,12).
Nunca são culpados. E jamais são ameaçados. Ainda que o
profeta não dissesse expressamente que os pobres não serão

105
aniquilados, como acontecerá com os exércitos, os sacerdo-
tes, as elites, enfim o Estado, seria de supor que sobrevive-
rão à catástrofe." Pressupor a destruição da gente pobre, do
"pequeno", do "Jacó", seria um contra-senso. Faria sentido
ameaçar a uns (exército, elite de Samaria etc.) e defender a
outros ("pobres", "escravas" etc.) se na hora do juízo des-
truidor ambos tivessem o mesmo destino?
E, efetivamente, em diversas passagens estão pressu-
postas a sobrevivência dos fracos e a mudança de suas con-
dições de vida. Observemo-lo em alguns textos:
Ao ameaçar Amasias (cf. 7,16-17), o profeta afirma,
entre outras:

Tua terra será repartida a cordel (7,17).

Tal ameaça de expropriação do sacerdote Amasias só


faz sentido se houver quem receba a terra repartida. Amós
continuamente fala deles: são os "pobres" feitos escravos,
os lavradores (cf5,16). Podemos, pois, pressupor que a terra
de Amasias será distribuída entre os camponeses oprimidos

26 A semelhante resultado também chega POLLEY, Max E. Amos and lhe Davidic Empire;
A Socio-HistoricaIApproach. New York, Oxford University Press, 1989.243 p. Seus
encaminhamentos, porém, são outros. Pressupõe que Amós teria atuado no Norte
justamente para reintegrar Israel a Judá, ao reino davídico (veja sua tese nas pp. 3-4).
Por esse caminho chega ao resultado de que em Israel, isto é no reino do Norte, as
elites serão destruídas, mas os pobres sobreviverão, justamente para poderem reinte-
grar-se a Judá, ao reino davídico: Given Amos 'message o/socialjustice, lhe poor and
lhe needy wouldprobably escape destruction and inherit lhe land [Dada a mensagem
de justiça social de Amós, o pobre e o necessitado provavelmente poderiam escapar à
destruição e herdar a terra, (p. 172)]. O problema dessa tese de Max E. Polley reside
em que é muíto improvável que se consiga provar que Amós é representante do
davidismo (considerando que Am 9,11-12 há de ser adendo judeu). Contudo, esse
autor percebeu adequadamente que nosso profeta somente ameaça a Israel/elite, não
a gente empobrecida.

106
(cf. Mq 2,1_5 27 ) . Na ameaça contra o sacerdote está, pois,
implícita a esperança camponesa por terra.
Para o "lavrador" há futuro: é o que 5,16 confirma
indiretamente, ao prenunciar:

Em todas as ruelas dirão: Ai! Ai!


Chamarão o lavrador para o pranto.

o "lavrador" é, pois, solicitado a participar dos ritos


fúnebres em prol dos cadáveres espalhados pela cidade. Pres-
tará as últimas honrarias àqueles que foram seus verdugos.
Jã víamos em 2,1 (confira item Esperança para os ameaça-
dos? p. 77) quão respeitoso Amós sabe ser em relação a ex-
ploradores quando defuntos. É o que também sucede em 8,3,
um texto difícil:

Gemerão as cantoras do palácio.


Naquele dia, dito do Senhor Javé, muito cadáver!
Estão jogados em todos os lugares.
Silêncio!.

Em Amós, o extermínio do explorador não é motivo


de festa ou júbilo, nem mesmo quando se trata dos opresso-
res do palácio. É motivo de reflexão sobre o ocorrido, de
contrição, de ritos fúnebres. Essa atitude de respeito e la-

27 E considere principalmente o ensaio de ALT, Albrecht. Micha 2,1-5 - Gês Anadasmós


in Juda, em Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes Israel. 2. ed., München, C. H.
Beck'sche Verlagsbuchhandlung, 1968, v. 3, pp. 373-381, e liAHN, Noli Bernardo.
Miquéias 2,1 -5; profecia e luta pela terra-uma leitura da influência da situação histó-
rico-social nas últimas décadas do século VIII a.C., em Judá na vida da antiga ordem
tribal. São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 1992. 156 p.
(dissertação de mestrado).

107
mento toma consciência do que foi, libertando para o novo
que vem. Amós não chega a descrever esse novo, mas chega
ao limiar do recomeço. Alcança o Monte Nebo, sem, contu-
do, ingressar na terra.
Conhece, porém, os conteúdos da utopia. Sabe dos crité-
rios para a nova vida de "lavradores", "cantoras do palácio",
"pobres". Formula-os por diversas vezes: 3,lOa; 5,4.14-15.24.
Poderíamos condensá-los nos dois postulados seguintes:

Buscai-me e vivei! (5,4).


Corra como água o direito!
A justiça como ribeiro perene! (5,24).

Um novo culto sob a orientação da palavra profética e


uma nova sociedade sob os parâmetros de "direito" e "justi-
ça" são o núcleo da utopia de nosso visionário.
Por certo, Amós não chegou a elaborar essa sua uto-
pia. A ela só aludiu. Evocou-a em pinceladas. Tomou-a pre-
sente como um lampejo. Em todo caso, a esperança não fi-
cou de lado. Há futuro para o pequeno "Jacó" (7,2.5), para o
"resto de José" (5,15), para uma parte da "casa de Jacó"
(9,8). Portanto, em Amós a utopia dos pobres marca presen-
ça, embora o faça qual repente.

Retrospectiva
Neste quarto estudo, novamente nos concentramos nas
"palavras de Amós". Voltamos a enfocar sua mensagem. A
ameaça fora o tema da terceira reflexão. Agora, quisemos
identificar o sentido da denúncia, que vem a ser o reverso da
ameaça. Ambas - denúncia e ameaça - estão intimamen-

108
te conectadas. E, agora, na retrospectiva trato de identificar
os traços principais desta reflexão sobre a crítica profética.
As questões denunciadas são de ordem social. A opres-
são social é o "terror total". Em Amós a crítica religiosa é
parte dessa sua crítica social. Nesse ponto, Amós se diferen-
cia de Oséias.
As pessoas, defendidas por Amós mediante sua crítica
social, são os "pobres", "magros"/"fracos" e "oprimidos".
Esses e termos similares designam camponeses empobreci-
dos, prestes a serem transformados em escravas e escravos
ou recentemente escravizados. O profeta sai em defesa da
gente do campo.
Essa gente do campo, pela qual bate o coração profé-
tico, não são meramente indivíduos isolados. São grupos
organizados segundo seus clãs em razão de sua pauperização.
O profeta é um broto desse tronco.
Como trabalhador sazonal, Amós é irmão de sina dos
"pobres", "magros" e "oprimidos".
Nesse profeta, a esperança não chega a ser um tema
especial, mas está implícita. Amós conhece a utopia dos
pobres. As palavras dos que acrescentaram 9,11-15 pode-
riam ser também as suas:

Plantá-1os-ei na sua roça.


Dessa roça que lhes dei
já não serão arrancados.
Disse Javé, teu Deus (9,15).

109
A denúncia de Amós fala a nós. Interpela nossa situa-
ção. É como se as críticas estivessem referindo-se à atual
realidade de opressão e exclusão dos pobres, de mulheres e
homens, crianças miserabilizados.
Há poucos anos acontecia o seguinte. Num desses pro-
gramas que as Igrejas mantêm em rádios foi lido um texto
de Amós. A simples leitura do texto provocou a ira da re-
pressão policial. O locutor teve de explicar-se junto aos ór-
gãos policiais. Sim, a crítica social de Amós é de palpitante
atualidade. Poder-se-ia até dizer: basta lê-la!
Não só suas palavras são atuais. Seu método também,
pois ele não se esgota numa denúncia genérica do pecado so-
cial. Vai ao concreto, aos detalhes, à vida cotidiana. Recorre
às mediações. E chama as coisas pelo seu nome concreto.
Isso não faz com que os pobres estejam excluídos do
pecado. Não os transforma em "santos". Nem opta por eles
por causa de sua isenção de pecado ou por causa de sua su-
posta perfeição. O "terror total", no qual vivem os pobres, é
o que motiva sua defesa. Em Amós, essa defesa dá-se de
uma forma tão intensa e radical que se pode afirmar que aí,
nesse grito pelo pobre, tudo se decide. A veracidade da fé é
afunilada em direção da defesa dos empobrecidos. Nessa
questão concretíssima decide-se a teologia. "Aquele que não
ama não conhece a Deus, pois Deus é amor" (lJo 4,8).

110
Canto de esperanza

Algún dia los campos estarán siempre verdes


y la tierra será negra, dulce y húmeda.
En ella crecerán altos nuestros hijos
y los hijos de nuestros hijos ...

Y serán libres como las árboles del monte


y las aves.

Cada mafiana se despertarán felices de poseer la vida


y sabrán que la tierra fue reconquistada para ellos.

Algún dia...

Hoy aramos los campos resecos


Pero cada surco se moja con sangre."

28 ZAMORA, Daisy. Canto de esperanza. Nuevo Amanecer Cultural, Managua, ano 6,


n. 263 (sábado 29 de junho de 1985), p. 6.

111
5. "Não fIZ subir os fílísteus de Cáftor?"

Para el cristiano del Tercer Mundo no hay encuentro con el


Misterio del Dios liberador, dador de vida, sin la decisión y
acción de caminar con Dios hacia las metas liberadoras en
la historia. Dios está atento y escucha los clamores deI
pueblo latinoamericano que vive un verdadero cautiverio
dentro de su propia tierra.'

Reflitamos sobre a teologia de Amós. Estamos fazen-


do isso desde o início de nossos estudos. Quando descrevía-
mos o contexto e a pessoa, a ameaça e a denúncia, fazíamos
teologia. Nas "palavras de Amós", Deus não é um item. Quiçá
substituível. Deus antecede às palavras do profeta, cria-as,
transcende-as. Em toda sua profecia transpira teologia.
Se, pois, agora tematizo a experiência teológica do
visionário de Técua, é porque os itens anteriores eram ne-
cessários para o que gostaria de enfocar nesta quinta refle-
xão. Facilitam nossa nova tarefa.
Qual é, pois, o testemunho de Amós sobre Javé?"

1 ARAvA, Victorio. El Dios de lospobres; el misterio de Dios e la teologia de la liberación.


San José/Costa Rica, DEI, 1983. p. 223.

2 Sobre a teologia de Amós, confira RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento.
São Paulo, Aste, 1974. v. 2, pp. 124-132; FUEGLlSTER, Nother. Arrebatados por Iahweh
- Anunciadores da palavra - História e estrutura do profetismo em Israel. In: 8cHREINER, J.,
org. Palavra e mensagem. São Paulo, Paulus, 1978. pp. 179-209; ZABATlERO, Júlio

113
Não se trata de querer descrever todas as particulari-
dades teológicas transparentes no texto. Afinal, Amós é fi-
lho de seu povo. Partilha com sua gente o que lhe foi trans-
mitido por mãe e pai, pela tradição de sua aldeia e dos luga-
res cúlticos. Certamente conhecia as histórias contadas a res-
peito de Isaque (cf. 7,16) e de Jacó (cf. 7,2.5). Sabia das
tradições cúlticas de Bersabéia (cf. 5,5) e de Betel (3,14;
4,4) etc. Se quiséssemos ser exaustivos, teríamos de levar
em conta essas e outras referências. Isso poderia ser interes-
sante, mas correríamos o risco de não chegar ao núcleo da
questão teológica apresentada por Amós. Proponho, pois,
que perguntemos pelo que há de específico e característico
em Amós. Onde estão os eixos de seu testemunho de Javé?
Perguntemos por suas encruzilhadas teológicas.
Nessa tentativa de concentrar o enfoque teológico de
Amós, ao meu ver não restam dúvidas quanto ao que se deva
ressaltar em primeiríssimo lugar. Afinal, o primeiro versículo
de Amós é sintomático.

Profecia - Ponte entre Javé e seu povo


EmAm 1,1, Javé não é mencionado. Isso talvez fosse
mero acidente, acaso. Essa suposição, porém, passa a um
segundo plano quando se constata que - intérpretes poste-

Paulo Tavares. Amós e a missão da Igreja brasileira na atualidade. Boletim teológico,


v. 5, São Leopoldo, Fraternidade Teológica, 1985, pp. 47-108; WOLFF, Hans Walter.
Dodekapropheton 2; Joel undAmos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 121-129
(Biblischer KommentarAltes Testament, 14/2); RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-
Jona. Gütersloh, Gütersloher, 1971. pp. 287-292 (Kommentar zum Alten Testament,
13/2); KOCH, Klaus. Die Propheten I; Assyrische Zeit. Stuttgart, 1978. pp. 8-88 (Urban-
Taschenbücher, 280).

114
riores - se viram animados a acrescentar o v. 2. 3 Esse
versículo é eminentemente teológico: celebra Javé. Seu as-
sunto é, pois, justamente aquele que estivera ausente no v. 1.
Sutilmente corrige a porta de entrada proposta no cabeça-
lho. Além do mais, o v. 1 confere com o restante do livro.
Nele, é afirmado, nas mais diferentes variações, que para
entender a "palavra de Javé" (7,16) importa captar as "pala-
vras de Amós", os ditos proféticos. Em Amós, o mediador
de Javé é o profeta ou, se quisermos fazer jus a 7,14 ("eu
não sou profeta"!), o visionário, o profetizador, o mensagei-
ro, o vaqueiro, o pastor e trabalhador sazonal.
Para bem aquilatar essa posição, convém que se lhe
contraponham outras possibilidades. Afinal, o postulado de
que a profecia é a ponte entre Javé e seu povo não deixa de
ser uma antítese. Contrapõe-se evidentemente ao sacerdó-
cio como intérprete privilegiado da história de Javé conosco.
Já fazia séculos que o sacerdócio assumira as rédeas da teo-
logia formulada nos santuários. Os reinados trataram de cons-
truir templos. No Sul, Salomão executara a obra (cf. 1Rs 6-8);
no Norte, tarefa similar coube a Jeroboão I (cf. 1Rs 12,26-
33). Nesses templos, celebravam-se ritos sagrados, em dias
sagrados, por pessoas sagradas. O sacerdócio era central na
teologia desenvolvida nesses santuários, mas não se restrin-
gia a eles. É anterior à edificação de casas para Javé (cf. Jz
17-21; lSm 1-3). Continuou a existir paralelo aos grandes
santuários, no mínimo até Josias (cf. 2Rs 22-23). Para Amós,
nem o sacerdote e nem os rituais celebrados junto aos tem-

3 Discute-se a autoria do v. 2. Para Wilhelm Rudolph (Joel-Amos-Obadja-Jona, cit.,


pp. 109-118), trata-se de um texto de Amós. Muitos consideram-no um acréscimo
posterior (confira por exemplo: HORST, Friedrich. Die Zwôlf Kleinen Propheten.
Tübingen, J. C. B. Mohr, 1964. p. 75 [Handbuch zum Alten Testament, 14]).

115
plos têm significado teológico especial. Amasias refuta a
profecia (cf. 7,10-17). Em Bete! e Guilgal multiplicam-se
transgressões (cf. 4,4). Os intérpretes judeus que agregaram
1,2 estavam, pois, percebendo quão radicalmente antitemplo
era o talhador de sicômoros de Técua.
À semelhança do sacerdócio, também ao reinado não
é reservado nenhum papel teológico. O rei não é parte das
ordens salvíficas. Dele só é falado no âmbito da morte. Mor-
rerá à espada (cf. 7,11), com sua dinastia (cf. 7,9), abraçado
a seu reino (cf. 9,8). Também essa é uma antítese, pois cer-
tamente também os reis do Norte postulavam para si papéis
teológicos de certa relevância. Conhecemo-lo do Sul, dos
daviditas de Judá (cf. 2Sm 7; SI 20-21; 45; 72; 110; 132
etc.). Entendiam-se como dom salvífico." No Norte, a ideo-
logia real parece não haver chegado a tanto (cf. Dt 17,14-
20). Em todo caso, paraAmós rei e reinado não servem como
mediadores ou intérpretes qualificados de Javé. Pelo contrá-
rio. Sua qualidade teológica é nula. Parece-me que os intér-
pretes judeus, novamente, foram bons ouvintes de Amós ao
adicionarem a seu livro uma promessa davídica (cf. 9,11-
12) que tratasse de corrigir o antimonarquismo e antidavi-
dismo do profetizador.
Pelo que se vê, a afirmação de que Javé atua em Israel
e entre os povos mediante a profecia é, simultaneamente,
uma contestação ao sacerdócio e ao reinado como eventuais
mediadores de propósitos divinos. Rito sacerdotal e poder
monárquico estão, pois, descartados.
Feita essa delimitação da profecia em relação ao sa-
cerdócio e à realeza, passemos a perguntar: como se mani-

4 Veja RAD, Teologia do Antigo Testamento, cit., v. 1, pp. 299-309.

116
festa essa profecia que não é nem rito e nem poder? De que
se vale?
É visão, conforme afirma o cabeçalho do livro (cf. 1,1).
Todo um ciclo o pormenoriza (cf. Am 7-9, confira item As
visões, p. 33). Embora já se conhecesse a visão muito antes
de Amós (Nm 22-24; 2Sm 23; lRs 22) - possivelmente
representa uma tradição de seminômades' - , ela não obe-
dece a um padrão litúrgico-cultual, 6 Não é uma espécie de
ritual agendário-litúrgico. É justamente o contrário. Não há
como controlá-la (cf. Nm 22-24) nem como padronizá-la.
(Basta comparar Is 6; Jr 1; Ez 1-3.) É antes um fenômeno
profundamente carismático, não apropriável institucional ou
agendariamente.
É audição; tanto em Am 1,1 quanto nas visões de Am
7-9 a experiência visionária está conectada à audição. Amós
fala com Javé (cf. 7,2.5) e ouve a voz divina (cf. 7,8; 8,2)
dentro de sua visão. Em 3,8, deparamos com a condensação
dessa experiência de audição:

o Senhor Javé falou!


Quem não profetizará?
Amós ouviu Javé. E isso visivelmente lhe é mais rele-
vante do que sua visão. Pois em seguida a audição o fez
entender o conteúdo de suas visões. Amós é um proclamador
não de suas visões, mas sim do conteúdo de suas audições.

5 Compare WESTERMANN, Claus. Propheten. In: REICKE, Bo & ROST, Leonhard, orgs.
Biblisch-Historisches Handwõrterbuch, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
v. 3, co\. 1499.
6 Como liturgia, as visões tendem a ser entendidas por REVENTLOW, Hennig Graf. Das
Amt des Propheten bei Amos. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962 (Forschung
zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testarnents, 80).

117
Nele, a audição toma-se critério da visão. Justamente por
isso faz-se necessário afirmar, agora, ainda o seguinte a res-
peito de sua profecia:
É recado. Amós foi feito portador de um recado, de
uma mensagem. O conteúdo desse recado é o que, de fato,
valida suas visões e audições. Ao desincumbir-se de seus
recados, constantemente remete à origem do que tem a dizer:
"Assim disse Javé" (veja item "Assim disse Javé ", p. 44).
Ao memorizar sua vocação, por ocasião do conflito com
Amasias, Amós toma muito patente o quanto ele se entende
como transmissor de um recado:

Javé me tomou detrás das ovelhas;


e Javé me disse:
Anda!
Profetiza a meu povo Israel! (7,15).

É convocado a "andar" em meio à sua gente e a "pro-


fetizar". Veio do Sul, de Técua, e falou no Norte, em Israel.
Foi a Betel, a Samaria, a Guilgal e, certamente, a outros luga-
res. Foi aos destinatários de seus recados. Não os fez chegar a
ele. O rito sagrado e o rei exigem peregrinações dos ouvintes;
a profecia exige a peregrinação, o "andar" do emissário. A
teologia profética é uma teologia do "ir", não do "vir". O pro-
feta assemelha-se a um carteiro, não a um banqueiro.
Em Amós, a profecia serve-se, pois, da visão, da audi-
ção e do recado. (Em outros profetas, acrescentar-se-iam
ainda as ações simbólicas, como em Os 1-3 eIs 20.)A visão
está conectada à audição, como vimos em Am 7-9. Visão/au-
dição e recado encontram-se no âmbito da palavra. E a pala-
vra - ou, em hebraico, o dabar - é o veículo predileto da
118
profecia (Jr 18,18). É a especialidade dos videntes e
profetizadores.? Neles e, em Amós em especial, a "palavra
de Javé" (7,16) está dita na "palavra" do profeta (cf. 1,1). A
teologia do talhador de sicômoros de Técua é uma teologia
da palavra. Tratemos de detalhá-la um pouco.
Também sacerdotes agiam no espaço da palavra, em-
bora o rito lhes fosse mais importante, uma vez que estavam
vinculados aos templos. Em todo caso, não se restringiam
ao dabar, como era o caso dos profetas. Nesse sentido, os
sábios são os que mais se aproximam de nossos profetiza-
dores. A fala é o que os caracteriza. Formulação de senten-
ças e elaboração de conselhos fazem parte de suas tarefas.
Amós aparentemente vem dessa experiência. Sua teologia
da palavra está, pois, enraizada na sabedoria popular das al-
deias campesinas. Vem da experiência do vigor da fala e da
memória em tradições populares.
Rito e realeza tendem à auto-suficiência. Não preci-
sam necessariamente de ouvintes ou expectadores. São ca-
pazes de excluí-los, de prescindir-lhes. Não é o que ocorre
com palavra e sabedoria. Observam, analisam. Necessitam
de eco. O eco à palavra é parte da própria palavra. Sem re-
tomo é vazia. Tem vida curta. Nasce morta (cf. Is 55,10-11).
Palavra não se restringe, pois, a seu evento acústico. Incor-
pora a realidade, da qual vem e para a qual se dirige. É fala
e coisa. Nesse sentido, a teologia profética é teologiasegun-
do o dia-a-dia. É um diálogo da fé com a experiência.
Uma tal teologia é dificil de pôr sob domínio. Foge a
currais. Não se poderia dizer o mesmo do sacerdócio. Ele

7 Observe RAD, Teologia do Antigo Testamento, cit., v. 2, pp. 80-96.

119
está vinculado ao altar. À medida que se encurrala o altar,
passa-se a ter domínio sobre os agentes do sagrado. Ao in-
terpretar o sentido de Deus conforme o altar, os sacrifícios e
a realeza, o sacerdócio toma-se deveras vulnerável. Com a
profecia não sucede o mesmo. Ela lê o sentido de Deus nos
eventos da vida de cada dia e da história.
É difícil domesticar a teologia profética. Nisso reside
seu vigor carismático. Contudo, nisso também reside sua
aparente fragilidade. Continuamente está exposta à contes-
tação. Todos podem contestá-la: sacerdotes (cf. 7,10-17),
profetas cortesãos (cf. lRs 22), o rei (cf. Is 6-9), o povo (cf.
Jr 26). Não é por acaso que a Bíblia fala de poucos conflitos
entre sacerdotes, mas de muitos atritos entre profetas (Jr 27-
29). Acontece que o profeta não tem outro escudo e poder
que os de sua fala (cf. Jr 23-29). E esses são frágeis. Qual-
quer Amasias da vida pode aplicar a censura. Teologia da
palavra é teologia segundo a experiência da fragilidade.
Os próprios profetas vivenciaram isso repetidas vezes
em sua história. Jeremias legou-nos os cânticos de sua dor
(cf. Jr 20). Sua vida foi qual paixão (cf. Jr 37-45). O Dêutero-
Isaías nos conta a dor e o sofrimento do "servo de Javé" (cf.
Is 52/53). A fragilidade da palavra profética retro agiu sobre
os próprios portadores. Foram feitos servos sofredores. Nessa
sua fragilidade reside o segredo de sua força, de sua inque-
brantabilidade.
Nesse ponto de nossa meditação sobre a teologia pro-
fética de Amós, convém ampliar a perspectiva e agregar al-
gumas considerações de ordem mais geral. Afinal, a teolo-
gia da palavra é decisiva na Escritura e não se restringe à
profecia. É anterior aos profetas. Já marca presença nas nar-
rativas, por exemplo, do pentateuco. Nelas, a memória teo-
120
lógica do povo não tem outro instrumento que a transmissão
oral das cenas de seu passado. A novidade dos profetas consis-
te não em se referir ao passado, em articular teologia com o
auxílio da memória, mas sim em fazê-la com base na reali-
dade presente. Isso toma-a especialmente vulnerável e con-
testável. Um dos pontos altos da teologia da palavra é o ca-
tiveiro babilônico do século VI, quando sacerdócio, templo,
realeza e terra estavam demolidos e perdidos. Nesse contex-
to do exílio, só restava a palavra - de memória e de espe-
rança. Também o Novo Testamento cabe nesse contexto.
Afinal, seu berço não são ritos, mas palavras e ações de Je-
sus. Essas breves notas já nos auxiliam a perceber o quanto
- em Amós e na Escritura em geral- a teologia da palavra
é um testemunho com base na fraqueza, em quem não de-
tém o poder. Teologia da palavra é teologia de resistência,
em Amós de resistência contra sacerdócio e realeza, contra
a opressão e o "total terror" contra os empobrecidos. Teolo-
gia da palavra é teologia de gente empobrecida, enfraquecida,
crucificada.
Observamos, portanto, que para nosso visionário de
Técua o profeta é mediador de Javé. Para a vida, é decisivo
buscar a palavra profética. "Buscai-me e vivei" (5,4) signi-
fica: segui a palavra do profeta." O único poder do profeta é
o de sua palavra frágil, isto é, ao ser enxotado de Betel, Amós
realmente teve de sair de cena, porque Amasias era mais
poderoso. A palavra profética sofre, assim, o destino dos
pobres que defende.

8 Sigo, aqui, a interpretação dada ao versiculo por WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel


und Amos, pp. 278-280.

121
Sentido teológico de ameaça e denúncia
A palavra profética, em relação à qual se decide vida
ou morte, assume em Amós duas perspectivas específicas
principais. Estas são: ameaça e denúncia, como víamos em
meditações anteriores (veja capítulos 3 e 4). Para compreen-
der a teologia da palavra deste nosso profeta, será, pois, im-
prescindível atentar para estas duas dimensões que sua fala
assume. Entender a teologia de Amós equivale a aperceber-
se primordialmente do sentido teológico da crítica ou de-
núncia e da ameaça ao Estado.
Quando temos ameaça, lê-se por exemplo o seguinte:
"não sustarei o castigo" (1,3.6.13 etc.), "meterei fogo" (1,4.7;
2,2), "quebrarei" (1,5), "abrirei uma fenda" (2,13), "derru-
barei" (3,15), "jamais passarei" (7,8; 8,2), "não esquecerei"
(8,7), "destruirei" (9,8). Outras expressões mais poderiam
ser adicionadas. Delas se deduzem duas coisas: Primeiro-
Javé é o sujeito das ações aniquiladoras. Ele é o executor
das ameaças. Via de regra, isso está explicitamente dito, como
vimos nos exemplos anteriores. Outras vezes está implícito
(cf. 2,14-16 e 5,1-3). Contudo, é sempre Javé quem decide
as ações, até mesmo numa passagem como 6,13-14, na qual
aparece uma reflexão sobre as mediações desse agir exclu-
sivo de Deus. Segundo - a destruição recai somente sobre
os opressores, suas instituições (exército, templo, cidade) e
seus representantes maiores (rei e Estado). O juízo divino é,
em Amós, juízo de opressores. Nele, não está em discussão o
juízo contra todo o povo. Ao meu ver, cria-se confusão teoló-
gica na interpretação de Amós se não se observa o seguinte
dado elementar: seu juízo total é contra os totalitários.
Essa ameaça irredutível contra os dominantes é a pa-
lavra de Javé, agora, válida. Esse também é o ponto nevrál-

122
gico da teologia. Em Amós, fala-se de Deus segundo a sen-
tença contra os opressores. Esse é o novo de sua teologia."
Seu modo de fazer teologia toma como ponto de partida não
um conceito genérico e amplo de Deus - este certamente
lhe era conhecido e pressuposto - , mas sim a intervenção
histórica concreta de Javé. Parte de um dado histórico, visí-
vel e palpável: a opressão e a ameaça da gente opressora.
Seu falar sobre Deus vem, pois, do chão da história, não de
abstrações genéricas.
Amós parte do presente para testemunhar seu Deus.
Isso, porém, não implica que reduza Javé ao presente. Afi-
nal, a decisão teológica antiopressão não foi tomada pela
primeira vez por Amós. A história teológica do povo de Deus
confessa-a continuamente. Encontramo-la nas histórias de
Sara e Abraão, nas quais o Deus dos antepassados fala sua
palavra por meio de pastores seminômades, espoliados e
continuamente ameaçados por reis cananeus (cf. Gn 19; 26).
Verificamo-la no que ocorreu com os hebreus escravizados
no Egito pelo poder faraônico, contra o qual Javé animou
seu povo. Conhecemo-la dos libertadores do livro de Juízes,
vocacionados por Javé para livrar as tribos de invasões de-
vastadoras. Portanto, o Deus que intervém, por meio do pro-
feta, contra dinastia e Estado é o mesmo que interviera, no
decorrer da história, contra faraós, reis e invasores.
Nosso profeta quase não alude a esse passado. Seu
interesse é o presente. Por ele é absorvido em seu teologizar.
Ainda assim, ao menos uma vez, recorreu ao passado para
afiançar que Javé atua contra os poderosos, contra os "ce-

9 Quanto à questão da especificidade da teologia profética, veja também RAD, Teologia


do Antigo Testamento, cit., v. 2, pp. 167-178.

123
dros" e "carvalhos". É o que está em 2,9, embora a passa-
gem não vise justificar nem a destruição dos fortes nem a
defesa dos fracos. No mais, Amós não chega a recorrer à
história salvífica para embasar sua ameaça profética contra
o Estado. (Quanto à temática do êxodo, veja item O êxodo,
p. 127) A teologia profética efetivamente se decide no hoje,
não no ontem. Faz-se com base na atualidade da fala e na
atuação profética.
Essa atenção primordial para uma teologia que faça
jus às exigências contextuais permite que recebam pouca
atenção ou até sejam negadas tradições teológicas caras do
passado. Esperar-se-ia que houvesse alguma referência aos
mandamentos. Afinal, as denúncias feitas cabem dentro dos
conteúdos, por exemplo, da coletânea de proibições de
Ex 20. Não há, porém, nenhuma alusão. 10 Igualmente seria
de esperar que Javé fosse citado como o Deus de Israel, mas
isso não sucede. Pior. A relação pactual entre Javé e Israel é
como que negada. Ao menos é assim que entendo 7,8 e 8,2
(cf. também 7,15; 9,10). Aí a expressão "meu povo Israel"
pressupõe uma teologia que afirma a íntima correlação en-
tre Javé e Israel (cf. 3,1-2, embora ao menos parte do texto
seja um adendo); pressupõe o que se costuma chamar, com
certeza inadequadamente, de "teologia da aliança"!' (veja
Os 1,9). Contudo, em 7,8 e 8,2 essa teologia é expressamente

10 Compare BACH, Robert. Gottesrecht und weltliches Recht in der Verkündigung des
Propheten Amos. In: SCHNEEMELCHER, Wilhelm, org. Festschrift fur Günther Dehn.
Neukirchen, Neukirchener, 1969; KRAMER, Pedro. Teologia da berit na exegese dos
últimos cinqüenta anos. Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica, 1978 (dis-
sertação de mestrado).

11 Veja PERLITT, Lothar. Bundestheologie im Alten Testament. Neukirchen, Neukirchener,


1969 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 36); KRAMER,
Teologia da berit na exegese dos últimos cinqüenta anos, cit.

124
negada. O motivo é bastante evidente: com ela os soberanos
e palácios (cf. 7,9 e 8,3) podiam justificar e estabilizar sua
dominação. Ao negar o Estado, Amós também se distancia
da teologia usada para manter a dominação.
Por conseguinte, diante do novo e atual testemunho pro-
fético sobre Javé como destruidor do Estado, a memória teo-
lógica torna-se insuficiente. Vê-lo-emos com densidade ain-
da maior quando nos referirmos à teologia do êxodo em Amós.
Em relação à denúncia sucede algo similar ao que for-
mulávamos a respeito da ameaça. Também a denúncia está
primordialmente voltada à atualidade, ao que os olhos de
Amós viam e ao que ele experimentava na solidariedade com
os empobrecidos. A dor dos pobres já é, em si, um dado
teológico. O gemido dos oprimidos é foco teológico. Seu
grito basta para que Amós, em nome de Javé, vá em sua
defesa." Habituamo-nos a ter de justificar a defesa dos fra-
cos. Marginalização e pauperização tornaram-se tão "nor-
mais" e tão necessárias no sistema capitalista que vivemos
tendo de justificar com muitos argumentos humanitários teo-
lógicos por que praticamos a defesa dos pobres. Amós não
se dá a esse trabalho. Para ele, a violação da escrava ou a
espoliação do camponês são dados suficientes para ir em
defesa desses "justos".
Opressão dos pobres é "crime". Essa afirmação per-
passa o ciclo dos povos qual refrão (cf. 1,3.6.13 etc.). É o
principal conceito teológico, no qual nosso profeta resume a
situação reinante." "Crime" e pecado condensam-se para

12 Cf. COMBLIN, José. o clamor dos oprimidos; o clamor de Jesus. Petrópolis, Vozes, 1984.
13 Veja WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, pp. 185-186.

125
ele na espoliação dos pobres. Isso não significa que o peca-
do não tenha também outras dimensões ou concretizações.
Significa que, em Amós, o conceito de pecado afunila-se
nessa denúncia da opressão social. Sua teologia do pecado é
concretíssima; verifica-se nos detalhes da vida, em horrores
praticados, dia a dia, contra gente enfraquecida.
Neste afã de ter a opressão dos pobres e sua defesa
como ponto de partida, Amós novamente não se preocupa
em ancorar sua opção teológica na história passada. Não re-
corre aos mandamentos que proíbem a exploração dos fra-
cos. Não menciona os hebreus oprimidos no Egito. E, na
única vez que nesse contexto aponta para o passado, em 2,9,
fá-lo para dar vazão à sua perplexidade. É-lhe espantoso que
o Israel, que fora defendido por Javé diante dos amorreus
gigantescos e poderosos, passe a oprimir por sua vez os
empobrecidos:

E eu destruí diante deles os amorreus,


cuja altura era como a dos cedros,
que eram fortes como os carvalhos.
Destruí seu fruto por cima
e suas raízes por baixo.

Como esse Israel pôde arrogar-se oprimir seus pobres?


É um escândalo! Portanto, ao atentarmos para a ameaça e a
crítica proféticas, constatamos que, nos conteúdos centrais
de sua palavra, a teologia de Amós é vivenciada em relação
ao presente. Testemunha do Javé que atua na história que
está aí. Age repudiando a uns e libertando a outros. EmAmós
temos, pois, uma teologia que lê a história. Lê o hoje. Essa
história é marcada pelo grito do pobre.

126
Teologia que não seja pertinente à dor do povo não
merece ser chamada de teologia javista, de teologia do Deus
da vida. Eis um dos legados teológicos primordiais do tra-
balhador sazonal de Técua.

o êxodo
Vimos que Amós não atenta muito ao passado. Sendo
assim, inevitavelmente surge a pergunta pelo êxodo. Afinal,
a ameaça aos poderosos e a defesa dos pobres é, justamente,
também o que ternos na tradição do êxodo (cf. Ex 1-15; Dt
26,1-11 etc.). Amós deveria recorrer muitas vezes à luta en-
tre hebreus e faraó, a figuras corno as parteiras e corno Moisés
para embasar sua proclamação. Em nossa sofrida América
Latina, até esperaríamos que Amós procedesse assim. Em
nossa hermenêutica, o êxodo ocupa lugar central. 14
Portanto, a teologia de Amós é urna teologia do êxodo?
Qual é a importância da tradição do êxodo no profeta? Des-
sas duas perguntas ocupar-nos-emos no que segue.
Trata-se efetivamente de duas questões. Urna é a per-
gunta pelo jeito de Amós lidar com a tradição. Outra é a
pergunta se a teologia de nosso visionário segue os parâ-
metros da teologia do êxodo. A teologia de Amós estrutural-
mente é equiparável ao testemunho teológico encontrado na
memória do êxodo? Ocupemo-nos primeiramente dessa
questão.
E, de fato, não me parece haver dúvida de que o jeito
teológico de Amós é, exatamente, o jeito teológico da me-

14 CRüATTü, José Severino. Êxodo; uma hermenêutica da liberdade. São Paulo, Paulus,
1981 (Libertação e Teologia, 12).

127
mória libertadora. Amós e a memória do êxodo defendem
os fracos, os hebreus escravizados e os camponeses paupe-
rizados. Ambos contestam os opressores. Julgam, respecti-
vamente, faraó e as elites de Samaria. Em ambos os casos, a
teologia javista formula seu testemunho segundo a gente fraca
e oprimida, em meio ao conflito. Assim sendo, estrutural-
mente a teologia de nosso profeta converge e coincide com
a teologia do êxodo. Amós é teólogo do êxodo libertador.
Portanto, a pergunta pela presença da teologia do êxodo
em Amós não é idêntica à pela menção expressa de elemen-
tos da tradição do êxodo. Contudo, no livro de Amós tam-
bém existe muita referência ao cenário do Egito. Podemos
observá-lo em: 2,10-12; 3,1-2; 4,10; 9,7 (cf. ainda 2,9; 5,25-
26). Exceto 9,7, essas alusões ao êxodo são positivas. Em
2,10, a menção ao êxodo reforça a defesa profética dos po-
bres. Em 3,1, a libertação do Egito é entendida como elei-
ção. Em 4,10, são recordadas as pragas e maravilhas que
atemorizaram o Egito. Essas referências ao cenário do êxodo
mostram a profundidade histórica e teológica da profecia.
Outros elementos da história salvífica desempenham fun-
ções semelhantes (cf. 1,9; 2,4; 2,11-12; 5,25-26). Contudo,
há bons indícios de que todas essas alusões sejam acrésci-
mos posteriores, em especial da escola deuteronomística, dos
tempos exílicos do século VI. 15 O deuteronomismo privile-
giou o êxodo (cf. Dt 5,6.14-15; 6,20-23; 26,1-11). Em sua
releitura de Amós, percebeu a falta desse elemento da tradi-
ção, vindo a adicioná-lo. Com isso, não desvirtuou nosso

"Veja SCHMIDT, Werner Hans. Die deuteronomistische Redaktion des Amosbuches -


Zu den theo1ogischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwort und seinem
Samm1er. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin, Walter de
Gruyter, 1965, pp. 168ss.

128
profeta. Releu-o adequadamente, embora o próprio Amós
não tenha tido uma visão tão positiva da tradição do êxodo,
como passaremos a ver.
Pelo que nos parece, o próprio Amós só se refere uma
única vez ao êxodo. Essa passagem encontramos em 9,7b:

Não fiz subir Israel da terra do Egito,


os filisteus de Cáftor,
os arameus de Quir?"

Amós conhecia a tradição do êxodo. Ela até lhe era


relevante. Contudo, ela não passava de uma tradição nacio-
nal israelita equiparável a tradições fundantes similares de
outros povos, no caso de filisteus e arameus (= sírios), os
inimigos ao Sul e ao Norte (cf. 1,3-5.6-8). O evento do êxodo
continua tendo sua importância, embora não se restrinja a
Israel.
Poder-se-ia tentar encontrar o motivo para essa reti-
cência de nosso profetizador em relação ao cenário do êxodo.
Por que não o inclui mais decididamente em seu projeto teo-
lógico? Um dos motivos poderia estar na própria origem do
profeta. Vindo do Sul, de Técua, talvez não tenha tido muito
contato com os elementos e o sentido da tradição do êxodo,
que, pelo nosso saber (cf. Os 11,1; 13,4), é efraimita, isto é,
do Norte. Acrescente-se a isso o que fora feito com a tradi-
ção do êxodo por Jeroboão I: vinculara a memória da liber-
tação ao culto idólatra dos bezerros de ouro (cf. 1Rs 12,28).

16 Veja KLIEWER, Gerd Uwe. Meditação sobre Amós 9,7-10. Proclamar libertação,
v. IO, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1984, pp. 128-135; GESE, Hartmut. Das
Problem von Amos 9,7. In: GUNNEWEG, Antonius H. J., org. Textgemãss. Gõttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. pp. 33-38.

129
Por vias tortas, a libertação fora tomada religião de Estado.
A tradição do êxodo estava sendo manipulada. Recorrer a
ela, no Norte, não era algo tão unívoco. Afora os dois moti-
vos mencionados para o relativo silêncio de Amós a respeito
da tradição do êxodo, há que ter em mente também o hori-
zonte teológico amplo de nosso profeta, ao que nos dedica-
remos no próximo item.
Em relação ao êxodo, pude constatar que nosso profe-
ta, por um lado, não insiste na citação da tradição do êxodo,
mas, por outro, pratica uma teologia que é coincidente com
as opções básicas e as estruturas elementares da espiri-
tualidade do êxodo. Em suma: Amós não é recitador, mas
teólogo do êxodo. Relê, não repete.

Javé, Deus dos povos


Já dissemos que, para bem avaliar o uso da tradição
do êxodo, faz-se necessário atentar para mais uma dimen-
são da teologia de Amós. Refiro-me a seu modo de corre-
lacionar Israel e os povos. Nesse particular, Amós novamente
é muito surpreendente. 17
Afinal, habituamo-nos a ver que o Antigo Testamento
privilegia Israel, que seria particularista. E, de fato, podería-
mos mencionar muitos textos que o confirmam. Em Amós
e, sabidamente, não só nele (veja, por exemplo, Jonas), não
é assim.

17 Observe igualmente SIVATTI, Rafael de. Critica profética a los imperialismos y a la


religión nacionalista de Israel". Revista Latinoamericana de Teologia, ano 2, San
Salvador/EI Salvador, 1985, pp. 95-111.

130
Atentemos inicialmente para o ciclo dos povos (cf. 1,3-
2,16), no qual a relação entre povos circunvizinhos e Israel
é particularmente tematizada (confira item Exército, cidade
e templo, p. 62). Nesse ciclo, nosso profeta inicialmente pa-
rece agir como qualquer profeta cúltico: arrasa os povos vi-
zinhos, a começar pelos tradicionais adversários, os arameus
e filisteus, concluindo com os povos transjordanianos. Po-
deria parecer que, após a demolição dos inimigos da nação,
passaria ao elogio e à glorificação de Israel. Não é, porém, o
que acontece. Sucede o contrário. Ao enfocar Israel (cf. 2,6-
16), Amós continua a anunciar ameaça, exemplificando-a
no exército. Israel é, pois, equiparado aos povos vizinhos.
Do mesmo modo como são destroçados o Exército e o esta-
do de Israel,são quebrados os soberanos e as elites dos po-
vos vizinhos. Opressor nenhum sobrará nem cá, nem lá; nem
em Israel, nem nos povos. Entre Israel e os povos não há
diferença. Em relação a ambos, a teologia javista é teologia
contra a opressão.
A rigor, também para ambos o motivo para a destrui-
ção é o mesmo. A ameaça contra os poderosos está embasada
na opressão dos fracos. O Estado de Israel e os Estados vizi-
nhos têm os mesmos "crimes": massacram a vida de gente
indefesa e fraca: mulheres grávidas, povoados indefesos,
pobres. Portanto, os povos não são piores que Israel.
Contudo, Israel é pior que os povos. O Estado de Is-
rael é mais repressor que seus adversários. Em 2,6-8.9, pode-
se verificá-lo com toda a nitidez. Dos povos vizinhos só se
menciona um "crime"; de Israel apresentam-se sete! Os vi-
zinhos oprimem seus adversários; Israel oprime sua própria
gente, seus próprios pobres. Israel não tem nenhum privilé-
gio. Pelo contrário: é o pior exemplo dentre os povos.

131
Portanto, emAmós não só constatamos uma "equipara-
ção entre povos e Israel, mas também entre Israel e povos". 18
O povo de Deus é, até, o pior exemplar dentre os povos.
As demais passagens de Amós nem sempre formulam
nossa questão teológica com a mesma radicalidade. Contu-
do, confirmam-na indubitavelmente.
Em 6,1-2, o assunto volta à tona. A despreocupada eli-
te de Samaria - a referência a Sião talvez seja um adendo
- autocompreende-se como elite dos povos, como cabeça
do mundo. São

os notáveis da elite dos povos (Am 6,1).

Amós confirma-os em sua pretensão, ao vê-los enca-


beçar o comboio de deportados (v. 7). A elite de Samaria
será a primeira a ser castigada. Esse é o único privilégio do
senhorio da capital. Pois ela não é melhor que seus vizinhos.
Esse é o assunto de 6,2:

Passai a Calane e vede.


Dali ide à Grande Emat.
Descei à Gat dos filisteus.
Sois melhores que estes reinos?
Ou seria o seu território maior que o vosso?

A resposta é evidente. "Vós", elite de Samaria e Esta-


do de Israel, não sois nem melhores e nem mais poderosos
do que vossos vizinhos ao Norte (Calane e Emat) e ao Sul

18 WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cit., pp. 128.

132
(Gat). Aqui sim há uma "equiparação", um nivelamento en-
tre Israel e Estados vizinhos.
Em 9,7, isso volta a ser afirmado, com toda ênfase. Ao
tratar do êxodo (confira item O êxodo, p. 127), eu mencionara
a segunda parte do versículo. Retomemo-lo, agora, em seu todo:

Não sois vós, filhos de Israel, para mim como os filhos dos
etíopes? Dito de Javé.
Não fiz subir Israel da terra do Egito,
os filisteus de Cáftor,
os arameus de Quir?

Uma vez mais Israel é assemelhado a outros povos, aos


vizinhos ao Sul (fIlisteus) e ao Norte (arameus) quanto à his-
tória, aos distantes etíopes quanto à criação. Devido a ambos,
e não só devido à criação, o Israel que explora não passa de
um grupo dominante a mais que não titubeia em recorrer a
belas tradições religiosas para garantir-se no poder.
Contudo, esse Israel do poder é pior. Essa dimensão,
que verificávamos no ciclo dos povos, voltamos a perceber
no dito que resume o que Amós tem a dizer contra Samaria,
no ciclo 3,3-4,3:

Fazei ouvir nos castelos de Asdode


e nos castelos da terra do Egito
e dizei:
"Reuni-os sobre os montes de Samaria
e vede:
Quão grande terror há nela.
Oprimidos em seu interior!" (Am 3,9).

133
Os povos circunvizinhos são chamados a enviar uma
comissão internacional de alto nível para constatar o terror
social reinante em Samaria. Filisteus e egípcios são con-
clamados para essa tarefa. Israel deixou de ter condições de
verificar sua situação. É pior que os piores, pior que o faraó
egípcio.
Poder-se-ia perguntar por que Amós é tão severo com
Israel. Na base da severidade, há, ao meu ver, uma razão teoló-
gica. Israel deveria saber que não se pode oprimir os pobres.
Experimentou-o em sua história (cf. 2,9).A eleição de Israel é a
base teológica dessa avaliação radical. É o que se lê em 3,2:

Somente a vós escolhi


dentre todas as famílias da terra,
por isso vos punirei
por causa de vossos pecados.

É bem possível que esse versículo seja posterior a


Amós, mas parece corresponder à teologia do profeta.
Na denúncia e na ameaça "contra Israel" (Am 1,1),
Amós não reserva lugar especial para Israel. Em sua teolo-
gia, Israel - devorado pelo poder da opressão - não só é
equiparável aos povos, é até pior que eles. A práxis desse
Israel não é melhor; sua história não é única. Esse Estado
de Israel, destituído de privilégios, será deportado para ou-
tros Estados, "em direção ao Hermon" (4,3), "para além de
Damasco" (5,27); será espalhado entre as nações (cf. 9,9). O
Estado de Israel afogará em meio a outros Estados!
A profecia de Amós, um talhador de sicômoros, é sur-
preendentemente internacionalista. Testemunha uma teologia
que vê nas dores dos pobres de Israel as dores dos pobres do

134
mundo, que percebe na ameaça dos opressores do próprio povo
a ameaça a toda opressão, que sonha o novo corno utopia uni-
versal do Deus que "edifica as suas câmaras no céu" (9,6).

Retrospectiva
Concluo com urna retrospectiva sobre a teologia de
Arnós. Corno principais aspectos destaquei os seguintes desse
nosso profeta do século VIII, o primeiro dentre os chama-
dos "literários":
Metodologicamente importa perceber a contribuição teo-
lógica específica de Arnós. Não quis delinear o todo de seu
pensar teológico. Pretendi identificar aspectos de sua teologia.
Javé atua em seu povo e entre os povos por meio do
profeta. Este é o mediador qualificado de Deus.
Profecia é palavra. O veículo da teologia profética é,
pois, frágil. O insucesso marca-a mais que o sucesso, corno
se pode constatar na confrontação com Amasias.
Ameaça e denúncia são palavra atual. A teologia de
Amós é urna leitura do que está aí, da história presente. Sua
teologia está em sua proclamação.
A história salvífica passada não define a nova palavra
profética. Amós não dá muita atenção aos eventos salvíficos
já ocorridos. Seu terna é o novo evento salvífico trazido para
o presente pela palavra profética.
Amós é um teólogo do êxodo. Articula sua teologia
nas coordenadas da teologia formulada de modo paradig-
mático para todo o Antigo Testamento no evento libertador:
ação exclusiva de Javé, crítica aos opressores, utopia para
os fracos e, a partir deles, para todos. Contudo, Amós não

135
insiste no cenário ou na tradição do êxodo. Teologia do êxodo
não é concomitante à menção do êxodo.
Israel na forma de poder opressor não detém privilé-
gio na história de Deus. Assemelha-se aos povos. Equipara-
se e é até pior. A teologia de Amós olha para o mundo, não
com os olhos de Israel, mas com os dos oprimidos, das es-
cravas e camponesas de Israel:

o Deus contemplado e experimentado pelos profetas é o


Deus da história. Não apenas no sentido de que preside so-
beranamente aos acontecimentos e tem a respeito deles um
desígnio. Trata-se de muito mais. É o Deus que se manifes-
ta mediante os acontecimentos como a inapagável e inven-
cível labareda alimentadora da liberdade e a luta por sua
conquista ou por sua preservação. Pelos fatos, revela-se
Redentor, quer dizer, libertador, justiceiro e vingador dos
oprimidos e necessitados. 19

Universalidade interessante brota de Amós. Sião 1,2.


Nova tenda de Davi - dessa forma chega a nós. Sem negar,
porém, a insistência em olhar em favor dos povos.
Diálogo interno entre o Primeiro e o Segundo Testa-
mento. Deveríamos aproveitar isso.
Javismo militante, não na unicidade abstrata, mas por
um caminho de solidariedade.

19 SOARES, Sebastião Armando Gameleira. Reler os profetas - Notas sobre a releitura da


profecia bíblica, Estudos Bíblicos, v. 4, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 27.

136
6. "Palavras de Amós"

E todo o mundo que não conhece a sua maneira de se ex-


pressar pensa que eles (= profetas) têm um jeito estranho de
falar, pois não observam seqüências, mas saltam de um as-
sunto ao outro, de sorte que a gente não pode compreendê-
los e nem se orientar. Ora, não é nada agradável ler um livro
que não mantém ordem, pois não se consegue agregar e nem
emendar uma coisa à outra, para que tenha boa seqüência,
como aliás convém quando se quer falar bem e corretamente.'
Comecei a escrever este livro com meus pés, puxando du-
rante onze meses carros de barro na construção do açude
da Santa Fé. Andando no sol, na poeira, às vezes cansado,
outras vezes eu também com fome. Pensei durante horas,
semanas, cada um destes capítulos. O original deste livro
- Sangradouro - foi escrito no chão. Cada capítulo re-
presenta cem quilômetros de trilhas cheias de altos e bai-
xos percorridos pensando, rezando, sofrendo de ver meus
irmãos trabalhadores nesta situação.'

Nos estudos anteriores, dedicamo-nos ao contexto, à pes-


soa, aos conteúdos da profecia e à teologia de Amós. Fizemo-lo
sempre à base do texto do profeta de Técua. Afinal, as únicas

I LUTHER, Martin. Der Prophet Habakuk ausgelegt. Weimar, 1987. p. 350 (D. Martin
Luthers Werke, 19).
2 KUNZ, Fredy et alii. Sangradouro nascido da seca nordestina 1979-1984. São Paulo,
1985. p. 69 (Experiências Pastorais, 2).

137
informações que temos de Amós encontram-se em seu livro.
Nenhum outro profeta menciona-o expressamente' e nem mes-
mo a Obra Historiográfica Deuteronomista o cita.'
Por conseguinte, o livro profético desempenha papel
decisivo na interpretação. Toda compreensão de Amós é ne-
cessariamente mediada por um texto. O presente item quer
enfocar as "palavras de Amós" como literatura.
Já o fazíamos desde o início. Em cada um dos ensaios
anteriores, está implícita uma visão de Amós como fenômeno
literário. Trata-se, pois, não de introduzir um novo enfoque,
mas de lançar sobre ele luz e de nele deter nossa atenção.
Contudo, agora não pretendo fornecer as justificativas
detalhadas para as decisões que, em âmbito literário, fui enca-
minhando nas reflexões anteriores. Penso que essa tarefa foi
sendo realizada à medida das exigências por meio da argumen-
tação e, não por último, com ajuda de referências bibliográficas
nas notas de rodapé. Por certo, permanecem lacunas, mas seu
preenchimento talvez não seja o que mais se faça necessário.
E a que importa dar ênfase ao estudo da formação literá-
ria de Amós? Qual o nó que precisa ser aberto e desvendado?
No decorrer da reflexão, tratarei de identificar esse
ponto nevrálgico, essa encruzilhada. Contudo, já de saída
gostaria de confessar que, aqui, não irei muito além do deli-

] A relação entre Amós e Isaías foi estudada, por exemplo, por FEY, Reinhard. Amos
und Jesaja; Abhãngigkeit und Eigenstãndigkeit des Jesaja. Neukirchen, Neukirchener,
1963 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 12). Quan-
to à relação entre Amós e Ezequiel, cf. ZIMMERLI, Walther. Ezechiel. Neukirchen,
Neukircher, 1969. pp. 66-67 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 13/1).

4 Compare, contudo, CRUESEMANN, Frank. Kritik an Amos im deuteronomistischen


Geschichtswerk - Erwãgungen zu 2.Kõnige 14-27, em Probleme biblischer Theologie.
München, Christian Kaiser, 1971. pp. 57ss.

138
neamento de um esboço, da formulação de uma hipótese de
trabalho. Nas meditações anteriores, em ensaios preceden-
tes' e em sintonia com outros pesquisadores, penso haver
encontrado certas pistas e elaborado determinados indícios
que, no âmbito de suspeita e de hipótese, permitem formular
extrapolações e projetar deduções. A descrição de uma pro-
posta é o alvo precípuo do presente item. Com ele, encon-
tro-me, por assim dizer, a meio caminho. Com base na jun-
ção de dados já colhidos, seja pela pesquisa em geral seja
pelas meditações precedentes, olho para a frente, ansiando
vislumbrar o trajeto que está por fazer. Estaremos por assim
dizer medindo caminho. Em conseqüência, convido a leito-
ra e o leitor não tanto a verificar provas, mas muito mais a
aquilatar e quiçá aventurar projetos.

o livro
o livro de Amós é um todo. Diferencia-se do livro de
Joel, que lhe antecede, e do de Abdias, que lhe sucede. E dá
um sentido em si. Tanto o uso eclesiástico costumeiro quan-
to a pesquisa exegética usual tendem a perder de vista que o
livro de Amós forma uma unidade. A tendência tem sido
seccioná-lo e selecionar parcelas de seu conteúdo. Por isso,
convém que se volte a percebê-lo como conjunto.
Além do conteúdo peculiar que dá coesão a seus nove
capítulos, podem ser arrolados alguns pormenores que con-
firmam o livro como um todo.

5 Refiro-me, em especial, a meus dois ensaios: Profecia e organização. Estudos Bíbli-


cos, v. 5, Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 26ss (veja item Profecia e organização -Ano-
tações à luz de um texto - Amós 2,6-16, p. 161) e Interpretação de Gênesis 12-25 no
contexto da elaboração de uma hermenêutica do Pentateuco, em A família de Sara e
Abraão. Petrópolis, Vozes, 1986. pp. II ss.

139
Tanto o título (cf. 1,1) quanto a epígrafe ou o moto (cf.
1,2) referem-se a tudo o que segue. À luz de 1,1 e de 1,2, os
nove capítulos de Amós são urna só grandeza.
As promessas colocadas no final, em 9,11-12.13-15,
querem concluir o todo. Por conseguinte, para quem dispôs
9,11-15 na saída de nosso livro, os capítulos que lhe antece-
dem constituem um só conjunto.
Entre os capítulos que iniciam e os que concluem, exis-
tem diversas semelhanças. Refiro-me a Am 1-2 e Am 7-9.
Ambos constituem coletâneas. Em Am 1-2 deparamos com
o ciclo dos povos; em Am 7-9, com o ciclo das visões. Em
ambos, a futura catástrofe será encaminhada por meio de
fenômenos da natureza (compare 2,13 com 8,8-9). Além dis-
so, a linguagem de 2,6-8 reaparece em 8,4-6.
O livro está perpassado por urna linguagem hínica, a
qual reaparece de quando em quando. A ela em todo caso
pertencem: 4,13; 5,8-9; 9,5-6. Em sua proximidade também
estão: 1,2 e 8,8. Para esses hinos, o livro de Amós evidente-
mente formava um conjunto. E há quem, com boas razões,
entenda a composição de nosso livro de acordo com essas
parcelas hínicas distribuídas ao longo dos capítulos."
Poder-se-iam adicionar outros pormenores para con-
ferir em que medida o texto com o qual estamos lidando é
urna só grandeza. Todavia, os que foram anotados certamente
já são suficientes. Alguns pesquisadores mais recentes até
se esmeram em ajudar-nos a perceber a inter-relação do todo.'

6 KOCH, Klaus. Die RoJle der hymnischen Abschnitte in der Komposition des Amos-
Buches. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 86, Berlin Walter de
Gruyter, 1974, p. 504-537.

7 Veja a nota anterior e confira também RENDTORFF, Rolf. Das Alte Testament; eine
Einführung. Neukirchen, Neukirchener, 1983. pp. 232-235.

140
Por isso, penso que podemos dar-nos por satisfeitos, após
havermos constatado que o livro de Amós, de fato, é um
todo e que este faz sentido como tal.

Camadas literárias
Acabamos de constatar que nosso livro é permeado
por uma linguagem hínica. À parte de desempenhar uma
função no todo dos nove capítulos, como assinalamos, as
parcelas doxológicas (cf. 4,13; 5,8-9; 9,5-6, bem como 1,2;
8,8) parecem representar uma releitura posterior. Foram in-
cluídas quando nosso livro já estava em avançado processo
de formação. Representam a reação da comunidade à leitura
do livro. Havemos de localizá-las em tempos pós-exílicos.
As doxologias representam, pois, um adendo posterior, uma
camada literária, uma releitura.
A pesquisa histórica tem detectado diversas camadas
literárias no livro de Amós. Além das doxologias, poder-se-ia
mencionar:
A conclusão escatologizante (cf. 9,11-15) foi agrega-
da em Judá, após a destruição de Jerusalém e do reinado
judeu em 587 a.C. Conteúdo e linguajar dos últimos ver-
sículos não se coadunam com as ameaças proferidas por
Amós no século VIII. Seriam deuteronomísticos?'
Igualmente se pode verificar a existência de uma lin-
guagem deuteronomística em diversas partes do livro. Em
tempos exílico/pós-exílicos, a escola deuteronomística re-

8 Compare KELLERMANN, Ulrich. Der Amosschluss ais Stimme deuteronomistischer


Heilshoffung. Evangelische Theologie. v. 29, München, Christian Kaiser, 1969, pp.
169-183.

141
leu o material já existente, com base na experiência e na
catástrofe de 587 a.C. 9 A essa camada deuteronomística hão
de pertencer: 1,9-10.11-12; 2,4-5.10-12; 3,lb.7; 5,25-26.
Afora as três releituras- deuteronomística, escatológica,
doxólogica - mais aceitas no âmbito dapesquisa, encontram-
se em debate algumas outras propostas. Quem ao meu ver me-
lhor soube sintetizar o esforço de verificação de camadas literá-
rias foi Hans WalterWolff." Convém relatar sua proposta, em
brevidade. Para ele, o livro contém quatro camadas literárias
posteriores, além dos textos autênticos do profeta.
A primeira é "a antiga escola de Amós". A ela são atri-
buídos: 5,13.14-15; 6,2.6b; 7,9.10-17; 8,3.4-7.8.9-10.13-14;
9,7-8.9-10, partes de 1,1; 5,5 e eventualmente de 2,10-12;
5,25-26. Essa escola teria atuado em tomo de 735, em Judá.
A segunda é "a interpretação de Betel", que abarcaria:
1,2; 4,6-12.13; 5,6.8-9; 9,5-6 e parte de 3,14. Essa releitura
teria ocorrido na área do santuário de Betel, na época de
Josias (no terceiro quartel do século VII).
A terceira é "a redação deuteronomística", à qual per-
tenceriam: 1,9-10.11-12; 2,4-5.10-12; 3,7; 5,25-26, em par-
te 1,1; 3,1 e eventualmente 8,11-12. Esses redatores teriam
atuado, na Palestina, na época do exílio.
A quarta é "a escatologia de salvação" dos tempos pós-
exílicos, verificável em 9,11-15 e em partes de 5,22 e 6,5.

9 Esta tese foi particularmente defendida por SCHMIDT, Werner H. Die deuteronomistische
Redaktion des Amosbuches - Zu den theologischen Unterschieden zwischen dem
Propheten und seinem Sammler. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft,
v. 77, Berlin, Walter de Gruyter, 1965, pp. 168ss.

10 WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2; Joe1undAmos. Neukirchen, Neukirchener, 1969.


Em especial pp. 129-138 (Biblischer KommentarAltes Testament, 14/2). Compare, do mes-
mo autor: La hora deAmós. Salamanca, Sígueme, 1984. pp. 186-200 (NuevaAlianza, 92).

142
Há pontos em comum entre as três releituras literá-
rias, das quais inicialmente falávamos, e os resultados alcan-
çados por H. W. Wolff. Também há diferenças. Estas aumen-
tariam se recorrêssemos a outros pesquisadores." Agora não
vem ao caso fazê-lo, para discutir e dirimir divergências.
Importa constatar, à luz do exposto, que a pesquisa, de modo
geral, soube avançar na pergunta por camadas literárias em
Amós, alcançando propostas apreciáveis. Servem de base.
Pode-se partir delas e avançar em direção ao estudo do
surgimento dos textos autênticos de Amós.
Antes de assim procedermos, porém, convém incluir
aqui uma breve reflexão intermediária. A pesquisa tem al-
cançado seus resultados mais expressivos na análise do todo
do livro e de suas camadas literárias. Parece-me que a esses
níveis também tem sido aplicada a metodologia mais adequa-
da. Afinal, tanto o conjunto do livro quanto as sucessivas
camadas redacionais são atribuídos a redatores (plural), es-
colas, comunidades, enfim a coletivos. Vem-se percebendo
grupos sociais na origem de textos e de conjuntos literários,
agregados ao profeta. O coletivo como berço de literatura
parece ser uma premissa aceitável, quase normal, quando se
estudam composições e redações.
O mesmo poderia valer para a análise dos textos consi-
derados "palavras de Amós"? A pergunta parece ter de rece-
ber uma resposta negativa. Afinal, habituamo-nos a analisar
a fala profética como fala de uma pessoa, de um indivíduo.

11 Aponto, por exemplo, para RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-Jona. Gütersloh,


Gütersloher, 1971. pp. 100-103 (Kommentar zum Alten Testament, 13/2). W. Rudolph
diverge de H. W. Wolff. Compare ainda: MARKERT, Ludwig. Amos/Amosbuch. In:
MÜLLER, Gerhard, org. Theologische Realenzyklopãdie. Berlin, Gruyter, 1978. v. 2,
pp.471-487.

143
E, nesse particular, a pesquisa tem avançado pOUCO. 12 Quan-
do agora passo a enveredar por esse caminho, não poderei
recorrer a muitos companheiros de caminhada. Cabe, pois, ao
leitor e à leitora um papel de redobrada vigilância crítica.

Coleções de ditos
No livro de Amós, podem ser detectados, com certa
facilidade, agrupamentos de ditos proféticos. Já o assinala-
mos em estudos anteriores (confira itens As visões, p. 33;
Rugiu o leão - Javé me agarrou ", p. 40; Exército, cidade e
templo, p. 62). Até mesmo uma primeira leitura é capaz de
verificar tais agrupamentos.
Antes de mais nada, trato de localizar as coletâneas.
Depois, proponho-me a avaliar o fenômeno.
Os dois primeiros capítulos evidentemente são consti-
tuídos por uma coleção, o chamado ciclo dos povos (confira
item Exército, cidade e templo, p. 62). Estão reunidos cinco
ditos, dispostos em pares (cf. 1,3-5 + 1,6-8 e 1,13-15 + 2,1-3),
com o auge no final (cf. 2,6-9.13-16).
Uma coletânea também se encontra em 3,3-4,3.
Designá-la-ei de ciclo anti-Samaria (confira item Exército,
cidade e templo, p. 62). Novamente estão agrupados cinco
ditos, todos polemizando contra a capital de Israel. O pri-
meiro fornece a fundamentação teológica (cf. 3,3-6.8), o
segundo sintetiza a acusação e a sentença contra Samaria

12 Para perceber as dificuldades do caminho a trilhar, basta ler e comparar: BENTZEN,


Aage. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, Aste, 1968. pp. 272ss; EISSFELDT,
Oito. Einleitung in das Alte Testament. 3. ed., Tübingen, Mohr 1964, pp. 533ss; RAD,
Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Aste, 1974. v. 2, pp. 36-50;
BALLARINI, Teodorico. Profetismo e profetas, em Introdução à Biblia. Petrópolis, Vo-
zes, 1977. v. 2/3, pp. 56ss.

144
(cf. 3,9-11), os três restantes fornecem detalhes (cf. 3,12;
3,13-15; 4,1-3) com certo realce para o último (cf. 4,1-3).
Igualmente reconhecida é a composição que marca os
três últimos capítulos. O chamado cicio das visões (confira
item As visões, p. 33). Nele estão agrupadas cinco pequenas
unidades também dispostas em pares (7,1-3 + 7,4-6 e 7,7-9
+ 8,1-3), culminando na última (cf. 9,1-4).
Essas são as três coletâneas de maior porte até agora
localizadas pela pesquisa histórica dentro do livro de Amós.
Considero possível que estudos acurados venham a poder
identificar outro(s) conjunto(s) emAm 5-6. Afinal, chama a
atenção que 5,1-2 é retomado em 5,16-17, que 5,4-6 está
próximo a 5,14-15 (cf. também 4,4-5), que em 5,18, em 6,1
e, eventualmente, em 5,7 temos palavras que iniciam com
"ais". Não há certo paralelismo entre 5,18-20 + 5,21-27 e
6,1-7 + 6,8-14? Pelo jeito, ainda não foi dita a "última" pa-
lavra sobre o surgimento de Am (4)5-6. 13
Contudo, não me parece que, em nosso livro, só pos-
samos encontrar coletâneas de certa extensão, como as três
mencionadas. Penso que também existem agrupamentos
menores do que, por exemplo, o cicio dos povos. Aqui, não
há espaço para evidenciá-lo em pormenores. Restrinjo-me a
enunciar as possíveis pequenas coleções.
EmAm 6, ocorre um fenômeno interessante. Nos vv.
1-7 predomina a denúncia; nos vv. 8-14, a ameaça. Tanto os
primeiros sete versículos, em especial os vv. 1-6 (confira item

13 Nisso a gente se vê reforçado na leitura comparativa dos comentários de Wilhelm


Rudolph iJoel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 267ss) e de Hans Waiter Wolff
(Dodekapropheton 2; Joel undAmos, cit., pp. 267-297). Compare, por exemplo, tam-
bém NEUEBAuER, Karl Wilhelm. Erwãgungen zu Amos 5,4-15. Zeitschrift fiir die
alttestamentliche Wissenschaft, v. 78, Berlin, Walter de Gruyther, 1966, pp. 292-316.

145
Ditos proféticos, p. 151), quanto os últimos têm caráter de
composição.
É possível que 8,4-14 seja uma pequena coletânea de
ditos: vv. 4-7 + v. 8, vv. 9-10, vv. 13-14 (vv. 11-12 seriam
adendos?). Essa coleção foi enxertada entre a quarta e a quinta
visão.
Uma pequena coletânea também é 4,6-11.12, embora
aparentemente oriunda de tempos posteriores a Amós.
Portanto, além de constatarmos a existência de verda-
deiros ciclos (cf. Am 1-2; 3--4 e 7-9), penso podermos tra-
balhar com a hipótese de pequenas coleções (cf. 8,4-14) no
livro de Amós.
Que significam essas observações? Avaliemo-las.
No atual livro de Amós, os agrupamentos de ditos ain-
da aparecem com maior (cf. 1,3-2,16) ou menor (cf. 7,1-9 +
8,1-3 + 9,1-4) nitidez. Outras coleções só aparecem como
tais por meio de um estudo detalhado do texto (cf. 3,3--4,3;
5,18-6,14), não passando de teses, mais ou menos prová-
veis. Daí se pode deduzir que aqueles que compuseram nos-
so livro não se restringiram a adicionar e emendar coleções
já existentes. Delas se valeram para criar um novo texto, o
que se pode observar tanto em 1,3-2,16 quanto em 7-9. Os
compiladores fizeram valer seus próprios critérios e interes-
ses na elaboração e conjugação dos textos. Tanto em Am
1-2 quanto emAm 7-9 os ciclos dos povos e das visões servi-
ram de matriz ou de lastro para a confecção dos textos fi-
nais. O mesmo não parece ter ocorrido emAm 3-6. (Por que
seus compiladores seriam outros que os de Am 1-2 e 7-9?)
Neles, repetem-se três vezes a expressão "ouvi esta pala-
vra!" (3,1; 4,1; 5,1). É possível que a interjeição "ai" (5,8 e

146
6,1) tenha sido entendida como substituta de "ouvi esta pa-
lavra!" E essa expressão certamente remonta aos compila-
dores, não sendo, pois, como víamos em relação a 3,3~,3,
início de um antigo agrupamento de ditos. Em suma, os agru-
pamentos ou coletâneas, em parte, estão a meio caminho
entre a fala de Amós e o atual livro, isto é, são uma espécie
de "pré-moldados" ou pedras de alicerce usadas pelos "cons-
trutores"/compiladores do livro. Em parte, passam por pro-
fundas e significativas reformulações ao ser incorporados
no texto atual. Esse duplo fenômeno toma-se mais compre-
ensível se, agora, passarmos a perguntar em que medida nos-
sas coletâneas são textos e em que medida são memória.
Por um lado, as coleções já são literatura. Provavel-
mente, foram a primeira formulação literária dos ditos de
Amós. "O primeiro estágio para o surgimento de um livro
foi a formação de uma pequena coleção de ditos isolados.'?"
É difícil comprová-lo, no caso de nosso profeta. Talvez se
pudesse apontar para os adendos posteriores em Am 1-2 e
7-9. Ora, tais acréscimos tomam-se mais explicáveis se ima-
ginarmos que os textos-base, aos quais foram agregados, já
existiam em forma literária. Em todo caso, em outros profe-
tas pode-se verificar, com maior facilidade, que certas cole-
ções de seus ditos existiam literariamente. É o caso de Is
6,1-9,6 (o memorial da guerra siro-efraimita), como o com-
prova 8,16 (cf. 30,8-17). Tomo a liberdade de designar essa
formulação literária de agrupamentos ou coletâneas de ditos
proféticos de panfleto. 15 Os primeiros textos de Amós de-
vem ter surgido como tais panfletos.

14 HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, Sinodal, 1975.


p. 144, Confira também EISSFELDT, Einleitung in das Alte Testament, cit., pp. 194ss,

Max. Das antikeJudentum, 3. ed., Tübingen. J, C. Mohr, 1963. pp. 281-


15 Veja WEBER,
282 (Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie, 3).

147
Por outro lado, as coleções ainda são fala. Podem ter sido
criadas pelo próprio Amós para poder apresentá-las no grupo
de seus discípulos ou em público. O ciclo dos povos e o das
visões devem ter surgido desse modo. As coletâneas também
podem ter surgido após a fala pública. Ditos semelhantes são
agrupados tematicamente. Essa deve ser a origem de 3,3--4,3, o
ciclo anti-Samaria, Em todo caso, nessas coleções ainda não
literárias, a memória desempenha papel primordial. Têm o ta-
manho e o jeito da memória, ou seja, são temáticas e, via de
regra, juntadas de acordo com certos critérios e condiciona-
mentos mnemotécnicos. Números, seqüência, paronomásia,
leitmotiv etc. passam a assumir papéis destacados, justamente,
em coletâneas pré-literárias. Tais coleções "inscritas" na me-
mória podem ser chamadas de "poemas?" e memoriais.
Portanto, agrupamentos/coletâneas/coleções são fenô-
meno de transição. Marcam a passagem da fala profética (que
ocorre em forma de dito, como logo veremos), pelo memorial
(ainda oral), para o panfleto (já escrito). Antes de ser escrita, a
profecia de Amós foi memória. Antes de ser memória, foi fala.
Na transformação da fala em memória ou panfleto, suce-
de algo de grande relevância. À fala são adicionadas novas di-
mensões. Ocorrem mutações. Visualizemos duas. Primeira:
muito mais gente vem a ter acesso à fala, já que ela passa a ser
reproduzida e reduplicada pela memória ou pela letra. Por con-
seguinte, ao ser coletada, a fala passa por um processo de am-
plificação. Memória e letra são os "amplificadores" da fala pro-
fética, no caso de Amós. Segunda: a fala cresce em conteúdo.
Um dito isolado de Amós contra o exército ou a capital Samaria
era bem menos incisivo, eficaz e contundente do que uma cole-

16 ErSSFELDT, Einleitung in das Alte Testament, cit., pp. 106-107.

148
tânea, cujo ápice é a ameaça ao exército (cf. 1,3-2,16) ou ao
santuário (cf. 7,1-9 + 8,1-3 + 9,1-4) ou cujo tema único, repeti-
do qual refrão, é o aniquilamento da central de poder (cf. 3,3-
4,3). Há, pois, uma radicalização do conteúdo mediante ajusta-
posição de ditos. Portanto, por meio da coletânea, a profecia,
também a de Amós, "cresce" por se alastrar e se tomar mais
radical. Cresce em irradiação e em profundidade.
Além das anteriores, é acrescentada ao dito profético
original outra dimensão. O dito colecionado, em especial o
preservado por discípulos, é o que foi comprovado, confirma-
do pelo ouvinte. Os ouvintes reencontraram-se no dito profé-
tico. Sintonizaram com seu conteúdo. Nas coleções - sejam
elas memoriais ou panfletos - temos o dito do profeta e a
opinião de ouvintes sobre o dito. Pode-se dizer, ao meu ver,
que o ouvinte ratifica a profecia de dois modos. Por um lado,
compara o conteúdo proclamado pelo visionário com seu co-
nhecimento das tradições teológicas herdadas: o testemunho
profético sobre Javé coincide com o promulgado pelos ante-
passados? Por outro, compara-o com a situação em que vive:
a profecia faz jus ao momento e ao contexto? Em outros ter-
mos, pode-se, pois, dizer que o ouvinte atesta veracidade ao
dito mediante seu ouvir e conhecer e, simultaneamente, me-
diante sua vida. A verdade profética é conferida por ouvidos e
por pés. Gnose e prática dos ouvidos estão presentes no
surgimento do memorial ou panfleto profético. É evidente que,
no caso de Amós e dos demais profetas, a prática e o saber da
gente simples, dos camponeses empobrecidos e dos que com
eles se reconhecem solidários são decisivos no surgimento da
literatura profética. Palácios ou burocratas não terão tido inte-
resse em preservar ditos proféticos. Os ouvintes que trataram
de coletar e sedimentar a fala dos visionários eram campone-

149
ses e pobres. A literatura profética nasce como memória dos
pobres, em especial da gente do campo. Isso não significa que
a gente palaciana e os burocratas da religião não pudessem
igualmente se ter preocupado pelo que dizia o profeta. Até
conhecemos de nome um dos oponentes que memorizou o
que Amós dissera. Chama-se Amasias (cf. 7,10-17). Esse sa-
cerdote de Betel soube sintetizar a mensagem do pastor de
Técua. Memorizou-a, até. Contudo, este ouvinte sacerdotal
apreendeu a mensagem profética não para preservá-la, e sim
para extingui-la. Com a expulsão de Amós (cf. 7,12-13),
Amasias esperava poder dar um fim à profecia. Sua conta não
fechou. Portanto, as coletâneas de ditos proféticos não só re-
presentam a fala profética. Incorporam o testemunho dos ou-
vintes, que atesta a veracidade das "palavras de Amós".
Memoriais e panfletos são a fala profética e seu eco.
Pudemos, pois, observar que, primeiro, no livro de
Amós existem diversos agrupamentos de ditos proféticos;
segundo, esses memoriais ou panfletos representam um fe-
nômeno de significado específico. Temos acesso à fala de
Amós por meio das coleções. Isso implica, entre outros, que
só conhecemos Amós na mediação de seu eco.'?

Ditos proféticos
Mencionei,por diversasvezes, os ditosproféticos. De fato,
eles representam o principal fenômeno de nosso livro.Nele estão

17 Observações semelhantes foram feitas a respeito da transmissão dos evangelhos: No


es posible separar a Jesús de determinados grupos dentro dei pueblo judio y, sobre
todo, de sus primeros seguidores ... Cuando se trata de estudiar hechos históricos es
preferible hablar; más que dei Jesús histórico, dei movimiento primitivo en torno a
Jesús (SCHüTTRüFF, Luise & STEGEMANN, Wolfgang. Jesús de Nazaret; esperanza de
los pobres. Salamanca, Sígueme, 1981. p. 13).

150
reunidosditos.Essaspequenasunidadesde sentidosão constituí-
das de um ou de alguns poucos versículos. Designamo-las de
perícopes. O livro de Amós é uma compilaçãode tais pericopes,
de pequenas unidades de sentido. São a fala do profeta.
Por isso, numa primeira leitura, o livro de Amós pare-
ce ser "estranho". "Salta de um assunto ao outro" (Lutero).
Ao menos, é a sensação que se tem à medida que se lê o
livro esperando uma literatura contínua, um texto coerente e
com seqüência transparente. Os assuntos carecem de uma
concatenação rigorosa.
Ao ler o livro de Amós, faz-se necessário considerar
as descontinuidades de assuntos. Cada uma das pequenas
unidades tem seu jeito especial. Tem forma, estilo, gênero,
contexto, endereço, conteúdo específicos e diferenciadores.
Os limites entre uma e outra perícope, via de regra, são fá-
ceis de reconhecer. Para escavar o sentido do livro, não se
pode passar de largo pelas perícopes.
Não só o sentido do livro está estreitamente vinculado
ao sentido das unidades menores. Também, e em especial, a
origem do próprio livro precisa ser explicada segundo as
perícopes. A essa tarefa será dedicado o que segue.
Inicio por um exemplo. Para compreender sentido e
origem de Am 3, evidentemente será imprescindível consta-
tar que é parte do contexto literário de Am 3-6. Evidencia-o
a introdução (cf. 3,1_2).18 Além disso, ter-se-á de levar em
conta que 3,3--4,3 poderia representar um antigo panfleto
(confira itens Exército, cidade e templo, p. 62; Coleções de

18 Cf. ANDTNACH, Pablo Ruben. "Amós - Memória y profecia - Análisis estructural y


herrnenéutica". Revista Bíblica, v. 13, Buenos Aires, Sociedad Argentina de Profesores
de Sagrada Escritura, 1983, p. 227ss.

151
ditos, p. 144). Contudo, não é suficiente estar atento para o
contexto literário redacional (isto é, para Am 3-6) e nem
basta ter em mente que na base de Am 3 está um panfleto. E
isso se deve ao próprio jeito de ser do capítulo. Se fosse
suficiente lê-lo como obra de redatores ou de panfletistas,
então se esperaria que fosse um discurso profético coeso,
lógico, conseqüente, unitário. Não é, porém, o caso. Am 3 não
é um texto contínuo; não é um discurso coeso. Por isso,
não basta que nos restrinjamos a seu nível redacional ou
panfletário. Teremos de respeitá-lo em sua peculiaridade, qual
seja a de ser uma coletânea, uma junção de pericopes: vv. 1-2,
vv. 3-8, vv. 9-11, vv. 12, vv. 13-15. Pelo visto, as perícopes
tiveram tamanho vigor e persistência a ponto de se impor
por ocasião do surgimento do memorial ou panfleto e por
ocasião da elaboração redacional. Por conseguinte, para com-
preender sentido e origem de Am 3, impõe-se entender por
que a perícope é seu elemento constitutivo. Donde provêm
constância e perseverança da perícope? Tento esboçar uma
resposta histórica à pergunta.
A rigor, existem dois tipos de pericopes. Algumas são
muito breves. Outras já são um pouco mais extensas.
Entre essas pequenas perícopes, estão as seguintes:
3,12; 5,7.10.11.12; 6,8.11.12; 9,7.8 (cf. também 1,2). Essas
pequenas unidades podem ser isoladas, com relativa facili-
dade, de seu contexto literário imediato. Cada uma é com-
pleta em si; faz sentido. E, além disso, é coesa.
Também entre as pericopes que são um pouco mais
extensas existem diversas que, aparentemente, são coesas.
Cito as seguintes: 1,3-5.6-8.13-15; 2,1-3; 4,4-5; 5,4-5.14-
15.16-17; 6,9-10.13-14; 7,1-3.4-6; 8,9-10.13-14; 9,9-10.
Entre elas também caberia 4,1-3, cujo texto original está um
152
tanto corrupto, e 5,18-20, que, porém, já apresenta algumas
fissuras.
As pericopes até aqui enfocadas - sejam elas peque-
nas ou um pouco mais extensas - caracterizam-se por sua
coesão. Seu conteúdo tem seqüência lógica. Não acontecem
saltos. Via de regra, também não se observam desacertos
igramaticais. Daí por que é possível dizer que tais perícopes,'
aparentemente obtiveram uma redação uniforme. Poderiam,
remontar a um autor específico individual. É evidente que
uma formulação coesa não permite necessariamente inferir
um autor individual. Também um grupo é capaz de criar um
texto sem saltos e fissuras. Em princípio, porém, não deixa
de ter sua justeza suspeitar um único autor por detrás de
textos coesos. Nesse sentido, tem agido corretamente quem
fez remontar as perícopes citadas à autoria do profeta Amós.
Acontece, porém, que existem diversas pericopes mais
extensas que não são nada coesas. Mencionemo-las: 2,6-16;
3,3-8.9-11.13-15; 5,21-27; 6,1-7; 7,7-9; 8,1-3.4-8; 9,1-4. O
mesmo que eu afirmei a respeito das perícopes coesas pode-
ria dizer também a respeito das que agora enfocamos que
remontam a Amós, tendo sido, contudo, posteriormente
acrescentadas (por exemplo: 2,6-16 teria recebido o acrésci-
mo dos vv. 10-12) ou tendo sido colecionadas por amigos
(por exemplo: 8,4-8 seria obra dos discípulos que reuniram
diversos pronunciamentos proféticos). Penso que essa ex-
plicação não deixa de ter seu sentido. É viável. Seu defeito
reside, ao meu ver, no fato de creditar a origem do dito e,
conseqüentemente, da literatura profética, em demasia e
quase exclusivamente, a um só autor, no caso, Amós. Ao
tender a reduzir a autoria a uma pessoa, simultaneamente
tende a ter de explicar rupturas e ausências de uma coesão
153
rígida com base em outros autores e interpoladores. Por isso,
proponho que se estude a viabilidade de ver na origem do
dito profético, das "palavras de Amós", uma autoria grupal
e coletiva. Os textos viabilizam essa suspeita?
No entanto, antes de prosseguirmos nessa trilha, é opor-
tuno enriquecer nossa reflexão com um dado a respeito da
\linguagem ~ '()s~eostumam diagnosticar cI
i.prpgnosticar. Numrnoíllebto,!~noutro, anunciam:
.~ especial ameaçaml 9 Para Amós, a duplicidade de de-
núncia e ameaça é característica. Na pergunta pela origem
da fala e dos textos, é preciso tê-la em mente. As denúncias
e as ameaças proféticas de Amós podem ter origem grupal?
Para alcançar avanços na questão, impõe-se o estudo
dos textos. A rigor, só uma observação atenta das perícopes
em questão poderá confirmar ou falsificar nossa suspeita.
A respeito de alguns textos de Amós, fiz anotações em
outros ensaios. Pressuponho-as aqui. E resumo-as brevemente.
As frases programáticas de 5,4b.6a.14a.15a.24 (cf.
3,10a) não parecem ser formulações do momento, mas con-
densações de todo um conjunto de reivindicações, tendo, pois,
sua origem na luta da gente do campo, na disputa política e
teológica, em manifestações sociais. São as formulações
generalizantes e axiomáticas das propostas para uma nova
sociedade. São uma espécie de teoria que brota da prática.
Em 2,6-16, a denúncia agrupa diferentes casos de
opressão. Provém de experiências específicas de diferentes
pessoas ou grupos; brota do chão do movimento social.

19 WESTERMANN, Claus. Grundformen prophetischer Rede. 4. ed., München, Christian


Kaiser, 1971 (Beitrâge zur evangelischen Theologie, 31), confira item "Assim disse
Javé ", p. 44.

154
Sua origem é, pois, grupal e coletiva. Na base do dito profé-
tico, está não só a pessoa do profeta, mas também o grupo
profético."
Gostaria de ater-me a mais duas perícopes. Opto por
3,9-11 e 8,4-8, contudo sem pretender ir ao detalhe. Trata-se
de duas unidades bastante diferentes. Uma tem sido atribuí-
da a Amós; a outra, a seus discípulos."
Vimos que 3,9-11 ocupa papel de destaque no ciclo anti-
Samaria (cf. 3,3--4,3). Sintetiza-o. Duas são suas partes: a pri-
meira denuncia (vv. 9-10), a segunda ameaça (v. 11). A amea-
ça constitui uma linguagem homogênea. Compreende-se como
dedução das denúncias anteriores ("por isso"). É introduzida
pela fórmula do dito de mensageiro ("assim disse o Senhor
Javé"). Três afirmações compõem seu conteúdo. A primeira
refere-se a um cerco (o texto original é um tanto incerto), a
segunda a uma derrota e a terceira ao saque. A terra é cercada;
a força (isto é, o exército) é derrotada; os palácios são saquea-
dos. A lógica é evidente: a progressão vai do maior (terra!
território) ao menor (palácio), do cerco ao saque. Sem som-
bra de dúvida pode-se afirmar que o v. 11 é coeso. O mesmo,
porém, não se pode afirmar da denúncia (vv. 9-10). O v. 9 é
em si completo. Não carece de continuação. E o v. 10, por sua
vez, também é completo. Adicione-se que o v. 9 refere-se a
uma 3ª pessoa singular, o v. 10a a uma 3ª pessoa plural. Afora
isso, a fórmula do dito divino ("dito de Javé"), em meio ao
v. 10, realça a autonomia do versículo. Há, pois, bons motivos
para que se afirme que o v. 9 e o v. 10 são duas denúncias

20 Cf. item Profecia e organização - Anotações à luz de um texto - Am 2,6-16, p. 161.

21 Veja comentário de WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 228-233 e
370-384. Wilhelm Rudolph admite que 8,8 poderia ser do círculo de discípulos (Joel-
Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 264-265).

155
distintas, com peculiaridades específicas de forma e de con-
teúdo. Aliás, se com base nessa percepção passa-se a inquirir
sobre a conexão entre denúncia (v. 9 + v. 10) e ameaça (v. 11),
percebe-se que a segunda não coaduna exatamente com a pri-
meira." A fórmula do dito do mensageiro ("assim disse o Se-
nhor Javé") do v. 11 colide com a fórmula do dito divino ("dito
de Javé") do v. 10, além do que o v. 11 refere-se a uma
2ª pessoa singular, distinguindo-se, pois, tanto do v. 9 (3ª pes-
soa singular) quanto do v. 10 (3ª pessoa plural). Pelo visto, a
pericope 3,9-11 é uma composição de três unidades menores,
sendo o termo "palácio" (presente nos três versículos) e a con-
junção "por isso" (no início da ameaça) elementos de inter-
ligação. Como explicar o fenômeno? Os vv. 9-11 poderiam
ter sido compostos por ocasião da formulação do memorial
ou panfleto (cf. 3,3-4,3), para servir de denúncia e ameaça
básica à capital. É possível que assim tenha sido. Todavia, a
composição também pode ter surgido por ocasião do pronun-
ciamento profético de Amós. No caso, seria uma condensação
de duas denúncias sob inclusão implícita de uma reivindica-
ção (v. lOa). Tratar-se-ia, então, de um texto, no qual Amós
assume e compartilha formulações daqueles com os quais
convive. Uma possibilidade não exclui a outra. Em ambas, a
pericope aparece como fenômeno coletivo.
À semelhança de 3,9-11, também 8,4-8 é formado de
denúncia (vv. 4-6) e ameaça (vv. 7-8). Como em 3,9-11, a
diagnose ocupa maior espaço. Contudo, dessa vez falta uma
ligação mais evidente entre denúncia e ameaça. O v. 7 reme-
te só genericamente para o que antecede. Ao se referir a "to-
das as suas obras", é pouco concreto. Acrescente-se ainda

22 Compare ROBINSON, Theodore H. Die Zwolf Kleinen Propheten; Hosea bis Micha.
Tübingen, J. C. B. Mohr, 1964. pp. 82-83 (Handbuch zum Alten Testament, 14).

156
funós seja a confluência de uma linguagem grupal, eviden-r
temente teríamos de apropriar-nos, oom vigilante cautela"
fe resultados crítico-literários, alcançados por meio do~ pres-
,supostos de uma autoria individual. Contudo, ant~ de avan- J
rarmos para tais tarefas, por certo devemos ampliar e,
aprofundar o estudo e o conhecimento de panfletos e de pe-
rícopes proféticas, dos ditos e das "palavras de Amós".

Retrospectiva
No presente estudo, quis enfocar as "palavras de Amós"
como literatura. Tentei esboçar o surgimento do livro, com
base no dito profético, compreendido como criação coleti-
va, na qual o profeta Amós desempenhou papel decisivo,
mas não exclusivo. Em retrospectiva posso ressaltar o se-
guinte:
Destaquei que nosso livro de Amós é um todo. Há in-
dícios evidentes para sustentar a afirmação: o início (cf. 1,1
+ 1,2) e o final (cf. 9,11-15), por exemplo, exigem que se
leiam os nove capítulos em questão como um só texto.
A composição literária de nove capítulos não parece ter
surgido de uma só vez. A pesquisa crítico-literária conseguiu
mostrar a existência de camadas redacionais: uma acentua a
doxologia, outra a escatologia e a terceira provém do deu-
teronomismo. É possível que existam outras camadas. Tais
acréscimos ajudam a compreender a história do texto de Amós.
.....m:-seno livro, no lJiiJin1o,'". .' . . . ,
I'PtIIIPs, êiêtóI (Am 1-2; 7-9; em 3,3-4,3).tDitâii• •'1
_.~(ainda_imosao~.·.~ ••
"fIlavras~)ecle ~-<tIfíIlii.'''I •
. - escritas dos.ditos). Os memoriaise.8i• • tf'.
159
t~ o testemunho dos"ouVinteS5SI&IÍIosó fala prof~
ImastaJIlbém seu ectl
\OS ditos proféticos sio u ~ básicas da tà1t
~féti~o-laS de ··~·origem da litel'atUt
~ profética e-o sentido de _~·necessitam ser *
• dessas pequenasuni~ Tentei mostrar que tais ditos
e pericopes são não só intuições da personalidade de Amós,
mas também desaguadouros de experiências coletivas. O dito;
.é ttambém um produtogmpai. r~b$ver elucidado, coDl
basenaspróprias pericopes, ÚktidBque,permitam trabaBíal'
'c)m essa hipô~~ ~vrai'de'Amôi" estão embebidas
~ seu contexto e do clam6t dóI'~kkJs.

Essas hipóteses têm a ver com a cultura oral e a busca


de ir às culturas em seu cotidiano. Parte-se de um texto, um
texto que não se pode questionar no real, com entrevistas.
O texto sozinho, porém, não basta, porque se faz ne-
cessário situar as palavras.
Palavras completas, ditos, pequenas narrativas. Elas
constituem o texto. Não é um texto contínuo.
Os signos postos para unir o todo sempre estão liga-
dos aos fragmentos.

160
7. Acréscimos

Os seis itens anteriores constituem uma unidade. Em


sua base estão seis conferências temáticas sobre Amós, pro-
feridas em Caracas, Venezuela. Nesses seis estudos, parti do
contexto histórico do profeta e concluí com observações
sobre o surgimento do livro de Amós.
Neste sétimo item, acrescento mais dois ensaios que sur-
giram em contextos diferentes aos dos primeiros seis capítulos
do presente livro. Em ambos os ensaios, a metodologia vai por
caminhos similares. Tento mostrar que uma leitura, que consi-
dere perguntas sobre o contexto e enfoques sociais dos textos e
dos temas proféticos, é muito necessária para a compreensão.
Considerando esses enfoques, os dois próximos en-
saios explicitam e detalham os métodos de leitura que foram
usados também nos seis capítulos anteriores.

Profecia e organização -
Anotações à luz de um texto -Am 2,6-16 1
I
Os profetas do Primeiro Testamento estavam vincula-
dos aos movimentos sociais de seu tempo? Caso estiverem,
pode-se percebê-lo nos textos proféticos?

1 Este ensaio foi inicialmente publicado em Estudos Bíblicos, v. 5, Petrópolis, Vozes,


1985, pp. 26-39. A temática do referido número de Estudos Bíblicos foi "Bíblia e
organização popular".

161
Para os profetas, o futuro é obra de Javé. Tanto a amea-
ça quanto a promessa serão concretizadas por Deus. São
muitos os textos que o comprovam. Menciono tão-somente
alguns poucos: a realização da ameaça profética é obra divi-
na, por exemplo, emAm 7,1-9 + 8,1-3; Os 1,2-9; Is 1,24-27;
Jr 7,1-8,3. Igualmente a implantação da promessa é feito
exclusivo de Javé, por exemplo, em Os 14,2-9; Sf3,12; Ez
37; Is 43,1-13. Portanto, o discurso profético é eminente-
mente teológico.
Contudo, poder-se-ia deduzir daí que os profetas tão-
somente seriam grandes indivíduos ou personalidades teo-
lógicas? Isolá-los de tudo e de todos seria a melhor maneira
de compreendê-los? Desenraizá-los do social seria a herme-
nêutica adequada? Não me parece que a resposta afirmativa
a tais insinuações seja a conseqüência suficiente à primazia
da ação divina na fala profética.
Ora, os próprios textos bíblicos barram uma explica-
ção demasiadamente personalista da teologia profética.
Memorizemos algumas cenas e dados: Natã sabidamente
viveu e atuou nas imediações da corte real de Davi. Seus
filhos chegaram a ser funcionários de Salomão que, em boa
medida, deveu seu trono à astúcia de Natã (cf. 1Rs 1,11-31;
4,5). Sabendo de tal localização social deste profeta, toma-
se mais transparente o conteúdo de sua fala, em 2Sm 7 e
12.2 Há uma vinculação entre o contexto de Natã e os textos
que dele nos falam. Jeú foi ungido rei por um dos discípulos
de Eliseu (cf. 2Rs 9). Na cena, a profecia aparece em cone-
xão estreita com um golpe de Estado. A oposição que Elias,

2 Veja a respeito meu ensaio Natã precisa de Davi - Na esperança da Igreja profética.
Estudos Teológicos, v. 28, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1978. pp. 99-118.

162
Eliseu e seus discípulos esboçavam à casa de Acab (cf. 1Rs
17-2Rs 9) não era, pois, somente um enfrentamento pes-
soal. Na atuação destes profetas vinha à tona um desconten-
tamento social mais generalizado contra os onridas.' Mi-
quéias, defensor inconteste do "meu povo", isto é, dos cam-
poneses empobrecidos de Judá, tem suas raízes no interior,
no vilarejo de Moresete-Gate. É provinciano." Isaías, seu
contemporâneo, é oriundo de Jerusalém. Seu quadro de re-
ferências provém da capital. O enraizamento social tão dife-
rente de ambos contribui grandemente para a avaliação de
suas palavras. A origem distinta ajuda a compreender por
que Isaías vê em Sião uma grandeza tão positiva e por que
Miquéias rejeita o mesmo Sião tão radicalmente (cf. Is 8,18;
Mq 3,12; Jr 26,16-18). A profecia de Sofonias, na segunda
metade do século VII, transpira, com nitidez, o ambiente da
revolução camponesa que conduziu ao trono um menino de
oito anos, Josias (cf. 2Rs 21,19-26). Em Sofonias 2,3 e 3,12
emergem propostas do movimento camponês vitorioso. As
propostas de Ageu quase que se tomam chocantes quando

J os estudos de Nancy Cardoso Pereira nos mostraram que a imagem de Eliseu que
obtemos segundo 2Rs - marcada pelo deuteronomismo - não é propriamente a que
os textos antigos sobre Eliseu nos oferecem: Profecia e cotidiano, São Bernardo do
Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 1992, 167 p. (dissertação de mestrado),
e Cotidiano sagrado e a religião sem nome; religiosidade popular e resistência cultu-
ral no ciclo de milagres de Eliseu. São Bernardo do Campo, Universidade Metodista
de São Paulo, 1998. 259 p. (dissertação de doutorado). A pesquisa de Pedro Julio
Triana Fernández indicou que os grupos proféticos em tomo de Elias e Eliseu fazem
parte de um movimento social contestatário à monarquia israelita do Norte. Profecia;
resistência e sobrevivência - Um estudo sobre a vida do povo de Israel durante a
dinastia de Jeú. São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 1998.
334 p.).

4 A respeito, veja meu ensaio Igreja como povo - "Meu povo" em Miquéias. A Palavra
na Vida, n.15, Belo Horizonte, Centro de Estudos Bíblicos, 1989,24 p. Os estudos
sobre o contexto de Miquéias estão sendo aprofundados por Noli Bernardo Hahn, em
sua tese doutoral (A profecia de Miquéias e meu povo; memórias, vozes e experiên-
cias. São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2002, 283 p.).

163
lidas em comparação com as dos profetas pré-exílicos. Ele
propõe reconstruir o templo (cf. Ag 1,8), estes anunciavam
sua demolição (cf. Am 9,1-4; Jr 7,1-8,3). A diferença difi-
cilmente é entendida sem que seja vinculada à política dos
persas, senhores do mundo nos dias de Ageu. A teologia de
Ageu é contextua1. Esses dados e cenas de maneira nenhu-
ma pretendem explicar a profecia meramente no âmbito his-
tórico. Já inicialmente insisti que a profecia requer meto-
dologia teológica; a vocação profética não é reduzível ao
contexto. No entanto, igualmente não se pode reduzir o con-
texto a mero ornamento circunstancial ou quadro externo da
profecia. Pois, de fato, o próprio conteúdo da profecia traz
encravado o contexto. E é esta a questão que pretendo
tematizar no presente ensaio. Quer dizer, ater-me-ei não tanto
a descrever e avaliar o conteúdo teológico, mas mais a per-
ceber a gênese histórica ou a emergência social de palavras
proféticas.
Esse enfoque tem sido pouco trabalhado, justamente
por isso convém que nos restrinjamos a um só texto. Optei
por um do início da "profecia clássica": Am 2,6-16.

6Assim disse Javé:


Por causa de três delitos de Israel
e por causa de quatro, não o (=castigo) retirarei.
Eis que vendem por prata o justo,
o pobre por um par de sandálias.
"Pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos.
O caminho dos oprimidos desviam.
Um homem e seu pai dormem com a (mesma) jovem
a fim de profanar meu santo nome.

164
8S obre roupas empenhadas deitam ao pé de cada altar.
Vinho de multados bebem na casa de seu deus.
9Eu,porém, havia destruído os amorreus diante deles,
cuja altura era como a dos cedros
e que eram fortes como os carvalhos.
Destruí seu fruto por cima
e suas raízes por baixo.
IOEu vos tirei da terra do Egito,
conduzi-vos no deserto durante quarenta anos
a fim de tomar posse da terra dos amorreus.
"Suscitei profetas dentre vossos filhos
e nazireus dentre vossos jovens.
Não foi isto que efetivamente aconteceu, filhos de Israel?
Dito de Javé.
12Porém, fizestes beber vinho aos nazireus
e aos profetas ordenastes: Não profetizeis!
l3Eis, eu abrirei sulcos debaixo de vós,
como abre sulcos a carroça carregada de espigas.
14Não haverá refúgio para o ágil,
o forte não encontrará sua força,
o valente não salvará sua vida.
15 0 arqueiro não resistirá,
o ligeiro de pés não se livrará,
o condutor do cavalo não salvará sua vida.
160 mais corajoso entre os valentes fugirá nu naquele dia.

Dito de Javé.

165
II
Há muito se percebeu que uma das características
marcantes da fala profética é ser constituída de duas partes.
Na primeira temos análise da situação, descrição das injus-
tiças e da idolatria reinantes. Na segunda parte temos o prog-
nóstico, a ameaça divina contra os causadores da injustiça e
da descrença. Quando tal prognóstico evoca esperança, isto
é, quando se apresenta como promessa, via de regra falta o
diagnóstico social. Costumamos designar a primeira parte
de denúncia e a segunda de ameaça (ou, dependendo do caso,
de promessa).
Em Am 2,6-16 encontramos um típico dito profético,
introduzido como fala de mensageiro ("assim disse Javé"
v. 6) e concluído como fala divina ("dito de Javé" v. 16). No
texto, Amós até faz duas vezes a trajetória da denúncia à
ameaça (à semelhança do contexto anterior: 1,3-2,5). No
v. 6a, diagnose ("transgressões de Israel") e prognose ("não
o [isto é, o intuito de destruição] mudarei") são bastante ge-
néricas. Os vv. 6b-12 dão os detalhes da diagnose; os vv. 13-
16, os da prognose. Portanto, nosso texto é semelhante a
tantos outros dentre a profecia: inicia com a denúncia (vv.
6b,7-12) e conclui com a ameaça (vv. 6a.13-16).
Detenhamo-nos a observar a coesão de linguagem de
cada uma das partes. Na ameaça, o fluxo lógico é contínuo e
nada complicado.
No v. 13, a prognose é apresentada em figura, nada
fácil de interpretar. Provavelmente alude a uma carroça,
sobrecarregada da colheita. Nesse caso, o "abrir o chão"
(Bíblia de Jerusalém), "sulcar" ("oscilar"? Almeida), causa-
do por Javé (v. 13a), deve estar referindo-se ao terremoto
(cf. Am 1,1; 9,1-4).
166
Nos vv. 14-16, é descrita a conseqüência de tal terre-
moto entre o exército. Portanto, a disposição lógica dos vv.
13-16 nada deixa a desejar: começa por linguagem figurada
e delonga-se em sua concretização. O mesmo não se dá na
denúncia. Demoremo-nos em observá-la:
Ela, a rigor, consiste em duas partes. A primeira elenca
uma série de delitos (vv. 6b-S). A segunda rememoriza epi-
sódios da história (vv. 9-11 [12?]). Estes servem de contras-
te para aqueles. Os episódios da história evidenciam a bon-
dade de Javé, o que torna ainda mais chocantes e inex-
plicáveis as atrocidades cometidas. Na verdade, porém, o
v. 12 rompe a seqüência lógica que justapõe os vv. 6b-S aos
vv. 9-11. Pois, o v. 12 não recorda a bondade divina (obser-
ve também a fórmula do dito divino no final do v. 11). Re-
lembra, isso sim, a maldade de israelitas, sendo semelhante
aos vv. 6b-S. No entanto, o v. 12 também não deixa de ser
uma nítida continuação do v. 11 (ambos tratam de profetas e
nazireus), sendo até distinto dos vv. 6b-S. Aqueles enume-
ram transgressões atuais; o v. 12 está voltado a delitos pas-
sados. Nessa peculiaridade do v. 12, já se pode notar que na
denúncia a coesão é bem menos consistente. Isso se torna
ainda mais patente ao destacar outros desacertos na diagnose.
Vejamo-los.
Nos vv. 6b-9 é denunciada a 3ª pessoa plural ("eles"),
nos vv. 10-12, a 2ª pessoal plural ("vós"). Nos vv. 9-10 há
mais outra incongruência: a referência à saída do Egito
(v. 1Oa) e à peregrinação pelo deserto (v. 1Ob), a rigor, deve-
riam anteceder o v. 9, a referência à libertação da terra. Es-
sas duas observações (os vv. 10-12 se referem a uma 2ª pes-
soa plural; o v. 10 caberia melhor antes do v. 9) podem até
suscitar a pergunta sobre se os vv. 10-12 não são acréscimos

167
posteriores. Contudo, a suspeita fica um tanto relativizada
quando se detecta, no mínimo, outra ruptura.
Penso na passagem do v. 6b para o v. 7. O v. 6b asseme-
lha-se a seus correspondentes em 1,3-2,5; sua tradução literal
seria a seguinte: "Por causa do seu vender...". O estilo do v. 7
é outro; sua tradução literal seria: "Os que pisam ...". Aliás, a
partir da segunda frase deste v. 7, há nova alteração: "Des-
viam...". Junta-se a esses dados todos o fato de que os vv. 6b-S
são um tipo de listagem de cenas muito diferentes entre si
(confira a seguir) e, então, não restará dúvida de que a denún-
cia/diagnose de modo algum tem uma linguagem unitária e
coesa como a que verificávamos na ameaça/prognose. Por quê?

ttt
Atenhamo-nos às disformidades vistas na denúncia;
demo-nos conta da diversidade das cenas enumeradas. Antes
de cumprir esta tarefa, porém, é preciso ter claro que na inter-
pretação das diversas cenas permanecem muitas dúvidas.
Quase só deparamos com breves alusões, compreensíveis para
os ouvintes de então e para os primeiros leitores, mas compli-
cadas para nós. Aqui não é o local de esmiuçar os problemas.
Por conseguinte, preferi ater-me, na avaliação de cada denún-
cia, ao que é mais ou menos consensual entre exegetas.
Num primeiro momento, enfoco as diversas parcelas
da denúncia. Depois avalio o todo. Nas traduções do texto
busco ser literal.
O v. 6b aparentemente consiste numa mesma denún-
cia. Afinal, há um só verbo:

6bEis que vendem por prata o justo,


o pobre por um par de sandálias.

168
A segunda parte deste belo paralelismo quiástico (isto
é, a segunda frase inverte a ordem de palavras da primeira)
parece aludir claramente à escravidão da pessoa empo-
brecida. O "pobre" toma-se escravo em razão da dívida de
"um par de sandálias". Tratar-se-ia de uma bagatela? De
indumentária necessária para serviço militar? Permanecem,
pois, dúvidas, mas, ainda assim, a frase "vender... o pobre
por um par de sandálias" certamente denuncia a escravidão
do empobrecido.
Outro parece ser o sentido da primeira parte do para-
lelismo. Dificilmente diz respeito à escravização. Que sen-
tido faria a referência ao "justo"? (Seria mero sinônimo de
"pobre"? Cf. Am 8,6). A menção do "justo" faz sentido se a
entendermos no contexto da jurisprudência (cf. Am 5,12). A
pessoa, cuja justiça seria confirmada por um processo dig-
no, é injustiçada por suborno do júri. Os prejuízos que tais
processos injustos causaram à gente empobrecida talvez fos-
sem de tal ordem que redundassem em escravidão. Esse po-
deria ser o motivo que agrupa as duas cenas do v. 6b.
No v. 7 temos três casos claramente distintos. Não vejo
relação explícita entre eles:

"Pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos.


E o caminho dos oprimidos desviam.
Um homem e seu pai dormem com a (mesma) jovem
a fim de profanar meu santo nome.

Para a compreensão do segundo e terceiro casos, não


vejo problemas maiores. O segundo diz respeito à prática pro-
cessual. O "caminho" é o andamento do processo (veja Am
5,12). Este é desviado e desvirtuado, provavelmente por su-
169
borno. Desse modo, a frase "desviam o caminho/processo dos
oprimidos" denuncia situações semelhantes às que são abar-
cadas pela primeira frase do v. 6b: "Vendem o justo por pra-
ta". Ambas dizem respeito à jurisprudência local, no portão
(cf. Am 5,10.12). A diferença está em que no v. 7 há referên-
cia ao encaminhamento do processo, no v. 6 à sentença.
O segundo caso pressupõe a escravidão. Os senhores
(pai e filho) valem-se da mesma menina escravizada para
sua satisfação sexual. Fica o problema da intenção da atitu-
de ("para profanar o meu santo nome"). Se a justificativa
não for um acréscimo posterior, então estaríamos diante de
um caso de prostituição sagrada (tão enfaticamente denun-
ciada por Oséias). Contudo, já que Amós não costuma te-
matizar a idolatria, parece ser mais provável que o final do
v. 7 seja uma interpretação posterior e, conseqüentemente, o
terceiro caso denunciado no versículo originalmente, de fato,
diria respeito ao abuso sexual da moça escrava. Encontramo-
nos, pois, nas proximidades do que é tematizado no v. 6b
("vendem... o pobre por um par de sandálias"). A diferença
está em que o v. 6b enfoca o processo de escravização do
homem, o v. 7 o destino da escrava.
Para o entendimento do primeiro caso do v. 7, o verbo
poderia oferecer empecilho. Entrementes, sabemos que seu
sentido exato é "pisar", "esmagar", "triturar". Dessa manei-
ra, a frase "os que pisam sobre o pó da terra na cabeça dos
fracos" provavelmente indica violência pessoal e fisica con-
tra os fracos, em especial contra seu rosto. O profeta talvez
esteja querendo chamar a atenção para o rosto sofrido e de-
formado dos emagrecidos por fome e trabalho pesado; tal-
vez faça referência aos castigos impostos pelos senhores a
seus escravos e assalariados, talvez pense no terror policial.
170
Provavelmente se refere a tudo isso e muito mais. Lembremo-
nos de que vários outros textos dão conta de cenas da bruta-
lidade contra os pobres: Arn 1,3.13; 3,9-10; 8,4; 1s 3,14-15;
Mq 3,1-3 etc.
As diversas cenas do v. 7 não deixam de formar um
único quadro. Afinal, cada urna delas conta do sofrimento
imposto aos fracos. Contudo, simultaneamente cada urna tem
seu enfoque peculiar.
À semelhança do v. 6b, o v. 8 novamente apresenta
dois casos muito parecidos.

8S obre roupas empenhadas deitam ao pé de cada altar.


Vinho de multados bebem na casa de seu deus.

A proximidade dos casos reside em dois fatores. Por


um lado, ambos mencionam delitos praticados no âmbito
cultual, embora não sejam propriamente desvios cultuais.
Na verdade, são práticas sociais indevidas na área do sagra-
do. Justamente por isso não se deve imputar às duas expres-
sões que localizam os delitos no sagrado ("ao pé de cada
altar" e "na casa de seu deus") a suspeita que fazíamos valer
para urna expressão similar no final do v. 7 ("para profanar o
meu santo nome"). No v. 8, a referência ao religioso é de
matiz diferente à do v. 7 (cf. Am 5,21-27). Por outro lado, os
dois casos do v. 8 tratam de pessoas endividadas. Nisso es-
tão próximos do v. 6b, em especial de sua segunda parte:
"Vendem ... o pobre por um par de sandálias". No mais, tam-
bém no v. 8 cada caso é autônomo.
O primeiro caso traz a queixa do uso de roupas (em
especial de capas) empenhoradas por pessoas pobres a fim
de obterem pão, saúde, semente. A retenção de tais objetos

171
penhorados expunha ao frio as pessoas pobres (cf. Ex 22,25-
26) e desgastava seus últimos haveres.
O segundo caso toma-se mais difícil de localizar. Pro-
vavelmente se refere a multas impostas a pessoas culpadas.
Ao menos, é nesse contexto que costumeiramente se usa a
terminologia do v. 8b (cf. Ex 21,22; Dt 22,19; 2Rs 23,33; Pr
17,26). Talvez também se tratasse de multas exigidas em
razão do atraso na entrega de tributo ou renda (cf. Am 4,1;
5,11). Em todo caso, os que usufruem das multas são os fun-
cionários do sagrado, que com mais arrecadações fazem suas
festas. Com essa maneira de localizar o segundo caso, já
estou a determinar os acusados no v. 8: os sacerdotes que
atuam junto aos altares e templos. Espoliam os fracos tanto
por meio dos ritos (v. 8b) quanto de sua condição de pessoas
mais bem situadas, capazes de conceder empréstimo em troca
de penhora (v. 8a).
Que conclusões permite essa avaliação dos casos de-
nunciados nos vv. 6b-8?
Pudemos verificar sintomas de alguma sistematização
rudimentar das diferentes cenas. Certamente não é acaso que
são veiculados sete casos. Igualmente não é mero acidente
que os dois primeiros (v. 6b) estão vinculados, sucedendo o
mesmo com os dois últimos (v. 8), isto é, os dois primeiros e
os dois últimos formam pares e servem de um tipo de mol-
dura em tomo das três cenas do v. 7. Esses dados literários
mostram que nossos vv. 6b-8 foram trabalhados e organiza-
dos. Existe até um conceito que abrange o conjunto dos ca-
sos. A expressão "transgressões"/"delitos" do v. 6a agrupa
sob um mesmo conceito os versículos subseqüentes. Contu-
do, a sistematização não vai além do rudimentar. De modo
algum determina o todo; não lhe dá coesão conseqüente. Em
172
geral, nem mesmo são agrupados assuntos semelhantes.
Efetivamente cada caso é um caso. Cada cena, mesmo bre-
ve, está completa em si e difere da anterior e/ou posterior.
Os vv. 6b-S, de fato, são uma listagem.
Por que os "delitos" são alistados desse modo? Ora,
eles constatam o existente. Correspondem a experiências
concretas. Ao mesmo tempo, porém, nem todas são experiên-
cias pessoais de Amós. Sucederam com diferentes pessoas,
em circunstâncias específicas. Emergem para dentro de nosso
texto na qualidade de experiências de pessoas distintas.
Portanto, os casos denunciados são tão diferentes e entre si
autônomos porque provêm de experiências específicas de
diversas pessoas. Nos vv. 6b-S, varia o estilo, porque se al-
ternam as vozes. Não me parece, porém, suficiente verificar
que os "delitos" apresentam-se em forma de lista, pois re-
presentam diferentes vozes. Far-se-á necessário perceber
o significado organizativo inerente à listagem. Afinal, ela
pressupõe que a experiência sofrida de uns foi comunicada
a outros. A dor partilhada agrupa. A junção das diferentes
injustiças sofridas por diferentes pessoas cria conexão, or-
ganização entre os implicados. Nesse sentido, podemos di-
zer que a denúncia dos vv. 6b-S reflete uma experiência co-
letiva de opressão. Portanto, a existência de uma listagem
de sofrimentos pressupõe a existência de um intercâmbio
entre os sofredores e uma organização dos injustiçados.
Para detectarmos de maneira mais eficiente o nível
organizativo indispensável como lastro social da listagem
dos "delitos", devemos identificar quem são os que sofrem.
Não é dificil defini-los, já que nesse particular nossos ver-
sículos e, em geral, o livro de Amós são explícitos. Posso
ser breve e dispensar uma argumentação detalhada. Os "po-
173
bres", "fracos"l"magros" e "oprimidos" dos vv. 6b-S e de
Am 3,9; 4,1; 5,11.12.16; S,4.6 são camponeses espoliados,
empobrecidos, emagrecidos. Ainda têm alguns direitos e al-
gumas posses. Têm acesso àjurisprudência no portão, sabida-
mente restrita aos que tinham terra (cf. 2,6b; 5,12); deles
pode-se extorquir riqueza (cf. 2,S; 4,1; 5,11). Contudo, já se
encontram em tamanha debilidade e dependência, que no
portão sua justiça sucumbe ao suborno (cf. 2,6b,7; 5,7.10.12),
que são feitos escravos (cf. 2,6b.7; 8,6), que estão expostos
a todo tipo de violência (cf. 2,7; 3,9-10; 4, I; S,4). Na denún-
cia aflora a dor dessa gente. Aflora de maneira coletiva e
organizada. Portanto, a organização camponesa é o substrato
social da denúncia registrada nos vv. 6b-8. Dito de outro
modo: para entender a forma de listagem, sob a qual a de-
núncia apresenta-se, é necessário pressupor uma forma de
organização. A organização da gente do campo - um certo
movimento camponês - é uma mediação hermenêutica para
a diagnose, em Am 2,6b-S.
Pode-se, pois, postular que a denúncia profética está
vinculada ao movimento organizado do campo.

IV
Exercitamos anteriormente a possibilidade de que a
denúncia dos vv. 6b-S seja um protesto social emergido da
vida organizada do campo. A proposta de vincular a diagnose
profética à determinada organização social ganha em proba-
bilidade à luz de outra particularidade de nossa unidade. Pas-
semos a elaborá-Ia.
Quem é denunciado e quem é ameaçado em Am 2,6-16?
Iniciemos definindo os denunciados. Valho-me aí das
reflexões do item anterior. Ao buscarmos identificar as di-

174
versas cenas, implicitamente também determinamos os cul-
pados. Agora, trata-se somente de circunscrevê-los, sem
voltar aos argumentos já expostos, naturalmente sempre cien-
tes dos intricados problemas exegéticos em jogo.
Denunciados são juízes e outros que atuam nos pro-
cessos junto ao portão (v. 6b e v. 7). As práticas de "compra-
dores" de escravos (v. 6) e de senhores de escravas (v. 7) são
pichadas. Sacerdotes são acusados (v. 8). Pessoas capazes
de ceder empréstimos, comprar escravos, subornar tribunais
são postas no banco dos réus. Gente violenta (talvez do exér-
cito) é incriminada. Gente como o sacerdote Amasias, capaz
de fazer calar profetas (v. 12, cf. Aro 7,10-17; Mq 2,6; lRs
22,8.27) é contestada. Pelo que se vê, os denunciados, basi-
camente, são camponeses muito bem situados e sacerdotes,
talvez comerciantes devido à referência à prata, ao comprar
e emprestar, eventualmente graduados das armas, em razão
da referência à violência. Não parece que estejamos diante
de funcionários públicos, contra o que falariam, no mínimo,
v. 6b e v. 7b.
Os ameaçados estão claramente identificados, nos vv.
14-16. Sucumbirá o que luta a pé (o "ágil", o "forte", o "va-
lente", vv. 14-15), o arqueiro (v. 15), o "cavaleiro" (melhor
seria dizer: o condutor do carro de combate, v. 15) e o co-
mandante (v. 16). Todos eles pertencem ao exército. Portan-
to, a ameaça atinge somente as forças militares. Nesse exér-
cito, dois setores recebem destaque especiaL Por um lado,
os que lutam a pé (por assim dizer a "infantaria") são mencio-
nados quatro vezes. Recebem, pois, maior destaque. Isso se
explica pelo fato de que o agrupamento era a parte mais nu-
merosa e importante do exército. Nesse caso, a maior ên-
fase dada, na ameaça, à "infantaria" corresponde à sua maior

175
importância militar. Por outro lado, ao comandante geral (por
assim dizer o "general") é reservada uma ameaça especial
(v. 16). Enquanto seus comandados perdem a vida (vv. 14-
15), ele perde a honra. Em resumo: além da ameaça restrin-
gir-se ao exército, privilegia o setor mais numeroso e vital, o
comando geral.
Comparando, agora, denunciados e ameaçados, cons-
tata-se que não são os mesmos. A rigor, a ameaça não recai
exatamente sobre os culpados. Como explicar o flagrante
descompasso entre denunciados e ameaçados?
Aqui a dimensão da organização volta a desempenhar
papel relevante. Para avaliar a disparidade entre os causado-
res dos delitos e os atingidos pela ameaça, faz-se necessário
perceber que Amós tem em vista não só pessoas . No caso de
nossa unidade, preponderantemente trabalha com categorias
estruturais. Isso já se percebe no fato de que tanto na diagnose
quanto na prognose são alistadas não pessoas ou indivíduos,
mas delitos e cargos. A dimensão estrutural da profecia de
Amós toma-se ainda mais nítida quando a gente se dá conta
de que o exército ameaçado é a instância coercitiva que pos-
sibilita os delitos dos camponeses ricos, dos sacerdotes e de
seus similares. Embora o exército não realize os delitos e
crimes alistados, viabiliza-os. Sem sua coerção, os campo-
neses empobrecidos reagiriam. Contudo, não se faz jus à
unidade - em especial se ela também passar a incluir o
contexto de 1,3-2,5 - se atribuímos ao exército a miséria
dos fracos. Pois, a instituição que, de fato, viabiliza e ace-
lera o empobrecimento dos camponeses é o Estado, na for-
ma do estado tributário. Amós designa essa grandeza de
"Israel" (v. 6). Que no v. 6 "Israel" é a organização do Es-
tado, é evidente não só com base nos versículos precedentes
176
(1,3-2,5), mas igualmente em uma série de outros textos do
livro (cf. 3,14; 5,1; 7,9; 7,10-11). Assim sendo, é o Estado
israelita que está emjogo em nossa unidade. É ele a media-
ção que possibilita explicar o descompasso entre denuncia-
dos e ameaçados.

v
Tentei evidenciar na leitura de alguns versículos que a
categoria da organização é valiosa como perspectiva tanto
hermenêutica, para avaliar uma unidade (o Estado tributário
é uma mediação imprescindível para abarcar o sentido de
nossos versículos), como histórica, para entender a origem
da denúncia (alistar delitos contra os lavradores é uma das
formas de organização destes). É hora de adicionar alguns
textos a mais a nossos vv. 6-16.
Antes de mais nada, devemos incluir a unidade Am
1,3-2,5, da qual nossos versículos inegavelmente são parte.
Também nessa unidade ampliada há grande interesse em
estruturas sociais. Basta ler 1,3-5 para confirmá-lo. Contu-
do, não é propriamente para esse aspecto que, agora, preten-
do voltar a atenção, pois já o ressaltei. A constatação de que
1,3-2,16 forma uma grande unidade conduz-nos a um novo
passo. Acontece que a unidade maior tem a peculiaridade de
ser uma composição de diversas unidades menores. É uma
coleção de ditos proféticos. Originalmente devem ter sido
cinco (cf. 1,3-5; 1,6-8; 1,13-15; 2,1-3; 2,6-16 [os demais ditos
parecem ser adendosD. Seu ápice é justamente a unidade
em estudo: 2,6-16.
Coleções semelhantes encontram-se em outras partes
do livro de Amós. Em Am 7-9, a gente depara com uma
série de cinco visões que, originalmente, devem ter formado

177
um só conjunto: 7,1-3; 7,4-6; 7,7-9; 8,1-3; 9,1-4. Seu auge é a
última visão. Igualmente deparo com uma coleção em 3,3-4,3
(cf. 3,3-8; 3,9-11; 3,12; 3,13-15; 4,1-3). Nela predomina a
polêmica contra a capital Samaria. Seu auge é o segundo
dito (cf. 3,9-11).
Coleções desse tipo podem ser encontradas em muitos
livros proféticos. Aponto para algumas. Em Isaías podem ser
citados: 1,2-26; 5,8-24 + 10,1-3; 6,1-9,6. Em Jeremias temos,
por exemplo: 21,11-23,8; 23,9-40; 30-31. Em Sofonias
há uma coleção em 1,7-2,3. Em Miquéias o capítulo 3 forma
uma unidade muito interessante. E, além dessas, existem mui-
tas outras coleções dentro dos livros proféticos.
Esse tipo de coleção, via de regra, não é muito exten-
so. Reúne três, cinco, sete, por vezes mais ditos proféticos,
em torno de um mesmo assunto. No tamanho, chegam a ser,
mais ou menos, iguais. Designo essas coleções de panfletos.
Neles está o embrião da profecia como literatura. O estudo
da literatura profética, ao meu ver, poderia dar especial des-
taque aos panfletos. Pelo que me consta, o fenômeno do pan-
fleto profético, até hoje, não chegou a ser estudado. Por con-
seguinte, neste contexto, não vou além da indicação de al-
gumas pistas que assinalam o fenômeno e atribuem-lhe uma
primeira interpretação.
O que se lê nos panfletos são palavras proferidas por
determinado profeta. Ao ser reunidas, elas não deixam de ser
palavras do respectivo visionário, mas sua dimensão cresce.
São reunidas porque foram confirmadas por outros, pelos
ouvintes. A coleção contém, pois, a fala profética mediada
de modo marcante pelo ouvinte. Os ditos foram ouvidos,
tidos como valiosos, recontados, programados, enfim me-
morizados. Nesse sentido, o panfleto pressupõe não só a fala
178
profética e a adesão do ouvinte, mas igualmente a memória.
À medida que a memória vai compondo ditos, aumenta seu
impacto. Ora, um dito de Amós contra Samaria causa um
impacto bem menor do que toda uma coleção, como a de
Am 3,3-4,3. A memória profética toma mais densa e con-
centrada a fala do profeta. Quando a memória também pas-
sa a se servir da escrita, pode ampliar o raio de ação da fala
profética. Pode querer preservar (cf. Is 8,16), difundir (cf. Jr
36), distribuir.
Tal processo de surgimento de um panfleto profético é
um evento coletivo. Provém de articulações. Propicia a for-
mação de círculos proféticos. Um panfleto não surge sem
organização.
Portanto, na base da memória que sedimenta e da es-
crita que fixa os panfletos proféticos, existe o fenômeno da
organização.

VI
Ao encaminhar urna conclusão, devo ressaltar, inicial-
mente, que neste meu estudo busquei ensaiar possibilidades e
perspectivas que, ultimamente, foram pouco exercitadas na
interpretação dos profetas. Conseqüentemente, na conclusão
não só são de importância os resultados "positivos" que, a
seguir, verifico haver alcançado, mas, simultaneamente, a
perspectiva metodológica ensaiada. Nas atuais circunstâncias
da pesquisa, esta é mais relevante que aqueles.
Dito de modo mais genérico, o resultado básico consis-
te no seguinte: na leitura dos profetas é preciso ter olhos para
o nível da organização. A pergunta pela dinâmica das relações
sociais é incorporada à interpretação. As relações sociais da
época dos profetas são marcadas pelo tributarismo. Por isso,

179
no concreto, as relações sociais marcadas pelo tributarismo
são mediações hermenêuticas em textos proféticos.
O resultado específico de nosso estudo consiste na
constatação de que os profetas mantiveram vínculos com
organizações concretas, em especial do campo. Muitas nar-
rativas sobre episódios na vida de profetas já o evidenciam.
Ao testarmos a pergunta pela correlação entre profecia e
movimento social num texto profético, em Am 2,6-16, obti-
vemos as seguintes informações e detalhes:
A origem da denúncia (vv. 6-12) está no movimento
social. Há muito se percebeu que, na profecia, é preciso di-
ferenciar entre denúncia e ameaça, sendo a primeira menos
coesa em sua linguagem e terminantemente histórica e con-
textual. Não se viu o suficiente, porém, que a denúncia bro-
tou do chão do movimento social. Nele surge e a ele reforça.
Dores denunciadas propiciam solidariedade e protesto orga-
nizado. Penso que o estudo de outros textos proféticos pode
aprofundar e diferenciar a proposta de conectar as denún-
cias a organizações sociais.
A ameaça (vv. 13-16) atinge não só pessoas, mas prin-
cipalmente instituições. A grandeza social ameaçada é o exér-
cito como "Israel" (v. 6), isto é, como mantenedora do Esta-
do tributário. Os argumentos que sugerem compreender "Is-
rael" como Estado estão no contexto anterior (cf. 1,3-2,5) e
no fato de que os denunciados não são idênticos aos amea-
çados. O descompasso é explicável quando se admite a gran-
deza do Estado tributário como elo que vincula os grupos
implicitamente acusados (vv. 6-12) ao grupo explicitamente
ameaçado.
As primeiras anotações escritas dos ditos proféticos
são coleções de alguns poucos ditos, como a que encontra-
180
mos em Am 1,3-2,16. Designo essas manifestações literá-
rias da profecia de panfletos. Eles pressupõem a existência
de círculos profético-camponeses. Portanto, o movimento
social é a própria matriz da literatura profética. A pesquisa
bíblica ainda carece de estudos que verifiquem e pormeno-
rizem a importância do panfleto profético.
Por fim, volto a destacar: o discurso profético é teoló-
gico. Sem o devido respeito a essa dimensão, não o havemos
de entender. Contudo, na profecia necessitamos aperceber-
nos também de sua dimensão histórica. Privilegiamo-la nes-
te estudo. De modo algum pretendíamos absolutizá-la. Por
isso o presente ensaio carece de complementação.

VII
No decorrer da reflexão, evitei notas bibliográficas.
Recorri a diversos autores e, mesmo sem apontá-los em no-
tas de rodapé, estou em diálogo com eles. Na avaliação dos
detalhes exegéticos, permanece precioso o comentário de
meu professor WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2; Joel
und Amos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 158-211
(Biblischer Kornrnentar Altes Testament, 14/2). Um resumo
desse comentário foi publicado em espanhol: La hora de
Amós. Salamanca, Sígueme, 1984. 200 p. (Nueva Alianza,
92). De grande valor é a interpretação de Arnós apresentada
por REIMER, Haroldo. Richtet auf das Recht; Studien zur
Botschaft des Amos. Stuttgart, Katholisches Bibelwerk,
1992, 256 p. (Stuttgarter Bibelstudien, 149), a respeito de
2,6-16 veja principalmente as pp. 28-58. Na verificação do
gênero profético, vali-me de WESTERMANN, Claus. Die Grund-
formen prophotischer Rede. 4. ed., München, Christian
Kaiser, 1971 (Beitrãge zur evangelischen Theologie, 31).

181
Importante para nosso contexto é o estudo de ANDINACH,
Pablo Ruben. Amós - Memoria y profecía - Análisis
estructural y hermenéutica. Revista Bíblica, ano 45, Buenos
Aires, Sociedad Argentina de Profesores de Sagrada Escri-
tura, 1983, pp. 209-304. Chamo a atenção para a tese douto-
ral defendida por GUTlÉRREZ, Carlos Mario Vásquez. Dito,
panfleto e memória; uma abordagem a partir de Amós 3-6.
São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São
Paulo, 2002. 231 p. Nossa situação latino-americana tam-
bém marca os ensaios publicados no 4º número dos Estudos
Bíblicos, Petrópolis, Vozes. Por fim, ainda anoto que exercitei
a metodologia exegética anteriormente esboçada em dois ou-
tros ensaios: A cidade da justiça, estudo exegético de Isaías
1,21-28. Estudos Teológicos, v. 22, São Leopoldo, Faculdade
de Teologia, 1982, pp. 5-48; Profecia e Estado - Uma propos-
ta para a hermenêutica profética. Estudos Teológicos, v. 22
São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1982, pp. 105-145.

182
Jacó é pequeno - visões em Amós 7-9 1

A Escritura - Memória dos pobres

Na América Latina, a Bíblia está sendo descoberta. É


lida com fervor. Fez-se símbolo e alimento do novo jeito de
ser de toda a Igreja. As comunidades cristãs nutrem-se e
animam-se, lendo e celebrando a história bíblica.
Essa redescoberta traz à tona um novo jeito de com-
preender a Escritura. Experimenta-se uma nova aproximação
aos textos. Abrem-se novas portas. Passo a caracterizá-las,
ainda que de maneira bastante breve.
A nova leitura é, antes de mais nada, profundamente
litúrgica. Está enraizada no convívio da comunidade, em seu
canto, em sua oração, em sua eucaristia. Não foi concebida
no academicismo ou no mundo racional. Seu berço é a liturgia
comunitária e a luta contra as dores da vida. Provém da prá-
tica da comunidade e a ela direciona-se. São, por exemplo,
as lutas pela terra e pelo teto as que, entre nós, puxam e
animam a redescobrir a história bíblica. É a opressão da

1 o presente artigo foi inicialmente publicado na Revista de Interpretação Bíblica La-


tino-Americana, v. I, Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 81-92. Esse volume foi reeditado
em 1990. O ensaio também foi publicado em espanhol: Jacob el pequeno - Visiones en
Amós 7-9. Revista de Interpretación Bíblica Latinoamericana, v. 1, San José/Costa
Rica, Editorial DEI, 1988, pp. 87-99. Em homenagem ao pastor Werner Fuchs.

183
mulher pobre e a espoliação da gente trabalhadora que
direcionam a ótica de leitura. Reivindicam uma interpreta-
ção que parta do concreto e do social, das dores e utopias da
gente latino-americana. As lutas de nossos povos fermen-
tam e maduram o novo jeito de ler.
E, enfim, emerge um novo portador de interpretação.
Mulheres e homens empobrecidos tomam-se sujeitos de lei-
tura. Os empobrecidos são novos agentes, novos herme-
neutas. A Escritura é memória dos pobres.
Essas são algumas das novas portas que as comunida-
des estão abrindo. Há outras mais. Aqui só quis aludir a essa
nova experiência que nos marca na América Latina.
A leitura litúrgica, prática e popular retroage sobre o
estudo da Escritura. Sucita novas questões aos assessores.
Traz novas exigências ao estudo. À medida que estudo e
assessoria quiserem ser solidários e eficazes em meio à Igreja
dos pobres, passarão a recriar o saber bíblico em meio à prá-
tica das comunidades. Essa é uma nova exigência. Só passo
a passo poderemos corresponder-lhe. Trata-se de um cami-
nho a trilhar. A cada nova curva da estrada abrir-se-ão novos
horizontes.
A seguir, colocar-nos-emos a caminho na companhia
de Am 7-9. Nesses capítulos, atentarei para as visões. O
acesso a elas está marcado por duplo enfoque. Tanto levarei
em conta a redescoberta bíblica que toma corpo em nossa
América Latina, quanto considerarei a práxis histórica, na
qual os textos em questão foram formulados. Entendo que o
jeito de abordar o texto de acordo com o concreto promove
a solidariedade com os oprimidos, mulheres e homens. So-
letra sua dor. Sensibiliza com sua esperança.

184
o contexto literário das visões
Propus privilegiar um enfoque. Pretendo concentrar a
atenção em alguns versículos. Trata-se aí de um afunilamento
metodológico. Não quis excluir outras abordagens nem des-
considerar o contexto literário dessas visões em Am 7-9.
Tão-somente estou circunscrevendo a peculiaridade de meu
ensaio.
A colocação das visões dentro do livro, sem dúvida, é
deveras significativa.
Afinal, em Am 7-9 deparamos com cinco visões (cf.
7,1-3; 7,4-6; 7,7-9; 8,1-3 e 9,1-4) e diversas complemen-
tações. Após a terceira visão (cf. 7,7-9), ocorre uma inter-
rupção. Está intercalada uma narração sobre o conflito entre
Amós e Amasias, em Betel (cf. 7,10-17). Também após a
quarta visão (cf. 8,1-3), há uma interrupção. É interposta
uma coletânea de ditos que apresentam cenas da opressão
contra os pobres e da destruição dos opressores (cf. 8,4-14).
E nem mesmo após a quinta e última visão (cf. 9,1-4) faltam
emendas. Seguem-lhe expressões hínicas (cf. 9,5-6), que,
por certo, têm a função de concluir o conjunto. Papel similar
desempenham os dois ditos proféticos de 9,7-8.9-10. Am-
bos são deveras radicais contra o "reino pecador" e a "casa
de Israel". Reafirmam e sintetizam o que é pormenorizado
no restante de Am 7-9.
No todo de Am 7-9, as visões funcionam como colu-
na dorsal. Representam seu lastro. É o que se pode ver ao
esquematizar o conjunto:
7,1-3 primeira visão
7,4-6 segunda visão

185
7,7-9 terceira visão
7, IO-I7 narração
8,1-3 quarta visão
8,4-14 coletânea de ditos
9,1-4 quinta visão
9,5-6 hino
9,7-10 ditos
Aí se vê que as visões fazem as vezes de fio condutor.
Narração, hino e ditos são agregados. Contudo, não são inter-
calações casuais. Afinal, somente as três últimas visões rece-
beram adendos. Diria que se trata de uma espécie de comen-
tários explicativos. A narração do conflito entre Amós e
Amasias (cf. 7, IO-I7) exemplifica o sentido da terceira visão
(cf. 7,7-9). A coletânea de ditos (cf. 8,4-14) que acompanha a
quarta visão (cf. 8,1-3) explica a razão da destruição anuncia-
da: os palácios serão destruídos (8,1-3), porque promovem a
opressão dos pobres (8,4-6). Além disso, 8,4-14 também pre-
para a quinta visão, ao prenunciar o fim do culto. E a quinta e
última visão (cf. 9,1-4) é completada pelo hino que enaltece
Javé (cf. 9,5-6). Penso que os dois ditos em 9,7-8 e 9,9-10 têm
em mente não só a última visão, mas o todo de Am 7-9.
Portanto, a disposição literária dos três capítulos não é
nada acidental. Tem suas intenções. Persegue propósitos pe-
culiares. Se, agora, não as tematizo, não é porque eu negue
sua relevância. Se as deixo fora do enfoque principal, é para
poder dar mais atenção às visões, que, afinal, perfazem o
lastramento dos capítulos. Merecem, pois, atenção especial.
De sua compreensão, em boa medida, depende o entendimento
do conjunto.

186
Além do contexto literáriomais imediato, também o todo
do livro tem sua relevância para as visões. Afinal, a primeira
frase do livro a elas se refere. O título anuncia: "Palavras que
Amós viu" (1,1). EmAm 7-9, aparecem as "palavras vistas"
por Amós. Aí o profetizador é até chamado de "vidente" (7,12).
Portanto, o título do livro já remete para as visões!
Afqra esse detalhe, há outro fator que evidencia a im-
portância das visões para o todo do livro. Nos textos que
precedemAm 7-9, Amós se autodefine como "mensagei-
ro". É o que se deduz da fórmula introdutória "assim disse
Javé" (1,3.6; 3,12; 5,16 etc.). Mensageiros costumam apre-
sentar-se dessa maneira (cf. Gn 32,3-6). Amós é mensageiro
que fala em nome de outrem. Em 3,8, somos informados de
que ele o faz sob coação: "Rugiu o leão, quem não temerá?
Falou Javé Deus, quem não profetizará?" Ora, as visões de
Am 7-9 evidenciam por que Amós tem que falar. Elucidam
por que é mensageiro. Fala porque viu! É mensageiro por-
que é visionário! Portanto, Aml-2 e 3-6 são iluminados pe-
las visões de Am 7-9.
Por fim, não se pode deixar de anotar que Am 7-9
assemelha-se a uma certa súmula do precedente. O profeta
é-nos mais bem apresentado, seja em suas experiências visio-
nárias, seja em sua confrontação com Amasias. Sua critica
social é reforçada, mediante uma parcial repetição de sua
defesa dos pobres (cf. 8,4-6, semelhante a 2,6-8). E, em es-
pecial, a mensagem profética é comprimida em tomo de duas
questões centrais: contestação do templo e do reinado. Am
7-9, de fato, condensa o livro. Em conseqüência, as visões
requerem ser lidas em seu contexto mais amplo.
É evidente que as vinculações contextuais das visões
nem de longe estão esgotadas com as anotações anteriores.
187
Todavia, como não se trata de nosso enfoque precípuo, pos-
so dar-me por satisfeito. Em todo caso, certificamo-nos de
que é muito válido observar as conexões das visões com seu
contexto literário menor (7-9) e maior (todo o livro). E, não
por último, foi-nos possível constatar que as cinco visões,
que pretendo focalizar com mais vagar, desempenham um
papel todo especial em Amós.
Passemos, pois, às visões em Am 7-9. As duas pri-
meiras são semelhantes. Podem ser agrupadas.

"Javé se arrependeu!"
As duas primeiras visões (cf. 7,1-3 e 7,4-6) estão inter-
relacionadas. Forma e conteúdo o evidenciam. Até mesmo
uma primeira leitura dos versículos permite observá-lo. Pas-
semos, pois, sem demora à tradução. (Lembro que tanto nes-
ses versículos quanto nas demais visões há problemas de
crítica textual. Pormenores podem ser verificados junto à
bibliografia mencionada no final do capítulo.)

'Assim me fez ver meu Senhor Javé:


E eis que alguém formava um bando de gafanhotos,
quando começava a crescer o cereal serôdio.
Eis que era o cereal serôdio depois da ceifa do rei.
2Quando eles pretendiam terminar de consumir a
planta da terra,
eu disse: "Meu Senhor Javé, perdoa, por favor!
Quem sustentará Jacó? Pois ele é pequeno!"

188
3Javé se arrependeu disso.
"Não acontecerá", disse Javé.
"Assim me fez ver meu Senhor Javé:
E eis que alguém (meu Senhor Javé) chamava para casti-
gar com fogo.
Quando tinha devorado o grande abismo e con-
sumira a herança,
seu disse: "Meu Senhor Javé, pára, por favor!
Quem sustentará Jacó? Pois ele é pequeno!"
6Javé se arrependeu disso.
"Também isso não acontecerá", disse meu Senhor Javé.

Em ambas as visões, as ameaças são suspensas. "Não


acontecerá!" É o veredicto final sobre gafanhotos e fogo
avassaladores. Acontece, pois, perdão. As intercessões do pro-
feta são atendidas. Na primeira visão, a intercessão está ex-
pressamente formulada corno pedido de perdão. Já na se-
gunda, assume contornos mais incisivos. Não é pedido. É
apelo. "Pára, por favor!"
Nas duas vezes, o argumento é o mesmo: "Corno sub-
sistirá Jacó? Ele é pequeno!". A pequenez de Jacó motiva a
intercessão profética. É ela também que ativa o arrependi-
mento e a compaixão divinos. A profecia evoca a pequenez.
O perdão traz-na à memória do próprio Javé. Em todo caso,
a referência à pequenez de Jacó é decisiva para que cesse a
praga de gafanhotos e o fogo devastador. E quem é o peque-
no Jacó?
A resposta, antes de mais nada, terá de ser buscada nas
próprias visões. Isso poderia não ser tão fácil. Visões jogam
com figuras. Sua linguagem não deixa de ter ares enigmáticos.
189
Não é, porém, o que sucede com as duas que estão diante de
nós. Nelas predomina o concreto. Permitem que se identifi-
que quem está sendo ameaçado e, em virtude da intercessão
profética, perdoado.
A primeira conduz-nos indubitavelmente ao mundo do
camponês. Situa-nos no âmbito de sua produção. O rei já
"ceifara" o primeiro plantio. A "ceifa do rei" é o pretenso
direito da realeza em confiscar a produção camponesa, em
situações de crise (cf. lRs 18,5), ou em tributá-la regularmen-
te (cf. lSm 8,10-17). A "ceifa do rei" absorvera a primeira
planta, a mais rentável. Resta a "Jacó", isto é, aos lavrado-
res, o "cereal serôdio", a planta do tarde, menos rentável
que a primeira. E ela passa a sofrer a ameaça de gafanhotos.
Estes põem em perigo a "planta da terra". No caso, "planta"
é o cereal e as demais vegetações do campo. E a "terra" aqui
é sinônimo de roça. Em suma, a primeira visão tem como
tema a ameaça aos resultados do trabalho dos camponeses.
Em jogo está a produção.
A praga de gafanhotos é suspensa. "Não acontecerá!".
O mesmo não sucede com a "praga" da "ceifa do rei". Isso
surpreende. Só, porém, num primeiro momento. Pois, a par-
tir da terceira visão, estará em debate a "praga do rei".
A segunda visão igualmente nos transporta ao contexto
da roça. Refere-se, porém, a uma ameaça ainda mais radical à
sobrevivência do pequeno Jacó, isto é, do campesinato. A
Amós é dado ver uma seca colossal. Secam-se as águas do
"grande abismo". Este é, na cosmovisão da época, o imenso
oceano abaixo da terra. São as águas do subsolo, na Palestina
tão decisivas para a sobrevivência no verão, nos meses de
seca. Uma vez "devorado o grande abismo", as próprias con-
dições de trabalhar e produzir estão afetadas.A "herança" passa
190
a estar em perigo. Aqui, a "herança" é a parcela de terra à
disposição de um clã agrícola (cf. Rs 21,3). É o que a primeira
visão designara de "a terra" (v. 2). É o meio de produção.
Portanto, as duas primeiras visões situam-se no am-
biente da roça. Na primeira, está em jogo a produção da gente
do campo, seu "cereal serôdio". Na segunda, seu próprio
meio de produção, sua "herança", está a perigo. As amea-
ças, advindas de um "bando de gafanhotos" e do fogo a con-
sumir o "grande abismo", são suspensas por Javé, sensível
aos apelos de seu profeta. Javé e Amós são, pois, defensores
do pequeno Jacó, que é o campesinato ameaçado pelas adver-
sidades da natureza e por "ceifas do rei". É o que também se
lê no restante da profecia de Amós. Ele é defensor de lavrado-
res e camponeses pauperizados e espoliados. A profecia de
Amós é a voz dos empobrecidos, como se vê também no
âmbito de Am 7-9, em 8,4-6 (cf. ainda 2,6-9 e 5,11-12).
Gafanhotos e secas monumentais estão aplacados. A
"ceifa do rei" continua intacta. Dela se encarregam as próxi-
mas visões.

"Jamais passarei!"
A terceira e quarta visão (7,7-9 e 8,1-3) formam outro
par, diferente em forma e conteúdo das duas primeiras. (No-
vamente há que assinalar que o texto hebraico não foi muito
bem transmitido. Ficam incógnitas. Encontram-se discutidas
na bibliografia especializada? Veja no final deste capítulo.)

2 Veja interpretações mais recentes principalmente em REIMER, Haroldo. Richtet auf


das Recht!; Studien zur Botschaft des Amos. Stuttgart, Katholisches Bibelwerk, 1992.
256 p. (Stuttgarter Bibelstudien, 149). Veja em especial pp. 160-225.

191
Assim me fez ver:
7

E eis que meu Senhor estava parado sobre um muro.


Tinha em sua mão um prumo.
SE Javé me disse: "O que tu vês, Amós?"
Eu disse: "Um prumo".
Meu Senhor disse: "Eis que eu coloquei um prumo em
meio a meu povo Israel.
Jamais passarei por ele.
"Serão destruídos os altos de Isac.
Os santuários de Israel serão devastados.
Levantar-me-ei com a espada contra a casa de
Jeroboão".

'Assim me fez ver meu Senhor Javé:


E eis um cesto de frutas de verão.
2E ele disse: "O que tu vês, Amós?"
Eu disse: "Um cesto de frutas de verão".
Disse-me Javé: "Chegou o fim para meu povo
Israel.
Jamais passarei por ele.
3Naquele dia, gemerão as cantoras do pa-
lácio, dito do Senhor Javé.
Muitos cadáveres, em toda parte, estão jo-
gados. Silêncio!".

192
"Prumo" e "cesto de frutas" a rigor não representam
ameaças. Aquilo que o profeta vê não tem um sentido fixo.
Poderia assumir múltiplos significados. É a fala de Javé que
atribui ao "prumo" e ao "cesto de frutas" uma interpretação
determinada. Explicita-os como ameaças. Não ocorre inter-
cessão nem possibilidade de suspensão do aniquilamento
anunciado. "Jamais passarei", isto é, jamais transigirei. As
ameaças são irrevogáveis.
Essas duas visões são, pois, bem diferentes das pri-
meiras. Sua intencionalidade é outra. E também se referem
a grandezas distintas. As duas primeiras diziam respeito ao
pequeno Jacó, os lavradores "ceifados" pelo rei e "devora-
dos" por pragas e secas. As duas agora em estudo ameaçam
"meu povo Israel". E quem é ele? A resposta há que ser bus-
cada, na medida do possível, nas próprias visões.
Acabamos de observar que a fala divina fixa o sentido
do "prumo" e do "cesto de frutas". Essa constatação sobre o
significado daquilo que o profeta vê não exclui que se bus-
que por sua localização social. A que contexto social perten-
cem "prumo" e "cesto de frutas"? No caso do "prumo", a
própria visão esclarece estarmos "sobre um muro". Pensaria
num "muro" de cidade. Seria o mais óbvio. Também o "ces-
to de frutas" permite alguma dedução. Poder-se-ia pensar na
festa da colheita das frutas. Nesse caso, estaríamos no âmbi-
to do sagrado, possivelmente outra vez no ambiente citadi-
no. Portanto, "prumo" e "cesto de frutas" poderiam apontar
para o mundo citadino. Isso, porém, não passa de uma possibi-
lidade, uma vez que, também no que conceme à sua identidade
social, as "coisas" vistas permanecem vagas e pouco definíveis.
Em todo caso, fica a suspeita: as visões do "prumo" e do "cesto
de frutas" teriam em mente o mundo citadino?

193
É o que se confirma com base em 7,9 e 8,3. Os dois
versículos são decisivos para a identificação do contexto
social da terceira e quarta visões.
O cenário, aludido em 8,3, é cortesão: no palácio abun-
dam os cadáveres. Prevalece o silêncio fúnebre. As "canto-
ras do palácio", que eram escravas e em tempos de "paz"
animavam as festas palacianas, agora acompanham os ri-
tuais fúnebres de seus senhores. À corte, sim a ela expressa-
mente, também se refere 7,9, ao prever a morte para a "casa
de Jeroboão", isto é, para a dinastia ora no poder. Pode-se
dizer que 8,3 (o enterro dos da corte) é a efetivação do pre-
núncio de 7,9 ("levantar-me-ei com a espada contra a casa
de Jeroboão"). Ora, o mundo palaciano é, no concreto, "meu
povo Israel". Enquanto isso as "cantoras do palácio" - que
não sucumbirão - fazem parte do pequeno Jacó. Afinal, o
campo era a origem das "cantoras"/escravas.
Em 7,9, obtemos confirmação do resultado conforme
outro ângulo. Além de ameaçar a "casa"/dinastia real, o
versículo põe em xeque os "altos de Isac" e os "santuários
de Israel". Serão destruídos e devastados. Os "santuários de
Israel" deviam ser os centros cúlticos de maior projeção no
Estado de Israel, em especial o de Betel (cf. 7,13), más tam-
bém os de Samaria (cf. Os 8,4-6) e Dã (cf. 1Rs 12,29-30).
Os "altos de Isac" são os locais de relevância menor, como
os de Guilgal e Bersabéia (cf. Am 5,4-5). Uns como os ou-
tros estavam profundamente atrelados aos interesses pala-
cianos e citadinos. "Meu povo Israel" é, pois, este conjunto
constituído por cidade, palácio e templo. Nesse caso, "povo"
é o "grupo", a "família" que se reúne em tomo do senhorio
de Israel. Nesse sentido, também temos o conceito de "povo"
em Is 7,17.

194
É o que também confirma o contexto literário. A narra-
ção de 7,10-17 é um comentário à terceira visão. De acordo
com ele, Javé 'jamais passará" por dinastia, templo, sacerdó-
cio. E a coletânea de ditos de 8,4-14 explicita o sentido da
quarta visão. De acordo com ela, a morte no palácio arrasta
consigo comerciantes (cf. 8,4-8),·ritos e lugares sagrados (cf.
8,9-14). Eles, que estão sob a mira da ameaça profética, são
"meu povo Israel". Este "meu povo Israel", do qual Javé prog-
nostica: "jamais passarei", é o "reinado pecador" (9,8). É todo
o contrário do pequeno Jacó, isto é, o campesinato "ceifado"
pela realeza e amedrontado por pragas e pelo "fogo" da seca,
e as "cantoras", camponesas escravizadas no palácio, e, en-
fim, os "pobres", tão defendidos por Amós.
Podemos encaminhar-nos para a quinta e última vi-
são. Seu assunto já aparece na terceira, quando os "altos de
Isac" e os "santuários de Israel" são mencionados.

"Batia no capitel"
A quinta visão (cf. 9,1-4) está só. Todavia, sua proxi-
midade às duas precedentes é flagrante. Encontra-se em sua
continuidade. Leva-as a seu auge. (Infelizmente o texto ori-
ginal de novo contém muitas incertezas. Delas nos fala a
bibliografia especializada, com maiores detalhes.)

'Vi meu Senhor parado sobre o altar.


Batia no capitel de sorte que estremecessem os umbrais.
E disse:
"Destroço a cabeça de todos eles,
seu resto mato à espada.

195
Não escapará deles um fugitivo sequer,
não se salvará nenhum refugiado.
2 Ainda que penetrem no mundo dos mortos,
de lá os farei descer.
3 Ainda que se escondam no cume do Carmelo,
lá os buscarei e agarrarei.
Ainda que se escondam no fundo do mar longe
dos meus olhos,
lá ordenarei à serpente para que os morda.
"Ainda que vão ao cativeirodiante de seus inimigos,
lá ordenarei à espada para que os mate.
Porei meus olhos sobre eles
para o mal, não para o bem!"

É evidente que a visão difere das anteriores. Realço duas


diferenças. Por um lado, a maior parte dos quatro versículos
insiste em afirmar a ruína total. Não há sombra de resto. Não
escapa fugitivo, nem desertor. Nem mesmo os melhores es-
conderijos dão abrigo. Tamanha obstinação em "destroçar a
cabeça de todos eles" não conhecíamos nas duas visões pre-
cedentes. Por outro lado, o profeta vê o próprio Javé: "Vi meu
Senhor". A esse ponto as visões anteriores não haviam chega-
do. Mantinham respeitosa distância. Portanto, a quinta visão
não só está um tanto à parte das outras. É também seu ápice.
Afinal, o próprio Javé é visto. E dos ameaçados nada resta.
Quem são eles? Para a compreensão dessa quinta visão e, em
conseqüência, das demais, é decisivo identificar quem e o que
está sendo "batido" e "destroçado".
196
É o templo o objeto do destroço completo. É a dedu-
ção que se impõe segundo o texto.
Javé está "parado sobre o altar". Aí certamente não se
trata do pequeno altar que, para a queima do incenso, existia
dentro da sala maior do templo (cf Is 6,6-7). Temos de pensar
antes no altar de sacrificios, construído ao ar livre em frente ao
santuário. "Sobre" esse altar encontra-se o Senhor. Aliás, não
deixa de ser um tanto estranho que Javé esteja "parado sobre"
lugar tão sagrado. Esperar-se-ia vê-lo 'junto" ao altar, ocupan-
do o lugar do sacerdote. O gesto de parar "sobre o altar" fere a
sensibilidade. É deselegante. Acontece que o altar não agrada a
Javé, "lhe aborrece" (Am 5,21-23). Portanto, não é por acaso
que o Senhor esteja parado justamente "sobre o altar".
De cima do altar Javé "batia no capitel". Aos golpes
do próprio Deus, não há construção que resista. Estreme-
cem os umbrais, como em dia de terremoto. O edificio rui
sobre "a cabeça de todos eles". E a construção é o templo.
Dele e, em especial, de seus adeptos mais achegados, da-
queles que tinham acesso ao interior do sagrado nada resta-
rá. Os que não conseguirão fugir nem se abrigar são primor-
dialmente os sacerdotes.
A radical ameaça ao templo, seus ritos e sacerdotes, a
rigor, já marca presença desde a terceira visão. Profetizava a
destruição dos "altos de Isac" e dos "santuários de Israel"
(7,9). A mesma questão está dedicada a história do conflito
entre Amós e o sacerdote Amasias (cf. 7,10-17). E na coletâ-
nea de ditos que precede à última visão, a contestação de
santuários e ritos marca presença (cf. 8,10.13-14). Em ou-
tras partes do livro, lê-se o mesmo (cf. 2,8; 4,4-5; 5,4-5.21-
27). Sim, o repúdio ao templo é um dos refrões de Amós.
Não estranha, pois, que constitua o auge do cicio das visões.

197
À nossa quinta visão segue um hino (cf. 9,5-6). É, por
assim dizer, a última estrofe de um cântico de louvor, do
qual também são parte 4,13 e 5,8-9 e que está próximo ao
próprio cabeçalho do livro: 1,2. É muito provável que essa
linguagem hínica tenha sido incluída por compiladores. Por-
tanto, até para gerações posteriores a Amós, o louvor a Javé
alcança seu sentido mais pleno logo após a ruína total e com-
pleta do templo.
Por que é dada tamanha relevância ao templo?

As visões no conflito campo versus cidade


O templo é parte de um todo maior. A ele está integra-
do. Nele cumpre seu papel. Por conseguinte, faz-se necessá-
rio identificar melhor o todo social. Faço-o na brevidade
devida, tomando nosso conjunto das cinco visões como re-
ferencial.
A visão sobre o templo encerra uma série de cinco vi-
sões. Elas subdividem-se claramente em dois tipos. Numas
as ameaças são seguidas de perdão. Noutras efetiva-se a des-
graça. Suspensão acontece nas duas primeiras. Nas três res-
tantes, prevalece destruição.
As primeiras dizem respeito ao campo. Em questão
está tanto o resultado do trabalho dos agricultores quanto a
própria condição de produzir. Emjogo está a terra (ameaçada
por seca) e a produção (ameaçada por reis e gafanhotos). O
mundo do campo é o pequeno Jacó. São as mulheres, os
homens e as crianças, organizados de maneira clânica e tribal,
nas aldeias e nos lugarejos. A esse ambiente, porque oriun-
das da roça, também pertencem as "cantoras"/escravas, ci-
tadas em 8,3.
198
As três últimas visões dizem respeito à cidade. Referem-
se a seus muros e a suas festas, a seus lugares sagrados nos altos
e a seus santuários, a suas dinastias e seus palácios, a seus tem- .
plos e sacerdotes.Tematizarna cidade e suas instituições.Den-
tre elas cabe papel preponderante ao Estado monárquico. É ele
o coordenador dos interesses citadinos. O mundo citadino é
"meu povo Israel" ou simplesmente "Israel".
A base real das cinco visões constitui, pois, o conflito
entre campo e cidade. Essa é a contradição elementar no
tributarismo, o modo de produção do mundo bíblico em ge-
ral e dos tempos de Amós (século VIII a.C.) em especial. O
campo é o local da produção. Gerador de riqueza social é o
clã agrícola. A cidade sobrevive à base e à custa do campo.
Arrecada parcelas de seus produtos e convoca sua popula-
ção para o trabalho forçado junto às construções públicas.
Para efetivar seus interesses, a cidade organiza-se na forma
de cidade-Estado ou, em conjugação com outras cidades,
arregimenta-se em um Estado territorial. Exército, templo e
burocracia são os esteios de tais cidades-Estados. Diante
destas instâncias citadino-estatais, o campesinato luta por
diminuição e extinção do tributo e pela abolição do trabalho
forçado. Tanto o êxodo (Ex 1-15) quanto a divisão reino
davídico-salomônico (cf. 1Rs 11-12) situam-se no ambien-
te da oposição frontal ao trabalho forçado.
Esse é o contexto das cinco visões. Nelas, Amós é a
voz do campo. É a utopia de quem trabalha e produz. É a
defesa de quem enfrenta gafanhotos e secas para depois ser
"ceifado" pelo rei, pelo sacerdote, pelo Estado e pelo tem-
plo. Portanto, uma leitura sociológica das visões fomece-
nos o sentido do texto em conexão com as lutas reais, trava-
das numa sociedade tributarista.
199
Com isso também está encaminhada uma explicação
para a relevância do templo, colocado tão no auge das visões.
No tributarismo, o setor citadino-senhorial ainda não
consegue alterar as condições de vida e de produção na al-
deia. Os clãs aldeãos mantêm significativa autonomia. Con-
trolam o processo produtivo. Os camponeses não são nem
servos feudais nem escravos. Não estão expropriados. Em
conseqüência, cidade e Estado têm certa dificuldade em se
apropriar dos produtos do campo ou em requisitar sua força
de trabalho. Não raro recorrem à repressão militar e à for-
ça bruta para "convencer" lavradores ao pagamento dos tri-
butos. É o que se pode ver em Am 2,7; Mq 3,1-4; Ex 1-2,
por exemplo. Por mais eficiente que seja o uso do exército
na arrecadação do tributo, não é apropriado, a longo prazo.
Há outro instrumento bem mais eficaz. Trata-se do templo,
sua religiosidade e seus ritos. No tributarismo, o templo é
central de arrecadação de excedentes. Aí se junta, por oca-
sião das grandes festas da colheita e mediante a multi-
plicidade de ritos, a riqueza social camponesa. Justamente
por isso, há estreita vinculação entre o santuário e o Estado.
Pode-se constatá-lo tanto no conflito entre Amós e Amasias
(cf. Am 7,7-10) quanto na condenação de Jesus (cf. Mc 14-15).
Por desempenhar um papel tão decisivo no tributarismo, o
campesinato continuamente contestou o templo. A defesa
do campo e oposição ao templo citadino são, na verdade, os
dois lados da mesma moeda. E assim se explica por que as
visões de Amós - em defesa do pequeno Jacó e em contes-
tação ao Estado de Israel - culminam na ruína do templo,
destroçado pelo próprio Javé. Nosso visionário encontra-se
situado nas contingências históricas do tributarismo e anali-
sa-as' em sua palavra profética, segundo a opressão e a utopia
do campesinato tributado, "ceifado", escravizado, espoliado.

200
As visões não o deslocam para fora de seu contexto social.
Lançam-no para dentro do âmago do conflito. Desvendam a
contradição. Desvelam a crise. Não é, pois, nenhum acaso
que o texto do desacerto entre o profeta do pequeno Jacó e o
sacerdote do santuário do rei comente uma das visões. Nem
há que estranhar que outra seja explicitada por uma denún-
cia como a seguinte: "Ouvi isto, vós que pisoteais o pobre e
que eliminais os oprimidos do campo" (8,4).

A caminho da pastoral
Não estou dando por concluída a interpretação do ci-
clo das visões em Amós 7-9. Muitos detalhes careceriam de
atenção. Afora isso, permanece o problema da transmissão
do texto hebraico, com seus impasses e possíveis enganos.
Igualmente a teologia desses capítulos mereceria ser avalia-
da em detalhes. Por certo, permanecem tais tarefas. Ainda
assim penso que esbocei uma resposta à tarefa a que me
propus: situar as visões em seu contexto social. Por isso,
julgaria ser adequado que, por ora, nos encaminhássemos
para uma conclusão.
Comecei com a pastoral. Foi meu referencial no de-
correr da reflexão sobre Am 7-9. Retomo, pois, à pastoral.
Que serviço prestaria este estudo às comunidades cristãs que,
em meio aos pobres, dão novo rosto a todas as Igrejas?
Proponho iniciar pela constatação da distância. Este
ensaio não é e nem quis ser um texto para ser lido no encon-
tro do círculo bíblico, aí na periferia da cidade ou entre os
sem-terra. Ele não se presta para tal aplicação imediata. Afi-
nal, pressuponho que o leitor e a leitora tenham sensibilidade
para questões literárias. Provavelmente, só quem está habi-

201
tuado à leitura alcançará avaliar a relação entre as três últi-
mas visões e seus comentários anexos. Além disso, conto
com leitores que estejam treinados na percepção da diferen-
ça entre o tributarismo e o capitalismo. Estou insistindo em
que não se apliquem, de maneira deveras direta, à nossa situa-
ção textos formulados em ambiente histórico-social muito
diferente. Portanto, este ensaio não é uma reportagem da reu-
nião comunitária. Nela, porém, brotou e para lá remete.
A solidariedade com os empobrecidos é, pois, a ma-
triz dessa nossa releitura das visões. Não me parece ser ne-
cessário explicitá-lo. Afinal, é o que transpira a cada passo.
As "cantoras"/escravas, o pequeno Jacó, o profeta dos po-
bres são, flagrantemente, a chave hermenêutica deste comen-
tário a Am 7-9.
Contudo, não me parece que, na releitura bíblica, fos-
se suficiente ser solidário com as mulheres e os homens
pauperizados. Igualmente decisivo é o jeito de ler. Só a in-
tenção e o propósito podem evidenciar-se como incomple-
tos. O método de leitura da Bíblia necessita estar achegado
ao método de leitura e de transformação das condições às
quais os pobres estão sendo sujeitados. Os pobres cada vez
mais se entendem como empobrecidos e, em suas organiza-
ções, mostram que somente a derrocada das causas de sua
pauperização diária será capaz de transformar sua situação.
A leitura da Bíblia não poderá estar descolada da prática dos
oprimidos. Precisa ser inserida no método dos pobres. Jus-
tamente por isso insisti em situar as visões de Amós na prá-
tica e na utopia do pequeno Jacó. Portanto, o jeito de ler a
realidade e de transformá-la e o jeito de interpretar a Escri-
tura Sagrada convergem. "A religião pura e sem mácula, para
com nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas

202
nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se incontaminado
do mundo" (Tg l,27).
Nem a solidariedade mais bem-intencionada nem o mé-
todo mais burilado bastam por si só. Afirmar sua suficiência
tangeria a arrogância. E, em última instância, solidariedade e
método não são o que sustentam e nutrem as comunidades
das mulheres e dos homens oprimidos. O que as impulsiona
a resistir com tenacidade e a avançar com sabedoria é a ex-
periência de Deus. Nessa mística reside o segredo da insub-
missão e insubordinação dos fracos. É o que a olhos vistos
sucede em nossos dias. A tarefa primordial da releitura bí-
blica está conectada a essa experiência com Deus. Textos
como Am 7-9 ajudam a amadurecer o conhecimento do Javé
que está com o pequeno Jacó, "ceifado" por reis e em difi-
culdade com as adversidades da natureza. Javé, ele mesmo
como criador e libertador, é solidário com as "cantoras"/es-
cravas, as viúvas, os órfãos, os pequenos. Não há nada mais
decisivo que esse testemunho a respeito do Deus que vê e
ouve o clamor do seu povo pisoteado.

203
Indicações bibliográficas

Evitei notas bibliográficas. Julgo necessário indicar,


ao final, algumas das obras que foram companheiras de jor-
nada. Há valiosa bibliografia sobre Amós. Cito alguns dos
estudos mais recentes. Neles está considerada e valorizada a
literatura mais antiga. Dentre os comentários exegéticos, o
mais exaustivo e valioso continua a ser o de WOLFF, Hans
Walter. Dodekapropheton 2; Joel und Amos. Neukirchen,
Neukrichener, 1969 (Biblischer Kommentar Altes Testament,
14/2). Há tradução para o inglês: Joel andAmos. Hermeneia,
Philade1phia, 1977. Em espanhol está acessível uma síntese
desse comentário sob o título: La hora deAmós. Salamanca,
Sígueme, 1984 (Nueva Alianza, 92). Importante também é
o comentário de RUDoLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-
Jona. Gütersloh, Gütersloher, 1971 (Kommentar zum Alten
Testament, 13/2). Informações exegéticas e históricas po-
dem ser obtidas junto a diversos outros estudos. Relaciono
alguns: TOURN, Georgio. Amós; profeta de la justicia. Buenos
Aires, 1978; KIRST, Nelson. Amós; textos selecionados. São
Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1981 (Exegese, 1/1-2);
MOTYER, 1. A. O dia do leão; a mensagem de Amós. São
Paulo, 1984. Existem publicações especializadas nas visões
de Am 7-9: BARTCZEK, Günter, Prophetie und Vermittlung;
Zur literarischen Analyse und theologischen Interpretation
der Visionsberichte des Amos. Frankfurt, Peter Lang, 1980
(Europâische Hochschulschriften, 23/120,). Para a análise
205
literária recorri a ANDrNACH, Pablo Ruben. Amós - Memoria
y hermenéutica, análisis estructural y hermenéutica. Revista
Bíblica, ano 45, Buenos Aires, 1983, pp. 209-301. Introdu-
çõesao tributarismo encontram-se, por exemplo,em: HOUTART,
François. Religião e modos de produção pré-capitalistas.
São Paulo, Paulus, 1982 (Pesquisa & Projeto, 1); GEBRAN,
Philomena, org. Conceito de modo de produção. Rio de Ja-
neiro, Paz e terra, 1978 (Pensamento Crítico, 24).

206
Sumário

APRESENTAÇÃO 9

1. "Nos DIAS DE JEROBOÃO" 11


Por que começamos pelo contexto? 12
Época de Jeroboão II 14
As dores que vêm do senhorio 17
A realidade do povo 22
Retrospectiva 28

2. "O SENHOR JAVÉ ME FEZ VER" 31


As visões 33
"Rugiu o leão - Javé me agarrou" 40
"Assim disse Javé" 44
Amós - Um trabalhador 49
Retrospectiva 53

3. "ELIMINAREI O REINO DE SOBRE A FACE DA TERRA" 57


Os ameaçados - Uma listagem 59
Exército, cidade e templo 62
Os governantes e o Estado monárquico 73
Esperança para os ameaçados? 77
Retrospectiva 79

4. "VEDE QUÃO GRANDE TERROR" 83


"Total terror!" 85
Quem são os pobres? 90
Lavradores organizados 96
Esperança para os empobrecidos? 105
Retrospectiva 108

5. "NÃo FIZ SUBIR os FILISTEUS DE CÁFTOR?" 113


Profecia - Ponte entre Javé e seu povo 114
Sentido teológico de ameaça e denúncia 122
O êxodo 127
Javé, Deus dos povos 130
Retrospectiva 135

6. "PALAVRAS DE AMÓS" 137


O livro 139
Camadas literárias ; 141
Coleções de ditos 144
Ditos proféticos 150
Retrospectiva 159

7. ACRÉSCIMOS 161
Profecia e organização - Anotações à luz
de um texto -Am 2,6-16 161

JACÓ É PEQUENO - VISÕES EM AMÓS 7-9 183


A Escritura - Memória dos pobres 183
O contexto literário das visões 185
"Javé se arrependeu!" 188
"Jamais passarei!" 191
"B atia
. no caprte
. 1" . 195
As visões no conflito campo versus cidade 198
A caminho da pastoral 201

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 205

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