LENDO AS CARTAS
AS CARTAS NO MUNDO ANTIGO
Quando o leitor moderno tem o seu primei-
ro contato com o NT ele pode achar estra-
nho que 21 de seus 27 livros sejam cartas,
ou algo muito parecido com cartas, e que
elas perfazem 35% do texto. Por que foi
usada essa forma específica?
Ao menos quatro fatores precisam ser
levados em consideração. Primeiro, às
vezes esquecemos o quanto estamos sa-
turados da grande riqueza de opções que
temos hoje no campo das comunicações,
e que quase nada disso estava disponível
à igrej a do século I. As cartas (como vere-
mos) eram um meio consagrado de comu-
nicação tanto particular quanto pública;
não havia muitos outros meios. Havia o
equivalente antigo aos arautos públicos,
algumas publicações em livros (mas não
impressos), apresentações teatrais, mui-
tos discursos - mas em sua maioria não
eram opções realísticas para o tipo de
mensagens que os primeiros líderes cris-
tãos precisavam enviar.
Segundo, o crescimento rápido da igre-
ja cristã nas primeiras décadas de vida
exigia um meio flexível, barato e ágil de
manter contato com crentes espalhados
pelo império. É difícil imaginar uma opção
melhor entre as disponíveis na época.
Terceiro, à medida que a igreja cris-
tã crescia, ela enfrentava mais questões
dificeis do que estava preparada para en-
frentar. Algumas delas resultaram do seu
próprio surgimento a partir da religião da
antiga aliança; algumas se originaram do
seu confronto com o paganismo do mundo
greco-romano. O crescimento rápido e a
geografia extensa eram assim combinados
a um programa de trabalho em constante
mudança. Na providência de Deus, esses
temas diversos se tomaram o meio pelo
qual a primeira geração de crentes, dirigi-
da pelo Espírito Santo, aprendeu a expres-
sar e defender a fé com manifestações da
verdade extraordinariamente valiosas. As
pressões eram com frequência tratadas de
forma muito adequada por meio de cartas;
não é de admirar que tais cartas se tomas-
sem, sob a condução de Deus, os docu-
mentos fundamentais da igreja.
Finalmente, as cartas eram um meio
de "marcar presença" estabelecido e acei-
to no mundo antigo. Nós talvez também
chamaríamos isso de um meio de "manter
contato", de "manter os relacionamentos
de amizade", e em algumas organizações
de "preservar linhas de autoridade". Para
atingir tais alvos no mundo ocidental mo-
derno, recorremos principalmente ao tele-
fone e à internet. No Império Romano os
mesmos alvos eram atingidos por meio de
cartas, sem dúvida estimadas ainda mais
pelos atrasos que com frequência separa-
vam uma missiva da seguinte. Certamente
há evidências de que em inúmeras ocasiões
os autores do NT queriam marcar presença
por diversas razões (e.g., lCoríntios 5.3-
5; Gl 4.19,20; lTs 5.27), embora nada
pudesse transpor completamente o abis-
mo na comunicação criado pela distância
(1Ts 2.17-3.8; 210 12).
Tipos de cartas
Há aproximadamente trezentos anos se
argumentava que as antigas cartas greco-
romanas podiam ser classificadas em dois
tipos: (1) epístolas, i.e., produções literá-
rias que de maneira um tanto superficial
adotavam a forma de cartas mas eram des-
tinadas à publicação universal e a um am-
COMENTÁRIO BíBLICO VIDA NOVA
plo círculo de leitores; e (2) cartas, escritos
ocasionais (i.e. cartas ocasionadas por cir-
cunstâncias concretas) destinadas à leitura
de um indivíduo ou de um grupo definido.
As cartas de Paulo, segundo se argumen-
tava, pertencem todas à segunda catego-
ria. Mas essa divisão elementar está agora
descartada universalmente. Ela é simples
demais; muitos outros tipos de cartas fo-
ram classificados. Também é rígida de-
mais, pois há evidências suficientes de que
ao menos algumas das cartas endereçadas
a situações concretas eram, ainda assim,
tratadas como tendo escopo e significado
normativos que iam além dos primeiros re-
ceptores (e.g., CI4.6). Além disso, a mera
diversidade das cartas do NT (compare-se,
e.g., Filemom e 3João a Romanos) requer
categorias mais apropriadas.
Um grupo de estudiosos classificou as
cartas antigas em dez categorias (embo-
ra haja alguma sobreposição entre elas).
O que está claro é que cartas antigas iam
desde comunicados particulares e pessoais
(como uma carta pedindo dinheiro à famí-
lia) até tratados formais que eram dirigidos
a uma circulação mais ampla. Entre es-
ses extremos havia cartas públicas breves
(algo parecido a uma "carta ao editor").
As cartas do NT cobrem grande parte dessa
classificação, mas não toda ela. Romanos
e Hebreus, por exemplo, estão mais próxi-
mas da ponta dos tratados nesse espectro,
mas mesmo assim continuam sendo cartas
ocasionais (v. Rm 15.17-22; Hb 10.32-39;
13.22-24). Filemom, Tito e 3João estão
mais próximas da outra ponta, mas a sua
inclusão no cânon mostra que elas foram
reconhecidas como tendo autoridade e re-
levância mais amplas do que seria de es-
perar da imposição das necessidades dos
primeiros leitores.
o conteúdo de uma carta
A maioria das cartas do mundo antigo era
constituída de três partes: uma introdução
que continha a indicação do receptor e sau-
dação, o corpo da carta e a conclusão. A
1668
introdução geralmente era breve: "X para
Y, saudações [charein]". No NT essa forma
simples é preservada numa carta enviada
pelo concílio apostólico (At 15.23), na car-
ta de Cláudio Lísias (At 23.26) e em Tiago
(1.1). Duas cartas do NT (Hebreus e lJoão)
não trazem tal tipo de introdução, suscitan-
do dúvidas quanto ao seu gênero (v. adian-
te); mas a maioria expande essa introdução,
às vezes até tomando-a um tanto longa
(e.g., Rm 1.1-7), e alteram o tradicional
charein ("saudações") para charis ("gra-
ça"), sem dúvida em virtude da influência
cristã sobre a experiência da graça de Deus
mediante o evangelho (assim todas as car-
tas de Paulo, 1 e 2Pedro e 2João).
Algumas cartas antigas incluíam um
voto de saúde ou alguma bênção. Nesse
aspecto as cartas do NT apresentam uma di-
versidade considerável. O que chega mais
perto de um voto de saúde está em 3João 2,
em que notavelmente é a saúde espiritual
de Gaio que estabelece o padrão para o
seu bem-estar geral. Os autores das cartas
do NT comumente iniciam com gratidão a
Deus (todas as cartas de Paulo o fazem, ex-
ceto Gálatas, 2Coríntios, 1Timóteo e Tito);
algumas começam com um cântico de
louvor (2Coríntios, Efésios e 1Pedro). As
cartas antigas costumavam terminar com
saudações de diversos tipos; os autores do
NT seguem o mesmo padrão, com frequên-
cia acrescentando uma doxologia ou bên-
ção. Romanos é notável pelo espaço que
dedica a um esboço dos planos de viagem
de Paulo (15.22-29), um pedido de oração
(15.30-32) e um desejo de oração (como
são chamadas as orações na terceira pes-
soa; 15.33), uma lista longa de recomen-
dações e saudações (16.1-16) e saudações
finais de colaboradores e a graça e bênção
finais (16.20-27). Embora alguns tratem o
cp. 16 como um acréscimo editorial pos-
terior, a razão de Paulo dedicar espaço tão
considerável a essa conclusão provavel-
mente se deva ao fato de que ele não tinha
envolvimento anterior com a igreja como
um todo, e assim ele estava interessado em
 1669
estabelecer o melhor relacionamento possí-
vel com eles, com vistas à sua estadia pla-
nejada entre eles a caminho da Espanha.
No corpo das cartas, a forma das car-
tas do período final da Antiguidade diferia
grandemente uma para outra. Alguns es-
tudiosos modernos têm tentado identificar
formas e sequências típicas, transições tí-
picas da introdução para o corpo da carta,
e assim por diante. Até aqui esses esfor-
ços ainda não obtiveram amplo consenso.
Parece melhor simplesmente respeitar a
diversidade, reconhecendo que os autores
cristãos podiam ser tão criativos quanto os
outros (as cartas de Paulo são particular-
mente criativas e ecléticas) e que algumas
peculiaridades provavelmente devam algo
à herança da influência judaica que caracte-
rizava a igreja primitiva.
Algumas considerações
especiais
Quatro observações adicionais de natureza
geral são necessárias. Primeira, as cartas
do NT tendem a ser um pouco mais exten-
sas do que as suas correlatas seculares. As
cartas de Sêneca e Cícero frequentemente
são comparadas às de Paulo. As 124 car-
tas de Sêneca variam em extensão de 149
a 4.134 palavras; as 776 cartas de Cícero
têm entre 22 e 2.530 palavras. As cartas de
Paulo têm em média 1.300 palavras, mas
Romanos tem 7.114.
Segunda, evidências independentesates-
tam o quanto era comum a prática de os
autores lançarem mão da ajuda de "ama-
nuenses", escribas treinados que cum-
priam a função de escrever o que os autores
ditavam. Sem dúvida, havia muitos ama-
nuenses escravos, empregados para aju-
dar senhores praticamente iletrados nos
seus negócios e correspondência; outros
trabalhavam como agentes livres em tro-
ca de honorários. Romanos 16.22 mostra
Tércio como um amanuense que escre-
veu o que Paulo lhe ditou nessa carta.
Era prática comum que os que ditavam
o conteúdo atestassem a autenticidade do
LENDO AS CARTAS .ri••
111
produto final com o acréscimo de sauda-
ções finais de próprio punho; essa cer-
tamente era a prática de Paulo (Gl 6.11;
2Ts 3.17). A inferência é que ele ditava
todas as suas cartas, e talvez os outros au-
tores do NT tenham feito o mesmo.
A pergunta difícil de responder é quanta
liberdade tinham esses amanuenses. A evi-
dência não está clara, e por isso é bastante
debatida. Que havia alguma liberdade é su-
gerido até pelo fato de Tércio se identificar
em Romanos. O grau de liberdade prova-
velmente dependia do relacionamento en-
tre o amanuense e o que ditava o conteúdo,
a habilidade relativa das duas pessoas, a
natureza da correspondência e assim por
diante - de forma parecida a como o grau
de independência concedida a um secretá-
rio hoje depende de variáveis semelhantes.
No entanto, uma vez que o autor tivesse
lido e assinado o produto final, o docu-
mento era responsabilidade do autor, não
simplesmente do amanuense. Ainda assim,
pode ser que algumas diferenças de formu-
lação entre, digamos, as Cartas Pastorais
e o restante do corpus paulino girem em
tomo da probabilidade de que Lucas foi o
amanuense daquelas (v. 2Timóteo 4.11),
uma vez que elas contêm uma quantidade
substancial de nuanças mais típicas dos es-
critos próprios de Lucas.
Terceira, com frequência se afirma que
a composição de cartas pseudônimas (i.e.,
cartas supostamente escritas por um autor
muito conhecido mas na verdade escritas
por outra pessoa) era uma prática comum
nos primeiros dois séculos dessa era, de
modo que os autores do NT não teriam vis-
to nada de errado nisso, e que evidências
literárias exigem a conclusão de que algu-
mas cartas do NT são pseudônimas. (A lista
difere de comentarista para comentarista,
mas as Pastorais e 2Pedro são as mais comu-
mente consideradas pseudônimas, seguidas
de Colossenses, Efésios e 2Tessalonicenses,
e, menos frequentemente, de várias outras).
Mas conquanto a pseudonímia não fosse in-
comum no mundo antigo - especialmente
COMENTÁRIO BíBLICOVIDA NOVA
em livros apocalípticos - , era rara, e talvez
totalmente inexistente no âmbito das car-
tas. Não temos um único exemplo seguro
de carta pseudônima que tenha chegado até
nós dos primeiros dois séculos. Os exem-
plos que são citados não são convincentes.
Do lado judaico, A epístola de Jeremias é
uma homilia e não uma carta, e A carta de
Aristeias é uma narrativa apologética (am-
bos os exemplos também são anteriores à
era cristã). Problemas semelhantes estão
associados aos exemplos cristãos posterio-
res (e.g., as cartas de Cristo e Abgarus, uma
carta de Lentulus, a suposta correspondên-
cia entre Paulo e Sêneca), Não temos um
único exemplo convincente do mundo pa-
gão greco-romano. Certamente tão logo a
igreja começou a analisar essas questões,
qualquer suspeitas de que um documen-
to fosse pseudônimo significava que não
poderia ser considerado como tendo auto-
ridade canônica. E de todo modo, muitos
estudiosos têm sido convencidos de que as
razões tradicionais para se rotular algumas
cartas do NT como pseudônimas não são
muito atraentes. Essas questões são trata-
das brevemente nas introduções dos livros
relevantes para a hipótese.
Finalmente, e completando, deve-se
mencionar o meio de transporte dessas
cartas. Mesmo o governo imperial tendo o
seu próprio sistema postal, este não podia
ser usado pelo público em geral. As cartas
eram por isso levadas por amigos, conhe-
cidos, escravos, empregados, soldados,
pessoas de negócios, viajantes - todo
aquele que se dispusesse e estivesse indo
na direção desejada.
AS CARTAS DE PAULO
Se pressupomos que as 13 cartas canônicas
que levam o seu nome são obra de Paulo,
precisamos mesmo assim perguntar como
elas foram coletadas e quais princípios re-
geram sua inclusão no NT como nós o co-
nhecemos hoje.
1670
Como as cartas de Paulo
foram coletadas
As cartas de Paulo foram escritas durante
um período de aproximadamente quinze
anos (depois de ele mesmo já ser cristão
por aproximadamente quinze anos), e en-
viadas a igrejas e indivíduos muito distan-
tes uns dos outros. Como então essas 13
cartas foram ajuntadas? A resposta breve é
que não sabemos; a evidência é escassa de-
mais para termos certeza. Em alguns casos,
o próprio Paulo ordenou que a circulação
fosse limitada (Cl 4.16). Bons argumentos
foram propostos em apoio à teoria de que
Efésios foi escrito primeiramente como
uma carta circular geral para os crentes em
Éfeso e vilas e cidades vizinhas, uma carta
geral abrangendo cartas mais específicas
como Colossenses e Filemom (e talvez
Filipenses).
A primeira lista concreta que chegou
até nós é a lista de dez cartas paulinas
(excluindo as Pastorais) compilada por
Marcião (líder de uma comunidade cristã
heterodoxa em tomo de 140 d.C.). Alguns
estudiosos argumentam que essa foi a pri-
meira vez que uma lista dessas foi com-
pilada. Mas isso é altamente improvável.
Apenas uma pequena fração do material
escrito no final da Antiguidade chegou
até nós, e a lista de Marcião é importan-
te principalmente como evidência de que
listas mais amplas e mais ortodoxas prova-
velmente já estavam circulando. A prática
desses líderes pseudocristãos era adaptar a
literatura cristã às suas próprias necessida-
des. Marcião excluiu todo o AT e a maior
parte do NT; mesmo dos Evangelhos ele só
preservou uma edição mutilada de Lucas.
Outros têm argumentado que as cartas
de Paulo foram reunidas pela primeira vez
no início da década de 90, cinquenta anos
antes de Marcião. Algum discípulo zeloso
de Paulo, entusiasmado pela publicação de
Atos (pouco antes do ano 90, segundo essa
teoria), reuniu as cartas de Paulo existen-
tes. Mas é muito mais provável que Atos
tenha sido publicado muito antes disso, em
 1671
tomo de 64, e é dificil ver por que a com-
pilação de ao menos alguns dos escritos de
Paulo teria de esperar tanto tempo. Há boas
evidências de que diversas das cartas de
Paulo são citadas pelos primeiros pais da
igreja (especialmente Clemente de Roma;
c. 96). Mais importante, 2Pedro 3.16 se re-
fere à maneira como Paulo escreve "em to-
das as suas epístolas", uma expressão que,
embora não abarque necessariamente com
precisão as 13 cartas canônicas que che-
garam até nós, certamente pressupõe que
há conhecimento comum de um corpus da
correspondência de Paulo em circulação.
Embora a maioria dos comentaristas atuais
favoreça uma data tardia para 2Pedro, há
razões substanciais para fundamentar uma
publicação já em 64 ou 65.
Embora não possa ser provada, outra
teoria talvez seja mais plausível do que
as suas principais concorrentes. Pequenos
grupos de cartas paulinas circulavam re-
gionalmente já durante a vida de Paulo, em
parte seguindo o pedido dele mesmo com
relação a isso (CI 4.16). Então, depois do
martírio dele (c. 65), um ou mais dos seus
colaboradores mais próximos (Timóteo?)
se empenharam em preservar o que fosse
possível da correspondência em circulação
do seu mestre. Nada disso pode ser provado
de forma irrefutáve1. Não obstante, alguma
teoria dessa natureza parece se adequar
melhor aos fatos que chegaram até nós.
A ordem dessas cartas
A organização do corpus paulino em nosso
Novo Testamento requer alguma explica-
ção. A ordem não segue nem a cronologia
(data de publicação? época de compo-
sição?) nem os temas. Está baseada em
dois princípios simples: as cartas às igre-
jas (Romanos a 2Tessalonicenses) são
agrupadas antes das cartas aos indivíduos
(1 Timóteo a Filemom), e em cada grupo
as cartas mais longas são colocadas antes
das cartas mais curtas. A única exceção
é Efésios que, segundo esses princípios,
deveria estar antes de Gálatas. Uma con-
LENDO AS CARTAS - : :
jectura sobre a razão disso seria que as
pessoas que ordenaram as cartas de Paulo
dessa forma tinham em mãos uma cópia de
Efésios escrita de forma mais condensada,
e por isso equivocadamente pensaram ser
Efésios mais curta que Gálatas e mais lon-
ga que Filipenses.
As cartas com frequência são classi-
ficadas, de forma mais temática, em qua-
tro grupos. No primeiro temos Romanos,
1 e 2Coríntios e Gálatas, descritas às ve-
zes como as grandes cartas evangélicas.
As primeiras três foram escritas durante
a terceira viagem missionária de Paulo.
Embora muitos atribuam Gálatas ao mes-
mo período, pode-se defender de forma
razoavelmente convincente a teoria de que
Gálatas foi, dentre as cartas de Paulo que
sobreviveram, a primeira a ser escrita. Em
conteúdo, Romanos e Gálatas são bastante
próximas, embora Gálatas tenha sido cla-
ramente escrita para advertir as igrejas da
Galácia contra os que estavam exaltando
o judaísmo dentro da comunidade cristã
(gentílica), ao passo que Romanos não pa-
rece ter um propósito tão específico.
O segundo grupo é com frequência
chamado de "cartas da prisão", visto que
em cada uma delas Paulo fala de si mes-
mo como prisioneiro. São elas: Efésios,
Filipenses, Colossenses e Filemom. Talvez
as quatro tenham sido escritas enquan-
to Paulo estava na prisão em Roma, em-
bora alguns estudiosos argumentem que
Filipenses e talvez outras dessas quatro te-
nham sido enviadas de Éfeso ou Cesareia.
O terceiro grupo inclui 1 e 2Tessalo-
nicenses. Muitos argumentam que dentre
as cartas que temos de Paulo essas foram
as duas primeiras que ele escreveu. Mesmo
que Paulo tenha escrito Gálatas antes dis-
so, essas duas, escritas em Corinto durante
a sua segunda viagem missionária, reve-
lam uma sensibilidade pastoral e uma pers-
pectiva "dos últimos dias" que reaparecem
em muitas de suas outras cartas. Embora
seja comum Paulo associar um ou dois co-
legas ao seu nome nas primeiras linhas das
COMENTÁRIO BíBLICOVIDA NOVA
suas cartas, estes dois são explicitamente li-
gados a Paulo, Silas e Timóteo, e então, de
forma muito incomum, são escritas quase
inteiramente na primeira pessoa do plural.
O quarto grupo, as Cartas Pastorais,
incluem I e 2Timóteo e Tito. Essas são
as cartas que com maior frequência são
consideradas pseudônimas. Se, no entan-
to, de fato as atribuímos a Paulo, precisa-
mos concluir que Paulo havia sido liberto
da prisão em Roma, pois em 1Timóteo e
Tito Paulo já não está em cadeias. Quando
escreve 2Timóteo, no entanto, Paulo está
preso novamente, e dessa vez é eviden-
te que ele não espera sobreviver. Embora
as peculiaridades linguísticas e temáti-
cas desse grupo tenham sido às vezes
exageradas, elas são substanciais e pro-
vavelmente resultaram de uma mistura
de fatores. Essas cartas são dirigidas a
indivíduos, no final da vida do apóstolo,
tratando em parte dos princípios da lide-
rança cristã e possivelmente ditadas a um
colega de confiança (Lucas?) que serviu
como amanuense com liberdade relativa-
mente maior do que a comum.
AS CARTAS
NÃO PAULINAS
Essas cartas são extremamente diversas
em autoria e natureza. A carta aos Hebreus
é formalmente anônima, e não há consenso
quanto a quem foi o seu autor. Duas cartas
se apresentam como tendo sido escritas por
Pedro, e uma como sendo de Tiago e uma
de Judas (que é considerado por muitos o
meio-irmão de Jesus). As três restantes são
formalmente anônimas, embora duas delas
se apresentem como obra "do presbítero".
Há boas razões para se crer que o autor das
três tenha sido o apóstolo João. Duas des-
sas sete cartas estão entre as mais breves
do NT (2 e 3João); uma está entre as mais
extensas (Hebreus).
Hebreus e lJoão são semelhantes em
um aspecto interessante. Ambas começam
1672
sem saudação alguma (diferentemente de
todas as outras cartas do NT). Isso levou
alguns estudiosos a sugerir que esses escri-
tos não são cartas, mas brochuras ou livros
breves, homilias ou ensaios. Mas Hebreus
ao menos termina como uma carta, e am-
bas contêm observações pessoais suficien-
tes, sem falar das referências a detalhes
específicos da experiência dos leitores,
que nos levam à conclusão de que os seus
respectivos autores tinham em mente leito-
res específicos (e.g., Hb 5.12; 6.10; 10.32;
lJo 2.19). Além disso, em Hebreus, a pro-
fusão de expressões usadas normalmente
no discurso falado sugere que a carta co-
meçou como uma série de homilias que
foram reduzidas a essa forma. É possível
que lJoão tenha servido como carta pasto-
ral geral que circulou entre várias igrejas, e
algumas igrejas também tenham recebido
as suas missivas específicas e mais breves
(2 e 3João?).
Diversas dessas cartas têm caracterís-
ticas que requerem comentário extenso,
mesmo que possam ser apenas citadas
aqui. Judas e 2Pedro compartilham algu-
ma relação de dependência literária (como
ocorre também, digamos, entre Marcos e
Mateus). É possível que Tiago tenha sido o
primeiro livro do NT a ser escrito. A segun-
da carta de João é singular quanto ao seu
receptor: ela é dirigida "à senhora eleita e
aos seus filhos", muito provavelmente uma
igreja irmã e os seus membros (embora se
esteja longe do consenso quanto à razão de
João ter escolhido essas palavras). A ter-
ceira carta de João é notável por refletir
francamente a "disputa de poder" dentro
da igreja primitiva, o que lembra um pouco
2Coríntios 10-13.
INTERPRETANDO
AS CARTAS
OS princípios gerais de interpretação resu-
midos anteriormente (v. "Como interpre-
tar a Bíblia" no capítulo Como abordar a
 1673
Bíblia) evidentemente precisam ser levados
em consideração aqui, mas além deles há
algumas diretrizes que são particularmente
importantes para a leitura das cartas.
1. Visto que a maioria das cartas man-
tém certo grau de fluxo linear de pensa-
mento, precisamos fazer o melhor para
detectar e seguir esse fluxo. Ao mesmo
tempo, é preciso fazer concessões para di-
versas variações importantes.
Primeira, às vezes o autor está respon-
dendo às necessidades das pessoas a quem
está escrevendo. Isso é particularmente
verdade em 1Coríntios. Embora os cp.
1---4 tratem do problema do partidarismo
na igreja de Corinto, nos capítulos restan-
tes Paulo lida, item por item, com questões
sugeridas por relatos orais que chegaram a
ele (cp. 5-6), e então itens suscitados por
uma carta dos coríntios (a partir do cp. 7).
Segunda, o movimento do pensamen-
to é tudo menos claro e direto em diversas
cartas. Tiago é notoriamente difícil de es-
boçar, e lJoão ainda mais. Alguns estudio-
sos têm argumentado que em lJoão há um
"estilo rondó", com diversos pontos princi-
pais sendo tratados repetidamente. Mesmo
que seja o caso, não é uma questão de mera
repetição; cada ciclo introduz material e
percepções novos. De todo modo, o de-
senvolvimento do argumento não é linear
(como o é, relativamente, em boa parte de
Romanos e 2Coríntios); tampouco é uma
colcha de retalhos, como algumas listas de
Provérbios. A linha de pensamento precisa
ser desemaranhada, mas com frequência
volta-se sobre si mesma novamente e foca
em terreno já tratado, mas de uma perspec-
tiva levemente diferente.
2. As primeiras cartas foram os pri-
meiros documentos canônicos a ser pro-
duzidos depois da morte e ressurreição
do Senhor Jesus Cristo; as últimas dentre
elas foram os últimos documentos canôni-
cos escritos. Mas embora cubram um pe-
ríodo aproximadamente contemporâneo
ao da composição dos Evangelhos, es-
tes, ao contrário das cartas, tinham como
LENDO AS CARTAS
propósito apresentar a Jesus nos dias da
sua vida na terra. Independentemente do
quanto possamos saber pelos Evangelhos
acerca do estado da igreja quando eles
foram escritos, o que juntamos nunca
passam de inferências. Em contraste com
isso, as cartas nos oferecem percepções
relativamente diretas acerca da natureza
da igreja primitiva.
Assim as cartas nos fornecem a cul-
minação doutrinária, ética e espiritual
(este lado da segunda vinda) do desenro-
lar da história da salvação na Bíblia. Que
o quadro é rico e multifacetado não deve
ser negado. Que não temos todas as peças
do quebra-cabeça é evidente. Mas as pe-
ças que temos combinam e reúnem muitos
dos temas das Escrituras e estabelecem as
formas em que vertentes aparentemente
divergentes são reunidas na revelação de
Deus, nestes últimos dias, no seu Filho. É
difícil imaginar como ficaríamos empobre-
cidos se o NT não incluísse, por exemplo,
Hebreus, com sua visão abrangente da ma-
neira como o sistema levítico e a aliança
a ele relacionada apontavam para o sacri-
fício e o sacerdote que tratariam de forma
eficaz e definitiva do pecado. Ou se o NT
não incluísse Efésios, com sua visão arre-
batadora da extensão do plano de Deus em
reunir judeus perdidos e gentios perdidos
em uma nova humanidade, a igreja. Ou se
faltasse lJoão, com sua insistência estimu-
lante em que o cristianismo pode se confor-
tar e fortalecer na fidelidade doutrinária, na
obediência moral e no amor genuíno. Ou
então Colossenses, com suas advertências
pungentes, particularmente relevantes em
nossa época pluralista, quanto ao fato de
que Jesus Cristo não é um deus entre mui-
tos, mas a revelação exclusiva e redentora
de Deus, Aquele em quem "habita, corpo-
ralmente, toda a plenitude da Divindade"
(CI2.9). Afirmações semelhantemente dis-
tintivas poderiam ser feitas acerca de cada
carta do cânon do NT.
3. Em medida considerável, as cartas
são "documentos-ponte". As Escrituras do
COMENTÁRIO BíBLICO VIDA NOVA 1674
AT foram escritas pelos judeus, em grande
parte no contexto da aliança que Javé ti-
nha feito com o seu povo. É verdade, es-
ses livros refletem um pouco do contexto
do Antigo Oriente Próximo em que os is-
raelitas viviam. Estamos familiarizados,
por exemplo, com algo parecido com a
Literatura de Sabedoria dos judeus na li-
teratura do Egito, com algo semelhante à
estrutura da aliança nos tratados dos an-
tigos hititas e outros povos, e com o uso
da circuncisão em outros agrupamentos
tribais (embora tendo um simbolismo bas-
tante diferente do que Abraão e seus filhos
lhe atribuíam). Mas as cartas do NT surgem
de forma autoconsciente dessa herança
judaica, e em muitos casos se dirigem a
igrejas novatas e inexperientes no mundo
greco-romano. A mudança não foi inciden-
tal; ela refletiu a transformação do povo de
Deus de um agrupamento tribal em uma
comunidade internacional dos redimidos.
Quando os escritores do NT enfrentaram
essa transição extraordinária, no início da
elaboração dessa visão globalizada à qual
o Espírito de Deus os conduziu, eles não
somente tiveram de discernir a relação
que os cristãos têm com a lei de Moisés,
mas também o desafio de manter unidos
os cristãos judeus e gentios. Havia novas
implicações políticas de uma comunidade
da aliança que não era uma nação mas uma
irmandade internacional.
Mesmo no nível literário esse signifi-
cado de "ponte" das cartas assume gran-
de importância. Por um lado, é possível
examinar as cartas de Paulo e observar a
sua maneira predominantemente judaica
de manuseio das Escrituras e seu conhe-
cimento profundo dos métodos judaicos
de interpretação. Ao mesmo tempo, Paulo
tinha se beneficiado não somente das van-
tagens de uma excelente formação acadê-
mica aos pés de Gamalie1 em Jerusalém,
mas também tinha tido exposição sufi-
ciente ao pensamento grego de modo que
podia citar poetas gregos secundários e fa-
zer uso de artifícios literários originários
no mundo greco-romano. A sensibilidade
a essa herança dupla enriquecerá a nossa
exegese. Ao mesmo tempo, ela gera admi-
ração diante da sabedoria e providência
do Deus, que de forma tão detalhada pre-
parou o caminho para esse ato sublime de
autorrevelação.
4. Visto que as cartas refletem não so-
mente circunstâncias históricas concretas
mas também teologia bíblica culminante,
há duas outras ferramentas muito úteis para
pastores e leigos (além dos comentários).
Bons dicionários bíblicos proveem gran-
de riqueza de material acerca de cidades,
movimentos, expressões técnicas, evidên-
cias arqueológicas relevantes e informa-
ções acerca de algumas questões críticas.
Quando lemos ICoríntios, é útil saber al-
gumas coisas sobre Corinto; quando estu-
damos a última das cartas às sete igrejas
(Ap 3.14-22), é extremamente proveitoso
aprender um pouco sobre Laodiceia. Além
disso, bons dicionários teológicos conse-
guem resumir em alguns parágrafos ou pá-
ginas grande parte da discussão cristã bí-
blica e pós-bíblica, situando o assunto em
contextos e arcabouços mais amplos que
seriam facilmente esquecidos por pessoas
que estão estudando seriamente o texto bí-
blico pela primeira vez.
5. Visto que todas as cartas do NT foram
em alguma medida motivadas por algu-
ma ocasião específica, é útil reconstruir a
ocasião. Às vezes esse exercício é vital; às
vezes é perigoso; sempre é um tanto escor-
regadio e traiçoeiro.
Reconstruir a ocasião que gerou uma
carta a partir das evidências da própria
carta é em parte parecido com reconstruir
uma conversa ao telefone com as evidên-
cias do que é dito em apenas uma ponta da
conversa. Às vezes a tarefa é muito fácil;
às vezes é extremamente difícil. Mesmo
correndo o risco de forçar demais a ana-
logia, podemos dizer que é fácil recons-
truir uma conversa ao telefone em que a
pessoa na ponta em que você está ouvindo
está sempre repetindo o que a outra está

1675
dizendo; é um pouquinho mais difícil, mas
nada muito desafiador, a situação em que
somente uma inferência é possível; é mais
difícil, mas não impossível, quando várias
inferências são possíveis mas as direções
na conversa tendem a eliminar algumas
delas; e é impossível ir além de probabi-
lidades ou meras especulações quando se
podem fazer muitas inferências, e poucas
delas são certas. Mesmo nesse caso, o que
se consegue de fato ouvir numa ponta pode
ser extremamente valioso por si mesmo.
Esse esforço de reconstruir a ocasião
que originou uma carta específica às ve-
zes é chamado de "leitura por espelho".
Por exemplo, já a partir da superfície do
texto de Hebreus pode-se observar que o
autor está seriamente interessado em que
os seus leitores perseverem na fé, indepen-
dentemente das dificuldades. Mas seriam
os leitores cristãos judeus que estão em pe-
rigo de voltar à observância detalhada da
lei judaica? Seriam eles gentios prosélitos
do judaísmo, e depois convertidos ao cris-
tianismo, que querem voltar às conexões
mais evidentes com o judaísmo praticante?
Teriam eles ou o seu autor sido influencia-
dos profundamente pelos escritos de Filo
de Alexandria, cuja obra num nível me-
ramente formal se assemelha em muitos
aspectos a Hebreus? Certamente podemos
citar estudiosos que apoiam cada uma des-
sas teorias, e muitas outras.
Em um nível, tais perguntas não têm
grande importância. Independentemente
das conclusões a que chegue um intér-
prete moderno, praticamente todos vão
concordar em que o texto de Hebreus ins-
ta cristãos professos à perseverança. Não
obstante, as questões não são meramente
acadêmicas. A natureza da tentação dos
leitores e a maneira em que são estimula-
dos a perseverar estão associadas às suas
circunstâncias concretas. O fato de haver
estudiosos que discordem desta ou daquela
posição não é razão para que o leitor deixe
de processar por si tais questões; a erudi-
ção não está acima do sectarismo, nem está
li
LENDO AS CARTAS • •
••
livre de preconceito ou hipocrisia. Os ar-
gumentos precisam ser avaliados por todo
leitor atento. O que está claro, no entanto,
é que o que fizermos da ocasião que origi-
nou Hebreus afetará não somente a nossa
compreensão do chamado à perseverança
mas também nossa compreensão da manei-
ra em que essa carta deve ser aplicada aos
crentes da atualidade. A aplicação relevan-
te, apropriada e eficaz depende em primei-
ro lugar do estabelecimento de associações
razoáveis entre nossas circunstâncias e as
circunstâncias dos primeiros leitores.
A despeito de argumentos contrários,
as linhas gerais do que ocasionou a carta
aos Hebreus estão muito mais claras do
que a situação por trás de Colossenses.
Nunca houve concordância precisa em
tomo do que exatamente foi a "heresia
colossense". A resposta, de todo modo, é
a supremacia exclusiva de Cristo, o único
em quem "habita, corporalmente, toda a
plenitude da Divindade" (CI 2.9), o único
que é a imagem do Deus invisível, o único
que deu o sangue, derramado na cruz, pelo
qual Deus estabeleceu a paz (CI 1.15,20).
Essas grandes verdades estão estabelecidas
firmemente, não importa a natureza da he-
resia colossense. Sem dúvida ficaria mais
claro exatamente por que Paulo argumenta
da maneira que o faz se soubéssemos mais
precisamente o que ele estava confrontan-
do, mas as linhas gerais de pensamento da
carta estão claras de mesmo assim.
O ponto principal a ser observado é que
a natureza das cartas requer que o intérpre-
te faça o esforço de entender as circunstân-
cias históricas em tomo da composição de
cada documento. O que não é permissível
é fazer uma interpretação particular total-
mente dependente de uma reconstrução
que em si resulta de um conjunto de infe-
rências meramente prováveis.
6. A natureza ocasional das cartas toma
difícil a tarefa do intérprete em alguns as-
pectos. Os temas que, por exemplo, Paulo
tende a destacar são determinados em par-
te pelas situações que ele enfrenta. Nesse
COMENTÁRIO BíBLICOVIDA NOVA 1676
sentido os seus temas talvez não represen-
tem adequadamente a sua teologia como
ele a pregaria em praça pública ou a articu-
laria num livro aos seus colegas apóstolos.
Isso não significa que as suas cartas são
contrárias à sua teologia; significa, antes,
que, com a possível exceção de Romanos,
Paulo em nenhum lugar se propõe a apre-
sentar um panorama geral das estruturas
teológicas de pensamento que ele adotou
como apóstolo cristão.
Isso significa que muito do que se es-
creve sobre o "centro" da teologia paulina
não leva em consideração adequadamente
a natureza dos seus escritos na forma em
que chegaram a nós. Não é possível deter-
minar de maneira razoável a importância
relativa da cruz e do Espírito no pensamen-
to de Paulo simplesmente pela contagem
do número de ocorrências de cada palavra.
Pode ter havido razões pastorais importan-
tes de ele ter dito mais sobre um tema do
que sobre o outro, mesmo que o outro fos-
se mais determinante em seu pensamento.
Além disso, precisamos examinar todos os
lugares em que, por exemplo, "cruz", "cru-
cificado", "morte" e "sangue" ocorrem
para identificar que função tais referências
têm no pensamento de Paulo.
Mesmo a noção de "centro" no pen-
samento de Paulo pode ser enganosa. Ela
requer dele uma ordenação da sua teologia,
com sucessivas hierarquias de importância,
que ele bem poderia ter considerado estra-
nhamente abstratas, até mesmo repulsivas.
"Centro", de todo modo, não é um termo
claro; precisa ser definido mais precisa-
mente. O que se pode argumentar é que
a justificação é o "centro" na teologia do
pensamento de Paulo no sentido de que ela
marca o ponto crítico na relação de uma
pessoa com Deus e é portanto o conceito
fundamental de que dependem todas as
outras bênçãos salvíficas. Mas poderíamos
definir "centro" de forma um pouco dife-
rente e insistir em que a cruz, Cristologia
ou a glória de Deus ou outras diversas coi-
sas são centrais para Paulo.
7. Mas se a natureza ocasional das
cartas do NT causa dificuldades de inter-
pretação, em outro nível a tarefa do cris-
tão é muito mais fácil do que seria de ou-
tra forma. Se em vez disso os autores das
cartas tivessem escolhido escrever tomos
teológicos, sem dúvida os intelectuais cris-
tãos estariam muito satisfeitos. As cartas
como as temos, no entanto, não somente
estimulam o pensamento e aumentam a
compreensão, mas se aplicam a todos os
aspectos da vida. As cartas tratam de ques-
tões éticas, de atitudes pastorais, das fontes
profundas das emoções humanas, da cons-
ciência, vontade, moralidade, verdade.
Encontramos carinhosas ações de graças
em Filipenses, a saudade sincera e amável
em 1Tessalonicenses, indignação e repre-
ensão misturadas ao amor e à aflição em
Gálatas, súplicas comoventes em Hebreus,
e assim por diante.
Tudo isso certamente é como deveria
ser. Pois a Bíblia, e ainda mais as cartas,
foram dadas não meramente para infor-
mar a mente, mas para transformar a vida.
Essas cartas constituem um meio genero-
samente dado por Deus para mediar a pre-
sença de Deus a homens e mulheres que
de outra forma estariam abandonados e
perdidos. Por isso o desafio interpretativo
nunca pode ser um desafio meramente in-
telectual. Deve ser parte do nosso chamado
como cristãos, como pecadores justifica-
dos, como discípulos que confessam Jesus
como Senhor.
D.A. Carson
Leitura adicional
CARSON, D. A.; Moo, D. 1.; MORRIS, L.
Introdução ao Novo Testamento. Vida
Nova, 2001.
LONGENECKER, R. N. "On the form,
function and authority of the New
Testament Letters" em CARSON, D. A.;
WOODBRIDGE, 1. D. ed. Scripture and
 1677
Truth. Inter- Varsity Press/Zondervan,
1983.
BRUCE, E E Paulo: o apóstolo da graça
- sua vida, cartas e teologia. Shedd
Publicações, 2003.
ZIESLER, 1. Pauline Christianity. OBS.
Oxford University Press, 1983.
AUNE, D. E. The New Testament in its lite-
LENDO AS CARTAS
rary environment. James C1arke, 1987,
p. 159-225.
DOTY, W. G. Letters in Primitive
Christianity. Fortress, 1973.
HAWTHORN, G. E; MARTIN, R. P.; REm,
D. G. ed. Dicionário de Paulo e suas
cartas. Vida Nova/Paulus/Loyo1a,
2008.
 ROMANOS
INTRODUÇÃO
A carta de Paulo à comunidade cristã em
Roma é um dos mais importantes docu-
mentos teológicos já escritos. A sua in-
fluência sobre a igreja foi enorme: a carta
aos Romanos definitivamente moldou o
ensino de Agostinho, Calvino, Lutero e
Wesley, para mencionar apenas alguns.
No entanto, Romanos não é uma teolo-
gia sistemática, e sim uma carta escrita
em circunstâncias históricas específicas.
Vamos compreendê-la melhor se enten-
dermos essas circunstâncias (v. também o
artigo "Lendo as cartas").
Circunstâncias gerais
1. Paulo
Paulo nos fornece em 15.14-29 alguns de-
talhes sobre as próprias circunstâncias em
que vivia na época. Ele está a caminho de
Jerusalém, onde pretende entregar à igreja
judaica o dinheiro que coletou das igre-
jas missionárias gentílicas. De Jerusalém
Paulo pretende viajar à Espanha a fim de
iniciar uma nova obra evangelística no lo-
cal. A caminho da Espanha, o apóstolo pla-
neja fazer uma escala em Roma. Se com-
pararmos esses planos à narrativa de Lucas
em Atos, podemos concluir que Paulo
escreveu Romanos no final de sua tercei-
ra viagem missionária, provavelmente du-
rante sua estadia de três meses na Grécia
(At 20.3-6). Paulo, sem dúvida, passou a
maior parte desse tempo em Corinto (v.
2Co 13.1,10), e a confirmação indireta
dessa cidade como o local onde a carta aos
Romanos foi escrita vem da recomendação
que Paulo faz de Febe, uma irmã que ser-
via na igreja de Cencreia, cidade portuária
ao lado de Corinto (16.1,2). Essa estadia
em Corinto provavelmente ocorreu em 57
d.e., embora possa ter ocorrido um ano an-
tes ou depois.
Um fator de certa importância para
nossa compreensão de Romanos é a in-
dicação que Paulo faz nesses versículos
de que tinha chegado a um ponto crucial
em sua carreira missionária. "Não tendo
já campo de atividade nestas regiões",
isto é, no Mediterrâneo Oriental (15.23),
Paulo havia decidido pregar na Espanha.
Com o estabelecimento de igrejas vigoro-
sas "desde Jerusalém e circunvizinhanças
até o Ilírico" (15.19), Paulo acreditava
que a obra que Deus lhe tinha confiado
- plantar igrejas estratégicas por meio
das quais o evangelho poderia ser pro-
clamado - fora concluída nessa região.
Assim como os pioneiros americanos sen-
tiam que já havia muita gente em deter-
minados locais e partiam para onde quer
que vissem a fumaça de alguma cabana,
Paulo também sentiu que já havia cristãos
demais onde ele estava ministrando, e de-
cidiu ir àqueles que chamaríamos hoje de
"povos não alcançados".
2. A igreja em Roma
Algumas das tradições mais antigas trazem
Pedro como o fundador da igreja de Roma,
mas isso é improvável. É possível que
peregrinos judeus vindos de Roma, que
se converteram com a pregação de Pedro
no dia de Pentecostes, tenham sido os que
levaram o evangelho à grande população
judaica da capital (Lucas observa em Atos
2.10 que havia judeus de Roma presentes
naquele dia). Como em tantas outras ci-
dades, os judeus de Roma não abraçaram
o novo ensino messiânico. O historiador
 1679
Suetônio observa que o imperador romano
Cláudio expulsou todos os judeus de Roma
"porque, instigados por Chrestus, eles es-
tavam constantemente promovendo desor-
dens" (Vida de Cláudio, 25.2). É quase cer-
to que ele estava se referindo às discussões
violentas entre a comunidade judaica so-
bre as alegações dos cristãos de que Jesus
era o "Cristo" (no grego, Christos), nome
aqui corrompido para "Chrestus". Assim,
essa expulsão dos judeus teria incluído os
judeus cristãos, como o próprio Lucas dei-
xa implícito quando menciona que foi por
causa desse edito de Cláudio que Priscila
e Áquila tinham vindo para Corinto (At
18.2). A expulsão (que provavelmente
ocorreu em 49 d.C.), teria tido um efeito
significativo sobre a constituição da comu-
nidade cristã em Roma: os gentios, que até
esse ponto eram a minoria dos fiéis, foram
agora deixados como os únicos cristãos
na cidade. Portanto, ainda que estivesse
autorizada a volta dos judeus a Roma na
época em que Paulo escreveu aos romanos
- Priscila e Áquila, por exemplo, tinham
voltado (Rm 16.3,4) - os gentios é que
eram maioria na igreja, e davam o tom tan-
to na liderança quanto na teologia.
História do texto
Variantes textuais nos cp. 14--16 suscitam
questões sobre a forma original e a história
literária de Romanos. A doxologia (16.25-
27) no fim da carta é colocada no final do
cp. 14 em alguns manuscritos, no final dos
cp. 14 e 16 em outro, e no final do cp. 15
em um texto antigo. Alguns manuscritos
latinos não apenas têm a doxologia no fi-
nal do cp. 14, mas também omitem todo o
cp. 15 e o restante do cp. 16. Esses dados
sugerem a possibilidade de que o formato
da carta em 16 capítulos que temos hoje
pode ter sido precedido de um formato de
14 ou 15 capítulos. Talvez a mais popular
das reconstituições seja a que defende que
Paulo tenha primeiramente escrito os cp.
1-15 mais a doxologia para a igreja em
Roma e, posteriormente, enviou essa carta
ROMANOS {
com o acréscimo de 16.1-23 à igreja em
Éfeso. Isso não apenas explicaria a razão
pela qual a doxologia aparece no final
dos cp. 15 e 16, mas também explicaria
o número de pessoas que Paulo saúda em
16.3-16. Essa familiaridade com tantos
fiéis em Roma, uma igreja que Paulo nun-
ca tinha visitado, parece pouco provável,
mas faria todo sentido se esses versículos
fossem escritos à igreja em Éfeso, com a
qual Paulo teve um longo e estreito rela-
cionamento. (O mais conhecido defensor
dessa teoria é T. W. Manson, "St.Paul's
Letter to the Romans - and Others",
The Romans Debate, ed. K. Donfried
[Augsburg, 1977], p. 1-16).
Entretanto, essa teoria e outras seme-
lhantes a ela devem ser refutadas. Pri-
meiramente, porque a evidência textual na
qual se baseiam é muito frágil. De fato, há
um manuscrito que coloca a doxologia no
final do cp. 15, mas o mesmo manuscrito
inclui o texto de 16.1-23. Não possuímos
um só manuscrito que contenha o texto
no formato de 15 capítulos proposto por
Manson. Há evidência do formato de 14 ca-
pítulos, mas é muito improvável que Paulo
tenha escrito tal texto, uma vez que este
interrompe Paulo exatamente no meio de
seu argumento sobre os "fortes" e "fracos"
na fé (14.1-15.13). Os primeiros cristãos
devem ter sido os responsáveis por omitir
os dois últimos capítulos da carta, talvez
para que ela tivesse um apelo mais univer-
sal (Harry Gamble, Jr, The Textual History
of the Letter to the Romans [Eerdmans,
1977]). Porém, o mais provável, como su-
gere Orígenes, foi que Marcião (um teólogo
do século 11 que não gostava das influências
do AT e dos elementos judaicos no cristia-
nismo) tenha removido esses capítulos.
Temos boas razões, portanto, para pen-
sar que a carta impressa em nossas Bíblias
é substancialmente idêntica à carta que
Paulo escreveu à igreja em Roma. Como
então explicaríamos a quantidade de sauda-
ções? Primeiro, ao longo de seu ministério
no Oriente, Paulo poderia ter encontrado
ROMANOS
várias dessas pessoas - como Priscila e
Áquila - durante o período em que esti-
veram exilados de Roma. As famosas vias
romanas, muito bem construídas e conser-
vadas, possibilitavam oportunidades exce-
lentes para viajar no mundo mediterrâneo
do século I. Segundo, Paulo pode ter apro-
veitado a oportunidade que lhe fora propor-
cionada por seu desconhecimento da igreja
em Roma para saudar todos os cristãos que
ele conhecia na cidade.
Destinatários
Paulo parece enviar sinais confusos so-
bre a questão dos destinatários específi-
cos que tinha em vista enquanto escrevia
para a igreja em Roma. Por um lado, vá-
rios elementos da carta apontam princi-
palmente, se não exclusivamente, para
destinatários judeus: ele saúda os judeus
cristãos em 16.3,7,11; ele se dirige aos
"judeus" em 2.17 e deixa implícito que
seus leitores têm estreita relação com a
lei mosaica (cf 6.14;7.1,4); ele se refere
a Abraão como "nosso pai" (4.1); devota
atenção considerável a questões "judai-
cas", por exemplo, o pecado e o fracasso
dos judeus (2.17-3.8), o lugar da lei na
história da salvação (cp. 7) e o passado e
futuro de Israel (cp. 9-11). Indicações de
que a carta também tem em mente leitores
gentios são, no entanto, igualmente cla-
ras: o discurso da carta associa os roma-
nos aos gentios para os quais Paulo tinha
sido especialmente chamado a ministrar
(1.5,6; cf 1.13 e 15.14-21); Paulo se di-
rige diretamente a gentios (11.11-24), e
seu apelo à unidade e tolerância parece
ser dirigido especialmente aos gentios
(15.7-9). w.G. Kümmel resume de forma
sucinta a ambiguidade dessa evidência:
"Romanos manifesta uma natureza dupla:
essencialmente é um debate entre o evan-
gelho de Paulo e o judaísmo, de modo
que a conclusão parece óbvia, ou seja, os
leitores eram judeus cristãos. No entanto,
a carta contém declarações que indicam
especificamente que a comunidade era de
1680
gentios cristãos" (Introductíon to the New
Testament [SCM, 1975], p. 309).
Confrontados por essa evidência con-
flitante, alguns estudiosos concluíram
que Paulo tinha em mente destinatários
nitidamente judeus, outros defendem que
ele estava escrevendo somente para desti-
natários gentios, e há ainda os que dizem
que Paulo estava se dirigindo a judeus em
alguns pontos e a gentios em outros. A
melhor explicação para a evidência, no en-
tanto, é a suposição de que a comunidade
cristã formada pelos destinatários a quem
Paulo se dirigia era composta tanto de ju-
deus como de gentios. Todavia, a maneira
pela qual Paulo associa a igreja com seu
ministério para os gentios em 1.5,6 sugere
que os gentios constituíam tamanha maio-
ria que a igreja tinha incorporado um toque
e uma identidade gentílica.
Gênero literário
As cartas antigas variam de breves cartas,
passando por escritos mais íntimos ende-
reçados a membros da família até tratados
elaborados, destinados a uma plateia nume-
rosa. Entre as cartas de Paulo, Romanos é
claramente a mais próxima do último tipo.
Assim, embora Romanos tenha a abertura
e a conclusão típicas de uma carta (1.1-15
e 15.14-16.27), sua característica mais
marcante é a sua consistente argumentação
teológico-pastoral em 1.16--11.36. Em ne-
nhum ponto dessa longa seção Paulo se di-
rige diretamente aos cristãos de Roma por
si mesmos ou sugere que as questões que
discute foram levantadas por eles. E isso é
verdade mesmo no trecho da carta de cará-
ter mais "prático" como 12.1-15.13 (em-
bora seja provável que os apelos aos "for-
tes" e "fracos" em 14.1-15.13 reflitam um
verdadeiro problema da igreja em Roma). A
dinâmica da carta é ditada pela lógica inter-
na do evangelho e não por questões locais.
Isso não significa que Paulo escreveu a car-
ta num vácuo: Romanos não é um tratado
teológico atempora1, mas sim uma carta,
escrita para uma igreja específica em uma
 1681
situação específica. Romanos, como todas
as demais cartas de Paulo, é um documen-
to criado para uma ocasião específica. Não
devemos esquecer os destinatários que ele
tinha em mente quando a escreveu. O cará-
ter da carta deixa claro, ao mesmo tempo,
que a ocasião que deu origem à sua redação
deve ter sido a necessidade de abordar cer-
tas questões teológicas de relevância para
os cristãos da igreja primitiva em geral- e
para todos os cristãos desde então.
Estudiosos têm tentado ocasionalmente
uma identificação mais precisa da natureza
de Romanos, comparando-a a tipos espe-
cíficos de cartas de outras obras literárias
do mundo antigo. Embora essas tentativas
muitas vezes tenham esclarecido certas ca-
racterísticas específicas de Romanos, ne-
nhuma delas pode ser tomada como uma
identificação aceitável da carta como um
todo. Como James Dunn conclui: "O ca-
ráter distintivo da carta excede em muito
a importância da sua conformidade com
as práticas literárias ou retóricas da época"
(Romans }-8 [Word Books, 1988]).
Propósito
O estilo de "tratado" de Romanos sugere
uma pergunta crítica acerca da carta: por
que Paulo escreveu essa carta específica
para essa igreja em particular? Ele diz pou-
co sobre seu propósito ao escrevê-la, por
isso nossa resposta a essa pergunta deve se
basear na análise que fizermos do conteúdo
da carta em face das circunstâncias gerais
em que foi escrita (v. acima). As respostas
mais prováveis podem ser agrupadas em
duas categorias principais: aquelas cujo
foco está na própria situação de Paulo e
aquelas cujo foco está na situação dos cris-
tãos romanos.
1. Foco na situação de Paulo
Três possibilidades devem ser menciona-
das. A primeira, que Paulo pode ter escrito
para se apresentar aos romanos e explicar
aquilo em que ele acreditava, com a fina-
lidade de obter apoio para sua missão na
ROMANOS
Espanha. Segunda, sabendo que visitaria
Roma em breve, Paulo pode ter aproveita-
do esta oportunidade para colocar por es-
crito suas próprias conclusões doutrinárias.
Afinal, o apóstolo tinha acabado de sair
de um conflito teológico e pastoral difícil
com a igreja de Corinto, e tinha chegado a
um ponto crítico em seu próprio ministé-
rio. Que oportunidade poderia ser melhor
para refletir sobre suas próprias convic-
ções teológicas e concretizá-las por escri-
to? Uma terceira possibilidade é a de que
nessa carta aos Romanos Paulo aproveitou
a oportunidade para ensaiar o discurso que
faria quando chegasse a Jerusalém com o
dinheiro da coleta. Certamente essa visita
a Jerusalém estava há muito tempo presen-
te na mente de Paulo (cf 15.25-33), e as
tensões entre cristãos judeus e gentios, que
ele esperava solucionar por meio da cole-
ta, poderiam muito bem explicar por que a
carta aos Romanos se concentra tanto em
questões relacionadas a Israel e à lei.
Provavelmente cada um desses fatores
teve seu papel no propósito de Paulo em
escrever essa carta. Mas apenas o primeiro
explica por que ela foi enviada especifica-
mente para Roma, e a esse fator, portanto,
devemos dar uma atenção especial. Mas,
antes de tirarmos conclusões, devemos
observar outra abordagem sobre a questão
do propósito.
2. Foco nos problemas
da igreja em Roma
EC. Baur, crítico bíblico do século XIX, deu
início a uma nova abordagem à carta aos
Romanos ao enfatizar que, como as ou-
tras cartas de Paulo, essa fora escrita para
tratar de problemas específicos no interior
da comunidade cristã romana. Muitos es-
tudiosos contemporâneos concordam, en-
contrando o objetivo geral da carta parti-
cularmente nas admoestações de Paulo
aos "fortes" e "fracos" (14.1-15.13). Sob
essa ótica, Paulo escreveu com o intuito de
acabar com uma divisão no seio da igreja
em Roma. A divisão era especificamente
ROMANOS
entre os cristãos gentios (os "fortes") e os
cristãos judeus (os "fracos"), e isso explica
por que Paulo gasta tanto tempo na carta
expondo cuidadosamente sua teologia no
que diz respeito a esses dois grupos.
O desejo de acabar com essa divisão na
igreja romana foi provavelmente um dos
propósitos de Paulo ao escrever, mas não
o propósito principal. Teria Paulo adiado
o momento de mencionar algo relativo ao
seu propósito principal até que a carta es-
tivesse quase terminada? Não deveríamos
esperar que ele fizesse aplicações de suas
discussões teológicas a esse problema ao
longo da carta, se isso ocupava tanto seu
pensamento?
Portanto, parece que Paulo escreveu
Romanos com uma série de propósitos em
mente. Provavelmente o principal objetivo
fosse seu desejo de se apresentar à igreja
em Roma, anunciando o evangelho que ele
pregava. Isso era especialmente importan-
te porque falsos rumores sobre o que Paulo
pregava haviam chegado até os romanos
(cf 3.8). Ele aparentemente tinha con-
quistado na igreja primitiva a reputação
de ser contrário à lei e aos judeus. Paulo
tentou mostrar que não era esse o caso (v.
especialmente 1.16; 7.7-12; cp. 9-11), ao
mesmo tempo em que explicou de forma
pormenorizada em que sentido ele era crí-
tico dos judeus e da lei mosaica (v. particu-
larmente 2.17-3.20; cp. 7). Esses mesmos
temas teriam sido debatidos em Jerusalém
e eram cruciais para alguns dos debates da
igreja em Roma. Em outras palavras, nós
temos em Romanos uma série de propósi-
tos, todos convergindo para a questão que
predomina em toda a carta: de que natu-
reza é a continuidade que existe entre as
disposições de Deus na antiga aliança e
suas disposições na nova aliança? Qual é
a relação entre a lei e o evangelho, entre os
cristãos judeus e os cristãos gentios, entre
Israel e a igreja? O desejo de Paulo é abor-
dar essa questão teológica central e perma-
nente que confere a Romanos seu caráter
universal singular.
1682
Tema
À luz do que foi dito no último parágra-
fo, não é de admirar que muitos estudio-
sos pensem que a continuidade da história
da salvação é o tema central da carta. Eles
muitas vezes apontam os cp. 9-11 como
o centro da carta. Por outro lado, muitos
reformadores protestantes concentraram
sua atenção nos cp. 1-5 e concluíram
que o tema da justificação pela fé é o tema
central da carta. Até certo ponto, essa abor-
dagem é bastante parecida com a de Emst
Kãsemann, que vê "a justiça de Deus" (que
ele entende como sendo a intervenção de
Deus para recuperar sua criação rebelde)
como o tema de Romanos. No entanto, ne-
nhum desses conceitos é suficientemente
amplo para abranger o conteúdo da carta
como um todo. Embora a justificação pela
fé seja uma doutrina crucial em Romanos e
seja o tema de 3.21-4.25, não é um tema
de expressão em outras partes da carta. Por
isso, se tivermos de identificar um único
tema para a carta, este tem de ser "o evan-
gelho". A palavra é importante na introdu-
ção (1.1,2,9,15) e na conclusão (15.16,19)
da carta, e tem lugar de honra naquela que
é identificada como a declaração do tema
da carta: "Pois não me envergonho do
evangelho, porque é o poder de Deus para
a salvação de todo aquele que crê" (1.16).
Leitura adicional
STOTT, J. R. W. Romanos. BFH. ABU,
2000.
BRUCE, F. F. Romanos: introdução e co-
mentário. SCB. Vida Nova, 1979.
MORRIS, L. The Epistle to the Romans.
IVPIUK/Eerdmans, 1988.
CRANFIELD, C. E. B. Comentário de
Romanos - versículo por versículo.
Vida Nova, 2005.
MURRAY, J. Romanos. Fiel, 2003.
DUNN, J. D. G. Romans. 2 V. WBC. Word,
1988.
 1683 ROMANOS

ESBOÇO
1.1-17 A introdução da carta
1.1-7 Preâmbulo
1.8-15 Ações de graças e ocasião
1.16,17 O tema da carta

1.18-4.25 O evangelho e a justiça de Deus pela fé

1.18-32 A ira de Deus em relação aos gentios
2.1-3.8 A ira de Deus em relação aos judeus
3.9-20 A culpa de toda a humanidade
3.21-26 A justiça de Deus
3.27-4.25 "Somente pela fé"

5.1-8.39 O evangelho e o poder de Deus para a salvação

5.1-11 A esperança da glória
5.12-21 O reinado de graça e vida
6.1-23 Libertos da escravidão do pecado
7.1-25 Libertos da escravidão da lei
8.1-30 A garantia da vida eterna no Espírito
8.31-39 A celebração da segurança do crente

9.1-11.36 O evangelho e Israel

9.1-6 a A questão: a angústia de Paulo em relação a Israel
9.6b-29 O passado de Israel: a eleição soberana de Deus
9.30-10.21 O presente de Israel: desobediência
11.1-10 O presente de Israel: "um remanescente pela graça"
11.11-32 O futuro de Israel: salvação
11.33-36 Propósito e plano maravilhosos de Deus

12.1-15.13 O evangelho e a transformação de vida

12.1,2 O cerne da questão: uma mente renovada
12.3-8 Humildade e dons
12.9-21 Amor
13.1-7 A responsabilidade cristã em relação ao governo
13.8-10 O amor e a lei
13.11-14 Discernindo os tempos
14.1-15.13 Apelos à unidade

15.14-16.27 A conclusão da carta

15.14-33 O ministério e os
16.1-16 Recomendações e saudações
16.17-20 Advertência acerca dos falsos mestres
16.21-27 Saudações finais e doxologia
ROMANOS 1
COMENTÁRIO
1.1-17 A introdução da carta
A introdução tem elementos comuns às
introduções de outras cartas de Paulo: um
preâmbulo ou saudação (1.1-7), ações de
graças (1.8-15) e uma transição entre a
introdução e o corpo da carta (1.16,17).
Uma palavra-chave em todas essas seções
é "evangelho", introduzindo o tema geral
da carta.
1.1-7 Preâmbulo
As cartas antigas geralmente começavam
com uma identificação do autor e dos des-
tinatários, e Paulo normalmente começava
suas cartas da mesma maneira. No entan-
to, o preâmbulo de Romanos é notável por
sua extensão e detalhes teológicos. Não
satisfeito em simplesmente identificar-se a
si mesmo, Paulo descreve quem ele é em
termos do seu chamado divino para o apos-
tolado (l), o evangelho que ele prega (2-4)
e o ministério especial que Deus lhe deu
(5,6). Somente depois disso é que ele final-
mente conclui seu preâmbulo, ao nomear
os destinatários da carta (7). Paulo entra
nesses detalhes porque precisa apresentar
suas "credenciais" diante de uma igreja
que ele nunca havia visitado.
Essas credenciais repousam, sobretu-
do, no seu chamado divino. Paulo, servo
de Cristo Jesus, e como tal um servo espe-
cial, pois foi chamado para ser apóstolo,
separado para o evangelho de Deus. Essas
palavras referem-se à sua experiência na
estrada de Damasco, onde o Cristo ressus-
citado apareceu a Saulo, perseguidor dos
cristãos, e o chamou para desempenhar um
papel central no plano de Deus para levar o
evangelho aos gentios. O termo "apóstolo"
é usado na maior parte do NT para designar
alguém que viu a Cristo e foi especialmen-
te comissionado por ele para atuar como
parte da "fundação" da igreja (Ef 2.20; v.
At 1.12-26). Paulo, portanto, recebeu sua
autoridade como apóstolo não por mãos
de homens, mas do Senhor ressuscitado
1684
(v. GI 1.1). O mesmo vale para a mensa-
gem que Paulo proclamava, o evangelho
(GI 1.11,12). Paulo extrai essa palavra do
AT, em que às vezes significa as "boas-no-
vas" da vitória final de Deus na história
(v. Is 40.9; 52.7; 61.1; Joel 2.32). Paulo
gostava muito dessa palavra, utilizando-
a para designar tanto os atuais aconteci-
mentos da morte e ressurreição de Jesus
que constituem as boas-novas, quanto a
comunicação das boas-novas aos outros
("pregação"). Aqui, o termo "evangelho"
engloba as duas ideias.
Tendo se apresentado no v. 1, Paulo ca-
racteriza brevemente esse evangelho nos v.
2-4. Primeiro, diz que ele tem suas raízes
no AT: prometido por intermédio dos seus
profetas nas Sagradas Escrituras. Paulo
toca aqui em um tema que se tomará cen-
trai para Romanos: a continuidade entre o
plano de Deus no AT e sua culminação no
NT. Segundo, o evangelho tem no seu cer-
ne uma pessoa: o Filho de Deus (3), Jesus
Cristo, nosso Senhor (4). Em uma declara-
ção cuidadosamente equilibrada, que cer-
tamente reflete o que os primeiros cristãos
ensinavam sobre Jesus, Paulo compara
sua condição terrena e celeste. O v. 3 olha
para a existência terrena de Jesus como o
Messias prometido da linhagem de Davi
(v. 2Sm 7.12-16; Is 11.1,10; Ez 34.23,24).
A melhor paráfrase da expressão segundo
a carne (no grego, kata sarka) seria "de
acordo com uma perspectiva meramente
humana" (cf RSV, NASB). Essa expressão é
então contrastada com segundo (no grego,
kata, "de acordo com") o espírito de san-
tidade no v. 4. O contraste entre os v. 3 e
4, assim, não se dá entre a natureza divina
e humana de Cristo, mas entre sua condi-
ção terrena e sua condição celestial como
aquele que foi ressuscitado e exaltado. O
que aconteceu na ressurreição de Cristo,
então, não é simplesmente uma declaração
poderosa de que Jesus é o Filho de Deus
(como sugerem algumas versões, e.g., a
NIV, em inglês), mas a designação de Jesus
para uma nova posição como "Filho de
 1685
Deus em poder". Preexistindo eternamente
como o Filho de Deus, Jesus, mediante a
sua ressurreição dentre os mortos, recebeu
novo poder e glória, poder agora exercido
para a "salvação de todos os que creem"
(1.16; v. também Fp 2.9-11; Hb 7.25).
Foi por intermédio desse poderoso
Filho de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor
(4) e por amor do seu nome que Paulo re-
cebeu a graça especial de ser apóstolo (5).
O apostolado de Paulo, como o NT repetida-
mente enfatiza, era centrado principalmen-
te nos gentios (v. At 9.15; 22.21; 26.17,18;
G11.16; 2.1-11; Ef3.1,6,8; lTs 2.16). Paulo
mostra aqui que seu propósito específico
era chamar os gentios para a obediência
porfé. Essa tradução sugere que Paulo está
enfatizando em sua pregação a necessida-
de de os cristãos viverem uma vida santa
após a conversão inicial. Mas talvez de-
vêssemos atribuir à palavra "obediência" o
mesmo peso que atribuímos à palavra "fé",
e compreender que Paulo está declarando
seu propósito abrangente de chamar os
gentios tanto à aceitação inicial do evan-
gelho como a uma contínua obediência às
exigências do evangelho (o grego traz sim-
plesmente hypakoên pisteõs, "obediência
da fé"). Crer e obedecer são duas coisas
diferentes, mas para Paulo eram sempre
inseparáveis: as pessoas não podem verda-
deiramente obedecer a Deus sem antes do-
brar os joelhos ao Senhor Jesus em fé; e as
pessoas não podem crer verdadeiramente
no Senhor Jesus sem obedecer a tudo que
ele nos ordenou (Mt 28.20).
Uma vez que Paulo fora especialmente
comissionado para ir aos gentios, a igre-
ja romana, composta em grande parte por
gentios nessa época (v. Introdução), encon-
trava-se na esfera da autoridade apostólica
de Paulo (6). Essa é a razão de Paulo se di-
rigir a todos os cristãos em Roma amados
de Deus [...] chamados para serdes santos
(7). Essa linguagem, que retoma a termi-
nologia padrão do AT para descrever Israel,
lembra os leitores da carta de que eles são
o povo de Deus. Paulo conclui com sua ha-
ROMANOS 1
bitua1 saudação, adaptação de uma fórmu-
la grega popular à qual ele conferiu novo
conteúdo teológico: Graça a vós outros
e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do
Senhor Jesus Cristo.
1.8-15 Ações de graças e ocasião
Nesse parágrafo Paulo expressa brevemen-
te sua gratidão porque em todo o mundo
era conhecida a fé dos cristãos em Roma
(8), e em seguida fala do seu desejo de vi-
sitar e ministrar à igreja em Roma (9-15).
A ênfase das afirmações de Paulo quanto
ao seu desejo de visitar a igreja sugere que
alguns dos cristãos romanos possam ter
se sentido desprezados, pelo fato de que
o grande "apóstolo dos gentios" ainda não
tinha vindo à capital do mundo gentílico.
Paulo assegura-lhes que a sua ausência não
foi por falta de vontade, mas por falta de
oportunidade: ele fora impedido de visitá-
los (13), provavelmente por causa das suas
obrigações para com as igrejas na parte
leste do Mediterrâneo (cf 15.19-23). Paulo
também manifesta seu propósito que é vi-
sitar a igreja romana. Primeiro, ele quer re-
partir com eles algum dom espiritual (11).
Essa tradução sugere que Paulo espera
conferir um dom (charisma) espiritual es-
pecial aos cristãos em Roma. Deveríamos,
no entanto, provavelmente traduzir suas
palavras por "compartilhar com vocês um
certo dom espiritual", a referência sendo
a um dom do próprio Paulo que ele está
planejando utilizar para fortalecer a igre-
ja. Segundo, Paulo manifesta seu desejo
de conseguir igualmente entre vós algum
fruto (13), algo que ele aparentemente pre-
tende colher por meio do ato de anunciar o
evangelho entre eles (15). Talvez devêsse-
mos interpretar o primeiro propósito, mais
geral, por meio do segundo propósito, mais
específico, e concluir que Paulo pretende ir
a Roma para usar seu dom de evangelismo
a fim de ganhar convertidos para a igreja de
lá e assim fortalecê-la. Tal desejo está em
plena consonância com o sentimento inten-
so de Paulo de que era devedor [estava sob
ROMANOS 1
obrigação] tanto a gregos como a bárba-
ros, tanto a sábios como a ignorantes (14).
O desejo de Paulo de ministrar em Roma
não resulta de um impulso egoísta, mas sim
da consciência de que Deus o chamara e
equipara para um propósito (v. ICo 9.16b:
"Ai de mim se não pregar o evangelho!").
1.16,17 O tema da carta
A ansiedade de Paulo para pregar o evan-
gelho em Roma (15) leva diretamente à
descrição que ele faz desse evangelho nos
v. 16,17. Esses versículos expressam o
tema central de Romanos e fazem a tran-
sição entre a introdução (1.1-15) e o corpo
da carta (1.18-15.13). A palavra-chave
nessa declaração do tema bem como o
motivo central da carta é o evangelho (cf
v. I para o significado dessa palavra). Ao
dizer não me envergonho desse evangelho,
Paulo pode estar querendo dizer simples-
mente que ele está "muito orgulhoso" do
mesmo. Mas o fato de que falsos rumores
acerca de Paulo tinham chegado ao conhe-
cimento dos cristãos romanos (3.8) pode
sugerir que ele esteja realmente se defen-
dendo contra acusações de que ele deveria
se "envergonhar" daquilo que prega. Em
ambos os casos, deveríamos observar o or-
gulho ardente e desafiador de Paulo daqui-
lo que é "pedra de tropeço" para os judeus
e "loucura" para os gregos (1Co 1.23).
Por que esse orgulho pelo evangelho?
Porque Paulo sabe, e sabe por experiên-
cia própria, que o evangelho é o poder de
Deus para a salvação de todo aquele que
crê. "Salvação" é uma palavra que signifi-
ca libertação de um vasto leque de males
e foi usada no AT para descrever a liberta-
ção final do povo realizada por Deus. Ver
particularmente Isaías 52.7, em que apare-
cem duas das palavras-chave dessa parte
de Romanos: "Que formosos são sobre os
montes os pés do que anuncia as boas-no-
vas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas
boas, que faz ouvir a salvação, que diz a
Sião: 'O teu Deus reina'!". No v. 16, como
sempre em Paulo, a salvação se refere ao
1686
ato de Deus de salvar o pecador da pena
do pecado. A insistência de Paulo em que
essa salvação é para todo aquele que crê
soa como uma nota que ecoará ao longo de
toda a carta. Igualmente característico é o
acréscimo da expressão primeiro do judeu
e também do grego. O poder do evangelho,
acessível a todos, não anula a prioridade
dos judeus. Como destinatário da palavra e
da aliança de Deus no AT, o povo judeu ain-
da continua sendo o primeiro destinatário
das boas-novas de Deus acerca do cumpri-
mento do plano e das promessas que fizera
no AT (3.1,2; n.i ,2,29).
O evangelho é a fonte do poder de
Deus para salvar visto que a justiça de
Deus nele se revela. Fazemos bem em
definir essa expressão - "a justiça de
Deus" - uma vez que Paulo está se re-
ferindo a um conceito específico, mais
uma vez arraigado nas promessas do AT.
OS "últimos dias", quando Deus interviria
para salvar seu povo, eram caracterizados
por profetas como Isaías como um tem-
po em que Deus revelaria sua "justiça"
(e.g., Is 46.13; 51.5,6,8). Essa "justiça
de Deus" é um tema central em Romanos
(cf 3.5,21,22,25,26; 10.3; fora Romanos,
Paulo usa essa expressão somente em
2Co 5.21). Alguns estudiosos entendem
essa justiça como algo que significa o
dom de "ter acesso e se relacionar com
Deus sendo considerado justo por ele", o
que Deus confere àqueles que creem, en-
quanto outros a entendem como algo que
significa a ação pela qual Deus salva seu
povo. Porém, não é necessário fazer uma
opção entre essas duas alternativas. Tanto
no AT como em Paulo a "justiça de Deus"
é um conceito amplo que abrange tanto o
ato da concessão desse dom (a parte de
Deus) quanto a condição daqueles que
recebem o dom (a nossa parte). A justiça
de Deus é revelada, então, à medida que
o evangelho é pregado e as pessoas res-
pondem à mensagem pela fé. Pois é nesse
momento que Deus age para conduzir o
pecador a um novo relacionamento com
 1687
ele, a um relacionamento de "justiça". Ob-
serve também que a expressão se refere a
um novo relacionamento, não a uma nova
aptidão moral. Paulo (assim como o AT)
toma a linguagem das cortes de justiça, e
ela retrata o ato pelo qual um juiz declara
uma pessoa "inocente" perante ele.
Uma das características distintivas da
argumentação de Paulo sobre a justiça de
Deus é sua insistência quanto à sua ligação
com a fé. Essa ligação é enfatizada na úl-
tima parte do v. 17. "Do princípio ao fim é
pela fé" (NVI ) é uma boa tradução do grego
ek pisteõs eis pistin. A expressão enfatiza
que a justiça de Deus é experimentada pela
fé e por nada mais além da fé. A citação
de Habacuque 2.4 reforça a ligação entre
"justiça" e "fé". Na verdade, pode ser que
Paulo pretendesse conectar esses termos de
forma ainda mais próxima do que as tradu-
ções mais usadas sugerem, pois poderíamos
também traduzir a expressão por: "Aquele,
que pela fé é declarado justo, viverá" (VFL).
No contexto de Romanos, "viverá" se refere
à vida eterna, espiritual.
Nota. 17 Em Habacuque 2.4, Deus está
lembrando o profeta de que a pessoa que
faz parte do povo da aliança de Deus (o
"justo") experimentará as bênçãos de Deus
e entenderá seus caminhos apenas por meio
da fidelidade a Deus e à sua aliança. No
uso que Paulo faz do versículo (cf também
GI 3.11), a cada um dos termos-chave-
"justo", "viverá" e "fé" - é atribuído um
significado mais profundo à luz da vinda
de Cristo, mas o sentido geral do original
é mantido. Tanto Habacuque quanto Paulo
afirmam que a vida diante de Deus exige o
comprometimento sincero do indivíduo.
1.18-4.25 O evangelho e a
justiça de Deus pela fé
A citação de Habacuque 2.4 no v. 17 in-
troduz o tema da primeira grande seção
que forma o corpo da carta aos Romanos:
a revelação, há muito prometida, da jus-
tiça redentora de Deus em Jesus Cristo,
e a fé como o único meio pelo qual o ser
ROMANOS 1
humano pode experimentar essa justiça.
Este último tema em particular é central
para a argumentação de Paulo em 1.18-
4.25. (Pode-se notar que o termo 'justiça"
e as palavras a ele relacionadas, como "jus-
tificar" e "justo", ocorrem 27 vezes nessa
seção; as palavras "fé" e "crer", 23 vezes).
A ação justificadora de Deus, baseada na
cruz de Cristo e revelada na pregação do
evangelho, é inteiramente gratuita - uma
questão de "graça" (3.24; 4.4,5,16) - e
pode portanto ser experimentada apenas
pela fé. Pois fé não é "obra", mas um ato
de grata aceitação e entrega (4.4-8). A gra-
ça de Deus como meio de revelação e a fé
humana como meio de aceitação apontam
para outra verdade que Paulo está empe-
nhado em ressaltar em toda essa seção: que
a justiça de Deus é para todo aquele que
crê, seja gentio ou judeu. Ambos, Paulo
afirma, igualmente "estão debaixo do pe-
cado" (3.9); ambos podem ser justificados
somente pela fé (3.28-30). Paulo desenvol-
ve a primeira dessas afirmações em 1.18-
3.20 e a segunda em 3.21---4.25.
Paulo se prepara para sua exposição
sobre "a justificação de Deus pela fé"
(3.21---4.25) começando por demonstrar
a profundidade e amplitude do "problema
do pecado" (1.18-3.20). Ele tenta respon-
der a duas perguntas específicas. Por que
Deus precisa revelar sua justiça redentora
em Cristo? Por que as pessoas podem ex-
perimentá-la somente pela fé? A resposta a
essas duas perguntas se encontra na argu-
mentação de Paulo de que "todos estão de-
baixo do pecado" (3.9) - cativos e inde-
fesos diante do domínio mortal do pecado.
Enquanto Paulo desenvolve o argumento
que conduz a essa conclusão, toma-se claro
que seu propósito específico é mostrar que
os judeus, assim como os gentios, estão su-
jeitos ao domínio do pecado e necessitam
do evangelho da justiça de Deus. Assim,
após expor o pecado e a necessidade dos
gentios em 1.18-32, Paulo gasta um tempo
considerável mostrando que a situação dos
judeus em nada era melhor (2.1-3.8).
ROMANOS 1
A passagem de 3.21-26 é o parágrafo
central dessa seção, um parágrafo que para
Lutero era "o ponto principal, e o próprio
ponto central da epístola, bem como de
toda a Bíblia" (nota de margem da Bíblia
de Lutero, em 3.23-26). O restante da se-
ção (3.27--4.25) elabora um grande ele-
mento desse parágrafo: a fé como o único
meio de justificação perante Deus. Paulo
desenvolve seus pontos básicos sobre a fé
nos v. 27-31 que, por sua vez, são elabo-
rados em seguida no cp. 4, com referência
a Abraão.
1. 18-32 A ira de Deus
em relação aos gentios
Os v. 18,19 funcionam como "cabeçalho"
de 1.18-3.20: a ira de Deus recai sobre
todos os seres humanos que não seguem
a verdade como Deus a revelou para eles.
Alguns teólogos têm dificuldade em con-
ciliar a ideia de ira com o Deus da Bíblia.
Mas na verdade a Bíblia constantemente
retrata Deus como um Deus que age para
julgar o pecado. O AT menciona várias oca-
siões em que a ira de Deus recai sobre o
povo devido a seus pecados (e.g., Êx 15.7;
32.10-12; Nm 11.1), e o NT prevê uma épo-
ca em que a expressão final da ira de Deus
recairá sobre a humanidade rebelde (e.g.,
Rm 2.5; 5.9; Ef 5.6; Cl 3.6; lTs 1.1O; 5.9).
A ira de Deus não é, evidentemente, uma
fúria emocional, mas sim uma oposição
firme e absoluta a tudo o que é mal. É algo
que é parte da essência do caráter de Deus:
"Uma vez que Deus é Deus, ele não pode
assistir com indiferença ao fato de que
sua criação é destruída e sua santa vonta-
de pisada. Portanto, ele enfrenta o pecado
com uma reação poderosa e aniquilan-
te" (A. Nygren, Commentary on Romans
[Fortress, 1949]).
Paulo mostra primeiro como a ira de
Deus sobreveio merecidamente aos gentios
(20-32). Toda essa seção apresenta muitos
paralelos com os textos judaicos em que
os gentios são criticados por seus pecados
(cf especialmente Sabedoria de Salomão
1688
13-15). Também são evidentes as alusões
às histórias da criação e da queda de Adão
e Eva no jardim do Éden (cf v. 23 com Gn
1.20,24). Alguns estudiosos acreditam que
Paulo esteja descrevendo aqui essa queda
original (20-23), bem como suas consequ-
ências para a história humana subsequen-
te (24-32). Mas isso não é provável, uma
vez que Paulo deixa claro que as mesmas
pessoas que viraram as costas para Deus
são também as culpadas dos pecados que
ele descreve nesses versículos. Devemos
ver essa seção, portanto, como o retrato
que Paulo faz da situação dos gentios em
geral, e que é esboçado contra o pano de
fundo da queda original. Paulo retrata cada
pessoa como sendo o seu "próprio Adão",
ou seja, repetindo o mesmo pecado básico
cometido por nossos primeiros pais huma-
nos. Os v. 20-23 descrevem a decisão bá-
sica tomada pelos gentios e os v. 24-32, a
reação de Deus a essa decisão.
Embora os gentios não tenham a "reve-
lação especial" das Escrituras, como a têm
os judeus, a eles, no entanto, tem sido dado
o conhecimento da verdade sobre Deus na
criação que os cerca. Os atributos invisí-
veis de Deus, assim o seu eterno poder,
como também a sua própria divindade,
claramente se reconhecem (20). Paulo dei-
xa claro que os gentios de sua época, assim
como as pessoas de hoje que nunca ouvi-
ram o evangelho ou leram a Bíblia, têm re-
almente "visto" algo de Deus e quem ele é.
Mas alguns dos que recebem essa verdade
não respondem a ela da forma como deve-
riam: em vez de glorificarem a Deus ou lhe
renderem graças, eles viram as costas para
a verdade e escolhem abraçar a idolatria
(21-23).
Essa passagem é uma das mais impor-
tantes da Bíblia acerca do conceito de "re-
velação natural": a ideia de que, além de
se revelar em Cristo e nas Escrituras, Deus
também se revelou a todos por meio da na-
tureza e da história. Como Paulo deixará
implícito mais tarde (cf 1.32; 2.14-16), to-
dos os seres humanos têm capacidade para
 1689
receber essa revelação, pois continuam a
carregar a imagem de Deus. Esse texto
não só afirma esse conceito, mas também,
e sobretudo, ensina qual é o resultado fi-
nal da revelação natural desacompanhada
de quaisquer outros meios de graça: uma
rejeição de Deus. Como Paulo deixa bem
claro aqui, ninguém pode ser salvo com
base na verdade revelada na natureza por
si só. Assim, como Paulo conclui, uma vez
que todos tiveram acesso ao verdadeiro
conhecimento de Deus, todos, quando se
afastam dele, são indesculpáveis (20).
Esse texto fornece uma das bases teo-
lógicas mais importantes para a obra mis-
sionária: a condição caída em que se en-
contram todos aqueles que nunca tiveram a
oportunidade de responder ao evangelho da
graça de Deus. Pois esse texto deixa claro
que não pode haver salvação desvinculada
da resposta ao evangelho de Cristo. Os que
nunca ouviram o evangelho estão, portan-
to, escravizados em seus pecados e sem
esperança. Na verdade, Deus é soberano
tanto na transmissão quanto na aplicação
de sua graça, e ele pode em determinados
momentos optar por trazer pessoas ao co-
nhecimento do evangelho de maneiras bas-
tante inesperadas e até mesmo desconhe-
cidas para nós. Mas as Escrituras deixam
claro que Deus optou por tomar manifesto
as boas-novas de Jesus Cristo por meio
do testemunho de seu próprio povo (Mt
28.16-20; Rm 10.14,15). Essa foi uma das
principais razões por que Paulo e outros
dentre os primeiros missionários cristãos
se entregaram com tanta paixão à propaga-
ção do evangelho.
A rejeição de Deus por parte do ser hu-
mano leva à punição do ser humano por
parte de Deus. Três vezes Paulo nos diz
que os gentios "mudaram" ("trocaram",
NVI): trocaram a verdade de Deus e suas
exigências morais pelos seus próprios deu-
ses e caminhos de pecado (23,25,27). Por
três vezes Paulo também aponta a reação
de Deus a essa "troca", afirmando que
Deus os entregou (24,26,28). Confrontado
ROMANOS 1
com o pecado e a rebeldia do ser huma-
no, Deus entrega o ser humano ao peca-
do que escolheu e às suas consequências.
A linguagem que Paulo utiliza (no grego,
paradidõmi, "entregar") refere-se a bem
mais do que uma passiva retenção da graça
divina por parte de Deus. Aparentemente,
Paulo pensa em um ato jurídico no qual
Deus confirma a decisão que o próprio
indivíduo tomou e o entrega às consequ-
ências dessa decisão. Entre os pecados aos
quais Deus entregou o ser humano estão
a idolatria (25; cf v. 23) e os pecados de
ordem sexual, especialmente o pecado da
homossexualidade (24,26,27). Paulo con-
corda aqui com a tradição judaica - e
com o AT - em lançar mão das práticas
homossexuais como exemplo particular-
mente evidente da rejeição de Deus pelos
gentios. A expressão contrário à natureza,
que se aplica à prática homossexual no v.
26, nesse contexto significa que a prática
é contra a lei natural dada por Deus como
regra para todos.
Os v. 29-31 mostram como a falha hu-
mana em dar a Deus o que lhe é devido
trouxe sobre a raça humana males destru-
tivos, de todos os tipos, que vão desde a
difamação até o homicídio. Pode ser que
Paulo deixe implícita uma gradação desses
pecados onde o pecado básico, a idolatria
- colocar algo no lugar de Deus - con-
duz a todos os outros tipos de pecados. O
v. 32 sugere que o conhecimento que o
ser humano tem das coisas de Deus não é
completamente apagado por sua "queda"
no pecado. Embora a mente do ser huma-
no talvez não funcione mais como deveria
(28), ele ainda é capaz de compreender
que as coisas que pratica merecem a pena
de morte imposta por Deus. Não obstante,
as pessoas não somente as praticam, mas
também aprovam os que assim procedem.
O que Paulo quer dizer com isso não é
que aprovar o pecado alheio seja, em sen-
tido absoluto, pior do que cometer nosso
próprio pecado, mas sim que a atitude de
encorajar outros a pecar revela a extensão
ROMANOS 2 1690
com que o ser humano se rebelou comple-
tamente contra a justa ordem divina.
2.1-3.8 A ira de Deus
em relação aos judeus
Em 1.18-32, Paulo descreveu o pecado e o
julgamento dos gentios usando a terceira
pessoa: "eles" se afastaram de Deus, Deus
"os" entregou. Na maior parte do cp. 2, po-
rém, Paulo usa a segunda pessoa do singu-
lar, como no v. 1: Portanto, és indesculpá-
velo Essa mudança de pessoa não significa
que Paulo esteja agora se dirigindo dire-
tamente a um destinatário em Roma. Ele
está usando um recurso literário popular
no mundo antigo por meio do qual o autor
se dirige a um adversário ou companheiro
de debate imaginário como um meio vívi-
do de fazer suas teses chegarem a quem os
assiste (esse estilo era chamado diatribe).
Quem seria o "adversário" ou o "compa-
nheiro de debate" de Paulo nesses versícu-
los? O V. 17 deixa claro que, nos v. 17-29
pelo menos, Paulo está falando a um judeu.
Muitos estudiosos (e.g., Barrett) acredi-
tam que nos v. 1-16 Paulo esteja falando
de modo mais geral a qualquer um que se
proclamasse uma pessoa de "moral"! Mas
é mais provável que até mesmo aqui o ver-
dadeiro "alvo" de Paulo seja o judeu. A
princípio, ele omite qualquer identificação
específica, de modo que possa envolver o
judeu em seu argumento, antes que o im-
pacto da sua acusação se tome evidente. A
técnica de Paulo aqui provavelmente refle-
te o estilo de sua pregação. Podemos até
imaginar os destinatários judeus de Paulo
manifestando sua concordância com a acu-
sação que Paulo faz aos gentios, no cp. 1,
apenas para depois se verem acusados de
fazer as mesmas coisas (3).
Então, em toda a passagem de 2.1-3.8
Paulo se concentra nos judeus. Ele de-
monstra que a condição dos judeus diante
de Deus no juízo não é diferente da dos
gentios (2.1-16), a despeito do fato de
eles possuírem dádivas genuínas de Deus,
como a lei e a circuncisão (2.17-29). Em
3.1-8, Paulo se desvia de sua linha princi-
pal de argumentação para lidar com algu-
mas questões suscitadas por aquilo que ele
havia dito no cp. 2.
2.1-16 O juízo imparcial de Deus. O
propósito de Paulo nessa seção é colocar o
judeu na mesma categoria que o gentio pe-
cador do cp. 1. Ele o faz em três estágios.
OS V. 1-5 contêm o cerne da acusação de
Paulo: o judeu (o "alvo oculto" por trás do
"tu" a quem Paulo se dirige) faz as "mes-
mas coisas" que os gentios fazem e portan-
to está sujeito ao mesmo juízo. A seguir,
Paulo introduz dois parágrafos nos quais
ele se afasta de seu estilo "acusatório" para
explicar e elaborar a acusação que fez nos
v. l-S. Paulo defende a acusação que fez ao
judeu, mostrando que a imparcialidade de
Deus, ensinada no AT e no judaísmo, exi-
gia que ele não tivesse preferências, mas
tratasse todos da mesma maneira (6-11),
independentemente de ser judeu ou gentio.
Tampouco o fato de ser detentor da lei de
Moisés tomava a condição do judeu algo
significativamente diferente da dos gentios;
pois não é o ouvir a lei, mas o praticar a
lei que importa para Deus, e de todo modo
os gentios, em certo sentido, também têm
a lei de Deus (12-16).
O portanto do V. 1 é, à primeira vista,
dificil de entender. Como pode a conde-
nação que Paulo fez aos gentios (1.18-32)
levar à conclusão de que também os judeus
estão sob condenação? Alguns estudiosos
sugerem que esse portanto foi utilizado
com um simples termo de transição, sem
nenhuma força lógica; outros (Cranfield,
e.g.) sugerem que 1.18-32 não se refere
aos gentios, mas a todas as pessoas. Uma
variação desta última sugestão parece-
ria mais provável. Enquanto a linguagem
utilizada por Paulo nos v. 20-32 indica que
ele está pensando apenas nos gentios, os v.
18,19 incluem a todos. Como salientamos
anteriormente, esses versículos funcionam
como um cabeçalho de todo o trecho de
1.18-3.20, e é a esses versículos que Paulo
agora se volta em 2.1. Uma vez que a ira
 1691
de Deus se revela do céu contra todos os
homens que detêm a verdade de Deus,
tu, portanto, és indesculpável, Ó homem.
Pois quem quer que condene os pecadores
gentios, que Paulo descreveu em 1.20-32,
também está condenando a si mesmo. Isso
porque aquele que os condena pratica "as
mesmas coisas" (NVI). Embora nem todas
as pessoas se envolvam com idolatria e pro-
miscuidade sexual, nenhuma é inocente no
que diz respeito aos pecados enumerados
nos v. 29-31: por exemplo, avareza, aver-
são de Deus, soberba. E talvez, em sentido
mais amplo, até mesmo o judeu que colo-
ca a lei, ou sua circuncisão, ou mesmo sua
religiosidade acima da devoção a Deus é
culpado de idolatria. Uma vez que o juízo
de Deus é baseado na verdade, ou seja, está
sempre exatamente de acordo com os fatos
(2), ele não pode simplesmente ignorar tais
pecados (3). O argumento de Paulo nesses
três primeiros versículos pode, portanto,
ser resumido em três proposições: o juízo
de Deus recai sobre aqueles que praticam
"tais coisas"; mesmo o virtuoso que julga
os outros pratica "tais coisas"; portanto,
mesmo aquele virtuoso que julga está su-
jeito ao julgamento de Deus.
A pergunta retórica no v. 4 expõe os
falsos pressupostos em que se baseia esse
virtuoso que é juiz dos outros. A questão de
que Paulo está falando a um judeu e refle-
tindo uma situação real fica clara pelo fato
de que o sentimento e mesmo muitos dos
vocábulos utilizados na formulação dessa
pergunta são extraídos de um livro dos
judeus que pertence ao período intertesta-
mentário, Sabedoria de Salomão. Após cen-
surar os gentios por sua idolatria e pecado
nos cp. 13-14 (texto do qual Paulo faz um
paralelo em 1.18-32), o autor de Sabedoria
diz em 15.1,2: "Mas tu, nosso Deus, és
benigno [chrêstos] e verdadeiro, paciente
[makrothymos], e governas sobre todas as
coisas em misericórdia. Pois mesmo que
pequemos, conhecendo teu poder, somos
teus". É claro que é exatamente esse pres-
suposto de exclusão automática do juízo
ROMANOS 2
de Deus que Paulo está contestando. O
judeu que não se arrepender sinceramen-
te não escapará do juízo simplesmente por
fazer parte do povo da aliança de Deus.
Tal pessoa está, na verdade, simplesmente
acumulando contra si mesmo ira para o
dia [...] do justo juízo de Deus (5).
O v. 6 está estreitamente ligado ao v. 5
(e essa é a razão da divisão do parágrafo na
xvr), mas, na verdade, introduz uma nova
seção. O tema dessa seção é expresso tanto
nos versículos de abertura como de encer-
ramento: Porque para com Deus não há
acepção de pessoas (11), ele retribuirá a
cada um segundo o seu procedimento (6).
Paulo usa essa mesma técnica (algumas
vezes chamada de quiasmo) para detalhar
os dois possíveis resultados do juízo im-
parcial de Deus: a vida eterna para aqueles
que praticam o bem (v. 7 e 10) e a ira para
aqueles que pecam (v. 8 e 9). O esquema a
seguir mostra essa estrutura:
A O juízo justo de Deus (v. 6)
B Vida para os que praticam bem (v. 7)
C Ira para os que praticam o mal
(v. 8)
C Ira para os que praticam o mal
(v. 9)
B Glória para os que praticam o bem
(v. 10)
A A imparcialidade de Deus (v. 11)
Paulo aplica abertamente esse ensi-
namento sobre a imparcialidade de Deus
tanto ao judeu quanto ao gentio (9,10),
revelando seu propósito geral de mostrar
que o padrão de juízo de Deus para o ju-
deu em nada diferirá do padrão de juízo
de Deus para os gentios. Pois para ambos
é o fazer que será decisivo. O fato de que
fazer o mal acarretará a ira de Deus não é
nenhuma surpresa e se mostra consisten-
te com o ensinamento bíblico. Mas o que
Paulo pretendia ao afirmar que as pessoas
que fazem o bem receberão a vida eter-
na (7; cf v. lO)? Uma vez que Paulo em
outras passagens toma evidente que as
• ROMANOS 2 1692
pessoas podem alcançar a vida eterna so-
mente pela fé (1.l7; 3.20,21,22), ele não
poderia estar dizendo que as pessoas po-
dem de fato ser salvas simplesmente por
praticar boas obras. Alguns estudiosos
(como Cranfield, e.g.) acreditam que
Paulo estava descrevendo os cristãos
cujas boas obras dão mostras da realida-
de da sua nova vida. Mas Paulo diz que
é a própria prática do bem que traz vida.
Seria melhor, então, ver essas afirmações
como asserções de generalização de prin-
cípio: se alguém viesse a fazer o bem com
persistência (cf v. 7), essa pessoa recebe-
ria a vida eterna. Mas o que Paulo tomará
claro em outras passagens é que não há
ninguém, desde a queda de Adão, que
possa, na verdade, praticar o bem com
persistência (cf 3.9-18,23). O propósito
de Paulo neste ponto não é mostrar como
as pessoas podem ser salvas, mas estabe-
lecer os padrões de avaliação que Deus
usa além do evangelho. Esses padrões são
os mesmos para todos - sejam eles ju-
deus ou gentios, negros ou brancos.
Um judeu, ouvindo a argumentação de
Paulo sobre esse ponto, certamente teria
feito uma objeção crucial: o fato de os ju-
deus serem o povo escolhido de Deus e de
terem recebido sua lei como um sinal da
aliança não os colocaria em uma posição
muito diferente diante do juizo de Deus
em relação aos gentios? Paulo antecipa
essa objeção e fornece uma resposta pre-
liminar nos v. 12-16. Como nos v. 6-11,
o propósito de Paulo é eliminar qualquer
distinção entre judeu e gentio com relação
ao juízo final de Deus. E ele o faz em dois
pontos. Primeiro, não é o simples fato de
possuir a lei que livrará o judeu do juízo;
somente a verdadeira obediência à lei trará
qualquer bem ao judeu (12,13). Fica claro
que os que pecaram sem lei e os que com a
lei pecaram (12) são respectivamente gen-
tios e judeus. Isso toma evidente que Paulo
usa a palavra "lei" aqui (do grego nomos)
para se referir à lei de Moisés, como ele
normalmente faz. Não só os judeus, mas
também os gentios serão condenados pela
lei (12), pois somente aquele que obede-
ce serájustificado aos olhos de Deus (13).
A lógica desses versículos pressupõe que
não há uma só pessoa que seja capaz de
obedecer à lei de Deus o bastante para ser
justificada diante dele.
O segundo ponto que Paulo defende
aqui é que os próprios gentios possuem
a lei de Deus e, portanto, não há de fato
uma diferença assim tão grande entre ju-
deus e gentios como os judeus poderiam
imaginar (14,15). Os gentios não têm a
lei de Moisés; no entanto, ao procederem,
por natureza, de conformidade com a
lei, ou seja, seguindo alguns dos padrões
da lei de Deus - abstendo-se de ma-
tar, roubar, adulterar e honrando os pais
- servem eles de lei para si mesmos. O
que Paulo quer dizer com isso é explica-
do no v. 15: Estes mostram a norma da
lei gravada no seu coração. Por sua con-
formidade casual às exigências da lei de
Deus, os gentios mostram que têm acesso
às exigências morais de Deus. Embora
não possuam a lei escrita, eles possuem
um conhecimento interior das exigências
de Deus, de modo que suas consciências
podem, até certo ponto, monitorar com
cuidado sua conformidade com a vontade
de Deus (15b). Aqui Paulo completa seu
ensinamento sobre a "revelação natural"
do cp. 1 ao nos relembrar que toda pes-
soa tem algum conhecimento da vontade
moral de Deus. Entretanto, como no caso
da revelação natural, esse conhecimento
não pode levar à salvação; o v. 15b não
significa que alguns gentios possam real-
mente ser salvos no juízo, mas sim que
cada gentio terá certos pensamentos que o
"acusarão" e outros que o "defenderão".
Os parênteses que a NVI coloca nos v.
14,15 sugerem que deveríamos ler o v. 16
como uma continuação do v. 13: a declara-
ção de Deus acerca da condição de justifi-
cação terá lugar no dia em que Deus, por
meio de Cristo Jesus, julgar os segredos
dos homens. Mas os v. 14,15 são essen-

1693
ciais para o argumento de Paulo. O v. 16
assim provavelmente está ligado ao v. 15b:
os "pensamentos" conflitantes das pessoas
serão revelados e utilizados como provas
no dia do juízo pelo Deus que tem conhe-
cimento perfeito de nossos corações (cf
ISm 16.7; SI 139.1,2; Jr 17.10).
Nota, 14 Alguns estudiosos entendem
que Paulo está descrevendo os gentios cris-
tãos nos v. 14,15, mas isso é improvável.
Os gentios cristãos não praticam as coisas
da lei por natureza; e todo argumento de
Paulo apresenta muitas semelhanças com
o ensinamento grego popular sobre a "lei
natural" que todas as pessoas possuem.
2.17-29 A lei e a circuncisão. Paulo
retoma o estilo critico de 2.1-5 nesses ver-
sículos, assim como usa novamente a se-
gunda pessoa do singular para se dirigir ao
seu "companheiro de debate". Pela primei-
ra vez esse companheiro é explicitamente
identificado como judeu (17). O que Paulo
discute nessa seção é que o judeu não pode
confiar na lei nem na circuncisão para pro-
tegê-lo do juízo de Deus. Os judeus viam
isso como sinais de sua condição especial
na aliança diante de Deus e acreditavam
que essa condição garantiria a salvação a
todos os judeus que deliberadamente não
o rejeitassem: Paulo não nega o valor da
lei nem o da circuncisão ou da condição
especial dos judeus; mas ele nega que esse
relacionamento especial confira imuni-
dade automática perante o justo juízo de
Deus. A palavra de Deus dada a Israel e
sua aliança com o povo são grandes privi-
légios; mas esses privilégios por si só não
podem justificar ou salvar ninguém. Como
fez repetidamente em toda a passagem de
2.1-16, Paulo afirma mais uma vez que a
lei e a circuncisão podem proteger o judeu
do juízo somente se praticar a lei. E, como
Paulo sugere nos v. 17-24 e afirma clara-
mente em 3.9-18, os judeus não são verda-
deiramente capazes de obedecer à lei.
O primeiro parágrafo, v. 17-24, é cons-
tituído de uma longa frase condicional
(17-23) e de uma citação conclusiva das
li
ROMANOS 2 .11
••
Escrituras (24). Em uma série de orações
condicionais, Paulo enumera os privilégios
que os judeus reivindicam para si mesmos
(17-20). Eles reivindicam o nome judeu,
o título honorifico herdado de seu ante-
passado Judá, que se tomou o núcleo do
povo escolhido de Deus. Eles repousavam
na lei, que Paulo chama no v. 20 a forma
da sabedoria e da verdade. Os gentios têm
acesso limitado a determinados conheci-
mentos sobre Deus por meio da "revelação
natural" (1.18,19,25,28,32); mas os judeus
têm uma revelação muito mais clara e
completa na lei de Moisés. Pelo fato de se-
rem instruídos por essa lei, os judeus [co-
nhecem] a sua vontade e podem [aprovar]
as coisas excelentes (18). E, pela mesma
razão, os judeus podem legitimamente rei-
vindicar o direito de instruir outras nações
que não foram abençoadas com a revelação
tão clara da vontade divina (19,20). O pa-
pel de Israel no ensino em relação ao resto
do mundo é afirmado no AT - a nação, o
"servo do Senhor" deveria ser "luz para
os gentios" e "abrir os olhos aos cegos"
(Is 42.6,7; 49.6). (Essa tarefa, na qual a
própria nação de Israel falhou, foi cumpri-
da pelo servo do Senhor, Jesus Cristo).
Nos v. 21-23, Paulo recorre a uma sé-
rie de perguntas para lembrar os judeus de
seu fracasso nesse aspecto, introduzidas
por pois. O que nos surpreende é o fato
de Paulo selecionar tais pecados - rou-
bo, adultério e roubo de templos (prova-
velmente referindo-se à utilização de me-
tais em artigos de idolatria; cf Dt 7.26)
- como exemplos da incapacidade dos
judeus em cumprir a lei. Pois não teriam
os judeus respondido em sua grande maio-
ria que nunca tinham desobedecido a esses
mandamentos? Talvez a resposta seja que
Paulo está assumindo a extensão radical
da lei feita por Jesus: "Quando o roubo, o
adultério e o sacrilégio são entendidos do
modo estrito e radical, não há um homem
sequer que não seja culpado de todos os
três" (C. K. Barrett, A Commentary on the
Epistle to the Romans [Harper & Row,
ROMANOS 2 1694
1957]). Mas não há nada nesse contexto
que sugira que Paulo está assumindo tal
perspectiva. Talvez Paulo tenha selecio-
nado esses pecados em particular devido
à sua importância dentro da lei (e tomado
a expressão roubando templos como uma
forma de idolatria). Paulo não está aqui
tentando provar que todos os judeus come-
tem esses pecados, mas que eles são indi-
cações especificamente claras do contraste
entre a teoria e a prática que impregnava o
judaísmo. Paulo exprime acentuadamente
esse contraste na última de suas perguntas
retóricas (23): Tu, que te glorias na lei, de-
sonras a Deus pela transgressão da lei?
As consequências desse contraste entre a
alegação e a realidade são destacadas na
citação de Isaías 52.5 no v. 24. Aqui talvez
haja ironia no fato de Paulo transferir a res-
ponsabilidade pela blasfêmia do nome de
Deus dos gentios (como está no contexto
do AT) para o próprio povo de Israel.
A circuncisão, assim como a lei de
Moisés, era um sinal particularmente im-
portante da condição especial dos judeus
(alguns rabinos alegavam que "nenhum
homem circuncidado iria para o inferno").
Paulo, porém, afirma que a circuncisão
somente teria valor se o judeu observasse
a lei. Ou seja, o judeu que violasse a lei
perderia o valor da circuncisão. O simples
fato de pertencer a Israel, simbolizado na
circuncisão, não pode salvar uma pessoa
do justo juízo de Deus. Pois Deus julga
uma pessoa "segundo o seu procedimento"
(2.6), e é apenas pela "observância da lei"
que a circuncisão terá algum valor. Não
fica claro se com isso Paulo quis dizer que
a circuncisão terá beneficio salvífico, se
for acompanhada do cumprimento da lei
que brota de um coração sincero, motivado
pela fé (v., e.g., Murray, Cranfield), ou se
ele quis dizer que a circuncisão nunca pode
ter poder salvífico, pois ninguém é capaz
de cumprir a condição de observar a lei (v.,
e.g., Calvin, Bruce). Mas esta última tese
parece preferível, uma vez que o propósi-
to de Paulo nessa parte da carta parece ser
o de negar qualquer beneficio salvífico da
circuncisão e da lei.
Se os judeus que falham no cumprimen-
to da lei perdem o valor de sua circunci-
são, não poderia a incircuncisão [do gentio
que] observa os preceitos da lei, ser, por-
ventura, considerada como circuncisão?
(26). Essa é uma decorrência lógica do v.
25. E Paulo vai além no v. 27: Tal pessoa
incircuncisa que obedece à leijulgará a ti,
que, não obstante a letra e a circuncisão,
és transgressor da lei. A letra ("Lei escri-
ta", NVI) é a tradução do vocábulo grego
gramma, que Paulo usa em outras passa-
gens para indicar a lei de Moisés (cf v. 29
e Rm 7.6; 2Co 3.6,7). A lei exige daqueles
a quem se destina uma obediência que por
si mesma não pode assegurar. Esses ver-
sículos são ocasionalmente interpretados
no sentido de que pessoas que nunca ou-
viram o evangelho poderão ser salvas se
seguirem os ditames de sua consciência.
Mas isso é claramente contrário ao que
Paulo afirma em outras passagens (3.20).
Preferível é o ponto de vista de que essas
pessoas incircuncisas que observam a lei
são os cristãos gentios (Murray, Cranfield,
Godet). Mas será que Paulo alguma vez
fez do cumprimento da lei um meio de
salvação? Provavelmente, assim como
em 2.7 e 10, Paulo adianta esse corolário
apenas como uma possibilidade teórica:
caso um gentio pudesse verdadeiramente
cumprir os preceitos da lei (possibilidade
que Paulo nega veementemente em ou-
tras passagens), ele seria salvo (cf Calvin,
Kãsemann, Wilckens).
Os v. 28,29 explicam por que a circun-
cisão não garante a salvação e por que a
incircuncisão não exclui a salvação. Pois
a circuncisão que conta diante de Deus é a
do coração, realizada "pelo Espírito" (NVI).
O que Paulo diz aqui não é evidentemente
nada novo; o próprio AT utilizou essa lin-
guagem para exigir transformação inte-
rior (e.g., Dt 10.16; Jr 4.4), e, assim como
Paulo, enfatizou que somente o Espírito
de Deus poderia efetuar tal transformação
 1695
(Ir 31.31-34; Ez 36.26,27). Mas o que era
uma questão de expectativa para os profe-
tas do AT se tomou realidade na nova alian-
ça inaugurada em Jesus Cristo. Assim, a
linguagem de Paulo aqui conduz o cp. 2 a
um clímax, ao sugerir a verdade, ou seja,
que tomar-se membro da família de Deus
não é uma questão de ser judeu, uma con-
dição decorrente da aliança, ou de cumprir
a lei, mas sim de ser nova criação por meio
do Espírito de Deus.
3.1-8 A fidelidade de Deus e os ju-
deus. Em seu ataque às pretensões dos
judeus no cp. 2, Paulo escreveu como se
agora não mais houvesse diferença entre
judeus e gentios (v., e.g., v. 9,10, 26-29).
Mas isso seria interpretar seu argumento
de maneira equivocada. O propósito de
Paulo era mostrar que o fato de ser judeu
simplesmente por ser judeu não apresen-
tava nenhuma vantagem em relação aos
gentios no juízo de Deus. Paulo, pregador
experiente que era, sabia que seu argumen-
to poderia ser mal-interpretado; por isso
ele acrescentou no final da sua exposição
uma discussão detalhada sobre o pecado
dos judeus, na qual ele afirma as vantagens
dos judeus e delineia a natureza e as limita-
ções dessas vantagens. Naturalmente essa
questão despertaria o interesse especial-
mente dos judeus e judeus cristãos; mas no
aspecto em que suscita perguntas sobre a
própria coerência e confiabilidade de Deus
~ pois é bom lembrar que a circuncisão
e a lei foram dadas por Deus ao povo de
Israel ~ a questão também despertaria o
interesse dos gentios.
C. H. Dodd alegou que a resposta lógi-
ca à pergunta que Paulo faz no v. 1 é "não",
não há mais nenhuma vantagem em ser ju-
deu nem na própria circuncisão. Ele acre-
ditava que a resposta contrária de Paulo
~ Muita, sob todos os aspectos! ~ de-
corre de seu compromisso emocional com
seus "irmãos segundo a carne". Mas isso
é interpretar de maneira equivocada a teo-
logia cuidadosamente equilibrada de Israel
que Paulo elabora. Os judeus não têm um
ROMANOS 3
relacionamento salvífico com Deus por di-
reito de herança; mas eles têm inegáveis
vantagens, principalmente porque aos ju-
deus foram confiados os oráculos de Deus.
Muita, no início de v. 2, sugere que Paulo
iria continuar a enumerar outras vantagens,
mas desviou-se de seu propósito e nunca
terminou a lista (cf, entretanto, Rm 9.3-5).
O maior dom de Israel são as Escrituras,
a própria palavra de Deus (do grego,
ta logia, "os oráculos", utilizado 24 vezes
em Sll19 da palavra de Deus). É bem ver-
dade que alguns judeus não se provaram
fiéis a essa palavra: eles nem obedeceram à
lei nem aceitaram a Jesus pela fé. Mas a in-
fidelidade humana nunca poderá diminuir
a fidelidade de Deus (3). Mesmo quando
alguém é mentiroso, Deus continua a ser
verdadeiro (4a). A maioria dos estudiosos
vê nesses versículos uma afirmação posi-
tiva da fidelidade contínua de Deus para
com o seu povo Israel, que, como Paulo
deixa claro em Romanos 11, não foi rejei-
tado por Deus (11.1,2) e que um dia será
salvo (11.25,26). No entanto, embora sem
dúvida o aspecto positivo da fidelidade de
Deus esteja presente, o v. 4b sugere que
também há um aspecto negativo dessa fi-
delidade. Paulo cita aqui a declaração de
Davi em Salmos 51.4 de que Deus foi justo
em castigá-lo, pois ele de fato pecou (no
seu relacionamento com Bate-Seba). O
ponto é que Deus é justo quando julga. À
luz disso, deveríamos entender que Paulo
está afirmando nos v. 3,4 a fidelidade de
Deus em todos os aspectos de sua palavra
a Israel. E essa palavra tanto promete bên-
çãos pela obediência quanto ameaça de juí-
zo pela desobediência (cf Dt 28; 30.11-20).
Então a fidelidade de Deus à sua palavra
não evita o julgamento do povo judeu pelos
seus pecados (v. ênfases semelhantes em
Ne 9.32,33; Lm 1.18. Salmos de Salomão
2.18; 3.5; 4.8; 8.7).
Mas essa afirmação suscita outra ques-
tão: se a justiça de Deus se toma ainda
mais evidente por meio da injustiça hu-
mana, seria justo que Deus julgasse essa
ROMANOS 3 1696
injustiça (5)? Alguns (e.g., Murray) acre-
ditam que Paulo está sugerindo isso como
uma questão sobre o relacionamento de
Deus com os seres humanos em geral. Mas
o contexto judaico da argumentação toma
provável que ele ainda esteja pensando na
injustiça dos judeus especificamente. A
justiça de Deus não pode significar aqui o
que significou em 1.17 - a justiça reden-
tora de Deus - mas deve se referir à sua
fidelidade, como as palavras paralelasfide-
!idade (3), verdadeiro (4) e verdade (7) su-
gerem. O AT frequentemente usa a palavra
"justiça" (no hebraico, tsedeq ou tsedãqâ;
traduzida na LXX pela mesma palavra grega
que Paulo utiliza aqui, dikaiosynêi para se
referir à fidelidade de Deus (e.g., SI 31.1;
36.5,6; Is 38.19; 63.7). Os estudiosos fre-
quentemente alegam que essa fidelidade se
refere ao compromisso de Deus em cum-
prir suas obrigações positivas na aliança
com Israel. Mas muitos textos sugerem
um conceito mais elementar, no qual a fi-
delidade de Deus é para com a sua própria
pessoa e palavra; e em alguns desses con-
textos a "justiça" de Deus é demonstrada
no seu justo juízo em relação aos pecados
de seu povo (e.g., SI 67.4; 94.15; Is 5.16;
10.22). Uma vez que o v. 4 proclamou
que Deus é "verdadeiro" (dikaiõthêsi em
castigar o pecado, essa ideia mais básica
da justiça de Deus deve estar presente no
v. 5. O fato de os judeus não obedecerem
à palavra de Deus trouxe juízo sobre eles,
e por isso destacou a fidelidade de Deus
em sua palavra de ameaça de juízo sobre
o pecado. Mas qualquer que possa ser o
resultado positivo do pecado, Deus nun-
ca é injusto em castigá-lo. Julgará Deus
o mundo e o fará em completa justiça (cf
Gn 18.25; Jó 8.3; 32.10-12). Os v. 7,8 re-
petem a objeção do v. 5 em outros termos,
mas o v. 8 lança nova luz sobre a natureza
dessa questão para Paulo. Como ele sugere
aqui, ele mesmo tem sido acusado de pre-
gar uma doutrina que leva a uma conclu-
são do tipo Pratiquemos males para que
venham bens. A afirmação de Paulo de que
Deus é 'justo", mesmo quando julga os pe-
cados dos judeus, é entendida por alguns
judeus como se significasse que o pecado
é portanto justificado. Paulo não se com-
promete a fazer uma defesa lógica de sua
condição aqui, mas simplesmente pronun-
cia uma condenação sobre aqueles que su-
gerem uma conclusão tão blasfema (8b).
3.9-20 A culpa de toda
a humanidade
Embora as breves questões que iniciem o
v. 9 o conectem aos v. 1-8, fica claro que
Paulo começa aqui uma síntese e aplica-
ção do argumento que ele começou em
1.18. Ele demonstrou que a ira de Deus
recai com justiça tanto sobre os gentios
(1.18-32) como sobre os judeus (2.1-
3.8). Assim, conclui Paulo, todos os po-
vos estão "debaixo do pecado". Paulo re-
força essa conclusão com uma prova do
AT (10-18) e então aplica o princípio aos
judeus (19,20).
A afirmação de Paulo sobre a conti-
nuação da vantagem dos judeus em 3.1-8
(especialmente nos v. 1-3) estimula a sua
pergunta: Temos nós [os judeus] qualquer
vantagem? Sua resposta - Não, de forma
nenhuma! - não tem a intenção de desdi-
zer o que ele disse nos v. 1-3, mas de im-
pedir a conclusão de que a dádiva de Deus
aos judeus dá a eles alguma vantagem no
juízo de Deus. Paulo defende esse ponto
lembrando seus leitores de que ele já de-
monstrou que todos, tanto judeus como
gregos estão debaixo do pecado. Estar
"debaixo do pecado" significa não apenas
"ser um pecador"; significa também ser
um escravo indefeso do poder do pecado
(cf 6.15-23).
Paulo realça sua conclusão sobre a
pecaminosidade universal com uma série
de citações do AT. Essas coletâneas de ci-
tações tematicamente ligadas eram popu-
lares entre os rabinos, e alguns pensavam
que Paulo poderia estar aqui citando uma
coletânea cristã já disponível. O propósito
dessa série é ilustrar especialmente o ter-
 1697
mo "todos" do v. 9: observe a repetição da
expressão não há (v. 10,11,12) e o retomo
ao tema da inclusão de todos nos v. 19,20:
se cale toda boca, e todo mundo, ninguém.
Os textos à primeira vista parecem estar
dispostos aleatoriamente, mas há indícios
de certa atenção à estrutura e sequência. A
primeira linha, Não há justo, nem um se-
quer, é o título, e então Não há, no v. 18,
o retoma para concluir a série. Os v. 11,12
desenvolvem a primeira linha com cinco re-
petições genericamente sinônimas do tema
"não há justo, nenhum sequer". Todas essas
citações são extraídas de Salmos 143.1-3.
Paulo continua a citar Salmos (5.9; 140.4;
10.7) nas quatro linhas seguintes (13,14),
sendo que cada uma delas retrata os peca-
dos da fala. Os v. 15-17, por outro lado,
utilizam citações de Isaías 59.7,8 para ilus-
trar pecados da prática de violência contra
os outros. Significativamente, enquanto
algumas das passagens do Ar que Paulo
cita descrevem os inimigos de Israel, ou-
tras (e.g., Is 59.7,8) referem-se a pecados
do povo de Israel. Então Paulo defende
novamente de maneira sutil a tese de que
os judeus também devem ser contados na
categoria dos "maus".
A aplicação que Paulo faz do ensino
dos v. 9-18 (e indiretamente de 1.18-
3.18 como um todo) aos v. 19,20 revela
uma vez mais a sua preocupação com a
condição dos judeus. Ele lembra seus lei-
tores de que suas citações foram extraídas
da lei (nomos), palavra que aqui se refere
às Escrituras como um todo (cf também
lCo 9.8,9; 14.21,34; GI4.2Ib). Mas essa
lei é dirigida especialmente àqueles que
vivem na lei ("estão debaixo dela", NVI),
isto é, os judeus (cf 2.12; 3.2). Daí Paulo
concluir que se cale toda boca - ninguém
tem nenhuma defesa para oferecer diante
de Deus (cf Jó 5.16; SI 63.11; 107.42)
- e todo mundo seja culpável perante
Deus, aguardando a sentença de condena-
ção. Paulo pode validamente extrair essa
conclusão universal a partir da prova es-
criturística do pecado dos judeus porque
ROMANOS 3
ao demonstrar o pecado do próprio povo
da aliança ele provou a parte mais difícil
de sua tese. Se até mesmo os judeus são
condenados, então ninguém pode escapar
da mesma sentença.
Isso significa, por sua vez, que ninguém
será justificado diante dele por obras da
lei (20a). O fato de todas as pessoas esta-
rem "debaixo do pecado" (3.9) significa
que nenhuma pessoa pode sempre obede-
cer à lei de Deus o suficiente para merecer
se apresentar diante dele. Ao colocar isso
em termos de obediência à lei, Paulo está
novamente pensando particularmente na
situação dos judeus. Mas a obediência dos
judeus à lei é uma instância da obediên-
cia humana aos preceitos morais de Deus.
Ao considerar as "obras da lei" dos judeus
insuficientes para alcançar a salvação,
Paulo implicitamente considera inadequa-
das também todas as "obras" humanas. O
poder do pecado mantém todas as pessoas
sob seu domínio inexorável, e nada do que
nós fizermos pode nos libertar disso. Qual
é, então, o propósito da lei de Moisés? Pela
lei vem o pleno conhecimento do pecado.
Ao demonstrar detalhadamente a vontade
de Deus, a lei toma absolutamente claro
que é ao Deus vivo que ofendemos quan-
do pecamos. Assim dá à humanidade uma
compreensão clara da sua "responsabilida-
de" (cf v. 19) diante de Deus.
Nota. 20 As obras da lei ("obediência
à lei", NVI) é a tradução de ergõv nomou
(v. também Rm 3.28; GI 2.16; 3.2,5,10).
Tradicionalmente essa expressão é enten-
dida como qualquer coisa que uma pessoa
faça em obediência à lei de Deus. Essa é
a interpretação adotada no comentário aci-
ma, e acreditamos existirem boas razões
para aceitá-la. Embora a expressão não
apareça em nenhuma outra parte do texto
grego, uma expressão hebraica paralela é
encontrada nos manuscritos do mar Morto,
e também lembra muito as frequentes re-
ferências rabínicas às "obras" e aos "man-
damentos" - todas elas se referindo a fa-
zer aquilo que a lei geralmente exige. Mas
ROMANOS 3
estudiosos têm sugerido várias outras inter-
pretações nos últimos anos. A interpretação
de James Dunn provavelmente seja a mais
conhecida e significativa. Ele defende que
a expressão "obras da lei" se refira àquelas
áreas da vida dos judeus que os distingue
como o povo de Deus, especialmente a cir-
cuncisão, as leis da dieta judaica e a ob-
servância das festas. Então no v. 20 Paulo
estaria negando que a identificação dos
judeus por meio da aliança seja capaz de
justificar. Embora Paulo não ensine isso de
fato, tem-se a impressão de que esse versi-
culo está dizendo mais do que apenas isso.
Ao longo de 1.18-3.20, o foco de Paulo
esteve voltado para às "obras" em geral
(com referência específica aos judeus, cf
2.2,3,6-10,21-23,25-27), e assim não há
uma boa razão, quer seja na acepção ge-
ral da expressão, quer no próprio contexto,
para restringir seu significado a determina-
das obras ou a obras executadas segundo
determinada atitude.
3.21-26 A justiça de Deus
A "justiça" de Deus (dikaiosynês se encon-
tra no centro desse grande texto. É men-
cionada quatro vezes (21,22,25,26), en-
quanto a ocorrência de duas palavras cog-
natas "justificar" (dikaioõ; 24,26) e "justo"
idikaios; 26) reforça a sua centralidade.
Paulo desenvolve sua exposição sobre a
justiça de Deus em quatro etapas.
Primeiro, ele anuncia "a justiça de
Deus" (21). "Uma justiça que provém de
Deus" (NVI) é uma tradução possível, mas
certamente incorreta, pois Paulo está se re-
ferindo a uma ação que é de Deus (como
em 1.17) e não a um dom ou condição
"que provém de Deus". O vocabulário de
Paulo deliberadamente relembra 1.17, à
medida que ele retoma, depois do pano de
fundo necessário de 1.18-3.20, ao tema
de 1.18---4.25. Aqui, no entanto, o foco de
Paulo está menos voltado ao modo como a
ação de Deus em "tomarjusto" ou justificar
se revela na pregação do evangelho, e mais
ao fundamento histórico dessa justificação
1698
na cruz de Cristo (o tempo verbal se ma-
nifestou sugere isso). Além disso, em uma
confirmação positiva do que ele disse em
3.20, Paulo deixa claro que essa justiça de
Deus foi manifestada sem lei. A tradução
da NVI sugere que essa expressão poderia
modificar o que vem antes dela: "uma jus-
tiça que provém de Deus, independente da
lei", mas a expressão provavelmente mo-
difica o verbo. A tese de Paulo é que uma
nova era no plano de Deus havia chegado
agora e que sua forma de trazer as pessoas
a um relacionamento com ele mesmo ocor-
re fora dos limites da antiga era, da qual
a lei mosaica era um componente central.
Mas ao mesmo tempo Paulo é cuidadoso
em enfatizar a continuidade do plano de
Deus. Ajustiça de Deus pode não ter lugar
na antiga era ou aliança; mas a lei e os pro-
fetas daquela aliança testificam dela.
Na segunda etapa de sua exposição,
Paulo destaca o caráter universal da justiça
de Deus. Experimentar a ação justificadora
de Deus é algo possível somente mediante
a fé em Jesus Cristo, e é para todos e sobre
todos os que creem; pois todos igualmen-
te precisam da justiça de Deus, uma vez
que todos pecaram e carecem da glória
de Deus (22,23). A tradução mediante a
fé em Jesus Cristo pressupõe que o geni-
tivo lesou Christou é objetivo, mas muitos
estudiosos estão convencidos de que é um
genitivo subjetivo e traduzem a expressão
por "fé [ou fidelidade] de Jesus Cristo".
Paulo estaria dizendo então duas coisas
distintas no v. 22b: que a justiça de Deus
se baseia na fidelidade de Cristo e que está
disponível a todos os que crerem. Esta é
certamente uma interpretação possível,
mas provavelmente é melhor ficarmos com
a primeira tradução. A ideia da "fidelidade"
de Cristo (expressa com a palavra pistis)
não é claramente comprovada em outras
passagens de Paulo, ao passo que toda essa
seção de Romanos volta seu foco repeti-
damente à centralidade da fé humana em
Cristo para a justificação (v. especialmen-
te o v. 26 no final desse parágrafo). Paulo
 1699
então repete a noção de fé humana no v. 22
porque pretende dizer tanto que a justiça
de Deus vem somente pela fé em Cristo e
que ela vem para todos que tenham tal fé. O
v. 23 é um resumo sucinto de 1.18-3.20.
A terceira parte do parágrafo (24,25a)
chama a atenção para a fonte da justiça
de Deus. Sendo justificados no início do
v. 24 faz referência à justiça de Deus nos
v. 21,22. A ação de Deus de colocar as pes-
soas em um novo e justo relacionamento
com ele é um ato de pura graça: ele age
sem compulsão e à parte de quaisquer "ra-
zões" que não sejam sua própria vontade
(v. também 4.4,5,13-16; 11.6). É por essa
razão que a fé, um ato de aceitação e entre-
ga, é necessária para que se experimente
essa justiça. A nossa justificação, além dis-
so, tem sua fonte na redenção que há em
Jesus Cristo. Redenção (apolytrõseõs) é
mais um termo teológico importante desse
parágrafo. Ele denota um ato de "resgate
da escravidão" e sugere que Deus forneceu
em Jesus Cristo um "pagamento" total pe-
los nossos pecados para que sejamos liber-
tados das amarras do pecado (cf 3.9) para
servir a um novo senhor.
O v. 25 dá continuidade a esse pensa-
mento ao descrever mais detalhadamente a
natureza da obra de Cristo na cruz por nós.
A palavra-chave é hilastêrion, propiciação,
traduzida por "sacrifício para propiciação"
na NVI. Muitos acreditam, em função do uso
dessa palavra no grego secular, que ela sig-
nifique "propiciação" aqui, isto é, um ato
que afasta e aplaca a ira de Deus. Outros
(Dodd, e.g.) insistem em que a palavra
significa "expiação" (v. RSV), um ato pelo
qual os pecados são perdoados e "apaga-
dos". Mas a evidência do uso da palavra na
LXX aponta para uma direção ligeiramente
diferente e mais ampla. A palavra na LXX
normalmente se refere ao "propiciatório",
um componente do tabernáculo. A palavra
é particularmente importante em Levítico
16, em que o ritual do Dia da Expiação é
prescrito. É sobre esse "propiciatório" que
o sangue do sacrificio é aspergido, para
ROMANOS 3 - :
•
•
a "expiação" do povo. Uma vez que em
sua única outra ocorrência no NT (Hb 9.5)
hilastêrion se refere a esse propiciatório,
parece provável que Paulo utilize a palavra
com esse significado. Sua tese então seria a
de que Jesus Cristo é o equivalente neotes-
tamentário do propiciatório do AT.
Uma vez que esse "propiciatório" foi
o lugar onde Deus tratou do pecado de seu
povo, assim, agora, Jesus Cristo foi mani-
festado (publicamente, para que todos vis-
sem), como o "lugar" onde Deus agora tra-
ta em definitivo e para sempre do pecado
do seu povo. A expiação agora tem lugar
nele, e essa expiação, como no AT, inclui
tanto o perdão dos pecados - a expiação
propriamente dita - quanto o aplacamen-
to da ira de Deus - a propiciação. Essa
propiciação obviamente está muito distan-
te do tipo de "suborno" dos deuses capri-
chosos e egocêntricos característicos de al-
gumas religiões antigas. A propiciação que
ocorreu na cruz é dom do próprio Deus e
envolve a satisfação da sua própria justiça
e da ira santa pelo pecado.
A quarta etapa da exposição de Paulo
sobre a justiça de Deus afirma que o modo
como Deus justifica os pecadores mantém
a sua justiça e santidade (25b,26). A chave
para compreender esses versículos é perce-
ber que a "justiça de Deus" tem um signifi-
cado diferente aqui do que nos v. 21,22. Tal
como em 3.5 (v. as notas ali), os versículos
se referem à fidelidade de Deus a si mes-
mo e à palavra de um modo geral. Por essa
razão a ARA traduz dikaiosynê por "justiça"
em ambas as ocorrências nesses versículos.
Deus no passado "ignorou" - deixou de
punir com toda severidade (paresis) - os
pecados do seu povo. Ele justificou pessoas
como Abraão e Davi, sem remover toda
a pena por seus pecados. Essa pena agora
foi paga por Cristo na cruz, revelando que
Deus é justo tanto por ignorar esses peca-
dos anteriormente cometidos (25b) como
por justificar os pecadores no tempo pre-
sente (26a). Assim, em uma frase que re-
sume todo o parágrafo, Deus é agora visto
ROMANOS 3
como o que é justo e ojustificador daquele
que temfé em Jesus (26b). James Denney
nos fornece seu próprio resumo desse pa-
rágrafo: "Não pode haver evangelho algum
a menos que exista tal coisa como a justi-
ça de Deus para o ímpio. Mas tampouco
pode haver evangelho se a integridade do
caráter de Deus não for mantida. O pro-
blema do mundo pecador, o problema de
toda religião, o problema de Deus em lidar
com uma raça pecadora está em como unir
essas duas coisas. A resposta cristã para o
problema é dada por Paulo nessas palavras:
'Jesus Cristo, a quem Deus propôs, no seu
sangue, como propiciação (ou com poder
3.27b,28 o homem é
justificado pela fé
independentemente
das obras
3.27-31 "Somente pela fé": declaração
inicial. No estilo de debate que ele tanto
usa em Romanos, Paulo desenvolve sua
argumentação junto com outra pergunta:
Onde, pois, a jactância? ("Onde está, en-
tão, o motivo de vanglória?", NVI). Paulo
provavelmente faz essa pergunta tendo em
mente os judeus em particular. Como ele
observa em outras passagens, os judeus ti-
nham a tendência de contar com suas obras
como base para seu relacionamento com
Deus (9.30-10.3, cf Fp 3.2-9). A provi-
são da justiça de Deus "independentemen-
te das obras da lei" (28) e mediante a fé
em Jesus Cristo (21,22) revela a insensatez
do orgulho por tal realização. Foi de todo
excluída, Paulo alega, pela lei da fé. A pa-
lavra lei traduz o grego nomos, e muitos
estudiosos acreditam que nomos se refere
aqui, como geralmente acontece em Paulo,
1700
propiciatório)''' (1. Denney, The Death of
Christ [Tyndale, 1951], p. 98).
3.27-4.25 "Somente pela fé"
Essa passagem desenvolve um elemen-
to-chave na grande síntese teológica de
3.21-26: a fé como o único meio de jus-
tificação. Paulo desenvolve essa tese em
duas etapas, sendo a primeira delas uma
declaração geral (3.27-31) e a segunda
(4.1-25) uma elaboração a respeito de um
caso específico - Abraão. As duas se-
ções não apenas têm seu foco no mesmo
tema, como também se desenvolvem da
mesma forma:
Abraão foi justificado pela fé e 4.3-8
não pelas obras
à lei mosaica. A tese de Paulo seria, então,
que a jactância é excluída quando se perce-
be na lei não apenas a exigência de obras
("obediência à lei", NVI), mas também o
seu apelo subjacente por fé. Mas o fato
de o v. 28, que parece ser uma elaboração
feita por Paulo do v. 27, contrastar "obras
da lei" e "fé" faz com que essa interpreta-
ção seja improvável. Traduzir nomos por
"princípio" (NVI) é possível, e faz mais sen-
tido no contexto: a jactância dos judeus é o
produto de sua preocupação com a lei e sua
exigência por obras, que será vista como
revogada quando for reconhecida a verda-
de de que um homem é justificado pela fé
independentemente das obras da lei (28;
obras da lei ["obediência à lei", NVI] traduz
novamente ergõn nomou).
Nos v. 29,30, Paulo cita o ensino cen-
tral dos judeus sobre a unicidade de Deus

1701
(Dt 6.4) como mais um argumento a favor
da exclusividade da fé. Pois se Deus deve
ser verdadeiramente o Deus de todos os
seres humanos, então todos os povos de-
vem ter igual acesso a ele, e pelos mesmos
meios. A lei de Moisés, a Torá, não pode
mais continuar sendo um "muro divisório"
entre judeus e gentios (Ef 2.11-22). Deus
justifica tanto os circuncisos (os judeus)
quanto os incircuncisos (os gentios) pela
fé. (O texto grego fala de Deus justificando
os judeus por [ek]fé e os gentios mediante
[dia] a fé, mas provavelmente não há ne-
nhuma diferença de significado).
O último versículo desse parágrafo (31)
revela novamente o desejo de Paulo de im-
pedir seus leitores de chegarem a uma con-
clusão extrema de sua argumentação con-
trária à lei. A rejeição franca de qualquer
papel da lei na justificação que Paulo faz
em favor da fé (20,21,27,28) não significa
que ele com isso procura anular a lei. Ao
contrário, insiste Paulo, nós corifirmamos
a lei. Infelizmente Paulo não explica aqui
como é que a sua pregação confirma (ou
"estabelece", do grego, histêmi) a lei. Ele
pode estar querendo dizer que a sua dou-
trina da justificação pela fé está plenamen-
te de acordo com o ensino do Pentateuco
("a lei"), como ele deixa claro no cp. 4.
Entretanto, uma vez que o seu foco nos v.
27,28 esteve voltado às exigências da lei, o
mais provável é que ele está ensinando que
a fé em si provê o que é necessário para
o pleno cumprimento dessas exigências.
Como Paulo formulará em 8.4: "a fim de
que o preceito da lei se cumprisse em nós",
isto é, nos fiéis cheios do Espírito.
4.1-25 "Somente pela fé": a fé de
Abraão. Paulo desenvolve agora os pon-
tos em que tocou por alto em 3.27-31, ao
se referir à história de Abraão. Era impor-
tante que Paulo citasse Abraão nesse mo-
mento, por duas razões. Primeiro, porque o
judaísmo tinha Abraão em alta estima mas
tendia a vê-lo como um grande pioneiro da
"religiosidade da Torá", um homem que
agradara a Deus acima de tudo por sua
111
ROMANOS 4 _-
-li
obediência à lei. Em segundo lugar, por-
que Abraão, o ancestral do povo judeu que
recebera a promessa de Deus, ocupa um
lugar fundamental na história da salvação
do AT. Particularmente era assim que Paulo
entendia a questão, pois ele via que um
dos erros principais de seus contemporâ-
neos judeus era enfatizar a aliança mosai-
ca em detrimento do arranjo anterior que
Deus fizera com Abraão (cf GI 3.15-18).
Paulo então precisa citar Abraão para mos-
trar que sua ênfase na justificação pela fé
não era uma doutrina nova, revolucionária,
mas sim algo que as Escrituras ensinaram
desde o princípio. Além do mais, Paulo faz
uso de Abraão para deixar absolutamente
claro o que de fato é a fé. Ele o faz em
uma série de contrastes que prenunciam
o grande princípio da Reforma, sola fide
("somente pela fé").
1-8 Nessa seção Paulo discute a ques-
tão fé versus obras. No que diz respeito
a esse assunto, isto é, em matéria de jac-
tância e justificação, a pergunta que inicia
esse capítulo - Que, pois, diremos ter al-
cançado Abraão, nosso pai segundo a car-
ne? - faz um paralelo com a pergunta que
inicia 3.27-31. Pois se Abrão tivesse sido
justificado por obras - como acreditavam
alguns judeus - então ele de fato teria
boas razões para se vangloriar, e a conclu-
são de Paulo de que a jactância fora excluí-
da (3.27) estaria comprometida. Mas não
diante de Deus (2b) é a resposta de Paulo
a essa suposição. Isso pode significar que
Abraão tinha razões para se vangloriar
diante de outras pessoas, mas "não diante
de Deus"; ou mais provavelmente que a hi-
pótese que Paulo apresentou - se Abraão
foi justificado por obras - deve ser refu-
tada quando colocamos a questão "diante"
do próprio veredicto de Deus. Esse vere-
dicto é dado nas próprias Escrituras: "Ele
[Abraão] creu no SENHOR, e isso lhe foi im-
putado para justiça" (Gn 15.6). Esse texto
toma-se a base para o restante da exposi-
ção de Paulo. Ele mostra que esse fato que
"lhe foi imputado para justiça", justamente
ROMANOS 4 1702
por se basear na fé, exclui as "obras" (4-
8), a circuncisão (9-12) e a lei (13-17). Ele
detalha a natureza e a força dessa fé que le-
vou Abraão à justiça (18-21) antes de citar
o seu texto, mais uma vez (22) deixando
clara, assim, a sua aplicabilidade aos seus
leitores (23-25).
O propósito de Paulo nos v. 4,5 é con-
trastar fé e obras. As obras, de um lado,
implicam uma situação de obrigação. Uma
pessoa que "trabalha" recebe um salário
que o empregador é obrigado a pagar. A
fé, por outro lado, implica uma situação
em que algo é concedido por liberalidade.
Como um ato de humilde aceitação, a fé
não exige nada do doador nem "obriga" o
doador a uma reação. Os contrastes mos-
tram claramente que a justificação deve
se basear na fé. Isso porque Deus é por
definição um Deus de misericórdia, um
Deus que justifica o ímpio (5). As pessoas
não são aceitas por Deus porque, por se-
rem justas, elas mereceram isso. É a "pes-
soa má" que Deus aceita, aquela pessoa
que não tem em si mesma nenhum direi-
to de pleitear sua causa. Aqui Paulo nos
lembra de uma das grandes verdades das
Escrituras: que as pessoas não têm direito
de reivindicar a atenção de Deus. A possi-
bilidade de nos relacionarmos com Deus
é uma dádiva gratuita a ser aceita com fé
e humildade.
Para realçar o ponto que Paulo está ela-
borando com base no Pentateuco (Gn 15.6),
ele acrescenta, bem à moda judaica, um
texto confirmatório dos "Escritos". Em
Salmos 32.1,2 Davi também deixa claro
que Deus justifica as pessoas independen-
temente de obras. A bênção, como Davi
deixa claro, não é uma questão relacionada
aos méritos de uma pessoa por algo que ela
tenha conquistado, mas sim ao fato de ela
ser perdoada por Deus. Paulo deixa claro
que a expressão "imputado para justiça"
em Gênesis 15.6 significa que Deus confe-
re à pessoa a condição de "justo", ou seja,
Deus a considera justa, e seus pecados não
mais são "contados" contra ela.
9-12 Essa condição de justo, essa
bem-aventurança não é baseada na cir-
cuncisão. Pois Deus julgou Abraão como
justo (Gn 15) bem antes de ele ser circun-
cidado (Gn 18; de acordo com os rabinos,
29 anos separaram os dois incidentes). A
circuncisão, assim, não foi a base para a
justiça imputada a Abraão, mas apenas um
sinal ou selo dessa justiça que Abraão já
possuía em virtude de sua fé. Dessa forma
Abraão é idôneo para ser o pai de todos
os que creem. Pois assim como os cris-
tãos gentios, Abraão fora justificado sem
ser circuncidado (llb), e da mesma for-
ma que os cristãos judeus, ele fora tanto
circuncidado como justificado pela fé. A
leitura que Paulo faz de Gênesis, à luz do
cumprimento do plano de Deus em Cristo,
permite que ele veja Abraão como mais do
que somente o pai da nação judaica (1, "o
nosso pai segundo a carne"), e sim como o
pai de todos os cristãos.
Nota. 12 A ordem das palavras nesse
versículo toma possível pensar que Paulo
tem em mente dois grupos distintos: os ju-
deus - "os circuncisos" - e os cristãos
judeus - "que não apenas são circuncida-
dos, mas que também seguem o caminho
de fé que o nosso Pai Abraão seguiu ...".
Mas a interpretação que se presume na tra-
dução da ARA (e também na NVI) é preferí-
vel. Ou seja, temos aqui somente um grupo
- o de cristãos judeus.
13-17 Em Gálatas 3, Paulo argumenta
que a lei mosaica não poderia ter tido re-
lação alguma com a condição de Abraão
diante de Deus porque a lei apenas se tor-
nou conhecida séculos depois de Abraão.
Aqui no cp. 4 Paulo prefere falar menos
"da história" e mais "de princípio". Para
mostrar que a obediência à lei não tinha
relação alguma com o fato de que a justiça
foi imputada a Abraão (13), Paulo cita a
fragilidade da própria lei (14,15), a graça
(16) o poder criativo de Deus (17b) e a "pa-
ternidade" universal de Abraão (16,17).
Se herdar as bênçãos de Abraão de-
pende da obediência à lei, anula-se a fé e
 1703
cancela-se a promessa. Isso porque, como
Paulo salientou anteriormente (3.9-20),
ninguém pode obedecer tanto assim à lei
a ponto de merecer ser justificado dian-
te de Deus. Assim, a lei não traz bênção,
mas, sim, ira (15). Ao explicar em detalhes
o que Deus exige, a lei só aumenta a res-
ponsabilidade do pecador diante de Deus.
Então quando a lei é desrespeitada, como
é inevitável acontecer, a culpa do pecador
é ainda maior do que seria sem a lei para
condená-lo. Esse é o ponto que Paulo de-
fende no v. 15, quando afirma onde não há
lei, também não há transgressão. Ele não
quer dizer que não exista "pecado" desas-
sociado da lei, mas sim que a forma espe-
cífica de pecado chamada "transgressão"
(do grego parabasis) pode existir apenas
em face dos mandamentos definidos e cla-
ros de Deus, pelos quais alguém é respon-
sabilizado. (Este é sempre o sentido da pa-
lavraparabasis em Paulo; Rm 2.23; 5.14;
Gl3.l9; lTm 2.14).
Paulo toca brevemente em uma segun-
da razão pela qual a justiça não pode vir
por intermédio da lei: basear a justiça na
lei significaria que ela seria baseada em
"obras", e isso anularia a graça de Deus
(cf 4.4,5). Esse ponto está relacionado ao
ponto que Paulo defende no final do v. 17,
quando diz que o Deus em quem Abraão
creu é nada menos do que o que vivifica
os mortos e chama à existência as coisas
que não existem. Isso aponta para a descri-
ção nos v. 18-21 da própria fé que Abraão
tinha, mas também reforça a ideia da liber-
dade e do poder criativo de Deus. Nesse
sentido, ela é paralela à designação ante-
rior que Paulo faz de Deus como aquele
que "justifica o ímpio" (5). A terceira razão
pela qual a justiça não pode se basear na
lei nos lembra o argumento que Paulo uti-
lizou em 3.29,30. A intenção de Deus era
estender a herança que ele tinha prometido
a Abraão a todas as pessoas, como o pró-
prio AT indica: "Por pai de muitas nações
te constituí" (Gn 17.5). Isso só poderia
acontecer quando a herança não fosse mais
ROMANOS 4
baseada em uma instituição específica de
Israel - a lei mosaica.
18-21 Nesse breve parágrafo, antes
de terminar sua exposição, Paulo faz uma
pausa para caracterizar de forma sucinta
a natureza da fé em Abraão. Paulo mos-
tra que Abraão tinha uma fé forte e coe-
rente, mesmo em face dos muitos indícios
de que o que Deus tinha prometido talvez
não acontecesse. De forma honesta ele en-
frentou o fato de que a sua idade e a es-
terilidade de Sara tomavam humanamente
impossível que a promessa de muitos fi-
lhos se cumprisse. Ainda assim, esperando
contra a esperança - esperança do tipo
que se baseia nas potencialidades huma-
nas comuns - Abrão creu "em esperança"
(NVI, ARe) - uma esperança do tipo que vê
além das circunstâncias, descansando nas
promessas e capacidade de Deus. Observe
a aplicação encorajadora que Calvino
faz desse parágrafo: "Vamos nos lembrar
também que a condição de todos nós é a
mesma de Abraão. Todas as coisas que nos
rodeiam estão em oposição à promessa de
Deus: Ele promete imortalidade, mas esta-
mos rodeados de mortalidade e corrupção;
ele declara que nos conta como justos, mas
estamos cobertos de pecados; ele testifica
que é benigno e amável para conosco, mas
juízos à nossa volta ameaçam a sua ira. O
que devemos fazer então? Nós devemos
fechar nossos olhos e prosseguir, ignoran-
do tudo relacionado conosco, de modo que
nada possa dificultar ou nos impedir de
acreditarmos que Deus é verdadeiro".
Nota. 20 A insistência de Paulo em que
Abraão não duvidou, por incredulidade
pode parecer inconsistente com a descren-
ça e o desdém de Abraão em relação à pro-
messa de Deus em Gênesis 17.17. A tese
de Paulo, porém, não é de que Abraão fos-
se uma pessoa perfeita, ou que nunca tives-
se dúvidas, mas antes que a atitude de seu
coração foi consistente com uma atitude de
fé e esperança na promessa de Deus.
22-25 Paulo conclui sua exposição so-
bre a fé do patriarca Abraão citando uma
ROMANOS 5
vez mais o seu texto-chave ~ Gênesis
15.6 ~ e deixando claro o que nele estava
implícito, que o versículo e seu significa-
do têm aplicação direta aos cristãos. Como
Abraão, nós também acreditamos no Deus
que vivifica os mortos; mais especifica-
mente, no Deus que ressuscitou dentre os
mortos a Jesus, nosso Senhor.
O v. 25 descreve a obra de Jesus, o
Senhor, em duas declarações paralelas
(pode ser que Paulo estivesse citando uma
antiga confissão cristã). A primeira decla-
ração faz referência a Isaías 53.12, da LXX,
em que se diz que o servo do Senhor foi
"entregue por causa dos pecados deles".
A preposição por causa de (no grego, dia)
na primeira linha provavelmente significa
"em razão de": Jesus foi entregue à mor-
te porque era necessário prover algo pelo
nosso pecado. Na segunda linha, no entan-
to, a mesma preposição por causa de pro-
vavelmente significa "a fim de", "com o
propósito de": Jesus foi ressuscitado den-
tre os mortos com o propósito de prover
nossa justificação. Embora Paulo normal-
mente associe nossa justificação à morte de
Cristo, esse versículo mostra que a ressur-
reição de Cristo também desempenha um
papel importante em nossa justificação.
5.1-8.39 O evangelho e o
poder de Deus para a salvação
Se "a justiça que do princípio ao fim é pela
fé" (1.17, NVI) resume o tema de 1.18~
4.25, "o poder de Deus para a salvação"
encerra a verdade central de 5.1~8.39. O
evangelho, ao revelar esse poder, assegura
não apenas a aceitação inicial do pecador
por Deus, mas a sua libertação final no dia
do juízo. "Se justificados, então certos da
salvação final" é o tema geral de Paulo,
um tema que é expresso especialmente no
início (cp. 5) e no final (cp. 8) da seção.
Entre esses capítulos, Paulo trata de dois
dos "poderes" que podem ameaçar essa li-
bertação futura do fiel justificado, a saber,
o pecado (cp. 6) e a lei (cp. 7), mostrando
em cada um desses casos que os cristãos
1704
tinham sido libertados do domínio desses
poderes. Assim, a estrutura dos cp. 5~8
é o que alguns chamam de "composição
em cruz" e outros de "quiasmo", no qual
há certa correspondência entre o primeiro
e o último elementos, bem como entre o
segundo e o penúltimo elementos e assim
por diante:
5.1-11 Certeza da glória futura
5.12-21 Base para essa certeza na obra
de Cristo
6.1-23 Liberto do poder do pecado
7.1-25 Liberto do poder da lei
8.1-17 Base para essa certeza na obra
de Cristo, mediada pelo Espírito
8.18-39 Certeza da glória futura
5. 1-11 A esperança da glória
Paulo começa uma nova seção da sua carta
em 5.1 (em vez de, por exemplo, em 6.1).
Isso é demonstrado pela transição "justifi-
cados, pois, mediante a fé" no v. 1; pela
mudança da ênfase na "fé" (33 ocorrências
em 1.18---4.25 contra apenas três nos cp.
5~8) para a ênfase na "vida" (24 ocor-
rências no cp. 5~8 contra apenas duas em
1.18---4.25); e pela clareza do tema e da
estrutura resumida acima.
Ecoa em todo esse trecho (cp. 5~8) a
questão criada pela tensão entre algo que
Paulo ensinava ~ que uma pessoa é jus-
tificada diante de Deus no minuto em que
crê ~ e a verdade bíblica acerca do dia do
juízo divino que deve ainda ser enfrentado.
Como essas duas verdades estão relaciona-
das? Posso ter certeza de que minha justifi-
cação agora será de algum proveito no dia
do juízo? A essa pergunta, Paulo responde
nesse parágrafo com um enfático "Sim!":
gloriamo-nos na esperança da glória de
Deus (2b) e a esperança não confunde
(5a). Nessas certezas encontramos o cerne
desse parágrafo.
Os v. 1,2a levam a essas certezas lem-
brando aquilo de que os cristãos que foram
justificados mediante a fé agora desfru-
tam: a paz com Deus, um relacionamento
 1705
no qual nós já não somos ameaçados pela
ira de Deus, o acesso [...] a esta graça
na qual estamos firmes, a participação
contínua nas bênçãos asseguradas pela
graça de Deus em Cristo. Paulo está, no
entanto, consciente das dificuldades que
os cristãos ainda enfrentam neste mun-
do. Contudo, essas dificuldades, longe de
ameaçarem nossa paz e segurança, real-
mente nos dão uma maior garantia delas
(3b,4). Pois os sofrimentos são usados por
Deus para produzir em nós perseverança,
a capacidade de resistir. Perseverança
produz caráter (dokimês, a força que re-
sulta somente de severas provações, e o
caráter, por sua vez, produz esperança.
Porque Deus trabalha dessa maneira em
nossa vida e porque devemos desejar an-
siosamente esse tipo de caráter e de espe-
rança, devemos nos alegrar em nossos so-
frimentos (3a). Paulo reproduz aqui uma
perspectiva comum dos primeiros cris-
tãos acerca do valor bem maior das vir-
tudes divinas se comparadas aos proble-
mas terrenos (v. também 8.18; Tg 1.2-4;
lPe 1.6,7 - uma perspectiva que muitos
cristãos atuais perderam de vista).
Os v. 5b-8 firmam a esperança cristã
(5a) sobre a fundação inabalável do amor
de Deus pornós em Cristo. O Espírito Santo
capacita o fiel a sentir no seu interior que
o amor de Deus é derramado [ekcheõ] em
[seu] coração. Somado a esse apreço inte-
rior está a demonstração histórica e objeti-
va desse amor de Deus por nós na cruz de
Cristo. No calvário foi mostrado ao mundo
um amor que em muito transcende o amor
humano típico, amor segundo o qual ape-
nas pelo bom (homem) alguém cogitaria
morrer (7). O fato de que Deus sacrificou
seu próprio filho pelos ímpios (6) e pelos
pecadores (8) - pelas mesmas pessoas
que se recusaram a honrá-lo e adorá-lo (cf
1.21,22) - é algo que faz parte apenas da
natureza do amor de Deus. Essa é a ideia
transmitida na expressão a seu tempo (6):
no exato momento em que ainda éramos
fracos, Cristo morreu por nós. Deus não
ROMANOS 5
esperou que déssemos o primeiro passo de
volta em sua direção, mas interveio em um
ato de pura graça, para nos providenciar
um caminho de volta.
Os v. 9,10 reúnem as partes principais
dos v. 1-8, repetindo a certeza da esperança
cristã (2,5a). Eles são, obviamente, para-
lelos. Paulo afirma a ligação indestrutível
entre a condição atual do fiel diante de
Deus (justificados pelo seu sangue, recon-
ciliados com ele) e a sua condição futura
(por ele salvos da ira). Seu argumento pas-
sa do "maior" para o "menor". Deus fez "a
coisa maior" ao nos trazer de volta a um
relacionamento com ele por meio do terrí-
vel preço pago pelo sangue de seu Filho,
ainda quando éramos inimigos de Deus.
Estávamos em uma situação de mútua hos-
tilidade, na qual a ira de Deus repousava
sobre nós (1.18) e éramos "aborrecidos de
Deus" (1.30). Certamente, então, Deus vai
fazer o que nos termos desse argumento é
a coisa "mais fácil": libertar a nós - aque-
les a quem ele já acolheu - do derrama-
mento de sua ira no dia do juízo. O v. 11
fecha o parágrafo com uma repetição final
de algumas de suas ideias principais: "nos
gloriamos" (2,3); a presente glória da re-
conciliação com Deus (lb,10); e, acima de
tudo, o fato de que essa glória e reconcilia-
ção vêm apenas por intermédio de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Nota. 1 Uma variante fortemente sus-
tentada traz, em vez do presente do indi-
cativo "temos" (echomen), o presente do
subjuntivo "tenhamos" (echõmen). Isso
tem o efeito de transformar o v. 1 em um
apelo para que desfrutemos a paz com
Deus, em vez de uma declaração de que
nós j á estamos desfrutando dela agora. No
entanto, apesar da força do seu apoio nos
manuscritos (nas duas cópias mais impor-
tantes das cartas de Paulo o verbo está no
subjuntivo) e da sua aceitação por mui-
tos estudiosos (e.g., Sanday-Headlam,
Murray), a formulação no indicativo faz
mais sentido nesse contexto e é ampla e
fortemente sustentada.
ROMANOS 5 1706
5.12-21 O reino de graça e vida
O poder da obediência de Cristo em su-
perar a desobediência de Adão é o gran-
de tema desse parágrafo. Paulo apresenta
Adão e Cristo como "figuras representati-
vas", cujos atos determinam o destino de
todos aqueles que a eles pertencem. Assim
como Adão pecou e por meio do seu pe-
cado trouxe o pecado e a morte a todos os
que pertencemos a ele (12a,18a,19a), as-
sim também Cristo obedeceu e por meio da
sua obediência trouxe justiça e vida para
todos os que pertencem a ele (18b,19b). A
ênfase recai sobre o aspecto da compara-
ção, "assim também". Paulo pressupõe a
verdade do pecado de Adão e o reinado da
morte que ela introduz, uma doutrina en-
contrada em outras passagens na literatura
judaica com ênfases variadas. O que Paulo
quer nos ensinar aqui é que Cristo, entre-
gando-se a si mesmo na cruz, estabeleceu
de modo semelhante um reino - mas um
reino de vida, em vez de morte, um reino
de graça (cf v. 15-17,21), em vez de ape-
nas desertos. Os fiéis podem estar certos da
vida eterna porque foram transferidos para
esse novo reino em que a graça e a vida rei-
nam (21). Esse ensinamento da certeza da
vida em Cristo apoia o que Paulo ensinou
em 5.1-11. Podemos ter certeza da salva-
ção final (9,10) pois nosso relacionamento
com Cristo nos assegura de que reinaremos
em vida (17).
Paulo começa a explicar seu ponto
principal sobre o paralelo entre Adão e
Cristo no v. 12, mas se interrompe a si
mesmo antes de terminar. Temos, por-
tanto, um assim como sem seu corres-
pondente "assim também" (a maioria das
traduções em inglês sinaliza a interrupção
no pensamento com um travessão no final
do versículo; o assim também que temos
no v. 12 nas versões em português não
dão continuidade à comparação inicia-
da no começo do versículo). Apenas nos
v. 18,19 Paulo retoma esse ponto para
completar a explicação da comparação.
Este assim como apresenta os efeitos uni-
versais do pecado de um só, Adão: a ofen-
sa de um trouxe a morte para o mundo e
por meio de um só (isto é, por meio do
ato de pecar) a morte se espalhou a todos
os homens. Muitos estudiosos pensam
que a "morte" a que Paulo se refere aqui
é apenas a morte física (Sanday-Headlam,
Godet, Murray); outros, que significa so-
mente a morte "espiritual". Mas ele pro-
vavelmente está falando de ambas, a se-
paração de Deus e a morte física, como o
juízo de Deus sobre o pecado.
A última frase do versículo explica
por que a morte se espalhou a todos os
homens, porque todos pecaram. (Como
se reconhece quase universalmente, o
grego eph hõ deve ser traduzido por "por-
que"). Isso pode significar simplesmente
que toda pessoa morre porque toda pes-
soa, em seu próprio corpo, peca. Mas a
ênfase de Paulo na maneira pela qual a
desobediência de um só homem levou
ao pecado e à condenação de todos (essa
ideia é repetida nos v. lOa e 19a) sugere
que no v. 12 também ele está pensando no
pecado de todos que acontece devido ao
seu relacionamento com Adão. O que ele
pode estar dizendo é que todas as pessoas
pecam (12) porque todas herdaram a "na-
tureza pecadora" e corrompida de Adão
(18,19). Mas os v. 18,19 sugerem uma re-
lação ainda mais estreita do que essa entre
o pecado de Adão e o nosso. Por isso seria
preferível pensar que o pecado de todas
as pessoas no v. 12 é um pecado que real-
mente ocorre "em" Adão. Paulo talvez
pense nisso em um sentido "biológico":
todos os seres humanos pecaram em Adão
porque estávamos todos potencialmente
"presentes" nele (v. um possível paralelo
a essa ideia em Hb 7.10). Ou ele talvez
esteja pensando nessa solidariedade em
um sentido "jurídico": como o nosso re-
presentante nomeado por Deus, o pecado
de Adão é considerado por Deus o pecado
de todas as pessoas ao mesmo tempo, e é
em consequência desse pecado que todas
as pessoas morrem. De todo modo, o pon-
 1707
to importante para Paulo, como também
para nós, é que todas as pessoas por força
de sua relação com Adão são pecadoras
sujeitas à pena de morte.
Paulo interrompe a comparação que
começou no v. 12 para inserir duas digres-
sões nos v. 13,14 e v. 15-17. A primeira
protege o ensino de Paulo acerca da uni-
versalidade da morte no v. 12 da possível
objeção de que as pessoas não podem ser
responsabilizadas por seus pecados se não
"transgrediram" a lei de Moisés (cf 3.20
e 4.15). Paulo simplesmente responde
declarando que a realidade universal da
morte já existia muito antes de a lei ser
entregue a Moisés. A segunda digressão
(15-17) destaca dois pontos de contraste
entre Adão e Cristo. Há, em primeiro lu-
gar, um contraste no que diz respeito ao
efeito das suas ações: A ofensa de Adão
trouxe condenação (16) e morte (17);
Cristo trouxe justificação (16) e justiça
(17). Em segundo lugar; há um contras-
te no que diz respeito ao poder desses
atos. O ato de Adão por certo foi forte
o bastante, acarretando pecado, morte e
sofrimento a todo o mundo. No entanto,
como Paulo afirma, muito mais poderoso
é o ato de Cristo e os seus efeitos (15,17).
Isso ocorre porque a graça de Deus está
em ação por meio de Cristo, e a graça de
Deus tem poder para muito mais do que
superar qualquer ato de Adão.
Nos v. 18,19 Paulo finalmente ex-
pressa a plena comparação entre Adão e
Cristo. Os versículos são paralelos, cada
um deles fazendo uma comparação en-
tre a maneira pela qual a desobediência/
transgressão de Adão trouxe condena-
ção e pecaminosidade e a maneira pela
qual por um só ato de justiça/obediência
Cristo trouxe justificação e retidão. Mas
será que o paralelo entre eles se estende
aos efeitos universais desses resultados?
Esse parece ser o caso, uma vez que
Paulo afirma no v. 18 que tanto os efei-
tos dos atos de Adão como os dos atos de
Cristo se estendem a todos os homens. No
ROMANOS 5
entanto, Paulo em outras passagens re-
pudia claramente a ideia de que todas
as pessoas serão salvas (e.g., Rm 2.12;
2Ts 1.8,9), e o v. 17 também deixa claro
que somente os que recebem a abundân-
cia da graça e o dom da justiça reinarão
em vida. Portanto, devemos compreender
o universalismo do v. 18 em termos da
importância representativa de cada in-
divíduo: os efeitos da ação do Cristo se
estendem a todos os que pertencem a ele,
assim como os efeitos da ação de Adão se
estendem a todos os que pertencem a ele.
Todas as pessoas, sem exceção, pertencem
a Adão (12); mas apenas aqueles que vêm
a ter fé, que "recebem o dom", pertencem
a Cristo (v. também 1Co 15.22,23).
O parágrafo conclui com mais uma ob-
servação sobre a lei (20) e um resumo final.
O fato de Paulo mencionar novamente a lei
(cf também v. 13,14) revela o quanto ele
está preocupado com as questões dos "ju-
deus" em Romanos. Seu argumento é que
a lei de Moisés nada fez para mudar a situ-
ação do pecado e da morte introduzidos no
mundo por Adão. Na verdade, a lei piorou
as coisas, aumentando a transgressão ao
tomar o pecado contra Deus uma rebeldia
ainda mais grave contra seus claros man-
damentos (v. comentário de 4.15). Ainda
assim, mesmo nos casos em que o pecado
abundou, a graça de Deus abundou ainda
mais. Como resultado, Paulo conclui, o
reinado de morte foi substituído pelo rei-
nado da graça para os que estão em Cristo,
trazendo para nós uma nova condição de
justiça (cf 3.21-4.25) e conduzindo ine-
vitavelmente à vida eterna, mediante Jesus
Cristo, nosso Senhor.
Nota. 12 Portanto traduz dia touto,
"por causa disso". Nesse contexto, a pala-
vra dia provavelmente tem um sentido "fi-
nal" - "para o bem de", "com o propósito
de" - e touto é provavelmente retroativo,
referindo-se a um tema já tratado nos v.
9,10, a certeza da salvação. Toda a expres-
são traduzida, então, significa "com o pro-
pósito de assegurar essa salvação final".
ROMANOS 6
6.1-23 Libertos da
escravidão do pecado
A insistência de Paulo em que os cristãos
que são justificados infalivelmente serão
salvos da ira de Deus (5.9,10) pelo fato de
terem passado, em união com Cristo, para
o reinado da graça e da vida (5.12-21) sus-
cita a questão do pecado na vida do cristão.
Não teria o pecado o poder de interromper
esse processo, impedindo o cristão jus-
tificado de alcançar a salvação e a glória
final? No cp. 6 Paulo trata dessa questão,
respondendo-a ao afirmar que os cristãos
não são somente libertados, em Cristo, da
pena do pecado - isto é, justificados -
mas também do poder do pecado - isto é,
santificados. Sem minimizar a ameaça con-
tínua que o pecado representa para a vida
cristã, Paulo insiste em que os cristãos fo-
ram colocados em uma nova relação com
o pecado, uma relação em que o pecado já
não tem o poder de nos "dominar", de nos
fazer cativos (cf v. 6,14,18,22). Ao longo
de todo o capítulo (e, como veremos no
próximo), Paulo retrata a experiência cris-
tã nos termos de uma transferência de um
"regime" ou "reinado" para outro. Tomar-
se cristão, como Paulo afirma, significa ser
libertado do regime antigo, dominado por
Adão (5.12-21), pelo pecado (cp. 6), pela
lei (cp. 7) e pela morte (cp. 8) e ser intro-
duzido em um novo regime, dominado por
Cristo (5.12-21; 7.1-6), pela justiça (cp. 6),
pelo Espírito (7.6; 8), pela graça (6.14,15)
e pela vida (5.12-21; 6.4; 8.1-13).
6.1-14 "Morte para o pecado" pela
união com Cristo. O contexto imediato
para a discussão de Paulo sobre o cristão e
o pecado é sua afirmação em 5.20b: "Mas
onde abundou o pecado, superabundou a
graça". O próprio Paulo faz a pergunta que
ele sem dúvida alguma teve de responder
muitas vezes em consequência da sua insis-
tência quanto ao poder da graça de Deus:
Permaneceremos [os cristãos] no pecado,
para que seja a graça mais abundante?
(1) Paulo rejeita veementemente qual-
quer inferência nesse sentido - De modo
1708
nenhum! - , explicando, por meio da ideia
central do capítulo, por que ele assim pro-
cede: Como viveremos ainda no pecado,
nós os que para ele [o pecado] morremos
(2)? O que Paulo diz com isso se toma cla-
ro à medida que ele desenvolve o conceito
no restante do capítulo: e não mais sirva-
mos o pecado como escravos (6,17,18,22);
o pecado já não terá domínio sobre nós
(14a). "Morrer para o pecado" não signifi-
ca ser insensível à sua tentação, pois Paulo
deixa claro que o pecado continua sendo
atraente para os cristãos e deve ser comba-
tido a cada dia (cf v. 13). Antes, significa
ser libertado da tirania absoluta do pecado,
do estado em que o pecado exerce domí-
nio incontestável, do estado em que todos
vivíamos antes da conversão (cf 3.9). Em
consequência dessa morte para o pecado,
não podemos continuar a viver nele (2b)
- pois o ato constante de pecar revela a
tirania do pecado, uma tirania da qual o
cristão já foi libertado.
Os v. 3-5 revelam o meio pelos qual
"morremos para o pecado": pela união com
Jesus Cristo em sua morte. O rito de inicia-
ção cristã, o batismo com água, coloca-nos
num relacionamento com Jesus Cristo e
de modo mais específico com a morte de
Cristo (3). Essa "união" com Cristo não é
uma fusão mística da nossa própria pessoa
com a de Cristo, mas um relacionamento
"jurídico" no qual Deus nos vê em asso-
ciação com seu Filho e assim aplica a nós
os benefícios conquistados por seu Filho.
Pode-se dizer, assim, que fomos sepulta-
dos com ele na [sua] morte pelo batismo.
O que Paulo diz com isso não é que o nos-
so batismo simplesmente simboliza, com
a submersão na água, a morte e o sepulta-
mento de Cristo, pois Paulo deixa claro que
fomos sepultados "com" ele, não "como"
ele. Antes, Paulo está dizendo que a nossa
fé, simbolizada pelo batismo, coloca-nos
num relacionamento com o próprio sepul-
tamento de Cristo. Por que essa referên-
cia ao sepultamento de Cristo? Em outras
passagens Paulo também inclui o sepulta-

1709
mento de Cristo como um elemento-cha-
ve no evangelho que ele prega: "Antes de
tudo, vos entreguei o que também recebi:
que Cristo morreu pelos nossos pecados,
segundo as Escrituras, e que foi sepulta-
do e ressuscitou ao terceiro dia, segundo
as Escrituras" (lCo 15.3,4; cf também
Cl 2.12). Aqui no cp. 6 Paulo afirma que
os fiéis se uniram a Cristo de tal maneira
que eles mesmos experimentam, cada um,
esses eventos: nós "morremos com Cristo"
(8; cf v. 3-6); fomos "sepultados com
Cristo"(4); e "com ele viveremos"(8; cf
v. 4,5). É essa união real por esses even-
tos redentores centrais que insere o cristão
numa nova relação com o poder do pecado.
A verdade básica do argumento de Paulo é
bem clara: Uma vez que a própria morte
de Cristo foi uma "morte para o pecado"
(lO), a nossa participação na sua morte
(3-6) significa que nós também "para ele
[o pecado] morremos" (2).
O batismo, como o v. 4 deixa claro, é
o meio (a palavra grega é dia) pelo qual
somos colocados em relacionamento com
esses acontecimentos. Alguns intérpretes
defendem que Paulo pode estar se refe-
rindo ao batismo no "espírito", mas isso é
improvável. É melhor entender que Paulo
está usando o batismo em água como uma
"representação abreviada" da experiência
inicial de conversão do cristão. O NT con-
sistentemente retrata o batismo em água
como um componente fundamental da con-
versão (v., e.g.,At 2.38; 1Pe 3.21). Isso não
significa que o batismo em si tenha o poder
de converter ou nos levar ao relacionamen-
to com Cristo. Somente quando o batismo
é combinado à fé genuína é que ele possui
algum significado, e o que Paulo escreveu
nos cp. 1-5 deixa claro que, afinal, o ele-
mento crucial do processo é essa fé. (Sobre
o batismo no NT e nessa passagem, v. espe-
cialmente G. R. Beasley-Murray, Baptism
in the New Testament [Eerdmans, 1962]).
A nossa união com Cristo na morte e
no sepultamento significa que podemos vi-
ver em novidade de vida (4b). Não somen-
11
ROMANOS 6 rIrI
ri.
te fomos libertados da tirania do pecado,
mas também recebemos um novo poder de
obedecer, por meio da nossa participação
no poder da ressurreição de Cristo. Esse
é o ponto que Paulo defende no v. 5: A
participação na morte de Cristo significa
também a participação na sua ressurrei-
ção. Alguns estudiosos pensam que, assim
como em Efésios 2.6 e Colossenses 2.12;
3.1, Paulo apresenta aqui a nossa ressur-
reição com Cristo como uma experiência
passada. Mas o tempo do verbo no futuro,
tanto no v. 5 (unidos [...] seremos) quanto
no v. 8 (com ele [...] viveremos), toma mais
provável que Paulo esteja falando aqui de
nossa ressurreição com Cristo de verdade
como algo futuro, ao passo que no presente
o poder da ressurreição de Cristo está ope-
rando em nós (cf v. 11: vivos para Deus).
Os v. 6,7 e 8-10 elaboram, respectiva-
mente, os aspectos da "morte" e da "vida"
da nossa união com Cristo. O nosso velho
homem (6) retoma as figuras de identidade
coletiva do cp. 5. Faz alusão à nossa iden-
tificação com o "velho homem", Adão, e
mostra que "não é uma parte de mim que
se chama velha natureza, mas todo o meu
ser, exatamente como eu era antes de me
converter" (JoOO Stott, Men Made New
[IVP, 1966], p. 45). Como resultado da
nossa crucificação com Cristo, esse corpo
do pecado, a pessoa como um todo domi-
nada pelo poder do pecado, foi tomado
impotente (NVI mrg., "seja deixado sem
poder", é preferível à formulação no tex-
to aqui seja destruído). Em consequência
disso, não precisamos mais servir o peca-
do como escravos. Como apoio adicional
a essa conclusão, Paulo cita uma máxima
popular dos rabinos quanto ao fato de a
morte romper o domínio do pecado sobre
uma pessoa. Os v. 8-10 reforçam a conexão
entre morrer com Cristo e viver com ele,
afirmada no v. 5, e fornecem uma ligação
crucial para o argumento de Paulo ao des-
crever a morte de Cristo como uma morte
"para o pecado". Embora puro, Cristo, no
entanto, esteve sujeito ao poder do pecado
ROMANOS 6 1710
em virtude de sua encarnação, e sua morte
o afastou, para sempre, desse poder.
O parágrafo se encerra com uma síntese
e uma aplicação. A nossa identificação com
Cristo em sua morte deve ser entendida e
posta em prática para que se tome efetiva
em subjugar o poder do pecado na nossa
vida. Assim, Paulo nos exorta a reconhecer
quem somos agora em Cristo (11) e a co-
locar em prática essa nova identidade, des-
tronando o pecado do nosso comportamen-
to cotidiano (12,13). Essa vitória sobre o
pecado é possível, relembra-nos Paulo em
um resumo dos v. 1-10, porque o pecado
não terá domínio sobre vós (14; o futuro
é utilizado para destacar que em momento
algum o pecado nos dominará novamen-
te). Pois já não estamos debaixo da lei,
isto é, sob o regime da lei de Moisés no
qual o pecado "abundou" (5.20) e trouxe
a ira (4.15), mas debaixo da graça, o novo
regime inaugurado por Cristo, no qual "a
graça reina pela justiça para a vida eterna"
(v. Jo 1.17 para um contraste semelhante
entre "lei" e "graça").
6.15-23 Livres do poder do pecado
para servir a justiça. Como foi o caso em
6.1-14, este parágrafo começa com uma
pergunta relacionada a algo que Paulo aca-
ba de dizer. Sua afirmação de que o cristão
não está "debaixo da lei, e sim da graça"
(14b) poderia implicar que não há mais re-
gras às quais o cristão deva obedecer, e ne-
nhuma pena para qualquer pecado que ele
cometer. A resposta de Paulo é semelhante
ao seu ensino nos v. 3-10: o pecado habitual
manifestaria um estado de escravidão ao
pecado (16), um estado do qual todo cris-
tão foi libertado (17,18). Paulo está certo
de que os cristãos romanos tinham eles
mesmos experimentado essa nova liberta-
ção do pecado, pois [vieram] a obedecer de
coração à forma de doutrina a que [foram]
entregues (17b). Ao colocar a questão desse
modo, Paulo sugere, ao mesmo tempo, que
os cristãos, libertos da lei mosaica, estão
mesmo assim vinculados por um código de
autoridade, uma "forma de ensino" seme-
lhante em alguns aspectos à da lei mosaica
(cf 2.20). Os cristãos têm uma nova obri-
gação. Os v. 17-23 a explicam como um
desenvolvimento daquilo que Paulo disse
anteriormente nesse capítulo. Ser livre do
pecado, segundo Paulo, não significa que
os cristãos sejam autônomos, que vivam
sem mestre ou sem quaisquer obrigações.
Significa, sim, uma nova escravidão: mas
desta vez à justiça (18,19) e a Deus (22).
Assim como Jesus, Paulo insiste em que a
verdadeira "liberdade" só pode ser obtida
em um relacionamento com o Deus que nos
criou (Jo 8.31-36). Somente ao dobrar os
joelhos diante de Deus uma pessoa pode se
tomar o que Deus originalmente pretendia
que essa pessoa fosse: "justa" (em confor-
midade com os padrões de comportamento
estabelecidos por Deus) e "santa" (levando
uma vida centrada em Deus e renunciando
aos padrões mundanos). E o resultado é a
vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor
(23; cf v. 22).
7.1-25 Libertos da escravidão da lei
O ponto principal desse capítulo é muito
semelhante à verdade central do capítulo
anterior. Assim como no cp. 6 os cristãos,
por meio da união com Cristo, "morrem
para o pecado" e tomam-se "servos de
Deus", colhendo santidade como benefí-
cio, também no cp. 7 os cristãos morrem
relativamente à lei, por meio do corpo
de Cristo, e passam a pertencer a Jesus
Cristo, "a fim de [frutificar]" (4). Paulo
sugere que a lei, assim como o pecado, é
de certo modo um "poder" que pertence
ao antigo regime da história da salvação,
do qual os cristãos devem ser libertados
se quiserem aproveitar a vida no novo re-
gime de justiça e de vida inaugurado por
Jesus Cristo. O apóstolo já sugeriu essa
ideia em 6.14,15. Esses versículos forne-
cem o contexto imediato para a discussão
que ele apresenta no cp. 7.
O primeiro parágrafo (1-6) transmite
a verdade central do capítulo. Mas nesses
versículos a perspectiva negativa de Paulo
 1711
sobre a lei o leva a acrescentar uma digres-
são importante na qual ele afirma a origem
divina e a excelência da lei, e fala de como
a lei passou a ter um resultado tão negativo
na história da salvação (7.25).
7.1-6 Libertos da lei; unidos a Cristo
A passagem do cristão do domínio da lei
para o domínio de Cristo é o ponto cen-
tral deste parágrafo (4). Paulo chega a este
ponto com um lembrete sobre a natureza da
lei: ela somente tem poder sobre as pessoas
enquanto estiverem vivas. A "lei" à qual
Paulo se refere aqui poderia ser a lei roma-
na (Kãsemann) ou a lei em geral (Sanday-
Headlam), mas provavelmente trata-se da
lei mosaica (segundo a maioria dos estu-
diosos). Os v. 2,3 ilustram a verdade desse
princípio com a analogia do casamento.
Embora várias e detalhadas comparações
com a experiência cristã algumas vezes se
encontrem nessa ilustração, Paulo preten-
de simplesmente fazer duas observações:
a morte rompe o relacionamento da pessoa
com a lei, e a libertação da lei permite que
uma pessoa se una a outra.
Esses são os pontos que Paulo aplica
teologicamente no v. 4. Por meio do nosso
relacionamento com Cristo em sua morte
na cruz - por meio do corpo de Cristo -
nós, cristãos, morremos para a lei, isto é,
fomos libertados de seu domínio (cf 6.2).
A lei governou os judeus e, por extensão,
todas as pessoas (cf 2.14) no antigo re-
gime da história da salvação. Ela regulou
o relacionamento na aliança entre Deus e
seu povo, e por ela exigir obediência sem
dar o poder de obedecer, teve o efeito de
prender o povo sob o poder do pecado e
da morte (cf 4.15; 5.20; 6.14,15; Gl3.21-
25). Somente ao sermos libertados do re-
gime da lei é que podemos ser libertados
também do pecado e nos unir a Cristo no
novo regime a fim de que frutifiquemos
para Deus.
A ligação entre a lei e o pecado é ela-
borada no v. 5. Melhor do que "quando
vivíamos de acordo com a nossa natureza
ROMANOS 7
humana" (NTLH) é a tradução literal: quan-
do vivíamos segundo a carne (en te sarki;
"pela natureza pecaminosa", NVI). Em tex-
tos como esse Paulo usa a palavra "carne"
para designar não uma propensão da pes-
soa ao pecado (como sugere NVI, mg.), mas
a "esfera de poder" em que a pessoa vive.
Uma vez que a raiz de seu conceito teoló-
gico é que aquilo que é típico deste mundo
se distingue do reino espiritual, "carne"
pode ser utilizado como símbolo do regi-
me antigo. "Quando estávamos na carne"
significa basicamente "quando vivíamos
no antigo regime não cristão". Nesse regi-
me a lei era instrumental para realçar as
paixões pecaminosas, pois ela incentivava
a nossa rebeldia inata contra Deus. Agora,
portanto, nós morremos para a lei e pode-
mos servir em novidade de Espírito, e não
na caducidade da letra. Tal como em 2.29,
o contraste entre a "letra" (gramma) e o
"Espírito" é o contraste entre a lei como po-
der determinante da antiga era e o Espírito,
o agente reinante da nova.
7.7-25 A história e a experiência
dos judeus sob a lei
Em 7.1-6 Paulo disse algumas coisas ne-
gativas sobre a lei. Ele a associou ao pe-
cado como um "poder" do antigo regime
de morte e alegou que ela de fato colocava
em realce o pecado (v. 5), mas esses ver-
sículos apenas formam o clímax de uma
série de declarações negativas sobre a lei
em Romanos. Paulo mostrou que a lei é in-
capaz de justificar (3.20a), toma conhecido
o pecado (3.20b) e, na verdade, estimula o
pecado (5.20) e traz a ira (4.15). Diante de
tudo isso, podemos imaginar que alguém
pense que Paulo encara a lei como má.
Paulo tinha experiência suficiente para sa-
ber que essa interpretação equivocada de
sua teologia da lei era uma possibilidade
sempre presente. Ele então introduz uma
digressão sobre a lei na qual se protege
contra essa falsa interpretação. Ele defen-
de a qualidade positiva da lei ao demons-
trar que os efeitos negativos que ela produz
ROMANOS 7
se devem não à lei em si, mas ao poder do
pecado e da fraqueza humana. Paulo re-
sume de modo sucinto a ideia central de
7.7-25 em 8.3a: "Porquanto o que fora im-
possível à lei no que estava enfraquecida
pela carne". Paulo defende esses pontos no
contexto de um esboço do efeito que a lei
tinha sobre o povo judeu.
7-12 Esse parágrafo sobre a vinda da
lei atinge dois propósitos: afirmar e susten-
tar, contra um possível equívoco (7a), que
a lei de Moisés, ou seja, o mandamento, é
santo,justo e bom (12) e explicar a relação
entre a lei e o pecado (7b-11). Ao defen-
der este último ponto, Paulo afirma que a
lei tinha sido o meio pelo qual ele viera
a conhecer o pecado (7b). O que Paulo
quer dizer com isso não é simplesmente
que a lei mostrou a ele o que era o peca-
do, mas que a lei, com a sua apresenta-
ção clara dos mandamentos de Deus, deu
ao pecado a oportunidade de incentivar a
rebeldia contra Deus e deixou totalmente
clara a sua propensão ao pecado e à mor-
te (8-11). A nossa propensão ao pecado é
tamanha que o simples ato de rotular uma
ação como transgressão contra a lei santa
de Deus nos leva a violá-la; e é dessa ma-
neira que a lei "estimula o pecado" (5.20;
7.5) e traz ira (4.15).
O fato de Paulo usar a primeira pessoa
do singular ("eu") para defender o seu pon-
to suscita a questão sobre qual experiência
ele está descrevendo aqui. Muitos pensam
que ele está refletindo sobre seu cresci-
mento como um jovem judeu, quando o
pecado pela primeira vez reviveu e deixou
claro que ele era um pecador (eu morri).
Outros pensam que Paulo está descreven-
do a época em que, um pouco antes de sua
conversão, o Espírito começou a condenar
os seus pecados. Mas o fato de essa expe-
riência ter ocorrido quando o pecado to-
mou ocasião pelo mandamento sugere ou-
tra possibilidade. Como o contexto deixa
claro, o mandamento deve se referir à lei
mosaica (cf v. 7,12), e a lei mosaica "sur-
giu" quando Deus a entregou ao povo de
1712
Israel, no monte Sinai. Os judeus do século
eram ensinados a pensar em si mesmos
I
como havendo tomado parte nas experiên-
cias históricas de Israel (como no ritual da
Páscoa). Talvez Paulo esteja então descre-
vendo nesses versículos não a sua própria
experiência pessoal, mas a experiência do
povo judeu, coletivamente. Então, o que
Paulo estaria dizendo é que a entrega da lei
de Moisés a Israel significou para eles não
a vida (como alguns rabinos ensinavam),
mas a morte, pois a lei de Moisés, ao es-
timular o pecado, "trouxe ira", deixando
mais clara do que nunca a distância que
separava os judeus de Deus.
13-25 Esta segunda parte da digressão
de Paulo sobre a lei fornece um "elo per-
dido" na sua argumentação em 7.7-12: a
fraqueza dos seres humanos como a razão
pela qual o pecado pôde usar a lei para
trazer a morte. A lei, embora espiritual,
não pode libertar as pessoas do domínio
do pecado e da morte (21-25), porque elas
são carnais (14), incapazes de obedecer à
lei que admitem ser boa (16). Assim, é na
lei de Moisés que Paulo coloca o seu foco
nesses versículos.
O ensino de Paulo sobre a lei vem em-
butido em uma longa "confissão pessoal".
Que experiência Paulo estaria descrevendo
aqui? Muitos estudiosos, observando que
Paulo agora escreve no presente (em con-
traste com o passado dos v. 7-11) e alega
ter prazer na lei de Deus, argumentam que
ele deve estar descrevendo sua situação
atual como de um cristão maduro. A passa-
gem então tomaria claro que a lei não pode
fornecer a vitória sobre o poder do pecado
dentro dos cristãos que, embora regenera-
dos e libertados do poder de condenação do
pecado, não podem escapar da influência
do pecado (cf 14,23,25). Embora essa in-
terpretação da passagem possa ter um forte
apoio (e.g., de Agostinho, Lutero, Calvino)
e mereça grande respeito, há uma aborda-
gem alternativa. A maioria de nós pode se
identificar, como cristãos, com os conflitos
descritos nos v. 15-20, mas o tratamento
 1713
objetivo que Paulo dá à situação de que
está falando toma difícil acreditar que ele
esteja descrevendo um cristão. Paulo alega
que ele é vendido à escravidão do pecado
(14b; cf v. 25) e é um prisioneiro da lei do
pecado (23). A primeira descrição parece
ser diametralmente oposta à descrição do
cristão no cp. 6 - "libertados do pecado"
(v. 22) - e a segunda conflita com a afir-
mação de Paulo em 8.2 segundo a qual o
cristão foi libertado "da lei do pecado e da
morte". Parece então que nesses versículos
Paulo está descrevendo a sua experiência
como judeu não regenerado, que vê seu
amor pela lei de Deus e o desejo de lhe
obedecer constantemente frustrados por
sua incapacidade em obedecer. Na verda-
de, não podemos ter certeza da extensão
da consciência de Paulo a respeito desse
conflito em sua vida antes da conversão.
(Sua alegação em Filipenses 3.6 de que ele
era "irrepreensível" com respeito à "justi-
ça que há na lei" se refere à sua posição
perante a lei segundo os padrões dos fari-
seus, e não à sua situação real). Certamente
foi somente à luz do seu conhecimento de
Cristo que Paulo reconheceu a profundi-
dade da pecaminosidade que ele descreve
aqui. Nos v. 7-11, então, Paulo descreve o
efeito da entrega da lei sobre si mesmo e
sobre todos os outros judeus, enquanto nos
v. 13-25 ele descreve a existência continua-
da de um judeu, como ele certa vez fora,
sob a lei. O tempo presente, que ele come-
ça a usar no v. 14, é muito mais adequado
para essa descrição de um estado constante
das coisas.
O v. 13 é um versículo de transição e
resume o argumento dos v. 7-12 - a lei é
boa, mas tem sido usada pelo pecado para
produzir morte e assim revela o pecado em
suas "cores verdadeiras" (sobremaneira
maligno) - como o ponto de partida para
os v. 14-25. O fato de a lei ser espiritual,
mas que "eu" sou carnal (sarkinos) prepa-
ra o terreno para o conflito nos v. 15-20.
Reconhecer o lado bom da lei de Deus e
o desejo de obedecê-la é algo que se con-
ROMANOS 7
trapõe à incapacidade de cumprir de fato a
lei na prática. O "querer" (usado aqui de
maneira não técnica) e o "fazer" estão em
mútua oposição. Isso revela, como conclui
Paulo, que em mim, isto é, na minha car-
ne, não habita bem nenhum (18) e que o
pecado que habita em mim deve ser o res-
ponsável por minhas ações (17,20). Os co-
mentaristas que defendem a interpretação
da "maturidade cristã" da passagem acre-
ditam que Paulo está se referindo ao po-
der constante do pecado e da carne na vida
do cristão. Parece, no entanto, que ele faz
referência à maneira em que quem não é
cristão se vê impedido de obedecer à lei de
Deus por estar sob o domínio do pecado.
No v. 21 Paulo resume a lei (mais bem
traduzida aqui por "preceito"; cf RSV), que
ele encontra atuando no conflito que des-
creveu nos v. 15-20: o desejo de fazer o
bem é igualado e superado pela tendência
de praticar o mal. O prazer na lei de Deus
- como era típico do povo judeu - de-
para com a força de outra lei. Enquanto
alguns entendem essa "outra lei" como
sendo uma outra função da própria lei de
Moisés, a palavra "outra" (heteros) sugere
que Paulo tem em mente uma "lei" distinta
da lei de Moisés. Essa "lei" é a força ou o
"poder" do pecado, que Paulo coloca fren-
te a frente com a lei de Deus (v. também
3.27; 8.2). Paulo se confessa um prisionei-
ro dessa lei do pecado, o que é uma forte
indicação de que ele esteja descrevendo
sua experiência anterior como judeu sob a
lei (contraste 8.2).
A reação de Paulo a essa prisão é la-
mentar: Desventurado homem que sou!
Quem me livrará do corpo desta morte?
A emoção desse lamento pode sugerir que
Paulo está, na verdade, nessa condição
"miserável" que descreve e que seu apelo
é por libertação, como um cristão, da mor-
talidade física. Mas Paulo, o cristão, não
precisa perguntar quem é seu libertador, e
a "morte" nessa passagem geralmente se
refere à morte em todos os seus aspectos
como o castigo de Deus sobre o pecado
ROMANOS 8
(cf v. 5,9-11,13). Portanto, é melhor atri-
buir esse lamento ao judeu sincero e piedo-
so, frustrado por sua própria incapacidade
de obedecer à lei de Deus e ansiando pela
libertação do pecado e da morte. Paulo
pode escrever de modo tão realista e apai-
xonante porque essa era uma condição que
ele mesmo havia experimentado, e por ser
essa uma condição que ainda caracterizava
tragicamente a maior parte dos seus "ir-
mãos, meus compatriotas" (cf 9.1-3). No
início do v. 25 Paulo, o cristão, interrompe
a sua descrição da vida judaica debaixo da
lei para anunciar aquele em quem a liber-
tação da morte é encontrada: Jesus Cristo,
nosso Senhor. No final do versículo, Paulo
volta a resumir a situação dos judeus de-
baixo da lei: com a mente, sou escravo da
lei de Deus - a atitude de admitir que a
lei de Deus é boa e de procurar obedecê-la
- mas segundo a carne, da lei do pecado
- impedidos pela carne de obedecê-la.
8. 1-30 A garantia da vida
eterna no Espírito
Romanos 8 é bastante conhecido por seu
foco no Espírito Santo. A palavra "espíri-
to" (do grego pneuma) ocorre 21 vezes no
capítulo, e em todas elas, com exceção de
duas (cf v. 15a e 16b), refere-se ao Espírito
Santo. Contudo, embora o Espírito seja
por isso extremamente importante, não
é ele o verdadeiro tema do capítulo. Não é
o próprio Espírito, mas sim a certeza da
vida eterna que o Espírito ajuda a garantir
o verdadeiro tema de Paulo. De "nenhu-
ma condenação" no início a "nenhuma
separação" no final, o capítulo passa em
revista os atos e dons de Deus que juntos
dão a cada cristão a certeza de que o seu
relacionamento com Deus é seguro e cer-
to. Paulo mostra como o Espírito confere
ao cristão (1-13) a adoção na família de
Deus (14-17) bem como a certeza da es-
perança da glória (18-30).
8.1-13 O Espírito da vida. Esse ca-
pítulo apresenta uma conexão principal e
duas conexões subordinadas com a parte
1714
anterior da carta. O agora, pois, com que
Paulo começa sugere que ele está tirando
uma conclusão a partir de algo que já dis-
se. Tanto o vocabulário quanto o conteúdo
do v. 1 apontam para o final do cp. 5 como
a base para essa conclusão. O argumento
de Paulo ali era que os cristãos são liberta-
dos da condenação (katakrima; v. 16 e 18)
provocada por Adão, pois eles se uniram
a Jesus Cristo. É esse ponto que Paulo,
depois da sua digressão nos cp. 6-7,
agora reitera: agora, pois, já não há ne-
nhuma condenação [katakrima] para os
que estão em Cristo Jesus. No entanto,
dois outros pontos de contato podem ser
discernidos: o primeiro está no contraste
deliberado que Paulo cria entre a condi-
ção de estar "debaixo da lei", em 7.7-25,
e a situação de quem vive "debaixo do
Espírito" (cf 8.2-4,7); o segundo ponto
está na elaboração que ele faz no cp. 8 a
respeito da breve menção feita em 7.6b
a viver "em novidade de Espírito".
A libertação dos cristãos da condena-
ção - a pena de morte por causa do pecado
sob a qual todas as pessoas vivem - ocor-
re em virtude da nossa união com Cristo
(5.12-21). Os v. 2-4 explicam mais tarde
que essa libertação foi realizada pelo Deus
trino: o Pai envia o Filho como uma oferta
pelo pecado por nós (3), e com base nisso o
Espírito nos liberta do poder do pecado e da
morte (2) e assegura o cumprimento da lei
em nosso favor (4). As "leis" contrastantes
do v. 2 podem se referir a duas operações
distintas da lei mosaica, que funciona para
aprisionar as pessoas quando vista estrita-
mente como uma exigência de obras, mas
que opera para libertar as pessoas quando
elas a entendem corretamente como uma
exigência por "obediência fiel". Ainda que
assim entendida, porém, seria algo sem
precedentes que Paulo atribuísse à lei o
poder de libertar do pecado e da morte;
portanto, a lei do Espírito deve significar
"o poder (ou autoridade) exercido pelo
Espírito". De modo correspondente, por-
tanto, a lei do pecado e da morte também
significará não a lei mosaica mas "o po-
1715
der (ou autoridade) do pecado e da morte"
(v. também 7.23).
Em ("por meio de", NVI) Cristo Jesus
o Espírito de Deus nos livra da situação
de domínio do pecado e da morte, a que
Paulo faz alusão em 5.12-21 e 6.1-23 e
que é descrita em 7.7-25. O Espírito deve
agir assim porque o grande poder do "an-
tigo regime", a lei mosaica, foi incapaz,
por causa da fraqueza humana, de romper
o domínio do pecado (3a; cf 7.14-25).
O que a lei não podia fazer, Deus fez:
ele rompeu o poder do pecado - conde-
nou [...] o pecado - ao enviar seu Filho
para se identificar conosco e se entregar
a si mesmo "como oferta pelo pecado"
(3; assim a NVI traduz corretamente peri
hamartias, de acordo com a utilização da
expressão na LXX). Esse envio do Filho
possibilita o verdadeiro cumprimento da
lei por aqueles que vivem de acordo com
o Espírito. Paulo não diz que os cristãos
são capacitados a obedecer à lei (por mais
verdadeiro que isso possa ser), mas que os
cristãos são considerados por Deus como
tendo cumprido plenamente as exigência
da lei devido à obediência de Cristo em
nosso favor (v. Calvino). Isso é sugerido
pelo singular dikaiõma ("justa exigência",
que a NVI inexplicavelmente traduziu como
plural, "exigências") e o sentido passivo
da expressão se cumprisse em nós (4).
Como crentes "em Cristo" somos liber-
tados da condenação porque Jesus Cristo
cumpriu totalmente a lei em nosso favor.
Ele se tomou aquilo que somos - fracos,
humanos e sujeitos ao poder do pecado
- para que nos tomássemos como ele
- justos e santos.
O contraste entre a carne ("natureza
humana", NTLH; cf 7.5) e o Espírito no
v. 4b conduz à série de contrastes entre
essas duas "forças" nos v. 5-8. Por meio
desses contrastes Paulo explica por que
é o Espírito, e não a carne, que traz vida.
Pessoas que vivem "na carne" - ou seja,
aquelas que vivem sob o "antigo regime",
ROMANOSS/
onde reinam o pecado e a morte - têm
.
sua inclinação dominada por impulsos im-
puros (5) e não podem se sujeitar à lei de
Deus (7) ou agradar a Deus (8), mas estão
sob sentença de morte (6). Por outro lado,
os cristãos, que vivem "no Espírito", fo-
ram transferidos para o novo regime onde
reinam a graça e a justiça, e eles, que rece-
beram uma nova inclinação cujo foco é o
Espírito, desfrutam de vida e paz (6). O v.
9 deixa claro que toda pessoa que perten-
ce a Cristo foi transferida para esse novo
domínio em que o Espírito, e não a carne,
governa. Então nos v. 10,11 Paulo mostra
como a posse da vida "espiritual" hoje le-
vará ao desfrute da "física" por meio da
ressurreição do corpo. E isso também será
alcançado por meio do poder do Espírito
que agora habita em nós.
Os v. 12,13 encerram essa primeira se-
ção do cp. 8 com um lembrete prático: a
obra do Espírito em nos garantir vida não
significa que podemos ser passivos com
relação à nossa obrigação de manifestar a
vida do Espírito Santo na nossa vida diária.
Somente quando nos submetermos ao con-
trole e à direção do Espírito, afastando-nos
do estilo de vida "carnal", seremos capazes
de viver (13). Paulo está claramente se re-
ferindo à vida espiritual, eterna e assim faz
com que o desfrutar dessa vida dependa de
certo modo da obediência do cristão. Aqui,
por fidelidade às Escrituras, somos chama-
dos a manter em tensão duas verdades cla-
ras: que o fato de o Espírito habitar em nós,
como resultado da fé em Cristo, assegura
infalivelmente a vida eterna, e que um esti-
lo de vida baseado nos padrões do Espírito
de Deus é necessário para herdarmos a
vida eterna. A tensão pode ser levemente
amenizada ao lembrarmos que o Espírito,
que nos foi dado na conversão, atua por si
mesmo para produzir obediência. Mas isso
não elimina totalmente a tensão, pois ain-
da somos chamados a nos submeter a essa
obra do Espírito.
8.14-17 O Espírito de adoção. Assim
como a "vida" é a ideia central dos v. 1-13,
ROMANOS a 1716
assim a filiação ocupa o centro dos v. 14-17.
Esse breve parágrafo, além de fazer sua
própria contribuição para o tema do ca-
pítulo ao descrever novamente a verdade
maravilhosa e reconfortante de que os cris-
tãos foram adotados na própria família de
Deus, faz uma transição entre os v. 1-13
e 18-30. Ser filho de Deus explica não
somente por que o Espírito de Deus nos
confere vida (13,14), mas também por que
se diz que somos herdeiros com uma pers-
pectiva gloriosa para o futuro (17,18).
Ser [guiado] pelo Espírito de Deus
(14) não significa ser guiado pelo Espírito
na tomada de decisões, mas estar sob a in-
fluência dominante do Espírito (Gl 5.18).
A oração resume as várias descrições da
vida no Espírito nos v. 5-9. Paulo pode
afirmar que aqueles guiados pelo Espírito
são filhos de Deus e por isso destinados
à vida (13), porque filhos de Deus é um
título que a Bíblia atribui ao povo de Deus
(v., e.g., Dt 14.1; Is 43.6; cf Rm 9.26).
Mas também temos de reconhecer o títu-
lo como uma alusão à filiação do próprio
Jesus (cf v. 3 e 29); como o v. 15 confir-
ma, Aba era a maneira como Jesus se di-
rigia a Deus (cf Me 14.36), maneira que
mostrava uma intimidade especial. Esse
mesmo tratamento agora é o que os cris-
tãos espontaneamente "clamam" quan-
do eles mesmos se dirigem a Deus. É o
Espírito, mais uma vez, que implanta em
nós esse sentido de intimidade (16) e abo-
le, assim, toda escravidão (a "lei do pe-
cado e da morte", v. 2), e todas as razões
para o temor (15a). O Espírito, portanto,
é o espírito de adoção. Paulo toma a pa-
lavra "adoção" (hyiothesia), um termo do
mundo greco-romano, onde ela significa-
va uma instituição legal por meio da qual
se podia adotar uma criança e conferir
a ela todos os direitos e privilégios que
caberiam a um filho natural. Mas a con-
cepção está enraizada na imagem bíblica
de Deus como aquele que graciosamente
escolhe um povo para chamar de seu (cf
8.23; 9.4; G14.5; Ef 1.5).
A nossa adoção na família de Deus, no
entanto, embora maravilhosa e confortan-
te, não é o fim da história. Pois ser filho
significa ser também herdeiro: estar ainda
aguardando a plena concessão de todos
os direitos e privilégios conferidos a nós,
como filhos de Deus (17; v. especialmen-
te Gl 4.1-7, com um argumento bastante
semelhante a esse de 8.1-17). Do mesmo
modo que o Filho de Deus teve de sofrer
antes de entrar na sua glória (1Pe 1.11),
também nós, filhos de Deus por adoção,
devemos sofrer "com ele", antes de com-
partilharmos de sua glória (v. também
Fp 1.29; 3.20; 2Co 1.5). Visto que nos uni-
mos a Cristo, o servo do Senhor "despre-
zado e rejeitado pelos homens" (ls 53.3),
podemos esperar que o caminho para a
nossa gloriosa herança seja coberto de difi-
culdades e perigos.
8.18-30 O Espírito de glória. Nesse
parágrafo Paulo elabora mais a sua refe-
rência ao sofrimento e à glória no v. 17,
desenvolvendo o tema geral da certeza
cristã e completando o círculo ao nos le-
var novamente ao início dessa grande se-
ção da carta (5.1-11; v. as notas em 5.1).
O tema da esperança da glória dos cris-
tãos emoldura o parágrafo, aparecendo no
seu início (18) e final (30), e é seu grande
tema. Os crentes, ao enfrentar a necessi-
dade de "sofrer com Cristo" neste mundo,
podem mesmo assim estar confiantes e
seguros, sabendo que Deus está determi-
nado a nos conduzir à nossa herança (18-
22,29,30), que ele em sua providência
está trabalhando em nosso favor (28) e
que ele nos deu seu Espírito como a certe-
za da nossa redenção final (23).
Paulo nunca minimiza o fato ou a se-
veridade do sofrimento dos cristãos nes-
te mundo. Mas esse sofrimento deve ser
encarado como algo insignificante, em
comparação à glória que será revelada em
nós (18). No AT "glória" indica o "peso"
e a majestade da presença de Deus. Paulo
aplica o termo ao estado final dos cris-
tãos, quando teremos sido transformados

1717
a Imagem do Filho de Deus (29). Pois
Cristo já entrou nesse estado de glória
(Fp 3.21; Cl 3.4), e a transformação de
nossos corpos trará à luz no último dia a
nossa parte nessa glória.
Os v. 19-25, cujas palavras-chave são
ardente expectativa (19,23 e 25) e espe-
rança (21,24,25), mostram que os cristãos,
junto com toda a criação, terão de esperar
que a obra de Deus seja concluída. Paulo
segue o precedente do AT (SI 65.12,13;
Is 24.4; Jr 4.28; 12.4) de personificar toda a
criação subumana: ela geme em frustração
(20,22) e aguarda ansiosamente o dia em
que a nossa condição como filhos de Deus
será consumada e tomada pública (19,21).
O que deixa claro o fato de Paulo não ter
incluído os anjos e os seres humanos em
sua exposição é o fato de que a frustra-
ção agora experimentada pela criação não
aconteceu voluntariamente (20). Ela veio,
sim, pela vontade daquele que a sujeitou
(20), isto é, Deus, que decretou uma maldi-
ção sobre a terra como resultado do pecado
de Adão (Gn 3.17,18; cflCo 15.27). Mas
o decreto da sujeição foi sempre acompa-
nhado pela esperança de que um dia Deus
faria da sua criação o que ele original-
mente pretendia que ela fosse, um lugar
onde "o lobo viverá com o cordeiro" (Is
11.6). Nós cristãos compartilhamos do ge-
mido e da esperança da criação (23), pois
possuímos o Espírito como as primícias,
como um sinal e garantia da nossa reden-
ção final, e isso nos deixa mais ansiosos
ainda pela finalização da obra de Deus em
nós. Algo bastante conhecido como a ten-
são "já e ainda não" do NT, ou seja, a tensão
entre aquilo que Deus já fez para o cristão
e o que ele ainda fará fica muito evidente
quando comparamos o v. 23 aos v. 14-17.
Pois a "filiação" que já ouvimos ser nossa
é aqui vinculada à redenção do nosso cor-
po e se toma objeto de esperança e expec-
tativa. Essa esperança é a verdadeira es-
sência da nossa salvação. Temos, portanto,
de aguardar pacientemente por aquilo que
Deus prometeu (24,25).
111
a ..
ROMANOS
....
Nos v. 26-30 Paulo fornece três razões
pelas quais nós podemos esperar com pa-
ciência e confiança pela culminação de
nossa esperança. Primeiro, o Espírito nos
ajuda em nossa ignorância sobre aquilo
pelo que devemos orar (26,27). Nesta vida
nós não estamos necessariamente certos
sobre como convém orar. Mas o próprio
Espírito intercede por nós diante de Deus,
orando em nosso nome a oração que é sem-
pre perfeita, segundo a vontade de Deus
(27). Paulo não está aqui descrevendo o
dom de falar em línguas; nem fica mui-
to claro se ele está se referindo a um pro-
cesso audível, uma vez que os gemidos do
Espírito podem ser metafóricos (cf v. 22).
Antes, ele provavelmente está descreven-
do o ministério de intercessão do Espírito
no coração do cristão que ocorre mesmo
sem o nosso conhecimento.
Uma segunda razão para a confiante
expectativa do futuro dos cristãos é o tra-
balho constante de Deus em todas as coi-
sas para o bem daqueles que o amam (28).
Nada do que possa dizer respeito a nós se
situa fora do âmbito do cuidado providen-
cial de nosso Pai: aqui na verdade está um
motivo para nossa alegria e a rocha sólida
em que se fundamenta a nossa esperança.
Devemos, no entanto, definir o bem que
Deus está querendo produzir em nós segun-
do a perspectiva dele, e não a nossa. Deus
sabe que o nosso maior bem é conhecê-lo
e desfrutar de sua presença eternamente.
Ele poderá, então, na procura desse "bem"
final permitir que certas dificuldades, tais
como a pobreza, a tristeza e a falta de saú-
de possam nos afligir. A nossa alegria não
virá de saber que nunca iremos enfrentar
tais dificuldades - pois certamente as en-
frentaremos (17) - mas, de saber que se-
jam quais forem as dificuldades, nosso Pai
amoroso está agindo para fazer com que
nos tomemos cristãos mais fortes.
Paulo descreve aqueles por quem Deus
trabalha a partir do ponto de vista huma-
no (aqueles que amam a Deus) e do ponto
de vista divino (que foram chamados
ROMANOS 8 1718
segundo o seu propósito, 28). O "cha-
mado" de Deus não é simplesmente seu
convite para as pessoas aceitarem o evan-
gelho, mas sua efetiva convocação de pes-
soas para um relacionamento com ele (v.,
e.g., 4.17; 9.12,24). Essa convocação tem
lugar segundo o propósito de Deus, sendo
que esse propósito, em última análise, é
sermos conformes à imagem de seu Filho
(29). Deus conduz cada um de nós a esse
propósito por meio de uma série de atos em
nosso favor. Primeiro, ele "nos conhece de
antemão". Alguns estudiosos pensam que
proginõskõ ("de antemão") significa aqui o
mesmo que costuma significar na literatura
grega - "saber de alguma coisa antes que
aconteça". Mas Paulo diz que somos nós,
os cristãos, a quem Deus conhece, e isso
sugere uma ideia mais pessoal de "conhe-
cimento", que às vezes é encontrada no AT:
a eleição para um relacionamento pessoal
(e.g., Gn 18.19; Jr 1.5; Am 3.2). Esse cer-
tamente também é o sentido que "de ante-
mão" tem em suas outras ocorrências no NT
(11.2; At 2.23; lPe 1.2,20). A "presciência"
de Deus, o fato de termos sido eleitos por
ele para sermos salvos "antes da criação
do mundo" (Ef 1.4), leva ao fato de Deus
nos "predestinar", nos apontar para um de-
terminado destino. Esse destino é que nos
tomemos como Cristo, um propósito final
que Deus alcança ao nos "chamar" (cf v.
28b), "justificar" (cf 3.21-4.25) e "glo-
rificar". É significativo o fato de que este
último verbo esteja, como os outros no v.
30, no passado, sugerindo que, embora a
obtenção da glória seja futura, já foi con-
cretizada a determinação de Deus no senti-
do de que iremos obtê-la.
8.31-39 A celebração da
segurança do crente
Podemos considerar essa bela celebração
em forma de hino da nossa segurança em
Cristo uma resposta ao que Paulo acabou
de dizer (28-30, ou 18-30 ou mesmo 1-
30); mas é melhor enxergá-la como uma
reflexão de conclusão dos cp. 5-8 como
um todo. Ela se divide em duas partes. Na
primeira (31-34) Paulo nos relembra que
Deus é por nós: ao dar o seu Filho, ele ao
mesmo tempo nos garantiu tudo de que
precisamos nesta vida e a obtenção de nos-
sa salvação final. Ninguém então é capaz
de ser bem-sucedido em alguma acusação
contra nós que tenha a intenção de nos le-
var à condenação no juízo. Pois é o mesmo
Deus, o Deus que nos escolheu e justificou
a nós e a seu próprio Filho, que responde
a qualquer acusação contra nós. A segun-
da parte do hino (35-39) celebra o amor
de Deus em Cristo por nós. Separar-nos
desse amor é algo tão impossível quanto
fazer uma acusação contra nós. Nenhum
perigo ou desastre deste mundo pode fazê-
lo (35b,36). Embora tal sofrimento possa
ser esperado, como Paulo nos relembra
com sua citação de Salmos 44.22, em todas
estas coisas, porém, somos mais que ven-
cedores, por meio daquele que nos amou.
Nem pode qualquer poder espiritual nos
separar do amor de Deus (anjos, principa-
dos, e poderes no v. 38). Na verdade, não
há nada em toda a criação que pode nos
retirar do novo domínio, no qual o amor de
Deus em Cristo reina sobre nós.
9.1-11.36 O evangelho e Israel
Os estudiosos frequentemente têm conside-
rado que esses três capítulos têm pouca co-
nexão com o tema verdadeiro de Romanos.
Essa seção tem sido entendida como um
aparte, motivado pela preocupação pessoal
de Paulo com o seu povo, ou como uma
digressão sobre o tema da eleição de Deus.
Mas o tema desses capítulos é o lugar de
Israel no plano de salvação de Deus, e esse
tema está estreitamente ligado aos interes-
ses de Paulo em Romanos. Desde o início
da carta (1.2; cf também 3.21,31; cp. 4)
Paulo se preocupou em demonstrar que o
evangelho está em continuidade com o AT.
Ele quer deixar claro que a vinda de Jesus
Cristo e do novo regime da história da sal-
vação que ele inaugurou não são inovações
no plano de Deus para a história, mas sua
 1719
culminação almejada. Entretanto, a des-
crença da maioria dos judeus na época de
Paulo representa um problema em poten-
cial para a tentativa de Paulo em estabele-
cer tal continuidade. Será que a promessa
de salvação de Deus não foi dada ao povo
de Israel? Como ele pode permanecer fiel
a essa promessa se ela é agora cumprida na
igreja e não em Israel?
Essas são as perguntas que Paulo res-
ponde nos cp. 9-11, enquanto defende a
tese de que não pensemos que a palavra
de Deus haja falhado (9.6a). A incredu-
lidade dos judeus na época não signifi-
ca, segundo Paulo, que as promessas de
Deus a seu povo tenham falhado porque
(i) Deus nunca prometeu salvar cada um
dos judeus (9.6b-29); (ii) os próprios ju-
deus foram responsáveis por não crer
(9.30-10.21); (iii) as promessas de Deus
para Israel estão até mesmo agora sendo
cumpridas em um remanescente de judeus
cristãos (11.1-10); e (iv) Deus ainda irá
salvar todo o Israel (11.12-32). Do princí-
pio ao fim Paulo está preocupado em mos-
trar que as promessas de Deus a seu povo,
Israel - desde que corretamente enten-
didas - permanecem completamente in-
tactas. Além de estabelecer a coerência do
evangelho, essa "teologia de Israel" é tam-
bém de importância prática. Pois, como os
apelos em 11.12-32 revelam, Paulo estava
consciente de que os gentios na igreja ro-
mana estavam negligenciando suas indis-
pensáveis "raízes" do AT e menosprezando
os judeus e os judeus cristãos.
9. 1-6a A questão: a angústia de
Paulo em relação a Israel
A falta de uma palavra ou expressão para
ligar o cp. 8 ao cp. 9 sugere que há uma
interrupção no argumento de Paulo nes-
se ponto. O clímax de sua argumentação
foi atingido nesse ponto com a celebração
do amor imutável de Deus pelos cristãos
(8.31-39). Mas é justamente essa afirmação
da certeza do cumprimento das promessas
de Deus para os cristãos que leva Paulo
ROMANOS 9 {
agora a levantar a questão das promessas
de Deus para Israel. Os v. 1-3 mostram que
essa era uma questão intensamente emo-
cional para ele. Pois Paulo nunca perdeu
o seu senso de identificação com seus con-
temporâneos judeus. Ele experimenta, por-
tanto, grande tristeza e incessante dor no
coração por aqueles que são, do ponto de
vista da carne (kata sarka), seus "compa-
triotas" e irmãos (2,3). Embora Paulo não
nos diga por que ele se sente tão mal em
relação a seus contemporâneos judeus, o
paralelo em 10.1 deixa claro que é porque
a grande maioria dos judeus não foi salva,
pois eles se recusaram a acreditar em Jesus
Cristo (cf 9.30-10.21). Paulo sente isso
tão intensamente, como Moisés antes dele
(Êx 32.31-34), que ele está disposto a sa-
crificar a sua própria salvação em favor da
salvação de seus contemporâneos judeus.
A força da afirmação de Paulo (cf também
v. 1) sugere que ele possa ter tido conhe-
cimento de que alguns judeus duvidavam
de sua preocupação por seus "compatriotas
segundo a carne".
A emoção de Paulo diante da incredu-
lidade dos judeus tem, contudo, uma base
diferente - e talvez mais profunda: a
incongruência entre o estado atual dos
judeus e seus privilégios maravilhosos
(4,5). O simples fato de ser o povo de Israel
pode ser colocado entre esses privilégios,
pois "Israel" (expressão que Paulo prefe-
re utilizar ao longo dos cp. 9-11) sugere
a condição da aliança concedida aos des-
cendentes de Jacó ("Israel"). Igualmente
significativa é a adoção dos judeus como
filhos, uma designação que Paulo usa em
outras passagens para os cristãos (8.15,23;
Gl 4.5; Ef 1.5). O sentido em que exata-
mente se pode dizer que os judeus têm essa
condição é o que Paulo vai explicar em
9.6b-13 e 11.1-32. O auge dos privilégios
dos judeus é o fato de que Cristo, o Messias
prometido, vem deles. Mas essa é a histó-
ria do ponto de vista humano; do ponto de
vista divino, esse mesmo Cristo é o próprio
"Deus". Essa ao menos é a interpretação
ROMANOS 9
sugerida pela NVI (cf também NASB), que
coloca uma vírgula entre a palavra "Cristo"
e a afirmação "que é Deus acima de todos".
Outras versões, porém, colocam um ponto
final após Cristo, e entendem a última parte
do versículo como sendo uma declaração
de louvor independente a Deus (o Pai) (v.
NVI mg. e RSV). A interpretação adotada no
texto da NVI (semelhantemente também
aqui na ARA) é, no entanto, provavelmen-
te correta e, se assim for, esse versículo é
um dos poucos lugares no NT em que Jesus
Cristo é abertamente chamado de "Deus".
Os privilégios que Paulo enumerou
têm origem no próprio Deus e podem ser
tomados por muitos judeus como certos
- a salvação dos judeus em geral. É esta
salvação que o evangelho especificamente
põe em questão (v., e.g., o cp. 2) e, ao fazê-
lo, suscita a pergunta que é central nesses
capítulos: Teria Deus abandonado suas
promessas a Israel (6a)?
9.6b-29 O passado de Israel:
a eleição soberana de Deus
Em sua primeira resposta, Paulo argumen-
ta que a palavra de Deus sempre prometeu
salvação somente àqueles a quem Deus
soberanamente escolheu. Em defesa desse
argumento, Paulo cita extensamente a his-
tória de Israel, mostrando que pertencer ao
povo de Deus não depende nem do nasci-
mento nem de qualquer coisa que a pessoa
faça, mas do chamado de Deus (essa pa-
lavra é chave para a seção; cf v. 7 (12,24-
26). Do mesmo modo que Deus escolheu
apenas alguns dentre os descendentes de
Abraão para serem seu povo (6b-13), ele
também está agora escolhendo os gentios
(24-26), e apenas um remanescente de ju-
deus (27-29) para ser seu povo na época
presente. O peso do argumento de Paulo,
assim, encontra-se nos v. 6b-13 e 24-29,
sendo os v. 14-23 uma resposta distinta às
questões suscitadas pela ênfase de Paulo
na soberania de Deus.
9.6b-13 O Israel dentro de Israel. A
tese do parágrafo é apresentada no v. 6b:
1720
nem todos os de Israel são, de fato, is-
raelitas. Há, segundo Paulo sugere, em
consonância com a teologia do "remanes-
cente" do AT, um Israel espiritual dentro
do grande Israel étnico. Em outras passa-
gens, Paulo pode ter usado "Israel" para
designar todo o povo de Deus, tanto ju-
deus como gentios (GI6.16). Aqui, no en-
tanto, como a sequência deixa claro, ele
está pensando apenas nos judeus. Paulo
prova a sua tese sobre a existência de um
Israel dentro de Israel com dois argumen-
tos paralelos, extraídos da história do AT
(7-10, 11-13). No primeiro, Paulo mostra
que a descendência fisica de Abraão não
era suficiente para garantir um lugar em
meio ao povo de Deus. Ismael e Isaque
eram ambos filhos de Abraão; no entanto,
foi somente por meio de Isaque que Deus
considerou os descendentes espirituais de
Abraão (Gn 21.12). A descendência es-
piritual de Abraão, assim, não se baseia
no nascimento mas na promessa de Deus.
Isaque, e não Ismael, foi o receptor dessa
promessa (10, citando Gn 18.10 e 14).
Como se o argumento não fosse sufi-
cientemente claro, Paulo agora o toma ain-
da mais enfático ao escolher uma ilustração
da geração seguinte de Israel (10-13). Pois
alguém poderia se opor à primeira ilustra-
ção de Paulo, alegando que uma diferença
significativa na descendência natural dis-
tinguia Isaque e Ismael: o primeiro nasceu
de Sara, "a mulher livre", e o segundo de
Hagar "a mulher escrava" (cf GI4.21-31).
Mas essa diferença não existiu entre Jacó
e Esaú. Como gêmeos, eles não só nasce-
ram da mesma mãe, Rebeca, mas foram
concebidos no mesmo momento (do gre-
go koitên, que provavelmente se refere à
relação sexual). Contudo, mesmo antes do
nascimento, foi dito à Rebeca que "o mais
velho servirá ao mais moço" (Gn 25.23).
Essa prioridade de Jacó é confirmada por
um segundo texto do AT, citado por Paulo
em Malaquias 1.2,3: "Amei a Jacó, porém
aborreci a Esaú". Desses testemunhos do
AT sobre a prioridade da Jacó, Paulo extrai
 1721
a conclusão, em uma nota entre parênteses
(l lb), de que a bênção usufruída por Jacó
não foi baseada em nada que ele havia feito
mas no livre chamado soberano de Deus.
a que é essa bênção? Uma vez que os
contextos do AT de onde Paulo extrai sua
ilustração falam sobretudo dos papéis his-
tóricos de Jacó e Esaú ou das nações que
eles representam (Israel e Edom) segundo
o plano de Deus (cf MI1.2,3), Paulo pode
não querer dizer nada além de que Jacó
desfrutou do privilégio de ser um instru-
mento positivo nesse plano. Mas a lingua-
gem que Paulo usa em todo esse parágrafo
- chamada (7; cf 4. 2-21); eleição (11;
cf 11.5,7,28; At 9.15; lTs 1.4; 2Pe 1.10);
propósito (11; cf 8.28; Ef 1.11); obras
(11; cf 4.4-8); chama (11; cf 8.29) - ge-
ralmente se refere à questão da salvação
eterna. E é esta questão, ou seja, o fato de
que muitos judeus não foram salvos pelo
evangelho, que suscitou toda essa discus-
são. Concluímos, portanto, que Paulo está
usando esses textos do AT para ilustrar o
princípio da soberania de Deus na salva-
ção: ser filho de Deus (cf v. 7-9) depende,
em última instância, do chamado de Deus.
a fato de Deus "amar" a Jacó e o de "abor-
recer" a Esaú são maneiras de descrever
em termos fortemente contrastantes a rea-
lidade de Deus eleger para a salvação e ex-
cluir da salvação, respectivamente.
9.14-23 Objeções: a liberdade de
Deus. A ênfase de Paulo na soberania de
Deus na salvação suscita algumas obje-
ções, como ele bem sabia por sua experiên-
cia de muitos anos de pregação. Paulo lida
com duas delas nessa seção. Não seria
Deus injusto por escolher alguns e rejei-
tar outros (14)? E como as pessoas podem
ser responsabilizadas por rejeitar a Deus,
se ele mesmo determina tal rejeição (19)?
Essas questões são a nossa reação natu-
ral à doutrina bíblica sobre a soberania
de Deus. É significativo que Paulo aqui
não ofereça uma explicação "lógica" para
compatibilizar a soberania de Deus com a
doutrina igualmente bíblica de que Deus
ROMANOS9/
11I11I
é escrupulosamente justo e que os seres
humanos são justificadamente culpáveis
pelas suas ações. Faríamos bem em se-
guir a sua abordagem: afirmar a verdade
dessas grandes doutrinas bíblicas sem en-
fraquecer ou eliminar uma ou outra pela
insistência por uma explicação exaustiva.
Esse é um ponto em que, junto com Paulo
(cf 11. 33-36), devemos estar preparados
para reconhecer um mistério além da nos-
sa compreensão.
No mesmo estilo provocativo de dis-
cussão (diatribe) que ele com frequência já
adotou em Romanos, o próprio Paulo faz
a pergunta que ele sabe será suscitada em
razão de sua insistência sobre a soberania
de Deus na eleição: Há injustiça da parte
de Deus? Paulo rejeita essa inferência de
forma veemente e cita de novo o AT para
apoiar o seu ponto de vista (15). Mas o tex-
to que Paulo cita - Êxodo 33.19 - pare-
ce simplesmente reiterar a livre e soberana
ação de Deus, em vez de explicar por que
essa ação é justa. Mas talvez este seja o
ponto de Paulo: que as ações de Deus não
podem ser "julgadas" por nada além de sua
própria natureza revelada nas Escrituras.
Paulo afirma novamente que o que decorre
da liberdade de Deus é o fato de que ela
(isto é, a eleição de Deus para a salvação;
cf v. 11,12) prevalece não por obras.
as v. 17,18 fornecem um apoio adi-
cional a essa negação de que os atos de
Deus são baseados em decisões e ações
humanas, mas agora, a partir de uma
ótica"negativa" (cf me aborreci de Esaú,
v. l3b). a papel do faraó na história da
salvação foi uma questão de determinação
de Deus. Foi Deus quem trouxe o faraó
para o palco da história ("para isso te hei
mantido"; cf. Êx 9.16) e fez com que o
seu coração se endurecesse. Aquilo que é
dito no AT sobre o faraó se aplica evidente-
mente ao seu papel na história da salvação
e não ao seu destino pessoal. Mas, como
nos v. 10-13, Paulo sugere no v. 18 que
a obra de Deus no faraó ilustra a manei-
ra pela qual Deus trabalha com pessoas
ROMANOS 9
em geral: terei misericórdia de quem me
aprouver ter misericórdia (15,16; cf Amei
Jacó, v. l3a) e, também endurece a quem
lhe apraz (18; cf me aborreci de Esaú, v.
13b). Nem a concessão da misericórdia de
Deus nem a sua negação são baseadas em
ações humanas (embora deva ser lembra-
do que Deus age em pessoas que já estão
perdidas no pecado, e que a exclusão de
alguns da salvação é em certo sentido uma
simples confirmação da escolha que eles já
fizeram). Também seria bom lembrar que
as decisões de Deus em relação a essas
questões não são reveladas para nós e que
não pretendem, de forma alguma, causar
desespero. As Escrituras deixam claro que
Deus nunca se recusará a aceitar ou lançará
fora os que diligentemente o buscam.
A pergunta que Paulo faz agora é exa-
tamente aquela que nós também somos
tentados a fazer neste momento: como
Deus pode culpar as pessoas por rejei-
tá-lo, se ele mesmo ao escolher alguns e
"rejeitar" outros em certo sentido provoca
essa rejeição? A resposta de Paulo revela
que ele mesmo não tem uma resposta sa-
tisfatoriamente lógica para essa pergunta.
Anteriormente, ele tinha deixado claro
na carta que as pessoas são plenamente
responsáveis por rejeitarem a verdade de
Deus (1.20-2.11), e ele defende esse pon-
to novamente com relação a Israel (9.30-
10.21). Mas Paulo não menciona isso
como uma forma de evitar o problema
que ele levanta agora. Sua implicação, as-
sim, é que a soberania de Deus na rejeição
e a responsabilidade do homem por essa
rejeição devem ser mantidas como duas
verdades complementares, verdades que
não devem ser utilizadas para desvalori-
zar uma a outra. Aqui Paulo simplesmente
contesta o direito de alguém de julgar os
caminhos de Deus. Ele é o oleiro que tem
pleno direito sobre os vasos que ele cria
(v. Ir 18; Sabedoria de Salomão 12.3-22;
15.7). Nos v. 22,23 Paulo relaciona essa
liberdade de Deus à disposição que ele
tem para suportar pacientemente os vasos
1722
de ira, que são preparados para a perdi-
ção. Os "vasos" que Paulo tem em mente
aqui são provavelmente os judeus incré-
dulos, que estão agora desempenhando
um papel na história da salvação igual
ao desempenhado pelo faraó na época do
êxodo (cf 11.12-15). Como no caso do fa-
raó, a ênfase recai sobre o seu papel histó-
rico no momento presente (embora o seu
destino seja óbvio: ira e destruição). Mas
o propósito último de Deus não é ira, mas
sim misericórdia e glória. Pois a verda-
de principal dos v. 22,23 é o modo como
Deus manifesta a sua preocupação com
os vasos de misericórdia, que para glória
preparou de antemão.
9.24-29 Deus chama um novo povo.
Ainda que o v. 24 esteja gramaticalmen-
te ligado aos v. 22,23, ele retoma o tema
com que Paulo começou essa seção: O
chamado de Deus. Nos v. 7-13 Paulo
mostrou como Deus chamou, de dentro
do Israel étnico, um pequeno número
de judeus que formaram o "Israel espiri-
tual". Agora ele mostra que esse chama-
do soberano de Deus criou no momento
presente um povo novo, composto por
gentios (25,26) e por um remanescente
judeu (27-29). Nos v. 25,26 Paulo aplica
Oseias 2.23 e 1.10, que em seu contexto
original se aplicavam a Israel, ao chama-
do dos gentios para se tomar o seu povo,
filhos do Deus vivo (cf "filhos de Deus"
no v. 8). Paulo cita Isaías para ilustrar a
situação dos judeus e, ao fazê-lo, defen-
de três pontos que servem para resumir
toda essa seção e preparar para o cp. 11:
(i) a descrença de muitos judeus, contem-
porâneos de Paulo, não é surpreendente,
uma vez que a própria Escritura diz que
somente "o restante se converterá", isto é,
será salvo (Is 10.22); (ii) os judeus estão
sendo salvos e se tomando parte do povo
de Deus: um remanescente é que será sal-
vo (cf 11.3-7); e (iii) Deus é quem traz
a salvação de seu povo: Se o Senhor dos
Exércitos não nos tivesse deixado descen-
dência ... (cf Is 1.9).

9.30-10.210 presente
1723
de Israel: desobediência
O segundo argumento de Paulo em defesa
da proposição de que a palavra da promessa
de Deus a Israel não falhara (9.6a) é que o
próprio Israel, por sua incapacidade de res-
ponder adequadamente à palavra de Deus,
é o culpado por sua exclusão do novo povo
de Deus. Em 9.30-10.13 Paulo culpa
Israel por buscar o direito de preservar seu
relacionamento com Deus como algo basea-
do no cumprimento da lei e não na fé em
Cristo. Em seguida, em 10.14-21 ele de-
monstra que Israel não pode alegar que sua
falha se deveu à ignorância, pois Deus dei-
xou seu plano e propósito bastante claros
para Israel nas Escrituras. A incredulidade
da maioria dos contemporâneos judeus de
Paulo se deve tanto à eleição soberana de
Deus (9.6b-29) quanto à sua recusa culpá-
vel em crer. A eleição divina incondicional
e a responsabilidade humana se encontram
lado a lado, e não se deve admitir que uma
elimine ou atenue a outra.
9.30-10.13 A justiça de Deus e a jus-
tiça da lei. Um contraste entre dois tipos
de justiça domina essa seção: A justiça de
Deus (10.3), uma justiça disponível so-
mente por meio da fé (9.30; 10.4,6,10), e
a "justiça" própria de alguém (l0.3), uma
justiça que está relacionada estreitamente à
lei (9.31; 10.5) e às obras (9.32). Paulo de-
senvolve esse contraste em três parágrafos
até certo ponto paralelos (9.30-33; 10.1-
4; 10.5-13). Em cada um ele acusa Israel
como um todo de não perceber a justiça de
Deus em Cristo, a única justiça que pode
salvar (cf 10.1,9,10), devido à sua preo-
cupação com obras e com a lei de Moisés.
Uma abordagem correta da lei os teria le-
vado a Cristo e à verdadeira justiça, pois a
própria lei aponta para Cristo (10.4).
A pergunta de Paulo Que diremos,
pois? (30) introduz a nova etapa de seu
argumento. Sugere que ele estará lidando
com uma questão suscitada por sua dis-
cussão anterior. Essa questão é a do de-
senrolar inesperado da história da salva-
•
ROMANOS 9 _-
ção que ele acaba de mencionar (24-29):
-.
dos judeus, "o povo escolhido", é deixado
apenas um remanescente, enquanto os
gentios, que uma vez estavam longe de
Deus, estão agora sendo chamados de "fi-
lhos do Deus vivo". Paulo fornece uma
primeira explicação nos v. 30b-33 das
razões de isso ter ocorrido. Ele usa ima-
gens das corridas de atletismo para fazer
o contraste entre os gentios e Israel. Os
primeiros, embora não "participassem
da corrida" (que não buscavam a justifi-
cação), mesmo assim cruzaram a "linha
de chegada": eles obtiveram de Deus um
direito permanente. E o obtiveram, como
Paulo deixa claro, em virtude de sua fé.
Israel, por outro lado, embora participas-
se ativamente da corrida, não cruzou a li-
nha de chegada. Nesse ponto, contudo, o
contraste cuidadoso de Paulo parece ruir,
pois o objetivo que Israel perseguia, mas
não alcançara, não é a justiça, mas uma
lei de justiça. Alguns estudiosos sugerem
que Paulo com isso está querendo dizer
simplesmente o "princípio da justiça", ou
que podemos inverter os termos e tradu-
zi-los por "justiça da lei" (cf 10.5). Mas
é quase certo que a lei de que Paulo fala
aqui é a lei de Moisés, e devemos res-
peitar a ordem das palavras que Paulo
escolheu. Paulo usa essa expressão para
enfatizar que a busca de Israel pelo direito
de se relacionar com Deus estava estreita-
mente ligada à lei: eles estavam em busca
de "uma lei que oferecia a promessa de
justiça" (cf 2.13).
Esse objetivo eles não atingiram e nem
poderiam atingir. Pois a lei, como Paulo
deixou claro anteriormente, nunca pode-
rá trazer justiça (3.20,28; 4.13-15; 8.3).
Paulo, portanto, rompe o paralelismo entre
os gentios e Israel para expor o fato de que
Israel é culpado tanto pelo que estava bus-
cando (a lei de justiça) quanto pela forma
como o fazia (porque [a justiça] não de-
correu da fé, e sim como que das obras).
Seus olhos estavam tão voltados para a lei
que, em vez de abraçarem a Jesus Cristo, o
ROMANOS 9
verdadeiro objetivo da "corrida" (cf 10.4),
tropeçaram nele. Paulo toma essa imagem
de Isaías 8.14, que ele cita no v. 33 junto
com Isaías 28.16.
Em 10.1-4 Paulo discorre sobre esse
"tropeço" dos judeus em Jesus Cristo.
Depois de reafirmar seu profundo anseio
pela salvação de seus irmãos e irmãs ju-
deus (cf 9.1-3), Paulo culpa os judeus por
não terem conhecimento dos caminhos
e propósitos de Deus que corresponda a
seu zelo inegável. Utilizando a imagem da
corrida em 9.30-33, Israel estava correndo
com determinação, mas não em direção
à verdadeira linha de chegada. Essa linha
de chegada é a justiça de Deus (3, "que
vem de Deus", NVI). A tradução melhor é
mesmo "a justiça de Deus" (do grego tên
tou theou dikaiosynêni e, como em 1.17 e
3.21,22, refere-se ao ato de Deus em tor-
nar as pessoas justas diante dele. Voltados
para a busca de sua própria justiça, a jus-
tiça que vem pelas obras (9.32) e pela lei
(10.5), os judeus não tinham se submetido
e não estavam dispostos a aceitar, em fé, a
maneira de Deus estabelecer um relaciona-
mento com as pessoas.
A preocupação dos judeus com a lei é
de novo o problema fundamental, como
Paulo deixa implícito no v. 4. Pois eles não
conseguiram entender que Cristo é, em si
mesmo, a "culminação" da lei. Paulo usa
a palavra telas, que alguns traduzem por
fim (ARA e também NVI; RSV) e outros por
"objetivo", "alvo". Em consonância com
a imagem da corrida na passagem, no en-
tanto, a palavra provavelmente contém
elementos de ambas as traduções. Cristo,
segundo Paulo, sempre foi o objetivo para
o qual a lei apontou; e uma vez que o ob-
jetivo já foi atingido - Cristo veio - a
busca da lei não deveria ser um fim em si
mesmo. Esse versículo, junto com Mateus
5.17, representa uma expressão-chave de
um tema predominante no NT: o clímax
ou "cumprimento" da antiga lei da alian-
ça e todas as suas instituições em Jesus,
o Messias. Com esse cumprimento vem
1724
também a intenção de Deus de oferecer
justiça a todo aquele que crê, tanto a gen-
tios como a judeus (cf 9.30; 10.12,13).
A terceira afirmação de Paulo sobre o
contraste entre as duas formas de justiça
(10.5-13) tem dois propósitos principais.
Ela usa o próprio AT para reafirmar que a
diferença principal entre elas é a distinção
entre "cumprir" (a lei) e "crer" (no evange-
lho) (5-10) e reafirma a dimensão "univer-
salista" da justiça de Deus pela fé (11-13;
cf. 10.4b: ela é para todo aquele que crê).
A citação que Paulo faz do AT, aparente-
mente "contraditória" nos v. 5-8, foi tema
de grande controvérsia e discussão. Não
podemos evitar o problema eliminando o
contraste entre os v. 5 e 6 (Cranfield, e.g.,
traduziria "e" no início do v. 6) ou negando
que Paulo esteja verdadeiramente citando o
AT nos v. 6-8. Pelo contrário, devemos en-
tender que Paulo está querendo extrair um
sentido mais completo das passagens que
ele cita à luz da vinda de Cristo. Levítico
18.5 pode permanecer como uma expres-
são válida dajustiça decorrente da lei, pois
tem seu foco naquilo que é característico
do sistema da lei mosaica: fazer. Somente
pela obediência, como Moisés enfatizava
repetidamente, poderia um judeu viver,
ou seja, desfrutar das bênçãos do Deus da
aliança.Tomada em seus próprios termos e
separada da promessa de Deus, a lei mo-
saica oferece a possibilidade de justiça e
vida somente se for realmente cumprida.
Tendo seu foco concentrado apenas na lei
mosaica, os judeus tinham se colocado em
uma posição de serem capazes de encon-
trar vida e salvação apenas "cumprindo-a"
- uma tarefa impossível, como Paulo dei-
xou claro (cf 3.9-20).
É precisamente a pronta disponibi-
lidade da justiça decorrente da fé, em
contraste com a impossibilidade de cum-
prir a justiça que decorre da lei, que é o
ponto da citação seletiva que Paulo faz de
Deuteronômio 30.12-14 nos v. 6-8. Apas-
sagem de Deuteronômio incentiva a obe-
diência à lei de Deus, lembrando os judeus
 1725
de que a palavra da lei de Deus está perto,
e que não há necessidade de ascender ao
céu ou descer ao abismo (Paulo pode aqui
ter mesclado uma alusão a Salmos 107.26
com a sua citação) para encontrá-la. Paulo
pode aplicar o texto à morte e ressurreição
de Cristo (6,7) e à palavra da fé, o evan-
gelho (8), porque ele vê em Cristo o cum-
primento da lei (4). O que o AT atribuiu à
lei Paulo agora entende ter-se "cumprido"
em Cristo e na mensagem do evangelho: a
pronta disponibilidade do meio que leva à
justiça. Continuar a se esforçar para cum-
prir a lei de Moisés como uma forma de
justiça - como os judeus estavam fazendo
- é deixar de ver o fato de que Deus agora
trouxe para bem perto sua palavra para o
povo na mensagem do evangelho da morte
e ressurreição de Cristo.
Os v. 9-13 elaboram duas implica-
ções da proximidade da palavra de Deus
no evangelho. Primeiro, porque Deus já
"fez" o que é necessário para garantir a
justiça, tudo que as pessoas precisam fazer
é crer. Segundo, o evangelho está "perto"
de todos, não apenas dos judeus. A men-
ção à boca e ao coração em Deuteronômio
30.14 leva Paulo a desenvolver cada um
desses temas nos v. 9,10. (Visto que essa é
a fonte das imagens, não devemos colocar
ênfase indevida na confissão oral, como se
Paulo a elevasse à condição de elemento
necessário para a salvação). O reconheci-
mento de que Jesus é o Senhor é o elemen-
to que Paulo claramente pretende destacar:
a atitude de crer no coração (cf 2.28,29). A
fé, mesmo sem cumprir a lei, traz salvação,
e a traz para todos, independentemente de
serem judeus ou gentios. Paulo prova esse
ponto citando Isaías 28.16 (11; observe
que Paulo usou esse texto antes em 9.33) e
Joel 2.32 (13). Indicativo do alto conceito
que Paulo tem de Jesus Cristo é o fato de
ele aplicar ao Senhor Jesus textos que fa-
lam do Senhor Deus.
Nota. 33 O fato de Pedro também ci-
tar Isaías 28.16 e 8.14 em conjunto (1Pe
2.6,8) pode indicar que eles faziam parte
ROMANOS 10 / '
·1lIl
de uma antiga coletânea cristã de "textos-
prova" messiânicos, cujo foco está em
Cristo, a "pedra".
10.14-21 Israel não tem desculpas.
Em 9.30-10.13 Paulo mostrou que o
fato de Israel não obter a salvação deve
ser atribuído à sua incapacidade de crer,
e não a alguma falha da palavra de Deus
(9.6a). Paulo agora elimina qualquer pos-
sível desculpa que Israel possa ter para não
crer ao afirmar que o evangelho, na verda-
de, foi trazido para "perto" de Israel (cf
v. 8). As condições para crer no evangelho
e encontrar a salvação foram cumpridas
(14,15,17,18). A culpa, então, é de Israel
por se recusar a ser obediente ao evangelho
(16) e por deixar de compreender o próprio
AT, que profetizou o que agora Deus fez no
evangelho (19-21).
Nos v. 14,15a Paulo usa uma série de
perguntas para estabelecer a série de con-
dições que devem ser cumpridas se as pes-
soas quiserem invocar o nome do Senhor
(13): mensageiros devem ser enviados, a
mensagem deve ser pregada, as pessoas
devem ouvir a mensagem e, quando a
ouvem, devem ser conduzidas à fé. Em
seguida, Paulo cita Isaías 52.7 - Quão
formosos são os pés dos que anunciam
coisas boas - para ressaltar a importância
do envio de pregadores e também passar
para um foco explícito no evangelho. Pois
no v. 16 Paulo deixa claro que a condição
desse ciclo que não se completou é a res-
ponsabilidade de todos os que ouvem os
pregadores das boas-novas de responder
em obediência e fé. Como a tradução da
ARA deixa explícito (o grego tem apenas
ou pantes, nem todos), Paulo agora está
pensando especificamente nos judeus.
Paulo cita novamente Isaías (53.1) para
buscar a confirmação profética do fato de
Israel não responder afirmativamente à
mensagem (cf também Jo 12.38).
Com o v. 17 começa um novo parágra-
fo. Tomando seu vocabulário da citação
de Isaías 53.1, Paulo reitera a ligação en-
tre ter fé e ouvir a mensagem (cf v. 14)
ROMANOS 11 1726
e identifica essa mensagem com a palavra
de Cristo, isto é, "a palavra que proclama
Cristo", o evangelho (cf v. 15,16). Paulo
quer mostrar nos v. 18-20 que Israel na
verdade já "ouviu" a palavra de Cristo e
"conheceu" o plano de Deus para a salva-
ção, como foi agora revelado por meio da
pregação do evangelho. Paulo provavel-
mente cita Salmos 19.4 (v. 18b) não como
uma profecia da pregação do evangelho,
mas simplesmente a fim de utilizar sua lin-
guagem para afirmar a difusão da procla-
mação do evangelho aos judeus em todo o
mundo mediterrâneo. Talvez seja a referên-
cia aos "confins do mundo" nessa citação
que leva Paulo a refletir nos v. 19,20 sobre
aquilo que foi para os judeus de sua épo-
ca "uma pedra de tropeço" na maneira de
aceitar o evangelho: a inclusão dos gentios
na igreja. Paulo mostra tanto por Moisés
(Dt 32.21) como por Isaías (65.1) que
Deus tinha planejado o tempo todo incluir
os gentios no seu plano de salvação e fazer
deles o seu povo (cf 9.24-26). Continuando
sua citação de Isaías (65.2), Paulo conclui
essa seção de seu argumento lembrando
seus leitores de dois fatos principais: Deus
tem estendido constantemente a palavra de
sua graça, o evangelho, ao povo de Israel,
mas este, por sua vez, tem sido um povo
rebelde e contradizente.
11.1-10 O presente de Israel:
"um remanescente pela graça"
Conforme Paulo descreveu em 9.30-
10.21, a condição presente de Israel parece
a de resistência obstinada à revelação da
justiça de Deus no evangelho. Como o
versículo de encerramento afirma, Israel é
"rebelde e contradizente". Este, no entan-
to, não é bem o caso, como Paulo agora
nos lembra. Já em 9.24,27-29 ele ressaltou
que há um remanescente de judeus que
continua sendo parte do povo de Deus. Ele
agora retoma esse tema, deixando claro
que, ainda que uma parte significativa do
povo de Israel se "endureceu" (7-10; cf
9.30-10.21), ainda há um remanescente
segundo a eleição da graça (5), judeus que
creram em Cristo.
Paulo demonstra novamente sua sensi-
bilidade em relação à forma como o seu en-
sinamento poderia ser mal interpretado, ao
levantar a questão: Terá Deus, porventura,
rejeitado seu povo? (1). Que Deus rejeitou
Israel como "seu povo" poderia muito bem
ser a conclusão extraída do argumento de
Paulo de que pertencer ao povo de Deus
depende totalmente do "chamado" sobera-
no de Deus, e não da descendência fisica
de Abraão (9.6-29), e da sua acusação de
que Israel não se submeteu à justiça de
Deus (9.30-10.21; cf 10.3). Mas, como
agora Paulo deixa bem claro, essa não é a
conclusão a que ele quer que cheguemos.
Deus não rejeitou o seu povo, a quem de
antemão conheceu (2a; cf SI 94.14). Paulo
está não apenas afirmando a eleição para a
salvação do remanescente (cf 9.6-9; 11.3-
6; assim Calvino), mas também está afir-
mando a contínua "eleição" de Israel como
um todo (cf 11.28,29). Essa afirmação,
portanto, apresenta-se como o título para
todo o capítulo, enquanto Paulo descreve
como a eleição de Israel por Deus se dá, no
presente, por meio da salvação do rema-
nescente (3-10) e, no futuro, por meio da
salvação de "todo o Israel" (11-27).
A situação em sua própria época, se-
gundo Paulo sugere, poderia ser compa-
rada à de Elias, pois o desencorajamento
do profeta em relação à apostasia genera-
lizada de Israel quanto à verdadeira adora-
ção do Senhor foi revertido pela garantia
do Senhor de que ainda havia um sólido
núcleo de sete mil "verdadeiros fiéis" (cf
IRs 19.10-18). Do mesmo modo, não obs-
tante a incredulidade prevalecente entre os
judeus da época de Paulo, ainda sobrevi-
ve um remanescente segundo a eleição da
graça. Um número significativo de judeus
- pessoas como o próprio Paulo (cf v. Ib)
- tomaram-se obedientes ao evangelho
de Jesus Cristo, sendo assim salvos. Mas
o remanescente existe somente como pro-
duto da graça de Deus, e não se pode par-
 1727
ticipar dele pelas obras (6). É essa preocu-
pação com as obras que provocou a queda
de tantos contemporâneos judeus de Paulo
e acabou por não deixá-los obter a justiça
que eles tão diligentemente buscavam (7;
cf 9.31,32; 10.2,3). Mas assim como é a
intervenção de Deus que traz a salvação
aos eleitos (cf graça no v. 6), assim é pelo
ato de Deus que os mais (os outros) não
conseguiram alcançá-la, pois eles foram
endurecidos. Que Deus é a causa desse
endurecimento fica claro pela citação de
uma combinação de Deuteronômio 29.4 e
Isaías 29.10 no v. 8, e pelo texto paralelo
de 9.18 [embora uma palavra grega dife-
rente (sklêrynõi seja usada ali, o conceito é
o mesmo]. Enquanto Israel continua a ser
plenamente responsável por sua falta de
aceitação do evangelho, Paulo deixa claro
que, de maneira misteriosa, Deus está por
trás dessa incapacidade de aceitá-lo.
11.11-32 O futuro
de Israel: salvação
A fidelidade de Deus à palavra da sua
promessa a Israel como nação (9.6a) é in-
violável: ele não rejeitará o povo que co-
nheceu de antemão (1,2). A incredulidade
da maioria dos judeus contemporâneos de
Paulo não deve nos cegar para o fato de
que o "endurecimento" de Israel nem é to-
tal (no tempo de hoje, sobrevive um rema-
nescente segundo a eleição da graça; 5),
nem definitivo (todo o Israel será salvo;
26). A previsão da salvação futura de Israel
é o foco desta seção de Paulo e o auge de
sua discussão sobre Israel e o evangelho.
Paulo conduz a discussão para esse tema,
mostrando como Deus está usando a incre-
dulidade atual de Israel para realizar seu
plano para a salvação do mundo (11-24).
Sua repreensão aos gentios cristãos, por
sua "jactância" inapropriada em relação
aos incrédulos judeus, mostra que a teolo-
gia que Paulo desenvolve nessa seção tem
uma aplicação prática muito específica.
11.11-24 Judeus e gentios no plano de
Deus. Paulo recorre novamente a uma per-
ROMANOS 11 <
gunta para introduzir a próxima etapa de
sua argumentação. Porventura tropeçaram
para que caíssem? E sua rápida e enfática
resposta - De modo nenhum! - mostra
mais uma vez que a pergunta revela uma
interpretação equivocada do que Paulo es-
tava dizendo. Sim, Israel como nação "tro-
peçara": não conseguiu ter fé em Cristo,
o meio escolhido por Deus para prover a
justiça (cf 9.33; 10.2-4). Mas o tropeço de
Israel não levou a uma ruína irreparável.
Pois a transgressão dos judeus deu início
a um processo pelo qual eles ficarão com
ciúmes e serão conduzidos por fim à sal-
vação (11b; cf 11.26). Isso acontece por
meio de um estágio intermediário: a sal-
vação dos gentios. O fato de os judeus te-
rem recusado o evangelho, segundo Paulo
deixa implícito, abriu o caminho para a
pregação aos gentios - uma circunstância
que Paulo tinha testemunhado várias ve-
zes em sua própria obra missionária (e.g.,
At 13.45-47; 18.6; 19.8-10; 28.24-28).
Ao mesmo tempo, temos de salientar que
a troca de judeus por gentios foi muito
mais do que uma circunstância histórica:
Como o NT deixa claro aqui e em outras
passagens, isso era parte do plano sobera-
no de Deus para a salvação (v. as citações
de Is 49.6 em At 13.47, e de Am 9.12 em
At 15.16-18). Assim, quando os judeus
veem os gentios desfrutando da bênção
de Deus, ficam, por sua vez, enciumados
- como está previsto em Deuteronômio
32.21, que Paulo cita em 10.19.
Nesse parágrafo Paulo coloca a incre-
dulidade dos judeus no contexto da reve-
lação do plano de Deus para a salvação de
todo o seu povo. Esse plano envolve uma
alternância entre judeus e gentios em três
estágios: (i) a transgressão dos judeus abre
caminho para (ii) a salvação dos gentios,
o que redunda, no final, (iii) na salvação
dos judeus. A importância desse ponto
para o argumento de Paulo é revelada no
fato de que ele o reitera pelo menos seis
vezes nessa seção (cf v. 12; 15; 16; 17-24;
25,26; 30,31). No v. 12 e novamente no
ROMANOS 11 1728
v. 15 a inclusão final dos judeus - sua ple-
nitude/seu restabelecimento - conduz a
um quarto estágio: riquezas/vida dentre os
mortos. Uma vez que Paulo apresenta essa
inclusão dos judeus como um fato do final
dos tempos (11.26), é provável que essas
expressões se refiram ao estabelecimento
completo do Reino de Deus com a vinda
de Cristo, trazendo consigo bênção extraor-
dinária e a ressurreição dos mortos.
Além de explicar como a transgres-
são presente de Israel será revertida, esse
esquema atinge dois outros propósitos.
Primeiro, Paulo apela a ele para explicar
como o seu chamado para ser o apóstolo
dos gentios não implicava um desvio do
seu profundo desejo de salvar o maior nú-
mero possível de seus contemporâneos ju-
deus (13,14). Pois, por meio da conversão
dos gentios, Paulo está, ao mesmo tempo,
promovendo um grande ciúme entre os
judeus, e talvez trazendo para mais perto
aquele dia quando virá "a plenitude dos
gentios" (25).
Segundo, Paulo encontra nesse proces-
so razão para repreender os cristãos gen-
tios em Roma por sua atitude arrogante em
relação aos judeus (17-24). Paulo deixa
claro no v. 13 que ele está escrevendo a
esses cristãos gentios como a indivíduos
responsáveis nos v. 17-24 (observe-se que
o tratamento nesses versículos está no sin-
gular, "tu"). Esses versículos caracterizam
a famosa metáfora da oliveira de Paulo.
Paulo compara a raiz da árvore aos patriar-
cas de Israel (cf v. 28), os ramos naturais
aos judeus, a oliveira brava aos gentios e
a própria oliveira ao povo de Deus. Os
estudiosos têm discutido se as imagens
utilizadas por Paulo seguiam práticas
da agricultura de sua época. Esse debate
é, no entanto, equivocado, uma vez que
Paulo poderia muito bem adaptar o pro-
cesso natural para atender sua aplicação
teológica. A jactância dos cristãos gentios,
da qual Paulo trata aqui, parece ter sido
ocasionada pelo fato de que os ramos natu-
rais, isto é, os judeus, foram quebrados, de
modo que os ramos da oliveira brava, os
gentios, pudessem ser enxertados (17,19).
Paulo não discute isso - e, na verdade, ele
mesmo tinha afirmado algo parecido com
isso (11,12,15) - mas contesta o direito
de qualquer arrogância dos cristãos gen-
tios em relação ao fato. Eles não devem se
esquecer de que a raiz da oliveira em que
foram enxertados é, em si, judaica, pois o
povo de Deus foi construído sobre as suas
promessas e relações com os patriarcas
(cf também 4.11,12,16,17; Gl 3.15-29).
A igreja, à qual os cristãos gentios per-
tencem em Roma, não é nada menos do
que uma continuação do povo de Deus a
partir da AT.
Paulo apresenta uma segunda razão
pela qual os gentios não devem se vanglo-
riar: é perigoso para a condição espiritual
da pessoa. Pois a arrogância é o contrário
da fé, a nossa aceitação humilde do presen-
te da salvação de Deus (20-22). Os judeus
perderam o seu lugar em meio ao povo de
Deus por causa da incredulidade, e os cris-
tãos gentios em Roma precisam reconhe-
cer o perigo que correrão se sucumbirem
ao mesmo pecado.
Ao final dessa seção (23,24), Paulo re-
toma ao ponto em que começou (12,13),
utilizando a imagem da oliveira para dar
esperança à salvação futura dos judeus.
Embora, no presente, estejam quebrados
(17-20), esses ramos naturais continuarão
a compartilhar da santidade da raiz da qual
se originaram (16b). Então, de modo muito
mais rápido do que os gentios, que são en-
xertados contra a natureza, os judeus po-
dem ser enxertados novamente na oliveira
de Deus. Mas isso só pode acontecer se os
judeus não permanecerem na incredulida-
de. Conquanto a salvação final de Israel
seja certamente obra de Deus, ela não pode
ocorrer sem a resposta de fé que Deus sem-
pre estabeleceu como pré-requisito para se
desfrutar de suas bênçãos.
11.25-32 "Todo o Israel será salvo".
A esperança de uma restauração futura de
Israel com que Paulo acenou ao longo dos
 v. 11-24 (cf v. 12,15,23,24) é agora afir-
1729
mada na forma de revelação de um misté-
rio. A utilização que Paulo faz disso está
fundamentada no AT (Dn 2.27-30,47; 4.9)
e no conceito apocalíptico dos judeus, se-
gundo o qual o plano de Deus para a his-
tória é completamente determinado, mas
algo oculto que aguarda sua revelação
no momento adequado (v. especialmente
lCo 2.7; Ef 3.9; Cl 1.26,27). O compo-
nente principal desse mistério agora reve-
lado por Paulo é a maneira pela qual Deus
está agora trabalhando com os gentios (cf
especialmente Ef 3.1-10). Assim, não é
nada surpreendente que Paulo chame de
"mistério" a alternância entre judeus e
gentios no plano de Deus para a salvação.
O v. 25 reafirma resumidamente o proces-
• so que Paulo delineou várias vezes nos v.
11-24: que veio endurecimento em parte
a Israel, até que haja entrado a plenitude
dos gentios. O endurecimento dos judeus
por Deus, como Paulo demonstrou nos v.
3-10, é parcial pois alguns judeus estão
vindo para Jesus e sendo salvos. Mais de
uma vez ele assinalou a limitação tempo-
ral desse endurecimento, que ele agora
deixa explícita: ela durará até que o nú-
mero de gentios determinado por Deus
tenha entrado no Reino de Deus (cf tam-
bém Lc 21.24).
Essa clara ênfase temporal no v. 25 faz
com que seja provável que a salvação de
todo o Israel (26) deva acontecer após ter
entrado a plenitude do número de gentios.
Com certeza, a palavra que introduz esse
versículo (houtos) tem seu foco voltado
não para o tempo dessa salvação, mas
para a sua forma, assim ou "desta forma".
Mas, como Paulo mostrou repetidamente,
a maneira pela qual Deus conduzirá Israel
à salvação é semelhante à última etapa de
um processo histórico. Portanto, é pouco
provável que nesse versículo Paulo esteja
falando da salvação dos judeus ao longo
da história da igreja. Igualmente impro-
vável é o ponto de vista defendido pelos
reformadores, que Paulo esteja se referin-
ROMANOS 11 <
do à salvação de toda a igreja, "o Israel
de Deus" (cf Gl 6.16). O termo "Israel"
ao longo dos cp. 9-11 significa raça e
não uma entidade espiritual, e o contraste
com os gentios, no v. 25, toma ainda mais
provável esse significado aqui. Paulo está
descrevendo um evento que terá lugar no
final da história, quando Cristo retomar
em glória; quando (como expressa Isaías
59.20,21) virá de Sião o Libertador e se-
rão tirados os pecados de Israel (26b,27).
Todo o Israel tem um sentido coletivo: não
quer dizer cada judeu da última geração,
mas, em contraste com os escassos nú-
meros atuais, um número suficientemente
grande para representar a raça como um
todo (cf a máxima rabínica "Todos os
israelitas têm parte no mundo por vir",
que é seguida de uma lista de exceções
[mo Sanh. 10.1]). Alguns estudiosos afir-
mam que Deus vai salvar Israel de uma
"forma especial", à parte de uma fé cons-
ciente em Jesus, mas isso não é correto. A
salvação de todo o Israel terá lugar apenas
quando indivíduos judeus da época depo-
sitarem sua fé em Cristo (cf v. 23: se não
permanecerem na incredulidade). A fé em
Cristo é o único meio de salvação, tanto
para o judeu como para o gentio (1.16,17;
10.11-13).
Depois da sua previsão culminante da
salvação de "todo o Israel" Paulo apresen-
ta sua base para tal afirmação: a eleição
irrevogável de Deus do seu povo Israel
(28,29) e sua determinação de ter miseri-
córdia de "todos" (30-32). Ambos os pon-
tos repetem os componentes essenciais da
argumentação de Paulo nesses capítulos.
Como Paulo deixou claro, os judeus como
um todo são, no presente, inimigos de Deus
(cf 9.30-10.21) em virtude da rejeição do
evangelho. Ao mesmo tempo ele também
deixou claro que a eleição de Israel por
Deus permanece válida (11.1,2). Mas não
podemos nos esquecer do que Paulo dis-
cutiu em 9.6b-29: a eleição de Israel está
baseada no chamado livre e soberano de
Deus e não na descendência racial. Assim,
>
ROMANOS 11 1730
a validade contínua da eleição de Israel,
no que diz respeito à salvação, deve ser
limitada àquelas circunstâncias que Paulo
descreveu: a vinda dos judeus a Cristo du-
rante a era da igreja (O remanescente; cf
9.27-29; 11.3-7), bem como a dramática
conversão de um grande número de judeus
ao Messias na época do retomo de Cristo
(11.25-27). Os v. 30,31 reafirmam uma úl-
tima vez o processo de desobediência dos
judeus/salvação dos gentios/salvação dos
judeus que é central nessa parte do argu-
mento de Paulo. É nos termos dessa alter-
nância entre judeus e gentios que o v. 32
deve ser interpretado. Paulo não está en-
sinando aqui um universalismo individual
- que cada ser humano experimentará a
misericórdia de Deus e assim será salvo
(como, e.g., Dodd e Cranfield sugerem).
Antes, ele está pregando um universalismo
nacional: a misericórdia de Deus vem tan-
to para os gentios como para Israel.
11.33-36 Propósito e plano
maravilhosos de Deus
Paulo conclui seu exame do passado, pre-
sente e futuro de Israel com um hino de
louvor ao Deus cujos caminhos estão além
de nosso entendimento e crítica. A sabedo-
ria e o conhecimento de Deus (33) refe-
rem-se particularmente à revelação de seus
propósitos em Cristo (Ef 3.5,10; Cl 2.3).
Esses propósitos, como Paulo mostrou nos
cp. 9-11, estão sendo desenvolvidos no
âmbito de um processo histórico que en-
volve tanto judeus como gentios. Podemos
não entender todos os detalhes desse plano
e podemos até ser tentados a questionar al-
gumas partes dele, mas, como Paulo nos
lembra com as citações do AT nos v. 34,35
(Is 40.13 e Jó 41.11a), qualquer crítica de
nossa parte, meros mortais, está completa-
mente fora de questão. Pois Deus é a fonte
(dele), o sustentador (por meio dele) e o
objetivo (para ele) de tudo. Diante desse
Deus sábio e soberano a nossa resposta só
pode ser a de Paulo: A ele, pois, a glória
eternamente!
12.1-15.13 O evangelho e a
transformação de vida
Paulo mostrou que o evangelho que ele
prega tem o poder de transferir os cris-
tãos do reino do pecado e da morte para o
reino da justiça e da vida. Mas essa trans-
ferência, como Paulo observou (6.11-23;
8.12,13), não isenta os cristãos da res-
ponsabilidade de viver a justiça tão gra-
ciosamente concedida pelo evangelho.
Deus está trabalhando para nos trans-
formar à imagem de seu Filho (8.29),
mas devemos participar desse processo
empenhando-nos para tomar real essa
transformação na nossa vida cotidiana.
Por isso 12.1-15.13 se encaixa natu-
ralmente na apresentação que Paulo faz
do evangelho; na verdade, a sua apresen-
tação ficaria incompleta sem isso. Uma
nova forma de viver não é consequência
do evangelho, mas parte desse evange-
lho, cujo propósito é produzir a "obe-
diência por fé" (1.5).
O apelo inicial de Paulo capta a es-
sência do que significa viver como cristão
(12.1,2). Então seguem apelos específicos
relativos à unidade e aos dons (12.3-8), o
amor aos companheiros tanto fiéis quan-
to incrédulos (12.9-21), as atitudes para
com as autoridades (13.1-7) e novamente
o amor (13.8-10). Em 13.11-14 Paulo re-
toma para o ponto em que começou em
12.1,2, com outro lembrete sobre a natu-
reza dos tempos em que agora vivem os
cristãos. Paulo encerra essa seção da car-
ta com uma exortação longa ao forte e ao
fraco na igreja de Roma (14.1-15.13).
É evidente que nessa última seção Paulo
está escrevendo tendo em mente a situ-
ação específica dos cristãos romanos.
Os apelos anteriores (cp. 12-13) não
são tão claramente dirigidos à situação
em Roma. Até mesmo aqui, no entanto,
enquanto Paulo está sem dúvida resu-
mindo de forma geral alguns dos prin-
cípios básicos da vida cristã, há alguma
alusão aos problemas e às necessidades
da igreja romana.
 1731
12.1,2 O cerne da questão:
uma mente renovada
A convocação de Paulo para que transfor-
memos nossa vida não acontece em um
vácuo. É apenas na perspectiva das mise-
ricórdias de Deus que o seu apelo se toma
relevante e que a nossa obediência a ele é
possível. Quando reconhecemos tudo (ob-
serve o plural da palavra "misericórdia",
assim também no grego) que Deus fez por
nós em seu Filho, como Paulo analisou nos
cp. 1-11, percebemos que oferecer-nos a
Deus como sacriflcio vivo é, na verdade,
um ato "razoável" (logikênv de adoração,
ou seja, um culto racional. A palavra vivo
nos lembra do que Deus fez por nós: somos
pessoas que agora estão "vivas para Deus
em Cristo Jesus" (6.11). Paulo nos enco-
raja a considerar toda a nossa vida cristã
como um ato de adoração. Não é apenas o
que fazemos no domingo, dentro de uma
igreja, que "atribui valor" a Deus, mas o
que Deus e o mundo veem em nós a cada
dia e a cada momento da semana.
O v. 2, ainda que gramaticalmente pa-
ralelo ao v. 1, realmente explica de forma
mais detalhada como esse oferecimento
de nós mesmos como sacrificios deve ser
realizado. O que se requer é nada menos
do que uma transformação total da nossa
visão de mundo. Já não devemos olhar
para a vida nos termos deste século, o do-
mínio do pecado e da morte do qual fo-
mos transferidos pelo poder de Deus (cf
5.12-21), mas com os olhos do novo reino
ao qual pertencemos, o reino regido pela
justiça, pela vida e pelo Espírito. Embora
vivendo no mundo, não somos mais "deste
mundo" (Jo 17.15,16). A essência da vida
cristã bem-sucedida é a renovação de nos-
sa mente de modo que possamos ser ca-
pazes de provar qual é a vontade de Deus,
isto é, reconhecer e pôr em prática a von-
tade de Deus em todas as situações com
que deparamos. Deus não deu aos cristãos
um conjunto detalhado de mandamentos
para nos guiar. Ele nos deu o seu Espírito,
que está operando para transformar nosso
ROMANOS12<
coração e mente por dentro de modo que
nossa obediência a Deus possa ser natural
e espontânea (cf 7.6; 8.5-9; Jr 31.31-34;
2Co 3.6,7; Ef 4.22-24).
12.3-8 Humildade e dons
O propósito de Paulo nesse parágrafo é
promover a unidade entre os cristãos por
meio do encorajamento a uma atitude de
humildade de uns para com os outros, em
especial no que diz respeito a possuir e
usar os dons espirituais. Paulo nos exorta
a não pensar de nós mesmos além do que
convém, mas a olhar para nós mesmos de
maneira honesta e objetiva. Devemos me-
dir-nos a nós mesmos, e não uns aos ou-
tros, pela medida da fé (metron pisteõs).
Alguns estudiosos entendem que essa ex-
pressão designa as diferentes porções de fé
que Deus deu a cada um de nós (cf a NVI
e ARA). O contexto, no entanto, sugere que
Paulo está falando aqui da nossa fé cristã
comum, segundo a qual cada um de nós
deve medir-se a si mesmo (JB: "o padrão da
fé"). Quando fazemos isso, a comparação
de nós mesmos com os outros cristãos se
toma relativamente irrelevante - particu-
larmente porque Deus deu dons diferentes
aos membros da igreja, o corpo de Cristo
(4,5). O que é necessário é reconhecer a be-
leza da diversidade e complementaridade
dadas por Deus e conduzidas pelo Espírito
dentro da igreja (v. ênfase semelhante em
ICo 12.4-31).
Apesar de Paulo não mencionar aqui
explicitamente o papel do Espírito, seu en-
volvimento fica implícito pela referência
aos dons (charismata; cf 1.11; lCo 12.7-
11). Paulo menciona dons específicos em
duas outras passagens (lCo 12.7-11,28;
Ef 4.11), e uma comparação desses textos
revela que em nenhum deles ele está bus-
cando fornecer uma lista exaustiva. Antes,
em cada passagem Paulo seleciona exem-
plos que serão relevantes para o seu propó-
sito. O objetivo de Paulo neste momento é
incentivar cada cristão a usar os seus dons
de maneira enérgica e apropriada e a não
ROMANOS 12
se preocupar com os dons que outros pos-
sam ter, ou com a maneira como possam
estar utilizando-os. Profecia (6b) é o dom
de transmitir a outros cristãos a verdade
que foi revelada ao profeta por Deus (cf
lCo 14.1-32). O profeta deve exercer seu
dom segundo a proporção da [de sua]fé,
uma expressão que tem o mesmo sentido
que "medida de fé" no v. 3 (talvez fa-
zendo a sua parte no trabalho da igreja).
Ministério (7a) pode significar um deter-
minado ministério de ensino ou condução
de adoração, mas é provavelmente uma
designação geral de vários ministérios (v.
lCo 12.5). Ensino (7b) envolve a trans-
missão da doutrina cristã (cf 2Tm 2.2);
exortação (8) inclui uma ampla varieda-
de de ministérios de discurso ou oratória.
Somos lembrados das maneiras variadas
pelas quais Deus leva as pessoas, bem
como a comunidade, a servi-lo, através
da inclusão do dom de contribuir para as
necessidades dos outros (8b).
12.9-21 Amor
Nem todos esses versículos tratam de um
único tema, na medida em que Paulo fala
de vários componentes da "boa, agradável
e perfeita vontade" de Deus, que os cristãos
com a mente renovada devem experimen-
tar (2b). Mas eles têm um tema central: a
exigência de amar aos outros, anunciada
no v. 9, e que se apresenta como um título
de toda a seção. Embora nenhuma demar-
cação rígida seja possível, podemos dividir
esse parágrafo em duas seções principais:
v. 9-16 e 17-21. A primeira seção tem seu
foco voltado para as responsabilidades dos
cristãos para com os outros cristãos, en-
quanto a segunda (prenunciada no v. 14)
se concentra nos relacionamentos com as
pessoas que se encontram fora da igreja.
A quantidade de paralelos estreitos com os
ensinamentos de Jesus (cf especialmente o
v. 14 com Mt 5.44 e o v. 21 com Mt 5.39)
sugere que Paulo pode estar refletindo aqui
sobre um antigo conjunto comum de orien-
tações éticas cristãs.
1732
O amor sem hipocrisia é o amor ver-
dadeiro, sem fingimento (v. também
2Co 6.6; lTm 1.5; lPe 1.22), do tipo que
nasce do coração e da mente renovados.
Detestai o mal, apegando-vos ao bem (9)
pode explicar o que é o amor sincero, mas
são provavelmente ordens independentes.
Começando no v. 10, Paulo encoraja os
cristãos a procurar o amor sincero e fa-
zer o bem em seus relacionamentos com
outros cristãos. Amai-vos cordialmente
uns aos outros com amor fraternal, prefe-
rindo-vos em honra uns aos outros reme-
te ao que Paulo expressa muito bem em
Filipenses 2.3b: "considerando cada um
os outros superiores a si mesmo". A seme-
lhança entre esse apelo e o v. 3 sugere que
Paulo já se preocupava com o problema
da falta de unidade na igreja romana (cf
14.1-15.13). O zelo (v. 11) com Deus e
com as coisas de Deus deveria caracteri-
zar sempre os cristãos, como o fez com o
nosso Senhor (v. Jo 2.17). Os meios para
manter esse zelo são fornecidos na ordem
seguinte, que seria mais bem traduzido por
"permitam que cada um seja inflamado
pelo fogo do Espírito Santo" (Cranfield; a
NVI difere, não entendendo pneuma como
sendo o Espírito Santo). Tal zelo, estimu-
lado pelo próprio Espírito, levará o cristão
a servir verdadeiramente ao Senhor. Paulo
falou anteriormente em Romanos sobre a
esperança (5.2-10; 8.18-30), as tribula-
ções (5.3,4) e a oração (8.26,27); ele agora
lembra os cristãos brevemente (12) da ati-
tude correta em relação a cada um desses
temas. O amor sincero também conduz a
passos práticos na ajuda aos cristãos que
passam por necessidades (13; v. também
lJo 3.17,18).
O v. 14 interrompe o chamado para que
os cristãos amem e façam o bem uns aos
outros, e antevê os v. 17-21. Fica eviden-
te a relação entre o mandamento de Paulo
abençoai os que vos perseguem e o ensino
de Jesus no Sermão da Montanha (5.44).
O mandamento de Jesus provavelmente se
tomou o elemento principal da instrução

1733
da igreja cristã primitiva (v. também 1Pe
3.9). No v. 15 Paulo retoma o relaciona-
mento entre os cristãos. O envolvimento
empático com as alegrias e sofrimentos
dos demais cristãos é a marca do amor sin-
cero para com irmãos e irmãs (10). O pro-
blema é que os cristãos pensam muito em
si mesmos. Paulo adverte novamente os
cristãos romanos sobre isso (cf também v.
3,lOb) e os encoraja a estender a sua com-
paixão e preocupação até mesmo a pesso-
as humildes. A palavra que Paulo usa aqui
(tapeinos) se refere àqueles muitos cristãos
do século I que pouco podiam se vanglo-
riar no que diz respeito a bens materiais ou
posição social (cf Lc 1.52; Tg 1.10).
Na última seção desse parágrafo (17-
21) Paulo convoca os cristãos para que
demonstrem amor sincero (9) para com
aqueles que se opõem a eles. Lembrando
novamente o ensinamento de Jesus (Mt
5.38-42; cf 1Ts 5.15; 1Pe 3.9), Paulo proí-
be retaliações (17a; cf v. 19). Em seu lu-
gar, ele incentiva os cristãos a terem uma
reação positiva: Esforçai-vos por fazer o
bem (lit. "coisas boas"; cf 12.2b) perante
todos os homens. Especificamente, o cris-
tão deve procurar manter relacionamentos
pacíficos com cristãos e também com não
cristãos (cf Pv 3.4; 2Co 8.21). No entan-
to, Paulo reconhece que a nossa liberdade
para fazê-lo será limitada pelas atitudes
dos outros e por nossa necessidade de não
comprometer nossa integridade cristã. A
paz com os outros nunca deve ser adqui-
rida ao preço de nossas convicções e tes-
temunho cristãos. Assim, ele acrescenta a
qualificação quanto depender de vós.
À sua segunda proibição (19) Paulo
acrescenta uma explicação da razão por
que tal retaliação é desnecessária. Devemos
nos lembrar que servimos a um Deus justo
e soberano, um Deus que prometeu vingar
as injustiças daqueles que são maltratados
neste mundo (Dt 32.35). Devemos, portan-
to, não achar necessário assumir o papel
de vingadores, mas sim dar lugar à ira. (O
grego não deixa bem claro que a ira é de
111
ROMANOS 13 111111
111.
Deus, mas esse é certamente o significado
que Paulo pretendia dar aqui; "deixem com
Deus a ira", NVI). Paulo cita Provérbios
25.21,22 para reforçar o seu argumento
contra a vingança. Mais uma vez, como no
v. 17, o propósito aqui é que os cristãos de-
vem substituir a vingança pelo ato de fazer
o bem aos seus inimigos. Quando fazemos
bem ao inimigo, estamos amontoando bra-
sas vivas sobre a sua cabeça. Isso pode ser
uma referência a um castigo divino futuro:
se o inimigo não for levado a se arrepender
por nossas boas ações, nossas ações amá-
veis tomarão a ira de Deus muito pior. Mas
o fato de sermos nós, pelas nossas boas
ações, que colocamos o carvão em brasa
sobre o inimigo sugere que Paulo está an-
tes nos acenando com a esperança de que
a nossa bondade estimulará a vergonha e o
arrependimento no inimigo. O v. 21 - Não
te deixes vencer do mal, mas vence o mal
com o bem - é uma conclusão adequada
dessa seção (17-21) e, indiretamente, de
todo o trecho dos v. 3-20.
Notas. Os mandamentos nos v. 9-13 e
16-19 representam particípios no grego,
uma forma verbal que normalmente não
indica uma ordem. Seu uso por Paulo aqui
pode refletir a tendência de muitos rabi-
nos de usar o particípio do hebraico para
dar uma ordem. 11 Em vez de servindo ao
Senhor (kuriõ), alguns manuscritos trazem
a expressão "servindo ao tempo" (kairõ).
Esta última, sem dúvida, é a leitura mais
difícil, o que muitas vezes é uma indicação
de autenticidade, mas carece de suficiente
apoio externo. 20 O uso de brasas vivas
para simbolizar vergonha e arrependimen-
to em Provérbios 25.22 pode ser derivado
de um ritual egípcio, no qual uma pessoa
podia supostamente limpar seus pecados
carregando sobre a cabeça uma bandeja
com brasas vivas.
13.1-7 A responsabilidade cristã
em relação ao governo
Paulo não conecta de maneira explícita
esse parágrafo com o anterior, e isso levou
ROMANOS 13 1734
alguns estudiosos a pensar que ele fosse
talvez um acréscimo posterior pós-paulino
ao texto de Romanos. Mas não há evidên-
cia textual para uma interpretação tão drás-
tica. A passagem se encaixa perfeitamente
no contexto: submissão às autoridades é
parte da "boa, agradável e perfeita vontade
de Deus" (l2.2b) que Paulo estava descre-
vendo, e é também um exemplo concreto
de " fazer o bem perante todos os homens"
(l2.17b). Paulo poderia estar consciente de
que os cristãos romanos precisavam parti-
cularmente de tal conselho, uma vez que
havia evidências de que vários grupos na
capital, incluindo judeus, estavam provo-
cando agitações em protesto contra o pa-
gamento de impostos nessa época (Tácito,
Ann. 15.50s). No entanto, Paulo aconselha
os romanos cristãos a pagar seus impostos
(6,7) como parte de suas obrigações gerais
de se submeter às autoridades do Estado
(la,5a). Tal submissão é exigida, Paulo
argumenta, porque as autoridades gover-
namentais são estabelecidas por Deus para
servir aos seus propósitos de recompensar
o bem e punir o mal (l b-4,5b).
As autoridades (no grego exousiai)
claramente são as pessoas em posições
de autoridade nos governos seculares; na
época de Paulo, é claro, especialmente os
oficiais romanos imperiais e provincia-
nos. Submeter-se a essas autoridades sig-
nificava reconhecer sua posição "acima"
do cristão na "ordem" que há no mundo.
Essa "ordem" inclui tanto as instituições
seculares que não têm a sanção de Deus
(e.g., a escravidão, Tt 2.9; lPe 2.18) quan-
to as instituições ordenadas por Deus para
o bem do seu povo (e.g., o casamento,
Ef 5.22; Cl 3.18; Tito 2.5; lPe 3.1,5; a
família, Lc 2.51; a liderança da igreja,
lCo 16.16; IPe 5.5. Ef5.21 provavelmen-
te inclui o casamento, a família e a escra-
vidão). As autoridades, como Paulo deixa
claro nos v. 1b-4, enquadram-se claramen-
te na segunda categoria. Fazendo eco a
doutrinas consistentes do AT (Pv 8.15,16;
ls 40.15,23,24; Dn 2.21; 4.17,25,32; 5.21)
e ao ensino judaico (Sabedoria de Salomão
6.3; Eclesiástico 10.4; 17.17), Paulo nos
lembra que cada autoridade foi instituí-
da (tetagmenai) por Deus, sendo assim,
ministro de Deus, ainda que indireta ou
inconscientemente (4,6). As autoridades
governamentais servem a Deus ao prote-
ger os que fazem o bem (3b,4a) e ao punir
os que praticam o mal (3a,4b). Portanto, os
cristãos, assim como todo mundo (cf v. 1),
devem fazer o que as autoridades gover-
namentais pedem que façam; e não só por
temer a punição, mas também por reconhe-
cer que Deus está por trás das autoridades
e por querer evitar fazer o que violaria nos-
sa consciência (5b).
O ensino de Paulo nesse parágrafo pa-
rece ser bastante direto e é, na verdade,
paralelo a outros livros do NT (v. especial-
mente lPe 2.13-17). No entanto, a ordem
aparentemente absoluta para se fazer o
que as autoridades pedem que façamos
cria problemas para a maioria dos cris-
tãos. Esses problemas são resultantes não
só da nossa experiência - muitos cristãos
são obrigados a viver sob governos dita-
toriais e radicalmente anticristãos - mas
de orientações do próprio NT, que em mui-
tas passagens defende a desobediência aos
governantes em algumas situações como
algo louvável (At 4.19,20; Apocalipse).
Portanto, o problema criado por 13.1-7
tem sido resolvido de diversas maneiras.
Alguns estudiosos argumentam que Paulo
está ordenando obediência ao governo
apenas quando este está cumprindo suas
funções de recompensar o bem e punir o
mal. Embora possa haver alguma verdade
nisso, Paulo não toma a obediência cristã
contingente ao comportamento do gover-
no. Outros pensam que Paulo pode estar
se referindo a uma situação imediata da
comunidade romana; mas a linguagem
universal do texto (todo, não há autori-
dade, no v. 1) toma isso improvável. Uma
alternativa mais atraente é que a exigência
de Paulo de que os cristãos se sujeitem à
autoridade significa simplesmente que eles
 1735
reconhecem o lugar legítimo da autorida-
de na hierarquia das relações estabelecidas
por Deus, uma hierarquia em cujo topo se
encontra o próprio Deus. Quando, no en-
tanto, o governo usurpa o lugar de Deus
e nos manda fazer algo contrário ao nosso
Senhor, somos livres - aliás, obrigados
- a desobedecer. Esse ponto de vista pode,
no entanto, enfraquecer indevidamente o
significado de "submeter-se". Talvez a me-
lhor solução, então, seja entender 13.1-7
como uma declaração geral sobre a forma
de os cristãos se relacionarem com as au-
toridades, sendo que há exceções a esses
conselhos presumidas, embora não deta-
lhadas, aqui.
13.8-10 O amor e a lei
A primeira parte do v. 8 é transicional. A
ninguém fiqueis devendo coisa alguma re-
pete uma implicação importante extraída
da necessidade de os cristãos se submete-
rem às autoridades seculares (cf v. 7a), e é
a base para o lembrete de Paulo de que os
cristãos têm uma dívida que nunca pode-
rão pagar: o amor com que vos ameis uns
aos outros. Paulo retoma ao tema do amor
(cf 12.9-21), destacando sua importância
ao apresentá-lo como o cumprimento (8 e
10) ou a síntese (9) da lei mosaica. A cen-
tralidade de Levítico 19.18, o "mandamen-
to do amor", foi enfatizada e sublinhada
pelo próprio Jesus (Mt 5.43; 19.19; 22.39;
Me 12.31; cf Jo 13.34,35) e encontra eco
em todo o NT (cf G15.14; Tg 2.8; 4.11,12;
Do 4.11, passim). O que Paulo quer di-
zer quando insiste que a obediência a esse
mandamento "cumpre" ou "sintetiza" todos
os outros mandamentos não é a noção de
que tudo que temos de fazer para agradar a
Deus é "amar" - como se disso decorresse
que basta ter um sentimento de "amor" e se
pode fazer o que se quer. Paulo também não
quer dizer que o amor pelos outros é sim-
plesmente o mandamento mais importante
da lei, ou o espírito segundo o qual todos
os demais devem ser obedecidos. Antes, ele
está dizendo que os cristãos agora cumprem
ROMANOS14(
as exigências da lei de Moisés (pelo menos
as que dizem respeito às nossas obrigações
para com as outras pessoas) pelo amor.
Pois o amor está no cerne da "lei de Cristo"
(G16.2 cf lCo 9.20,21), a lei que Jesus tor-
nou reguladora da vida no novo mundo em
que vivemos. E essa própria lei "cumpre" a
lei de Moisés (v. Mt 5.17).
13.11-14 Discernindo os tempos
Assim como Paulo começou essa seção
com a ética cristã geral, com um lembrete
da nova situação em que agora vivem os
cristãos - não são mais "deste mundo"
(12.2, NVI) - assim ele a conclui. Os cris-
tãos devem discernir o tempo: uma época
em que esperamos o alvorecer iminente do
dia (12), "o dia do Senhor Jesus", que trará
a nossa salvação final. Como Paulo deixou
claro em 5.9,10, a salvação é um processo
que se completará somente quando esti-
vermos livres do derramar da ira de Deus
no último dia (v. também Fp 1.19; 2.12;
lTs 5.9). Esse dia vem se aproximando
progressivamente à medida que a era pre-
sente segue o seu curso e lança a sua luz de
volta sobre o tempo em que vivemos ago-
ra. Esse é o motivo do seu apelo para que
os seus leitores vivam como os que vivem
em pleno dia (12b,13) e se abstenham das
ações que são características das trevas, o
sistema do mundo que se opõe a Deus. O
v. 14 defende a mesma ideia com uma lin-
guagem diferente: devemos nos revestir do
Senhor Jesus Cristo de tal forma que tudo
o que fizermos seja feito por ele e para ele,
e não devemos sequer dar espaço a qual-
quer daqueles desejos pecaminosos que se
originam neste mundo caído e pecador (no
grego sarx, "carne", natureza pecaminosa;
v. comentário de 7.5).
14. 1-15. 13 Apelos à unidade
Em 12.3-13.14 Paulo mencionou com-
ponentes gerais da "boa, agradável e
perfeita vontade de Deus" que devem
caracterizar os cristãos cuja mente está
sendo renovada pelo poder do evangelho
ROMANOS 14 1736
(cf 12.1,2). Agora Paulo discute um as-
sunto específico dentro da igreja romana:
a divisão entre aqueles a quem ele chama
de fracos (14.1,2; 15.1) e fortes [na fé]
(15.1). Esses dois grupos estavam discu-
tindo se os cristãos deveriam ou não comer
carne (14.2,6,21), observar dias religiosos
especiais (14.5,6) e, possivelmente, beber
vinho (14.21; cf. v. 17 - não fica total-
mente claro se essa era uma questão real
na igreja ou se Paulo simplesmente a cita
como exemplo).
Não podemos identificar com certeza
esses dois grupos. Certos paralelos com a
discussão de Paulo em 1Coríntios 8-10
levaram alguns estudiosos a pensar que
Paulo está abordando aqui o problema de
saber se os cristãos deveriam comer carne
sacrificada aos ídolos. Outros pensam que
o debate é sobre a adequação de determina-
das práticas ascéticas que foram adaptadas
das religiões pagãs. Mas a ênfase de Paulo
em 15.8-13 na importância da unidade en-
tre judeus e gentios - um tema presente
em toda a carta - sugere, sim, que a di-
visão teve suas raízes em uma insistência
dos cristãos judeus em manter alguns dos
seus "tabus" tradicionais. À semelhança
de outros judeus piedosos num ambiente
gentílico (Dn 1.8-16; Judite 12.1-4), mui-
tos cristãos judeus em Roma tinham apa-
rentemente decidido se abster de carne (e
talvez de vinho) por temer contato com a
idolatria. (Essa decisão pode ter sido uma
necessidade por serem excluídos da comu-
nidade judaica mais ampla, em que a co-
mida "kosher" podia ser encontrada mais
facilmente.)
Devemos então presumir uma situação
na qual os cristãos judeus se vangloriam
de sua religiosidade estrita, "condenan-
do" (14.3) os que não adotam o mesmo
padrão, enquanto muitos cristãos gentios,
não encontrando valor em tais práticas,
estão ostentando sua "liberdade" nesses
assuntos (15-22) e "discutindo" (14.1) e
"desprezando" (14.3) aqueles a quem eles
consideram "fracos" em afirmar sua 1iber-
dade em Cristo. O próprio ponto de vista
de Paulo sobre essas questões é claro: ele
se inclui entre "os fortes" (15.1) e afirma
que nenhuma coisa é de si mesma impu-
ra (14.14). É significativo que Paulo não
tenta convencer os fracos de que eles es-
tão errados. Pelo contrário, ele insiste em
que os fortes aceitem seus irmãs e irmãos
mais fracos (14.1; 15.7) e, na verdade, res-
trinjam o exercício de sua liberdade sobre
essas questões controversas a fim de pro-
mover a unidade e evitar ferir a fé dos fra-
cos (14.13-22). Os fracos também devem
deixar de condenar os fortes e aceitá-los
como irmãos (14.3,13; 15.7). Paulo sente
claramente que as questões que estão di-
vidindo os cristãos em Roma pertencem à
categoria da adiaphora, das "coisas indife-
rentes" (cf v. 1, discutir opiniões) - ques-
tões que não são essenciais à fé e a res-
peito das quais os cristãos comprometidos
e sinceros podem discordar. Seu propósito
é promover a unidade da igreja exortando
à tolerância de um para com outro nessas
questões. Embora os assuntos de debate
tenham mudado, a igreja atual, da mesma
forma e com frequência, tem se dividido
por questões não essenciais. Sem compro-
meter as doutrinas que são essenciais ao
evangelho, precisamos atender ao apelo
de Paulo para aceitar todos aqueles a quem
Deus aceita (cf 15.1 e 14.3b).
14.1-12 Reprovação das atitudes crí-
ticas. Paulo reprova tanto os fortes como
os fracos por suas atitudes críticas (1-3),
fazendo-os lembrar que eles não têm o di-
reito de julgar aqueles a quem Deus acei-
tou (4-12).
Nesse contexto a pessoa descrita como
débil na fé (1,2) não é necessariamente a
que é imatura ou não tem fé em Cristo em
sentido absoluto. Pelo contrário, é a que
não acredita que a sua fé cristã lhe permita
participar de algumas práticas específicas;
a que é excessivamente escrupulosa ou
"sensível". No entanto, "fraco" é, até certo
grau, pejorativo, e é claro que esse deve
ter sido o rótulo dado a esse grupo pelos
 1737
fortes. Associado ao fato de que Paulo ini-
cialmente se dirige aos "fortes", isso suge-
re que os "fortes" são a maioria e o grupo
que Paulo tem em mente quando escreve
(cf também 15.1). Esses cristãos estão
convencidos de que a sua fé lhes permite
de tudo comer, enquanto aquele, cuja fé é
fraca, come legumes (2). Como indica o
v. 6, o fraco evita comer carne provavel-
mente porque, como cristão judeu, tem
receio de entrar em contato com a idola-
tria. Cada grupo deve parar de criticar o
outro, reconhecendo que todos são servos
do mesmo mestre, o único que tem em si o
direito de julgá-los (4). É "diante" de seu
próprio mestre (lã idiõ kyriõ é provavel-
mente um dativo de referência), o Senhor,
que cada cristão fica em pé ou cai - isto
é, persevera ou falha na fé (cf 11.20,22).
E Paulo está convencido de que aqueles a
quem Deus aceitou (3) irão perseverar por-
que é o próprio Senhor que os sustém (4).
Outra questão que dividia os fracos e
os fortes era a observância de dias reli-
giosos especiais (5). Devido à sua origem
racial, os judeus, os fracos, evidentemente
continuavam a observar os dias de festivi-
dades judaicas, inclusive provavelmente o
sábado. Os fortes, por outro lado, não viam
nenhum fundamento em tratar um dia di-
ferentemente de outro. Para Paulo esta era
claramente outra "discussão de opiniões"
(1) e, por isso, ele aconselha tolerância.
Cada cristão deve ter a sua própria opinião
sobre essas questões discutíveis e, caso
participasse ou se abstivesse, que o fizesse
"por causa do Senhor" (aqui na ARA: para o
Senhor; tõ kuriõ é um dativo de vantagem;
cf também v. 7,8) e dando graças a Deus
(6). Pois, como Paulo relembra aos dois
grupos, os cristãos não são autônomos:
a sua liberdade deve ser estabelecida em
termos de serviço ao Senhor que morreu
e ressuscitou por eles (7-9). Deus - não
outros cristãos - é aquele perante quem
todos os cristãos são responsáveis e peran-
te o qual teremos de responder por nossos
comportamentos. Portanto, não é correto
ROMANOS14{
que julguemos nossos irmãos, cuja prática
em questões discutíveis pode ser diferente
da nossa (10-12).
Nota 11 Paulo também cita Isaías 45.23
em Filipenses 2.10,11. Ali, no entanto, é
diante do Senhor Jesus que todo o joelho
se dobra, enquanto aqui o "Senhor" diante
de quem alguém se dobra provavelmente
é Deus.
14.13-23 Os limites da liberdade.
Depois de mais um apelo aos dois grupos
- não julguemos uns aos outros - , Paulo
se volta aos fortes na fé, exortando-os: to-
mai o propósito de não pordes tropeço ou
escândalo (13) no caminho do irmão mais
fraco. Essa é a ideia central da seção, com
os v. 14-21 elaborando e explicando essa
ordem. Os v. 22,23, em seguida, tratam de
maneira mais geral dos dois grupos.
O forte está criando para o fraco uma
situação de pecado (tropeço e obstáculo;
cf 9.33 [Is 8.16]) ao continuar a ingerir
alimento que o fraco considera "impuro".
O próprio Paulo afirma vigorosamente
sua convicção de que nenhuma coisa [ali-
mento] é de si mesma impura, alinhando-
se, assim, com o ensinamento de Jesus
(Mc 7.17-19; cf também At 10.9-15).
Impuro (koinos) significa impureza ritual
(do hebraico tãmê; e.g. , Lv 11.4-8). Paulo
entende e deseja que todos os cristãos em
Roma entendam que a vinda de Cristo sig-
nifica que a lei judaica a respeito da pureza
ritual já não se aplica. Mas ele reconhece
que os cristãos judeus podem ter dificulda-
des em se desfazer de uma vida de ensino e
hábitos, e por isso ele relembra os fortes de
que nenhuma coisa é de si mesma impura,
salvo para aquele que assim a considera.
para esse é impura (14). Embora Paulo
aqui não utilize a palavra, ele está clara-
mente preocupado que a "consciência" dos
fracos seja violada (1Co 8.7,10) se eles ce-
derem à pressão para ingerirem alimentos
que consideram "impuros".
Este "comer contra a consciência" é o
que Paulo tem em mente com a "angústia"
do cristão mais fraco no v. 15. Dirigindo-se
11
.fI
1111 ROMANOS 15 1738
individualmente agora ao cristão forte a
fim de elucidar sua tese (OS verbos no v.
15 estão na segunda pessoa do singular),
Paulo o relembra de que comer sem preo-
cupação alguma com o efeito que isso
terá sobre o mais fraco é uma violação
do princípio cristão fundamental do amor
(12.9,10; 13.8-10). Além disso, ao en-
corajar tacitamente o mais fraco a comer
contra a sua consciência, o forte pode fa-
zer perecer aquele por quem Cristo mor-
reu. A palavra perecer (apollymi) é bem
forte, normalmente com o significado de
condenação eterna (2.12; lCo 1.18; 15.18;
2Co 2.15; 2Ts 2.10). Esse pode ser o senti-
do aqui, embora, se for, pode ser que Paulo
não pense nisso literalmente. Ou pode ser
que "perecer" esteja sendo usado aqui com
um sentido bem mais fraco: o de "causar
dano espiritual".
Uma segunda razão para o forte se
abster de ostentar sua liberdade é que tal
comportamento, por causar tristeza e desu-
nião dentro da comunidade, põe o evange-
lho em descrédito perante os que não são
cristãos (16-18). Os incrédulos, ao ver na
igreja discussões sobre a comida e a be-
bida, em vez de justiça, e paz, e alegria
no Espírito Santo (17), não enxergarão o
evangelho com bons olhos. O forte, no en-
tanto, deve servir a Cristo, buscando jus-
tiça, paz e alegria (deste modo no v. 18),
evitando comportamentos que diminui-
riam essas qualidades dentro da igreja. Ao
fazê-lo, ele estará sendo agradável a Deus
e aprovado pelos homens (18).
Os v. 19-21 recapitulam ideias às quais
Paulo se referiu anteriormente nesse pará-
grafo. O forte (a quem ele provavelmente
está se dirigindo) deve buscar paz e edifi-
cação de uns para com os outros (cf v. 17;
lCo 10.23). Ele deve reconhecer que sua
insistência em comer o que outros consi-
deram "impuro" pode levar à destruição
da obra de Deus, que para Paulo provavel-
mente significa o irmão mais fraco (cf v.
l5,2lb), e não a comunidade. Aqueles que
se orgulham da "força" da sua consciência
e da sua liberdade em Cristo devem ser
os primeiros a abandonar as práticas que
podem causar danos a um irmão. A liber-
dade cristã é real e valiosa, e ninguém in-
sistiu mais fortemente nisso do que Paulo
(Gl 5.1; Cl 2.16-23). Mas o exercício da
liberdade cristã, como também Paulo enfa-
tizou (G15.13; lCo 6.12), deve ser sempre
subordinado às necessidades dos outros.
Como a famosa máxima de Lutero: "O
homem cristão é o mais livre senhor de
todos, a ninguém submisso. O homem
cristão é o mais submisso servo de todos,
a todos submisso".
Paulo completa seu apelo aos fortes
recomendando que mantenham para si
mesmos o que pensam a respeito dos ali-
mentos, dias especiais e bebidas. Não há
necessidade de que comam carne na fren-
te de todos os que podem ser espiritual-
mente prejudicados por isso, ou que eles
se abstenham de comer com a insistência
arrogante em que não há nada de errado
com o que eles estão fazendo. O forte deve
se contentar em reconhecer que é uma ver-
dadeira bênção saber que o que ele aprova
nessas questões não é algo pelo qual ele
deva condenar-se. No entanto, há aqueles
que não são capazes de aprovar o exer-
cício da liberdade nessas questões. Seria
pecado para eles fazerem o que sua cons-
ciência reprova. Embora a ingestão de
carne possa não ser pecado aos olhos de
Deus (14), fazer algo que não provém de
fé é pecado (23).
15.1-13 O chamado final à unidade.
A conclusão do apelo de Paulo por tolerân-
cia na igreja romana se divide em quatro
partes: um último apelo ao forte (1-4); uma
oração pela unidade entre todos os cristãos
em Roma (5,6); um último apelo (com
apoio das Escrituras) aos fracos e fortes (7-
12); e uma oração de encerramento (13).
Os v. 1-4 estão relacionados estrei-
tamente a 14.13-23, na medida em que
Paulo, usando a palavra pela primeira vez,
insta osfortes (dynatoi) a suportar as de-
bilidades dos fracos. O uso da primeira

1739
pessoa do plural (nós) mostra que Paulo se
inclui entre os fortes (cf 14.14). O termo
"suportar" (bastazein) sugere que os for-
tes devem fazer mais do que simplesmente
tolerar os fracos - eles devem ajudá-los
com uma atitude de amor (cf GI6.2). Isso
é confirmado pelos v. 2,3, que desenvol-
vem a advertência de Paulo de não agra-
dar-nos a nós mesmos, no final do v. 1.
O incentivo para agradar ao próximo nos
lembra o mandamento do amor (13.9;
Lv 19.18) e a alusão ao sacrificio de Cristo
em se entregar em beneficio dos outros. A
citação no v. 3b vem de um salmo (69) que
os autores do NT frequentemente aplicam
aos sofrimentos de Jesus (cf Me 15.23,36
e paralelos; Jo 2.17; 15.25, 19.28,29;
At 1.20). O lembrete de Paulo no v. 4 so-
bre a relevância contínua do que outrora
foi escrito tem o propósito imediato de jus-
tificar a citação no v. 3, mas também vale
como um princípio geral.
O que Paulo está pedindo que os cris-
tãos façam, ele pede que Deus supra -
um exemplo típico da interação divino-
humana envolvida na vida cristã. Paulo
ora ao Deus que dá paciência e consola-
ção (5) que ele acaba de mencionar como
a finalidade do ensino das Escrituras. Não
fica claro se o mesmo sentir de uns para
com os outros (5) significa concordância
entre os fortes e os fracos em assuntos que
os dividem ou, o que é mais provável, a
aceitação e o respeito mútuos em meio
à diversidade de pontos de vista. A NTLH
entende kata Christon Iêsoun (segundo
Cristo Jesus, assim também NVI) como
uma orientação para que os cristãos imi-
tem o exemplo de Cristo, mas a expressão
também poderia significar "de acordo com
a vontade de Cristo Jesus" (v. 2Co 11.17).
O propósito dessa unidade de todo modo
é claro: que todos os cristãos em Roma
unam seus corações e vozes em adoração
fervorosa a Deus. A falta de unidade entre
os cristãos não somente prejudica nossa
própria caminhada com Deus e nossa re-
putação com aqueles que não são cristãos,
11
ROMANOS 15 - :
11
com também prejudica nossa capacidade
de dar a Deus a glória que ele merece.
O v. 7 é o clímax de 14.1-15.13. Aqui
encontramos o apelo básico de Paulo à
igreja romana (acolhei-vos uns aos ou-
tros), o fundamento mais importante para
esse apelo (como também Cristo nos aco-
lheu) e o propósito mais elevado desse
apelo (para a glória de Deus). Paulo agora
acrescenta mais uma razão para essa acei-
tação mútua: o ministério de Cristo como o
que incorpora tanto judeus (8) quanto gen-
tios (9-12). O serviço de Jesus aos da (lit.)
"circuncisão" (a NTLH traduz legitimamen-
te por "judeus") é, segundo a sugestão de
Paulo, um ministério que está enraizado no
passado, mas de modo nenhum terminou
(algo sugerido pelo tempo verbal do verbo
gegenêsthaij. Assim Paulo lembra os gen-
tios de que Cristo continua a se preocupar
em alcançar os judeus (cf 11.1,2,28,29). O
ministério de Cristo aos judeus, no entanto,
tem um propósito mais amplo: é feito por
causa da fidelidade de Deus a suas promes-
sas (NVI: "por amor à verdade de Deus";
alêtheia aqui significa "fidelidade" [v. tam-
bém 3.4 e 7]). Essas promessas feitas aos
nossos pais incluíam a bênção a "todas as
nações" (4.16,17). Portanto, quando essas
promessas forem confirmadas, o resultado
(9) será que os gentios serão capazes de se
juntar aos judeus na glorificação a Deus
por sua misericórdia. Sendo assim, os cris-
tãos judeus precisam reconhecer que a in-
corporação dos gentios no povo de Deus
faz parte do plano de Deus, e portanto eles
devem tentar um bom relacionamento com
os cristãos gentios.
As citações nos v. 9b-12 enfatizam a
inclusão que Paulo faz dos gentios no povo
de Deus. As palavras de Salmos 18.49
(citadas de 2Sm 22.50), citadas no v. 9b,
provavelmente são entendidas por Paulo
como palavras do Messias: é anunciado
que os gentios se unirão ao Messias quan-
do este cantar louvores a Deus. A presen-
ça dos gentios na comunidade messiânica
também é prevista nas Escrituras quando
ROMANOS 15 1740
elas dizem que eles se alegrarão em Deus,
junto com Israel (10; Dt 32.43), cantando
louvores ao Senhor (11, SI 117.1) e colo-
cando a sua esperança no Messias, a raiz
de Jessé (12; Is 11.10).
O v. 13 parece quase isolado do con-
texto anterior, mas a oração-desejo de
Paulo, como tais orações na terceira pes-
soa devem ser chamadas, para que os cris-
tãos em Roma sejam caracterizados pelo
gozo e paz, toma-se mais relevante depois
do que ele acaba de dizer (cf 14.17,19).
Da mesma forma, a ênfase na esperança
(v. também v. 4) faz sentido como con-
clusão de uma discussão que questionou
a situação atual da igreja e instou seus
membros a dar passos difíceis para me-
lhorar essa situação.
15.14-16.27 A conclusão
da carta
Romanos conclui com as características
típicas das seções de encerramento das
cartas de Paulo: um esboço dos planos de
viagem (15.22-29); um pedido de oração
(15.30-32); o desejo de paz (15.33); reco-
mendações e saudações (16.1-15,16b), o
ósculo santo (16.16a); saudações finais aos
colaboradores e ações de graças e bênçãos
finais (16.20-27). O que diferencia a seção
de encerramento de Romanos das demais
cartas de Paulo é o espaço longo dedica-
do a muitas dessas questões e o acréscimo
de uma seção em que Paulo explica suas
razões de ter escrito a carta (15.14-21).
Ambas as diferenças resultam da falta de
envolvimento prévio de Paulo com a igreja
em Roma. Embora tendo legítimo direito
de exercer certa autoridade sobre a igreja
em Roma em virtude de seu chamado para
ser apóstolo aos gentios (1.1,5-7; 15.16),
Paulo pretende se resguardar da impressão
de ser um intruso autoritário.
15.14-33 O ministério e
os planos de Paulo
Essa seção pode ser dividida em quatro
partes: explicação dos propósitos e cir-
cunstância da carta (14-21); esboço dos
planos de viagem de Paulo (22-29); pedido
de oração relativo à coleta para os cristãos
de Jerusalém (30-32); e o desejo de paz
(33). Há muitas semelhanças com 1.8-15,
demonstrando que Paulo está consciente
de terminar sua carta por onde a começou.
Em consonância com sua vontade
de estabelecer uma boa relação com os
cristãos em Roma, Paulo deixa claro que
ele está escrevendo não porque há qual-
quer tipo de problema grave na igreja de
Roma. Ele louva os cristãos romanos por
sua bondade e conhecimento (14, e.g., a
compreensão da fé cristã), observando
que eles têm capacidade de admoestar [ou
"exortar"] uns aos outros (14) (cf 1.8b).
Paulo quase se desculpa por escrever da
forma como o faz (ousadamente) e salien-
ta que o que ele disse nada mais é do que
um lembrete. Esse louvor não é simples
bajulação; Paulo não teria dito o que disse
nesses versículos se não acreditasse que a
igreja em Roma era basicamente sólida e
estável. Todavia, Paulo sabe que até mes-
mo as igrejas mais maduras precisam ser
lembradas da verdade do evangelho. E os
apelos de 12.1-15.13 (e especialmente
11.12-27; 14.1-15.13) demonstram que a
igreja tinha lá os seus problemas. Embora
evite qualquer insinuação de condescen-
dência ou autoritarismo, Paulo insiste, no
entanto, em que a sua autoridade como um
ministro de Cristo entre os gentios (16) se
estende aos cristãos romanos (cf 1.5,6).
Paulo descreve o seu ministério com a aju-
da da linguagem de culto. Ministro traduz
uma palavra que muitas vezes se refere a
um sacerdote (leitourgos, cf Ne 10.39; Is
61.6; Hb 8.2), e seu significado sacerdotal
aqui é confirmado pela frase a seguir em
que Paulo descreve a sua proclamação do
evangelho como um sagrado encargo sa-
cerdotal e seus gentios convertidos como
oferta. Assim como fazem outros autores
do NT (v. especialmente lPe 2.4-10), Paulo
dá a entender que o culto do AT, com seus
sacerdotes, sacrificios e o tabernáculo ou o
 1741
templo, encontra seu cumprimento no mi-
nistério do evangelho (e observe 12.1).
É justo, então, o motivo de Paulo para
se gloriar (ou se "orgulhar") desse mi-
nistério, pois ele tem origem na graça de
Deus (15b) e é uma questão de Cristo tra-
balhando por meio do apóstolo (18). Essa
obra de Cristo em Paulo tem o propósi-
to de conduzir os gentios à obediência a
Deus (cf 1.5), e o que Paulo diz e faz é
acompanhado do poder: a força de sinais
milagrosos ("sinais e maravilhas"; cf
At 2.22,43; 5.12; 15.12; 2Co 12.12;
Hb 2.4) e o poder do próprio Espírito (cf
1.16a). O final do v. 19 menciona o po-
deroso ministério sacerdotal e apostólico
de Paulo: desde Jerusalém e circunvizi-
nhanças até ao Ilirico, tenho divulgado
o evangelho de Cristo. O !lírico era uma
província romana que ocupava uma área
aproximada à área ocupada antigamente
pela Iugoslávia e Albânia. Jerusalém foi
o ponto de partida para as missões cristãs,
enquanto o Ilírico era o local mais distan-
te alcançado pela pregação de Paulo até o
momento. Uma linha traçada de Jerusalém
até o Ilírico forma um arco, e por isso a lin-
guagem de Paulo e circunvizinhanças (lit.
"num círculo"). Paulo está dizendo que ele
implantou igrejas fortes e estrategicamente
bem localizadas por toda a parte nordeste
da bacia do mediterrâneo. Ele, portanto,
"divulgou" tplêroõ; NVI: "proclamei plena-
mente") o seu evangelho nessas áreas, pois
sua missão era pregar o evangelho não
onde Cristo já fora anunciado (20). A cita-
ção do AT, que Paulo utiliza para confirmar
essa missão (21), é extraída dos cânticos
do servo de Isaías (52.15), mas é imprová-
vel que Paulo se visse no papel de servo.
Paulo passa do passado para o presente
e o futuro. Sua obrigação de cumprir sua
missão no leste o impedira de vir a Roma
até o momento (22). Mas com o término
dessa missão, Paulo agora pode satisfazer
o seu desejo de longa data de visitar Roma
(cf 1.10-15). Ainda assim, Roma seria ape-
nas uma escala para uma viagem à Espanha
ROMANOS 15
(24,28). Paulo evidentemente decidiu que
a bem povoada península Ibérica oferecia
a localização ideal para continuar o seu
evangelismo pioneiro. Uma das razões
para Paulo parar em Roma foi obter ajuda
dos cristãos romanos para a sua viagem.
A expressão seja por vós encaminhado
("...de me ajudarem em minha viagem",
NVI; 24b) inclui um verbo que se toma no NT
quase que um "termo técnico para a missão
cristã" (Cranfield; cf At 15.3; 20.38; 21.5;
ICo 16.6,11; 2Co 1.16; Tt 3.13; 3Jo 6).
Significa o suprimento de material e apoio
logístico para missionários cristãos. Uma
das principais razões para Paulo escrever
essa carta para a igreja em Roma foi pre-
parar o caminho para esse apoio.
Antes que Paulo possa colocar em prá-
tica o seu plano, no entanto, ele tem uma
tarefa mais imediata: ministrar (diakonõn;
NVI: "a serviço dos") aos cristãos em
Jerusalém (25). Esse ministério, como os
v. 26,27 revelam, é a entrega aos cristãos
de Jerusalém de uma oferta em dinheiro
recolhida de muitas das principais igrejas
cristãs gentílicas plantadas por Paulo. As
condições econômicas gerais, sem dúvida,
pioraram pelo isolamento dos judeus de
suas comunidades, motivado por sua nova
profissão de fé, que resultou no empobre-
cimento de muitos cristãos judeus tanto
em Jerusalém como em suas redondezas.
Paulo sentia que era certo que os cristãos
gentios retribuíssem com bens materiais
os valores espirituais (27) que tinham
herdado dos judeus (cf 11.17,18). Coletar
o dinheiro para esse esforço de ajuda hu-
manitária foi a principal preocupação de
Paulo em sua terceira viagem missionária
(v. ICo 16.1-4; 2Co 8-9). Alguns estu-
diosos pensam que Paulo estava particu-
larmente interessado nessa coleta porque a
considerava um cumprimento da profecia
do AT de que a riqueza dos gentios flui-
ria para Jerusalém pouco antes do dia do
Senhor. Mas há poucas evidências de que
esse fosse o caso. No entanto, Paulo indu-
bitavelmente via essa ajuda como um meio
ROMANOS 16 1742
prático de estreitar o relacionamento entre
gentios e judeus cristãos.
É talvez à luz deste propósito que Paulo
pede aos cristãos romanos por orações para
o êxito da coleta (30-32). Paulo sugere a
necessidade de oração séria e fervorosa por
esse assunto, pedindo-lhes que luteis jun-
tamente comigo nas orações. (Considerar
a orientação para a "luta juntamente co-
migo" [synagõnizomai, usado apenas aqui
na Bíblia grega] como algo que ocorre
"em oração" é preferível a ver a distinção
entre os dois aspectos, sugerida pela NVI.)
Paulo lhes pede que orem especificamente
por duas coisas: que ele possa se ver livre
dos rebeldes que vivem na Judeia e que
este meu serviço (a coleta) possa ser bem
aceito pelos santos em Jerusalém. Paulo
sabe da hostilidade dos judeus em relação à
sua defesa audaciosa e pública da admissão
dos gentios no seio do povo de Deus sem
lhes impor a circuncisão ou a lei de Moisés.
Muitos dos judeus mais radicais de sua
época (e eles estavam crescendo em núme-
ro nesse momento) teriam considerado essa
defesa uma traição pura e simples. Que os
receios de Paulo sobre esse assunto eram
justificáveis pode ser provado pelo fato de
que essa viagem a Jerusalém resultou em
sua prisão pelas autoridades romanas por
instigação dos judeus (At 21.27-36).
Nós não temos certeza absoluta sobre
o cumprimento do segundo pedido de ora-
ção de Paulo. Certamente Paulo também
tinha razões válidas para temer que alguns
dos judeus cristãos pudessem ainda estar
tão desconfiados dele e tão preocupados
com a ideia de manter relações com seus
concidadãos judeus que iriam rejeitar seus
esforços, recusando-se a aceitar o dinhei-
ro de Paulo e dos cristãos gentios. Paulo
pede aos cristãos de Roma que se juntem a
ele em oração para que isso não aconteça
de modo que ele seja capaz de seguir para
Roma com alegria e um sentimento positi-
vo de realização (32).
A oração de Paulo para que o Deus da
paz esteja com os cristãos romanos (33) é
paralela a pedidos semelhantes em muitas
de suas outras cartas (2Co 13.11; Fp 4.9;
lTs 5.23; 2Ts 3.16; cf também 16.20).
Notas. 19 Não fica claro se Paulo quer
dizer que ele pregou "até e no" Ilírico ou
"até" o Ilírico. Embora Atos nunca men-
cione uma viagem missionária de Paulo
a essa província, alguns estudiosos acre-
ditam que ele pode ter pregado ali pouco
antes de ir para Corinto, no final de sua
terceira viagem missionária (quando Paulo
está escrevendo Romanos; cf At 20.2).
24 Não sabemos se Paulo jamais alcançou
o seu objetivo de pregar na Espanha. A car-
ta de 1Clemente, um antigo documento do
século I escrito em Roma, alega que Paulo
"atingiu o limite [terma] do ocidente" (5.1-
7). Não está claro se o documento se refere
à Espanha ou a Roma.
16.1-16 Recomendações
e saudações
A recomendação de um companheiro
cristão e as saudações são componen-
tes típicos de encerramento das cartas
de Paulo. O que não é típico nesse tex-
to é o número sem paralelos de pessoas
a quem Paulo saúda: são mencionadas 27
pessoas. Esse fato, por estar numa carta
a uma igreja que Paulo nunca visitou, le-
vou muitos estudiosos a pensar que esse
capítulo não fazia parte da carta original
de Paulo aos Romanos, mas de outra carta
de recomendações, ou de um aditamento
à carta quando ela foi enviada a Éfeso.
Mas isso é improvável (v. a Introdução).
Precisamente por Paulo não ter implanta-
do a igreja em Roma, ele é capaz de nomi-
nar talvez todos os cristãos da igreja que
ele conhecia, como Priscila e Áquila (3),
a quem ele tinha encontrado durante as
suas viagens no mediterrâneo oriental.
Ao se referir a Febe como uma irmã
que está servindo à igreja de Cencreia
(uma cidade localizada a oito quilômetros
a leste de Corinto), Paulo pode simples-
mente estar dizendo que ela é cristã e cha-
mada, como todos os cristãos, a ser uma
 1743
serva (1) de Cristo e da igreja (v. lPe 4.10).
Mas, com o acréscimo da expressão com
um toque oficial à igreja de Cencreia, é
mais provável que Paulo está identificando
Febe como alguém que exerce a função de
"diaconisa" (cf Fp 1.1; lTm 3.8,12; mui-
tos veem 1Tm 3.11 como uma referência à
existência de diaconisas). Não temos ne-
nhuma evidência sólida do século I sobre
a natureza desse ministério, mas, como
foi em data posterior, provavelmente essa
função tinha seu foco voltado sobretudo ao
cuidados dos membros mais pobres e fra-
cos da igreja. Talvez a posição secular de
Febe tenha tido algo a ver com sua nomea-
ção para esse ministério, pois Paulo a cha-
ma no v. 2b de prostatis, uma palavra que
muitas vezes designava pessoas ricas que
se tomaram "benfeitoras" e patrocinadoras
de pessoas e movimentos (a NVI parafraseia
a expressão assim: "tem sido de grande au-
xílio"). Paulo menciona Febe porque ela
está indo para Roma, provavelmente como
portadora da carta de Paulo à igreja (2a).
As saudações de Paulo não obedecem a
uma sequência óbvia, mas talvez comecem
por aqueles a quem Paulo conhece melhor
e com quem trabalhou pessoalmente (3-7),
e terminem com aqueles a quem ele não
conhece tão bem (8-15). Priscila e Àquila
certamente pertenciam à primeira catego-
ria. Paulo os encontrou pela primeira vez
em Corinto, para onde foram porque tinham
sido forçados pelo decreto do imperador
Cláudio a abandonar a sua casa em Roma
(At 18.2). Eles se tomaram companheiros
de trabalho de Paulo, passando muito tem-
po na igreja de Éfeso (At 18.18,26). Foi
talvez aqui, durante o distúrbio naquela
cidade (At 19.23-41), que eles arriscaram
sua própria cabeça (4) por Paulo. Agora,
vivendo em Roma novamente, eles conti-
nuam a ministrar à igreja que se reúne em
sua casa (5a). Epêneto (5b), o primeiro
cristão na província romana da Ásia (Ásia
Menor ocidental), não é mencionado em
nenhuma outra parte do NT; também nada
sabemos dessa Maria (6).
ROMANOS 16 <
Júnias, no v. 7, provavelmente poderia
ser traduzido por "Júnia" (ASV; NRSV). O
nome grego Iounian pode ser uma forma
abreviada do nome masculino Junianis,
mas isso não é comprovado. É mais prová-
vel, então, que seja uma forma do nome
feminino Júnia, o qual é bastante co-
mum. Presumivelmente, ela era a esposa
de Andrônico (cf v. 3). O casal, que era
judeu (syngeneis provavelmente significa
"compatriotas judeus" [como em 9.3], e
não parentes), converteu-se a Cristo antes
de Paulo e tinha estado com ele na prisão
- provavelmente devido a seu ministério
comum como apóstolos. Uma vez que não
sabemos nada deles por outras passagens,
Andrônico e Júnias provavelmente não fo-
ram "apóstolos" da mesma forma que, por
exemplo, Paulo e Pedro o foram - divi-
namente escolhidos como representantes
do Cristo ressuscitado com uma autorida-
de singular (v., e.g., At 1.12-26; Ef 2.20;
lCo 15.7-9). Apóstolos aqui, em vez disso,
teria o sentido de "missionário" ou "men-
sageiro" (v. 2Co 8.23; Fp 2.25).
Amplíato (8) não é mencionado em
outras partes do NT, mas pode ser a pes-
soa cujo túmulo foi encontrado nas cata-
cumbas de Domitila, uma mulher rica e
de família imperial, aparentemente cristã.
Urbano, Estáquis (9) e Apeles (10a) são
também pessoas de quem não temos outras
informações. Aristóbulo, porém, que tinha
cristãos em sua família (1 Ob), pode ter sido
o irmão de Agripa I, rei da Judeia de 41 a
44 d.e. (v. At 12). Compatriota judeu de
Paulo isyngenês, cf. v. 7), Herodião pro-
vavelmente é um escravo ou um liberto da
família de Herodes, governante hereditário
da Judeia. Narciso, cuja família Paulo saú-
da no v. llb, pode ser o mesmo Narciso
que ganhou fama (e notoriedade) como ser-
vo do imperador Cláudio. Trifena, Trifosa
e Pérside, três mulheres que trabalhavam
pela causa de Cristo, também são desco-
nhecidas. Paulo saúda nove mulheres nes-
sa passagem, seis das quais são descritas
como companheiras de trabalho ou como
ROMANOS 16
as que muito [...] trabalhavam no Senhor
(12). Nada nas palavras utilizadas por
Paulo nos permite identificar a natureza de
seus ministérios, mas devemos dar o devi-
do reconhecimento ao papel fundamental
desempenhado pelas mulheres nos ministé-
rios variados da igreja primitiva - e tam-
bém nos ministérios de hoje. Uma vez que
o evangelho de Marcos provavelmente foi
escrito em Roma, e talvez ao mesmo tempo
que Romanos, é tentador identificar o Rufo
do v. 13 com o Rufo cujo pai carregou a
cruz de Jesus para o Gólgota (Me 15.21).
Nenhum dos nomes que aparecem nos v.
14,15 é conhecido de outras partes do NT
ou na história cristã primitiva.
O ósculo (16a) como forma de sauda-
ção, cumprimento ou despedida era difun-
dido no mundo antigo e foi adaptado pela
igreja primitiva (1Co 16.20; 2Co 13.12,
lTs 5.26; 1Pe 5.14). Deve ser, no entanto,
um ósculo santo, totalmente desprovido de
qualquer conotação erótica ou pagã.
16.17-20 Advertência acerca
dos falsos mestres
Tão abrupta é a súbita advertência de Paulo
sobre falsos mestres que alguns estudiosos
acreditam que essa passagem não perten-
ce a esta seção da carta. Mas, embora esse
tipo de advertência não se encaixe no pa-
drão das seções de encerramento de Paulo,
certamente ele não é assim tão desconheci-
do (v. 1Co 16.22; GI6.12,13; Fp 3.2-21).
Paulo não deixa claro a quem ele se re-
fere em sua advertência aos cristãos roma-
nos. Ele os descreve como provocadores de
divisão e escândalos (skandala; cf 9.33;
11.9; 14.13) entre os cristãos (17). Eles fa-
lam com suaves palavras e lisonjas para
tentar enganar os possíveis inocentes e in-
cautos (18). Eles se preocupam com o seu
próprio ventre (lit. "sua própria barriga"),
mas mesmo essa indicação mais específica
em nada nos ajuda a identificar quem eles
eram. Alguns estudiosos acreditam que
Paulo está se referindo à insistência judai-
ca na observância da lei relativa aos ali-
1744
mentos (Paulo ironicamente os repreende
por colocar muita ênfase no que vai para as
suas barrigas), outros, à preocupação sen-
sual da satisfação dos próprios prazeres.
Precisamos nos contentar em deixar esses
falsos mestres no anonimato.
Sejam eles quem forem, Paulo insta
os cristãos romanos a que os identifiquem
(que noteis bem) e mantenham distância
deles (afastai-vos deles; 17). Esta última
advertência não significava que a igreja
deveria excomungá-los (cf 1Co 5.1-5),
mas que deveria evitar o convívio com
eles. Paulo reafirma sua confiança nos ro-
manos cristãos (19; cf 15.14,15; 1.8), mas
não quer que eles sejam ingênuos com os
perigos para a sua fé (18b). Imitando o
conselho de Jesus ao 12 apóstolos, Paulo
encoraja os cristãos a serem sábios para
o bem e símplices para o mal (19b; cf
Mt 10.16). Ao fazê-lo, eles podem ter a
certeza de que o próprio Deus tomará me-
didas contra os que estão tentando enganá-
los: e o Deus da paz, em breve, esmagará
debaixo dos vossos pés a Satanás (20; esse
versículo deveria ser intimamente asso-
ciado aos v. 17-19, v. RSV). Pode ser que
Paulo esteja insinuando que esses falsos
mestres, vistos como asseclas de Satanás,
serão rapidamente esmagados. Mas é mais
provável que ele esteja pensando aqui no
grande clímax do final dos tempos quando,
em cumprimento de Gênesis 3.15, Deus
obterá a vitória triunfal sobre Satanás. A
paz (20) que Deus por fim criará é resulta-
do tanto da libertação de seu povo como do
julgamento dos seus inimigos.
16.21-27 Saudações
finais e doxologia
Paulo conclui a carta com saudações de
três cooperadores (21-23) e uma doxologia
(25-27).
Timóteo (21) foi um companheiro cons-
tante de Paulo desde o início da segunda
viagem missionária (At 16.3), e agora está
com Paulo em Corinto. Lúcio foi identifi-
cado ocasionalmente como Lucas, o "mé-
 1745
dico amado", ou como Lúcio de Cirene
(At 13.1), mas isso não é provável. Jasom,
no entanto, pode bem ser o Jasom que
hospedou Paulo em sua primeira visita a
Tessalônica (At l7.S-9 - talvez ele teve
de fugir para Corinto por causa da perse-
guição), enquanto Sosípatro provavelmen-
te é o mesmo que o Sópatro de Atos 20.4.
Parentes novamente traduz syngeneis,
uma referência aos compatriotas judeus de
Paulo, e não a seus parentes consanguíneos.
Tércio (22), nunca mencionado em outras
partes do NT, é copista de Paulo, ou o escri-
ba que anotava as palavras que Paulo lhe
ditava. Gaio (23), em cuja casa uma das
comunidades cristãs de Corinto se reunia,
é quase com certeza o mesmo Gaio men-
cionado em 1Coríntios 1.4, e talvez deva
ser identificado também como Tício Justo
(At 18.7). Paulo identifica Erasto como
tesoureiro da cidade (do grego oiknomos
tês poleõs), suscitando a pergunta se ele
poderia ser o mesmo Erasto mencionado
como um "edil" ou "comissário de obras
públicas" em uma inscrição do século I de
Corinto. Mas a palavra que Paulo utiliza
não é um correspondente natural ao latim
aedilis, de modo que a identificação não é
certa. Também não fica claro se o Erasto
mencionado aqui é o mesmo mencionado
em Atos 19.22 e 2Timóteo 4.20, uma vez
que o nome era bastante comum.
A doxologia de Paulo, além de concluir
a carta com uma nota sublime de decla-
ração à glória a Deus, também resume de
maneira eficaz alguns dos temas principais
da carta. A defesa e a explicação que Paulo
faz do evangelho que prega são, como
temos sugerido, o tema central da carta.
Paulo agora nos lembra que é por meio
desse evangelho que Deus nos "confirma"
em nossa fé (2S). Esse evangelho, que pro-
clama Jesus Cristo (a pregação de Jesus
ROMANOS 16
Cristo é provavelmente uma explicação do
conteúdo do evangelho), é um mistério que
só recentemente foi revelado (2Sb,26a).
Somos lembrados da ênfase de Paulo na
forma como a justiça redentora de Deus foi
revelada na cruz e na pregação do evange-
lho (1.17; 3.21). Se tornou manifesto efoi
dado a conhecer por meio das Escrituras
proféticas (26) é provavelmente um parale-
lo à "revelação", e não algo subordinado a
ela (como a NVI interpreta): acrescenta uma
segunda descrição do evangelho no v. 2S,
que também retoma um dos temas princi-
pais da carta (1.2; 3.21; cp. 4; 10.14-21).
A revelação e a difusão do evangelho têm
ocorrido sob as ordens do próprio Deus e
têm o propósito de que todas as nações (a
ARA corretamente entende ethnê aqui como
"nações", e não "gentios" [cf Mt 28.19])
possam obedecer por fé (lit. "obediência
da fé"; cf 1.S e o comentário sobre a ex-
pressão ali). Enquanto continuamos a per-
seguir a realização desse propósito pela
nossa pregação do evangelho, somos lem-
brados de que isso é para a glória final do
Deus único e sábio.
Nota. 24 Algumas versões modernas
da Bíblia não trazem o v. 24 porque seu
conteúdo é quase certamente uma adição
posterior ao texto de Romanos (cf NVI,
mg.). 25-27 A maioria dos comentaristas
modernos considera a doxologia nos v.
2S-27 uma adição posterior à carta. Mas
não há nada que não seja paulino em seu
vocabulário e ideias, ela tem sólido apoio
externo em manuscritos antigos e sua co-
locação variada (no final do cp. 14 ou cp.
lS) pode ter surgido do deslocamento da
conclusão original de Paulo quando a carta
foi abreviada.
Douglas 1. Moo
 1CORíNTIOS
INTRODUÇÃO
Contexto
Na época em que Paulo chegou a Corinto,
no outono de 50 d.C., a cidade já era colô-
nia romana havia mais de um século. Antes
ela foi uma cidade grega com uma história
magnífica, mas foi destruída por Múmio em
146 a.C., depois de entrar em conflito com
Roma, e ficou em ruínas durante cem anos.
O plano de reconstrução da cidade se baseou
no modelo-padrão das cidades romanas em
44 a.C., depois da decisão de Júlio César
de fazer dela uma colônia romana. Corínto
se tomou a sede do governo romano para a
província da Acaia e logo sua população já
era maior do que a de Atenas. Embora fun-
dada como uma "base para soldados", aos
quais se juntaram alguns escravos libertos
provenientes da Itália, a cidade se conso-
lidou rapidamente como um importante
centro de cultura e comércio. Algumas das
famílias mais abastadas da Grécia foram
atraídas para Corinto e se estabeleceram no
concorrido subúrbio residencial nas encos-
tas da enorme elevação de 545 metros co-
nhecida como Acrocorínto. Essas famílias
figuravam entre os benfeitores principais
da cidade. Inscrições fornecem evidências
de muitas delas entre a classe dos sábios,
dos nobres e dos poderosos. No início da
era cristã os jogos ístmicos tinham recome-
çado sob a sua égide. Os portos que serviam
a colônia eram Lecaião e Cencreia. As ruí-
nas arqueológicas deste último indicam sua
prosperidade não apenas como um porto,
mas também como uma cidade-satélite, e
no momento em que Paulo escreveu sua
carta aos cristãos romanos havia ali uma
igreja (Rm 16.1).
Era uma cidade de nível cultural eleva-
do e os seus cidadãos, como os de Atenas,
adoravam muitos deuses. Entre eles, Afro-
dite é a mais conhecida. Quando Corinto
era uma cidade grega essa deusa era asso-
ciada ao amor e especialmente à prostitui-
ção no templo. Ela havia sido completa-
mente reentronizada no período romano.
Alegava-se que ela era a matriarca da fa-
mília imperial; daí sua presença na Corinto
romana como uma figura venerada, ligada
ao culto imperial, como em outros locais.
Seria um exagero grosseiro afirmar que
as tendências dos coríntios à imoralidade
eram resultantes de seu patronato, e errô-
neo sugerir que os pecados sexuais dos
coríntios cristãos pudessem ser explicados
dessa forma. A imoralidade, seja por for-
nicação, adultério ou incesto, não estava
confinada a Corinto.
Paulo fundou a igreja por volta de 50
d.C., depois da sua visita a Atenas (At 18.1-
7). Ela se originou a partir dos sermões que
Paulo pregou na sinagoga judaica, cujo lí-
der estava entre os primeiros convertidos
(At 18.8). Inevitavelmente a igreja e a si-
nagoga entraram em conflito. Os judeus
tentaram instaurar um processo criminal
contra os cristãos, o qual não surtiu efeito
pois Gálio determinou que o cristianismo
se encontrava sob a égide do judaísmo
(At 18.12-17), conferindo aos cristãos a
mesma posição privilegiada dos judeus.
Essa foi uma decisão com consequências
de longo alcance, especialmente para os
cristãos que eram cidadãos romanos com
obrigações para com o culto imperial.
Paulo passou por um período de desen-
corajamento no ministério, o que exigiu
a intervenção direta do Senhor (At 18.9-
11). Depois de 18 meses de trabalho - a
segunda estadia mais longa de Paulo em
 1747 lCORíNTIOS

uma cidade - , ele deixou Corinto. O tra-
balho prosseguiu com Apolo (lCo 3.6),
um orador judeu capacitado que viera
de Alexandria, e mais recentemente de
Éfeso, onde seu ministério floresceu con-
sideravelmente com o trabalho de Áquila
e Priscila (At 18.24-28). Eles estiveram
com Paulo em Corinto desde a fundação
da igreja e trabalharam na mesma profis-
são como fazedores de tendas (At 18.2,3).
Parece que Pedro também esteve em
Corinto (lCo 1.12).
Antes de escrever 1Coríntios, Paulo pa-
rece ter escrito uma carta sobre a associa-
ção com pessoas imorais que foi mal inter-
pretada pelos coríntios (l Co 5.9). Nessa
época Paulo tinha se mudado para Éfeso,
quando alguns da casa de Cloe trouxe-
ram notícias das divergências na igreja
(l Co 1.11). Também vieram outros, como
Estéfanas, Fortunato e Acaico (lCo 16.17),
trazendo uma carta que os coríntios tinham
escrito em busca de orientações de Paulo
sobre várias questões pastorais comple-
xas que afetavam a igreja - casamento,
alimentos oferecidos aos ídolos, dons es-
pirituais, a coleta para os judeus cristãos
de Jerusalém e o pedido para o regresso de
Apolo (l Co 7.1,25; 8.1; 12.1; 16.1,12).
Relatórios verbais também revelavam
problemas de divisões, incesto, litígios
civis, imoralidade, mulheres profetizando
sem o véu na igreja, abusos na ceia do
Senhor e a negação da ressurreição do cor-
po (cp. 1---4; 5; 6; 12; 15).
Para uma discussão mais detalhada das
cartas dos coríntios e uma reconstituição
das várias visitas de Paulo, ver Introdução
a 2Coríntios. Ver também o artigo "Lendo
as Cartas".
Essa primeira carta de Paulo aos co-
ríntios é o mais extenso documento pas-
toral do NT e fornece indícios importantes
de como as difíceis questões pastorais
devem ser tratadas. Fornece também res-
postas cruciais a problemas críticos que
de uma forma ou de outra ainda assom-
bram a igreja hoje.
Leitura adicional
PRIOR, D. A mensagem de 1Coríntios. BFH.
ABU, 2001.
CARSON, D. A. showing the Spirit: a theolo-
gical exposition of lCorinthians 12-
14. Baker Book House, 1987.
CARSON, D. A. The Cross and Christian
Ministry: an exposition of passages
from 1Corinthians. Inter-Varsity Press/
UK/Baker Book House, 1993.
MORRIS, L. 1Coríntios: introdução e co-
mentário. SCR Vida Nova, 1981.
FEE, G. D. The First Epistle to the
Corinthians. NICNT. Eerdmans, 1987.

ESBOÇO
1.1-3 Autores e destinatários
---c-c--:--:---,---c-----
1.4-4. 21 Abordagem cristã ao ministério na igreja
- 1.4-9 Ações de graças pela ~su-:f:-ic-iê-n-cia total de Cristo
1.10-17a As divisões provocadas por idolatrar mestres cristãos
1.17b-2.5 Gloriar-se no Senhor e não na elite instruída
2.6-16 A sabedoria revelada pelo Espírito
3.1-23 O problema contínuo dos coríntios
4.1-5 Ministério e críticas
4.6-13 Ministério e posição
4.14-17 Paulo, o apóstolo, como pai dos coríntios
4.18-21 As opções diante dos coríntios
1CORíNTIOS 1748

5.1-6.20 Questões morais

5.1-8 A imoralidade e a esfera legítima de disciplina da igreja
5.9-13 A esfera de julgamento da igreja
6.1-8 As ações judiciais entre os membros
6.9-20 Contra a libertinagem cristã

7.1-40 Questões conjugais

7.1-6 Aos casados
7.6,7 O dom do casamento e o do celibato
7.8,9 Aos que não têm parceiros conjugais
7.10,11 Aos casados
7.12-16 As opções com um parceiro não cristão
7.17-24 O chamado pessoal de Deus
7.25-38 Casar agora ou esperar
7.39,40 A viúva

8.1-11.1 As obrigações do evangelho em um mundo pluralista

8.1-13 Carne sacrificada aos ídolos
9.1-14 Direitos e ministério
9.15-23 O evangelho gratuito de Paulo
9.24 -10.13 Correndo e não caindo
10.14-11.1 O sacrifício aos ídolos e a ceia do Senhor

11.2-14.40 A vida disciplinada da igreja

11.2-16 Cobrindo a cabeça no culto
11.17-34 Os problemas na ceia do Senhor
12.1-13 Há somente um Espírito Santo
12.14-31 Há somente um corpo de cristãos
13.1-13 Dons exercidos no contexto de relacionamentos
de compromisso
14.1-19 Profecias, línguas e a igreja
14.20-25 Profecias, línguas e os incrédulos
14.26-36 De maneira apropriada e ordeira
14.37-40 Advertências e conclusões

15.1-58 A ressurreição do corpo dos cristãos

15.1-11 O evangelho e a certeza da ressurreição de Cristo
15.12-34 A ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição
15.35-44 Analogias de sementes e corpos
15.45-49 Analogia de Adão e Cristo
15.50-57 A garantia da vitória
15.58 Instruções finais

16.1-24 Outros assuntos

16.1-4 Organizando a coleta
16.5-9 Os preparativos para a viagem de Paulo
16.10,11 A visita proposta de Timóteo
 1749
16.12-14 o retorno de Apolo
16.15-18 O bom exemplo da casa de Estéfanas
16.19-22 Saudações finais
COMENTÁRIO
1.1-3 Autores e destinatários
As cartas escritas na época de Paulo co-
meçavam mencionando primeiramente o
autor e então as pessoas a quem elas se di-
rigiam. Paulo faz referências a si mesmo e
às suas qualificações para escrever - ele
não se intitulava mestre nem trabalhador
cristão por sua própria vontade, mas sim
alguém comissionado segundo os propósi-
tos de Deus para ser missionário e porta-
voz de Cristo. A carta tem um "coautor",
Sóstenes (l), que é descrito como irmão.
A inclusão de Sóstenes demonstra o con-
ceito que Paulo tinha do trabalho em equi-
pe no ministério apostólico. Paulo não era
uma "prima-dona" e nunca chama os que
compartilham de sua obra de "seguidores"
ou "discípulos", mas de colegas -"com-
panheiros de trabalho". Nem considera a
igreja como "sua", embora ele tivesse sido
seu fundador - a igreja é de Deus e per-
tence somente a ele (2).
A posição da igreja é determinada pela
obra de Cristo, que fez de seus membros
santos. Em consequência disso, eles for-
mam uma classe peculiar de pessoas, os
"santos". A sua posição como santifica-
dos ou santos não se deve às suas atitudes
santas - na verdade, alguns estavam até
envolvidos em ações pecaminosas (5.1;
6.1,16; 8.10; 10.8 etc.). Ela só é adquirida
graças ao que Cristo fez (cf 1.30). Paulo
não apenas enfatiza a posição deles - os
coríntios seculares eram arrogantes e se
consideravam superiores por viverem na
capital da Acaia - mas sobretudo sua ori-
gem espiritual comum com cada pessoa
no mundo que clama pelo nome de nos-
so Senhor Jesus por salvação (Rm 10.13).
Cristo é tanto o Senhor deles como nosso.
3 À saudação secular comum de paz ou
1CORíNTIOS 1
"saúde" Paulo acrescenta graça, algo que
nos é dado como um presente não mereci-
do (Rm 6.23). Essas bênçãos são reais pois
emanam de Deus, nosso Pai, e do Senhor
Jesus Cristo (cf 8.6).
1.4 -4.21 Abordagem cristã
ao ministério na igreja
1.4-9 Ações de graças pela
suficiência total de Cristo
Na seção de ações de graças, Paulo com
frequência prenuncia as questões que ele
precisará tratar posteriormente em suas
cartas. Ele sempre pode dar graças porque
a suficiência de Deus é capaz de solucionar
todas as nossas necessidades na pessoa de
seu Filho.
Aqui ele faz referências ao sentimento
de inferioridade dos que não pertenciam à
elite dessa colônia romana. Muito cristãos
não pertenciam à elite. Ele menciona es-
pecificamente a refinada arte da oratória,
i.e., a retórica (lagos) e o conhecimento.
Essas eram ferramentas utilizadas pelos
mestres e oradores públicos bem prepa-
rados, mas seriam elas cruciais para o
testemunho cristão e para os pregadores
e mestres nas reuniões cristãs? O tradi-
cional amor dos coríntios pela oratória
("até mesmo entre mulheres e crianças",
Dia Chrisostom Or. 37) também explica
a razão de alguns na igreja terem pedi-
do o retomo de Apolo, pois o preferiam
a Paulo. É claro que Apolo havia usado
sua capacitação em retórica nas suas pre-
gações (lCo 16.12; At 18.24-28). Essa é
uma das questões principais discutidas
na carta. Em cada um desses versículos
Paulo menciona Jesus Cristo. O povo de
Deus é importante, pois tudo que ele é e
será é resultado do que Deus fez por ele
na pessoa de seu Filho (cf 1.30), e não
1CORíNTIOS 1 1750
resultado da posição secular ou dos seus
privilégios ou conquistas pessoais.
4 Sua razão para agradecer a Deus cons-
tantemente é o reconhecimento da graça
que Deus concedeu aos coríntios em Cristo
Jesus. 5 Isso resultou no enriquecimento de
cada aspecto da vida deles. Paulo selecio-
nou uma área crucial para o evangelismo
cristão: a pregação e o ensino: em toda a
palavra e em todo o conhecimento. Esses
eram dons transmitidos a eles por Cristo.
7 Em decorrência disso, eles não tinham
deficiência em nenhum dos dons necessá-
rios a seus ministérios, enquanto aguarda-
vam, não pelo fim de suas vidas devido a
um acontecimento inevitável, mas pela
revelação do Senhor Jesus Cristo. A ex-
pectativa da segunda vinda representa uma
mudança radical na visão de mundo dos
coríntios, que previamente viam a história
da humanidade como algo eterno em um
mundo indestrutível. 8 Em uma sociedade
em que os que não pertenciam à elite eram
julgados socialmente e politicamente insig-
nificantes, Paulo enfatiza a verdade de que
Cristo os manterá fortalecidos para que se-
jam apresentados irrepreensíveis no dia de
nosso Senhor - uma expressão do AT que
se refere ao dia do juízo. 9 Por eles mesmos
isso seria impossível, mas o Deus que os
chamara à comunhão de seu Filho é abso-
lutamente confiável, pois ele não pode dei-
xar de cumprir suas promessas. Entretanto,
nenhum dos filhos de Deus deve se deixar
paralisar no serviço cristão por um senti-
mento de inferioridade ou de inadequação
mas deve olhar para Cristo, que é suficiente
para suprir as suas necessidades.
1.10-17a As divisões provocadas
por idolatrar mestres cristãos
Naquela época, os pupilos ou "discípulos"
de um mestre secular tinham de prestar leal-
dade exclusiva a ele. Tradicionalmente eles
se envolviam em discussões com o grupo
rival de alunos sobre os méritos de seus
mentores, os quais por tradição invejavam
uns aos outros. Os coríntios convertidos
ou batizados por meio dos ministérios de
Paulo, Apolo e Pedro comportavam-se des-
sa mesma maneira, como se fossem seus
seguidores exclusivos, e se envolviam do
mesmo modo em discussões sobre os mé-
ritos de seus mestres cristãos. Paulo decla-
rava que essa forma de lealdade era idola-
tria. Ele queria que os coríntios seguissem
o Messias, e não seus servos. A prática de
idolatrar mestres ou pregadores "carismá-
ticos" que procuram a lealdade de "seus"
membros sempre foi e continua sendo um
desastre para a comunidade cristã.
O apelo de Paulo pela unidade, contra-
riando a percepção que os coríntios tinham
do papel dos mestres cristãos - Paulo
nunca usa o termo "líderes", de uso secu-
lar e que sempre implica superioridade de
posição - , é baseado no nome de nosso
Senhor Jesus, o qual eles invocam por sal-
vação (1.2). Não é um apelo que busca a
unidade em tomo do menor denominador
comum, mas um clamor urgente: que faleis
todos a mesma coisa [...] sejais inteiramen-
te unidos, na mesma disposição mental e
no mesmo parecer (lO). A proibição das
divisões e a exigência para que os cristãos
permaneçam unidos na mesma disposição
mental os incita a buscar entender a mente
de Deus em relação a essa questão. Paulo
faz uma argumentação cuidadosa sobre
isso em 1.10--4. 21.
12 Paulo deixa bem clara a acusação,
Refiro-me ao fato, isto é, "de cada um de
vós dizer" - Eu sou de ..., isto é, "Eu per-
tenço a...". Depois de alguns se declara-
rem leais a mestres proeminentes na igreja,
outros parecem ter se definido como par-
tidários de Cristo. 13 Cristo nunca pode
ser propriedade exclusiva de um grupo
em uma igreja (cf 1.2), por isso a pergun-
ta: Acaso, Cristo está dividido? Uma vez
que a igreja é o corpo de Cristo, não pode
ser dividida. Tais expressões de lealdade a
Paulo e a outros mestres são vistas por ele
como usurpação do lugar de Cristo. Assim
como alguns objetos religiosos encontra-
dos em Corinto continham inscrições como
 1751
"Eu pertenço a Afrodite" ou "Eu pertenço
a Demétrio", também essas expressões
equivocadas de fidelidade exclusiva se re-
vestem de um caráter idólatra - elas im-
plicam que Paulo e os outros mestres eram
mediadores da salvação de seus seguidores.
A entrada deles no Reino de Deus, expressa
no batismo, não se dava mediante o nome
do evangelista que havia pregado para eles.
Essas expressões de lealdade aos mestres
tomavam o lugar do compromisso e da
lealdade cristãs devidas somente a Cristo.
Não poderia ser dito que o batismo cristão
concretizava a filiação ao grupo de Paulo
ou indicava qualquer tipo de relacionamen-
to especial com ele, pois Paulo havia bati-
zado poucos dentre eles (14-16).
17a Paulo explica que seu chamado
apostólico não era batizar, mas sim pre-
gar o evangelho, e então na seção seguinte
continua a dar as razões de ele haver re-
nunciado ao uso de métodos dos pregado-
res públicos profissionais.
1. 17b-2.5 Gloriar-se no Senhor
e não na elite instruída
Esperava-se que um orador público do sé-
culo I elaborasse com capricho discursos
bem preparados, capazes de chamar a aten-
ção para a sua habilidade de emprego das
regras da retórica. A oratória era chamada
de "magia", pois enfeitiçava os ouvintes.
O conteúdo dos discursos era secundário,
somente o desempenho importava. Eles
discursavam para serem adulados por sua
plateia. 17b Paulo não utilizava nenhum
dos truques dos oradores profissionais, pois
ele não pregava com sabedoria de palavra,
literalmente "pelos meios da sabedoria da
retórica". Adotar a convenção secular se-
ria promover o orador, de cujo desempe-
nho os ouvintes fariam um julgamento.
Isso desviaria a atenção dos ouvintes da
cruz para o próprio Paulo, roubando assim
a oportunidade de eles ouvirem a respeito
do feito maravilhoso pelo qual Deus sal-
va as pessoas. Essa mensagem revestida
de autoridade é chamada evangelho e tem
1CORíNTIOS 1
como conteúdo a cruz de Cristo. Cristo
enviara Paulo para pregar o evangelho e
não para reunir em tomo de si um grupo
de seguidores.
18 Em um provável jogo de palavras,
Paulo chama o evangelho de a mensagem,
literalmente "a oratória" (logos) da cruz.
Ele argumenta que a reação à sua pregação
é dupla. Por alguns é considerada um ab-
surdo (cf At 26.24), mas por outros é um
meio poderoso pelo qual eles se tomam o
povo de Deus. Nos v. 18-31 duas citações
das Escrituras abrem e concluem sua argu-
mentação (Is 29.14 e Ir 9.24). A primeira
(19) promete que Deus destruirá a admi-
rada sabedoria e inteligência dos sábios; a
segunda (31) renuncia à glória dos sábios,
dos ricos e da elite poderosa e exige que
os que se gloriam devem gloriar-se apenas
no Senhor.
Paulo afirma que a retórica e a reflexão
teológica tão admiradas de sua época falha-
ram, pois não podiam levar as pessoas a co-
nhecer a Deus (20-25).20 Nem o sábio, isto
é, o filósofo, nem o estudioso ou o escriba
(judeus), nem literalmente o inquiridor
deste século, isto é, o orador, nenhum deles
em sua época entendia a educação como
sabedoria de Deus. Comparada à sabedo-
ria de Deus, a sabedoria deles era loucura.
21 Apesar dos debates altamente sofistica-
dos da teologia natural, feitos pelos estóicos
e epicureus sobre a "natureza dos deuses",
aquele mundo de intelectuais não conhecia
a Deus. Os propósitos de Deus eram alcan-
çados por meio do que era considerado lou-
cura, isto é, o que Paulo pregava, a fim de
salvar os que depositavam a sua confiança
nessa mensagem. 23 Um Messias crucifica-
do desafiava todas as expectativas judaicas
e era considerado algo absurdo para o mun-
do gentio. 24 Tanto a sabedoria quanto o
poder de Deus são encontrados em Cristo.
25 Ainda isso pode ser considerado tolo e
fraco pelos homens, Deus é muito mais sá-
bio e forte do que eles.
26-31 Paulo exorta os coríntios a re-
fletir sobre a posição ou classe secular de
1CORíNTIOS 2
todos os que Deus escolheu para demons-
trar a natureza de sua sabedoria. A elite do
século I era descrita como sábia e influente
na esfera política e de procedência nobre.
Dentre estes, não muitos foram chamados
por Deus (26). Deus escolheu os loucos em
comparação aos sábios, os fracos em vez
dos poderosos e os que a sociedade secu-
lar considerava como "nada" em oposição
aos que eram bajulados como importantes
(27,28). O propósito de Deus ao fazer isso
foi evitar que as pessoas se vangloriassem
por sua posição no mundo (29,30). Tudo é
uma questão de favor divino, pois tudo o
que é necessário deve ser encontrado em
Jesus Cristo (vós sois dele), como Paulo
destacou ao dar graças (1.4-7). Para Paulo,
bem como para todos os cristãos, sabedo-
ria, justiça, santidade e redenção são en-
contradas em Cristo. Por isso as palavras
de Jeremias 9.24, dirigidas à elite de sua
época, são citadas com muita propriedade,
uma vez que nem a sabedoria, nem os po-
derosos e nem os bem-nascidos devem se
vangloriar de qualquer coisa, a não ser do
Senhor (31).
1-5 O começo do ministério de Paulo.
Segue agora uma ilustração a respeito da
insuficiência da sabedoria e da retórica
do mundo. No texto original, as palavras
"E eu" ligam essa passagem à declaração
anterior referente a gloriar-se somente no
Senhor (1.31). Os v. 1,2 e 3,4 começam
com as palavras "e eu" (no original), e des-
crevem as atividades de Paulo, nesse caso,
na primeira vez em que chegou a Corinto.
Os oradores seguiam certas convenções
marcantemente tradicionais quando en-
travam em uma cidade. Esperava-se deles
discursos elegantes em louvor da cidade e
de seus feitos pessoais. E eles assim o fa-
ziam para engrandecer sua reputação e co-
lher as recompensas financeiras como ora-
dores políticos e mestres dos ricos. Paulo
deixa isso claro nos v. 1,2: ele rejeitava as
convenções que exibiam a eloquência ou a
sabedoria clássicas ao proclamar o teste-
munho de Deus sobre Jesus Cristo e este
1752
crucificado. Ele já sabia qual era o con-
teúdo de sua mensagem antes de chegar.
3,4 Paulo descreve em termos negativos o
que os oradores chamavam de "presença".
Ele não era uma figura carismática, pois
estava ali emfraqueza, temor e grande tre-
mor, e sua palavra (ou melhor, "oratória")
e pregação não eram elaboradas com o
recurso a técnicas persuasivas de oratória,
fazendo representações ou jogando com
os sentimentos dos ouvintes e fazendo uso
das demonstrações clássicas recomenda-
das nos manuais de retórica. Em vez de
utilizar uma das técnicas recomendadas
por Aristóteles, sua mensagem era acom-
panhada pelo poder do Espírito. 5 Fazia
isso pois queria que a fé dos coríntios fos-
se depositada no poder de Deus e não na
eloquência do orador. Paulo não era um
orador eloquente ou convincente que per-
suadia os coríntios a se tomar cristãos. Ele
se diferenciava dos oradores profissionais
por não adaptar o conteúdo de sua mensa-
gem aos métodos persuasivos tão em voga
em Corinto, pois Deus rejeitara os debates
deste século (1.20).
2.6-16 A sabedoria
revelada pelo Espírito
A sabedoria divina é contrastada à sabe-
doria tão admirada pela classes dirigentes.
Deus tem se deleitado em revelar sua sabe-
doria por meio do seu Espírito aos apósto-
los, no-lo revelou (10). O nós implícito nos
v. 6,7,13 e 16 não se refere aos coríntios
cristãos, cujo comportamento, como está
registrado nessa carta, demonstra que eles
não possuem a mente de Cristo (16; cf
5.1; 6.1; 11.1). Nem se refere aos cristãos
em geral, mas antes ao ministério singular
dos apóstolos.
6-8 Paulo declara que prega não apenas
o evangelho, mas também a sabedoria de
Deus. Ela é exposta entre os experimen-
tados. Os tão admirados oradores virtuo-
sos da época de Paulo usavam esse termo
em relação a si mesmos e alegavam fazer
o mesmo de seus pupilos. Eles seriam os
 1753
dirigentes futuros de cidades e Estados.
Paulo talvez esteja pensando nisso quando
diz o que a sua sabedoria não é - ela não
é a sabedoria deste século, nem dos diri-
gentes de um mundo que está agonizando.
Ele então a define (7). Ela é a sabedoria
de Deus em mistério, outrora oculta, mas
agora revelada, e que foi destinada à nos-
sa glória antes da eternidade. A despeito
de sua formação sofisticada, os dirigentes
deste século nunca a compreenderam, pois
se a tivessem compreendido não teriam
tomado parte na crucificação de Jesus,
que aqui é chamado de Senhor da glória
(cf At 13.27).
9 Isaías 64.4 é citado por chamar aten-
ção para a graça totalmente inesperada que
Deus concedeu aos que o amam. 10a O
versículo de Isaías não é uma referência
a algo que descobriremos no futuro, por
meio dos propósitos individuais de Deus
para seu povo, nem a dons inesperados,
pois Paulo usa o verbo no passado quando
declara mas Deus no-lo revelou, ou seja,
aos apóstolos, por meio da ação do Espírito
Santo (cf lPe 1.12). 10b,1l Assim como
somente cada pessoa pode saber o que ela
mesma pensa, também somente o Espírito
de Deus conhece as coisas de Deus. 12 Os
apóstolos não pensam como o mundo pen-
sa pois eles receberam o mesmo Espírito
para que pudessem entender o que Deus
tão generosamente nos concedeu em seu
Filho. 13 Os apóstolos não utilizam a sa-
bedoria deste mundo para transmitir suas
verdades, antes empregam palavras en-
sinadas pelo Espírito, conferindo coisas
espirituais com espirituais. Eles não recor-
rem às técnicas retóricas utilizadas pelos
oradores profissionais.
14,15 A pessoa sem o Espírito, literal-
mente "a pessoa natural", rejeita o que o
Espírito ensina, pois isso requer um exa-
me espiritual. Por outro lado, o homem
espiritual questiona todas as coisas, isto
é, o que o Espírito ensina. Se a referên-
cia aqui é aos apóstolos, então fica claro
por que Paulo diz que a pessoa espiritual
1CORíNTIOS 3
não é examinada por ninguém. Se ele se
refere ao cristão espiritual, então poderia
significar que ele nem vive nem morre
pelo julgamento dos homens, mas somente
quando é examinado pela palavra de Deus.
16 Paulo cita Isaías 40.13, que pergunta
se há alguém que conheceu a mente do
Senhor para que possa instruí-lo. Ele afir-
ma que os apóstolos têm a mente de Cristo,
que é o Senhor. Será que isso significa que
Paulo está demonstrando indiferença para
com aqueles coríntios que o estavam exa-
minando e julgando (cf 4.3)?
A passagem lida com o fato de que
Deus é um Deus que "fala" (cf Dt 4.33-
36), que escolheu abrir seu coração e sua
mente por meio dos seus servos, os apósto-
los. Atribuir as palavras dos apóstolos "ex-
pomos" e "falamos" (ambas no presente, v.
6,13) à sabedoria de Deus revelada aponta
para o fato de que os apóstolos falaram a
palavra de Deus - esse é o motivo de a
igreja defender historicamente o ponto de
vista de que os apóstolos disseram o que
Deus disse.
3.1-23 O problema
contínuo dos coríntios
Assim como Paulo ilustrou sua discussão
de 1.10-31 sobre glorificar-se no Senhor
com uma referência à sua própria vinda
para Corinto, ele também o faz em 3.1-23.
Ele discute os problemas originais e con-
tínuos dos cristãos de Corinto em relação
a divisões (1-9), ao papel do apóstolo fun-
dador e aos cuidados presentes necessários
para construir a igreja devido ao julgamen-
to futuro (10-17), concluindo com uma
correção dos equívocos cometidos pelos
mestres no relacionamento com o povo de
Deus (18-23).
1 Assim como em 2.1 e 2.3, aqui Paulo
começa com mais um "e eu" (no original)
com o intuito de discutir posteriormente
suas experiências em Corinto. Quando che-
gou pela primeira vez à cidade, ele não con-
seguiu se dirigir a eles como a espirituais,
mas somente como a carnais e crianças
1CORíNTIOS 4
em Cristo. 2 A condição deles era determi-
nada naquela ocasião por sua dieta, e ainda
o é. 3 Que eles ainda são carnais fica claro
pela ocorrência de ciúmes e contendas em
relação a seus mestres. Andais segundo os
homens significa literalmente "agir como
os homens", isto é, guiados por normas do
mundo. 4 Quando eles se apegam exclusi-
vamente ao líder, seja ele Paulo ou Apolo,
o apóstolo precisa perguntar novamente:
Não é evidente que andais segundo os ho-
mens? A secularização nesse caso procede
do pensamento mundano aplicado ao mi-
nistério cristão. 5 Os cidadãos de Corinto
eram um retrato de seu mundo ao avaliar
as pessoas por seus privilégios, posição
e riqueza; Paulo pergunta se também não
era isso que os cristãos estavam fazendo.
Ele usa termos que refletem uma posição
humilde ao descrever Apolo e a si mesmo
como servos por meio de quem crestes.
Eles não podiam reivindicar crédito pes-
soal pois era o Senhor quem tinha con-
cedido a cada um a sua tarefa. 6 Em uma
colônia romana elitista, que desprezava os
trabalhadores braçais, Paulo designa tanto
Apolo quanto a si mesmo como lavrado-
res com diferentes obrigações. 8 Tanto o
que planta quanto o que rega tem um único
propósito; eles não estão competindo en-
tre si, e cada um será recompensado com
base em seu próprio trabalho. 9 Pois somos
colaboradores de Deus, assim como os co-
ríntios são a lavoura de Deus e o edificio
de Deus. Assim como os edificios impo-
nentes de Corinto tinham o nome de seus
benfeitores inscritos neles, assim também
os coríntios eram o edificio de Deus. Não
cabia nenhum pensamento do tipo "estes
são os meus convertidos" e nem de que os
cristãos "pertencem" a um evangelista ou
mestre em particular.
10 Pela graça de Deus Paulo não é
apenas o apóstolo fundador da igreja, mas
também seu arquiteto. Os mestres pos-
teriores continuam a construir o edificio
e precisam fazê-lo com muito carinho e
cuidado. 11,12 Jesus Cristo é o único fun-
1754
damento. Materiais de construção podem
ou não ser duráveis (apesar de o ouro, a
prata e as pedras preciosas normalmen-
te não serem usados, exceto para decorar
o edificio). 13 No século I também havia
construtores desonestos, mas virá o Dia
do juízo quando os fatos serão trazidos à
luz e o fogo testará os materiais que foram
utilizados. 15 Os construtores desonestos
verão o fogo destruir todo o seu trabalho e
eles próprios serão queimados. Sua salva-
ção não está em questão, mas o papel que
receberam de Deus para desempenhar na
igreja tem sido desacreditado por suas pró-
prias ações. 16 Complementando a analo-
gia utilizada por Paulo no v. 9, ele descreve
o povo de Deus como o santuário em que o
Espírito de Deus habita.
18 Os coríntios estavam enganados
a respeito da sabedoria. Paulo desafia os
reconhecidamente "sábios" ou que perten-
ciam à "elite acadêmica" entre os cristãos
a reconhecer a sua própria ignorância para
que se tomem realmente sábios. 19,20 A
razão para isso é dada e sustentada por cita-
ções de Jó 5.13 e Salmos 94.11. 21 Assim,
o Portanto traça para os coríntios as im-
plicações de sua discussão até esse pon-
to: ninguém devia se gloriar nos homens.
Todas as coisas pertencem a eles, uma vez
que Cristo os enriqueceu de todas as ma-
neiras (cf 1.4-7). 22 Não é a comunidade
cristã que pertence a mestres específicos,
mas sim os mestres que pertencem à comu-
nidade. Cada um deles dizia: "Eu pertenço
a...", mas Paulo diz: "Paulo, Apolo e Pedro
pertencem a vocês".Tudo na vida perten-
ce a eles, inclusive o presente e o futuro.
23 Eles não pertencem aos mestres, mas ao
Messias, que pertence a Deus. Paulo nunca
disse: "Essa é a minha igreja", embora ele
fosse o seu apóstolo fundador.
4.1-5 Ministério e críticas
1 Paulo usa dois termos bem apropriados
para descrever o papel dos mestres na
igreja - ministros ("servos", NVI; TB), li-
teralmente "empregados", e despenseiros
 1755
("encarregados", NIV). O primeiro leva o
sentido de responsabilidade em relação
a Cristo no serviço em que a pessoa está
envolvida. O segundo se refere à ativida-
de de um servo fundamental em uma casa,
cuja tarefa é transferir os recursos do dono
da casa aos membros da família de acordo
com as necessidades de cada um. O que foi
confiado a Paulo são os mistérios de Deus,
isto é, a sabedoria de Deus discutida no ca-
pítulo anterior. Ele é o portador da mensa-
gem. 2 Certas qualidades eram esperadas
de um despenseiro. No contexto cristão o
que se exige é a fidelidade - o registro
da infidelidade no mundo secular é bem
documentado. 3a Paulo pouco se importa
com o julgamento dos outros, sejam eles
da comunidade cristã ou não (cf 2.1-5 e
At 17.19-34, em que pregadores públicos
são julgados). 3b-S Embora ele não sou-
besse de nenhuma conduta inapropriada
em seu ministério cristão, Paulo faz ques-
tão de enfatizar que o Senhor é seu juiz,
e conclui com a ordem para que a nada
julguem antes do tempo, isto é, o Dia do
Senhor. Cristo é o que exporá as tentativas
de ocultar as más ações e julgará não ape-
nas as ações, mas também as motivações.
É nesse momento que cada um receberá
o seu louvor, isto é, a sua aprovação de
Deus. Como mostra 2Coríntios 10.10-13,
os coríntios tiveram dificuldade em apren-
der essa lição; a igreja posterior não tem se
dado melhor nesse aspecto.
4.6-13 Ministério e posição
A ligação com 4. 1-5 é clara. A comparação
feita pela congregação entre Paulo e Apolo
(um julgamento prematuro) tem impac-
to direto sobre o futuro do ministério dos
dois em Corinto (v. discussão em 16.12
que mostra como a congregação escreveu,
pedindo o retomo de Apolo a Corinto).
6a Estas coisas, irmãos, apliquei-as refe-
re-se ao recurso literário chamado "alusão
velada" que era usada para se referir indi-
retamente a uma pessoa ou situação, e era
uma forma de ironia. Paulo emprega esse
lCORíNTIOS 4
artificio aqui, usando ironia com grande
efeito, embora à medida que a discussão se
desenrola se possa notar que não há nada
de velado em suas intenções. Ele se utili-
za desse recurso para que a congregação
aprenda o significado da declaração não ul-
trapasseis o que está escrito. Isso se refere
às Escrituras do AT, às quais Paulo frequen-
temente se refere nos cp. 1-4. A conduta
da igreja cristã está vinculada às Escrituras.
Certamente esse é o caso da acusação de
Paulo aos coríntios, pois as Escrituras de-
sempenharam um papel decisivo na acusa-
ção de Paulo de que os cristãos de Corinto
estavam idolatrando a sabedoria secular e
a oratória. Paulo estava prestes a corrigir a
conduta deles, provocando a consciência
deles para que mudassem de pensamento
e conduta. 6b O que eles vinham fazen-
do é explicado de forma detalhada, pois
cada um estava se vangloriando de um
mestre em detrimento de outro. 7 Ao fa-
zer três perguntas confrontadoras, ele os
ensina a evitar uma conduta contrária às
Escrituras. A primeira está relacionada a
1.30, em que é dito que a obra de Deus
em Cristo é o que faz deles quem são. A
segunda diz respeito à seção de ações de
graças em 1.4-9, em que eles são lembra-
dos de que foram enriquecidos de todas as
maneiras em Cristo, e especialmente com
respeito à abundância de dons. A terceira
explica por que o seu orgulho é totalmente
inapropriado, pois os seus dons não eram
produzidos por eles mesmos nem resulta-
vam de privilégio ou posição, embora sua
arrogância sugerisse isso.
Após essas perguntas, que efetivamen-
te deveriam eliminar toda a arrogância dos
cristãos, Paulo usa de ironia nos v. 8-13.
Aqui Paulo esboça alguns contrastes entre
os cristãos de Corinto e os apóstolos. 8 Os
oradores e integrantes das classes sociais
mais altas orgulhavam-se de sua autossufi-
ciência assegurada por suas riquezas e in-
fluência política que lhes permitiam viver
como pessoas independentes (v. Filo, The
Worse overcomes the Better 32-34). Paulo
1CORíNTIOS 4 1756
declara ironicamente que os cristãos se
comportavam (reinavam) da mesma ma-
neira embora sem nós. Ele apenas desejava
que eles reinassem; assim ele também reina-
ria. 9 Esse não é o caso, pois Deus colocou
os apóstolos em uma posição de ignomínia
- como escravos capturados que seguiam
no final da procissão nos desfiles em co-
memoração das vitórias romanas antes de
serem sacrificados. Os apóstolos não eram
um espetáculo somente diante dos homens,
mas diante de todo o mundo invisível.
10 Paulo compara as descrições da posi-
ção social dos "não [...] muitos") a que se
referiu em 1.26 aos cristãos de Corinto,
e a posição social dos muitos que Deus
escolheu (1.27,28) à dos apóstolos. 11 Até
esse ponto eles tinham recebido o mesmo
tratamento que os prisioneiros de guerra.
12,13 Enquanto a classe alta se vangloriava
de nunca ter feito trabalhos braçais, Paulo
trabalhara (cf 9.6). A resposta dos apósto-
los à infâmia que se amontoava sobre eles
foi suportá-la e até mesmo responder com
bênçãos quando eram abusados.
4.14-17 Paulo, o apóstolo,
como pai dos coríntios
Assim como as autoridades seculares da
colônia romana de Corinto registravam em
inscrições que Júlio César fora o seu fun-
dador e reconheciam a jurisdição do pre-
sente imperador ao atribuir o mesmo título
a ele, também Paulo usa a imagem do pai
fundador da comunidade cristã para reco-
mendar a eles que o imitem. 14 Ser alvo de
críticas nessa cultura era profundamente
vergonhoso. Paulo assegura aos coríntios
que seu objetivo não era humilhar, mas,
antes, adverti-los como afilhos meus ama-
dos. 15 Os ricos de Corinto tinham servos,
preceptores, que acompanhavam os estu-
dos de seus filhos e cuidavam deles. Paulo
assegura aos cristãos que eles também têm
muitos preceptores, mas não se pode dizer
que tenham muitos pais. Paulo declara que
o relacionamento dele com os cristãos de
Corinto é o de pai e filhos, pois em Cristo
ele os gerou. 16 Sobre essa base ele os en-
coraja a imitá-lo. Essa imitação não devia
ser como a dos discípulos em relação a
seus mestres seculares, que imitavam o seu
modo de vestir, andar e ensinar, mas, antes,
deviam imitá-lo ao suportar a infâmia em
nome da mensagem da cruz. 17 Timóteo, o
fiel companheiro efilho amado, está vindo
para lembrá-los dos caminhos de Paulo em
Cristo Jesus, o qual, por toda parte, ensino
em cada igreja. Paulo não apenas ensinava
a natureza do verdadeiro discipulado, mas
conseguia combinar vida e doutrina, e espe-
rava que todos os cristãos o imitassem.
4. 18-21 As opções diante
dos coríntios
O Reino de Deus não trata de filosofia teó-
rica, mas do poder - poder de transfor-
mar (6.9-11). A escolha era deles (21). Ou
eles se arrependiam de sua conduta, o que
permitiria que Paulo viesse em espírito de
amor e de mansidão, ou ele viria como um
governador secular, com seus oficiais que
andavam com chicotes como sinal de auto-
ridade para infligir castigo.
Nessa longa seção, 1.4-4.21, Paulo
trata de questões relacionadas às atitudes
corretas dos cristãos para com o ministé-
rio. O ministério deve ser visto como algo
orientado pelo evangelho, e não como al-
guma forma de liderança cristã que sim-
plesmente copia os modelos do mundo e
aparentemente só é confiado aos cristãos
culturalmente conscientes de Corinto.
Paulo não usa o termo "líder" devido às
suas conotações elitistas e políticas, que
estavam em total desacordo com o minis-
tério cristão. Ele não tinha clientes ou se-
guidores particulares, como os benfeitores
seculares. A igreja não tinha conseguido
compreender e se beneficiar do ministério
que Cristo ordenara para a igreja e para o
mundo, e como resultado a vida cristã co-
munitária tinha se deteriorado. Ele tinha
bons motivos para colocar esse aspecto
como prioridade na sua lista. Muito de-
pendia do desenvolvimento da maturidade
 1757
deles nesse assunto, mas eles eram muito
lentos em seu amadurecimento. Ao longo
de toda a história da igreja, esses proble-
mas têm sido frequentemente recorrentes.
5.1-6.20 Questões morais
5.1-8 A imoralidade e a esfera
legítima de disciplina da igreja
O primeiro relato falava de divisões (1.11);
o segundo diz respeito ao incesto (5.1).
Alguns chegam a pensar que a imoralida-
de cometida por esse membro da igreja era
endossada por outros cristãos. Isso é ape-
nas uma suposição. O texto não diz que os
membros se gabavam de sua imoralidade.
Parece que a pessoa que cometeu esse pe-
cado era alguém de alta posição, e era esse
o fato que teria recebido elogios dos outros
cristãos, e não sua imoralidade. Sob a lei
romana essa pessoa estava sujeita ao ba-
nimento dessa colônia romana prestigiosa
por tal conduta se fosse levado à corte.
Como não havia um procedimento público
de acusação, seria necessária uma acusa-
ção privada. Tais procedimentos legais po-
diam ser empreendidos somente por uma
pessoa de posição social igualou mais ele-
vada. A sociedade e a igreja frequentemen-
te fecham os olhos para as "indiscrições"
de seus membros socialmente influentes,
mas para a igreja isso sempre significou
uma grande perda espiritual.
1 O delito é de incesto de um homem
com a mulher de seu próprio pai. O termo
"possuir" é um eufemismo para o ato sexual
(cf 7.2 e discussão). A mulher poderia ser
ou não sua mãe natural - poderia ser sua
madrasta. A lei romana era intolerante em
relação a tal conduta, como o eram outros
códigos legais (cf Dt 22.30).2 Em vez de
se orgulhar de tal homem devido à sua po-
sição social, a congregação deveria tê-lo
excluído de sua comunhão. 3 Paulo, como
apóstolo fundador, sentencia essa conduta
como se ele na verdade estivesse presente
- como se [eu] estivesse presente. 4 Ele
invoca o mais forte dos julgamentos, ape-
1CORíNTIOS 5
lando para que a igreja se reúna em nome
[isto é, no caráter e no poder] do Senhor
Jesus, e tome consciência da presença de
Paulo como juiz. O poder do Senhor Jesus,
aparentemente invocado pelas orações,
estará presente com o propósito de entre-
gar esse homem a Satanás (5), isto é, de
excluí-lo da comunidade dos crentes para
a destruição de sua natureza pecadora, li-
teralmente a carne (cf Gl 6.8; 11.30-32).
Esse homem não é tratado como um não
cristão. O propósito da ação da comuni-
dade é a salvação de sua alma no dia do
Senhor. 6 A jactância dos coríntios em re-
lação a essa pessoa é condenada, como o
tinha sido em outros lugares (cf cp. 1--4).
7 A razão para a excomunhão é baseada
em parte na festa dos pães asmos do AT (cf
Êx 12.15-20), quando o fermento utiliza-
do para se fazer o pão não era utilizado no
preparo do pão da Páscoa. Em vez disso
o fermento era jogado fora, e, por impli-
cação, a pessoa transgressora tinha de ser
excluída da comunidade. A razão para isso
é que Cristo, nosso Cordeiro Pascal, foi
imolado. 8 A festa de júbilo pela morte de
Cristo não deve agora ser celebrada com a
infiltração da influência de malícia e mal-
dade, mas com sinceridade e verdade.
5.9-13 A esfera de
julgamento da igreja
9 Paulo havia escrito uma carta anterior
que tinha sido mal interpretada (cf 2Co
6.14-7.1 que também foi usada inde-
vidamente para exigir que os cristãos se
afastassem da sociedade). Ela estipulava
normas a respeito da associação com pes-
soas imorais. 10 Paulo corrige qualquer má
interpretação de que ele tivesse condenado
o contato com pessoas da sociedade secular
que fossem imorais, gananciosas, trapacei-
ras ou idólatras. Se esse fosse o caso, então
os cristãos teriam de se retirar do mundo,
como o faziam certas seitas religiosas do
judaísmo, por exemplo, os essênios e os
therapeutaes. 11 Paulo esclarece agora o
que havia sido mal interpretado - eles
1CORíNTIOS 6
deveriam se afastar de qualquer cristão se-
xualmente imoral, ganancioso por dinhei-
ro (isto é, avarento), idólatra, beberrão (os
antigos banquetes eram notórios por bebe-
deiras e imoralidades, cf a discussão em
10.7) ou que fosse desonesto nos negócios.
A comunhão com todos esses à mesa de re-
feições estava proibida. 12 É interessante
que Paulo não se via a si mesmo como juiz
da conduta da sociedade secular. Em uma
pergunta que exigia uma resposta afirmati-
va, Paulo declara que a comunidade cristã
é responsável por julgar os seus próprios
membros. 13 Deus julgaria a conduta ina-
dequada da sociedade secular, enquanto
a comunidade cristã deveria expulsar a
pessoa imoral do seu meio, um ponto que
Paulo reforça citando Deuteronômio 17.7.
A facilidade e a frequência com que a igre-
ja dos dias atuais julga a ética ou o mau
comportamento estrutural dos que não per-
tencem à comunidade cristã às vezes só é
comparável à sua relutância em agir para
reparar a conduta ética dos seus próprios
membros. Temos invertido a ordem das
coisas que Paulo falou.
6.1-8 Ações judiciais
entre os membros
Entre a elite da sociedade do século I era
prática comum dar entrada em procedi-
mentos legais diante de um magistrado ou
um júri por questões triviais com o intuito
de deixar evidente a superioridade social e
política de uma pessoa em relação a outras.
Ao examinar sua decisão em tais casos, o
júri tinha de levar em consideração o poder
e a posição social das partes envolvidas;
assim também agia o juiz na imposição
das penas. Além disso, certas pessoas eram
proibidas de participar de procedimentos
legais contra outras, isto é, um filho con-
tra seu pai, um escravo contra seu dono,
um homem livre contra seu benfeitor, um
cidadão contra o magistrado e um membro
de classe mais baixa contra um membro de
classe superior. Os juízes e jurados eram
regularmente subornados pelos envolvidos
1758
em um processo. A mediação poderia ser
usada no lugar do litígio nas cortes ju-
daicas e greco-romanas. Essa era a opção
preferida de alguns, pois os principais
cidadãos temiam os efeitos danosos do
litígio em sua projeção social ou carreira
política. Também surgiam animosidades,
pois os que votavam contra o acusado au-
tomaticamente tomavam-se seus inimigos.
Os litígios civis para a elite eram vistos
simplesmente como uma extensão das fac-
ções e discórdias na vida política.
De forma característica Paulo começa
a discussão com uma série de perguntas
que funcionam tanto para inquirir quanto
para ensinar (cf cp. 9 em que ele faz 19
perguntas). 1 À luz da maneira como as
cortes locais operavam, não é de admirar
que Paulo esteja assustado com o fato de
que algum cristão ouse apresentar a causa
diante de magistrados anualmente eleitos e
de ricos compatriotas. Tanto o juiz quan-
to o júri agiam com grande parcialidade
e podiam até mesmo ser comprados. 2 Se
os santos teriam de julgar o mundo (cf
Dn 7.22) então eles certamente tinham
competência suficiente para agir como me-
diadores nas ações civis que Paulo chama
de coisas mínimas. O termo utilizado suge-
re que essas ações civis são vergonhosas e
não resolvem problemas genuínos. 3 Paulo
novamente usa sua forma favorita de argu-
mentação - Não sabeis...(cf v. 2) - para
indicar que se os anjos deverão ser julgados
pelos santos, é certo que os santos podem
resolver essas disputas. 4 Em caso de desa-
cordo, Paulo pergunta: "[Vocês] designam
para juízes os que são menos importantes
na igreja?". Essa tradução alternativa ofe-
recida pela NIV (mg.) deve ser preferida.
Enquanto os juízes seculares eram pessoas
de posição elevada na comunidade, na
congregação cristã a posição secular não
tinha lugar. Paulo usa aqui o mesmo termo
usado em 1.28 para aqueles que a socieda-
de secular desprezava.
S Alguns dos que eram sábios (cf 3.18)
poderiam desempenhar o papel de media-
 1759
dor, o que era uma maneira aceitável de
resolver as questões nas cortes seculares.
O terceiro estágio da educação no sécu-
lo I preparava os estudantes no estudo do
direito, e portanto deveria haver alguns
membros na igreja que tivessem conheci-
mento das leis para resolver as questões
com equidade. 6 Paulo demonstra sua re-
volta pelas ações deles com as palavras
irá um irmão a juízo contra outro irmão
- o que indica que ele está falando da
comunhão de crentes - e isto perante in-
crédulo!? 7 O fato de a questão não poder
ser resolvida quando um irmão tem uma
disputa contra outro cristão é um sinal de
derrota para a comunidade cristã. 8 É me-
lhor sofrer o dano ou a injustiça do que
levar a questão para a corte. Não apenas
teriam roupa suja lavada em público, mas
uma multa seria aplicada ao que perdesse
a ação - por isso a sua acusação: fazeis
a injustiça e fazeis o dano; uma tradução
melhor seria "defraudais".
Em Romanos 13.1-7 Paulo discute o
papel determinado por Deus ao Estado em
casos de crime, mas Deus não tem lugar
para magistrados e jurados locais que fo-
ram eleitos e usam as ações civis como
arena política. Os cristãos que tinham trei-
namento legal deveriam agir como media-
dores para resolver as questões de maneira
justa em uma sociedade onde as conven-
ções injustas prevaleciam.
6.9-20 Contra a libertinagem cristã
Em Romanos 1.18-32 a lista de transgres-
sões fornecida por Paulo, que provocam o
juízo de Deus, não inclui somente os peca-
dos sexuais (cf v. 29-31). Aqui igualmente
esses pecados que excluíam os membros
da comunidade de crentes do AT também
os excluíam da herança de Deus (9b,IO).
A sociedade secular tinha desenvolvido
um argumento filosófico sofisticado que
endossava o estilo de vida libertino da eli-
te. Seus delitos podiam estar além do al-
cance da lei humana, mas não do veredicto
de Deus. Claramente havia uma medida de
1CORíNTIOS 6
autoengano por parte dos cristãos como o
vemos também hoje. A imoralidade sexual
(pornoi, que abrange os fornicadores, isto
é, indivíduos não casados que vivem jun-
tos), adoradores de ídolos, homens que
traíam sua esposa independentemente do
fato de essas mulheres tolerarem o pecado,
os homossexuais, ladrões, avarentos que
não estavam satisfeitos com a bondade de
Deus para com eles, os beberrões (normal-
mente os que participavam de orgias em
certos banquetes) e as pessoas que eram
desonestas nos negócios - nenhum deles
tinha herança no Reino de Deus. Nenhum
desses pecados fortalecia o relacionamen-
to com Deus ou com outras pessoas; como
nos Dez Mandamentos, eles eram proibi-
dos por serem destrutivos e em nada facili-
tarem os relacionamentos, e por infligirem
angústia e sofrimento. 11 Essas eram as
coisas que os coríntios faziam. Eles não
eram nem mais nem menos imorais do que
o resto da sociedade. Nem naquela época,
nem hoje. Mas a obra de Cristo os puri-
ficou de seu passado, tomando-os santos,
justificados, isto é, livrando-os do juízo
em nome de nosso Senhor Jesus Cristo e
no Espírito de Deus. Essas boas-novas do
evangelho significam que as atitudes peca-
minosas do passado não precisam determi-
nar o destino final de homens e mulheres.
12 Paulo cita slogans populares liber-
tinos que ele contradiz com declarações
sucintas semelhantes. A elite argumenta
que em função do seu sucesso podia fazer
o que bem entendesse, pois tudo era líci-
to; mas Paulo exige ética que dignifique e
não explore - nem todas convêm, isto é,
uma ética que conceda bênçãos aos outros.
Eles argumentam que todas as coisas eram
permitidas - não havia restrições. Paulo
insiste que os cristãos não devem ser domi-
nados por tais coisas. 13 Eles argumentam
que o alimento foi feito para se comer e
que o estômago foi feito para o alimen-
to. Uma leitura atenta dos livros de culi-
nária do século I mostra quão sofisticado
era o pecado da glutonaria. Imoralidade e
1CORíNTIOS 7
glutonaria caminhavam de mãos dadas em
festas pagãs. Paulo argumenta que nem o
alimento nem o apetite são indestrutíveis.
O corpo não foi feito para o sexo fora do
casamento, mas no caso dos cristãos, o seu
corpo não lhes pertence para que façam
o que desejarem, pois ele foi feito para o
Senhor. 14 Paulo rejeita o argumento de
Platão de que os sentidos devem ser sacia-
dos agora, uma vez que não podem ser sa-
ciados na morte. Entretanto, Deus pretende
ressuscitar corpos, não almas, pois ele res-
suscitou o Senhor. 15 Nenhum cristão pode
dizer "meu corpo", pois não é o espírito,
mas a pessoa como um todo que se une a
Cristo na conversão. Os cristãos que são
chamados membros de Cristo nunca po-
dem se unir a uma prostituta por meio do
sexo. 16 Tal comportamento, embora acei-
to como normal para os homens no mun-
do romano, era sempre proibido na igreja
por causa da união que qualquer ato sexual
estabelece entre duas pessoas. Paulo cita a
prática sexual em Gênesis 2.24 - nunca
houve exemplo algum de defesa do adul-
tério na Bíblia. 20 Nenhum cristão pode
dizer "meu corpo", pois ele foi comprado
por um preço, isto é, resgatado pela mor-
te de Cristo. A implicação clara é que sua
tarefa é honrar, literalmente "glorificar", a
Deus em seu corpo, e isso é feito no seu
relacionamento com os outros, tanto social
quanto sexualmente, dentro dos parâme-
tros estabelecidos na Bíblia.
7.1-40 Questões conjugais
Essa é a discussão mais longa sobre a se-
xualidade e sobre os assuntos a ela rela-
cionados em todas as cartas de Paulo. Ela
contém informações vitais sobre questões
ainda não discutidas. A incapacidade de
compreender as circunstâncias que deram
origem ao problema descrito em 7.1 e 7.25
fez com que ensinamentos valiosos sobre o
casamento e o celibato fossem ignorados.
No que diz respeito às circunstâncias, a
própria carta nos dá uma pista, pois Paulo
refere-se à angustiosa situação presente
1760
em 7.26 que levou cristãos a reconside-
rar se era adequado ou não o casamento
de casais que já estavam noivos (7.25).
Há evidências arqueológicas e literárias
sólidas que indicam ter havido um perío-
do de escassez de alimentos em Corinto
nessa época. Essa escassez veio acompa-
nhada de distúrbios e pânico devidos às
inquietações sociais e incertezas sobre o
futuro. Foram descobertas l l inscrições
da mesma pessoa que por três vezes foi
responsável pelos suprimentos de grãos
em Corinto nesse período. Esse cargo
era ocupado apenas em tempos de fome;
assim há boas razões para se associar a
crise à ameaça de fome. Tácito também
registra terremotos e fomes. Muitos acre-
ditavam que eram presságios divinos.
Sabemos que muitos cristãos acreditavam
que os sinais da tribulação seriam a fome
e os terremotos, e as bem-aventuranças
seriam pronunciadas sobre as mulheres
que não estivessem grávidas (Mt 24.7,19;
Me 13.17). Aqui Paulo não somente res-
ponde às suas perguntas imediatas, mas
também fornece um quadro importante
que deve servir de base para a considera-
ção do casamento cristão.
7. 1-6 Aos casados
1 A frase é bom que o homem não toque em
mulher pode ser traduzida tanto por "O ho-
mem faz bem em não casar" (NTLH) quanto
por "É bom que o homem se abstenha de
ter relações sexuais com qualquer mulher"
(NIV mg). Uma das razões para essa incer-
teza na tradução dessa passagem é que a
palavra grega para "mulher" e "esposa"
é normalmente a mesma. Também é mui-
to comum o grego não usar um pronome
quando se refere à esposa de alguém; as-
sim a frase pode ser traduzida literalmente
- "É bom que o homem não toque [sua]
mulher". O que define a preferência pela
segunda tradução é o uso do verbo que na
frase significa "tocar". Era também uma
forma de eufemismo, tanto no grego quan-
to no latim, como também em algumas
 1761
línguas contemporâneas, para designar a
relação sexual. 2 Devido ao problema da
tentação sexual cada um tenha sua pró-
pria esposa (isso é um mandamento) e
cada uma [esposa] o seu próprio marido.
O verbo "ter" é também um sinônimo para
relações sexuais. 3 O marido tem a obri-
gação de manter relações sexuais com sua
esposa, e a esposa com seu marido.
4 O corpo da mulher não é sua "pro-
priedade" pessoal e o mesmo vale para
o homem. Uma vez que se case, ele não
deve ter relações sexuais com outra mu-
lher. Não encontramos nenhuma outra
referência na literatura do mundo antigo
que ensine que o marido deva entregar
seu corpo exclusivamente à sua esposa.
Na verdade, no mundo secular era uma
tradição no dia do casamento se dizer à
noiva que, quando seu marido cometesse
adultério com uma prostituta ou uma mu-
lher de pouca virtude, isso não era sinal
de que ele não a amava, mas simplesmen-
te uma maneira de satisfazer seus dese-
jos. 5 Não manter relações sexuais com o
parceiro no casamento era "privar" o côn-
juge. Paulo proíbe tal abstinência, exceto
por consentimento mútuo e somente para
um período de oração, que talvez tenha li-
gação com "a presente crise". Ele adverte
que Satanás fica à espreita e pode tentar
um parceiro sexualmente, e por essa razão
eles devem novamente "ajuntar-se" (mais
um sinônimo para o ato sexual) devido à
tentação da infidelidade.
Essa única exceção mostra a ênfase bí-
blica sobre a importância da relação sexual
como parte integrante da estrutura do ca-
samento. Não foi algo dado simplesmen-
te com a finalidade de procriação, nem é
desonroso (cf Hb 13.4). Será que alguns
casais cristãos, ao perceber os sinais dos
tempos em fomes e terremotos, decidiram
abster-se do relacionamento sexual? Essa
teria sido a única forma aceitável de con-
tracepção. Bênçãos eram prometidas à mu-
lher que não estivesse grávida na época da
tribulação (Mc 13.17).
1CORíNTIOS 7
7.6,7 O dom do casamento
e o do celibato
A declaração E isto vos digo como con-
cessão e não por mandamento refere-se
aos v. 6,7 e não aos v. I-S. Nos v. 2,3, e 5
ele ordena seis mandamentos - "deve"
na NIV traduz o verbo referente a manda-
mento. 7 Ele deseja que todos os homens
sejam como ele, isto é, solteiros. No en-
tanto, expressão que aqui está na forma
grega enfática, ele reconhece que cada
pessoa recebe de Deus o seu dom, cha-
risma, isto é, uns permanecem solteiros e
outros se casam. O celibato em algumas
sociedades é alvo de insinuações cruéis.
Algumas vezes na igreja isso tem sido tão
supervalorizado quanto desvalorizado,
em ambos os casos de modo contrário à
palavra de Deus. O celibato, assim como
os outros dons, é um dom pessoal dado
por Deus a um indivíduo.
7.8,9 Aos que não têm
parceiros conjugais
E aos solteiros e viúvos digo que: é pre-
ferível que permaneçam no estado em que
se encontram. Entretanto, Paulo reconhece
que isso pode não ser possível e observa
que em tais casos a pessoa deve, isto é, tem
de se casar, pois é melhor casar do que se
encher de desejos sexuais incontroláveis.
Tais pessoas devem aceitar que o charisma
de Deus para elas é o casamento.
7.10, 11 Aos casados
Aqui Paulo distingue entre uma declara-
ção conhecida de Jesus, isto é, do Senhor
(10,12) e a sua. Deve-se lembrar, no entan-
to, que Paulo dá mandamentos claros nessa
seção. A esposa cristã não é livre para se
separar de seu marido. Paulo aceita que há
ocasiões em que a separação é necessária.
Entretanto, em tais circunstâncias, ela tem
apenas duas opções, isto é, permanecer se-
parada ou se reconciliar com seu marido.
O marido está vinculado às mesmas restri-
ções indicadas por Paulo ao proibir a op-
ção do divórcio. Presume-se que no caso
1CORíNTIOS 7
da imoralidade sem arrependimento se
abra uma exceção (Mt 19.9). O fato de am-
bos os parceiros serem cristãos não garante
sua felicidade, mas com certeza a garanti-
ria se vivessem em amor e respeito. Todas
as atitudes impensadas das quais alguém
não se arrepende trazem consequências
duradouras e nefastas.
7.12-16 As opções com
um parceiro não cristão
Paulo tem em mente casamentos realizados
antes de um dos parceiros se tomar cristão.
A exigência por implicação de que uma
viúva cristã só pode se casar novamen-
te com um cristão sugere que os cristãos
não são livres para se casar com quem não
compartilhe da fé cristã (7.39). Além dis-
so, os apóstolos tinham esposas que eram
chamadas "irmãs", isto é, cristãs (9.5).
12 Ter uma parceira que não era cristã não
era motivo para o marido se separar ou di-
vorciar. Deve ter havido pressões sobre al-
guns cristãos para que o fizessem por causa
da interpretação equivocada do AT, que exi-
gia que um judeu que tivesse assumido um
relacionamento com uma mulher que não
fosse judia, conhecendo bem a proibição
do AT, desprezasse sua mulher. Se a mulher
não cristã desejava permanecer casada, o
marido não deveria divorciar-se dela. A
ordenança do casamento é uma dádiva de
Deus para toda a humanidade (Gn 2.21-
24), e não simplesmente para os cristãos.
O mesmo se aplica à esposa cristã (13).
14 Não há nada de impuro no relacio-
namento. Ao contrário, há uma influência
santificadora em que os beneficios das bên-
çãos de Cristo fluem para a outra pessoa.
Se o relacionamento não fosse santificado,
então os filhos também seriam impuros,
mas o fato é que eles são "santos". Esse
é um exemplo na Bíblia em que a posição
dos filhos de um ou de ambos os cristãos é
declarada. Os cristãos oriundos de socie-
dades em que a ênfase principal está na ati-
tude corporativa, especialmente na família,
tenderão a considerar isso como uma de-
1762
claração da condição cristã de seus filhos.
Outros, oriundos do Ocidente, terão um
ponto de vista diferente, baseado às vezes
em diferenças denominacionais, e podem
refletir algo das crenças não verbalizadas
da época específica em que surgiram.
15 Se um marido descrente desejar
abandonar sua esposa, então a esposa deve
consentir. Às vezes no mundo antigo as
pessoas se preocupavam com o julgamen-
to dos deuses, se alguém os rejeitasse em
favor de uma nova religião. As mulheres
no século I, principalmente nas regiões
greco-romanas, podiam divorciar-se de
seus maridos rapidamente. Elas simples-
mente exigiam seu dote de volta. Se não
o recebessem de volta, então a lei roma-
na permitia que cobrassem a taxa de 18%
de juros até que o marido o quitasse. Se
a mulher desejasse deixar seu marido por
ele ser cristão, então nenhum obstáculo de-
veria ser colocado em seu caminho, como
por exemplo, a retenção de seu dote. Deus
chamou seu povo para que vivesse em paz
e não em divergência perpétua. Certamente
que a retenção do dote, mesmo com a me-
lhor das intenções de salvar o casamento,
acabaria por resultar na infelicidade dos
processos judiciais. Os cristãos não es-
tavam obrigados em tais circunstâncias,
ou seja, não estavam vinculados àquele
casamento, e portanto, por dedução, eram
livres para se casar novamente, mas so-
mente "no Senhor" (cf v. 39). O divórcio é
permitido quando um dos parceiros aban-
dona o casamento pelo fato de o outro ter
se convertido à fé cristã. 16 Embora possa
haver esperança de que o parceiro não cris-
tão venha a se converter, o que toma váli-
dos todos os esforços para a manutenção
do casamento, não há nenhuma garantia
absoluta de que isso venha a acontecer.
7.17-24 O chamado
pessoal de Deus
Paulo retoma o tema do chamado de Deus
do v. 15 e fornece uma síntese do ensina-
mento ministrado em todas as igrejas.
 1763
17 Ande cada um segundo o Senhor
lhe tem distribuído, ou seja, literalmen-
te, segundo o seu "chamado". As pessoas
eram classificadas em termos tanto sociais
quanto raciais no século I, e privilégios
eram oferecidos a determinados grupos.
Como princípio geral Paulo diz que eles
deveriam manter a presente posição que
o Senhor havia determinado a cada um,
para a qual foram chamados. 18 Os jovens
judeus tentavam escapar de sua condi-
ção racial submetendo-se a cirurgias para
corrigir a sua circuncisão. Assim faziam
para que pudessem progredir tanto em sua
educação quanto em relação à cidadania.
Mas os judeus cristãos eram proibidos de
renunciar à sua raça judaica para galgar
posições na sociedade. Esse foi um perí-
odo de antissemitismo, como observado
em Atos 18.1,2. Os cristãos gentios foram
orientados a não se submeterem à circun-
sisão. Contudo, para quem mesmo assim
o quisesse, as razões estão registradas na
carta aos Gálatas. 19 Em relação a agradar
a Deus, nem a circuncisão nem a incircun-
cisão eram a questão central. Essencial era
a obediência aos mandamentos de Deus.
20 Paulo repete seu ensinamento em
relação à aceitação da raça e circunstân-
cias ordenadas pela providência para cada
pessoa. 21 Os escravos, exceto os da casa
imperial, podiam ser libertados após sete
anos. O escravo cristão não deveria se an-
gustiar por sua posição social. Aqui Paulo
não está exigindo que eles permaneçam
em seu chamado mesmo que estejam qua-
lificados para receber sua libertação - li-
teralmente "mas se ele tiver o poder ou o
direito de fazê-lo". Ele poderia se tomar
um homem livre. A libertação de escravos
é encorajada, embora na época fosse acom-
panhada por obrigações ao antigo mestre
que então passava à condição de benfeitor.
22 Paulo desenvolve esse tema ao expli-
car que, quando era chamado pelo Senhor
para a salvação, o escravo experimentava
a libertação e se tomava um homem livre
no Senhor. Contudo, se o cidadão livre por
1CORíNTIOS 7
nascimento se tomasse cristão, tomaria-se,
paradoxalmente um escravo de Cristo. 23
A libertação de alguns escravos incluía di-
nheiro de resgate, e Paulo faz referência ao
preço que Cristo pagou por eles. Ele ordena
que os homens livres não se tomem escra-
vos de homens. Embora isso possa parecer
fora do comum no século I, alguns gregos
nascidos livres vendiam-se a si mesmos
como escravos para os cidadãos romanos,
e frequentemente passavam a ocupar o car-
go lucrativo de administrador de uma casa.
Eles podiam investir o dinheiro e dirigir
os negócios de seus donos, acumulando
riquezas legitimamente. Era possível para
eles comprar de volta a liberdade de sua
escravidão voluntária, e consequentemen-
te receber a cidadania romana como ho-
mens livres e, ao mesmo tempo, assegurar
a liberdade e a cidadania romana para seus
próprios filhos. Não era somente a riqueza
que contava no Império Romano, espe-
cialmente em uma colônia rom~a como
Corinto, mas o chamado, isto é, a classe e a
posição social. 24 Novamente Paulo repete
que eles permaneçam na posição em que
Deus os colocou - literalmente cada um
permaneça diante de Deus naquilo em que
foi chamado. Enquanto os jovens sonha-
vam com ascensão social e riqueza, os que
estavam na igreja precisavam se alegrar
com a determinação da providência divina
para a vida de cada um. A busca invejosa
por ascensão social era proibida.
7.25-38 Casar agora ou esperar
No século I os que ficavam noivos para se
casar estavam comprometidos um com o
outro, sendo o divórcio o único meio de
renunciar a esse compromisso (cf Mt 1.1-
9). A questão suscitada por alguns homens
jovens que estavam noivos era se deveriam
se casar agora ou esperar, dada a circuns-
tância desoladora em Corinto. 25 Paulo
não tinha sobre esse assunto nenhum man-
damento do Senhor, isto é, de Jesus (cf
v. 10), pelo menos nenhuma palavra de
Jesus durante seu ministério terreno, pois
1CORíNTIOS 7 1764
essa questão surgiu por causa de circuns-
tâncias excepcionais na região. Ao dar sua
resposta identificando-se como aquele que
tendo recebido do Senhor a misericórdia
de serfiel, ele fornece diretrizes pastorais e
espirituais importantes, e o faz no contex-
to de um vasto arcabouço teológico sobre
a natureza da vida conjugal. 26 Devido à
crise aguda na época em Corinto (v. a in-
trodução do cp. 7) seria uma coisa boa que
"os noivos" permanecessem noivos e não
se casassem, mas, se resolvessem se casar,
não estariam cometendo pecado algum.
29-35 O contexto teológico. Ele expli-
ca que o tempo literalmente se abrevia. Isso
tem sido entendido no sentido de que o fim
é iminente. A perspectiva secular sobre a
indestrutibilidade do mundo e sua imutabi-
lidade futura era assunto das discussões do
século I. Para os cristãos, o conceito de tem-
po, kairos, tinha mudado radicalmente. A
vida agora assumia uma nova perspectiva,
e por isso agora não poderia se concentrar
unicamente no casamento, nas aflições e no
dinheiro. Isso tudo parecia diferente diante
do novo relógio cristão, pois o mundo em
sua forma presente estava morrendo. Ele
não era indestrutível. Nesse arcabouço teo-
lógico, Paulo expressa sua inquietação de
que os que sugeriram a questão deveriam
ser livres das responsabilidades da vida na
situação angustiante daquele momento. A
tarefa de cada homem cristão que não era
casado era tentar procurar a melhor manei-
ra de agradar ao Senhor - não era váli-
do o conceito de agradar-se a si mesmo.
33 A tarefa do homem casado era encon-
trar a melhor maneira de agradar sua es-
posa - no casamento cristão não há lugar
para o egoísmo. 34 É claro que o tempo do
marido se divide entre agradar a sua esposa
e agradar ao Senhor - o casamento coloca
sobre ele obrigações adicionais. A mulher
não casada não é diferente em seu chama-
do, embora isso seja expresso de forma di-
ferente - ela deve ser devotada ao Senhor
de corpo e espírito (cf 6.19,20). A mulher
casada tem obrigação semelhante, não de
agradar-se a si mesma, mas a seu marido.
35 O conselho de Paulo é motivado por sua
preocupação pelo próprio bem-estar deles,
não para restringi-los, mas para que eles
possam se consagrar desimpedidamente,
ao Senhor.
36-38 Fatores que influenciam a de-
cisão. 36 A decisão de consumar o casa-
mento é governada por certos fatores: (i) se
alguém julga que trata sem decoro sua fi-
lha. Possivelmente membros de sua família
sentem que ele deva cumprir sua promessa
eles devam casar-se; (ii) se seu relaciona-
mento chegou ao ponto de total afloramen-
to dos desejos - os jovens casais ficam
mais abrasados fisicamente à medida que
o dia do casamento se aproxima. A tradu-
ção "que ela está passando da idade" (NVI)
é improvável, pois a lei romana requeria
que uma mulher se casasse até os cinquen-
ta anos de idade. O termo expressa a ideia
do "total afloramento" dos desejos sexuais,
cf também o versículo seguinte, situação
em que ele tem controle sobre sua própria
vontade, isto é, de seus impulsos sexuais e
(iii) se ele sentir que deve se casar, então
que se case. Ele não está agindo de forma
inapropriada.
37 A decisão de não se casar é também
governada por certos fatores: (i) ele já de-
cidiu a questão por si mesmo; (ii) ele não
sofre pressão da família ou de parentes; (iii)
ele tem controle sobre si mesmo, isto é, de
seus desejos sexuais e (iv) já resolveu não
se casar; essa pessoa então também toma a
decisão apropriada. Paulo não é contrário
ao casamento (cf v. 7b). O homem que não
se casa faz melhor dadas as complexidades
do momento. A decisão de se casar é co-
locada diretamente nas mãos dos homens
jovens envolvidos que devem julgar por si
mesmos e por suas situações. Paulo estabe-
leceu parâmetros para que eles pudessem
tomar suas próprias decisões.
7.39,40 A viúva
Paulo fala mais uma vez do caráter vin-
culante do casamento cristão. A mulher
 1765
está ligada a seu marido, com uma única
exceção, a dos v. 13,15. Se ficar viúva, ela
estará livre para se casar novamente, mas
seu marido tem de ser cristão. A lei roma-
na exigia que uma viúva só se casasse no-
vamente depois de 18 meses da morte de
seu marido, se ela não tivesse 60 anos de
idade. Na opinião de Paulo, em vista das
dificuldades do momento, ela ficaria me-
lhor se permanecesse sozinha. Seu pai ou
seu filho mais velho seriam o "senhor" de
seus dotes e proveriam suas necessidades.
Paulo está convencido de que fala pelo
Espírito de Deus ao escrever isso.
8.1-11.1 As obrigações
do evangelho em um
mundo pluralista
8. 1-13 Carne sacrificada aos ídolos
Essa é a questão seguinte sugerida pelos
coríntios. Para os cristãos que vivem em
sociedades em que os alimentos são ofere-
cidos aos ídolos, seja em lares não cristãos,
banquetes ou templos, há certa urgência
nessa discussão. Nesses capítulos, entre-
tanto, há obrigações do evangelho que são
impostas a todos os cristãos. O apóstolo
conclui com o mandamento de que todos
deveriam se tomar seus imitadores, como
ele é de Cristo.
As palavras introdutórias, no que se
refere, mostra que esta seção, como em
7.1, começa com uma citação da car-
ta que os coríntios lhe tinham enviado.
Reconhecemos que todos somos senhores
do saber, isto é, temos conhecimento dos
sacrificios e ídolos. Paulo repete a expres-
são inicial do v. 1 no v. 4, no tocante à...
com o conectivo "assim que" (ARe) que
explica esse conhecimento. Podemos,
portanto, presumir que o conhecimento
a que o v. 1 se refere era sabemos que o
ídolo de si mesmo nada é no mundo, e
que não há senão um só Deus (4). É bem
possível que a totalidade dos v. 4-6 seja
uma citação que reflete o ensino normati-
vo de Paulo sobre ídolos e deuses e sobre
1CORíNTIOS 8
o Deus vivo e verdadeiro, a quem os co-
ríntios se converteram a fim de se toma-
rem cristãos (I Ts 1.9,10). Aparentemente
alguns cristãos estavam frequentando um
templo que tinha ídolos e comiam o ali-
mento ali oferecido. Com o seu exemplo
eles estavam encorajando outros cristãos
a fazer o mesmo, ou pelo menos corriam
o risco de fazê-lo (lO). Os que o faziam
podem muito bem ter discutido o caso
teologicamente: não havia problemas no
fato de um cristão participar de uma festa,
uma vez que o próprio Paulo ensinara que
havia somente um único Deus e um único
Senhor, e que um ídolo não era absolu-
tamente nada. Parece que alguns estavam
defendendo o seu direito de comer em um
templo de ídolos, enquanto outros não ti-
nham tanta certeza, e a igreja ansiava por
um esclarecimento dessa questão. Paulo
explica como ele mesmo lidava com os
seus próprios direitos, como um modelo
para que outros cristãos também agissem
da mesma forma.
I Paulo ataca o problema ao declarar
o perigo de a sabedoria ensoberbecer as
pessoas, uma vez que a fé cristã significa
relacionamento com os demais em amor.
O amor edifica as pessoas, pois procura
conceder algumas bênçãos aos outros.
2 Ele envia uma advertência aos cristãos
que pensam saber tudo a respeito dessa
questão e a resolveram de acordo com
as suas satisfações (daí sua decisão de
comer no templo dos ídolos). Eles ainda
não aprenderam como convém saber, ou
literalmente, "como é necessário saber".
3 Alguns manuscritos gregos omitem as
duas referências a Deus nessa passagem.
Entretanto, o que é verdadeiro acerca do
relacionamento de Deus conosco é tam-
bém verdadeiro acerca do relacionamento
dos cristãos com os outros. O homem que
ama é o que realmente sabe, enquanto o
homem que diz "saber" não age necessa-
riamente de maneira prestativa para com
os outros. Esse é o verdadeiro motivo por
que alguns coríntios não estão agindo
1CORíNTIOS 9 1766
em amor, mas simplesmente exercitando
seus direitos.
Os v. 4-6 são uma declaração de fé im-
portante, um verdadeiro credo elaborado
em um contexto de pluralismo religioso,
algo tão crucial de se afirmar hoje quan-
to naquela época. Há apenas um único
Deus vivo e verdadeiro, e os ídolos nada
significam (cf Dt 6.4; Is 40.25,26). 5 No
entanto, Paulo e os demais observavam a
grande extensão da idolatria em Corinto,
onde muitos deuses eram adorados. Paulo
não lhes atribui divindade como se fos-
sem legítimas expressões de Deus. Ao
contrário, Paulo diz que eles se autointi-
tulam deuses: ainda que [00'] se chamem
deuses. Essa expressão era usada para
descrever alguma coisa que era popular-
mente afirmada, mas de forma equivo-
cada. Os termos deuses e senhores eram
sinônimos na linguagem religiosa pagã.
Paulo os utiliza aqui para contrabalançar
o que ele diz no v. 6, todavia (uma forte
declaração de negação) para nós há um
só Deus, o Pai, que é o criador de todas
as coisas e para quem os cristãos existem.
Nosso propósito de vida é servi-lo, e não
simplesmente ter um Deus para atender a
todas as nossas necessidades e interesses
(cf At 27.23). Os cristãos não são meros
adeptos do teísmo. Para eles há apenas
um Senhor, Jesus Cristo, e ele é o agente
de tudo que é criado (cf Jo 1. 3) e aquele
por quem nós vivemos. 7 Mas nem todos
os cristãos acreditam com convicção que
um ídolo não tem poder. Os adoradores
do século I diriam de um ídolo: "Esta é
Atena", acreditando que a deusa verda-
deiramente se encontrava ali. Os cristãos
eram chamados de ateus por não possuí-
rem estátuas. A ingestão de alimentos sa-
crificados aos ídolos não era considerada
um costume inofensivo pelo cristão fraco
que, se o ingerisse, se sentiria corrompi-
do - um ponto de vista defendido ainda
hoje por alguns cristãos no Oriente.
8 Os presunçosos cristãos de Corinto
concordariam com o princípio estabeleci-
do em relação aos alimentos. 9 Entretanto,
eles são advertidos no sentido de que o
exercício de sua liberdade, ou melhor, seu
"direito" - a palavra aqui é a mesma uti-
lizada em 9.4,5,12,15 - poderia ser preju-
dicial àqueles que eram mais fracos do que
eles. Isso bem poderia ter relação com o di-
reito de participar nas festas dos jogos, ou
em importantes ocasiões cívicas, um dos
privilégios concedidos à elite. A primeira
hipótese parece ser a mais provável, uma
vez que os jogos ístmicos não aconteceram
enquanto Paulo esteve em Corinto, e assim
o problema não se apresentou enquanto
ele estava no local. Sabemos que todas
as pessoas importantes de Corinto eram
convidadas para três festas pelo presidente
dos jogos. 10 Paulo temia que um cristão,
ao ver outros cristãos comendo no tem-
plo dedicado a um ídolo, cedesse à pres-
são para se conformar e tropeçasse na fé.
11 Esse cristão seria destruído, pois vol-
taria às atividades pagãs em decorrência
da atitude daqueles cristãos que comiam
no templo dedicado a ídolos para provar
que um ídolo nada significava. 12 Não é
apenas uma questão de exercer seus direi-
tos, mas antes um pecado contra o irmão
e consequentemente contra Cristo. Dado
o relacionamento bastante próximo entre
o Senhor e seus filhos, algo que Paulo
descobriu em sua conversão, prejudicar
os cristãos é o mesmo que prejudicar a
Cristo (At 9.1-4). 13 Paulo formula a pri-
meira exigência a respeito de se imitar
tanto a ele, Paulo, como a Cristo (11.1).
Se o exercício do direito causar o pecado
de um irmão, então exercer esse direito
deve ser evitado a todo o custo.
9. 1-14 Direitos e ministério
Paulo prossegue, demonstrando uma vez
mais uma verdade extraída de seu próprio
ministério (cf 2.1,3). Essa demonstração
também lhe fornece uma oportunidade
de defender seu ministério diante dos que
emitem juízos sobre ele ao explicar as ra-
zões de ele não reivindicar seus direitos
 1767
como um apóstolo (cf 9.3). Ele conduz
essa parte de sua argumentação com uma
série de perguntas que exigem o "sim"
como resposta.
A eficácia do seu ministério apostólico
em Corinto é clara, embora alguns agora
comecem a questionar se era realmente ne-
cessário que ele retomasse para mais um
período lá (cf 16.12). Ele é um apóstolo,
isto é, um dos que tinham visto o Senhor
(cf At 9.17). A própria igreja de Corinto
é uma prova do reconhecimento divino do
seu ministério, isto é, do seu apostolado no
Senhor (2). 3 À medida que o seu ministé-
rio começa a sofrer escrutínio por parte de
seus críticos, a defesa da validade do apos-
tolado de Paulo, algo que ele declarou em
termos gerais nos v. 1,2, é detalhada com
uma série de perguntas.
4 Paulo expõe os direitos de um apósto-
lo - o direito de comer e beber, 5 o direito
de se casar e o direito de ser acompanha-
do por sua esposa (um princípio quebrado
por alguns missionários do último século,
cf. 7.35), como acontecia com os demais
apóstolos e os irmãos do Senhor (esses úl-
timos outrora céticos, Mc 3.31; Jo 7.2,3,
mas agora cristãos, At 1.14, logicamente
eram testemunhas importantes de Jesus);
6 o direito de ser sustentado ou, como per-
gunta Paulo, Ou somente eu e Barnabé
não temos direito de deixar de trabalhar?
7 Esses direitos eram tão óbvios como o di-
reito dos soldados de receberem o seu sol-
do, o direito dos trabalhadores das vinhas
sobre a colheita e o direito dos pastores de
se alimentarem com o leite do rebanho.
8,9 Os direitos mencionados no v. 7
não eram apenas convenções seculares,
mas eram endossados pelo próprio AT, ci-
tados em Deuteronômio 25.4, em que até
mesmo o boi não deveria ter a sua boca
amordaçada. Os estudiosos judeus viam o
boi como um símbolo de todos os tipos de
trabalhadores, humanos e animais, e inter-
pretavam que essa lei era dirigida direta-
mente ao homem e este deveria obedecê-la.
Esse é o motivo de ela ter sido escrita para
lCORíNTIOS 9
nós, por causa dos direitos do trabalha-
dor sobre a colheita. Ele trabalhou com a
expectativa de se beneficiar da colheita.
11 O semeador espiritual (cf 3.6), nesse
caso Paulo em Corinto, também tem direi-
to sobre a colheita material. 12 Entretanto
ele não exerceu essa prerrogativa com
eles. Ao contrário, ele não se favorecia a
si mesmo, suportando qualquer coisa, isto
é, qualquer deslocamento ocasionado por
seu trabalho tanto de dia quanto de noite
(cf At 20.35). Ele o fazia para não colocar
nenhuma pedra de tropeço no caminho dos
seus ouvintes enquanto lhes apresentava o
evangelho. Este é o segundo princípio de
Paulo, que expande o seu ponto em 8.13,
aumentando seu escopo para beneficiar os
que não eram cristãos.
Embora muitos oradores chegassem
às cidades prometendo trazer benefícios
cívicos e educacionais (cf comentário em
2.1-5), os que os ouviam sabiam que o in-
teresse do orador era acumular dinheiro.
Os ouvintes se interessavam apenas pelas
suas habilidades oratórias, e não propria-
mente pelo assunto do seu discurso, o qual
eles mesmos frequentemente escolhiam.
Paulo, em contraste, tinha grande preocu-
pação com o conteúdo de sua mensagem,
isto é, com as boas-novas. Ele ansiava,
entretanto, evitar qualquer identificação
possível com os oradores seculares, para
que pudesse conquistar ouvintes para a
sua mensagem.
13 Tendo discutido as convenções se-
culares, às quais Paulo renunciou devido
ao perigo de que fossem mal interpretadas,
ele cita também os direitos dos sacerdo-
tes que serviam o altar do AT e, no v. 14,
o mandamento do Senhor Jesus de que os
que pregassem o evangelho deveriam ser
sustentados do evangelho (cf Mt 10. 10).
Paulo não fizera uso do mandamento do
Senhor porque acreditava que em um con-
texto não judaico a reivindicação de seus
direitos levantaria uma barreira em relação
ao povo para o qual o evangelho deveria
ser pregado.
1CORíNTIOS 9
9.15-23 O evangelho
gratuito de Paulo
15 No mundo secular, falar de dinheiro
era sinal de que a pessoa estava pedindo
dinheiro, assim Paulo deixa claro que ele
não está pedindo por nenhuma restituição.
Ele preferia morrer a ser despojado de seu
direito de pregar o evangelho por sua livre
e espontânea vontade. 16 Ele se apressa
em esclarecer isso ao revelar a obrigação
divina sob a qual ele opera (2Co 5.14), e
até mesmo faz uma ameaça a si mesmo
se deixar de desempenhar sua comissão.
17 Se ele prega o evangelho porque quer,
ele tem a sua recompensa. Se ele prega
porque tem de pregar, ele simplesmen-
te cumpre o seu papel de despenseiro do
evangelho (cf 4.1). 18 Qual é a recom-
pensa de Paulo por querer pregar o evan-
gelho? A satisfação por poder oferecê-lo
gratuitamente. Em uma sociedade em que
a vantagem pessoal, e até mesmo as obras
beneficentes, sempre foram aceitas como o
fator motivador, a "vantagem" de Paulo era
ver o evangelho singular da graça gratuita
de Deus sendo oferecido sem custo algum
para os seus ouvintes. Suas ações demons-
travam o verdadeiro caráter de sua mensa-
gem. Ele não exigiria os seus direitos.
19 Os que empregavam mestres secu-
lares sentiam-se em débito para com eles,
especialmente quando os tinham como tu-
tores particulares em suas próprias casas.
Apesar de algumas das obras de Paulo te-
rem sido realizadas no âmbito das grandes
casas de famílias onde havia igrejas do-
mésticas, ele testemunha o fato de que era
um agente livre. No entanto, embora tenha
essa liberdade (cf 9. 1, sua pergunta de
abertura), ele não a utiliza. Tal como o seu
Senhor (Fp 2.7.8), ele escolheu ser escra-
vo de todos para que possa ganhar alguns
para Cristo. Paulo é um missionário trans-
cultural por excelência, e não um escravo
de convenções evangelísticas. Sua capaci-
dade de adaptação é vista em sua sensibi-
lidade quando pregava aos judeus, embora
não estivesse sob a lei (20); quando prega-
1768
va aos não judeus, fazendo as adaptações
culturais necessárias em sua tarefa missio-
nária, tanto na pregação (cf At 17.22-31)
como nos contatos evangelísticos (21; cf
10.30); e quando pregava aos supersticio-
sos, como o seu Senhor, não esmagando a
cana quebrada (22).
Paulo define agora o seu terceiro prin-
cípio - sensibilidade ao contexto cultural.
Fiz-me indica que a certa altura ele tomou
essa decisão como uma estratégia missio-
nária. Ele seria transcultural na sua apre-
sentação do evangelho e no seu estilo de
vida, e sem dúvida inovador na sua abor-
dagem. 23 Suas ações eram exclusivamen-
te voltadas ao evangelho, e sua motivação
era compartilhar suas bênçãos. Paulo foi,
sem dúvida alguma, um apóstolo livre. Os
que habitualmente orientam sua vida para
compartilhar o evangelho são os que mais
sentem o sabor inebriante de liberdade que
o evangelho traz, quando veem a liberta-
ção das pessoas.
9.24-10.13 Correndo e não caindo
Paulo agora começa a tratar da questão
dos perigos da má conduta sexual, carac-
terística dos banquetes no templo. Ele faz
isso citando primeiramente como exemplo
a sua própria autodisciplina, e em segui-
da contrastando-a ao que acontece com o
povo de Deus, quando este coloca o seu
coração nas coisas más. Seu objetivo é evi-
tar que os corintios façam o mesmo (10.6).
24 Paulo constrói uma imagem a partir
dos eventos que se realizavam durante os
famosos jogos ístmicos nos arredores de
Corinto. Ele incentiva os seus ouvintes
a se tomarem corredores determinados a
cruzar a linha de chegada. 25 Ele os faz
lembrar da dieta e disciplina rigorosas por
que passam os atletas nos treinamentos, a
fim de receber uma coroa que, na época de
Paulo, era feita de louros, e por isso logo
pereceria. Em contrapartida, a corrida cris-
tã oferece uma recompensa que dura para
sempre. 26 Paulo compara seu próprio mi-
nistério ao de um corredor que sabe para
 1769
onde deve correr. Ele também é como um
lutador, mas não como um lutador que
esmurra o ar (oradores que exibiam sua
habilidade oratória diante de multidões,
mas em debates efetivos eram ridiculari-
zados como lutadores que esmurram o ar).
27 O adversário era o seu próprio corpo e os
seus apetites. É isso que Paulo domina, ao
contrário dos oradores que se gabavam de
que seus rendimentos lhes davam o direito
de satisfazer seus apetites e se entregar à
luxúria, e que eram criticados por pregar a
virtude mas viver de modo diametralmente
oposto. Paulo está profundamente cons-
ciente da necessidade de controlar e domi-
nar seus apetites; para que possa realizar o
seu ministério de pregação ele luta contra a
tentação sexual ou quaisquer outras tenta-
ções. Esses eram problemas constantes em
sua época e ainda são um perigo entre os
evangelistas e líderes cristãos da igreja de
hoje. Aqui Paulo aponta para o perigo de
se tropeçar por não abandonar uma condu-
ta pecadora (cf Hb 12.1).
10.1-13 Exemplos da própria his-
tória de Israel. A divisão tradicional do
capítulo estabelecida por cristãos de um
período posterior não é útil aqui. Ela co-
meça com Ora, conectando a discussão
acerca da possível desqualificação de
Paulo para o seu ministério com os que
sofreram o juízo de Deus no AT. O trecho
10.1-13 ilustra a verdade de que o Deus
do Senhor Jesus julgou Israel por sua
conduta idólatra. Deus vai fazer o mesmo
com os coríntios, que insistem em exercer
o seu direito de comer nos templos dedi-
cados aos ídolos, a menos que se afastem
da idolatria (cf 10.14-22).
Os v. 1-4 apresentam as credenciais es-
pirituais impecáveis dos filhos de Deus no
deserto. Eles tinham vivido a experiência
inconfundível da mão orientadora de Deus
e testemunhado a libertação milagrosa na
travessia do mar (Êx 13.21; 14.22). Os fi-
lhos de Israel participaram da experiência
de Moisés como agente de libertação de
Israel, e do mesmo modo os cristãos par-
1CORíNTIOS 10
ticipam da experiência de Cristo como o
seu libertador (2). Eles foram nutridos com
o mesmo alimento espiritual (Êx 16.15,35)
e sustentados pela bebida espiritual da ro-
cha (SI 78.15), que era Cristo, satisfazendo
as suas necessidades da mesma forma que
ele satisfaz plenamente as necessidades
dos coríntios (1.4-7,30). Aquele que es-
tava no princípio e era o agente de cria-
ção (Jo 1.2-4), em quem todas as coisas
subsistem (Cl 1.17), participou ativa-
mente da vida do povo de Deus na épo-
ca do AT, do mesmo modo que participa
da vida dos cristãos de hoje. A segunda
pessoa da Trindade não apareceu subita-
mente pela primeira vez na encarnação.
5 Contudo, a exclusão dos israelitas do
povo de Deus resultou na sua morte no de-
serto. Eles são um tipo ou exemplo que ser-
ve de alerta para os coríntios para que não
venham a repetir o mesmo engano terrível.
Paulo faz quatro proibições aos corintios,
que são derivadas do juízo severo de Deus
sobre seus filhos no deserto. (i) A idolatria
é proibida, e Paulo cita Êxodo 32.6, passa-
gem que teria servido com perfeição para
descrever o comportamento descomedido
em banquetes nos templos dedicados aos
ídolos em Corinto (7). (ii) A imoralidade
sexual (8), que era uma conduta aceitável
em tais banquetes no século I, também é
proibida. A consequência de tal comporta-
mento para Israel foi sua exclusão imediata
da comunidade dos fiéis (Nm 25.1-9). (iii)
Testar ou tentar Deus a agir (9) também
traria um terrível juízo (Nm 21.5,6). Pode
ter havido alguns em Corinto que raciona-
lizaram o exercício de seu direito de comer
nos templos usando o argumento de que
nada ainda tinha lhes acontecido enquanto
comiam, e portanto isso nunca aconteceria.
(iv) Eles recebem a ordem de não murmu-
rar (lO; Nm 14.2). Alguns podem ter se
queixado ao Senhor devido à dificuldade
que experimentavam por viverem em uma
sociedade que endossava o pluralismo re-
ligioso; eles foram levados a negar a bon-
dade de Deus e sua ordenação providencial
1CORíNTIOS 10
das circunstâncias assim como Israel fizera
contra o Senhor e Moisés.
11 O juízo que lhes sobreveio e que foi
registrado no AT significa que a sua adver-
tência deve ser ouvida por aqueles a quem
agora osfins do século têm chegado, isto é,
por aqueles a quem chegou o cumprimento
da promessa a Abraão de abençoar a to-
das as nações e não simplesmente a Israel
(Gn 12.2,3). 12 Paulo se dirige ao que pen-
sa estar em pé, ao que discutia que um ído-
lo não era nada (8.4) e que comer em um
templo dedicado aos ídolos era algo perfei-
tamente aceitável (8.10). A ele é dada uma
clara advertência para que reflita, pois há
uma grande possibilidade de que venha a
cair, dada a coerência de Deus como juiz
de Israel e da igreja. 13 Esses cristãos au-
toconfiantes são advertidos de que toda a
humanidade enfrenta as tentações de fazer
concessões à imoralidade - e com eles
não será diferente.
10. 14-11. 1 O sacrifício aos
ídolos e a ceia do Senhor
14 Os amados convertidos de Paulo devem
evitar comer no templo devido ao perigo
da idolatria. 15 Um apelo lhes é feito para
que pensem mais sobre o assunto, e Paulo
usa duas analogias. A primeira diz respeito
à ceia do Senhor e a segunda a se alimentar
dos sacrifícios do AT. 16 O cálice de ações
de graças era o terceiro cálice na Páscoa.
Jesus, na noite anterior à sua morte, reinter-
pretou o significado desse cálice de modo
que ele apontasse para o derramamento do
seu sangue na cruz e fosse o meio de es-
tabelecer uma participação nos beneficios
de sua morte. Ele fez o mesmo com o pão
que foi partido para expressar essa mesma
participação. 17 Da mesma forma, o fato
de os cristãos partilharem de um mesmo
pão na ceia do Senhor aponta para o fato
de que todos eles pertencem a Cristo, que
todos são um só corpo em Cristo. 18 O
relacionamento dos sacerdotes no AT com
o altar é citado como base para estabele-
cer o relacionamento nos v. 19,20 (Lv 3.3;
1770
7.15). 19-21 Paulo explica que os sacrifi-
cios pagãos são oferecidos aos demônios
(Dt 32.17) e que não é possível beber do
cálice do Senhor e do cálice do demônio.
É interessante observar neste contexto que
alguns vasos e cálices encontrados pelos
arqueólogos em Corinto trazem gravados
os nomes de determinados deuses. 22 O
ponto alto do argumento é que os coríntios
irão suscitar o ciúme do Senhor. Seriam
eles mais fortes do que o Senhor para so-
breviver a tal confronto?
Após ter exposto o que realmente está
ocorrendo nas refeições sacrificiais dos
pagãos, nas quais alguns coríntios justi-
ficavam a sua participação, Paulo usa o
próprio argumento deles para expor o seu
caráter não cristão (23,24). Tal como em
6.12,13, a ética que diz que tudo é permi-
tido tem sido utilizada como justificativa
para a ação daqueles que pensam que estão
de pé. 23 Eles alegavam que Todas as coi-
sas são lícitas, mas as ações cristãs são ba-
seadas no que é benéfico para a pessoa em
questão. Com base nisso, as conclusões em
10.19-22 mostram que o que eles tinham
feito despertara o ciúme do Senhor e não
trouxera a eles nenhuma bênção. Se tudo
que é feito deve ser para a edificação de
outros, então eles tinham fracassado pelo
fato de terem corrido o risco de destruir
o seu irmão mais fraco (cf 8.10-12). As
ações de um cristão devem ser construtivas
no que se refere aos outros; essa analogia
da "edificação" é exclusiva ao cristianismo
e reflete sua exigência de que as necessi-
dades dos outros determinem a conduta
cristã. Da mesma forma, as ações de Deus
em Cristo voltadas para nós têm o pro-
pósito de atender as nossas necessidades.
24 As tão admiradas ações beneficentes,
tanto cívicas como pessoais, e o sistema de
patronagem de Corinto não tinham como
objetivo principal atender as necessidades
dos outros; a promoção pessoal vinha em
primeiro lugar, e quaisquer beneficios a
terceiros eram meramente secundários.
A ética cristã radical é exposta em outros
 1771
termos: fazer o bem aos outros era o princi-
pal e nunca a promoção pessoal. Os corín-
tios que insistiam em seu próprio direito de
comer nos templos dedicados aos ídolos, a
despeito das necessidades dos outros cris-
tãos, tinham falhado em amar o próximo,
pois colocaram as suas próprias necessida-
des em primeiro lugar.
Nos v. 25-30 Paulo explica como agir
em meio ao pluralismo religioso. O ali-
mento vendido no mercado de carnes de
Corinto podia ser consumido pelos cris-
tãos (25). O fato de ele ter sido ofereci-
do no templo, antes de ser vendido, era
anulado por Salmos 24.1, que todo judeu
piedoso recitava antes de comer qualquer
coisa (26). Se um não cristão fosse convi-
dado para jantar e aceitasse, então o prin-
cípio era o de observar a etiqueta de comer
o que fosse oferecido pelo anfitrião. Não
há escrúpulos nisso, pela mesma razão for-
necida no versículo anterior (27). A exce-
ção a essa regra se dava quando um dos
presentes chamasse a atenção para o fato
de que a carne fora comprada no mercado
de carnes. Se essa pessoa acreditasse que
era errado que o cristão comesse a carne,
então o cristão deveria desistir de fazê-lo,
tanto para o seu bem quanto por razões de
consciência (28). Paulo deixa claro que ele
está falando sobre a consciência da outra
pessoa (24) e com isso enfatiza o ponto
de que os escrúpulos e as necessidades do
próximo determinam as ações do cristão.
Toda a discussão é concluída em
10.31-11.1, fornecendo parâmetros am-
plos para a atuação dos cristãos na socie-
dade. 31 Primeiro, não importa o que o
cristão fizer, seja comer, beber ou qualquer
outra ação, deve fazê-lo para a glória de
Deus. 32 Segundo, nem judeus nem gre-
gos, isto é, nem os de dentro nem os de
fora da igreja poderiam ser levados a tro-
peçar por causa das ações de um cristão.
33 Novamente Paulo pode chamar a aten-
ção para as suas próprias ações como base
para isso, pois ele procura agradar a todos,
nunca buscando o seu próprio bem, mas
1CORíNTIOS 11
sim o bem de muitos, para que sejam sal-
vos. 11.1 Ele conclui dizendo para que os
coríntios sigam seu exemplo, delineado na
discussão, que é um exemplo baseado em
Cristo. A prioridade dos outros no que diz
respeito à sua necessidade do evangelho e
as preocupações com o irmão mais fraco
devem determinar as ações do cristão.
11.2-14.40 A vida
disciplinada da igreja
11.2-16 Cobrindo a cabeça no culto
2 Paulo elogia a congregação por observar
as tradições que ele tinha recomendado a
eles no passado. É interessante perceber
que as questões levantadas são questões
que Paulo não havia tratado enquanto este-
ve com eles. Não se trata de uma reflexão
sobre a sua competência, mas, antes, sobre
as mudanças que aconteceram depois da
sua partida. O que Paulo ordena faz parte
da tradição apostólica que é determinante
para a congregação (cf v. 16). 3 Paulo quer
que os coríntios entendam que Cristo é o
cabeça de todo homem (ou "marido", como
é mais provável), e o "marido" é o cabeça
de toda mulher (ou "esposa", como é mais
provável, dada a ambiguidade dessas pa-
lavras no grego). Era um costume pagão
que os sacerdotes provenientes da elite da
sociedade se distinguissem de outros fiéis
pelo fato de orar e oferecer sacrifícios com
a cabeça coberta. Haveria alguns, dentre a
minoria de cristãos provenientes da elite,
que pretendiam chamar a atenção para a
sua posição por meio desse costume de
orar e profetizar com a cabeça coberta? Ele
desonra sua própria cabeça, isto é, Cristo,
que é o seu cabeça (cf v. 3). A desonra
estaria em chamar a atenção para a sua
posição social, quando é para Cristo que
toda a atenção deveria ser dirigida quando
alguém estivesse em oração.
5 Qualquer mulher que ora ou profe-
tiza com a cabeça sem véu desonra a sua
cabeça, ou seja, seu marido. É como se ela
tivesse a cabeça raspada. Raspar a cabeça
1CORíNTIOS 11 1772
de uma mulher que cometesse adultério era
uma pena prescrita pelo direito romano, le-
gislação que era aplicada à colônia roma-
na de Corinto. 6 Se a esposa não cobrir a
cabeça, implicitamente ela é vista como
alguém que se recusa a reconhecer o seu
relacionamento com seu marido, ou seja,
seu estado civil. Para a mulher, a atitude
de não cobrir a cabeça em público era uma
vergonha. 7 Já o homem está impedido
de cobrir sua cabeça, pois ele é a imagem
e a glória de Deus (Gn 1.27a). A mulher
permanece como a glória de seu marido
(Pv 12.4). 8 Essa foi a ordem em que o
homem e a mulher foram criados segundo
Gênesis. 9 Em Gênesis 2.2üb-23 a mulher
foi criada para o marido, e não o contrário.
10 Por essa razão, e também por causa dos
anjos (cf Mt 18.10), a mulher deve ter o si-
nal da autoridade sobre sua cabeça. 11 No
Senhor, Paulo ensina reciprocidade como
em 7.4.12 Paulo explica isso pelo fato de a
mulher ter vindo do homem, e o homem da
mulher. Mas Paulo afirma que tudo vem de
Deus. 13 Tal como em 10.15, Paulo convi-
da os membros da congregação a julgarem
por si próprios. Nesse caso, é correto que
uma mulher ore com a cabeça descoberta?
14 No século I acreditava-se que a natu-
reza determinava as questões culturais.
Sem dúvida Paulo também usa esse argu-
mento no ensino do AT, em que se insistia
na polarização dos sexos. Um homem de
cabelos compridos era algo vergonhoso.
Já se argumentou que há estátuas antigas
de homens com cabelos longos, mas essa
era a forma como os deuses eram repre-
sentados, e não os homens. 15 Os cabelos
longos de uma mulher eram vistos como a
sua glória, e autores antigos mencionam a
atenção dada aos cabelos de uma mulher
como sua glória estimada. 16 Paulo con-
clui que se alguém deseja discutir essa tra-
dição apostólica terá de ter em mente que
nem Paulo nem as igrejas de Deus seguem
outra prática.
Nota. É digno de nota que um proble-
ma específico era que a reunião de cristãos,
a ekklêsia, tinha seu equivalente secular no
corpo diretivo da cidade. Essa reunião era
realizada normalmente no teatro. O que
aconteceria quando uma reunião de cris-
tãos, a ekklêsia, acontecesse em uma casa
particular, onde fosse dada autoridade a
uma mulher e ela não cobrisse a sua ca-
beça? Embora seja ponto de controvérsia
entre os comentaristas, a questão aqui não
parece tratar de homens e mulheres per
se, mas do marido e da esposa - essa é
a tradução legítima de ambos os termos.
Também faz sentido com a declaração de
"autoridade" (cf Ef 5.22,23, em que as
mesmas palavras são usadas). É preciso
observar também que não eram apenas
os homens que oravam e profetizavam
na igreja apostólica. As mulheres tinham
um papel primordial nos cultos. Para uma
discussão sobre as profecias na igreja, v. a
seção 14.1-25.
11. 17-34 Os problemas
na ceia do Senhor
17 Paulo já tinha elogiado os coríntios an-
teriormente por observarem as tradições
apostólicas (v. 2); mas agora, ele não pode-
ria fazê-lo, pois ele fornece preceitos para
corrigir os abusos na ceia do Senhor (34).
Parece que quando eles se reuniam, não era
para melhor, e sim para pior. As divisões
entre os membros (cf 1.10.12) também se
notavam nas reuniões. Na ekklêsia secular,
ou seja, na reunião dos cidadãos para fins
políticos, eles não escondiam suas divisões,
e os cristãos coríntios se comportavam do
mesmo modo em uma série de questões
quando se reuniam em sua ekklêsia cristã.
A expressão enigmática e eu, em parte, o
creio é traduzida de maneira semelhan-
te na NVI. É surpreendente o fato de que
Paulo, que era tão bem informado pelos da
casa de Cloe, estivesse apenas parcialmen-
te informado acerca de um problema em
virtude do qual ele entende que vai cair o
juízo sobre alguns na congregação. A frase
no grego pode ser traduzida por "e creio
em certo relato", o que talvez faça mais
 1773
sentido. A palavra traduzida em algumas
versões por "parcialmente", e que é um ad-
vérbio, também é um substantivo no grego
que significa "um relato". 19 Foi somen-
te quando surgiram divisões que puderam
ser conhecidos os que eram aprovados por
Deus, ou seja, os que eram genuínos, ou li-
teralmente "os que passaram no teste". (Cf
2Co 2.9, em que os genuínos são os que
deram atenção às instruções apostólicas.)
As divisões separavam os fiéis à palavra de
Deus dos demais.
20 A segunda razão de Paulo não po-
der aceitar a conduta deles é que, quando
eles se reúnem, não é a ceia do Senhor que
estão comendo. Sem dúvida isso foi uma
surpresa para eles, mas Paulo apresenta
as razões da sua constatação. 21 Cada um
procede sem respeito algum pelos demais.
Não se sabe ao certo se o comportamento
em questão era que eles não esperavam pe-
los outros ou se simplesmente comiam seu
próprio alimento durante a ceia. A palavra
traduzida por antecipadamente pode signi-
ficar fazer alguma coisa antes dos outros ou
comer avidamente a própria ceia durante a
refeição. 22 Tais ações resultavam na ver-
gonhosa situação de alguns ficarem com
fome, enquanto outros ficavam bêbados.
Paulo faz três perguntas que se destinam a
tomá-los conscientes de sua culpa por esse
comportamento vergonhoso. A primeira é
se os que comiam e bebiam em demasia
não tinham sua própria casa onde pudes-
sem comer e beber. A segunda é por que
eles menosprezam a igreja, literalmente, a
"reunião" de Deus, uma vez que a igreja
lhes pertencia (cf 1.2). A terceira pergun-
ta é se a intenção deles é humilhar os que
literalmente nada têm, ou seja, os que não
têm a proteção de um lar próspero em uma
época de crise como aquela em que havia
fome (v. comentário de 7.26). Paulo certa-
mente não pode endossar ou elogiar essa
conduta indesculpável. A razão pela qual
eles são culpados é pronunciada.
23-25 Paulo começa com um lembre-
te de que ele está repetindo a tradição que
1CORíNTIOS 11
recebeu do Senhor, a qual ele repassou aos
coríntios quando esteve com eles. Ele re-
lata os atos e palavras do Senhor Jesus na
noite em que ele foi traído. Os cristãos de
Corinto deveriam partir o pão em memó-
ria da morte de Jesus. Eles também deve-
riam beber do cálice em memória da nova
aliança que Jesus ratificou em seu sangue
(cf a ratificação da antiga aliança com
sangue, em Êxodo, e a promessa de uma
nova aliança, em Jr 31.31, uma aliança
que era para a bênção de todas as nações,
Gn 12.3). 26 A ceia do Senhor anuncia a
morte do Senhor até a sua segunda vinda.
Paulo repete e modifica a ordem das pala-
vras de Jesus para dar ênfase a seus atos.
Ele o faz para contrastar a abnegação de
Jesus em dar sua vida em beneficio dos
que, com suas ações egoístas, criam divi-
sões no seu corpo, a igreja (cf 10.17). Ele
se concentra no fato de eles não partilha-
rem o alimento na ceia, a fim de mostrar
quão generosa tinha sido a ação de Jesus
na cruz com respeito a eles. Eles estavam
se comportando de forma egoísta até mes-
mo nas cerimônias que Jesus instituíra na
noite de sua traição que deveria servir para
lembrar a morte dele. Não seria o compor-
tamento deles uma traição a Jesus, cuja
ceia eles estavam comemorando?
27 Nesse contexto particular, a indig-
nidade em comer do pão e beber do cálice
estava associada à atitude e às ações de
uns para com os outros, especialmente
em relação aos necessitados que estavam
sofrendo grande constrangimento. Paulo
chama a atenção deles para suas posições
sociais e comportamentos durante a ceia,
em uma comunidade em que as divisões
sociais deveriam ser abolidas em Cristo
(cf 1.30). Eles são, portanto, culpados de
pecar contra o corpo e sangue do Senhor.
28 Todos devem testar ou examinar-se a
si mesmos antes de participar da ceia do
Senhor. Nessa circunstância em especial,
o exame está relacionado às atitudes de
um espírito partidário e à falta de com-
paixão para com os que nada têm. 29 O
lCORíNTIOS 12 1774
fato de não reconhecer o corpo do Cristo,
ou seja, o corpo de cristãos (cf 10.16), só
pode provocar o juízo pessoal. 30 O juízo
já ocorreu. Alguns estão espiritualmente
fracos devido às suas ações, outros estão
enfermos e ainda outros foram levados
pela morte. Isso aponta para a importân-
cia enorme que Deus atribui à sua igreja e
reflete a mesma atitude no AT de sua par-
te no sentido de julgar e eliminar os que
ignoram o compromisso com a unidade
e as necessidades da comunidade cristã.
31 Se eles julgassem as suas próprias
ações evitariam o juízo divino. 32 Para
que os coríntios não pensem que o juízo
de Deus é tão indiferente quanto o dos
deuses pagãos, ele os faz lembrar que a
disciplina do Senhor nesta vida tem sem-
pre a intenção de corrigir, de modo que
o seu povo não seja condenado no futuro
junto com o resto do mundo.
33 A expressão assim, pois assinala a
essência do que os coríntios são chama-
dos a fazer. Quando eles se reunirem para
comer devem esperar uns pelos outros ou
partilhar sua refeição, pois o verbo tam-
bém pode ter esse significado. 34 Os que
estiverem tão esfomeados que não pude-
rem esperar são orientados a comer em sua
própria casa. Isso significa que eles deve-
rão se reunir não "para o pior", mas "para
o melhor" (cf v. 17). Essa parece ser uma
orientação provisória, pois Paulo promete
lidar um pouco mais com a questão quando
vier novamente a Corinto.
Essa declaração é por vezes tomada no
sentido de que Paulo tenha suspendido a
refeição permanentemente e implementa-
do um culto como o que celebramos hoje.
É mais provável que a sua intenção fosse
erradicar os problemas e as atitudes implí-
citas que deram origem a eles. É preciso
não esquecer que os cidadãos estavam atra-
vessando um período de fome (7.26) em
que os "que nada tinham" viviam em situa-
ção extremamente precária. Também vale
a pena refletir sobre o fato de que a ceia
do Senhor só pode ser autêntica quando
os que dela participam o fazem com atitu-
des e ações para com os outros que sejam
coerentes com a atitude e as ações de Jesus,
doando-se a si mesmo (cf 11.20).
12.1-13 Há somente
um Espírito Santo
Assim como a conduta na ceia do Senhor
estava fora de controle, o mesmo acontecia
com a forma como o ministério era con-
duzido na igreja. Embora os coríntios te-
nham escrito a Paulo pedindo orientações
do apóstolo sobre os dons espirituais, não
há razão para separar as questões do cp. 11
das dos cp. 12-14. Se as tomarmos em
conjunto, poderemos perceber a desordem
com que eram realizadas as reuniões cris-
tãs. Seja qual for a forma como o leitor re-
constitua os problemas que deram origem
ao pedido de esclarecimento a Paulo - e
fazer isso é como juntar pedaços de uma
conversa ao telefone em que se escuta ape-
nas uma parte - eles precisam ser asso-
ciados ao resumo das instruções finais de
Paulo em 14.39,40. Ele utiliza esse mesmo
método em outras partes de sua carta (cf
11.33; 15.58). Paulo diz a eles: "Procurai
com zelo o dom de profetizar e não proi-
bais o falar em outras línguas. Tudo, po-
rém, seja feito com decência e ordem".
Os problemas parecem estar relacionados
principalmente à prioridade de profetizar e
exercer o dom de línguas nas reuniões cris-
tãs. Ambos, a profecia e o dom de línguas,
deveriam ser conduzidos de forma a repro-
duzir o caráter de Deus, a quem pertencia
a reunião.
1 Os coríntios escreveram a respeito
dos dons espirituais - o grego é ambíguo
e pode ser traduzido por "pessoas espiri-
tuais". A abertura da discussão sugere que
a pergunta dos coríntios no v. 1 tinha rela-
ção com a forma com que os que possuí-
am o Espírito exerciam seu ministério nas
reuniões da igreja. A primeira preocupação
de Paulo é a de acabar com a ignorância
deles. 2 Ele os faz lembrar que, quando
éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos
 1775
ídolos mudos, literalmente, "vocês eram
desviados ao serem constantemente guia-
dos". A rejeição da revelação geral de Deus
nessas vidas os levou à idolatria e a uma
espiral descendente de práticas idólatras
(Rm 1.21-23). O termo mudos é emprega-
do aqui da mesma forma que os autores do
AT o empregavam quando ressaltavam em
Israel a insensatez e a inutilidade de se cur-
var a ídolos esculpidos por mãos humanas
(Hb 2.18,19). 3 Os gentios acreditavam
que os deuses eram capazes de atingir os
seus objetivos contra outros em áreas da
vida como: competições atléticas, assuntos
do coração, negócios e política. Isso era
praticado nos cultos pagãos por meio do
uso de maldições contra seus adversários.
Às vezes essas maldições eram escritas em
pequenas placas de chumbo, depositadas
no templo e nos poços e juradas em nome
de um deus. Numa dessas placas de chum-
bo, encontrada no templo de Demétrio em
Corinto, se lê: "Hermes do mundo dos
mortos [conceda] pesadas maldições".
Anátema, Jesus pode ser traduzido por
"Jesus [é] uma maldição" ou "Jesus [con-
ceda] uma maldição", pois as duas pala-
vras são literalmente "anátema Jesus". Cf
16.22 "seja anátema", em que o verbo está
no tempo presente. Estariam os cristãos
de Corinto usando o nome de Jesus como
uma maldição contra os seus adversários,
da mesma forma como o faziam os pagãos
com os seus deuses? Estaria Paulo dizen-
do que nenhuma pessoa que falasse pelo
Espírito de Deus amaldiçoaria os outros
com "anátema Jesus" com a finalidade de
prejudicá-los? Apenas os conduzidos pelo
Espírito afirmam que Jesus é o Senhor.
Dos cristãos se espera que usem seus dons
para a bênção e o bem-estar das outras
pessoas (cf v. 7).
Paulo prossegue discutindo o fato de
que os muitos e diferentes dons têm origem
em uma única fonte, Deus, que os tomou
disponíveis para o bem comum (4.11).4-6
Do mesmo Espírito, do mesmo Senhor e
do mesmo Deus se origina uma variedade
1CORíNTIOS 12
de dons, serviços e realizações - a igreja
faria bem em seguir o exemplo de Paulo,
utilizando os três termos. 7 A cada um é
dada a manifestação do Espírito não para
o beneficio próprio, mas para um fim pro-
veitoso. O proveito ou bem alheio na vida
secular era objeto das obras de benfeitores,
e Paulo usa aqui a mesma palavra para
enfatizar que o que cada pessoa recebeu é
para beneficio dos outros. Na Corinto se-
cular a elite ostentava seus dons e habili-
dades acreditando que era isso o que lhe
dava posição e importância social. Essa
falsa noção parece, em alguns casos, ain-
da existir, mesmo após a conversão e já no
ministério. 8-10 Paulo resume os diferen-
tes dons, serviços e atividades do Espírito
- sabedoria, conhecimento, fé, cura, po-
deres milagrosos, discernimento de espíri-
tos, variedade de línguas e suas interpreta-
ções. 11 Tudo isso é atribuído ao Espírito,
e sua distribuição a cada um é uma decisão
soberana do Espírito (cf 4.7b).
12 Assim como os dons são diversos,
mas derivados de um único Espírito (4-11),
assim também com respeito a Cristo, isto
é, com respeito ao corpo de Cristo (cf v.
27). 13 O batismo pelo Espírito tem lugar
em um só corpo, em que as origens raciais
ou a posição social de cada um não faz ne-
nhuma diferença. A fonte da vida espiritual
deles é o Espírito (cf a "fonte" do povo de
Deus no AT, 10.4).
12.14-31 Há somente um
corpo de cristãos
Não é possível declarar independência do
corpo de cristãos simplesmente porque
algumas pessoas estão particularmente
descontentes com os dons dados pelo
Espírito soberano (15-20) ou com os dons
dos outros, e por isso declarar que eles
não precisam de ministérios específicos
(21-26). Todos os cristãos são parte de um
corpo, e foi Deus quem providenciou essa
diversidade.
15-21 A insatisfação de alguém com
determinada função não pode fazer com
1CORíNTIOS 13
que essa pessoa deixe de ser parte do cor-
po. Se todo o corpo tivesse um só dom,
como ele funcionaria? Deus dispôs todas
as partes do corpo como lhe aprouve. Se
todas as partes do corpo fossem iguais, não
haveria corpo. A verdade é que há muitas
partes, mas um só corpo. Os que têm dons
de discernimento e de reflexão não podem
menosprezar os que têm dons mais prá-
ticos. 22-24 Que as partes do corpo mais
fracas e menos dignas sejam tratadas com
honra e decoro especiais em contraste com
as partes do corpo que não precisam de
atenção especial. Deus integrou os mem-
bros do corpo e concedeu honra adicional
às partes que menos tinham. 25 O cerne da
questão é a intenção de Deus de que não
houvesse divisão, mas, antes, que os mem-
bros cooperassem com igual cuidado em
favor uns dos outros (cf 1.1o; 3.3; 11.18).
27 Os coríntios são o corpo de Cristo,
e cada um deles faz parte desse corpo.
Alguns se sentem superiores, e como re-
sultado outros se sentem inferiores em seu
ministério. Com isso, eles foram tentados
a se afastar, ou na verdade se afastaram de
um papel ativo nas reuniões cristãs. Assim
como alguns coríntios não conseguiram
reconhecer o corpo em 11.29, também
aqui eles exerceram seu ministério de uma
forma que teve um efeito negativo sobre
os demais membros. Eles se mostraram
parciais em sua relação com os demais
- algo que acontecia claramente na socie-
dade secular. 28-30 Tanto a atribuição dos
dons aos cristãos como a prioridade dada a
cada um desses dons pertencem somente
a Deus. As funções apostólicas, o minis-
tério profético, as tarefas do ensino, mila-
gres, cura, socorro aos necessitados, tarefas
administrativas e o dom de línguas são de-
finidos (28) junto com o dom da interpreta-
ção de línguas (30). É claro que nem todos
têm cada um desses dons. 31 Os coríntios
deveriam procurar com zelo os melhores
dons. Quais seriam esses dons? Seriam,
presumivelmente, os dons de profecia e de
ensino, como aparecem listados em ordem
1776
de importância no v. 27. Essa suposição é
corroborada em 14.1,39.
Para que os coríntios não buscassem
dons com o espírito de arrogância refletido
em suas atitudes em 12.1, Paulo lhes mos-
tra um caminho sobremodo excelente em
termos de seu ministério conjunto.
13.1-13 Dons exercidos no
contexto de relacionamentos
de compromisso
1 A falta de amor no exercício dos dons
prejudica a pessoa que fala em línguas (ou
as línguas) dos homens e anjos. Serei -li-
teralmente "eu me tomarei" - tão vazio
quanto o som do "sino [ou do] prato que
retine" (NVI). 2 O dom de profecia, por
meio do qual toda a verdade é revelada e
o conhecimento compreendido, e a fé, que
move montanhas de problemas, fazem com
que esse ministério nada seja se o amor es-
tiver ausente. 3 Se houver generosidade
transbordante a ponto de a pessoa entregar
a própria vida para ser queimada, mas se
ela não tiver amor nada disso lhe trará pro-
veito. A falta de amor no ministério signi-
fica que mudei para pior - "Eu me tomo
vazio", cc Eu sou um nada" e "Nada rece-
bo por todos os meus esforços", tudo isso
aguça as motivações para o ministério. O
amor não pode ficar de fora.
4-7 A presença de amor encoraja as
outras pessoas e nos ajuda a superar os
aspectos destrutivos do nosso caráter. A
paciência, a bondade e a verdade são im-
portantes demais. Assim como evitar os
pecados dos Dez Mandamentos que dizem
respeito a outros seres humanos é algo
que nutre e fortalece os relacionamentos,
o mesmo acontece com o amor. A inveja,
a soberba, a raiva e o mal são evitados. O
amor fornece tanto a estabilidade quanto a
consistência para que a vida floresça.
8-13 O futuro do amor é garantido.
9 Nessa existência temporária o nosso co-
nhecimento imperfeito se reflete na nossa
profecia. 10 Porém, quando vier do céu o
que é perfeito então o imperfeito será eli-
 1777
minado. 12 As imagens imperfeitas serão
substituídas por percepções verdadeiras
- os espelhos imperfeitos distorciam o
reflexo verdadeiro do rosto no espelho. O
conhecimento parcial dará lugar ao conhe-
cimento pleno, assim como também somos
totalmente conhecidos por Deus. 13 A per-
manência só é concedida à fé, à esperança
- o futuro nos vem das mãos de um Deus
que não vai nos desapontar - e ao amor.
Porém, o maior desses é o amor, pelas ra-
zões claramente afirmadas nos v. 1-7.
14. 1-19 Profecias, línguas e a igreja
A busca do amor deve ser a prioridade nas
reuniões cristãs. Repetindo a declaração
de 12.31 e resumindo a instrução da busca
pelos melhores dons, Paulo revela ter em
mente o dom da profecia. 2 Ele indica a
razão disso. As línguas não são dirigidas
aos homens, mas a Deus. 3 A profecia, por
outro lado, é dirigida ao povo de Deus e
atende a três necessidades do coração hu-
mano - a edificação, a exortação e o con-
solo. A fé cristã é singular nesse sentido,
pelo fato de ter usado palavras que descre-
vem a edificação na sua atividade de tentar
fortalecer, incentivar e confortar os seus
membros. 5 O desejo de Paulo era que to-
dos falassem em línguas, mas, acrescenta,
se pudesse escolher, ele gostaria que todos
profetizassem. O profeta é maior do que o
que ora em línguas, a menos que este inter-
prete o que ora e a igreja seja edificada. Ele
repete que as reuniões cristãs devem ter a
intenção de edificar.
6 Paulo está discutindo com pessoas
que evidentemente dão grande ênfase ao
dom de línguas tomando-se a si mesmo
como exemplo. A não ser que produza
alguma revelação, conhecimento, profecia
ou ensinamento, que bem alcançará o seu
ministério? Ele fornece dois exemplos.
7 A inteligibilidade é crucial no caso da
música tocada pela flauta ou cítara - o sé-
culo I tinha um grande apreço pela cítara, e
os seus expoentes lotavam os teatros com
seus vastos repertórios. 8 A trombeta pre-
1CORíNTIOS 14
cisava dar o toque correto como sinal para
que as tropas se preparassem para a bata-
lha. 9 Paulo amplia a ilustração: Assim,
vós. Ninguém pode discernir a melodia ou
reconhecer o sinal se a língua for ininteli-
gível. 10-12 Desde Babel, havia inúmeras
línguas, e uma língua incompreensível faz
de quem fala e de quem ouve estrangeiros
um para o outro. Assim, também vós, Paulo
repete (12) e elogia a vontade que os co-
ríntios têm de possuir dons espirituais, e os
encoraja a procurar progredir para a edifi-
cação da igreja.
Nos v. 1-19 Paulo discute os motivos
pelos quais o dom de profecia deve ser mais
procurado que o dom de línguas. A edifica-
ção, o fortalecimento, o encorajamento e o
consolo da igreja são aspectos fundamentais
da reunião dos cristãos como povo de Deus,
e isso ocorre por meio do dom da profecia.
14.20-25 Profecias,
línguas e os incrédulos
20-22 Paulo recomenda que os coríntios
parem de pensar como meninos (cf 13.11).
Embora seja conveniente que sejam ino-
centes em relação à malícia, eles devem
pensar como adultos. Isso implica em
compreender o que está escrito na lei (Is
28.11,12; Dt 28.49), donde Paulo deduz
que as línguas são um sinal para os incré-
dulos (mas um sinal negativo que con-
firmaria sua descrença!) e a profecia um
sinal para os cristãos. 23 Se entrar algum
indouto ("não instruído", NVI) ou incrédu-
lo ("descrente", NVI) na igreja e todos es-
tiverem falando em línguas, ele concluirá
que a igreja reunida é um grupo de loucos.
24 No entanto, se todos estiverem profeti-
zando, o descrente ou o não instruído será
impactado. Ele será convencido e julgado
por todos, 25 seu coração será revelado e,
prostrando-se, adorará a Deus.
14.26-36 De maneira
apropriada e ordeira
26 Todos têm um hino, uma mensagem de
instrução, uma revelação, uma língua ou
 1CORíNTIOS 14 1778
11III
uma interpretação. Mas tudo isso deve ser
feito para a edificação da igreja. 32 Tudo
deve estar sob controle, pois Deus é um
Deus de paz.
Os v. 33-36 tratam da questão do pa-
pel das mulheres na igreja. Alguns co-
mentaristas tentam se livrar do problema,
afirmando que essa seção não é de Paulo,
mas um acréscimo posterior. Mas todos
os manuscritos incluem essa passagem.
Para se entender a passagem, três pontos
precisam ser observados: (i) As mulheres
oravam e profetizavam nas reuniões cris-
tãs (cf 11.5). Essa era uma prática comum
em todas as igrejas apostólicas (33b). O
contexto é crucial, a saber, a avaliação da
profecia (v. 35). (ii) A lei exige o reco-
nhecimento de papéis distintos para ho-
mens e mulheres (34), uma referência a
Gênesis 2.20-24 ou 3.16. Paulo já havia
citado a primeira passagem em 11.8,9.
(iii) A mulher deveria procurar a eluci-
dação dos pontos em casa, o que poderia
perfeitamente significar que foi seu mari-
do quem deu a profecia (35). Embora não
haja certeza absoluta, o presente autor é
da opinião que as mulheres, nessa reunião
pública, não devem participar na avalia-
ção pública de profecia que envolvesse
questionamento do seu conteúdo.
14.37-40 Advertências e conclusões
37 A orientação apostólica que os corín-
tios procuravam a respeito "das pesso-
as ou dons espirituais" conclui com uma
declaração franca de que tudo que Paulo
escrevia vinha do Senhor. O profeta e a
pessoa espiritual saberiam que "Paulo diz
o que Deus diz" (Agostinho). Não há ne-
nhum fundamento para relegar esses capí-
tulos, ou quaisquer outros, a uma circuns-
tância de lugar ou tempo determinados.
38 Pessoas que ignorarem esse aspecto, in-
clusive os profetas e as pessoas que exer-
cem dons espirituais, devem ser ignorados.
39 A profecia deve ser avidamente perse-
guida por causa de seus beneficios para a
igreja. As línguas não devem ser proibidas,
mas reguladas, como previsto no presente
capítulo. 40 O intuito das decisões e orien-
tações de Paulo era a ordem nas reuniões.
Um aspecto do caráter de Deus é que ele
é um Deus de ordem (cf v. 33), e para re-
fletir isso, tudo deve ser feito de maneira
apropriada e ordeira na sua igreja. Essa
inferência inclui não somente as questões
relativas a esses capítulos, mas também as
do cp. 11.
Nota. Os cp. 11-14 refletem a convic-
ção teológica de que a igreja não é "mi-
nha" ou "nossa", mas de Deus; de que as
ações e a entrega da própria vida de Cristo
devem se refletir nos relacionamentos e
no atendimento das necessidades; de que
deve haver a participação tanto de homens
como de mulheres; e de que a preocupação
principal deve ser a edificação, de maneira
ordeira, dos que se reúnem. Esses capítulos
não deveriam ser lidos com o propósito de
apontar as falhas ou deficiências de outras
tradições cristãs. Seria fácil ler esses capí-
tulos sem observar seus desafios pessoais.
Paulo clama por um comprometimento
maior em relação às necessidades físicas
e espirituais nas reuniões cristãs semanais
mais do que muitas reuniões das igrejas
modernas permitem. Elas devem ser edifi-
cantes para os que delas participam. A igre-
ja apostólica nunca estaria fechada para os
incrédulos. O desafio que continua válido
para nós é que os cultos cristãos devem ter
uma atmosfera tal que as pessoas de fora
entrem e adorem e reconheçam que Deus
realmente está entre o seu povo.
15.1-58 A ressurreição
do corpo dos cristãos
Essa não é uma questão que os coríntios
mencionaram na sua carta a Paulo. Paulo
ficou sabendo que alguns diziam não
haver ressurreição dos mortos (12). Ele
prevê que alguns irão fazer perguntas re-
lativas aos meios pelos quais os mortos
são ressuscitados e à natureza do corpo
ressuscitado dos cristãos (35). É evidente
que a questão está relacionada à conduta
 1779
deles, pois ele ordena aos coríntios que
não se enganem e parem de pecar (34).
Assim como em 11.33,34; 14.39,40, este
capítulo conclui com algumas ordens de
Paulo, v. 58 - ... sede firmes, inabaláveis
e sempre abundantes na obra do Senhor
- e com a razão para serem assim - sa-
bendo que, no Senhor, o vosso trabalho
não é vão.
Que associação há entre a ressurreição
do corpo depois da morte do cristão e as
obras realizadas no Senhor nesta vida? Por
que eles precisam ter a certeza de que elas
não são em vão? Não é a ressurreição de
Cristo que estava sendo negada, mas a res-
surreição dos cristãos em contraste com a
doutrina pagã da imortalidade da alma.
A imortalidade da alma era uma verda-
de inquestionável para a maioria dos pa-
gãos do século I. A ressurreição do corpo
era um absurdo para eles (cf At 17.32).
Alguns cristãos parecem ter entendido a
vida eterna em termos da imortalidade da
alma. Parece também que eles endossavam
as implicações que os pagãos tinham con-
cluído. O paganismo popular argumentava
que os sentidos que acompanhavam a alma
imortal eram dados pela natureza, mas não
poderiam ser desfrutados além do túmulo.
Assim, se eles tivessem dinheiro, a conclu-
são era: comamos e bebamos, que amanhã
morreremos (32). Sentia-se que o modo
como os cristãos viviam nesta vida não ti-
nha a mínima consequência, mas a certeza
da imortalidade era vista como a essência
do evangelho e isso era tudo o que importa-
va. Essa visão da vida cristã ainda persiste
e tem os seus proponentes tanto no púlpito
como nos bancos das igrejas. Paulo refuta
veementemente esse ponto de vista aber-
rante da continuidade do cristão separado
de um corpo, ao mostrar que a ressurreição
de Cristo estava no centro do evangelho e a
ressurreição do corpo dos cristãos era uma
consequência lógica, concluindo com as
implicações éticas disso. Ele então conti-
nua a explicar a natureza do corpo ressus-
citado para os cristãos (35-57).
1CORíNTIOS 15 li"
l1lil1li
15.1-11 O evangelho e a certeza
da ressurreição de Cristo
1 Paulo os faz lembrar do evangelho que
ele tinha anunciado e no qual eles tinham
crido, (cf v. 11). 2 Esse evangelho os
salvou, e a não ser que eles retivessem a
palavra tal qual Paulo a tinha pregado, a
sua crença era vã, ou seja, vazia. 3 Paulo
não tinha inventado essa palavra, mas ti-
nha sido aquele que transferira a eles o
que ele mesmo tinha recebido (cf 4.1). O
aspecto mais importante em tudo isso era
a morte de Cristo por nossos pecados que
era verdadeira porque o AT tinha discutido
a obra do Messias (Is 53). 4 O sepultamen-
to e a ressurreição do Messias no terceiro
dia também foram temas do AT (SI 16.8-11
citado por Pedro no dia de Pentecostes,
Atos 2.24-28).5-8 Essa passagem do AT foi
comprovada naturalmente pela ressurrei-
ção de Cristo, algo que um grande número
de pessoas ainda vivas na época poderia
confirmar. Primeiramente Pedro, em se-
guida os 12 apóstolos, quinhentos cristãos
a quem ele apareceu em dado momento,
Tiago, o irmão do Senhor e, em seguida,
todos os apóstolos, e finalmente Paulo, a
quem apareceu na estrada para Damasco,
todos o encontraram (At 9.3-5). 10 A in-
tervenção da graça de Deus tinha feito de
Paulo um apóstolo e ele alegava ter traba-
lhado com mais afinco do que qualquer
outro apóstolo, ou melhor, que a graça de
Deus permitira que assim fosse. 11 Isso,
entretanto, era irrelevante, pois esse evan-
gelho que Paulo acabou de descrever era o
que pregamos (nós, os apóstolos) e nele os
coríntios creram.
15.12-34 A ressurreição de Cristo
e a nossa ressurreição
15.12-19 Se Cristo não ressuscitou. Com
o uso de seis "ses", Paulo explora as con-
sequências da crença de alguns dos cris-
tãos de Corinto que defendiam não haver
a ressurreição dos mortos. 12 Ele come-
ça voltando-se ao fato da ressurreição de
Cristo. Como poderiam alguns afirmar
1CORíNTIOS 15 1780
que não havia a ressurreição dos mortos?
13 Se, como os fundadores do Areópago
de Atenas acreditavam, a ressurreição do
corpo era em si impossível, então, a res-
surreição de Cristo era impossível. 14 Se
Cristo não foi ressuscitado, o evangelho
é inútil e sua confiança inapropriada. 15
Além disso, o testemunho dos apóstolos de
que Deus ressuscitou a Cristo é fraudulen-
to. Mas Deus não poderia fazer algo que
na verdade não aconteceu, ou seja, a res-
surreição dos mortos. 16 Se não há ressur-
reição, Jesus não havia ressuscitado. 17 Se
Cristo não ressuscitou, a fé deles era vã e
seus pecados não poderiam ser perdoados
(cf v. 3). 18 Além disso, os cristãos que já
tinham morrido e que haviam sido persua-
didos a abandonar suas antigas convicções
religiosas estavam perdidos, pois Paulo
acreditava realmente que os que morriam
sem Cristo estavam perdidos. 19 Se a fé
cristã é mais uma panaceia desta vida, en-
tão, em face do custo de ser cristão numa
sociedade pluralista como a de Corinto, os
cristãos eram as pessoas mais patéticas da
face da terra. Paulo trouxe esse ponto de
vista falso à sua conclusão lógica. Eles de-
veriam abandonar sua crença se não havia
a ressurreição do corpo.
15.20-28 Se Cristo ressuscitou. Paulo
agora explica as consequências da ressur-
reição de Cristo. 20 Ele afirma que a res-
surreição de Cristo é verdadeira, e também
que ela é a garantia da ressurreição dos
que morreram (v. também 11.30, em que
a morte agora era vista como um sono, e
não como o mal monstruoso que signifi-
cava para o mundo pagão). As primícias
de qualquer colheita indicam que há mais
da colheita por vir. 21 O homem fora o
responsável pela morte (Gn 2.17), e a res-
surreição dos mortos também veio através
de um homem. 23 O processo segue uma
ordem. Cristo é o primeiro, e então com
sua vinda seguem os cristãos. 24 Depois
vem o fim, o último evento nesta histó-
ria cósmica, quando Cristo entregará nas
mãos do Pai o Reino, tendo subjugado
todo o mal. 25 Ele reinará com o sobera-
no Senhor do céu e da terra até que todos
os inimigos estejam debaixo dos seus pés.
27 Paulo continua sua explicação, citan-
do um salmo messiânico, Salmos 8.6, que
aponta para a sujeição de tudo. Sua exposi-
ção da passagem enfatiza o significado de
todas as coisas. Isso naturalmente não in-
clui o próprio Deus que coloca tudo sob os
pés de Cristo. 28 Quando todas as coisas
estiverem sujeitas a ele, o próprio Cristo
dobrará os seus joelhos a Deus Pai para
que Deus possa ser tudo em todos. Em uma
passagem tão curta Paulo delineou a perda
e a recuperação do paraíso, bem como a
recuperação da submissão de todas as coi-
sas a Deus, como no início da criação. E é
a ressurreição de Cristo que garante isso.
15.29-34 Ressurreição, batismo cristão e
ministério. Paulo elabora mais argumen-
tos contra os que negam a ressurreição do
corpo e as consequências presentes para
a atividade cristã. Ele conclui com uma
repreensão dura contra os que estão espa-
lhando a sua crença equivocada. Se não há
ressurreição do corpo, Paulo considera que
tanto o batismo como os ministérios deles
são inúteis. 29 Esse é um versículo dificil.
Alguns o entendem como algo que apoia
a ideia de que os coríntios cristãos se sub-
metiam ao batismo em nome dos que ti-
nham morrido, presumivelmente membros
já falecidos de suas famílias. Eles também
argumentam que, embora Paulo não tolere
esse batismo, ele simplesmente cita o que
eles fizeram como um argumento contra a
sua crença. Mas Paulo não era um prag-
mático. Isso não tem a menor sintonia com
a ideia de Paulo como pastor e com o seu
comentário crítico incisivo sobre a conduta
deles por toda essa carta. Seria uma prática
conflitante com o seu evangelho.
Paulo ensina em Romanos 6.3-5 que
os cristãos são sepultados com Cristo no
batismo e ressuscitados para caminhar
em novidade de vida, e que estão unidos
a ele na sua morte e ressurreição. Essa
experiência espiritual para a qual a água
 1781
do batismo aponta não é simplesmente
uma referência à "alma", mas à pessoa
como um todo, incluindo o seu corpo. Os
antigos pais gregos concluíram que nes-
se versículo Paulo está perguntando qual
seria a razão de alguém se submeter ao
batismo que se fazia por causa dos corpos
- a expressão por causa dos mortos, li-
teralmente, "por causa dos [corpos] mor-
tos" é repetida duas vezes - se eles iriam
simplesmente desaparecer.
30 O segundo argumento de Paulo é
com relação ao seu próprio ministério.
Suas próprias atividades o colocavam em
perigo constante (cf 2Co 11.23-28).31 Ele
se via morrendo dia após dia. Pelo que ele
está morrendo? Os pagãos alegavam que os
desejos deveriam ser satisfeitos nesta vida.
Eles também acusavam os que discorda-
vam deles, alegando que estavam negando
a si mesmos a autorrealização e os prazeres
da vida. Paulo parece estar argumentando
que, à luz dessa opinião, ele consciente-
mente se negava a si mesmo. 32 Ele fala
em ter se empenhado no ministério a ponto
de enfrentar asferas em Éfeso - uma pos-
sível alusão ao culto imperial da província
de veneração de imperadores com o qual
Paulo, como cidadão romano, parece ter
se envolvido de alguma maneira. O culto
era sempre acompanhado de apresenta-
ções com feras selvagens. Em 2Coríntios
1.8-11 ele se refere às dificuldades que ex-
perimentou em Éfeso. Sobre a premissa
dos coríntios, Paulo sugere que ele estava
perdendo o seu tempo. Ele deveria viver
como os pagãos que argumentavam que se
deveria comer, beber e se divertir no cor-
po, porque esses prazeres chegariam ao
fim com a morte. Ele cita Isaías 22.13.
33 Ele ordena a eles que não se des-
viem e cita um dito popular extraído de
Thais, de Meander: "As más companhias
corrompem os bons costumes" (NvI). Qual
seria a relação disso com a negação da
ressurreição do corpo? Os que pregavam
a imortalidade da alma e do corolário da
satisfação dos sentidos diziam que o seu
1CORíNTIOS 15
estilo de vida hedonista era o testemunho
do seu sucesso. Essa era a ética dos ricos.
Eles se orgulhavam da sua vida licencio-
sa. Paulo está aparentemente preocupado
com o efeito que essas más companhias
podem ter sobre o caráter dos cristãos.
34 Quando Paulo ordena que alguns dos
coríntios ponham a mão na consciência e
parem de pecar, parece que ele tem esse
estilo de vida autoindulgente em mente.
Isso era endossado pelos cristãos com
base no argumento de que não havia a
ressurreição do corpo. Esse estilo de vida
centrado no prazer significava que eles
não se preocupavam em tomar Deus co-
nhecido para outras pessoas, o que Paulo
vê como uma obrigação de todos os cris-
tãos (cf 10.32-11.1). Paulo acreditava
que tudo seria levado perante o tribunal de
Cristo e receberia a sua recompensa, se-
gundo o bem ou mal praticado por meio
do corpo (2Co 5.10 cf Ap 14.13). Sendo
esse o caso, ele condenou a má conduta
ética de alguns em Corinto que negavam a
ressurreição do seu corpo para justificar o
que eles faziam. Um deslize de um cristão
em sua conduta ética resulta na negação
da ressurreição de seu corpo e na respon-
sabilidade por aquilo que tem praticado.
15.35-44 Analogias de
sementes e corpos
35 Paulo responde tratando os que fizeram
essas perguntas (e.g., Como ressuscitam os
mortos?) como "insensatos". Sob reflexão
as respostas são muito óbvias, como mos-
tram as suas analogias. O trigo existe em
duas formas, e a segunda não nasce se a se-
mente primeiramente não morrer no solo.
Foi Deus que determinou a forma futura
de cada espécie de semente, ou seja, foi ele
que lhe deu um "corpo" característico. Deus
criou também os animais com diferentes ti-
pos de carne. O mesmo é verdade também
para os corpos celestiais e terrestres. A gló-
ria desses corpos é que difere. Os corpos
terrestres são a prova disso. A ressurrei-
ção dos mortos não é diferente. É como a
1CORíNTIOS 15
semente, semeada na morte e ressuscitada
como imortal. Ela passa por uma transfor-
mação gloriosa. Semeada em desonra e em
fraqueza, ressuscitará em glória e poder.
44 Paulo conclui que, se há um corpo natu-
ral, há também um corpo espiritual.
15.45-49 Analogia de Adão e Cristo
45 O primeiro homem foi feito alma viven-
te, de acordo com Gênesis 2.7, e o último
Adão, Cristo, um espírito vivificante (cf v.
22,23). 48 A descendência de Adão com-
partilha de sua natureza, enquanto os que
são do céu compartilham da natureza de
Cristo. 49 Assim como os cristãos com-
partilham da semelhança de Adão, assim
eles devem compartilhar da semelhança de
Cristo. Para o cristão, há a garantia de uma
continuidade da existência com a ressur-
reição do seu corpo e sua transformação à
semelhança de Cristo (cf Fp 3.21).
15.50-57 A garantia da vitória
50 A transformação é uma necessidade,
pois a carne e o sangue, isto é, o corpo ter-
restre, não podem herdar o reino de Deus,
nem a corrupção herdar a incorrupção. 51
Paulo lhes conta um segredo, um mistério,
ou seja, algo que não tinha sido revelado
anteriormente na história humana mas foi
revelado aos servos de Deus (cf ICo 4.1).
Nem todo o povo de Deus dormirá o sono
da morte, ou seja, morrerá, mas é certeza
absoluta de que todos serão transforma-
dos. 52 A vinda de Cristo ocorrerá em um
instante, o fim sendo anunciado pelo toque
da trombeta (cf Zc 9.14). Então os mortos
ressuscitarão e o povo de Deus será trans-
formado. 54 Quando isso acontecer, o que
o profeta profetizou irá se cumprir - a
morte será tragada pela vitória (Is 25.8).
55 Novamente Paulo pode citar a profecia
do AT de Oseias 13.14, que é precedida pela
promessa de que o Senhor irá resgatar o
seu povo da sepultura. Das duas perguntas
do v. 55, a segunda é respondida no v. 56
e a primeira no v. 57. 56 O pecado foi a
causa da morte (Gn 2.17). Através da lei
1782
vem a realização do poder esmagador do
pecado (cf Rm 7.7-14, em que Paulo ex-
plica em detalhes a afirmação breve que
ele faz aqui). 57 Cristo invadiu o domínio
da morte e roubou o seu aguilhão. Essa é a
grande vitória pela qual devemos agrade-
cer a Deus.
15.58 Instruções finais
A consequência de toda essa discussão é a
ordem para que permaneçam firmes e não
se afastem dessa rocha que é a ressurreição
do corpo do povo de Deus. O que eles não
devem fazer agora neste corpo que deve
ressuscitar é deixar se conduzir pelo peca-
do (33,34a). Antes, eles devem ser sempre
abundantes na obra do Senhor, que em
parte significa ajudar os que não têm o co-
nhecimento de Deus (34b). Esse é o cha-
mado de toda a vida para o cristão comum.
Esse trabalho não será em vão e significará
que eles receberão no dia do julgamento no
tribunal de Cristo a recompensa do Senhor
pelo bem praticado no corpo (2Co 5.10).
Os que morrem no Senhor são chamados
abençoados, pois eles descansam do seu
trabalho no Senhor, e as suas boas obras os
seguem (Ap 14.13). No cristianismo con-
temporâneo, há um risco de revestir o ter-
mo "vida eterna" com a noção greco-pagã
da imortalidade da alma, e de considerar
o presente momento da vida cristã como
algo que proporciona oportunidades para
promoção pessoal e engrandecimento.
16.1-24 Outros assuntos
16. 1-4 Organizando a coleta
Esse é o quinto assunto sobre o qual os
coríntios escreveram (7.1,25; 8.1; 12.1).
Paulo atribuiu grande importância ao di-
nheiro a ser recolhido para os cristãos ne-
cessitados em Jerusalém. Isso não tinha
apenas uma motivação filantrópica, mas
representava um gesto singular de solida-
riedade dos gentios para com os judeus.
Normalmente eram os judeus da dispersão
que enviavam doações para os concida-
 1783
dãos judeus em Jerusalém; mas o empenho
das igrejas gentílicas em coletar dinheiro
para os judeus cristãos revelava a nature-
za do evangelho, que conseguia quebrar
de modo decisivo as barreiras raciais. 2 A
doação precisava ser sistemática, em que
cada pessoa separava no primeiro dia da
semana um montante apropriado de seu
rendimento, literalmente "conforme a sua
prosperidade" dada pelo Senhor. A doa-
ção sistemática foi preferida, pois Paulo
não queria fazer a coleta quando ele che-
gasse. 3 Paulo então enviaria a coleta para
Jerusalém pelas mãos de pessoas escolhi-
das pelos coríntios, e escreveria cartas de
apresentação para elas. Exigia-se respon-
sabilidade. Abusos em relação às doa-
ções confiadas eram tão comuns entre os
judeus que uma escolta foi providenciada
pelas autoridades romanas para a proteção
dos fundos a serem enviados a Jerusalém.
4 Paulo viajará com os que levarem as car-
tas e o dinheiro, se ele acreditar que isso
é conveniente. Ele não fala como se ele
os estivesse acompanhando, mas como se
eles o acompanhassem. Ele claramente
se vê como o apóstolo dos gentios que
ia para a igreja de Jerusalém com as do-
ações dos cristãos gentios. A doação foi
finalmente recolhida (Rm 15.26), embora,
como mostra 2Coríntios 8-9, os coríntios
parecem não ter seguido seus ensinamen-
tos sobre a doação sistemática nos v. 1-4.
Quanto tempo e energia poderiam ser pou-
pados na obra cristã se o povo de Deus sim-
plesmente exercesse a disciplina de levar
em conta regularmente a bondade de Deus
e colocasse de lado recursos para a partilha
cristã. Observe também o cuidado com que
Paulo lida com o dinheiro a fim de evitar
eventuais acusações de impropriedade, e a
forma como encoraja os cristãos para que
façam o mesmo.
16.5-9 Os preparativos para
a viagem de Paulo
5 Aqui ele explica o que tinha em mente
quando disse que esperava visitá-los em
1CORíNTIOS 16
breve (4.19). 6 Ele esperava passar o in-
verno com eles na expectativa de que eles
o ajudassem em sua jornada, isto é, pro-
porcionando-lhes a oportunidade de fazer
parte do seu futuro ministério. Em todas
as passagens que Paulo fala do apoio dado
livremente pela igreja ele se refere a esse
apoio como uma parceria com ele no evan-
gelho (Fp 1.5; 4.15). Ele deseja visitar
Roma e também levar a coleta a Jerusalém
- daí o elemento de incerteza. 7 O fato
de que Paulo não retomou imediatamen-
te a Corinto levou alguns dos coríntios
a se tomar arrogantes (4.18). Isso reflete a
forma de pensar mundana deles, enquan-
to ele, de sua parte, ao pensar sobre as
opções, sempre o faz coagido claramen-
te por um fato: se o Senhor o permitir.
8,9 Ele está atualmente em Éfeso e per-
manecerá ali até o Pentecostes, a festa
judaica celebrada cerca de cinquenta dias
depois da Páscoa. A razão de sua perma-
nência ali são as grandes oportunidades
evangelísticas que são acompanhadas de
muita oposição (cf 15.32 e 2Co 1.8,11).
Ele não era um evangelista do tipo que
não corria riscos.
16. 10,11 A visita proposta
de Timóteo
10 Paulo também está preocupado se o
seu companheiro fiel na obra (Fp 2.19-23),
Timóteo, seria bem recebido. Dada a hosti-
lidade que alguns na congregação nutriam
contra Paulo, ele está preocupado que eles
recorram a formas mundanas de expres-
sar inimizade, vingando-se do apóstolo ao
maltratar o seu amigo. 11 Paulo apela por
um tratamento adequado. Encaminhai-o
em paz, para que venha ter comigo pode
ser uma referência ao costume judaico do
Shalom, que envolvia uma bênção espiri-
tual, bem como a provisão das necessida-
des do viajante.
16.12-14 O retorno de Apolo
Este é o último assunto sobre o qual os co-
ríntios escreveram. Eles tinham solicitado
1CORfNTIOS 16
o retomo de Apolo. Fica evidente a partir
de 1.12; 3.4; 4.6 que, ao pressionar por
esse retomo, os motivos de alguns eram
claramente suspeitos - era a alternati-
va ao retomo de Paulo para uma estadia
prolongada. Apesar de tudo isso, Paulo
insiste que Apolo retome a Corinto para
ministrar. A resposta de Apolo é refletida
na frase: mas de modo algum era vontade
dele ir agora. Ele irá quando se lhe depa-
rar boa oportunidade, literalmente, "no
tempo certo". Isso sugere que Apolo jul-
gou que aceitar o convite nesse momento
não seria do interesse da congregação,
dadas as tensões entre Paulo e a igreja. É
interessante que Apolo ficou contente por
Paulo responder em seu nome. É evidente
aqui que não há um espírito competitivo
entre Paulo e Apolo e nem este ficaria li-
sonjeado pelo pedido da igreja para que
ele retomasse, dadas as suas motivações.
Paulo registraria, mais tarde, a atitude
dos obreiros cristãos em Corinto que su-
cumbiram ao espírito competitivo secular
(2Co 10.12).
13,14 Embora pareça que esses versí-
culos não estão relacionados com a questão
de Apolo, faria sentido enxergar aqui as or-
dens dadas diante das atitudes equivocadas
dos coríntios em relação ao ministério do
evangelho. Paulo apela para que eles sejam
vigilantes. Está evidente que eles sucumbi-
ram às maneiras seculares de pensar sobre
Apolo e Paulo (cf 3.3,4). Permanecer fir-
mes na fé do Cristo crucificado era neces-
sário tanto aos coríntios quanto aos men-
sageiros do evangelho (cf 1.17b-2.5).
O chamado para serem pessoas de cora-
gem e para serem fortes envolve resistir à
pressão de moldar o ministério de acordo
com as categorias seculares de discursos
polidos e inteligentes (cf o próprio exem-
plo de Paulo, 4.8-16). O apelo para fazer
tudo em amor pode muito bem ser uma
reprovação às suas divisões e ao ciúme de
antigos mestres, bem como à motivação
por trás do convite pelo retomo de Apolo
(cf 1.10; 3.3; 4.6).
1784
16.15-18 O bom exemplo
da casa de Estéfanas
Famílias grandes eram uma instituição
social nos dias de Paulo. Elas tinham uma
capacidade enorme de promover o minis-
tério cristão. 15 Como já mencionado em
1.16, os membros da casa de Estéfanas fo-
ram as primícias do ministério de Paulo e
claramente utilizavam seus recursos para
o povo de Deus, isto é, os santos (cf 1.2).
Se, como foi sugerido, os coríntios en-
frentavam escassez de grãos (v. discussão
no cp. 7 e o significado de 7.26), então
havia uma família que ministrava dia a
dia àqueles que nada tinham (cf 11.22).
Seu ministério incluiria a hospedagem de
viajantes cristãos.
16 Paulo apela aos coríntios e a to-
dos os que trabalham na obra cristã para
que sejam submissos. O significado do
apelo para - que também vos sujeiteis
- é incerto, a menos que eles fossem os
presbíteros que dirigiam as suas próprias
casas e tivessem o histórico de utilizar
seus recursos em benefício dos outros.
17 Certamente, o ministério de socorro
aos necessitados é a chave, pois Paulo o
experimentou em Éfeso, tanto nas mãos
de Estéfanas como nas de Fortunato e
Acaico. A chegada deles alegrou o co-
ração de Paulo, e eles foram capazes de
preencher o vazio que Paulo sentia em
sua vida, separado como estava da igre-
ja de Corinto. 18 Ele explica que eles
renovaram o seu espírito, e eles fize-
ram o mesmo também para os coríntios.
Um ministério desse calibre deve ser
estimado: Reconhecei, pois, a homens
como estes.
Os servos de Deus não podem ser dife-
rentes do próprio Deus que envia tempos
de refrigério para os corações e mentes de
seu povo. A igreja contemporânea necessi-
ta de pessoas que atendam às necessidades
do povo com as bênçãos que receberam
para esse propósito. Não se pede que a
congregação autorize tal ministério mas
que reconheça a sua existência.
 1785
16. 19-22 Saudações finais
19 Paulo termina com saudações das igre-
jas na província da Ásia, da qual Éfeso
é a capital - isso implica que o seu mi-
nistério foi estendido para além daquela
cidade. Antigos membros da congregação
em Corinto (At 18.2,3), Áquila e Priscila,
bem como toda a igreja que se reúne em
sua casa, enviam as suas saudações mais
calorosas, literalmente "muitas". 20 Todos
os irmãos pode se referir a um grupo es-
pecífico, possivelmente seus colaborado-
res a quem ele sustentou financeiramente
com o seu trabalho (At 20.34). Do mesmo
modo que a igreja na Ásia enviou seus
cumprimentos, ele clama aos coríntios que
saúdem uns aos outros como membros da
irmandade santa. 21 Até esse ponto a carta
foi escrita por um secretário - na época de
Paulo, o emprego da escrita abreviada, bem
como de secretários, era bastante comum.
Agora Paulo pega na mão a pena e envia as
suas próprias saudações. 22 Naturalmente
tais saudações não eram enviadas à pessoa
que não amasse o Senhor; não pode ha-
1CORíNTIOS 16
ver desculpas para não reagir com amor
ao incrível amor de Cristo. O oposto de
uma saudação ou bênção era uma maldi-
ção ou anátema. Em outras passagens ele
invoca uma maldição sobre aqueles que
pregam outro evangelho (Gl 1.8,9), e não
pode ser diferente no caso das pessoas que
não amam o Senhor de quem esse evan-
gelho testemunha. O clamor em aramai-
co Maranata! ("Vem, nosso Senhor!",
NTLH) é uma oração pela volta de Cristo
(cf 15.51-54). 23 A carta começou com
as ações de graças (1-3) e termina apro-
priadamente com ela, como na verdade
acontece com todos os encontros entre o
Senhor Jesus e o seu povo. Paulo acres-
centa a declaração do seu amor em Cristo
Jesus pela congregação - novamente um
testemunho notável da graça de Deus de
que, a despeito das atitudes da congrega-
ção para com ele, o amor de Paulo, assim
como o de Cristo, não havia mudado, pois
ele os vê em Cristo Jesus.
Bruce Winter
 2CORíNTIOS
INTRODUÇÃO
o relacionamento de Paulo
com os coríntios
Para entender 2Coríntios é necessário saber
alguma coisa sobre todo o curso de aconte-
cimentos no relacionamento entre Paulo e
seus convertidos em Corinto. O que ocorreu
antes da composição de ICoríntios é des-
crito na Introdução do comentário daquela
carta. O que se segue é uma reconstituição
da sequência de acontecimentos da época da
composição de ICoríntios em diante. (Essa
reconstituição pressupõe certas decisões a
respeito dos problemas literários e históri-
cos envolvidos. Os leitores que estiverem
interessados nesses problemas devem ler a
Introdução a 2Coríntios no TNTC.)
A composição de 1Coríntios
Paulo escreveu ICoríntios para esclarecer
uma carta anterior que ele havia escrito
(lCo 5.9-11) como reação às notícias que
ele havia recebido de alguns da casa de
Cloe sobre Corinto (lCo 1.10-12), para
responder algumas questões sobre seu en-
sino contidas na carta que os coríntios lhe
haviam enviado (I Co 7.1), e para enfrentar
algumas críticas que surgiram a respeito de
sua própria pessoa e ministério (l Co 4.1-
18). Ele também aproveitou a oportunida-
de para dar instruções a respeito da "coleta
para os santos" (l Co 16.1-4), para preparar
o caminho da visita de Timóteo a Corinto
(l Co 4.17; 16.10,11) e para dizer aos co-
ríntios que ele mesmo planejava visitá-los
no seu caminho a Jerusalém, depois de
passar pela Macedônia (l Co 16.5-9).
A visita de Timóteo a Corinto
Sabemos muito pouco da visita de Timóteo
a Corinto. Entretanto, na época que Paulo
começou a escrever 2Coríntios, Timóteo já
havia retomado (1.1), e o relacionamento
entre Paulo e os coríntios tinha passado por
um período muito dificil.
A visita dolorosa de Paulo
Quando Timóteo voltou a Éfeso ele apa-
rentemente trouxe notícias muito perturba-
doras a respeito de Corinto. Isso fez com
que Paulo alterasse os planos de viagem
que ele havia detalhado em ICoríntios
16.5-9. Em vez de passar pela Macedônia
e por Corinto em seu caminho a Jerusalém,
ele navegou direto de Éfeso para Corinto.
A sua intenção era, depois de visitar a
igreja ali, viajar ao norte da Macedônia
e então retomar novamente a Corinto no
seu caminho a Jerusalém. Ao fazê-lo, ele
esperava que os coríntios tivessem "um
segundo beneficio" (1.15,16). Entretanto,
quando Paulo chegou a Corinto, descobriu
que ele mesmo era objeto de um ataque
pernicioso (2.5; 7.12) feito por determina-
do indivíduo, e nenhuma tentativa foi feita
pela congregação como um todo em defesa
de Paulo (2.3). Esta provou ser uma visita
bastante dolorosa tanto para Paulo como
para os coríntios, e uma visita que o após-
tolo não gostaria de repetir. Assim, ele al-
terou novamente os seus planos de viagem,
e em vez de retomar a Corinto depois da
viagem pela Macedônia, foi diretamente a
Éfeso (1.23; 2.1).
A carta severa de Paulo
De volta a Éfeso, Paulo escreveu sua carta
denominada "severa" aos coríntios. Esta
carta se perdeu. Pelas referências feitas a
ela por Paulo nas correspondências subse-
quentes, parece que ele clamou à igreja de
 1787
Corinto que tomasse as medidas necessá-
rias contra a pessoa que o havia atacado
durante sua visita "dolorosa", e assim os
coríntios demonstrassem a sua inocência
na questão e dessem prova de sua afeição
pelo apóstolo (2.3,4; 7.8,12). Não sabemos
direito quem levou essa carta "severa" a
Corinto. Pode ter sido Tito. De todo modo,
era de Tito, que retomara de uma visita a
Corinto, que Paulo esperava notícias da
resposta dos corintios à sua carta. Paulo
estava bastante confiante em uma respos-
ta positiva. Ele expressou essa confiança a
Tito antes de este partir para Corinto (7.14-
16), e ele até mesmo pode ter pedido a Tito
que tratasse com os coríntios a questão da
coleta (8.6).
Paulo encontra Tito na Macedônia
Planos haviam sido feitos para o encontro de
Paulo com Tito em Trôade. Quando Paulo
chegou ali, ele encontrou portas bem abertas
para o evangelismo, mas por Tito não haver
ainda chegado e devido à sua ansiedade em
encontrá-lo, Paulo não pôde começar a sua
obra. Assim, ele deixou Trôade e cruzou
a Macedônia na esperança de interceptar
Tito em seu caminho a Trôade (2.12,13).
Quando Paulo alcançou a Macedônia, ele
se encontrou envolvido na amarga per-
seguição que as igrejas da Macedônia es-
tavam experimentando (7.5; 8.1,2), e isso
apenas aumentou sua ansiedade. Quando
Tito finalmente chegou, Paulo encontrou
grande consolo (7.6,7) quando ouviu so-
bre o zelo dos coríntios em demonstrar sua
afeição e lealdade a ele ao punir aquele que
lhe infligira tanto sofrimento.
Paulo escreve 2Coríntios 1-9
Paulo reagiu às boas notícias trazidas por
Tito escrevendo 2Coríntios 1-9. Ele lhes
dizia o quão satisfeito estava pela resposta
à sua carta "severa" e que a visita de Tito
tinha justificado o orgulho que sentia de-
les, especialmente porque tinha falado
muito bem deles a Tito antes de enviá-lo
a Corinto (7.4,14,16). Paulo também não
2CORíNTIOS
mediu esforços para explicar as alterações
no seu plano de viagens (1.15-2.1), nem
para esclarecer por que e com que espí-
rito ele escrevera a carta "severa" (2.3,4;
7.8-12). Embora Paulo estivesse satisfeito
porque os coríntios de forma tão vigorosa
tinham se corrigido e punido o transgres-
sor, mesmo assim ele os estimula agora a
perdoar e restaurar o transgressor de modo
que "Satanás não alcance vantagem sobre
nós" (2.11).
Além de manifestar o seu alívio e
alegria, Paulo lida com dois outros as-
suntos tratados com alguma profundida-
de. Primeiro, ele explica o seu ministério
apostólico, tanto na Ásia (Éfeso) como na
Macedônia (1.3-11; 2.12-7.4). Segundo,
ele dá instruções detalhadas e encoraja-
mento sobre a coleta para o povo de Deus
(cp. 8-9). Os coríntios começaram "no
ano passado" (8.10), quando escreve-
ram a Paulo, e ele tinha respondido dan-
do instruções básicas sobre esse assunto
(cf 1Co 16.1.4). Na verdade, Paulo fez
menção elogiosa aos macedônios sobre
a prontidão dos coríntios em contribuir
com a coleta, e agora ele teme que eles o
decepcionem (9.1-4).
Novas más notícias de Corinto
Depois de escrever 2Coríntios 1-9, Paulo
recebeu notícias desoladoras sobre uma
nova reviravolta dos acontecimentos em
Corinto. Homens aos quais Paulo se refere
como "falsos apóstolos" (11.13) estavam
fazendo todo o tipo de acusações contra
Paulo e seus mensageiros. Aparentemente,
a igreja de Corinto foi influenciada profun-
damente por esses homens, tendo aceitado
o seu evangelho (11.1-4) e se submetido às
suas exigências arrogantes (11.16-20). Isso
tudo causou uma crise profunda no relacio-
namento de Paulo com os coríntios.
Paulo escreve 2Coríntios 10-13
Não se tem muita certeza se Paulo rece-
beu informações sobre a nova crise em
Corinto antes ou depois de ele ter enviado
2CORíNTIOS 1788
2Coríntios 1-9. De todo modo, foi em
resposta a essa nova crise que Paulo escre-
veu 2Coríntios 10-13. A carta foi escrita
em resposta não só às acusações dos fal-
sos profetas, mas também para afastar as
suspeitas que eles suscitaram na mente dos
coríntios. A carta é uma última tentativa
desesperada do apóstolo de trazer a igreja
de volta à razão a fim de obter novamen-
te a sua devoção pura a Cristo, e recobrar,
mais uma vez, a lealdade deles ao seu pai
espiritual, Paulo. Nela, ele os adverte de
que está planejando uma terceira visita em
que pretende demonstrar a sua autoridade,
se for necessário, embora ele claramente
espere que a resposta dos coríntios ao que
ele está escrevendo torne desnecessária
(12.14; 13.1-4,10).
A terceira visita de Paulo
aos coríntios
De acordo com Atos 20.2,3, Paulo via-
jou à Grécia depois de uma temporada na
Macedônia e ali permaneceu por três me-
ses. Podemos presumir que foi nessa épo-
ca que ele fez a promessa de uma terceira
visita a Corinto. Aparentemente, ou como
resultado do que ele havia escrito nos cp.
10-13, ou devido à sua própria ida a
Corinto pela terceira vez, os problemas da
igreja de Corinto estariam resolvidos por
enquanto. Isso pode ser deduzido da carta
de Paulo aos Romanos que foi escrita em
Corinto durante esses três meses. Na car-
ta ele escreveu: "Mas agora estou de par-
tida para Jerusalém a serviço dos santos.
Porque aprouve à Macedônia e à Acaia le-
vantar uma coleta em beneficio dos pobres
dentre os santos que vivem em Jerusalém"
(15.25,26). Se os de Acaia (que eram corín-
tios em maioria) tinham contribuído a essa
altura para a coleta, obviamente sua má
conduta, refletida em 11.7-11 e 12.13-18,
tinha sido superada. E se Paulo permane-
ceu na Grécia por três meses em um esta-
do de espírito que permitiu que escrevesse
Romanos, então a situação de Corinto ti-
nha melhorado bastante.
Seria gratificante poder dizer que depois
de todas essas coisas a igreja de Corinto
se fortaleceu cada vez mais. Infelizmente,
não foi isso o que aconteceu. Evidências
encontradas na Primeira Epístola de
Clemente (escrita cerca de 95 d.Ci) indi-
cam que a desarmonia mais uma vez tinha
se tornado um problema.
Os opositores de Paulo
em Corinto
Na reconstituição da sequência dos acon-
tecimentos no relacionamento de Paulo
com a igreja de Corinto esboçada acima, a
oposição a Paulo em Corinto consistiu em
duas fases. Na primeira fase (refletida nos
cp. 1-7), a oposição procedia principal-
mente de um único transgressor; já na se-
gunda, (refletida nos cp. 10-13) procedia
de um grupo de pessoas ao qual Paulo se
referia como falsos apóstolos.
o transgressor dos cp. 1-7
Tradicionalmente, o transgressor indivi-
dual a quem Paulo se refere nos cp. 1-7
foi identificado como o que cometeu o in-
cesto citado em l Coríntios 5. No entanto,
esse ponto de vista tem sido abandonado
pela maior parte dos comentaristas do sécu-
lo xx por duas razões principais. Primeiro,
Paulo, que em I Coríntios 5 exigiu tão for-
temente a excomunhão da pessoa incestuo-
sa, dificilmente poderia ter voltado atrás e
pedido pela sua reintegração em 2Coríntios
2. Essa não é uma objeção muito atraente,
uma vez que subestima os efeitos do evan-
gelho do perdão na própria vida do apósto-
lo. Em segundo lugar, a ofensa a que Paulo
se refere em 2Coríntios não é o comporta-
mento imoral, mas um ataque pessoal a ele
e à sua autoridade apostólica. Essa é uma
objeção bem mais profunda. No entanto, o
transgressor pode ter acrescentado a seus
pecados anteriores de um comportamento
imoral uma transgressão adicional, ou seja,
um ataque pessoal ao apóstolo Paulo e a
rejeição de sua autoridade. O cenário, en-
tão, poderia ser o seguinte.
 1789
Os coríntios, quando receberam 1Co-
ríntios, não disciplinaram imediatamen-
te, como Paulo havia pedido, o homem
que cometera o incesto. Assim, quando
Timóteo chegou a Corinto, o homem ainda
não havia sido disciplinado e nem se arre-
pendera. Quando Paulo soube disso, alte-
rou o seu plano de viagem e se dirigiu dire-
tamente para Corinto, pretendendo tomar o
assunto em suas mãos. Uma vez na cidade,
ele passou a ser objeto de um feroz ataque
pessoal protagonizado pelo autor da trans-
gressão, que era agora culpado não só do
pecado de incesto, mas também de atacar
Paulo e de rejeitar sua autoridade apostóli-
ca. A Igreja não apoiou Paulo, por isso ele
foi forçado a voltar para Éfeso. De lá ele
enviou a sua carta "severa", uma vez mais
exigindo que os coríntios disciplinassem o
autor da infração. Isso finalmente foi feito,
e quando Paulo o soube através de Tito, ele
escreveu 2Coríntios 1-7, expressando a
sua alegria e alívio e pleiteando que o ho-
mem presumivelmente agora arrependido
fosse reintegrado à comunidade.
Os falsos apóstolos dos cp. 10-13
A segunda fase da oposição envolvia um
feroz ataque pessoal a Paulo por parte da-
queles a quem ele chamava de falsos após-
tolos. A natureza do ataque é refletida na
resposta corajosa de Paulo nos cp. 10-13.
A crise precipitada por esses falsos após-
tolos estava longe de ser resolvida quando
2Coríntios 10-13 foi escrito.
A crítica dos falsos apóstolos a Paulo.
Eles o acusavam de ser "corajoso" quando
ausente e ao mesmo tempo a uma distância
segura, mas de ser "tímido" quando presen-
te (10.1). Agia segundo um "mundano pro-
ceder" (10.2). Enquanto suas cartas eram
"graves e fortes", em pessoa ele era "fraco"
e seu discurso desprezível (10.9,10). Eles
criticavam a alegação que Paulo fazia de
ser apóstolo, dizendo que ele era inferior
a eles mesmos, pois ele não era um orador
treinado (11.5,6). Eles também atacaram
a integridade pessoal de Paulo em relação
2CORíNTIOS
a questões financeiras, insinuando que a
sua recusa em aceitar o suporte financeiro
dos coríntios (como eles próprios faziam,
obviamente) era tanto uma evidência de
que Paulo realmente não amava os seus
convertidos (11.7-11) quanto uma cortina
de fumaça por trás da qual ele pretendia
extrair para si uma quantia bem maior por
meio do golpe da coleta (12.14-18).
A identidade dos falsos apóstolos. A
partir das diversas sugestões fornecidas
nos cp. 10-13 deduz-se que os adversá-
rios de Paulo eram judeus cristãos que tan-
to se orgulhavam da sua ascendência ju-
daica como de serem servos de Cristo. Se
a demanda por cartas de recomendação às
quais Paulo respondeu em 3.1-3 procedia
originariamente desses homens, parece ra-
zoável concluir que eles mesmos portavam
tais cartas de recomendação, muito prova-
velmente vindas de Jerusalém. Nesse caso,
eles provavelmente mantinham alguma
afinidade com o partido de Cefas que já ti-
nha se formado em Corinto e que possivel-
mente estava afinada com a forma judaica
de cristianismo associada a Pedro.
Paulo os acusa de pregar um outro Jesus
e um outro evangelho (11.4), uma acusa-
ção semelhante à que fez contra os homens
que criaram problemas na igreja da Galácia
(cf Gl 1.6-9). Estes eram judeus fiéis que
procuravam impor aos convertidos gentios
tanto as obrigações da lei como a circun-
cisão. Entretanto, não há indicações em
2Coríntios de que os oponentes de Paulo
em Corinto estivessem tentando impor
esse tipo de coisa. Havia outras diferenças
significativas entre os oponentes de Paulo
na Galácia e os falsos profetas de Corinto.
Estes davam grande importância ao dom da
oratória (11.5,6), que não era uma coisa es-
perada dos cristãos de Jerusalém (At 4.13)
nem presumivelmente dos que os repre-
sentavam. Além disso, os falsos apóstolos
de Corinto parecem ter dado grande ênfase
à importância de revelações e experiên-
cias visionárias (12.1), de demonstrações
de poder para provar que Cristo falava por
2CORíNTIOS 1790
eles (13.3) e das chamadas marcas de um
apóstolo (12.11-13). Segundo o que sabe-
mos, essas coisas também não são caracte-
rísticas da abordagem dos judaizantes. Por
todas essas razões, os falsos apóstolos pro-
vavelmente não podiam ser identificados
como judaizantes.
No mundo grego, dava-se grande im-
portância ao dom da oratória, e havia uma
grande fascinação pelos fazedores de mi-
lagres que tinham visões e revelações (cf
Cl 2.18) e realizavam milagres poderosos
(cf At 8.9-13). Os falsos apóstolos em
Corinto podem ter sido influenciados pelo
mundo grego, ou mesmo ter acomodado
sua abordagem aos coríntios que haviam
sido influenciados por ele. É evidente
com base em ICoríntios que os fiéis em
Corinto tanto se orgulhavam de tais coi-
sas quanto precisaram ser alertados por
Paulo para que não dessem importân-
cia exagerada a elas (ICo 1.5; 4.8-10;
13.1,2). Parece então que os adversários
de Paulo eram ou judeus fiéis que tinham
sido influenciados pelo mundo grego e ti-
nham incorporado em seu próprio enten-
dimento sobre o apostolado certas ideias
gregas, ou eram judeus fiéis da igreja de
Jerusalém que tinham aceitado as ideias
correntes entre os coríntios de modo a in-
fluenciá-los contra Paulo.
Diferenças teológicas entre Paulo e
os seus oponentes. Se reunirmos os frag-
mentos de informações que Paulo nos for-
nece sobre o ensino dos seus adversários,
duas grandes áreas de desacordo entre a
teologia deles e a de Paulo podem ser dis-
cernidas. A primeira diz respeito ao pró-
prio evangelho, e vimos que na visão de
Paulo a mensagem que eles pregavam era
um evangelho diferente, no qual um Jesus
diferente era apresentado e pelo qual um
Espírito diferente era recebido.
A segunda área de discórdia estava asso-
ciada aos critérios usados para que alguém
pudesse reivindicar o título de apóstolo de
Cristo. Tais critérios eram necessários por-
que o título de "apóstolo" era reivindicado
por outros que não os Doze na igreja pri-
mitiva. Os adversários de Paulo defendiam
o que pode ser chamado de um ponto de
vista triunfalista. Eles esperavam que um
apóstolo fosse alguém que causasse uma
boa impressão pessoal, tivesse uma pre-
sença controladora e uma boa oratória
(10.10) e fosse autoritário com os que lhe
eram sujeitos (11.20,21). Sua reivindica-
ção apostólica deveria se fundamentar em
visões e revelações de Deus (12.1) e seria
apoiada pela realização de sinais e maravi-
lhas (12.11-13). Ele agiria como um por-
ta-voz de Cristo, e seria conhecido como
tal devido às manifestações de poder em
seu ministério (13.3,4). E no aspecto mais
formal, o apóstolo de Cristo seria de ascen-
dência judaica distintiva (11.22) e portaria
cartas de recomendação (3.1) emitidas
muito provavelmente por lideranças judai-
cas da igreja de Jerusalém.
Para o bem da igreja de Corinto, Paulo
se sentiu obrigado a salientar que a seu
próprio ministério não faltavam recomen-
dações (3.2,3), conhecimento (11.6) ou
autoridade (13.10). Salientou também que
ele havia experimentado visões e revela-
ções de Deus (12.1.5), que ele realizara
sinais e maravilhas (12.11-13) e que ele
poderia mostrar evidências de que Cristo
falava por meio dele (13.3,4). No entan-
to, é claro que Paulo rejeitava toda essa
abordagem para avaliar as reivindicações
do apostolado e os critérios triunfalistas
incluídos nisso. Para Paulo as marcas do
ministério apostólico verdadeiro eram os
seus frutos (3.2,3), a maneira com que o
ministério era conduzido (isto é, de acordo
com a mansidão e benignidade de Cristo;
10.1) e o compartilhar dos sofrimentos de
Cristo (4.8-12; 11.23-28). Aquele que pre-
ga o evangelho de Cristo crucificado como
Senhor exemplificará em seu ministério
a fraqueza em que Cristo foi crucificado,
bem como manifestará o poder do Cristo
ressuscitado (4.7-12; 12.9, I O; 13.3,4).
Temos aqui, então, duas maneiras bem
diferentes de avaliar o ministério autêntico.
A primeira é triunfalista e salienta ape-
1791

Leitura adicional
2CORíNTIOS li-
.
li

nas as manifestações de poder e autori- BARNETT, P. The Message of2Corinthians.

dade, sem lugar algum para a fraqueza
e o sofrimento. A segunda, ao mesmo
tempo em que afirma a importância do
poder e da autoridade, insiste em que es-
tes não pertencem ao próprio apóstolo,
mas dependem inteiramente da ativida-
de de Deus, que escolheu deixar o seu
poder repousar sobre os seus servos em
suas fraquezas e manifestar o seu po-
der por meio da loucura da pregação do
evangelho (12.9,10; cf lCo 1.17-2.5).
Ver também o artigo "Lendo as Cartas".
Bsr. Inter-Varsity Press, 1988.
KRUSE, C. G. 2Coríntios: introdução e co-
mentário. Vida Nova, 1994.
CARSON, D. A. From Triumphalism to
Maturity: an Exposition of2Corinthians
10--13. Inter-Varsity PresslUK/Baker
Book House, 1986.
HUGHES, P. E. Paul s Second Epistle to the
Corinthians. NICNT. Eerdmans, 1961.
MARTIN, R. P. 2Corinthians. WBC. Word,
1986.

ESBOÇO
1.1-11 O prefácio
1.1,2 Saudações
1.3-11 Ações de graças

1.12-7.15 A resposta de Paulo a uma crise resolvida

1.12-2.4 Paulo defende as repetidas alterações em seu plano
de viagem.
2.5-11 Perdão ao transgressor
2.12,13 A espera por Tito
2.14-17 Conduzido em triunfo
3.1-3 Cartas de recomendação
3.4-6 Ministros da nova aliança
3.7-18 O contraste entre dois ministérios
4.1-6 A condução do ministério de Paulo
4.7-12 Tesouros em vasos de barro
4.13-15 O espírito da fé
4.16-5.10 A esperança sublime de Paulo
5.11-7.4 O ministério da reconciliação
7.5-16 A alegria de Paulo depois da resolução da crise

8.1-9.15 A questão da coleta

8.1-6 O exemplo dos macedônios
8.7-15 Os coríntios exortados a se superar
8.16-24 Recomendações aos que receberão a oferta
9.1-5 Estejam preparados e evitem a humilhação
9.6-15 Um apelo para que sejam generosos

10.1-13.14 Paulo reage a uma nova crise

10.1-6 Uma súplica sincera
10.7-11 Paulo responde às críticas
2CORíNTIOS 1 1792

10.12-18 Vangloriando-se dentro dos limites adequados

11.1-6 A ingenuidade dos coríntios
11.7-15 Por que Paulo recusa o apoio financeiro
11.16-12.13 O discurso dos insensatos
12.14-18 Paulo nega a astúcia
12.19-21 O propósito do discurso insensato
13.1-10 Paulo ameaça com medidas riqorosas
13.11-13 Apelo final e saudações
13.14 A bênção

COMENTÁRIO venceu a morte em Cristo (cf Ef2.l3-18),

1.1-11 O prefácio
1.1,2 Saudações
1 Em sua saudação inicial à igreja na qual
sua autoridade apostólica tinha sido colo-
cada em questão, Paulo se descreve a si
mesmo como um apóstolo de Cristo. Para
Paulo só era apóstolo quem tinha visto o
Senhor ressuscitado (lCo 15.3-10; Gl1.15,
16), por este tinha sido incumbido do evan-
gelho (Gll.1l,12; 2.7) e em cujo ministério
do evangelho a graça de Deus era evidente
(Rm 1.5; 15.17-19; G12.8,9). Foi na estrada
de Damasco que Paulo recebeu de Cristo a
sua comissão como apóstolo, e esta comis-
são foi apoiada pela vontade de Deus. Os
receptores da saudação são descritos como
a igreja de Deus em Corinto, refletindo o
fato de que as igrejas não são apenas reu-
niões de indivíduos com o mesmo espírito
religioso, mas comunidades que pertencem
a Deus e desfrutam de um relacionamento
especial com ele. Entre os que recebem a
saudação estão todos os santos em toda a
Acaia. Aqui santos não exprime nenhuma
das ideias do século xx de canonização,
mas reflete, antes, o fato de que todos os fi-
éis são possessão especial de Deus. 2 Paulo
invoca graça e paz sobre todos eles. Com
graça de Deus ele quer dizer cuidado ou
amparo; cuidado mostrado no envio de seu
Filho ao mundo para a nossa salvação (cf
8.9; Rm 5.8) e em repetidos atos de amor,
socorro e provisão (cf Rm 8.32). A paz é
primariamente aquela paz pela qual Deus
cuja compreensão produz em nós a cons-
ciência de bem-estar.
1.3-11 Ações de graças
3 Seguindo o costume de sua época, Paulo
inclui uma oração de ações de graças de-
pois da sua saudação inicial. Um tanto in-
comum, essa expressão de ações de graças
não tem seu foco em algumas característi-
cas louváveis dos leitores, mas sim no Pai
de misericórdias e Deus de toda consolação
que tinha consolado Paulo em todas a sua
tribulação (incluindo sofrimentos físicos,
perigos, perseguição e ansiedade; cf 1.8-
10; 4.7-12; 11.23-29). O "conforto" que
Paulo recebia era, em algumas situações, o
livramento de suas aflições e ansiedades, e
em outros momentos o encorajamento em
meio a elas. 4-7 Aqui Paulo fala de conforto
como encorajamento e graça fortalecedora
em meio aos problemas. Ele diz que so-
mos confortados para podermos consolar
aos que estiverem em qualquer angústia,
com a consolação que nós mesmos somos
contemplados por Deus. Um ser humano
não pode dar livramento divino da aflição a
outro ser humano, mas é possível compar-
tilhar com o outro o encorajamento recebi-
do em meio aos seus próprios problemas.
(Quando Paulo se refere aos problemas
dos fiéis como aos sofrimentos de Cristo,
que também padecemos na nossa vida, ele
provavelmente se refere ao sofrimento su-
portado em nome de Cristo e experimenta-
do como parte do que os judeus chamavam
de dores de parto do Messias, ou seja, o
 1793
período da tribulação, cujo início era espe-
rado na era messiânica). Paulo encoraja os
seus leitores ao salientar que, embora seu
ministério possa ter passado por muitos
problemas, isso tomou possível que eles
compartilhassem do conforto de Deus.
8-11 Aqui Paulo se refere ao conforto como
o livramento de problemas. Durante o seu
ministério e o dos seus companheiros na
Ásia, ele lhes diz que as tribulações estive-
ram acima das suas forças, a ponto de de-
sesperarmos até da própria vida. Deus às
vezes permite que isso aconteça, de modo
que não confiemos em nós, mas nele. A
confiança em Deus, e não na própria capa-
cidade de alguém é de importância funda-
mental na vida cristã, embora essa atitude
não venha naturalmente. Frequentemente
é preciso sofrimento para que dependamos
de Deus. Paulo testifica que embora Deus
tenha se utilizado do sofrimento para ensi-
ná-lo, ao mesmo tempo Deus o livrara de
tão grande morte.
1.12-7.15 A resposta de Paulo
a uma crise resolvida
Depois da seção de saudação e ação de
graças, Paulo passa diretamente a res-
ponder as notícias trazidas a ele por Tito.
Antes de manifestar a sua alegria e alívio
pela notícia da exibição dos coríntios de
afeto e de lealdade para com ele, ele trata
de algumas críticas que poderiam ter per-
turbado suas relações.
1.12-2.4 Paulo defende
as repetidas alterações
em seu plano de viagem
12 Paulo começa a defender a sua integri-
dade em geral. Em todos os seus contatos
com os coríntios ele tinha agido em santi-
dade e sinceridade, não segundo a sabedo-
ria humana, mas de acordo com a graça de
Deus. O tipo de coisa que Paulo contras-
ta aqui é expressa de forma completa em
2.17: Porque nós não estamos como tantos
outros, mercadejando a palavra de Deus;
antes, em Cristo é que falamos na presen-
2CORíNTIOS 1
ça de Deus, com sinceridade e da parte do
próprio Deus. Sabedoria humana é a que
recorre à astúcia (cf 4.2) ou à habilidade
com as palavras (cf lCo 2.1) para impres-
sionar o ouvinte. Um ministério marcado
pela graça de Deus é aquele que depende
do poder de Deus (cf lCo 2.2-5) para a sua
eficácia. 13 A integridade geral de Paulo se
estende também ao seu ofício de escrever:
Porque nenhuma outra coisa vos escreve-
mos, além das que ledes e bem compreen-
deis. Ele não escreve uma coisa pretenden-
do dizer outra. 14 Ele conclui expressando
a esperança de que os coríntios venham a
reconhecer que ele e os seus companheiros
são pessoas íntegras, de quem eles podem
se orgulhar, "assim como nos orgulha-
remos de vocês no dia do Senhor Jesus"
(NVI). Paulo ansiava por se orgulhar nos úl-
timos dias do que Deus tinha feito na vida
dos seus convertidos, e esperava que, no
presente, eles pudessem se orgulhar do que
Deus estava fazendo nele.
15,16 Tendo defendido a sua integrida-
de em termos gerais, Paulo passa a justi-
ficar as alterações feitas em seu plano de
viagem. Foi com um sentimento de con-
fiança no orgulho que os coríntios tinham
dele que ele alterou os planos anunciados
em 1Coríntios 16.5-7. Ele tinha feito as
alterações para que eles tivessem um se-
gundo beneficio de sua visita em seu cami-
nho para a Macedônia. 17 A confiança nos
coríntios com que Paulo mudou os seus
planos foi evidentemente mal-interpreta-
da. Eles o criticaram por essas mudanças,
de forma que ele precisa perguntar: Ora,
determinado isto, terei, porventura, agido
com leviandade? Ou, ao deliberar, aca-
so delibero segundo a carne de sorte que
haja em mim, simultaneamente, o sim e o
não? Fazer planos de forma carnal implica
uma disposição para romper compromis-
sos com pouca ou nenhuma preocupação
pelas outras partes envolvidas, mudando
de "Sim" para "Não" sem problema de
consciência. A pergunta de Paulo foi feita
com o sentido de evocar nos seus leitores
2CORíNTIOS 1
a negação enfática de que o apóstolo agiria
dessa maneira.
18-20 Para defender a mudança no seu
plano de viagem, Paulo chama a atenção
dos seus leitores para a natureza da mensa-
gem que ele lhes pregou: Antes como Deus
é fiel, a nossa palavra para convosco não
é sim e não, acrescentando que não impor-
ta quantas são as promessas de Deus, elas
têm nele [Cristo] o sim. Não há nenhuma
quebra arbitrária de promessas por parte de
Deus. E, Paulo sugere, assim como Deus
é fiel no cumprimento das promessas do
evangelho, é possível confiar que Paulo
como pregador do evangelho não fará um
plano de viagem para depois alterá-lo sem
razão alguma. 21,22 A razão disso é: Mas
aquele que nos confirma convosco em
Cristo [...] é Deus. Uma vez que é Deus
que faz Paulo permanecer firme, os corín-
tios podem ter certeza de que Paulo agirá
com integridade. Paulo acrescenta: [Ele]
nos selou e nos deu o penhor do Espírito
em nosso coração. Essas expressões são
maneiras de mostrar como Deus confiou a
Paulo o seu Espírito, tanto como a "garan-
tia do que está por vir" (NVI) (a porção de
Paulo na glória futura de Deus) quanto nos
meios pelos quais Deus fortalece e firma
Paulo como uma pessoa de integridade no
presente. 23,24 Paulo passa a mostrar que
ele agiu com integridade, mesmo quando
ele não conseguiu fazer a visita de retomo
que ele tinha prometido. A razão dessa mu-
dança de plano foi poupar-vos. Para que
essa alusão a uma ação disciplinar não dê
margem a que eles entendam que Paulo
exerce algum tipo de tirania espiritual so-
bre os coríntios, ele se apressa em acres-
centar: não que tenhamos domínio sobre a
vossa fé, mas porque somos cooperadores
de vossa alegria. Em razão de sua fé, eles
têm a sua própria posição diante de Deus,
e sob esse aspecto não estão submissos a
ninguém. 2.1,2 A primeira das duas visi-
tas prometidas por Paulo revelou ser muito
dolorosa devido à forma em que ele foi ata-
cado. Se ele tivesse feito uma outra visita
1794
essa também teria sido muito dolorosa,
mas por um motivo diferente - ele teria
sido obrigado a tomar medidas disciplina-
res contra os coríntios, o que lhes causaria
muita dor, e não teria sobrado ninguém que
o fizesse feliz. 3,4 Assim, em vez de fazer
a segunda visita prometida, ele lhes escre-
veu uma carta "severa", para que quando
for, não tenha tristeza da parte daqueles
que deveriam alegrar-me. Ela foi escrita
no meio de muitos sofrimentos e angús-
tias de coração [...] com muitas lágrimas,
e devia conter algum tipo de reprovação
aos coríntios (cf 7.8,9). Entretanto o seu
propósito ao escrever a carta não era que
ficásseis entristecidos, mas para que co-
nhecêsseis o amor que vos consagro em
grande medida. É preciso amor verdadeiro
para enfrentar uma situação difícil - mes-
mo que isso inclua algumas dores - em
vez de evitá-Ia. Paulo evitou elogiar-se a si
mesmo, mas estava preparado para correr
o risco de ser acusado de fazê-lo a fim de
corrigir a situação. Se quisermos resolver
conflitos nós também precisamos estar
preparados para fazê-lo, embora evitando
a mera autojustificação. As grandes ques-
tões envolvidas nos conflitos entre o povo
de Deus são bem mais importantes do que
a nossa própria reputação. A não ser que
esses conflitos sejam resolvidos de forma
adequada, somente Satanás obterá vanta-
gem (cf 2.11).
Nota. A palavra "consciência" é en-
contrada com frequência muito maior nas
cartas de Paulo do que no restante dos li-
vros do NT juntos. Ao contrário dos estói-
cos, Paulo não considerava a consciência
como a voz de Deus interior, nem restrin-
gia sua função a julgar atos passados (nor-
malmente os maus), como era o caso no
mundo grego secular de sua época. Para
Paulo a consciência era uma faculdade
humana por meio da qual uma pessoa jul-
ga os seus próprios atos (não importa se
já realizados ou apenas pretendidos) e os
dos outros. Ela julga as ações humanas à
luz do padrão mais elevado percebido por
 1795
uma pessoa. Visto que toda a natureza hu-
mana foi afetada pelo pecado, tanto a per-
cepção de uma pessoa do padrão de ação
requerido quanto a função da própria cons-
ciência (como parte da natureza humana)
são ambas afetadas pelo pecado. Por essa
razão, a consciência não poderá ser jamais
o único e último juiz do comportamento
de alguém. É possível que a consciência
desculpe alguém por aquilo que Deus não
desculparia, e inversamente é igualmente
possível que a consciência possa conde-
nar uma pessoa por aquilo que Deus não
condenaria. O julgamento final, portanto,
pertence somente a Deus (cf lCo 4.2-5).
Não obstante, rejeitar a voz da consciência
é flertar com o desastre espiritual (cf 1Co
8; ITm 1.19), mas nós podemos modificar
esse padrão elevado ao qual ela se relacio-
na ao procurarmos alcançar uma compre-
ensão melhor da verdade.
2.5-11 Perdão ao transgressor
5 Antes de apelar aos coríntios para que
perdoem e restaurem a pessoa que havia
feito oposição a ele, Paulo os faz lembrar
que a transgressão não tinha apenas afligi-
do a ele, mas a toda a igreja em Corinto.
6 Contudo, basta-lhe a punição infligida
pela maioria. Aqui podemos observar que
a igreja finalmente acatou as instruções
de Paulo e disciplinou o transgressor (cf
7.11.12). 7,8 O próprio Paulo estava pre-
ocupado com o transgressor para que pela
disciplina aplicada não fosse o mesmo
consumido por excessiva tristeza. Assim,
ele roga aos coríntios que reafirmem o seu
amor ao infrator arrependido. 9,10 Ele
ressalta que não escreveu apenas para exi-
gir medidas disciplinares, mas também
para testar a sua obediência. Eles tinham
provado ser obedientes às suas instruções,
e agora ele os exorta a perdoar o trans-
gressor, assegurando-lhes que ele mesmo
também já o tinha perdoado. 11 O perdão
e a restauração do infrator são essenciais
para que Satanás não alcance vantagem
sobre nós, ou seja, ganhe vantagem sobre
2CORíNTIOS 2
a Igreja, privando-a permanentemente de
um dos seus membros ao explorar a falha
moral para causar o afastamento da parte
culpada. Toda a abordagem de Paulo em
relação ao transgressor é um lembrete para
nós de que o pecado manifesto ou osten-
sivo por parte dos membros da igreja não
deveria ser ignorado ou perdoado. Para o
bem da própria igreja, e para a honra do
nome de Deus, ações disciplinares devem
ser tomadas. A abordagem de Paulo tam-
bém nos lembra de que o objetivo dessa
ação disciplinar é a restauração completa
da parte culpada. Os que pregam a reconci-
liação devem também praticá-la. Eles não
devem se contentar com a disciplina dos
transgressores, mas devem estar prontos a
reafirmar seu amor por eles, depois de es-
tes terem sido levados ao arrependimento.
2.12,13 A espera por Tito
Algum tempo depois do retomo de Paulo
a Éfeso, depois da visita "dolorosa" e de-
pois de ter enviado a carta "severa", ele
tomou o caminho de Trôade, onde espera-
va encontrar Tito e deste receber notícias
de Corinto. Quando chegou, percebeu que
uma porta tinha sido aberta no Senhor
para que ele pregasse o evangelho. Mas
por não ter encontrado Tito ali, não teve
tranquilidade no seu espírito, partindo,
então, para a Macedônia, onde esperava
encontrá-lo. O fato de Paulo ter deixado
para trás uma porta aberta para a prega-
ção do evangelho salienta a ansiedade que
ele sentia na espera de notícias de Tito.
O alívio que Paulo experimentou quando
finalmente encontrou Tito na Macedônia
é descrito em 7.5-16, mas antes de con-
tar a seus leitores sobre isso ele faz uma
longa digressão (2.14-7.4), na qual ele
fala sobre a natureza do seu ministério e
de como ele recebera apoio durante tem-
pos difíceis.
2.14-17 Conduzido em triunfo
O que Paulo disse até esse ponto na car-
ta poderia ser entendido como um relato
2CORíNTIOS 3
bastante deprimente de seu ministério. Ele
falou dos sofrimentos por que passou na
Ásia, das críticas à sua integridade, da dor
experimentada em Corinto e da sua impos-
sibilidade de se estabelecer em Trôade para
pregar ali. Como que para equilibrar esse
relato deprimente, Paulo passa a expres-
sar uma nota positiva, descrevendo como
Deus sempre e em cada lugar o capacitou a
exercer um ministério efetivo.
14 Apesar das dificuldades, Paulo foi
capaz de dizer: Graças, porém, a Deus,
que, em Cristo, sempre nos conduz em
triunfo. A imagem é provavelmente a
do desfilo triunfal romano, e Paulo fala
de si mesmo como de um soldado leva-
do em triunfo por Deus. Nesse contexto,
tais imagens não apoiam uma abordagem
"triunfalista" do ministério porque Paulo
tem em mente a vitória por meio do sofri-
mento. No desfile triunfal um incenso do-
cemente perfumado era oferecido aos deu-
ses, e Paulo diz que por meio de nós Deus
manifesta em todo lugar a fragrância do
[...] conhecimento de Cristo. 15,16 Os
que anunciam as boas-novas são como um
doce aroma para Deus; para os que obe-
decem ao evangelho eles são aroma de
vida, mas para os que lhe desobedecem,
cheiro de morte. Sabendo que a pregação
do evangelho tem essas sérias implicações
para os que o ouvem, e, por isso, conhe-
cendo a grande responsabilidade dos que
o pregam, Paulo pergunta: Quem, porém,
é suficiente para estas coisas? (Só iremos
encontrar sua resposta em 3.5: "não que,
por nós mesmos, sejamos capazes de pen-
sar alguma coisa, como se partisse de nós;
pelo contrário, a nossa suficiência vem de
Deus"). 17 Paulo sentiu essa grande res-
ponsabilidade, pois não estamos, como
tantos outros, mercadejando a palavra de
Deus. Ele se recusava a adulterar a pala-
vra de Deus (cf 4.2) removendo sua parte
ofensiva a fim de manipulá-la para bene-
fícios pessoais. Pelo contrário, ele falava
com sinceridade, consciente de sua res-
ponsabilidade perante Deus.
1796
3. 1-3 Cartas de recomendação
Paulo agora responde à crítica recebida
por não ter apresentado cartas de recomen-
dação quando veio a Corinto. As críticas
provavelmente vieram dos falsos após-
tolos, e a sua intenção era atacar Paulo.
1,2 Paulo responde dizendo que era absur-
do que eles tivessem necessidade, como
alguns, de cartas de recomendação [...].
Vós sois a nossa carta. A própria existên-
cia da igreja em Corinto testemunhava da
validade do seu ministério. 3 A igreja era
a carta de Cristo. Paulo fora incumbido
por Cristo de escrever uma "carta viva"
nos corações dos fiéis de Corinto. Para
essa missão a tinta do Espírito tinha sido
confiada a Paulo. Pela graça de Deus, a
carta recomendava o próprio ministério
pelo qual foi produzida. Embora haja
algumas circunstâncias em que um mi-
nistério fiel não é recompensado por re-
sultados aparentes, tais observações não
deveriam ser utilizadas para desculpar
ministérios ineficazes em outras circuns-
tâncias. Normalmente é conveniente que
os nossos ministérios sejam julgados pe-
los seus resultados.
3.4-6 Ministros da nova aliança
4,5 Aqui Paulo responde à pergunta que
ele fez em 2.16, mostrando que a sua com-
petência vem de Deus. Isso não reflete uma
humildade exagerada, mas sim um reco-
nhecimento sensato do fato de que a obra
espiritual só pode ser realizada pelo poder
que Deus fornece por meio do seu Espírito.
6 O ministério de Paulo no âmbito da nova
aliança foi não da letra, mas do espírito.
O contraste aqui é entre a lei de Moisés e
o Espírito Santo, as características princi-
pais da aliança antiga e da nova, respecti-
vamente. A letra mata na medida em que
pronuncia o juízo sobre aqueles que des-
respeitam a lei. O espírito [Espírito, NVI;
ARe] vivifica, porque no âmbito da nova
aliança os pecados são perdoados e não
mais lembrados, e as pessoas são capacita-
das pelo Espírito a viver para Deus.
 1797
3.7-18 O contraste entre
dois ministérios
Nessa seção Paulo usa Êxodo 34.29-32
(7-11) e 33-35 (12-18) para continuar a
contrastar os ministérios da antiga e da
nova aliança a fim de demonstrar a supe-
rioridade da última. O propósito principal
de Paulo é realçar o caráter glorioso do mi-
nistério que lhe foi confiado e assim expli-
car por que, apesar de tantas dificuldades,
ele não perde o ânimo (cf 4.1).
7-11 Êxodo 34.29-32 fala da glória pre-
sente na entrega da lei, uma glória refletida
no rosto resplandescente de Moisés, que
provocou medo no coração dos israelitas.
Paulo reconhece que a antiga aliança foi
acompanhada de grande esplendor, mas
ele argumenta que a nova aliança é acom-
panhada de um esplendor ainda maior. A
superioridade da nova aliança é discutida
com base em três argumentos: o ministério
do Espírito é mais esplêndido do que o mi-
nistério da morte (7,8), o ministério dajus-
tiça é mais esplêndido do que o ministério
da condenação (9), e o ministério perma-
nente é mais esplendido do que o ministé-
rio que se desvanecia (11). O ministério da
antiga aliança, no qual a lei condenava os
transgressores, desvaneceu-se com a vinda
de Cristo. O ministério da nova aliança é
realizado no poder do Espírito; ele propor-
ciona às pessoas o direito de comparecer
diante de Deus; e é permanente, porque ele
não será substituído por outro.
12-18 Êxodo 34.33-35 explica como
Moisés cobriu o seu rosto depois de trans-
mitir a lei de Deus para os israelitas de
modo que eles não vissem o seu brilho.
Paulo interpreta o fato como uma tenta-
tiva de Moisés de ocultar dos israelitas a
natureza desvanecida do esplendor que
acompanhava a antiga aliança, e ele con-
trasta a falta de ousadia de Moisés com a
sua própria ousadia como ministro da nova
aliança (12,13). Ele também vê na cober-
tura do rosto de Moisés algo análogo ao
véu que está sobre as mentes de muitos
de seus contemporâneos judeus, que não
2CORíNTIOS 4
conseguem entender corretamente a lei de
Moisés quando ela é lida em suas sinago-
gas (14,15). Os fiéis, os que se converte-
ram ao Senhor, experimentaram a remoção
do véu da sua mente (16), e assim, com o
rosto desvendado, eles refletem (ou talvez
contemplam) a glória do Senhor, e ao fazê-
lo são transformados [...] na sua própria
imagem (18).
O propósito principal de Paulo ao sa-
lientar o esplendor superior do ministério
da nova aliança era explicar por que ele era
tão ousado e não perdia o ânimo (12; cf
4.1). Ele também pode ter pretendido usar
esse argumento para contrariar o ensino de
seus oponentes em Corinto, que colocava
grande ênfase na sua ascendência judaica
(cf 11.21b,22).
4. 1-6 A condução do
ministério de Paulo
1,2 Visto que a ele foi confiado esse mi-
nistério tão grande, Paulo diz: não des-
falecemos. Por esse motivo ele também
diz: rejeitamos as coisas que, por vergo-
nhosas, se ocultam. Negativamente, isso
envolve uma recusa a andar com astúcia
ou adulterar a palavra de Deus (isto é,
misturando-a com ideias exóticas; 2.17).
Positivamente, isso envolvia a manifesta-
ção da verdade. Embora tenhamos de nos
empenhar em tomar a verdade da palavra
de Deus manifesta às pessoas nas situações
em que se encontram, nós não precisamos,
mais do que Paulo, manipulá-la para tomar
eficaz a palavra de Deus. Apresentada de
forma simples e na confiança depositada
no Espírito, a palavra de Deus alcança-
rá os resultados esperados por Deus (cf
Is 55.10,11).
3,4 A referência àqueles a quem o
evangelho de Paulo está encoberto é prin-
cipalmente a seus contemporâneos judeus
que não compreendem que as suas pró-
prias Escrituras apontam para Cristo (cf
3.14,15) e cujo entendimento o deus des-
te século cegou. No entanto, fica evidente
por outras referências de 2Coríntios que
2CORíNTIOS 4 1798
Paulo de maneira nenhuma via a ativida-
de do deus deste século (Satanás) como
restrita aos judeus (cf 2.11; 11.3,14).
Aqueles cujas mentes foram cegadas não
conseguem ver a luz do evangelho, e
tudo no evangelho está associado à gló-
ria de Cristo. o qual é a imagem de Deus.
Quando Paulo fala de Cristo como a ima-
gem de Deus ele pode estar se referindo à
sua humanidade (cf Gn 1.26: "Façamos o
homem à nossa imagem, conforme a nos-
sa semelhança") ou à sua transcendência
(a sabedoria era muitas vezes personifica-
da como a imagem de Deus; cf Pv 8.22-
31; Cl 1.15-20). 5,6 Se o evangelho trata
da glória de Cristo, então Paulo não prega
sobre si mesmo (como outros talvez fa-
çam), mas ele prega a Cristo Jesus como
Senhor e considera-se a si mesmo um ser-
vo daqueles a quem ele prega. A base para
o ministério de Paulo é o privilégio de ter
visto a glória de Deus, na face de Cristo
(inicialmente na estrada para Damasco).
Só podemos pregar aos outros o Cristo
que nós mesmos encontramos.
4.7-12 Tesouros em vasos de barro
7 Os que exibem a luz gloriosa do evan-
gelho são comparados a vasos de barro,
baratos e fáceis de quebrar; e isso ser-
ve para demonstrar que o poder liberado
pela pregação do evangelho é de Deus e
não de nós. 8-12 Esse princípio é ilustrado
por uma série de declarações (perplexos,
porém não desanimados; perseguidos,
porém não desamparados; abatidos, po-
rém não destruídos) e usado para mostrar
que o poder de Deus não apenas susten-
ta Paulo, mas trabalha por meio dele para
trazer vida a outros (em nós, opera a mor-
te, mas em vós, a vida). As referências à
morte e vida não devem ser entendidas de
forma mística, mas de forma concreta, isto
é, no decorrer do seu ministério Paulo foi
exposto à morte continuamente (cf 1.8-10;
Rm 8.36), mas ao mesmo tempo ele expe-
rimentou o poder da vida de Cristo operan-
do nele e por meio dele.
4.13-15 O espírito da fé
Assim como o salmista que manteve a
sua fé em meio ao sofrimento pôde dizer:
Eu cri; por isso, é que falei ( citação de
SI 116.10), assim Paulo diz: Também nós
cremos; por isso, tambémfalamos. Foi a sua
confiança no Deus que ressuscita os mortos
que capacitava Paulo a continuar pregando,
sabendo que isso resultaria em beneficios
aos seus ouvintes e graças a Deus.
4.16-5.10 A esperança
sublime de Paulo
16-18 Embora Paulo estivesse aparente-
mente "abatido" (cf v. 7-12) ele não desa-
nimou porque o seu interior se [renovava]
de dia em dia. E, de todo modo, a tribula-
ção exterior era leve e momentânea com-
parada ao peso e à natureza eterna da gló-
ria que como resultado ele experimentaria.
Paulo suportava aflições no mundo visível
presente ao olhar para as glórias do mundo
ainda não visível.
5.1-10 É a luz disso que Paulo passa
a explicar o que ele quer dizer com se a
nossa casa terrestre deste tabernáculo se
desfizer. 1 A maneira de interpretar esse
versículo vai determinar a interpretação de
5.1-10. No contexto geral de 4.16-5.10,
a destruição da nossa casa terrestre deste
tabernáculo se refere à destruição do cor-
po na morte. Paulo imagina que as suas
aflições possam se intensificar de tal ma-
neira que isso resulte na sua morte. Ciente
de que a casa terrestre pode ser tão facil-
mente destruída, ele lembra seus leitores
de que temos da parte de Deus um edificio,
casa não feita por mãos, eterna, nos céus.
Um fator importante na determinação do
significado do que Paulo quis dizer aqui
é o paralelismo no versículo. A casa que
é terrestre e ameaçada de destruição (la)
deve ser substituída por algo correspon-
dente a isso, mas que seja uma casa eterna
(l b). Se aquela significa o corpo terrestre
do fiel, parece que esta se refere a um ou-
tro corpo, ou seja, o corpo ressuscitado do
fiel (cf Rm 8.18-23).2-5 Paulo fala do seu
 1799
desejo de ser libertado das aflições que ele
experimenta em seu corpo terreno. Não
que ele anseie por uma existência desen-
camada, como desejam os gnósticos, mas
antes ele anseia pela vida no corpo ressus-
citado. Isso é o que ele quer dizer com não
queremos ser despidos, mas revestidos,
para que o mortal seja absorvido pela
vida. Deus nos criou para esse propósito, e
concede o seu Espírito aos fiéis como a ga-
rantia de que o seu propósito será atingido.
6-8 Até esse ponto Paulo falou de como a
destruição do corpo terrestre é compensa-
da pela provisão de um corpo ressuscitado,
mas sem sinal algum de que aquele possa
acontecer antes deste. Aqui, talvez por cau-
sa de uma consciência crescente de que ele
mesmo possa experimentar a morte antes
da ressurreição geral, ele volta a sua aten-
ção para esse assunto. Primeiro, ele afirma
novamente a sua confiança em Deus, que
faz com que ele não desanime (cf 2.14;
3.4,12; 4.1,16), e depois ele reconhece
claramente que a sua situação atual deixa
algo a desejar: sabendo que, enquanto no
corpo, estamos ausentes do Senhor. O sig-
nificado da afirmação pode ser encontrado
no v. 7, em que Paulo acrescenta: andamos
por fé e não pelo que vemos. Isso sugere
que estar no corpo significa que Deus não
está acessível aos nossos olhos (e nesse
sentido estamos ausentes do Senhor), mas
nos é acessível somente por fé. Ele passa
a dizer que ele preferiria deixar o corpo e
habitar com o Senhor, pois nessa situação
o Senhor seria acessível aos olhos e não
mais somente pela fé. Assim Paulo parece
reconhecer que ele terá de experimentar
uma existência desencarnada se ele morrer
antes da segunda vinda de Cristo. Ele não
fornece sinal algum de como ele pensava
que seria essa existência desencarnada. O
que ele faz nos v. 9, I O é enfatizar algo que
é muito mais importante do que isso.
9,10 Afinal o que importa não é a es-
peculação sobre a nossa situação futura,
mas a determinação de agradar a Deus,
não importando a situação em que nos
2CORíNTIOS 5
encontremos. Porque importa que todos
nós compareçamos perante o tribunal de
Cristo, e então cada um receberá o que
lhe é devido segundo o mal ou o bem que
tiver feito por meio do corpo. Nesse con-
texto, as coisas feitas por meio do corpo
podem se referir apenas ao que uma pes-
soa faz nesta vida. Nós somos responsá-
veis perante o Senhor por nossas ações, e
seremos recompensados ou sofreremos de
acordo com elas.
5.11-7.4 O ministério
da reconciliação
Nessa seção central da carta Paulo apela
aos coríntios para que se reconciliem com
Deus e que abram seus corações a ele, seu
apóstolo. Ele abre caminho para esses ape-
los ao responder primeiramente às críticas
ao estilo de seu ministério (5.11-15), e em
seguida ao declarar as bases teológicas
em que está fundamentada a reconciliação
(5.16-21). Então ele faz seus apelos (6.1-
13; 7.2-4) e intercala entre eles um convite
à vida santa (6.14-7.1).
11 Paulo alega agir com integridade
em todas as suas tentativas para convencer
as pessoas sobre a verdade do evangelho.
Ele é motivado por um saudável temor do
Senhor e por ser conhecido cabalmente por
Deus. 12 Prevendo o que seus adversários
diriam dele que ele está apenas começan-
do a louvar-se a si mesmo novamente, ele
diz que o seu propósito ao explicar os seus
motivos é capacitar os seus leitores a res-
ponder às críticas deles. 13 Além disso,
ele afirma, que se ele parece estar louco,
isso é um problema entre ele e Deus, mas
quando ele emprega o discurso inteligí-
vel é para o benefício dos seus ouvintes.
14,15 Ele argumenta que ele não poderia
fazer outra coisa senão servir a Cristo, es-
forçando-se em fazê-lo com a maior inte-
gridade, pois é obrigado a isso devido ao
grande amor de Cristo. Ele está convicto
de que Cristo morreu em seu lugar, e ago-
ra Paulo quer viver para ele. Vemos aqui
dois aspectos da motivação de Paulo para o
2CORíNTIOS 5
ministério, e cada um destes deve ser re-
fletido na nossa própria motivação ao ser-
virmos ao Senhor. Por um lado, Paulo está
consciente da responsabilidade e assim tem
um temor saudável (11), e por outro lado
ele sabe do grande amor de Cristo e por
isso não consegue fazer outra coisa senão
viver por aquele que morreu e ressuscitou
por ele (14,15).
16,17 Um dos resultados da morte e
ressurreição de Cristo é que Paulo tem uma
nova perspectiva: nós, daqui por diante, a
ninguém conhecemos segundo a carne.
Atributos e realizações a que antigamente
ele daria grande valor agora não têm impor-
tância (cf Fp 3.4-8). Isso também significa
que ele considera a Cristo de uma maneira
nova. No período anterior à sua conversão
ele julgava que Cristo empregava critérios
mundanos e chegava a conclusões equivo-
cadas, mas ele já não o faz. Alguma coisa
do grande significado de Cristo é visto no
fato de que se alguém está em Cristo, é
nova criatura, de forma que se pode dizer,
as coisas antigas já passaram, eis que se
fizeram novas! Estar em Cristo é já estar
participando da nova criação. É verdade
que por enquanto o antigo ainda persiste
e o novo ainda não veio plenamente (cf
Rm 8.18-25; GI 5.16-26). No entanto, nes-
sa passagem o que se destaca é a novidade
da vida em Cristo, e não a tensão envolvi-
da em participar da nova criação enquanto
ainda se vive como parte da antiga.
18-20 Dessa nova criação, de que os
fiéis já participam, Paulo diz: tudo pro-
vém de Deus, porque foi Deus que tomou
a iniciativa em Cristo para nos reconci-
liar consigo mesmo, não nos imputando
os nossos pecados. Depois de nos ter re-
conciliado, Deus nos confiou a palavra
da reconciliação; assim, por meio de nós
como seus embaixadores ele apela aos
outros para que se reconciliem com ele.
Eles precisam responder afirmativamente
a esse apelo para que eles também expe-
rimentem efetivamente a reconciliação.
Essa é a linguagem do evangelismo, mas
1800
surpreendentemente Paulo a dirige aos
seus convertidos (rogamos que vos... ),
algo que se torna ainda mais evidente em
6.1,2,11-13 e 7.2-4.
21 Antes de continuar o seu apelo aos
coríntios, Paulo faz uma afirmação resumi-
da mas extremamente profunda da obra de
Cristo: Aquele que não conheceu pecado,
ele o fez pecado por nós. Diversas interpre-
tações desta afirmação têm sido sugeridas:
que Cristo foi feito pecador; que ele foi a
oferta pelo pecado; que ele foi obrigado a
assumir as consequências de nossos peca-
dos. A primeira sugestão é corretamente
rejeitada. A segunda pode ser apoiada ao
apelar ao uso que Paulo faz da termino-
logia sacrificial em outras passagens (cf
Rm 3.25; 1Co 5.7), e no fato de que na
versão grega de Levítico 4.24 e 5.12 a pa-
lavra traduzida por pecado é utilizada para
significar oferta pelo pecado. A terceira
interpretação é corroborada pelo apelo a
Gálatas 3.13, em que Paulo fala da morte
de Cristo em termos de ele suportar as con-
sequências de nossos pecados: "Cristo nos
resgatou da maldição da lei fazendo-se ele
próprio maldição em nosso lugar, pois está
escrito: 'Maldito todo aquele que for pen-
durado em madeiro'''. Essa interpretação
ainda é corroborada pelo fato de que a de-
claração Aquele que não conheceu pecado,
ele o fez pecado por nós é equil ibrada pela
declaração contrária para que, nele, fôs-
semos feitos justiça de Deus. Se "ser feito
justiça de Deus" significa que a sentença
pronunciada por Deus nos foi favorável e
nos coloca em um relacionamento correto
com ele, então tornar-se pecado, como o
oposto disso, significaria que Deus pro-
nunciou a sua sentença contra Cristo (por-
que ele tomou sobre si o fardo de nossos
pecados; cf Is 53.4-6,12) com o resultado
de que o seu relacionamento com Deus
foi momentaneamente, mas terrivelmente,
além de todo entendimento humano, rom-
pido (cf Mt 27.46) em favor de nós. Não
é de admirar que o amor de Cristo tenha
sido uma grande força motivadora na vida
 1801
de Paulo, e uma vez que entendemos o
significado do amor de Cristo por nós ele
também será uma motivação fortíssima
na nossa própria vida.
6.1,2 Paulo apela aos seus leitores:
que não recebais em vão a graça de Deus,
isto é, não deixem que a sua resposta ao
evangelho seja perturbada por críticas a tal
evangelho ou críticas em relação àquele
que lhes apresentou o evangelho. Para sa-
lientar a gravidade do seu apelo, Paulo os
faz lembrar que "agora" é o tempo do fa-
vor de Deus e conclui que eles não devem
receber esse favor de Deus em vão.
3-10 Paulo insiste em que a forma
como ele tem conduzido o seu próprio mi-
nistério não constitui uma pedra de trope-
ço que poderia prejudicar a boa recepção
da graça de Deus por parte deles. Antes,
de todas as maneiras ele tentou recomen-
dar-se a eles como um servo de Deus, ao
suportar as tribulações (4b,5) e agir com
integridade (6,7), não importando se a suas
próprias experiências no ministério fossem
agradáveis ou dolorosas (8-10). Em todos
os altos e baixos da vida e do ministério
como cristãos temos de agir com integri-
dade. Se não o fizermos, nossas próprias
vidas poderão se tomar pedras de tropeço
para aqueles com quem queremos compar-
tilhar o evangelho.
6.14-7.1 Paulo faz uma digressão
para exortar os seus leitores a que nada te-
nham que ver com a adoração pagã, mas
a que levem uma vida santa de reverência
a Deus. O apelo não vos ponhais em jugo
desigual com os incrédulos significa aqui
não participar na adoração pagã com os
incrédulos. Isto fica evidente pela série de
cinco perguntas retóricas que seguem nos
v. l4b-16, especialmente a última: Que li-
gação há entre o santuário de Deus e os
ídolos? (16a). Os fiéis não podem partici-
par no culto de idolatria porque eles são o
santuário do Deus vivente, como o próprio
Deus disse: Habitarei e andarei entre eles.
Visto que ser impossível que uma pessoa
ande com Deus e ao mesmo tempo parti-
2CORíNTIOS 6
cipe no culto de idolatria, os fiéis devem
se afastar desta. Paulo enfatiza ao apelar
ao clamor do AT para que nada tenham que
ver com o que é impuro e às promessas
de Deus no AT de receber como um Pai os
que abandonam a idolatria (17,18). À luz
dessas promessas, Paulo exorta os seus lei-
tores a que deixem para trás tudo aquilo
que contamina e se concentrem em aper-
feiçoar a sua santidade no temor de Deus
(7.1). Essa passagem cria problemas para
o leitor, pois a sua relação com o que pre-
cede e o que segue não é óbvia, e é difícil
compreender a razão de Paulo inseri-la
nesse ponto da carta. Pode ser que Paulo,
profundamente preocupado em restabele-
cer a comunhão com os coríntios, esteja
os lembrando de que esta comunhão po-
deria ser atingida somente se eles aban-
donassem qualquer tipo de envolvimento
com a adoração pagã. Alternativamente,
ele pode estar alertando os seus leitores
que se eles se unirem aos que se opõem a
ele e ao seu evangelho, isso será o mesmo
que alinhar-se a Satanás / Belial. É claro
que é possível que Paulo tenha passado
de um assunto para outro, e que não haja
conexão lógica alguma. A maior parte das
pessoas que escreve cartas ocasionalmen-
te faz o mesmo, e nós devemos admitir
que Paulo possa tê-lo feito aqui.
2-4 Depois da digressão de 6.14-7.1,
Paulo renova o seu apelo à plena reconci-
liação entre ele e os coríntios, instando-os:
Acolhei-nos em vosso coração. Ao fazê-
lo ele insiste em que nada no seu próprio
comportamento para com eles constitui um
obstáculo a essa reconciliação: a ninguém
tratamos com injustiça, a ninguém corrom-
pemos, a ninguém exploramos. Além disso,
para apoiar o apelo à plena reconciliação
ele lhes garante que tem um lugar enorme
para eles no seu coração, que ele tem gran-
de orgulho e confiança neles (3,4a) e que as
boas notícias que ouviu de Tito a respeito
da resposta deles à sua carta "severa" o fez
transbordar de júbilo. Aqui vemos Paulo
praticando no seu relacionamento com os
2CORíNTIOS 7
coríntios a reconciliação que ele pregava
aos outros. A nossa credibilidade como
mensageiros da reconciliação depende, em
parte, de sermos reconciliadores do nosso
relacionamento com os outros.
7.5-16 A alegria de Paulo depois
da resolução da crise
Nessa seção Paulo retoma a linha deixa-
da em 2.13. Depois de não ter consegui-
do pregar o evangelho em Trôade sem a
presença de Tito, Paulo tinha ido para a
Macedônia, esperando encontrar ali o seu
amigo. 5-7 Na Macedônia Paulo em tudo
foi atribulado com lutas por fora, temo-
res por dentro. As lutas eram provavel-
mente discussões exaltadas tanto com os
incrédulos (cf At 17.5-14) quanto com os
opositores cristãos (cf Fp 3.2), enquan-
to os temores eram tanto as perseguições
(cf At 18.9) quanto as perdas espirituais
resultantes da reação negativa dos corín-
tios à sua carta anterior. No entanto, Deus
deu grande conforto a Paulo quando Tito
finalmente chegou. Assim como o confor-
to da presença de Tito, havia também as
boas notícias trazidas por ele dos corín-
tios, com renovadas expressões de sauda-
de e preocupação por Paulo.
8-11 Paulo fala do remorso que sentiu
por ter escrito a carta "severa", mas agora
que recebeu notícias do seu efeito, ele já
não sente arrependimento (8). Ele está fe-
liz porque a carta produziu um arrependi-
mento verdadeiro por parte dos coríntios,
produzindo muita defesa ("dedicação" NVI)
em arrependimento, grande indignação (da
cumplicidade com o ataque do transgressor
a Paulo), indignação (contra o transgres-
sor) e temor (tendo percebido o que tinha
acontecido), saudades e zelo (para restau-
rar seu relacionamento com Paulo; cf v.
7), bem como a "vingança" (ARe) ou o "de-
sejo de ver a justiça feita" (NIV; a tomada
de ações disciplinares contra o transgres-
sor). O resultado dessa resposta vigorosa
foi, Paulo diz, que em tudo destes prova de
estardes inocentes neste assunto.
1802
12,13a À luz dessa resposta Paulo con-
segue dizer aos seus leitores o seu propósito
principal em escrever a carta "severa": não
foi por causa do que fez o mal (isto é, não
foi simplesmente para que eles disciplinas-
sem o transgressor), nem por causa do que
sofreu o agravo (isto é, não apenas para
que ele pudesse ser vindicado), mas para
que a vossa solicitude a nosso favor fosse
manifesta em vós. E assim Paulo conclui:
Foi por isso que nos sentimos confortados.
Esse desfecho feliz sublinha a importância
de lidar com situações de conflito de modo
cristão, em vez de ignorá-las e esperar que
elas simplesmente desapareçam.
13b Paulo ainda explica as razões da
sua alegria no encontro com Tito. Ele se
alegrou pelo contentamento de Tito, cujo
espírito tinha sido encorajado pelos co-
ríntios. 14 Antes de enviar Tito a Corinto,
Paulo tinha se orgulhado dos coríntios
diante de Tito (provavelmente em virtude
da sua postura como congregação, apesar
de antes não terem defendido o seu após-
tolo quando este foi difamado pelo trans-
gressor), e tudo que Paulo alegou Tito viu
que era verdade. 15,16 Como resultado, a
própria afeição de Tito pelos corintios tinha
aumentado, e Paulo pode dizer: Alegro-me
porque, em tudo, posso confiar em vós.
8.1-9.15 A questão da coleta
Depois de ter falado da sua grande alegria
e alívio com as notícias que Tito trouxera
da reação dos coríntios à sua carta, Paulo
prossegue no intuito de discutir com eles
a questão da coleta que estava sendo fei-
ta entre as igrejas gentílicas para ajudar os
pobres judeus crentes da Judeia. Estes ti-
nham sido duramente atingidos pela fome
durante o reinado do imperador Cláudio
(41-54 d.C.), e a grande igreja gentílica
em Antioquia (Síria) tinha reagido rapi-
damente mediante o envio do dinheiro
coletado por Barnabé e Paulo (At 11.27-
30). Em Gálatas 2.10 Paulo narra a forma
como os líderes da igreja de Jerusalém,
depois de terem reconhecido o seu apos-
 1803
tolado para os gentios, instaram-no a que
continuasse se lembrando dos pobres, o
que ele estava ansioso por fazer. Quando
Paulo escreveu ICoríntios (c. 56 d.C,] ele
já tinha começado a angariar auxílio entre
as igrejas da Galácia, e os coríntios, tendo
ouvido sobre isso, pediram permissão para
participar desse ministério (l Co 16.1-4).
E quando 2Coríntios estava sendo escrito
(c. 56 d.Cc) Paulo tinha contatado as igre-
jas na Macedônia e eles tinham pedido
com muitos rogos, a graça de participarem
da assistência aos santos, e essas igrejas
tinham sido extremamente generosas nas
suas contribuições (8.1-5).
8. 1-6 O exemplo dos macedônios
1,2 Paulo usa o exemplo da reação extraor-
dinariamente generosa dos macedônios ao
apelo da coleta para motivar os coríntios
a completar o que anteriormente se mos-
traram dispostos a fazer (cf 9.1,2). Os
macedônios, apesar de estarem enfrentado
tribulação e profunda pobreza, expressa-
ram a sua alegria em grande riqueza da
sua generosidade. 3-5 Eles não somente
contribuíram na medida de suas posses,
mas mesmo acima delas, e não somente
por causa da urgência do apelo, mas de-
ram-se a si mesmos primeiro ao Senhor.
6 À luz da reação dos macedônios, Paulo
enviou Tito para organizar a coleta entre
os coríntios.
8.7-15 Os coríntios
exortados a se superar
7,8 Reconhecendo que os coríntios trans-
bordavam em outras graças, Paulo os exor-
ta a transbordar também nesta graça. No
entanto, esse desejo não é uma ordem a ser
obedecida - generosidade não pode ser
produzida mediante uma ordem; antes, ele
está utilizando a oportunidade que o apelo
à coleta proporciona para testar a genuini-
dade do amor deles.
9 Como apoio a esse apelo por amor
em ação, Paulo cita o exemplo do Senhor
Jesus Cristo, que sendo rico, se fez pobre
2CORíNTIOS 8
por amor de vós, para que, pela sua pobre-
za, vos tornásseis ricos. Não é a pobreza
econômica que Paulo tem em mente aqui
(a extensão da pobreza do Jesus encarnado
às vezes é exagerada), mas antes o custo
para o nosso Senhor de desempenhar o
seu papel em todo o drama da redenção.
Ela de fato incluía as circunstâncias eco-
nômicas relativamente escassas de sua
vida encarnada, mas isso foi só o começo.
Houve também rejeição, ridicularizarão,
perseguição, traição e sofrimento, e tudo
isso culminou na agonia do Getsemâni e
na cruz. Todas essas coisas constituem o
preço total de nossa salvação. Assim como
a pobreza de Jesus aqui não deve ser en-
tendida em termos econômicos, as rique-
zas que ele toma disponíveis aos fiéis não
devem ser entendidas como prosperidade
material aqui e agora. A salvação do pe-
cado e as bênçãos da nova era são as ri-
quezas para as quais Cristo, mediante a sua
pobreza, abriu caminho. 10-12 Arespeito
da coleta, Paulo adverte os seus leitores a
terminar agora o que eles não apenas co-
meçaram a fazer há um ano, mas depois
ansiosamente desejaram fazer. Ele expli-
ca que, se há boa vontade e eles derem
de acordo com o que têm, será aceitável
a Deus, pois eles não são obrigados a dar
nada além das suas posses. 13-15 Paulo
procura evitar qualquer mal-entendido so-
bre a coleta. Os coríntios não devem se so-
brecarregar para que outros possam viver
confortavelmente às custas deles. A abun-
dância relativa dos coríntios no momento
presente deve atender às necessidades dos
crentes judeus pobres. E para que, se em
algum momento futuro as posições se in-
verterem, a abundância daqueles venha
a suprir a vossa falta. Ele encontra uma
ilustração do tipo de igualdade que ele tem
em mente na experiência da comunidade
judaica no êxodo. Quando Deus forneceu
o maná do céu, o que muito colheu, não
teve demais; o que pouco, não teve falta
(Êx 16.18). As necessidades de todos fo-
ram atendidas, ninguém sofreu, ninguém
2CORíNTIOS 8
teve mais do que precisava. O fato de
Paulo esperar que os coríntios relativa-
mente abastados suprissem as necessi-
dades dos fiéis relativamente pobres em
Jerusalém deveria nos precaver quanto à
nossa forma de aplicar o seu ensinamento
sobre as doações hoje. Não devemos apli-
car essa passagem igualmente aos que são
abastados e aos que não o são.
8.16-24 Recomendações aos
que receberão a oferta
Aqui Paulo dá graças a Deus pelos três
homens que irão a Corinto para adminis-
trar a coleta. 16,17 Primeiro, ele dá graças
por Tito, enfatizando a sua solicitude pe-
los coríntios e sua disposição em aceitar a
tarefa. 18,19 Segundo, ele louva o irmão
cujo louvor no evangelho está espalhado
por todas as igrejas e que foi escolhido
pelas igrejas como seu representante para
levar a coleta para Jerusalém. 20,21 Antes
de elogiar o terceiro dos irmãos, Paulo faz
uma breve digressão para dizer por que
ele está se preocupando tanto com a co-
leta. É para evitar que alguém nos acuse
em face desta generosa dádiva admi-
nistrada por nós, de modo que tudo que
for feito seja honesto não só perante o
Senhor, como também diante dos homens.
22 Finalmente, ele elogia o nosso irmão,
cujo zelo, em muitas ocasiões e de mui-
tos modos temos experimentado. 23,24 A
passagem termina com um elogio resumi-
do aos três e um apelo para que os corin-
tios deem provas do seu amor (por Paulo)
e da verdade do seu orgulho deles (para
os macedônios) quando os três homens
chegarem. Vale a pena observar como
a seriedade (ou o zelo) era importante
para o apóstolo tanto na recomendação
de obreiros cristãos quanto no incenti-
vo aos fiéis em geral. Podemos colocar
outras qualidades acima dessa em nossa
lista de prioridades, mas para Paulo a se-
riedade estava entre as mais importantes
(v., e.g., 7.11,12; 8.7,8,16,17; Rm 12.11;
2Tm 1.16,17).
1804
9. 1-5 Estejam preparados
e evitem a humilhação
1,2 Paulo reconhece que em certo sentido
é supérfluo escrever aos coríntios acerca
da participação na coleta, pois eles mes-
mos tinham levantado a questão com ele
inicialmente (ele se refere à indagação
deles sobre o assunto em ICo 16.1-4).
Mais do que isso, ele tinha se gabado da
prontidão deles para os macedônios a fim
de estimulá-los também a participar. 3-5
Mas agora a crise havia se precipitado por
intervenção do transgressor e Paulo teme
que quando ele vier com a delegação dos
macedônios para receber a contribuição
dos coríntios eles ainda não a tenham re-
colhido. Por esse motivo ele escreve: en-
viei os irmãos, para que o nosso louvor
a vosso respeito, nesse particular, não se
desminta, acrescentando que não será ape-
nas ele que se envergonhará se isso acon-
tecer, mas os próprios coríntios também se
sentirão envergonhados. Assim ele envia
os irmãos para que preparem de antemão
a dádiva deles, de modo que a sua con-
tribuição esteja pronta como expressão de
generosidade e não de avareza, como pa-
receria se ela fosse coletada rapidamente
quando Paulo chegasse.
9.6-15 Um apelo para
que sejam generosos
6 Paulo encoraja os seus leitores a fazer
a doação generosa a que se refere no v. 5
ao lembrar-lhes de um ditado utilizado na
agricultura: o que semeia comfartura com
abundância também ceifará. A "semeadu-
ra" e a "colheita" nesse contexto referem-
se à contribuição que os coríntios farão e
os resultados dessa contribuição, respecti-
vamente. (O resultado esperado é descrito
nos v. 12-14). 7-11 Eles não devem ser
relutantes no dar, lembrando que Deus
ama um doador alegre, e que como aque-
le que dá semente ao que semeia é capaz
de aumentar a sementeira deles genero-
samente, ou seja, para toda generosidade
em qualquer ocasião. Isso era dirigido aos
 1805
coríntios relativamente abastados; e não
teria sido adequado dizer as mesmas coi-
sas aos judeus atingidos pela pobreza para
quem a coleta estava sendo feita. 12-14
Paulo descreve os resultados da contribui-
ção antecipada dos coríntios não somente
como suprindo a necessidade dos santos,
mas que também redunda em muitas gra-
ças a Deus. Além disso, os que se benefi-
ciarem glorificarão a Deus pela obediência
da confissão dos coríntios e pela libera-
lidade com que contribuíram para eles e
para todos, e em seus corações oram eles
a favor dos coríntios com grande afeto.
Tudo isso reflete os propósitos da coleta:
primeiro, que o louvor e as ações de graças
devem afluir diante de Deus pela obra da
sua graça entre os gentios; segundo, que o
amor e a unidade entre os judeus e gentios
na igreja devem ser reforçados. 15 Paulo
conclui seu tratamento sobre a coleta agra-
decendo a Deus o seu dom inefável que
toca a mesma nota ouvida em 8.9.
10.1-13.14 Paulo reage
a uma nova crise
Há uma mudança de tom acentuada quan-
do se passa dos cp. 1-9 para os cp. 10-
13. Nos primeiros, o tom é basicamente de
alívio e conforto, de confiança em Deus e
nos coríntios, não obstante Paulo sentir a
necessidade de explicar a sua mudança dos
planos de viagem e sublinhar a integridade
do seu ministério. O tom da segunda parte
é marcado pela ironia e sátira, pela defesa
pessoal severa, pela censura direta aos co-
ríntios e pelo ataque amargo dirigido aos
oponentes que se infiltraram na congrega-
ção (v. na Introdução uma discussão so-
bre a identidade dos oponentes de Paulo).
Depois da disciplina e reintegração do in-
frator, parece que os adversários de Paulo,
os falsos apóstolos, começaram a influen-
ciar diretamente a congregação e envene-
nar os seus membros contra ele. Ao ter a
sua autoridade usurpada e o seu apostolado
posto em dúvida, Paulo foi obrigado a fazer
uma defesa pessoal intensa e arquitetar um
2CORíNTIOS 10
ataque vigoroso contra os seus opositores.
A crise que Paulo enfrentou nessa situação
foi a mais crucial em todo o seu relacio-
namento com os coríntios, e esse fato dá
cor tanto ao tom quanto ao conteúdo dos
cp. 10---13, nos quais Paulo apresenta a
sua resposta.
10.1-6 Uma súplica sincera
1,2 Paulo inicia a sua resposta fazendo um
apelo como alguém que quando presente
entre eles é humilde; mas, quando ausente,
é ousado para com eles. Essa é uma alu-
são à acusação feita pelos seus oponentes
depois da sua partida "tímida" ao final da
visita dolorosa, por um lado, e sua carta
"severa" escrita "com firmeza" à distância,
por outro. Paulo apela aos coríntios para
que ajam de tal maneira que ele não preci-
se ser "ousado" com eles, como ele pensa
ter que tratar alguns (os seus oponentes)
quando ele fizer a sua terceira visita. Ele
rejeita a acusação dos seus oponentes de
que nos julgam como se andássemos em
disposições de mundano proceder.
3-6 Paulo responde a essa acusação
com o uso extensivo de uma metáfora mi-
litar afirmando que, embora andando na
carne (ou seja, participando da existência
humana normal, com todas as suas limita-
ções), não militamos segundo a carne (ou
seja, empregando simplesmente os meios
humanos e duvidosos). Pelo contrário, diz
ele: as armas de nossas milícias não são
carnais, e sim poderosas em Deus, para
destruir fortalezas. Essa é uma alusão às
torres ou rampas utilizadas nas batalhas
antigas, mas aqui representa os sofismas e
a altivez que se levantam contra o conhe-
cimento de Deus. Foi pela proclamação do
evangelho (que envolvia raciocínio e argu-
mentação no esforço para remover barrei-
ras falsas erguidas contra a verdade) que
Paulo tentou vencer a resistência do povo
e, assim levar cativo todo pensamento à
obediência de Cristo. A imagem aqui é a
de uma fortaleza com brechas nas mura-
lhas e os que atrás dela se protegiam sen-
2CORíNTIOS 10
do levados cativos. O propósito de Paulo
não é somente demolir os argumentos
falsos, mas também levar os pensamentos
das pessoas para debaixo do senhorio de
Cristo. Por fim, ele diz estar pronto para
punir toda desobediência (ao evangelho
por parte dos seus oponentes), uma vez
completa a [...] submissão deles (isto é,
uma vez que os coríntios reconheçam no-
vamente a autoridade de Paulo e a verdade
do seu evangelho). Uma passagem como
esta nos faz lembrar que o ministério cris-
tão envolve uma batalha pela mente. Os
argumentos falsos precisam ser demolidos
para que as pessoas possam se sujeitar à
verdade do evangelho e encontrar vida de-
baixo do senhorio de Cristo.
10.7-11 Paulo responde às críticas
7 Referindo-se aos seus oponentes, Paulo
afirma que ele mesmo é tão servo de
Cristo como eles alegam ser (mais tarde
ele nega o que, na argumentação, ele aqui
admite, ou seja, que os seus oponentes
sejam verdadeiros servos de Cristo; cf
11.13-15). 8-11 Paulo responde àqueles
que diziam que ele se gloriava um pouco
mais a respeito da sua autoridade, a qual
o Senhor lhe tinha conferido, e que essa
vanglória era desmentida pelo seu desem-
penho real quando estava entre eles em
pessoa. Eles diziam que ele intimidava as
pessoas com cartas graves e fortes quan-
do ele estava ausente e a uma distância
segura, mas quando estava pessoalmen-
te entre eles a sua presença era fraca e
sua argumentação não levava a nada.
As alusões aqui são às palavras ríspidas
de sua carta, por um lado, e ao seu fra-
co desempenho pessoal quando presente
em Corinto, por outro. Aos que fazem
essas críticas Paulo diz: o que somos na
palavra por cartas, estando ausentes, tal
seremos em atos, quando presentes. Isso
não é apenas defesa, mas também uma
advertência de que em sua próxima visita
ele tomará medidas enérgicas contra os
seus detratores (cf 10.6; 13.1-4).
1806
10. 12-18 Vangloriando-se dentro
dos limites adequados
12-15 Paulo satiriza os seus oponentes
como os que se elogiam a si mesmos pela
comparação entre si! Em relação a si mes-
mo, ele diz não nos gloriaremos sem medi-
da, isto é, na força da sua comissão como
apóstolo aos gentios por Deus e da obra
que ele tinha realizado em Corinto. 15b-18
A esperança de Paulo é que com o cresci-
mento dafé dos coríntios (em especial, com
a resolução da presente crise) sua própria
atividade entre eles se expandirá significa-
tivamente, de modo que ele terá uma base
para anunciar o evangelho para além das
[...]fronteiras deles. Ali também ele espera
continuar a sua maneira de trabalhar onde
Cristo não é conhecido (cf Rm 15.20), sem
com isto nos gloriarmos de coisas já rea-
lizadas em campo alheio. Paulo termina
com um lembrete de que pouco importa o
que alguém diz quando se elogia a si mes-
mo. O que realmente importa, no final, é o
louvor do próprio Senhor (cf ICo 4.1-5).
Foi com essa consciência que ele conduziu
o seu ministério, e parece que ele deixa im-
plicito que seus oponentes não o fizeram.
Não é atribuição nossa nos orgulhar da
nossa própria obra para Cristo.
11. 1-6 A ingenuidade dos coríntios
1,2a Prenunciando o seu discurso em
11.16-12.13, Paulo diz: Quisera eu me
suportásseis um pouco mais na minha lou-
cura, explicando que o zelo de Deus que
ele sente pelos seus leitores é que o força
a fazer isso. lb,3 Utilizando as imagens
do noivado e do casamento, ele se enxerga
como o agente de Deus mediante o qual os
seus convertidos eram apresentados como
a noiva para Cristo, e ele se sente na obri-
gação de assegurar que eles sejam apresen-
tados como uma virgem pura para ele, isto
é, para garantir que eles permaneçam ver-
dadeiramente devotados a Cristo até à sua
volta. Mas Paulo expressa o seu receio: as-
sim como a serpente enganou a Eva com a
sua astúcia, assim também seja corrompida
 1807
a vossa mente e se aparte da simplicidade
e da pureza devidas a Cristo. A sedução de
Eva pela serpente não foi sexual, como al-
guns textos rabínicos sugeriram, tenha sido
antes a sedução da mente pela negação da
verdade do que Deus havia dito. A história
de Eva descreve apropriadamente o tipo de
perigo que os coríntios enfrentavam, isto
é, a sedução da sua mente. 4 Paulo explica
a natureza exata da sedução que ele receia:
a aceitação fácil pelos coríntios de um ou-
tro Jesus, de um espírito diferente e de um
evangelho diferente dos que eles recebe-
ram pela pregação dele. Paulo não nos diz
em que eles diferiam. No entanto, sabemos
que os oponentes de Paulo prezavam alta-
mente as evidências de autoridade e poder,
assim pode ser que eles tenham induzido
os coríntios a aceitar um Jesus, um espírito
e um evangelho nos quais não havia lugar
para fraqueza, humilhação, sofrimento e
morte. Paulo pregava Cristo crucificado
como Senhor, e tal evangelho diferia acen-
tuadamente disso. 5,6 Paulo volta-se de
sua preocupação com os coríntios para a
sua defesa pessoal, alegando que ele não
é em nada inferior a tais apóstolos (uma
referência irônica aos seus oponentes).
Mesmo que ele, ao contrário deles, não
seja um grande orador, ele realmente tem
conhecimento (do mistério do evangelho
que os seus oponentes não conseguiram
compreender corretamente), e isso ele ten-
tava tomar perfeitamente claro aos seus
leitores (provavelmente se referindo ao
seu ministério de ensino entre eles durante
a sua primeira visita a Corinto, bem como
às instruções dadas nas cartas).
11.7-15 Por que Paulo recusa
o apoio financeiro
7-12 Paulo responde às críticas à sua práti-
ca de trabalhar para sustentar a si mesmo e
de complementar o que ganhava dessa for-
ma com o auxílio de outras igrejas. Tudo
isso permitia que ele servisse aos corín-
tios sem se fazer pesado a ninguém. Mas
isso resultou em críticas por duas razões.
2CORíNTIOS 11
Primeiro, os coríntios pensavam que o tra-
balho humilde não estava à altura da dig-
nidade de um apóstolo; e segundo porque
provavelmente eles se sentiram ofendidos
porque ele se recusava a aceitar a ajuda de-
les, especialmente quando aceitou a oferta
das igrejas da Macedônia enquanto traba-
lhava em Corinto. Os adversários de Paulo
podem bem ter utilizado esse fato como
prova de que ele não os amava. Paulo cha-
ma a Deus como testemunha de que ele
os ama. Não obstante, ele continuará ten-
tando não ser um fardo, porque ele deseja
cortar ocasião àqueles que a buscam com
o intuito de serem considerados iguais a
nós. Os oponentes de Paulo queriam con-
solidar a sua posição em Corinto dizendo
que eles cumpriam a sua missão nos mes-
mos termos que Paulo. No entanto, havia
uma área crucial na qual os seus termos
eram diferentes - eles queriam um retor-
no financeiro. Se eles fossem apóstolos de
boa-fé não precisariam estar preocupados
com essa distinção, pois a maioria dos de-
mais apóstolos aceitava remuneração (cf
lCo 9.7-14). Parece que os adversários de
Paulo não apenas aceitavam a remunera-
ção, mas a extraíam de forma gananciosa
(cf 11.20), e isso teria feito com que se
tomassem sensíveis à comparação odiosa
que poderia ser feita entre o comportamen-
to deles e o de Paulo. Se quisermos que
os nossos ministérios como cristãos hoje
tenham credibilidade, nós também tere-
mos de agir com integridade em relação às
questões financeiras. O evangelho cai em
descrédito quando os seus mensageiros são
ávidos por ganhos financeiros.
13-15 Paulo agora expõe o caráter ver-
dadeiro dos seus oponentes como falsos
apóstolos, obreiros fraudulentos, trans-
formando-se em apóstolos de Cristo. Ele
acrescenta que a falsidade deles não é de
admirar, pois o próprio Satanás se trans-
forma em anjo de luz, e também não é de
admirar que os seus próprios ministros se
transformem em ministros de justiça. Os
ataques de Satanás à igreja raramente são
2CORíNTIOS 11
diretos. Muitas vezes são realizados de for-
ma subversiva pelos que dentro da igreja
servem equivocadamente aos desígnios
dele. Isso é o que Paulo receia que possa
acontecer em Corinto (cf 11.3,4). Aos res-
ponsáveis Paulo diz: o fim deles será con-
forme as suas obras (ou seja, no julgamen-
to de Cristo eles receberão o que as suas
obras os fizeram merecer; cf. 5.10).
11.16-12.13 O discurso
dos insensatos
Aqui Paulo se orgulha da sua ascendên-
cia judaica, tribulações apostólicas, expe-
riências visionárias e dos milagres pode-
rosos que ele realizou. Ele sabe ser uma
estupidez esse orgulho, mas em circuns-
tâncias em que os seus convertidos foram
dominados pela jactância de outros, ele se
sente compelido a jactar-se um pouco de
si mesmo.
16-19 No início, Paulo pede aos seus
leitores que o recebam mesmo como um
insensato, para que ele possa se gloriar
um pouco. Nessa confiança de gloriar-
me, ele está plenamente consciente de
que está falando não segundo o Senhor,
e sim como por loucura; no entanto ele
espera que os coríntios o perdoem por
essa loucura, vendo que, Paulo diz ironi-
camente, sendo vós sensatos, de boa men-
te tolerais os insensatos (uma referência
tanto ao fato de terem tolerado a vanglória
dos oponentes de Paulo quanto ao seu or-
gulho em sua própria sabedoria). 20 Para
enfatizar a amplitude da própria insensatez
da tolerância deles no que dizia respei-
to à questão dos falsos apóstolos, Paulo
acrescenta: tolerais quem vos escravize,
quem vos devore, quem vos detenha, quem
se exalte, quem vos esbofeteie no rosto.
21a Paulo conclui esse parágrafo com mais
uma declaração repleta de ironia mordaz:
Ingloriamente o confesso, como se fôra-
mos fracos! Os coríntios tinham criticado
Paulo por sua suposta fraqueza (cf 10.10;
11.21). Agora ele os critica pela mesma ra-
zão e os informa de que ele é fraco demais
1808
para fazer uma exibição do autoritarismo
desprezível e arrogante demonstrado pelos
falsos apóstolos.
21b,22 Falando com insensatez, Paulo
afirma que a sua própria ascendência judai-
ca é tão boa quanto a dos falsos apóstolos.
23-29 Ele alega ser um servo de Cristo bem
melhor do que eles porque sofreu muito
mais do que eles. Para apoiar essa alega-
ção Paulo fornece uma lista de suas priva-
ções apostólicas que podem ser divididas
em quatro seções: em prisões, em açoites,
sem medida, e muitas vezes em perigo de
morte, incluindo uma explicação detalha-
da do que isso incluía (23b-25); frequentes
viagens, com uma descrição dos perigos da
viagem (26); em trabalhos e fadigas, com
um relato das privações envolvidas (27); e
a preocupação com todas as igrejas, com
um exemplo do que a causou (28,29).
30-33 Como um último exemplo das
coisas que dizem respeito às fraquezas
dele, Paulo narra a história de sua fuga de
Damasco, o seu primeiro sabor de perse-
guição, que parece ter deixado uma im-
pressão indelével nele. Ao contrário da
lista de tribulações dos v. 23b-29, o que
poderia ser interpretado como triunfalismo
("Superei todas essas dificuldades a fim de
cumprir a minha missão"), a fuga infame
de Damasco contém muito pouco do que
ele poderia se orgulhar. Ao destacar todas
essas coisas que mostram a sua fraqueza
e humilhação, e não a sua força, Paulo se
apresenta como um verdadeiro servo de
Cristo. Jesus disse que os que o seguissem
sofreriam perseguições como ele tinha
sofrido, e Paulo mostra que essa foi a sua
experiência como apóstolo. Ao introduzir
essa ideia para o debate em curso sobre
quais eram os verdadeiros apóstolos em
Corinto, Paulo não somente dá suporte à
sua alegação, mas também enfraquece as
alegações dos seus oponentes.
12.1 Paulo agora passa a se gloriar das
visões e revelações do Senhor. Ele está
consciente de que não ganha nada com isso
(cf NVI), mas que tem muito a perder se
 1809
não o fizer. Evidentemente os seus adver-
sários tinham criticado a sua alegação de
ser um apóstolo, dizendo que ele não tinha
experimentado visões e revelações. Paulo
dirime assim qualquer tipo de dúvida.
2-4 Das muitas visões e revelações
que ele havia recebido (At 9.4-6; 16.9,10;
18.9-11; Gl 1.15,16), Paulo seleciona uma
que ocorreu catorze anos atrás, e portanto
alguns anos depois da sua conversão. Ele
sentiu que foi arrebatado até ao terceiro
céu [...] ao paraíso, onde ouviu palavras
inefáveis as quais não é lícito ao homem
referir. Ele não sabe se essa experiência foi
no corpo oufora do corpo, e portanto tam-
pouco sabemos nós. Na literatura tanto do
mundo judeu como do gentio, há paralelos
da experiência de arrebatamento do após-
tolo, e a partir desses paralelos três coisas
podem ser aprendidas com a experiência
de Paulo. Primeiro, a experiência a que ele
se referiu era inteligível aos seus contem-
porâneos. Segundo, acreditava-se que uma
experiência desse tipo inspirava terror, e
isso explica em parte a grande relutância
de Paulo em descrevê-la. Terceiro, o passar
por essa experiência o colocaria no mesmo
nível dos grandes heróis da fé, e ao alegar
tal experiência Paulo obteria uma vanta-
gem completa sobre os seus oponentes.
5,6 É notável que Paulo não tenha va-
lorizado ao máximo a sua experiência. Em
vez disso, ele procura se separar do Paulo
que tinha tido essa experiência catorze anos
antes. Tendo divulgado o fato de forma a
satisfazer as críticas dos seus oponentes, ele
desvia rapidamente a atenção dessa expe-
riência para as suas fraquezas como a única
razão que tem para se gloriar. Embora ele
acrescente, para silenciar as críticas, que
se fosse para se gloriar ele o faria falando
a verdade. Mas na realidade ele se abstém
porque quer que as pessoas o avaliem com
base no que veem e ouvem dele agora, e não
por alguma experiência que ele teve cator-
ze anos antes. 7 Em vez de tirar o máximo
proveito da sua experiência, Paulo explica
imediatamente como ele conseguiu não se
2CORíNTIOS 11
orgulhar dela. É importante reconhecer que
tanto no AT como no NT o poder de Satanás
não vai além do que Deus lhe permite, e
que até mesmo os seus desígnios maléficos
foram elaborados para servir os propósi-
tos de Deus. Nesse caso, o mensageiro de
Satanás foi usado por Deus para que Paulo
não se ensoberbecesse, claramente o que
Satanás não tinha em mente. Tem havido
muita especulação sobre a natureza do es-
pinho na carne de Paulo, mas não há dados
suficientes para decidir simplesmente que
tipo de aflição ele sofria.
S-lO Paulo pediu ao Senhor por três
vezes que afastasse dele o espinho. O seu
pedido não foi atendido, mas o que ele
ouviu foi: A minha graça te basta, porque
o poder se aperfeiçoa na fraqueza. Em ou-
tras palavras, Deus prometeu a Paulo que
em meio à fraqueza e frustração que este
"espinho" produziu ele encontraria todo o
poder de Deus ainda mais presente. Tendo
ouvido essa palavra de Deus, Paulo é ca-
paz de se gloriar das fraquezas, não porque
ele as aprecie, mas porque ele sabe que o
poder de Cristo está nele em suas fraque-
zas. Ele então passa a aplicar essa palavra
de Deus às outras áreas da sua vida em
que depara com fraqueza e sofrimento,
pois quando sou fraco, então, é que sou
forte. O propósito de Paulo em falar des-
sa maneira não era somente ajudar os seus
leitores a compreender melhor a fraqueza
humana e o poder de Deus. Os seus adver-
sários tinham criticado a sua reivindicação
apostólica baseada na fraqueza (cf 10.10;
11.21), e eles provavelmente considera-
vam as muitas perseguições e insultos que
Paulo tinha experimentado como algo in-
compatível com a sua reivindicação apos-
tólica. Ao estabelecer o princípio do poder
divino manifestado pela fraqueza, Paulo
imediatamente defendeu a sua própria rei-
vindicação ao apostolado e neutralizou as
críticas dos seus opositores. 11,12 Paulo
está consciente de que o que ele acaba de
dizer foi um exercício de insensatez, mas
os próprios coríntios o levaram a isso. Ele
2CORíNTIOS 12 1810
diz: Eu devia ter sido louvado por vós;
se isso tivesse sido feito, ele não precisa-
ria elogiar-se a si mesmo. As pessoas não
precisam se submeter ao ato desagradável
de elogiar-se a si mesmas quando os seus
amigos, ou aqueles a quem têm ministrado
tomam medidas positivas para defender a
integridade delas nas ocasiões em que esta
é posta em dúvida injustamente. Paulo
lembra os seus leitores de que em nada fui
inferior a esses tais apóstolos com respeito
às credenciais do apostolado, pois sinais,
prodígios e poderes miraculosos tinham
sido realizados por ele entre os coríntios.
Nesse sentido, eles não eram menos fa-
vorecidos do que os membros das outras
igrejas que ele havia fundado. 13 Só se
poderia dízer que eles eram inferiores aos
membros das demais igrejas em um único
aspecto, Paulo diz ironicamente, o fato de
não vos ter sido pesado (ou seja, ele nunca
aceitou o apoio financeíro deles). O sig-
nificado desse fato tinha sído distorcido e
utilizado contra o apóstolo como evidência
de que ele não amava os crentes de Corinto
(cf 11.7-Il). Paulo se recusa a levar essas
críticas a sérío e responde com grande iro-
nia quando diz: Perdoai-me esta injustiça!
Ele dá a entender que é uma coisa realmen-
te estranha o fato de eles se queixarem por
ele não ter sido pesado para eles ou por não
tê-los explorado (cf 11.20).
12.14-18 Paulo nega a astúcia
14,15 Prenunciando a sua terceira visita
a Corinto, Paulo diz aos seus leitores que
ele não será pesado para eles, pois não vou
atrás dos vossos bens, mas procuro a vós
outros. Pensando no seu ministério a eles
como o de um pai para com seus filhos pe-
quenos, ele acrescenta: não devem osfilhos
entesourar para os pais, mas os pais, para
os filhos. Por esse motivo ele não somente
está disposto a empenhar tudo o que tem
(os seus recursos financeiros), mas tam-
bém a gastar-se a si mesmo (a sacrificar a
sua própria vida) por eles. Seguindo essa
declaração do seu amor e compromisso
para com os coríntios, ele pergunta se o seu
amor transbordante por eles irá significar
que ele será menos amado por eles.
16-18 Paulo indica aqui por que o seu
amor pelos coríntios não pode ser retribuí-
do. É porque a sua recusa em ser um peso
financeiro para eles foi propositadamen-
te mal-interpretada por seus adversários.
Assim ele confronta os seus leitores com
a acusação levantada contra ele. Os adver-
sários de Paulo tinham sugerido que ele
recusou o apoio financeiro somente porque
ele pretendia utilizar a ocasião da coleta
para os judeus cristãos pobres como uma
oportunidade para se beneficiar pessoal-
mente. Assim Paulo pergunta aos coríntios
se ele os explorou por meio de algum dos
homens que ele enviou para organizar a
coleta (cf. 8.16-24; 9.3-5), fosse de Tito
ou dos irmãos enviados com ele. Ele con-
clui perguntando: Acaso, não temos anda-
do no mesmo espírito? Não seguimos nas
mesmas pisadas? A pergunta requer uma
resposta positiva. Tanto Paulo como os que
ele enviou a Corinto agiam da mesma for-
ma, com total integridade.
12.19-21 O propósito
do discurso insensato
19 Paulo se sentiu obrigado a falar dessa
maneira porque os coríntios tinham sido
influenciados pela jactância dos seus ad-
versários, e ele tinha que mostrar que em
nada era inferior àqueles homens. Mas o
seu verdadeiro propósito, diz ele, foi para
vossa edificação, não é para ser erronea-
mente interpretado como simples autode-
fesa. Para fortalecê-los na fé ele deve expor
os falsos apóstolos e reconquistar a fide-
lidade dos coríntios como seu verdadeiro
apóstolo e, também, ao seu evangelho.
20,21 Ele procura fortalecê-los na fé,
porque receia que de outra forma, quando
ele fizer sua terceira visita, nem ele nem
eles irão encontrar um no outro aquilo que
eles desejam. Ele pode encontrá-los ain-
da obcecados pelos pecados que tinham
cometido anteriormente e dos quais eles
 1811
ainda não tinham se arrependido (especial-
mente impureza, prostituição e lascívia).
Eles poderão encontrá-lo agindo com arro-
jada autoridade em relação a eles devido a
seus pecados.
13.1-10 Paulo ameaça
com medidas rigorosas
1 Paulo adverte os coríntios de que se por
ocasião da sua terceira visita eles tiverem
a intenção de acusá-lo por quaisquer de-
litos, então por boca de duas ou três tes-
temunhas, toda questão será decidida. A
exigência de que as acusações devem ser
apoiadas por duas ou três testemunhas
é encontrada em Deuteronômio 19.15 e
foi incorporada por Jesus às suas instru-
ções aos discípulos relativas à disciplina
da Igreja (Mt 18.16; v. também Jo 8.17;
lTm 5.19; Hb 10.28; 110 5.8).
2-4 Paulo também os adverte de que,
uma vez que eles estão exigindo provas de
que Cristo esteja falando por meio dele,
quando ele chegar, eles terão as suas pro-
vas. Não será o tipo de prova que eles es-
peram (visões e revelações, sinais e mara-
vilhas etc.); em vez disso, será o exercício
do poder de Cristo de disciplinar os trans-
gressores. Ele os faz lembrar que Cristo
foi crucificado em fraqueza, contudo, vive
pelo poder de Deus, e que ele, Paulo, do
mesmo modo, embora fraco, irá tratá-los
com o poder de Deus.
5,6 Os coríntios podem ter em mente
fazer algumas acusações contra ele e tes-
tar as suas reivindicações de ser um ver-
dadeiro apóstolo, mas aqui Paulo lhes diz
que se examinem a si mesmos para ver se
realmente estão na fé. Ele os lembra de
que Jesus Cristo está neles (com todas as
implicações morais do fato; cf 1Co 3.16;
6.19,20), ou seja, a menos que reprovem
no teste! Paulo diz então: Mas espero re-
conheçais que não somos reprovados. Isso
de certo modo é surpreendente, pois o con-
texto nos leva a prever que a esperança de
Paulo era a de que os coríntios seriam os
que passariam no teste. A explicação é que
2CORíNTIOS 13
ao se examinarem a si mesmos e chegarem
à conclusão de que eles estão firmes na
fé, os coríntios também reconhecerão que
Paulo não reprovou no teste. Se eles estão
na fé e Cristo neles, isso ocorre em virtude
do que receberam por meio do ministério
de Paulo, o que, por sua vez, prova que ele
é um apóstolo verdadeiro, alguém que foi
aprovado no teste.
7-9 A oração de Paulo pelos coríntios
é para que eles não façam mal algum. Sua
preocupação é pelo bem-estar dos corín-
tios e não pela sua própria reputação. Sua
afirmação de que ele nada poderia contra a
verdade, se não em favor da própria ver-
dade é mais bem entendida no sentido de
que ele nunca poderia agir de uma forma
contrária ao evangelho ou às suas implica-
ções morais.
10 Paulo resume o propósito da sua
carta: Escrevo estas coisas, estando ausen-
te, para que, estando presente, não venha
usar de rigor segundo a autoridade que o
Senhor me conferiu para edificação e não
para destruir. Nos cp. 10-13 Paulo amea-
çou repetidamente usar sua autoridade de
forma severa (10.5,6,11; 12.20; 13.1-4); no
entanto, o que ele diz aqui deixa claro que
ele esperava o tempo não precisar chegar
a esse ponto (cf 10.2; 12.19-21). Assim,
podemos dizer que o propósito dos cp.
10---13 era relembrar os coríntios da sua
lealdade a Paulo e seu evangelho, e assim
evitar que ele utilizasse severidade no uso
da sua autoridade para com eles.
13. 11-13 Apelo e saudações finais
O encorajamento final de Paulo aos seus
leitores é: Aperfeiçoai-vos, consolai-vos,
sede do mesmo parecer, vivei em paz. No
contexto isso significa que eles deveriam
rejeitar o evangelho diferente apresentado
pelos seus adversários (lIA), reconhecer as
reivindicações legítimas do apostolado de
Paulo (10.13-18; 11.21-23; 12.11-13), em-
penhar-se para que nenhuma prática imoral
fosse permitida no seu meio (12.19-21) e
viver em harmonia uns com os outros.
2CORíNTIOS 13 1812
13.14 A bênção
A súplica final pelas bênçãos de Deus é
especialmente significativa porque este é
o único lugar no NT em que Deus o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são explicitamente
mencionados juntos em uma bênção. Paulo
destaca a graça do Senhor Jesus Cristo
(cf 8.9), o amor de Deus (demonstrado de
forma sublime quando reconciliou consigo
o mundo em Cristo; cf5.18-21) e a comu-
nhão do Espírito Santo (isto é, a participa-
ção no Espírito Santo por ser o seu templo,
e a participação na comunhão dos crentes
criada por ele).
Colin G. Kruse
 GÁLATAS
INTRODUÇÃO
o significado da carta
A carta aos Gálatas trata diretamente da
questão teológica mais fundamental en-
frentada pela primeira geração cristã:
Como o evangelho de Jesus Cristo afeta a
divisão judeus/gentios? Os primeiros cris-
tãos eram judeus, e no começo eles pres-
supunham que a natureza especial de sua
nação, e, portanto, as observâncias cerimo-
niais associadas a ela, teriam continuidade.
Quando os gentios, em grande quantidade,
começaram a receber o evangelho, essas
pressuposições foram questionadas, e foi
necessário um período prolongado de re-
flexão, ajustes e tensões para que se com-
preendessem os propósitos de Deus para
os judeus e os gentios.
Nenhum documento é mais importan-
te para desvelar essas lutas e tensões do
que a carta de Paulo às igrejas da Galácia.
Os cristãos dessa região tinham se torna-
do objeto de intenso zelo missionário de
certos "judaizantes" que estavam conven-
cidos de que o evangelho não descartava
as cerimônias judaicas e que, portanto, os
gentios cristãos tinham de se tornar judeus
se quisessem receber as promessas de
Deus dadas a Abraão. (Originariamente
a palavra grega "judaizar" era usada para
descrever a adoção das práticas judaicas
pelos gentios convertidos ao judaísmo).
Motivados por argumentos judaizantes,
esses gálatas, que tinham sido primeira-
mente evangelizados por Paulo, come-
çaram a observar as cerimônias judaicas.
O apóstolo percebeu que essa mudança
de rumo minava o evangelho da graça
exatamente na sua essência. Sua carta a
eles revela as mais profundas convicções
de Paulo.
Na medida em que desenvolve os seus
argumentos em resposta ao ensino dos ju-
daizantes, o apóstolo toca numa varieda-
de de questões fundamentais, tais como a
natureza da autoridade apostólica, a justi-
ficação pela fé, a promessa abraâmica, a
posição de Cristo como Filho de Deus, o
papel da lei de Moisés, a liberdade, a obra
do Espírito Santo e a santificação. Não é
de admirar que essa carta tenha tido papel
dos mais importantes em toda a história
da igreja, mais notavelmente no tempo da
Reforma no século XVI, quando Martinho
Lutero se apoiou de forma decisiva em
Gálatas para atacar a doutrina da salvação
da igreja católica. Embora o foco exato da
controvérsia entre Paulo e seus oponentes
- deveriam os gentios ser circuncidados?
- possa parecer uma preocupação distante
da maioria dos cristãos depois do primeiro
século, a questão central não é nada me-
nos do que a base do nosso relacionamento
com Deus. A resposta dada pelos judaizan-
tes, na superfície, chamou atenção para as
cerimônias judaicas, mas seu compromisso
mais profundo - dependência da "carne"
e não do Espírito - pode se expressar de
outras formas.
Afirmam alguns estudiosos modernos
que essa denominada compreensão pro-
testante de Gálatas é inválida. No entanto,
embora Martinho Lutero e outros reforma-
dores possam ter omitido algumas nuanças,
eles não estavam enganados ao enxergar
nessa carta a resposta de Deus para as ques-
tões dos seus dias. Não importa o que mais
Gálatas nos ensine, certamente nos conta
em linguagem clara e vigorosa que nossa
posição correta diante de Deus só pode ser
um ato de graça recebida por meio da fé
GÁLATAS 1814
em Cristo. Nenhum rito eclesiástico e ne-
nhum esforço humano podem estabelecer
a nossa justificação. Ao contrário, "o justo
viverá pela fé" (3.11).
Contexto histórico
Com relação a algumas questões históricas
concernentes a Gálatas, há poucas dúvidas.
Poucos estudiosos questionam, por exem-
plo, que Paulo foi o seu autor. Repetindo,
o texto deixa bem claro que alguns indi-
víduos estavam incitando à sedição espi-
ritual na comunidade da Galácia ao pregar
um evangelho falso que pressionava os
crentes gentios a observar cerimônias ju-
daicas, particularmente a circuncisão (1.7-
9; 5.2,3,7-12; 6.12,13). Por outro lado, há
debates consideráveis acerca da data, dos
receptores e da exata ocasião da composi-
ção dessa carta tão importante.
Muitos estudiosos hoje identificam os
receptores da carta como as igrejas funda-
das por Paulo e Barnabé em Icônio, Listra
e Derbe (At 14.1-23). Estavam localiza-
das na parte sul da provincia romana da
Galácia, no interior da Ásia Menor (a atual
Turquia). O nome dessa província vem
de uma região ao norte, onde a raça dos
gálatas (originariamente Gália) tinha se as-
sentado, e uma minoria defende o ponto de
que as igrejas em questão estavam locali-
zadas nessa região - uma opinião que afe-
ta a data da carta. Esse grupo busca apoio
em Atos 16.6 para o ponto de vista de que
Paulo fundou algumas igrejas aí, mas esse
texto é ambíguo, na melhor das hipóteses,
e outras evidências não são sólidas.
Uma questão mais complicada, porém
relacionada, tem que ver com a fixação da
data em que a carta foi escrita. O ponto bá-
sico do debate é se Paulo escreveu Gálatas
antes ou depois do chamado Concílio
Apostólico em Jerusalém. Esse evento,
registrado em Atos 15, é datado pela maio-
ria dos estudiosos em 49 d.C. (certamen-
te não antes de 48). Paulo aparentemente
faz referência a esse concílio em Gálatas
2.1-10, mas muitos têm argumentado que
essa descrição é conflitante com a narra-
tiva de Atos, especialmente porque deixa
de mencionar o decreto registrado em Atos
15.22-29.
Alguns eruditos evitam o problema ao
argumentar que Gálatas foi escrito antes
do concílio. (Esse argumento pressupõe
que a carta foi escrita a igrejas na parte sul
da província. O ponto de vista de que as
igrejas em questão estavam localizadas no
norte impede essa datação, visto que Paulo
não evangelizou a região norte senão após
o concílio). De acordo com essa datação
precoce, Gálatas 2 não conflita com Atos
pela simples razão de que no tempo em
que foi escrita a carta o concílio não tinha
ocorrido ainda. Os comentários de Paulo,
portanto, necessariamente são uma refe-
rência a um encontro diferente (provavel-
mente o que é descrito em Atos 11.29,30).
Para outros estudiosos, essa solução pare-
ce muito fácil, especialmente em vista das
fortes semelhanças entre Atos 15 e Gálatas
2. É possível argumentar que ambos os tre-
chos se refiram ao mesmo evento e que as
diferenças possam ser explicadas ao se re-
conhecer as perspectivas tão diferentes dos
dois autores. De acordo com essa opinião,
Gálatas deve ter sido escrito depois de 49
d.C., e a data preferida está aproximada-
mente na metade da década de 50, enquan-
to Paulo estava em Éfeso durante sua ter-
ceira viagem missionária.
A controvérsia acerca da data de Gálatas
não é um mero jogo acadêmico. Algumas
sutilezas acerca do significado da carta -
sem falar de questões maiores concernentes
à história da igreja primitiva - são de fato
afetadas pela perspectiva que se tem da re-
lação da carta com o concílio de Jerusalém.
Este comentário pressupõe que Gálatas foi
escrita na metade da década de 50. Não
obstante, visto que não é possível obter
certeza sobre a questão, não seria sábio in-
terpretar a carta de forma tal que dependes-
se seriamente de quando ela é datada. Em
particular, precisamos fazer esforços para
não oferecer explanações cruciais que se
 1815 GÁLATAS

A situação da Galácia
GÁLATAS
tomariam inválidas caso adotássemos um
contexto histórico alternativo. Felizmente,
a ênfase principal do argumento de Paulo
está suficientemente claro e não gira em
tomo da nossa capacidade de identificar o
contexto com precisão.
Propósito e estrutura
Qual é, então, o argumento de Paulo? O
apóstolo é muito franco quando afirma que
foi motivado a escrever a carta porque os
gálatas estavam no processo de desertar o
evangelho (1.6,7). Eles de fato tinham re-
tomado a práticas ritualistas que lembra-
vam as suas antigas experiências pagãs
(4.9,10).
Visto que os indivíduos que estavam
causando os problemas na Galácia pare-
cem ter minado a autoridade de Paulo, o
apóstolo dedica a primeira seção principal
da sua carta à defesa da origem divina do
seu evangelho (cp. 1-2; v. especialmente
1.1,11,12; 2.6-9). Nos dois capítulos se-
guintes, recorrendo ao próprio AT, ele de-
monstra que a promessa de Deus a Abraão
é recebida, não pelas obras da lei, mas pela
fé (cf 3.6-14). Finalmente, ele considera,
nos cp. 5-6, que é necessário formular as
implicações práticas desse evangelho da li-
berdade (v. especialmente 5.13-26). Esses
três assuntos, no entanto, são subservientes
a um grande propósito do apóstolo: impe-
dir que os gálatas abandonem o evangelho
da verdade e se tomem apóstatas.
A estrutura tríplice esboçada acima
reflete uma forma comum e tradicional
de ler Gálatas. Estudos recentes, sem ne-
cessariamente descartar essa perspectiva
básica, têm tentado definir mais precisa-
mente a natureza literária da carta ao exa-
minar as técnicas retóricas da Antiguidade.
ESBOÇO
1.1-10 Introdução
1.1-5 Abertura
1.6-10 Ocasião
1816
Alguns estudiosos consideram Gálatas um
discurso "apologético" (algo como uma
defesa jurídica), enquanto outros conside-
ram a carta uma "deliberação" (que tem a
intenção de persuadir uma plateia a fazer
algo). Outra perspectiva, focalizando mais
na estrutura da carta do que nos discursos,
considera Gálatas uma carta que consiste
em duas partes, uma seção de repreen-
sões (1.6-4.11) e uma seção de petições
(4.12-6.10).
Outras sugestões têm sido propostas
por especialistas nesse campo, e as per-
cepções da pesquisa sociológica e antropo-
lógica fazem ainda outras contribuições à
nossa compreensão da forma em que Paulo
elabora a sua argumentação. Visto que
ainda não se atingiu um consenso acerca
dessas questões, este comentário usa um
esboço tradicional para indicar a estrutura
da lógica do apóstolo. Independentemente
do padrão literário que possa ter influen-
ciado a escrita de Paulo, é muito importan-
te interpretar cada versículo ou trecho no
contexto dessa lógica. (V. também artigo
"Lendo as cartas").
Leitura adicional
STOTT, J. R. W. A mensagem de Gálatas.
BFH. ABD, 1989.
HANSEN, G. W. Galatians. IVPNTC. Inter-
Varsity Press, 1994.
COLE, R. A. Galatians. TNTC. Inter-Varsity
Press/DK/Eerdmans, 1989.
GUTHRIE, D. Gálatas: introdução e comen-
tário. SCB. Vida Nova, 1984.
LONGENECKER, R. N. Galatians. WBC.
Word,1990.
BRUCE, F. F. Commentary on Galatians.
NIGTC. Eerdmans, 1982.
 1817 GÁLATAS 1

1.11-2.210 apostolado de Paulo

1.11,12 Proposição principal
1.13-24 Evidências concretas
2.1-21 Dois casos especiais

3.1-4.31 O evangelho de Paulo

3.1-5 Apelo inicial
3.&-4.7 Argumentos básicos
4.8-31 Mais apelos

5.1-6.10 Ordens de Paulo

5.1-12 Com respeito à circuncisão
5.13-26 Com respeito ao amor
6.1-10 Com respeito às cargas

6.11-18 Epílogo . . _

COMENTÁRIO é que os receptores são descritos em ter-

1.1-10 Introdução
Em todas as suas cartas, o apóstolo começa
com uma seção introdutória, que normal-
mente inclui uma saudação inicial e uma
oração de gratidão. Essas introduções, em
diversos graus de intensidade, contêm pis-
tas das preocupações de Paulo. Esse certa-
mente é o caso em Gálatas, assim devemos
prestar atenção especial em seus aspectos
distintivos. Ver também o artigo "Lendo
as cartas".
1.1-5 Abertura
Uma leitura superficial desses versículos
iniciais poderia sugerir que temos aqui
somente mais um exemplo das saudações-
padrão de Paulo, embora talvez com leves
acréscimos ou variações. O formato básico
é por demais conhecido: começa denomi-
nando o autor no v. 1 (Paulo, apóstolo);
depois os receptores são identificados no
v. 2 (às igrejas da Galácia); finalmente, a
saudação característica de Paulo está no
v. 3 (graça [...] e paz ...).
Uma segunda olhada, no entanto, deixa
claro que essa abertura é bem incomum e
que serve como uma pista importante para
a natureza distintiva de Gálatas. Uma razão
mos muito secos; em outras cartas, Paulo
se dirige aos seus leitores como "santos"
ou usa uma expressão equivalente. O sig-
nificado dessa sutil omissão se tomará cla-
ro no v. 6.
O leitor deve observar também como
é substanciosa essa abertura em compa-
ração com as outras cartas. (Somente em
Romanos, em que Paulo tinha de explicar
a sua mensagem a uma igreja que não o
conhecia, encontramos uma introdução
mais longa). Especialmente significativo
é o teologicamente carregado v. 4. Aqui
Paulo destaca o sacrifício que Cristo fez
de si mesmo, um tema que prenuncia di-
versas mensagens de grande impacto (e.g.,
2.20,21). Ele também toca a tecla da liber-
tação, que reflete a sua grande preocupa-
ção com o contraste entre a escravidão e a
liberdade. Essa libertação recebe uma forte
coloração escatológica (i.e., associada ao
fim dos tempos). Ao ressaltar [este] mundo
perverso, Paulo lembra os seus leitores de
que a redenção trazida por Cristo dá início
a uma era nova como o cumprimento das
promessas de Deus. Finalmente, o após-
tolo afirma que a vontade de Deus está
por trás desses eventos. Os gálatas preci-
sam reconhecer que essa mensagem não é
GÁLATAS 1
invenção de Paulo: se eles a rejeitam
estão rejeitando o plano divino. Em todo o
caso, a grandeza da obra de Cristo conduz
à doxologia (uma expressão de louvor) no
v. S, algo ausente na abertura de todas as
outras cartas.
A característica distintiva mais impor-
tante na abertura, no entanto, está no v. 1,
em que Paulo interrompe a sequência da
sua saudação para fazer uma negação en-
fática: o seu apostolado não tem origem
humana, mas divina. Alguns indivíduos
estavam claramente questionando a auto-
ridade de Paulo para falar como apóstolo
de Cristo. A natureza precisa dessas acu-
sações é uma questão debatida entre os
estudiosos, mas possivelmente ele estava
sendo acusado de pregar uma mensagem
peculiar que estava contradizendo o en-
sino da igreja em Jerusalém. Paulo vai
tratar desse assunto mais diretamente a
partir do v. 11.
1.6-10 Ocasião
Qualquer pessoa familiarizada com as car-
tas de Paulo às igrejas esperaria encontrar
uma declaração de gratidão imediatamente
após a saudação (no caso de 2Coríntios e
Efésios: "Bendito o Deus ..."). Não somen-
te estão faltando essas ações de graças,
mas Paulo na verdade as substitui por uma
repreensão: Admira-me que estejais pas-
sando tão depressa daquele... (6). Essa ca-
racterística é uma indicação muito impor-
tante na avaliação da natureza de Gálatas.
A abertura já tinha nos alertado para algo
incomum nessa carta, mas agora percebe-
mos como era séria e urgente a situação
que Paulo precisava tratar.
Ao descrever o desvio dos gálatas, o
apóstolo usa uma linguagem de deserção
militar (6) e disputa política: há alguns que
vos perturbam (7; o mesmo verbo é usado
em S.IO; At IS.24; 17.8 ["ficaram agita-
das"],13). O seu foco é bem específico: os
gálatas estão no processo de abandonar o
ensino da graça que é essencial ao evan-
gelho. Com isso, no entanto, ele não quer
1818
dizer uma mera mudança intelectual. A
ação deles é intensamente pessoal: eles
estão de fato abandonando aquele que pela
sua graça os chamou a si mesmo. Essa
ideia dupla de separação tanto da graça
quanto de uma pessoa ocorre explicita-
mente em S.4: "De Cristo vos desligastes,
vós que procurais justificar-vos na lei; da
graça decaístes". Em vista dessas palavras,
certamente a nossa leitura de Gálatas pre-
cisa ser mais do que um exercício histórico
ou intelectual. Todos os leitores dessa carta
são confrontados com questões que afetam
o seu destino eterno.
Um fator complicador observado por
Paulo, no entanto, era que o erro em que
os gálatas estavam caindo não era simples-
mente o resultado de uma fraqueza entre os
crentes. Tinha uma origem externa. Certos
cristãos judeus, descontentes com a forma
em que Paulo convidava crentes dentre
os gentios a virem livremente a Deus, ti-
nham começado a visitar as igrejas que ele
tinha estabelecido. O propósito deles era
"judaizar" esses crentes gentios; persua-
di-los de que, depois de crerem em Cristo,
eles precisavam dar um passo a mais e
se tomar judeus por meio da circuncisão
(v. Introdução).
O apóstolo não considerava esses ju-
daizantes simplesmente cristãos mal-orien-
tados e enganados, mas perigosos falsos
mestres. A mensagem deles não era de for-
ma alguma o evangelho, mas o seu oposto.
A sua missão, aliás, era tão destrutiva que
Paulo se viu obrigado a usar as palavras
mais severas de todas as suas cartas: co-
locou um anátema sobre qualquer pessoa
que pregasse um evangelho diferente do
que aqueles que os gálatas tinham ouvi-
do e recebido dele. A palavra anátema
(usada também em lCo 12.3; 16.22; e es-
pecialmente em Rm 9.3, que faz lembrar
Êx 32.32) é uma referência à própria mal-
dição de Deus, e assim a NIV (em inglês)
traduz adequadamente por: "seja ele eter-
namente condenado" (8,9); a NVI traz: "que
seja amaldiçoado!".
 1819
Essa linguagem tão forte certamente
chocou os seus leitores, e assim, no v. 10,
ele justifica a sua reação ao chamar atenção
aos seus motivos. Evidentemente, os judai-
zantes o haviam acusado de pregar a cir-
cuncisão quando lhe convinha, como que
para obter a aprovação humana (cf 5.11).
Paulo nega veementemente que ele tenha
qualquer outro motivo a não ser agradar a
Deus; se não fosse assim, já não poderia
ser considerado servo de Cristo. Em todo o
caso, o simples fato de que tinha colocado
uma maldição sobre os judaizantes deveria
convencer os gálatas de que as suas ações
dificilmente eram motivadas pelo desejo
de não ofender pessoas. Lightfoot parafra-
seia o v. 10 desta forma: "Vocês me acu-
sam de uma política de conciliação. Sim,
eu concilio a Deus" (1. B. Lightfoot, Saint
Paul s Epistle to the Galatians, 10.ed.
[Macmillan, 1898], p. 79).
1.11-2.21 O apostolado
de Paulo
Tem sido dito que nessa carta Paulo se vê
obrigado a defender-se a si mesmo antes
de defender o seu evangelho. Há uma me-
dida de verdade nessa análise. Os ataques
à sua mensagem de liberdade para os gen-
tios estavam inextricavelmente vinculados
às questões que tinham sido levantadas
acerca da sua autoridade apostólica. Por
que é que os gálatas deveriam dar ouvidos
a ele? Por outro lado, seria um engano con-
siderar os cp. 1-2 uma defesa meramente
pessoal. As observações autobiográficas
estão sempre subordinadas ao seu propó-
sito primário de estabelecer "a verdade do
evangelho" (2.5,14).
1. 11,12 Proposição principal
Aqui, como em 1Coríntios 15.1 e2Coríntios
8.1, Paulo começa uma seção nova e im-
portante com o uso do verbo "fazer conhe-
cido" (gnõrizõi, que confere um tom um
tanto formal, quase solene, a essa afirma-
ção. É interessante que o trecho paralelo
em 1Coríntios 15 introduza o comentário
GÁLATAS 1
de que ele "recebeu" as verdades básicas
do evangelho (v. 3), ao passo que aqui em
Gálatas ele destaca o oposto, o que mos-
tra que o seu foco é um tanto diferente. A
expressão o evangelho por mim anunciado
(lI) pode ser significativa; em virtude do
seu ministério singular entre os gentios,
a sua pregação teve certa característica
distintiva (observe "meu evangelho" em
Rm 2.16) que atraía uma oposição particu-
larmente forte por parte dos judaizantes.
O que segue é uma negação tríplice,
confirmando - se é que havia alguma dú-
vida a respeito - de que Paulo está res-
pondendo a algum tipo de acusação acerca
da natureza da sua mensagem. A primeira
dessas negativas é formulada literalmen-
te: "não é de acordo com o homem". É
uma negação geral, claramente explicada
pelas duas negações seguintes: visto que
nenhum homem lhe deu nem lhe ensinou
(nem o aprendi) esse evangelho, este cla-
ramente não tem origem humana. O ponto
é esclarecido ainda mais pela locução con-
trastante: "mas por uma revelação de Jesus
Cristo" (lit.), que pode significar ou que
Cristo foi a origem da revelação (de Jesus
Cristo, como a ARA aqui) ou, mais prova-
velmente, que o próprio Cristo foi revelado
a ele (como no v. 16).
1.13-24 Evidências concretas
Paulo agora avança para provar a sua ale-
gação. A prova parece consistir em duas
partes principais. Em primeiro lugar, ele
precisa apresentar evidências para a alega-
ção propriamente dita (1.13-24): ele preci-
sa mostrar que nos anos formativos do seu
ministério ele não recebeu treinamento dos
apóstolos. Em segundo lugar, ele precisa
tratar de dois eventos subsequentes que
provavelmente tinham sido usados pelos
judaizantes como evidências contra ele
(2.1-21).
1.13,14 Antes da sua conversão. Aqui
o apóstolo ressalta que sua experiência pré-
cristã foi marcada por duas características
que são incompatíveis com seu ministério
GÁLATAS 1
presente. Em primeiro lugar, ele estava
completamente comprometido com a per-
seguição dos cristãos e com o extermínio
da igreja (um aspecto que nos é relatado
em detalhes em At 9). Em segundo lugar,
ele estava totalmente devotado ao farisaís-
mo. A expressão tradições dos meus pais
provavelmente se refere não somente aos
ensinos gerais do judaísmo, mas mais es-
pecificamente ao que é também conhecido
como a lei oral, um extenso conjunto de re-
gulamentações que distinguiam os fariseus
dos outros grupos judaicos (cf também
Mc 7.1-13; Fp 3.4-6).
Por que Paulo menciona essas coisas?
Uma resposta comum é que elas provam
que Paulo não obteve o seu evangelho
dos mestres judeus. Mas quem teria afir-
mado que foi isso que havia acontecido?
Certamente não os judaizantes! De certa
forma, essa informação apoia a reivindica-
ção de Paulo de falar com alguma autori-
dade sobre a natureza do judaísmo. Parece
provável, no entanto, que esses versículos
estejam menos direcionados a ser uma pro-
va independente e mais a ser um preparo
para o que ele vai dizer em seguida. Em
outras palavras, sua vida antes mostra a ne-
cessidade que ele tinha de uma conversão
drástica. Somente uma intervenção divina
e graciosa pode explicar a mudança que
lhe sobreveio.
1.15,16a A revelação. Nessa descri-
ção vigorosa e convincente de como Deus
agiu na sua vida, Paulo alude às palavras
do próprio Deus a Jeremias: "Antes que
eu te formasse no ventre materno, eu te
conheci, e, antes que saísses da madre,
te consagrei, e te constituí profeta às na-
ções" (Jr 1.5; cf. também ls 49.1-6). Há
pouca dúvida de que Paulo pensava no seu
próprio ministério não meramente como
comparável ao de Jeremias, mas, mais do
que isso, como integralmente relaciona-
do à obra dos profetas do AT, e, de certa
forma, como a sua culminação. Agora
finalmente a mensagem da salvação está
rompendo todas as barreiras nacionais. A
1820
luz raiou nas terras dos gentios, dos quais
os gálatas fazem parte.
Especialmente significativo, no entan-
to, é o acúmulo surpreendente de termos
nos v. 15,16 que chamam a nossa atenção
para a iniciativa soberana e benevolente de
Deus: aprouve (primeiro verbo no gr.); me
separou antes de eu nascer; me chamou;
graça; revelar. Essa forte ênfase na vonta-
de predestinadora de Deus tem a intenção
de não deixar dúvida alguma acerca da ori-
gem divina do evangelho que Paulo estava
pregando. Em particular, não são os seus
esforços pessoais, mas somente a agência
de Deus que é responsável pelo seu oficio
apostólico.
1.16b-24 Depois da sua conversão.
O ponto dessa paráfrase está claro. Paulo
quer estabelecer que nos primeiros anos do
seu ministério, durante os quais as marcas
distintivas da sua pregação estavam sendo
formadas, ele não esteve sob influência
prolongada dos outros apóstolos. Ele nos
conta que sem detença (imediatamente)
após a sua conversão, em vez de consultar
carne e sangue (uma expressão que cha-
ma a atenção para a fragilidade dos seres
humanos), ele passou três anos na Arábia.
A região em questão, que era governada
pelos nabateus, pode ter incluído a cidade
de Damasco na época (cf At 9.19-22). Em
todo o caso, o ponto de Paulo é que ele não
passou por um período de instrução sob os
apóstolos de Jerusalém. Quando finalmen-
te retornou a Jerusalém, o seu contato com
Pedro foi muito limitado, e a única outra
figura importante que ele encontrou foi
Tiago, o irmão do Senhor. A limitação da
sua exposição à igreja primitiva na Judeia
é confirmada pelo fato de que pouquíssi-
mas pessoas o conheciam pessoalmente
- embora estivessem bem informadas da
sua conversão, um motivo para glorificar
a Deus.
É importante observar a seriedade do
argumento de Paulo. No v. 20, ele chega
ao extremo de fazer um juramento (diante
de Deus) para dizer que o seu testemunho
 1821
é verdadeiro. Isso é uma indicação clara
de que Paulo estava respondendo a algu-
mas acusações específicas. Sem dúvida, os
judaizantes estavam espalhando histórias
segundo as quais ele tinha sentado sob a
instrução completa e elaborada dos após-
tolos de Jerusalém como um discípulo nor-
malmente faria sob a direção de um rabino.
É importante observar, também, que com
o v. 24 Paulo concluíu o seu argumento.
Durante os primeiros 14 (possivelmen-
te 17) anos do seu ministério, quando foi
estabelecida a natureza da sua mensagem,
ele não teve a oportunidade de ser treinado
por fonte humana.
2.1-21 Dois casos especiais
Tendo estabelecido que os seus primeiros
contatos com os discípulos não podiam ex-
plicar e justificar o seu apostolado, Paulo
agora trata de duas questões específicas
que podem ter sido levantadas pelos seus
oponentes.
2.1-10 Concílio em Jerusalém. Visto
que esse trecho é de grande importância
para a reconstrução da história da igreja
cristã, os estudiosos do NT têm dado mui-
ta atenção a ele. Argumentos detalhados
e técnicos têm sido desenvolvidos, volta-
dos especialmente à determinação de se
a ocasião a que Paulo se refere é a visita
registrada em Atos 11.29,30 ou o conhe-
cido Concílio Apostólico em Atos 15 (v.
Introdução).
Em meio a esse debate, é fácil perder
de vista a pergunta principal: qual é o pon-
to da narrativa? Há boas razões para se crer
que Paulo está respondendo a uma acusa-
ção dos judaizantes que pode ter sido mais
ou menos esta: "Em algum ponto do seu
ministério, Paulo foi requisitado a parti-
cipar de um encontro em Jerusalém, a se
submeter aos Três (Tiago, Pedro e João)
e a concordar em obedecer às instruções
deles, como fica provado pela sua dispo-
sição em coletar fundos para os cristãos
na Judeia". Se esse é o caso, Paulo talvez
esteja tratando desse incidente, não por-
GÁLATAS 2
que ele sinta obrigação de registrar todos
os contatos que teve com os apóstolos de
Jerusalém (esse aspecto do seu argumento
foi concluído no final do cp. 1), mas antes
porque os seus oponentes tinham levanta-
do esse aspecto e fizeram mau uso dele.
Em outras palavras, Paulo precisa esclare-
cer e corrigir as coisas.
O primeiro ponto a ser observado é a
ênfase de Paulo na razão e no propósito da
sua visita (2). A razão foi uma revelação:
não foi obediência a uma ordem humana,
mas sujeição a uma instrução divina. O
propósito foi informar os líderes acerca do
seu ministério e assim certificar-se de que
os seus esforços apostólicos não eram em
vão. Essa é uma observação extraordinária
(cf também Fp 2.16 e lTs 3.5, possivel-
mente uma alusão aIs 49.4), e nos revela
um pouco das tensões que certamente es-
tiveram presentes no concílio. Ao menos
do ponto de vista da experiência humana,
Paulo parece ter pensado que seria possível
que a igreja em Jerusalém pudesse tomar a
decisão errada e destruir o ministério aos
gentios. A confiança do apóstolo na von-
tade de Deus nunca se tomou presunçosa.
Ele entendeu a realidade do pecado e do
mal como também o peso da sua própria
responsabilidade. Embora estivesse certo
de que Deus cumpriria as suas promessas
e aperfeiçoaria a obra dele (Rm 8.28; Fp
1.6), esse fato não se tomou uma descul-
pa para passivamente "deixar Deus" tomar
conta do problema. Paulo estava disposto a
empregar todos os seus esforços para con-
cluir a corrida (cf pf3.12-14), mesmo que
sempre dependendo da operação de Deus
(Fp 2.12,13).
Em segundo lugar, observe que o
apóstolo é sincero acerca do conflito que
caracterizou o encontro (3-5). Havia lá na
igreja um "partido da circuncisão" ~ pes-
soas que Paulo considerava falsos irmãos,
cuja motivação real era minar a liberdade
espiritual que o evangelho proporciona.
Evidentemente querendo fazer do gentio
Tito um caso-teste, eles devem ter insistido
GÁLATAS 2 1822
em que ele fosse circuncidado. Paulo não
nos conta explicitamente o que foi a reação
inicial de Tiago, Pedro e João, mas há boas
razões para crer que esses líderes, preo-
cupados com a unidade da igreja, tenham
considerado fazer concessões ao partido
da circuncisão. Por causa do seu chamado
especial, no entanto, Paulo compreendia
de forma profunda as implicações do que
estava sendo discutido. As emoções devem
ter sido muito fortes, como sugere a sinta-
xe grega cortada e irregular desses versícu-
los. O apóstolo, em todo o caso, se negou
a ceder aos falsos irmãos, nem ainda por
uma hora [...] para que a verdade do evan-
gelho permanecesse entre os gentios. Em
resumo, os líderes não obrigaram Tito a se
submeter à circuncisão.
Em terceiro lugar, Paulo dedica meta-
de da sua narrativa relativa ao concílio de
Jerusalém à explanação do resultado do
concílio, expresso tanto negativa (6,10)
quanto positivamente (7-9). Em contraste
com as afirmações dos judaizantes, o fato
foi que os Três não impuseram mudanças
ao seu ministério e mensagem. É verdade,
esses líderes pediram a Paulo que mos-
trasse compaixão pelos pobres na Judeia,
mas esse pedido dificilmente era contrá-
rio ao seu ministério distinto, por isso ele
teve grande alegria em se submeter a isso.
(Pode bem haver uma conexão entre esse
pedido e a coleta que Paulo discute em
Rm 15.25-27 e 2Co 8-9). É digno de
nota, por falar nisso, de que Paulo não viu
conflito entre o seu ministério de pregação
e os seus esforços de suprir as necessida-
des físicas dos pobres.
Importância maior para esse ponto, no
entanto, teve o resultado positivo. Tiago,
Pedro e João lhe mostraram mútuo respei-
to e igualdade. Especificamente, reconhe-
ceram (conheceram) que Deus tinha dado
a Paulo um dom apostólico especial para
trabalhar entre os gentios. Havia um toque
de ironia nesse fato. O próprio Paulo não
apelaria aos Três como se dependesse da
autoridade deles (que não fazia diferença
alguma à legitimidade do seu ministério).
Os judaizantes, no entanto, que de fato ape-
laram a tal autoridade acabam sendo os que
violaram o acordo de Jerusalém por exigi-
rem que os gentios fossem circuncidados!
2.11-21 Conflito em Antioquia. Assim
como os judaizantes podem ter apelado
(equivocadamente) ao concílio de Jeru-
sa1ém por apoio às suas acusações, assim
também é possível que tenham tentado
destruir a reputação de Paulo ao exagerar
a disputa que surgiu na cidade gentílica de
Antioquia. Afinal, se Paulo tinha a ousadia
de repreender publicamente o grande após-
tolo Pedro, não era exatamente esse pro-
cedimento que provava que Paulo estava
fora de sintonia com a igreja de Jerusalém?
Essa não era a evidência mais clara de que
ele era um desertor desrespeitoso em quem
não se podia confiar?
Em resposta, Paulo dá primeiramente
um breve resumo do incidente (11-14).
Ele não nega que confrontou a Pedro,
mas também mostra por que aquilo foi a
única coisa certa a se fazer. O acordo de
Jerusalém de fato havia reconhecido uma
distinção entre o ministério aos judeus, que
podiam continuar praticando o judaísmo
mesmo depois de se tomarem cristãos, e
o ministério aos gentios, que não deviam
ser forçados a se tomar judeus. Mas esse
acordo não especificava o que deveria ser
feito em caso de conflito desses dois prin-
cípios. (Observe que os chamados decre-
tos mencionados em At 15.23-29 também
deixaram essa questão ambígua. Se esse é
o mesmo encontro ao qual Paulo se refere
em Gálatas, o problema em Antioquia po-
dia ser facilmente compreendido com base
nas orientações sugeridas aqui).
A comunhão à mesa suscitou preci-
samente esse conflito. Se o cristão judeu
sentasse para comer com os gentios, es-
taria em perigo de violar as leis cerimo-
niais concernentes aos alimentos. Por ou-
tro lado, se ele se negasse a comer com
eles, esse comportamento teria minado o
princípio de que os gentios deveriam ser
 1823
completamente aceitos como cristãos sem
se tomarem judeus. Ao não tratar desse
problema, os apóstolos aparentemente ti-
nham deixado a questão para a consciên-
cia do indivíduo. Claramente, os cristãos
judeus em Antioquia escolheram como um
todo comungar com os gentios, assim am-
pliando o significado do que os apóstolos
de Jerusalém tinham feito. Pedro, quando
visitou a cidade, achou adequado se en-
quadrar em tal situação, mas a chegada de
alguns indivíduos da parte de Tiago (12)
lhe apresentou um sério problema.
Não está claro de forma alguma como
era o relacionamento desses homens com
Tiago: foram eles de fato enviados por
Tiago, ou só alegaram que foram? Em todo
o caso, eram cristãos judeus que não tinham
de conviver com a presença dos gentios
dia após dia e assim não compreenderam
a situação em Antioquia. Naturalmente
teriam interpretado o comportamento de
Pedro como negação da identidade judai-
ca e talvez até como um tipo de apostasia.
Temendo o juízo deles e suas possíveis
consequências, Pedro começou a manter
distância dos gentios. Naturalmente, os
outros cristãos judeus o imitaram. Se evi-
tar os gentios tivesse sido uma caracterís-
tica do comportamento de Pedro desde o
início como uma questão de consciência, é
concebível que Paulo não lhe tivesse feito
objeção. Pedro, no entanto, anteriormente
já tinha mostrado que não tinha escrúpu-
lo algum em comer com os gentios. Seu
retraimento subsequente sugeriu que os
gentios não podiam ser completamente
aceitos como parte do povo de Deus. Em
certo sentido, ele os estava forçando a se
tomarem judeus (14).
"Tinha surgido uma séria crise. Mas
Deus não tinha abandonado a sua Igreja.
A Igreja foi salva pela instrumentalidade
de Paulo [...] A Paulo tinham sido reve-
ladas as totais implicações do evangelho;
para ele, a liberdade dos gentios era uma
questão de princípio, e quando um princí-
pio estava em jogo, ele nunca se calava"
GÁLATAS 2
(1. Gresham Machen, The Origin ofPaul 's
Religion [Macmillan, 1921], p. 102).
Coerentemente, Paulo tomou as medidas
extremas exigidas pela situação. Não era
que Pedro e Paulo estavam tendo uma
discordância doutrinária, como talvez os
judaizantes sugerissem (e como muitos
eruditos modernos afirmam); o que esta-
va ocorrendo era que a conduta de Pedro
era discordante dos seus princípios, como
Paulo passa a mostrar nos v. 15-21.
Em primeiro lugar, Paulo ressalta que
ele e Pedro, junto com todos os outros cris-
tãos judeus, ao depositar sua fé em Cristo,
tinham reconhecido que a lei judaica era
incapaz de tomá-los justos diante de Deus
(15,16). Se isso é verdadeiro, segue que os
judeus não são nada menos pecadores do
que os gentios, e que não contêm nada em
si mesmos que os tome recomendáveis a
Deus. Visto que Pedro reconhecia comple-
tamente esse fato, ele já não se opunha ao
afrouxamento das leis cerimoniais e assim,
poderíamos dizer, ele agiu como um "pe-
cador gentio" com relação às regras ali-
mentares e da comunhão à mesa (17a).
Em segundo lugar, Paulo nega que esse
abandono das observâncias judaicas faça
do evangelho de Cristo um instrumento do
pecado. Muito pelo contrário, seria uma
transgressão séria se Paulo, tendo coloca-
do de lado aquelas observâncias pelo evan-
gelho, seguisse a condução de Pedro e as
restabelecesse (17b, 18).
Em terceiro lugar, em uma de suas de-
clarações mais profundas da carta, Paulo
afirma que é a própria lei, paradoxalmen-
te, que o conduziu a esse curso de ação:
Porque eu, mediante a própria lei, morri
para a lei, a fim de viver para Deus (19).
Estou obedecendo à lei, insiste Paulo,
quando me separo dela! É a própria lei que
me orienta a derrubá-la. Como a lei faz
isso? Talvez o apóstolo tenha em mente o
fato de que Cristo veio debaixo da maldi-
ção da lei na cruz e que os cristãos morre-
ram com ele (cf: v. 20; 3.13; Rm 6.1-4). É
mais provável que ele esteja prenunciando
GÁLATAS 3 1824
o argumento de 3.19-25. Por meio da sua
restrição e condenação, a lei nos leva à fé
em Cristo, que, por sua vez, nos liberta da
maldição e do poder da lei.
Em quarto lugar, o apóstolo deixa cla-
ro e cristalino o que o motivou a falar de
forma tão dura (20,21). É o valor da morte
de Cristo, e, portanto, o princípio da gra-
ça, que estão em jogo. Se vivemos para
Deus, é somente porque fomos unidos com
Cristo crucificado (v. também 6.14). Ele se
deu por nós, e ele toma possível essa vida
de fé. Se os judaizantes estivessem certos
- se pudéssemos obter a justiça pela lei
- não haveria a necessidade da graça, e
o autossacrifício de Cristo teria sido um
desperdício.
3.1--4.31 O evangelho de Paulo
É debatido se o último parágrafo do capí-
tulo anterior (2.15-21) é um resumo das
palavras de Paulo a Pedro ou se o apóstolo
já mudou o seu foco e começou a falar aos
gálatas diretamente. Parece bem provável
que a seção reflita, ao menos em certa me-
dida, a fala de Paulo em Antioquia. Mas
mesmo que seja uma citação quase literal,
Paulo certamente tem em mente a necessi-
dade dos gálatas, e assim o parágrafo fun-
ciona como ponte para a seção central da
sua carta. Nos cp. 3 e 4, o apóstolo precisa
persuadi-los de que é a justiça pela fé, não
a observância da lei, que determina se eles
são verdadeiramente filhos de Abraão.
A argumentação doutrinária consiste
principalmente na longa seção que começa
em 3.6 (ou 3.7) e termina em 4.7. Tanto
o parágrafo introdutório (3.1-5 ou 3.1-6)
quanto a seção subsequente (4.8-20) pa-
recem apelos à própria experiência dos
gálatas, embora devamos evitar uma dis-
tinção acentuada demais entre os aspectos
intelectual e experiencial (e.g., 3.1-6 não
está isento de conteúdo doutrinário, en-
quanto 3.26-29 focaliza no que os gálatas
experimentaram em Cristo). Um parágra-
fo de conclusão (4.21-31) apela ao ensino
das Escrituras embora a argumentação de
Paulo aqui seja bem diferente da forma que
ele usa o AT em 3.6-14.
3. 1-5 Apelo inicial
A natureza fortemente pessoal do apelo
nesses versículos é evidente com base nas
palavras: Quero apenas saber isto de vós
(2). A reflexão de Paulo acerca da morte de
Cristo, e particularmente acerca do fato de
que a conduta dos gálatas é uma negação
do valor dessa morte (2.21), faz com que
ele rebente em uma bateria de perguntas
formuladas em tom emocional altamen-
te tenso (1,2,3a,3b,4a,5). Duas vezes ele
chama os gálatas de insensatos; o apóstolo
sugere que eles foram hipnotizados e estão
abandonando o Espírito. Em resumo, a ex-
periência está em perigo de ter sido inútil
apesar do fato de que pela proclamação
do evangelho eles viram Jesus crucificado
diante dos seus próprios olhos. (O verbo
traduzido por sofrestes no v. 4 pode ter o
significado mais geral de "experimentas-
tes" e assim ser uma referência às intensas
manifestações do Espírito).
É especialmente interessante observar
os contrastes com que Paulo trabalha nesse
trecho. Nos v. 2,5, ele faz a distinção en-
tre as obras da lei e a pregação da fé (Iit.
"o ouvir da fé"). A última expressão pode
ser traduzida de diversas formas, como: "o
ouvir que vem da fé", "o ouvir que é acom-
panhado pela fé" ou, preferencialmente: "a
mensagem que produz [ou suscita] a fé"
(v. expressão semelhante em Rm 10.17).
Embora essas formulações tenham ênfases
um tanto diferentes, todas transmitem a
mesma ideia central: há um forte contraste
entre a vida de observância judaica e o ato
de crer na mensagem do evangelho.
O mesmo contraste básico é expres-
so por Paulo de forma diferente no v. 3:
tendo começado no Espírito versus "ter-
minando na carne" (Iit.). A NVI traduz as-
sim a segunda expressão: "querem agora
se aperfeiçoar pelo esforço próprio". Essa
formulação capta de forma precisa a ideia,
mas obscurece o contraste entre as pala-
 1825
vras "carne" e "Espírito", que é um tema
recorrente na carta (v. notas de 4.23,29;
5.13,16-26; 6.8,12). O ponto que se deve
observar aqui é que Paulo está começando
a agrupar uma diversidade de termos que
constituem dois sistemas distintos e con-
traditórios. A um pertencem as obras da
lei, a carne, a escravidão, o pecado, a mor-
te; ao outro, a fé, o Espírito, a herança e a
promessa, a liberdade e a filiação, a justiça
e a vida. O primeiro grupo caracteriza este
mundo perverso (l.4); o segundo reflete a
vinda de uma nova época, a Jerusalém lá
de cima (4.26).
Ao dar ouvidos ao falso evangelho dos
judaizantes, os gálatas estavam negando a
sua própria experiência verificável de te-
rem recebido o Espírito com todo o seu po-
der e maravilhas. Eles precisam entender
que esse movimento é um passo para trás.
Em vez de viverem como filhos da época
por vir, eles regrediram para as coisas ele-
mentares deste mundo (cf 4.8-10).
3.6-4.7 Argumentos básicos
O apóstolo agora prossegue para lhes dar
um conjunto cuidadosamente elaborado
de argumentos que estão centrados no re-
lacionamento entre a promessa abraâmica
e a promulgação da lei. O v. 6 pode ser
considerado o final do parágrafo introdu-
tório ou o começo de um parágrafo novo.
De todo modo, serve como comentário-
ponte para realçar a questão real que os
gálatas enfrentam, isto é, como se tomar
filhos de Abraão. Visto que Paulo de-
monstra que a resposta não pode ser pela
observância da lei (3.4-14), surge outra
pergunta inevitável: Qual é, então, a fun-
ção da lei (3.15-25)?
3.6-14 A promessa abraâmica. A cita-
ção de Gênesis 15.6 se toma um fator-cha-
ve para Paulo, e ele vai usar esse texto de
novo em Romanos 4, em que ele amplia o
significado de Abraão. O ponto é simples:
Se Deus creditou justiça a Abraão porque
ele creu, então certamente os verdadeiros
filhos de Abraão são aqueles que creem
GÁLATAS 3
como ele creu (cf Rm 4.11,12). Além
disso, Paulo cita mais uma afirmação de
Gênesis que focaliza no significado da
vida de Abraão para os gentios: Em ti, se-
rão abençoados todos os povos (Gn 18.18;
22.18; cf Gn 12.3; 26.4; 28.14). É como
se o evangelho da liberdade pregado por
Paulo já estivesse sendo pregado muito
tempo antes da vinda de Cristo.
Tendo identificado a natureza do rela-
cionamento de Deus com Abraão (6-9), o
apóstolo prossegue agora para desenvolver
uma proposição negativa nos v. 10-14: a
justiça precisa vir pela fé e não pela lei, por-
que a lei não pode justificar. O argumento
central está nos v. 11,12, e é fundamentado
em duas citações, uma de Habacuque e ou-
tra de Levítico. A referência a Habacuque
2.4 geralmente é formulada (como na NVI):
o justo viverá pela fé. (A formulação grega
de Paulo, mas não o texto correspondente
no AT hebraico, também pode ser traduzido
por: "o justo pela fé viverá"). Esse trecho é
fundamental para o ensino de Paulo. Aliás,
essa citação serve exatamente como o tema
a partir do qual é desenvolvida a carta aos
romanos (Rm 1.16,17).
Visto que o texto hebraico é mais na-
turalmente traduzido por: "O justo viverá
pela sua fidelidade", alguns têm argumen-
tado que Paulo esteja usando equivoca-
damente o AT, que parece estar frisando
a obediência à lei de Deus. No entanto,
Habacuque 2.4 é em si mesmo uma alu-
são muito clara a Gênesis 15.6 (ambos os
trechos usam as raízes-chave do hebrai-
co para os termos justiça e fé/fidelidade).
O profeta pode ter tido em mente toda a
vida "cheia de fé" que Abraão levou, in-
clusive a disposição do patriarca para sa-
crificar Isaque, mas certamente essa vida
precisa ser vista como uma expressão do
ato inicial de fé. Embora no cp. 3 Paulo
não desenvolva as implicações éticas da
fé, está claro com base em 5.13-6.10 (e
em Rm 6-8) que ele considerava a vida
obediente (fidelidade) algo inseparável da
fé que justifica. O apóstolo não está usando
GÁLATAS 3 1826
Habacuque 2.4 para propósitos que contra-
digam o texto originário. Até poderíamos
argumentar que sua teologia de fé e justiça
resultou da dependência de Habacuque do
padrão abraâmico,
É problemática também a forma em
que Paulo parece colocar Habacuque 2.4
em oposição a Levítico 18.5: Aquele que
observar os seus preceitos por eles vive-
rá, com a inferência de que a lei não pro-
cede da fé (lit. "a lei não é da fé"). Sem
dúvida, o apóstolo reconhece o contraste
básico entre a administração mosaica e o
ministério do evangelho (cf 2Co 3.6-18).
Mas isso significa que ele enxerga a lei
em si mesma como oposta ao princípio da
fé? Certamente que não, como o próprio
contexto do cp. 3, particularmente o v. 21,
deixa claro. O foco de todo esse trecho é a
função da lei para a obtenção da herança
abraâmica, justiça e vida (v. especialmente
v. 18). A lei de fato contradiria o princípio
da fé se o propósito da lei fosse justificar.
Em outras palavras, eram os próprios ju-
daizantes (muito provavelmente recorren-
do a Lv 18.5 para defender a sua posição)
que colocaram lei e promessa em oposição
ao dizer aos gentios que para receber a pro-
messa abraâmica eles precisavam se sub-
meter às observâncias da lei.
Em todo o caso, Paulo usa o contraste
entre esses dois textos (Hc 2.4 e Lv 18.5)
como prova de que a lei não pode prover
a justiça. O argumento é refinado ainda
mais, no entanto, por duas outras citações,
uma no v. 10, a outra no v. 13. A primeira
vem de Deuteronômio 27 .26, que coloca
uma maldição sobre todo aquele que não
realiza completamente as obras da lei (em
outras palavras, a lei amaldiçoa, e não jus-
tifica). A segunda vem de Deuteronômio
21.23, que Paulo toma como prenunciação
da obra de Cristo que carrega sobre si a
maldição. Não precisamos nos desesperar
por causa da incapacidade da lei de justifi-
car e do seu poder de amaldiçoar. Cristo,
pela sua morte, nos libertou (resgatou) da-
quela maldição e assim nos levou ao des-
frute da promessa abraâmica por meio do
Espírito (14).
3.15-25 O lugar da lei. Tendo se ex-
pressado bastante negativamente acerca da
lei, Paulo pode ter sentido a necessidade
de ampliar o tópico de como essa lei se en-
caixa nos propósitos de Deus. Exatamente
qual é a relação entre ela e a promessa a
Abraão? A sua resposta focaliza no fato
de que a lei é tanto posterior à entrega da
promessa (15-18) quanto anterior ao cum-
primento da promessa (19-25).
Em primeiro lugar, então, o apóstolo
ressalta que a aliança da lei foi dada por
Deus mais de quatro séculos depois de
ter sido estabelecida a aliança abraâmica,
(A palavra traduzida por aliança geralmen-
te significa "testamento", mas foi usada
pela LXX para dar o termo hebraico padrão
para "aliança". É difícil saber se Paulo ti-
nha em mente aqui um sentido duplo). O
seu ponto está claro: Não é concebível que
a aliança posterior pudesse cancelar (ab-
rogar) a aliança anterior. Mas isso é exata-
mente o que a lei faria se pudesse oferecer
uma herança com outra base que não fosse
a promessa da graça. O ensino dos judai-
zantes de fato cria um conflito insuportável
entre as duas alianças (17). A herança ou
vem pela graça ou vem pelas obras da lei;
visto que vem por aquela, não pode vir por
estas (18; cf Rm 4.5). Durante o seu argu-
mento, Paulo lembra os gálatas de algo que
eles (e provavelmente até os judaizantes)
aceitavam, isto é, que a promessa à semen-
te de Abraão tem o seu cumprimento em
Cristo (16). Esse ponto se tomará impor-
tante no argumento seguinte.
Em segundo lugar, Paulo ressalta que a
lei veio antes do cumprimento da promes-
sa (19-25), e, em certo sentido, preparou o
caminho para isso. O ponto principal aqui
é a natureza temporária da lei mosaica. Foi
dada por um período, até a vinda do descen-
dente, Cristo (19). Uma vez que a realidade
da fé veio em Cristo, a função supervisora
da lei cessou (25). Em vez de contradizer
a promessa, a lei serviu aos propósitos de
 1827
Deus de "encarcerar" (encerrou) seus sú-
ditos pecaminosos, ao protegê-los e res-
tringi-los, em grande parte como no mun-
do romano o paidagõgos (um escravo res-
ponsabilizado pela supervisão dos filhos)
corrigia os que estavam sob sua condução.
(O termo paidagõgos ocorre nos v. 24,25,
e é traduzido por "tutor" na NVI). Em outras
palavras, a administração mosaica estava
subordinada à aliança abraâmica e de fato
preparou seus adeptos para a manifestação
do evangelho. Essa ideia é desenvolvida
ainda mais em 4.1-7.
A natureza subalterna da função da lei
é expressa em diversas formas no v. 19.
Primeira, ela foi adicionada, i.e., ela não
foi a aliança originária. Segunda, ela foi
dada por causa das transgressões, o que
pode significar que a lei tinha a intenção
de restringir o pecado ou, mais provavel-
mente, de trazer à luz as transgressões
(Rm 3.19,20; 4.13-15; 5.13) e até mesmo
de aumentá-las (no sentido de Rm 5.20;
7.7-11). Terceira, foi promulgada por
meio de anjos, o que sugere inferioridade
à aliança abraâmica (o sentido exato do v.
20 é incerto, mesmo depois de muita dis-
cussão acadêmica e de muitas interpreta-
ções). Concluindo, a lei não pode conceder
vida, não pode justificar. Longe de anular
a natureza benevolente da promessa, a lei
promove os propósitos de Deus e nos ensi-
na a morrer para aquela lei (2.19) para que
sejamos justificados pela fé.
3.26-4.7 Conclusão: verdadeira fi-
liação. A palavra filhos (gr. huioi) no v. 26
é um termo-chave que foi primeiramente
usado já bem no começo dessa importante
seção (7). Essa é uma pista importante para
a compreensão da lógica do argumento de
Paulo. Podemos entender os v. 26-29 como
uma recapitulação desse argumento. Mas
assim como um compositor não repete
sem motivo um tema no final de um mo-
vimento sinfônico, assim Paulo aqui não
se contenta em falar de filiação abraâmi-
ca. Em vez disso, ele leva a ideia um pas-
so adiante: todos vós sois filhos de Deus
GÁLATAS 3
(um conceito que ele vai ampliar em 4.1-
7). Outros temas proeminentes no capítulo
são entretecidos nesse trecho: a promessa
(14), a herança (18) e a fé em Jesus Cristo
(22). Como observou há muito tempo um
comentarista com referência ao v. 29: "A
declaração do v. 7 é agora fundamentada
detalhadamente e ampliada pelos 22 ver-
sículos da argumentação mais variegada e
mais abrangente que existe na esfera dos
escritos do grande apóstolo" (C. 1. Ellicott,
A Criticai and Grammatical Commentary
on St. Pauis Epistle to the Galatians [J. W.
Parker and Son, 1854, p. 72]).
Além disso, mais dois pontos impor-
tantes são trazidos a lume pela primei-
ra vez. Primeiro, a unidade em Cristo.
Evidentemente a ideia de que o evange-
lho desfez a divisão entre judeus e gentios
(cf Ef2.ll-l8) está por trás de tudo que
Paulo está dizendo nessa carta. No v. 8,
no entanto, o apóstolo dá expressão a essa
verdade de forma intensa, ressaltando que
outras divisões (escravo/livre, homem/
mulher) também não têm importância para
a nossa posição diante de Deus. Mesmo
que esse versículo tenha sido usado e abu-
sado na tentativa de se desenvolver uma
ética cristã, não podemos nos dar ao luxo
de ignorar seu grande significado para o
tópico em discussão. E especialmente nos
nossos dias, quando nos tomamos muito
conscientes do poder destrutivo do pre-
conceito - não importa se baseado em
identidade étnica, posição social, ou sexo
- devemos nos alegrar nesse evangelho
que não tolera preferências espirituais, e
devemos aprender a nos portar de tal for-
ma que destaque essa verdade diante de
um mundo confuso.
O segundo tema destacado aqui é o da
união com Cristo. A ideia já foi sugerida
pela ênfase de Paulo na fé em Cristo, mas
é ressaltada pela referência ao ser batizado
em Cristo e ser revestido dele (27; cf Rm
6.1-4; 13.14; Ef4.24; C13.1 O), pela afirma-
ção de que somos um em Cristo (28) e pelo
comentário-resumo de que pertencemos
GÁLATA54 1828
a Cristo (29). É difícil destacar o suficiente
a importância dessa doutrina para o ensino
de Paulo; é isso que dá coerência a tudo o
que ele diz acerca da salvação. Começamos
a enxergar mais claramente por que Paulo
falou de Cristo como a semente (descen-
dente): nós somos sementes (descenden-
tes) de Abraão somente na medida em que
desfrutamos da união e da solidariedade
com o descendente.
Uma leitura superficial de 4.1-7 pode-
ria sugerir que aqui o apóstolo está come-
çando uma seção nova. Na verdade, esse
trecho faz parte da conclusão do seu argu-
mento doutrinário. Ele consiste em uma
ilustração que esclarece o que foi dito an-
teriormente acerca da função supervisara
da lei. O que é mais importante, o trecho
serve para levar a doutrina da filiação a um
grande clímax.
A figura do paidagõgos (aio usada no
gr. em 3.24,25) abre caminho para a de
tutores e curadores em 4.2 ("guardiães e
administradores", NVI). Visto que são eles
os que de fato estão no comando, o filho
da casa não é muito diferente de um es-
cravo em um importante sentido: a posse
da herança. O filho tem de esperar pela
prescrição legal soberana do pai no dia
designado. Os israelitas estão ainda prin-
cipalmente em vista aqui (os que estavam
sob a lei, v. 5), mas Paulo introduz um ter-
mo novo, stoicheia (rudimentos do mun-
do, v. 3; v. também v. 9), que lhe permite
ampliar a referência também aos gentios.
Aparentemente o ponto é que assim como
os pagãos estão sujeitos a alguns princí-
pios elementares do ritualismo, assim, em
certo sentido, estavam os judeus. (Como
alternativa, alguns estudiosos acham que
o termo se refere a poderes angelicais ou
demoníacos; cf CI 2.18,20).
Em todo caso, essa condição semelhan-
te à de escravo permaneceu até a época do
cumprimento, quando o Filho de Deus se
tomou homem e se sujeitou à mesma lei
para que ele pudesse nos libertar e nos tomar
filhos (4,5). Nesse ponto, o apóstolo traz à
tona novamente o assunto do Espírito, com
o qual tinha inicialmente apelado aos gála-
tas (3.3; cf também 3.14 e possivelmente
a referência ao batismo em 3.27). Somente
agora o significado do batismo é associa-
do diretamente à doutrina da filiação. Vísto
que recebemos o Espírito do Filho de Deus,
nosso coração está consciente de que Deus
é o nosso Pai e que somos herdeiros com-
pletos. Observe atentamente a ampliação
dessas ideias em Romanos 8.14-17,26,27.
4.8-31 Mais apelos
Embora, rigorosamente falando, Paulo ago-
ra tenha concluído a argumentação doutri-
nária, ele deseja reforçar o seu ensino por
meio do apelo tanto à experiência dos gála-
tas (8-20) quanto ao testemunho da própria
lei (21-31).
4.8-20 Um apelo à experiência dos
gálatas. Os v. 8-11 lembram os gálatas da
sua vida no paganismo. Esse trecho fun-
ciona quase como uma ponte para o tre-
cho seguinte (12-20), mas seria um engano
considerá-lo meramente um interlúdio e
não apreciar o fato de que segue um forte
argumento (7). O ponto desse parágrafo é
o fato assustador de que os gálatas, que de
fato já experimentaram a era vindoura (4),
estavam retomando à escravidão. O con-
traste é evidenciado fortemente por meio
do conceito de "conhecer a Deus": as suas
práticas anteriores podem ser explicadas
em virtude do fato de que eles não conhe-
ciam a Deus, mas tal conduta é inconcebí-
vel agora que eles o conhecem. Em seguida,
Paulo qualifica as suas palavras ao ressal-
tar que, em vez de dizer que os gálatas co-
nheciam a Deus, é mais apropriado dizer
que eles eram conhecidos por Deus, visto
que foi ele que iniciou e estabeleceu o re-
lacionamento. Esse breve parágrafo termi-
na com uma declaração tocante, repleta de
páthos (cf v. 11), que lembra 2.2 e 3.4 e
que conduz naturalmente à seção mais pes-
soai logo em seguida.
Os v. 12-20 não são fáceis de entender.
O trecho é obscurecido por alusões aos
 1829
eventos com os quais os gálatas estavam
familiarizados, mas dos quais pouco sabe-
mos. Além disso, a linguagem de Paulo é
emotiva e abreviada. O v. 16 parece sugerir
que tinha havido alguma comunicação en-
tre Paulo e os gálatas depois que a amea-
ça judaizante fora sentida. Além disso, as
palavras: Em nada me ofendestes (12) são
mais naturalmente entendidas como res-
posta a algo que talvez foi dito pelos gála-
tas. Por outro lado, a referência explícita
nos v. 13-15 sugere que Paulo também tem
em mente a evangelização inicial deles:
"Naquela época - mesmo que eu não fos-
se judaizante, mas antes tinha me tomado
como vocês - , vocês, longe de me ofen-
der, me receberam muito bem".
Mesmo que seja difícil discernir os
detalhes desse trecho, sua ênfase básica
está suficientemente clara. A atitude dos
gálatas para com Paulo tinha mudado
significativamente. Se eles lembrassem
somente os primeiros contatos dele com
eles - tanto a enfermidade dele quanto a
atitude amável deles para com ele - cer-
tamente reconsiderariam a sua presente
atitude. Esse comportamento, em certo
sentido, é o resultado de alguns indiví-
duos que querem que os gálatas pres-
tem atenção exclusiva neles e que assim
descartem a influência de Paulo (17). Os
gálatas deveriam considerar com muito
cuidado os motivos dessas pessoas (assim
o v. 18, uma afirmação difícil que pode
ser traduzida de diversas formas).
Paulo conclui essa seção com mais uma
observação pungente (19,20). A sua tensão
emocional ao tratar com os gálatas só pode
ser comparada a dores de parto. Então, com
uma combinação intencional de metáforas,
o apóstolo identifica a maior e mais básica
necessidade deles, isto é, que Cristo seja
formado neles. Em outras palavras, eles
precisam ser transformados na imagem de
Cristo (Rm 8.29). O coração pastoral de
Paulo é revelado nessas palavras e no seu
intenso desejo de visitá-los para que possa
falar com eles face a face.
GÁLATAS 4
4.21-31 Um apelo ao testemunho da
própria Torá. Tratar esse trecho como
mais um apelo - e assim não como par-
te do argumento básico - poderia suge-
rir que o parágrafo não é tão importante.
Aliás, alguns consideram a ironia no v. 21
uma evidência de que Paulo na verdade
não quer dizer o que está dizendo. A ver-
dade é, no entanto, que a história de Agar-
Sara tem um papel importante nos esfor-
ços de Paulo de persuadir os gálatas. Além
disso, a distinção específica entre Ismael e
Isaque vai se tomar crucial à medida que
o apóstolo elaborar a sua doutrina na carta
aos romanos (cp. 9, especialmente v. 6-
12). Além disso, é apropriado reconhecer
que essa história de Gênesis não é a base
da sua concepção da justificação, uma dou-
trina que foi claramente explicada no capí-
tulo anterior. Pode muito bem ter aconte-
cido que a história tenha sido citada pelos
próprios judaizantes e assim Paulo teve de
responder a ela (essa sugestão, porém, não
pode ser comprovada).
Muita discussão já ocorreu em tor-
no do significado do v. 24: Estas coisas
são alegóricas. Paulo usa o termo grego
allêgoroumena, e assim uma tradução mais
literal poderia ser: "Estas coisas foram es-
critas alegoricamente", ou: "Estas coisas
podem ser interpretadas alegoricamente".
Paulo certamente não está usando o méto-
do alegórico que foi amplamente difundi-
do por Filo de Alexandria, que depreciava
fortemente (ou até negava) a natureza his-
tórica da narrativa do AT e que servia como
o meio para a formulação de complexos
sistemas filosóficos. Em vista do signifi-
cado um tanto especializado que o termo
"alegoria" tem hoje na mente de muitos (o
termo gr. correspondente poderia ser usado
de formas diversas e mais gerais), prova-
velmente é enganoso usá-lo para descrever
o que Paulo está fazendo nesse texto.
Por outro lado, não há dúvida de que
o apóstolo está enxergando algo aqui
que não faz parte do que nós comumen-
te chamamos de "significado histórico"
GÁLATAS 5
de um texto. O autor de Gênesis, no que
é possível discernir, não estava tentando
distinguir entre duas alianças, nem estava
tentando retratar a relação entre judaizan-
tes e gentios. Paulo está, então, manejando
maIo AT?
É importante manter em mente que em
toda a história da redenção se podem ob-
servar padrões claros de como os eventos
se desenrolam. Talvez o mais óbvio seja
o padrão do "teste que resulta em desobe-
diência", visto claramente em Adão, e nos
israelitas no deserto, e então quebrado por
Jesus na sua tentação. Especialmente im-
portante é a distinção entre o natural e o
sobrenatural, i.e., o que os seres humanos
tendem a fazer com suas próprias forças
em contraste com o que eles realizam na
dependência de Deus. Esse princípio é
transmitido muitas vezes na história bí-
blica, e a história de Ismael e de Isaque
é um exemplo particularmente forte. Cer-
tamente Deus estava ensinando o seu povo
a depender dele para a sua salvação. O que
poderia ser mais adequado do que destacar
esse princípio e aplicá-lo à controvérsia
dos gálatas?
Alguns estudiosos preferem usar o ter-
mo "tipologia" (em vez de "alegoria") para
descrever o método de Paulo aqui. O ponto
é que a história, longe de ser depreciada
a favor da teologia, é vista como incorpo-
rando essa teologia e assim prenunciando
eventos posteriores como manifestações
mais completas do princípio em vista.
Além disso, alguns sugerem que mesmo
que o autor humano de Gênesis não tenha
tido em mente o que Paulo tem com esse
trecho, o autor divino o tinha. Essa aborda-
gem pode ser facilmente usada para justifi-
car todo o tipo de interpretações incorretas,
mas certamente é verdade que um Deus
onisciente (sem falar do seu pré-conheci-
mento) claramente enxerga as implicações
dos eventos de formas que seres humanos
contemporâneos nem consigam imaginar.
Para Paulo, não podia ser coincidência que
a história de Gênesis tinha pontos tão im-
1830
portantes de correspondência com a ques-
tão judaizante. Essas correspondências
são apresentadas em forma de contrastes,
como segue: Agar/Sara; escravo/livre;
aliança do Sinai/(nova) aliança; Jerusalém
atual/Jerusalém de cima; IsmaeI!Isaque;
nascimento natural (carne)/nascimento
pela promessa/Espírito; perseguidor/per-
seguido; expulso/herdeiro.
Com base em diversas ideias interes-
santes sugeridas por esses contrastes, ao
menos duas requerem atenção especial.
Em primeiro lugar, observe a referência
à Jerusalém atual em contraste com a de
cima (25,26). Está claro que o pensamento
de Paulo foi fortemente influenciado por
uma perspectiva da história bíblica mar-
cada pelo aspecto "escatológico", ou "dos
últimos dias", de acordo com a qual se diz
que a vinda de Cristo traz e inaugura a era
por vir. O ponto já apareceu em IA e fun-
damenta textos de "cumprimento" como
3.23-25 e 4.4 (cf também ICo 10.11).
Em segundo lugar, observe o contras-
te entre carne e promessa/Espírito nos v.
23,29 (a tradução na NVI do termo gr. "car-
ne" por: "nasceu de modo natural" expres-
sa corretamente a ideia, mas o faz à custa
do contraste teológico). Esse contraste foi
trazido a lume primeiro em 3.4 (v. comen-
tários ali); assim, é significativo que essa
seção central da carta comece e termine
com tal referência. Esses termos estão
fortemente relacionados à compreensão
escatológica ("dos últimos dias") do evan-
gelho. A carne - i.e., a natureza humana
caída agindo nas suas próprias forças natu-
rais - é a característica distintiva da pre-
sente era. O Espírito Santo, por outro lado,
inaugura a era vindoura, assim que se pode
até dizer dos cristãos que eles estão as-
sentados nos lugares celestiais (Ef 2.6; cf.
Fp 3.20; CI3.1-4). O significado ético des-
se contraste é desenvolvido em 5.13-26.
5.1-6.10 Ordens de Paulo
Como é comum nas suas cartas, Paulo
acrescenta à seção doutrinária um conjunto
 1831
de chamados à ação. É tópico disputado se
essa seção começa em 5.1,2 ou em 5.13.
Certamente os v. 1-12 incluem um con-
teúdo doutrinário significativo, e o fato de
que a questão central nesses versículos é a
circuncisão não deve ser ignorado. Há, no
entanto, uma mudança notável de tom no
v. 2 (o v. I serve a uma função de ponte e
pode facilmente ser visto como a conclu-
são do cp. 4). A questão não é de grande
importância.
Mais significativa é a decisão de des-
crever essa seção como "Ordens de Paulo".
Tal título destaca um dos problemas mais
interessantes que surgem aqui. Como
Paulo concilia todas as suas declarações
negativas acerca da lei com as muitas or-
dens incluídas na carta? Há uma coerên-
cia básica na teologia de Paulo quando ele
parece encorajar os gálatas a cumprir a lei
(5.14) ou quando diz que devemos fazer
coisas contra as quais não há lei (5.23)?
Devemos manter em mente essas questões
nos nossos esforços para compreender o
ensino de Paulo.
5. 1-12 Com respeito à circuncisão
A afirmação solene do v. 2 (cf 2.21), com-
binada com a linguagem assustadora do v.
4 (cf 1.6), indica não somente que a circun-
cisão não tem valor positivo algum, mas
que para os gálatas ela é realmente preju-
dicial. De uma perspectiva, é indiferente se
alguém é circuncidado ou não (observe o
v. 6 e os paralelos em 6.15 e ICo 7.19).
No entanto, se um gentio se submetesse à
circuncisão como sinal de submissão à lei,
isso seria "pernicioso e fatal em si mesmo"
(Lightfoot).
Paulo fundamenta suas fortes declara-
ções de duas formas. Em primeiro lugar,
no v. 3 ele argumenta que o ato inicial da
circuncisão implica o compromisso de
fazer tudo que a lei diz (cf Tg 2.10,11).
Qualquer pessoa que deposita sua confian-
ça em suas próprias obras precisa enten-
der que Deus exige perfeição (Mt 5.48).
O judaísmo dos dias de Paulo, em termos
GÁLATAS 5
gerais, não compreendia completamente
esse conceito. Grande parte da interpre-
tação rabínica consistia em tentativas de
afrouxar as exigências estritas das ordens
bíblicas, com o resultado inevitável de que
as pessoas pensavam que podiam realmen-
te satisfazer as exigências de Deus pelos
seus esforços.
Em segundo lugar, nos v. 5,6 Paulo
afirma que a verdadeira experiência cris-
tã é caracterizada pela fé. Essa fé é uma
expectativa sólida: ela espera ansiosa-
mente a demonstração final da justiça de
Deus, quando a sua verdade será vindica-
da e o seu povo receberá o veredicto final
de "inocente". Também é uma fé gerada
e sustentada pela presença do Espírito;
mais uma vez Paulo destaca o papel cru-
cial do Espírito Santo na vida do cristão.
Finalmente, essa fé é muito operante por
meio do ministério do amor (o verbo grego
no v. 6, traduzido por "atuar", é energeõy.
"Para a revelação da ideia fundamental do
apóstolo acerca da natureza da religião não
há declaração mais importante em toda a
epístola, talvez até em todas as epístolas
de Paulo" (E. de Witt Burton, A Criticai
and Exegetical Commentary on the Epistle
to the Galatians [T. & T. Clark, 1921],
p. 279). Não se deve esperar que o fato de
Paulo contrapor a fé às obras da lei signi-
fique que a fé é passiva. Pelo contrário, a
fé toma possíveis as obras genuínas. Esse
princípio prepara o caminho para as ordens
nos v. 13-26.
Antes de prosseguir a elas, no entan-
to, Paulo precisa expressar ainda mais um
apelo pessoal. Em grande parte, os v. 7-12
são um ataque aos oponentes. Os judaizan-
tes estão levando os gálatas a tropeçar. O
seu ensino, que age como fermento, é in-
compatível com o chamado divino. Paulo
está confiante que eles serão julgados e até
mesmo expressa o seu desejo de que se-
jam mutilados (possivelmente uma alusão
às práticas mutiladoras dos pagãos na Ásia
Menor, mas muito provavelmente também
uma referência à castração, que, por sinal,
GÁLATAS S
desqualificava os homens judeus para o sa-
cerdócio). No v. 11, ele também se defende
da aparente acusação de que ele era incoe-
rente e de que, quando lhe servia, defendia
a circuncisão (talvez uma alusão ao fato de
ter circuncidado Timóteo; At 16.1-3).
O "negativismo" desses versículos
não deve obscurecer o que é o propósito
principal de Paulo. Ele deseja expressar a
sua confiança nos gálatas. A reação inicial
deles ao evangelho (Vós corríeis bem, v.
7; cf 4.13-16) o encoraja a crer que eles
não alimentarão nenhum outro sentimento
(10).A única razão de eles terem vacilado é
a influência externa dos judaizantes; assim
o apóstolo se consola no fato de que havia
evidências suficientes da genuinidade da fé
dos gálatas. (Cf também o encorajamento
de Hb 6.9-12 depois das palavras duras no
início do capítulo).
5.13-26 Com respeito ao amor
Aquele que chamou os gálatas na graça (8;
cf 1.6) os chamou a exercer os direitos e
desfrutar das bênçãos da liberdade (13a).
Paulo sabe, no entanto, que a liberdade
pode ser transformada em licenciosidade,
e assim ele precisa deixar claro e cristalino
quais são as supremas obrigações daqueles
que foram libertos. Nesse trecho, o após-
tolo entra em alguns detalhes para des-
crever tanto o abuso quanto o uso correto
da liberdade.
A liberdade é abusada quando se toma
uma desculpa para dar ocasião à carne
(13b; lit. "um pretexto para a carne").
Paulo é bem específico acerca do tipo de
conduta que ele tem em mente. Nos v. 19-
21, ele até alista as obras da carne ("As
coisas que a natureza humana produz",
NTLH). Esses atos parecem se dividir em
quatro grupos: impureza sexual, idolatria,
dissensão e intemperança. A maioria dos
pecados alistados por Paulo cai na tercei-
ra categoria, e isso sugere que os gálatas
eram particularmente propensos aos pe-
cados que envolviam os relacionamentos
pessoais. Essa sugestão é confirmada pela
1832
ênfase que o apóstolo dá a esse proble-
ma. No v. 15, ele fala acerca do perigo de
que eles podem se destruir uns aos outros
pelo mútuo "morder-se e devorar-se". E
no final do parágrafo, ele acrescenta uma
advertência final contra a presunção e a
inveja (26).
As implicações de tal conduta deve-
riam ter sido bem conhecidas dos gálatas:
o apóstolo os tinha advertido em ocasião
anterior de que não herdarão o reino de
Deus os que tais coisas praticam (21). Foi
realmente irônico que esses cristãos, que
foram seduzidos por uma mensagem de
obediência à lei, caíssem em um compor-
tamento que ostensivamente contradizia a
sua fé. A sua ênfase na carne ~ literalmen-
te, por meio da circuncisão, mas, mais im-
portante, por meio da sua dependência dos
próprios esforços ~ de fato os conduzíu a
realizar as obras da carne em outro senti-
do. Nossos esforços em agradar a Deus na
nossa própria força resultam somente em
comportamento pecaminoso. (V comentá-
rio de 3.4).
Paulo também deixa claro qual é o uso
correto da liberdade: sede, antes, servos
[lit. escravos] uns dos outros, pelo amor.
Porque toda a lei se cumpre em um só
preceito, a saber: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo (l3c,14). O princípio de
uma fé operante (6) é elaborado agora. E
assim como tinha alistado as obras da na-
tureza pecaminosa, assim ele especifica
o tipo de conduta que flui da comunhão
com o Espírito Santo (22,23). É digno de
nota que o fruto do Espírito aqui consis-
te principalmente em atitudes e ações que
intensificam os relacionamentos pessoais,
exatamente a grande fraqueza dos gálatas.
As qualidades de alegria e paz não se refe-
rem a sentimentos subjetivos, mas à forma
com que tratamos uns aos outros. Até mes-
mo o termo pistis ("fé") no grego pode ser
entendido como fidelidade (como aqui na
ARA), mais uma vez associada aos relacio-
namentos pessoais. Há também ênfase em
bondade e longanimidade.
 1833
Mas como podemos atingir esses al-
vos? Como cristãos, com frequência gos-
taríamos de ter fórmulas rápidas que resol-
vessem os nossos problemas espirituais.
O material bíblico resiste a esse tipo de
atitude. Mas, se há um texto bíblico que
soa como uma fórmula para a santificação,
esse é Gálatas 5.16: Digo, porém: andai no
Espírito e jamais satisfareis à concupis-
cência da carne. Como Paulo explica no
versículo seguinte, o Espírito e a natureza
pecaminosa (carne) são mutuamente ex-
cludentes. Assim, se estamos ocupados em
agradar aquele, não vamos satisfazer esta.
Observe ainda que as ordens de Paulo
(o "imperativo") estão firmadas em fatos
da nossa experiência cristã (o "indicati-
vo"). A razão de podermos estar encoraja-
dos na nossa vida espiritual é que quando
depositamos a nossa fé em Cristo demos
um golpe fatal no poder da carne (24; cf.
Rm 6.1-4). Assim, se a nossa vida procede
do Espírito, só é adequado ~ aliás, é in-
cumbência nossa ~ portar-nos de acordo
com a condução dele.
Finalmente, observe como esse texto
nos ajuda a compreender um pouco melhor
o ensino de Paulo acerca da lei. Embora
antes ele tenha falado muito duramente
contra o uso da lei como meio de ganhar
a herança, ele não questiona o valor da
lei como revelação do que é a vontade de
Deus para nós. Se a nossa vida é gover-
nada pelo Espírito, não estamos sujeitos
ao poder condenatório da lei e, assim, não
precisamos temê-la. Portanto, é correto
que "cumpramos" a lei (14) para realizar
aqueles atos que a lei não condena (23).
Isso é liberdade de fato.
6. 1-10 Com respeito às cargas
Tendo apresentado um retrato elevado da
vida cristã, Paulo agora trata das reais pos-
sibilidades do pecado (1). Embora o prin-
cípio de viver pelo Espírito não seja mero
idealismo, o apóstolo sabia perfeitamente
bem que os crentes vacilariam, e ele pode
ter receado que os gálatas reagissem de
GÁLATAS 6
forma rude a um dos seus irmãos se não
atingissem os elevados padrões recém-des-
critos. Portanto, ele ressalta que se eles são
espirituais (tendo o Espírito Santo e sendo
guiados por ele), devem reagir com espíri-
to de brandura, sempre conscientes de que
cada um de nós é suscetível à tentação.
Nos v. 2,3, Paulo continua o pensamen-
to, mas o generaliza um pouco. Restaurar
um crente que pecou não é nada mais do
que um exemplo da obrigação mais ampla
que temos de levar as cargas uns dos ou-
tros. Qualquer pessoa que empaca diante
dessa obrigação, pensando que está acima
dessa fraqueza, só se engana a si mesma.
Em uma alusão notável e irônica à preocu-
pação dos gálatas pelas leis judaicas, Paulo
descreve o levar as cargas como o cumpri-
mento da lei de Cristo. Muito provavel-
mente essa noção deve ser relacionada a
5.14, o mandamento do amor. Claramente,
a maravilhosa liberdade pela qual Paulo
tinha lutado durante o seu ministério e
especialmente nessa carta não acarreta o
abandono das obrigações morais.
A preocupação de Paulo para que os
gálatas estivessem conscientes das cargas
e fraquezas dos outros, no entanto, poderia
conduzir a um sentimento de superioridade
e daí à jactância pecaminosa. Assim, nos
v. 4,5 ele traz à memória a necessidade e a
adequabilidade de a pessoa olhar somente
para si mesma para avaliação, i.e., a pes-
soa deve olhar para as fraquezas dos outros
somente com o propósito da compaixão,
e não da comparação (cf 2Co 10.12-18).
Nesse sentido, cada um precisa carregar
a sua própria carga. Podemos parafrasear
assim: "Se você está propenso a se gloriar,
só olhe para si mesmo; não seja como o
fariseu que se compara ao publicano, mas
use o padrão de Deus, e então vai descobrir
que o gloriar-se só pode ser em Deus" (cf
v. 14; 1Co 1.26-31).
Com o v. 6 o apóstolo avança para mais
um tópico (embora talvez esteja em parte
relacionado ao levar as cargas), que é a res-
ponsabilidade de suprir os obreiros cristãos
GÁLATA56 1834
nas suas necessidades. Embora seja pos-
sível que Paulo tenha em mente mais do
que o aspecto financeiro (todas as coisas
boas), o verbo "compartilhar" (jaça par-
ticipante; gr. koinõneõ) é usado em outros
textos por Paulo para falar de contribuições
financeiras (v. Rm 12.13; 15.27; Fp 4.15; o
substantivo é usado de forma semelhante
em Rm 15.26; 2Co 8.4; 9.13). A mesqui-
nhez nas nossas contribuições, financeiras
ou em outras áreas, é equivalente a zombar
de Deus. Mas, na verdade, de Deus não se
pode zombar (7), e se dedicamos nossos
recursos para satisfazer a natureza pecami-
nosa (lit. "semear para a carne") em vez de
satisfazer o Espírito, vamos receber o que
nos é devido (8; cf 2Co 9.6).
O apóstolo conclui essa seção da carta
com um resumo de como ele espera que
os gálatas ajam (9,10). Em cada oportu-
nidade, precisamos empenhar todos os
nossos esforços para fazer o que é bom,
e devemos estar particularmente atentos
para suprir as necessidades da comunida-
de cristã. Embora possa haver muitos de-
sencorajamentos ao longo da caminhada,
precisamos criar coragem com a certeza de
que Deus vindicará o seu povo. No tempo
apropriado, certamente colheremos a ple-
nitude da bondade do próprio Deus.
6.11-18 Epílogo
Esse parágrafo final transmite fortes emo-
ções, ressaltadas tanto no início (11) quan-
to no final (17). Era costume de Paulo
acrescentar uma nota de próprio punho (cf
2Ts 3.17; possivelmente isso era feito como
salvaguarda contra falsificações, 2.2). No
entanto, o fato de destacar o tamanho da
sua caligrafia - um comentário que ele
não faz em nenhum outro lugar - acres-
centa considerável pungência ao texto. É
inútil especular se essa observação nos diz
algo acerca do estado da sua capacidade
visual ou da sua posição social. Antes, tem
um propósito emotivo: "A audácia da cali-
grafia corresponde à força das convicções
apostólicas. O tamanho das letras vai arre-
batar a atenção dos seus leitores apesar de
si mesmos" (Lightfoot).
De maneira parecida, Paulo claramen-
te se dirige às emoções dos gálatas quan-
do apela às marcas de Jesus (17). Talvez
aludindo uma vez mais às acusações de
insinceridade (cf 1.10; 5.11), ele lembra
os seus leitores e oponentes de que suas
reivindicações não são em vão. As feridas
que ele sofreu por causa da sua fidelidade
a Cristo são a evidência mais clara de que
os gálatas não precisam duvidar dos seus
motivos. Como alguns comentaristas têm
destacado, a batalha com os judaizantes é
levada até o final da carta.
Essa batalha, contudo, assume uma
nova característica nos v. 12-14, pois aqui
Paulo toma explícito o que esteve subja-
cente até esse ponto (cf especialmente
4.17,18). Em resumo, o apóstolo vai ao
âmago da questão ao desmascarar a pró-
pria motivação dos judaizantes. A verda-
deira razão de estarem tão ocupados em
rodear os gálatas é que, temerosos de ser
perseguidos, eles querem dar uma boa
impressão exterior (querem ostentar-se
na carne). Por meio de um belo jogo de
palavras, Paulo chama a atenção ao fato
de que o rito da circuncisão é realizado na
carne (fisica), e isso é uma indicação cla-
ra de que os judaizantes vivem no âmbito
da carne (como esse termo foi usado em
3.3; 4.23,29; 5.13,16-26; 6.8; em outras
palavras, opostos ao Espírito). Apesar das
suas afirmações, a sua obediência à lei é
na melhor das hipóteses seletiva - o seu
verdadeiro propósito é gloriar-se no fato
de que colocaram uma marca na carne dos
cristãos da Galácia.
Nesse ponto, o apóstolo introduz um
dos temas recorrentes mais importantes das
suas cartas: gloriar-se em Cristo. O sinal
mais claro de incredulidade deve ser visto
na nossa tendência de nos gloriarmos em
nós mesmos, quando a única base legítima
para o gloriar-se é Deus (v. especialmente
Rm 5.11; lCo 1.29-31; 2Co 10.17; Ef2.9;
Fp 3.3). Aqui Paulo é mais específico. Ele
 1835
se gloria somente na cruz, a ferramenta pela
qual Paulo e o mundo foram separados um
do outro. Como é sugerido em Colossenses
2.20, o mundo é uma referência às orde-
nanças exteriores (cf 4.9,10), mas com
certeza também inclui o pecado (5.24) e o
velho eu (2.20; cf Rm 6.6). Aqueles que
pela fé são unidos com Cristo participam
da morte dele na cruz e são, dessa forma,
removidos do poder do pecado.
Essa confissão do v. 14 conduz, no ver-
sículo seguinte, à repetição do princípio
de 5.6, mas agora a conclusão é surpreen-
dente. Em ambos os trechos, se diz que a
circuncisão e a incircuncisão não têm valor
algum. O que tem valor, de acordo com 5.6,
é a fé que atua pelo amor; aqui no v. 15 é o
ser nova criatura, uma ideia desenvolvida
em 2Coríntios 5.17. Mais uma vez Paulo
nos lembra da natureza escatológica (de
cumprimento) da mensagem do evangelho
(v. comentário de 4.25,26). De forma mais
marcante ainda, o mesmo princípio é re-
petido em lCoríntios 7.19, mas aí, em vez
de fé ou nova criatura, o elemento valioso
é "obedecer aos mandamentos de Deus",
uma afirmação que nos ajuda a colocar em
perspectiva as observações "negativas" de
Paulo em Gálatas acerca da lei.
De todo modo, esse princípio da nova
criatura (ou fé que atua pelo amor) é a
verdadeira regra segundo a qual devemos
caminhar (16). O verbo traduzido por
"andar" (a todos quantos andarem de con-
formidade ...) é também usado em 5.25 (an-
demos também no Espírito). Claramente,
Paulo quer que entendamos que a regra
que devemos seguir é a conduta dirigida
pelo Espírito descrita anteriormente. E
isso realmente não surpreende, visto que
GÁLATAS 6
o Espírito é a manifestação mais clara da
nova criatura.
Os que andam dessa forma recebem
uma bênção muito especial de paz e mise-
ricórdia (16), às quais Paulo acrescenta: e
sobre o Israel de Deus. De acordo com al-
guns, Paulo está chamando atenção não so-
mente para a igreja (daí: "e [sobre o Israel
de Deus]"), mas também para a nação
étnica de Israel como receptores da bên-
ção. Mas se essa nação, composta tanto de
crentes como de incrédulos, pode realmen-
te desfrutar de paz e misericórdia, parece
que Paulo está contradizendo a essência da
sua mensagem: os verdadeiros descenden-
tes de Abraão são os que creem em Cristo
e foram libertos da lei. A NIV (em inglês),
portanto, muito provavelmente está correta
ao traduzir a palavra "e" por "até", "mes-
mo" (ou "ou seja"; esse sentido não é in-
comum). Se é assim, podemos apreciar o
impacto dessa declaração como um argu-
mento contra os judaizantes: o verdadeiro
Israel vive segundo um outro princípio que
o da submissão à lei mosaica.
A bênção do v. 18 não parece nada mais
do que uma variante da conclusão usual
das cartas do apóstolo. Há, contudo, uma
notável diferença: o acréscimo da palavra
irmãos numa posição enfática, bem no fi-
nal (no original). Isso é bem inesperado e
revela o coração intensamente pastoral do
apóstolo. Na verdade, essa uma palavra
alivia a severidade de toda a carta ao res-
saltar a confiança de Paulo em que os gála-
tas são verdadeiramente o povo de Deus e
que, portanto, vão reagir à verdade como
devem (cf 3.4; 5.10).
Moisés Silva
 EFÉSIOS
INTRODUÇÃO
Efésios é um livro empolgante na sua com-
preensão teológica do escopo dos propó-
sitos de Deus em Cristo para a igreja. É
uma carta pastoralmente afetuosa e espiri-
tualmente sensível nos seus conselhos, pa-
cífica no seu tom, e facilmente transborda
em alegre adoração. Mas também é bem
diferente das outras cartas de Paulo. Todas,
exceto esta, tratam de situações bem espe-
cíficas nas igrejas às quais ele escreveu.
Tipicamente, elas estão repletas de identi-
ficações locais, contêm ensinos bem argu-
mentados e retoricamente bem formulados
que investigam as dimensões teológicas
de algum problema fundamental, e elas
combinam com isso aplicações meticulo-
samente associadas na forma de apelos aos
leitores. As frases do apóstolo geralmente
são curtas, às vezes ásperas.
Em Efésios, por contraste, o que comu-
mente seria a parte de "ensino" é tomado
em grande medida pelo louvor a Deus (1.3-
14) e por um relato da oração de Paulo pe-
los seus leitores (1.15-3.21, com digres-
sões significativas em 2.11-22 e 3.2-13).
Isso conduz imediatamente à exortação (cp.
4-6). Em toda a carta, as frases geralmen-
te são muito longas e têm um tom ligeira-
mente litúrgico. Ainda mais incomum é o
fato de toda a carta depender fortemente de
Colossenses: trechos e mais trechos podem
ser explicados como uma reformulação dos
temas-chave de Colossenses, e aproxima-
damente um terço do seu fraseado é de fato
transportado de lá para Efésios. Como se
deve explicar tudo isso?
Autoria
Embora a igreja primitiva apoiasse de ma-
neira uniforme a autoria paulina de Efé-
sios, muitos eruditos modernos (incluin-
do os comentários mais importantes de
Schnackenburg e Lincoln) têm questionado
essa autoria. Em vez disso, tentaram expli-
car a carta como a composição de um estu-
dante e admirador de Paulo, que com isso
trouxe o evangelho do apóstolo à sua pró-
pria geração. Esses argumentos estão vin-
culados fortemente às questões suscitadas
acima, e às sutis e alegadas mudanças que
indicariam um distanciar-se da perspectiva
paulina para uma perspectiva posterior. As
questões são complexas demais para serem
tratadas em detalhes aqui, mas são resumi-
das nos comentários de Caird (p. 11-29) e
Foulkes (p. 19-49). Nossa posição pessoal
é que Paulo é de fato o autor, e as alega-
das diferenças entre este autor e o Paulo de
outras cartas ou são compreensões equivo-
cadas de Efésios (algumas das principais
serão levantadas neste Comentário), ou
podem ser explicadas em termos da natu-
reza e das circunstâncias especiais da com-
posição desta carta.
o ambiente da carta
Enquanto era prisioneiro em Roma (em
tomo de 61-62 d.C.), Paulo teve opor-
tunidade para devolver um escravo con-
vertido, Onésimo, ao seu senhor cristão,
Filemom, que vivia em Colossos, ou
perto de lá. Para tratar dessa situação me-
lindrosa, Paulo escreveu a Filemom. Ele
enviou tanto essa carta quanto o escravo
- que estava voltando - aos cuidados
de um dos seus colaboradores, Tíquico
(Cl 4.7-9), e usou a ocasião para escrever
também a toda a igreja de Colossos, ad-
vertindo-a acerca dos falsos ensinamen-
tos que começavam a se horizontar por lá.
 1837
Para ir até Colossos, Tíquico e Onésimo
teriam navegado naturalmente a Éfeso, e
depois tomado o rumo leste para o valo
do Lico pela estrada romana principal que
levava ao Eufrates. Paulo tinha ele pró-
prio baseado sua missão asiática (52-55
d.C.) na grande e pujante cidade de Éfeso
(At 18.19-20.17; 1Co 15.32; 16.8,19;
2Co 1.8-11), e assim teria sido natural
que ele escrevesse uma carta à igreja ali
e a enviasse também com Tíquico (cf
Ef6.21,22 e C14.7-9).
A carta que temos com o nome
"Efésios" não foi escrita, contudo, primei-
ramente aos "santos que vivem em Éfeso"
(1.1). Aliás, as palavras "em Éfeso" não
se encontram nos primeiros manuscritos,
e 1.15 e 3.1-3 pressupõem que Paulo e a
maioria dos seus leitores tinham ouvido
relatos uns dos outros, mas não necessaria-
mente mais do que isso. A carta também
termina sem as costumeiras saudações
pessoais que esperaríamos numa carta en-
dereçada a Éfeso (cf Rm 16; Cl 4.10-17).
Essas características têm sugerido a mui-
tos estudiosos que a verdadeira intenção
de Efésios era ser uma carta circular para
as igrejas de toda a província romana da
Ásia (inclusive as sete mencionadas em
Ap 1-3). Talvez, o que é mais plausí-
vel, tenha sido escrita às igrejas à beira,
ou próximas, da estrada que Tíquico to-
maria de Éfeso para Colossos, incluindo
Magnésia, Tra1es, Hierápolis e Laodiceia.
(Nesse sentido, Efésios pode ser a carta a
que C14.6 se fere como "a [carta] dos de
Laodiceia".)
A natureza e o propósito
da carta
A maioria das características incomuns
dessa carta pode ser mais bem explicada
em termos de nossa compreensão do seu
ambiente. O seu propósito não é confron-
tar algum tipo particular de falso ensina-
mento em alguma igreja específica, mas
encorajar todas as igrejas (principalmen-
te as dos gentios) da região que Tíquico
EFÉSIOS
estava atravessando. Poderia haver outra
forma melhor para Paulo do que cele-
brar a realização em Cristo dos grandes
propósitos de Deus (1.3-14), e incluir
um relato de como ele estava orando pe-
los leitores, intercedendo para que eles
compreendessem alegremente a mensa-
gem central do evangelho e o privilégio
maravilhoso para o qual foram recebidos
(1.15-2.10; 3.1,14-21)? Não é muito
realista argumentar que a carta não seja
paulina porque coloca a oração no lugar
em que Paulo normalmente põe o ensino;
a verdade é antes que a carta ensina o con-
teúdo essencial do evangelho de Paulo em
forma de um chamado à adoração e de um
relato de oração (e as digressões de 2.11-
22 e 3.2-13 explicam mais amplamente o
ensino implícito no chamado à adoração
e no relato de oração). A escolha de um
formato adoração/oração para a maior
parte da primeira divisão da carta já dá o
tom do estilo mais "elevado" e litúrgico
que então - o que não é incomum - se
estende a toda a carta (e é semelhante ao
estilo das orações de Paulo em outras car-
tas). E se Paulo tinha acabado de escre-
ver aos colossenses, e ainda tinha a carta
à mão, seria de admirar se ele a tivesse
reformulado para o conjunto mais amplo
de leitores?
A mensagem central da carta
Efésios toma proeminente um tema que já
era importante em Colossenses: a reconci-
liação cósmica em Cristo (cf Ef 1.9,10,20-
23; 2.10-22 e 3.6 com Cl 1.19,20). O AT
propunha que o universo era a criação do
Deus único, sem igual nem rival, e ini-
cialmente tudo estava em harmonia com
ele (cf Dt 6.4, recitado diariamente pelos
judeus, e Gn 1). Segundo a compreensão
judaica, no entanto, a submissão voluntá-
ria de todas as coisas a Deus se dissolveu
em uma rebelião de reivindicações con-
correntes. As pessoas se tomaram pro-
gressivamente alienadas de Deus e depois
umas das outras, o que foi simbolizado no
EFÉSIOS
jardim do Éden, no assassinato de Abel
e no fiasco de Babel. Deus ainda era o
Senhor do universo (como afirmam todos,
de Js 3.11 a Josefo Ant. 14.24), ele ainda
lhe dava unidade, e essa unidade chegou
à expressão mais clara na obediência de
Israel ao único Deus, seguindo uma única
lei e adorando em um único templo. "As
nações", contudo, estavam separadas de
Deus, e de Israel, pela sua adoração aos
ídolos. E até mesmo Israel, chamado a ex-
pressar em si mesmo a unidade da criação,
foi desfigurado por facções. A nação se di-
vidiu internamente. Na raiz de tudo isso,
no que diz respeito ao judaísmo, estava o
conflito entre o Senhor Deus e os poderes
de Satanás.
Em contraste com o que estava acon-
tecendo na época, o dia do Senhor era
visto como o dia em que Deus sujeitaria
a si todos os poderes concorrentes e assim
restauraria a harmonia no universo. Assim,
como diz Zacarias 14.9: "O SENHOR será
Rei sobre toda a terra; naquele dia, um só
será o SENHOR, e um só será o seu nome".
O Messias é, assim, o príncipe da paz
(Is 9.6) que pacifica até a natureza (Is 11.1-
9; 2Baruque 73.1). Quando ele vier, toda a
oposição será eliminada, Israel será restau-
rado e todas as nações virão para reveren-
ciar o único Deus (Tobias 14.6; Oráculos
Sibelinos 3.080), e elas o adorarão no úni-
co templo em Jerusalém (Is 2.2-4; 56.6,7;
60-62; Mq 4.1-4; Zc 8.20-23; 14.16-19;
Jubileus 4.26).
Tudo isso poderia ser chamado de re-
conciliação cósmica. Efésios ensina que
esse propósito já teve início em Cristo e
será consumado nele. Nele a alienação foi
destruída e a reunificação começou: a an-
tiga divisão da humanidade em judeus e
gentios já foi vencida (2.10-16); e a mais
antiga alienação da humanidade de Deus
foi superada também (2.17,18). Cristo co-
meçou a "encher" e unir o universo (4.10),
trazendo a paz. Mas dizer que essas coisas
começaram nele é também dizer que elas
são experimentadas por aqueles que estão
1838
unidos com ele, ou seja, os crentes. Isso
conduz a uma visão impressionante e ma-
jestosa da igreja. A igreja universal dos
judeus e dos gentios é o lugar que Jesus
enche (1.23); é o lugar em que o mundo
e os poderes devem ver a reconciliação
cósmica já em processo (3.6-10). Pela
união com Cristo, a igreja já é aquele úni-
co templo celestial (2.19-21), e acima de
tudo deve se empenhar em manter essa
unidade que é testemunha dos propósitos
de Deus (4.1-6). O apelo de Paulo nos
cp. 4-6 expressa como devemos viver
de forma tal que reflita a nova criação de
Deus de unidade, harmonia e paz.
Essa nota de unidade cósmica em
Cristo tem sido confundida, às vezes, com
o universalismo (i.e., que no final Deus
salvará todas as suas criaturas, incluindo
os poderes hostis). Isso não está indicado
no texto: 5.6 ainda prenuncia a ira de Deus
sobre a desobediência persistente, e 5.5
adverte acerca de pecados que excluem do
reino de Deus. O que se afirma nesse texto
é que toda a nova criação estará unida em
Cristo, mas partes da antiga criação não
participarão da nova.
Autores posteriores como Inácio e
Ireneu destacaram a unidade institucio-
nal da igreja católica na terra, sob bis-
pos, presbíteros e diáconos. Em contraste
com isso, as ênfases aqui são as ênfases
paulinas regulares em uma única igreja
universal de judeus e gentios como a ma-
nifestação histórica do templo celestial e
da reunificação mundial (como veremos
no Comentário). Paulo estava na prisão
exatamente por tentar fortalecer a unidade
entre as igrejas dos judeus e dos gentios
(v. comentário de 3.13).
Duas características associadas na
carta também são especialmente signi-
ficativas: o foco em "dominadores deste
mundo tenebroso" (6.12), e a ênfase na
presente salvação. C. Arnold demonstrou
como eram fortes as crenças e também os
medos dos poderes espirituais associa-
dos a elas em Éfeso e na região vizinha.
 1839
Colossenses foi escrita em parte contra
esses medos (CI 1.13,16; 2.8,15,18,20)
e assim não é de admirar que a carta de
Paulo aos efésios retomasse novamente
esse tema. Arnold mostrou que há alu-
sões muito mais fortes a tais medos em
Efésios do que se tem aceito comumente,
e que uma parte importante do propósi-
to da carta é neutralizá-los por meio da
insistência no poder maior que há em
Cristo e nos crentes que estão unidos
com ele (v. comentário de 1.19-23; 2.1-7;
3.9,10,15,16,20; 4.8; 6.10-17).
Um grupo de estudiosos crê que
Efésios distorce a tensão genuinamente
paulina entre o que vamos receber e ser
quando a nova época ou nova criação vier
a existir e o que já experimentamos disso
em Cristo. Efésios, assim dizem, contém
muito pouco da salvação futura, dando a
impressão de que supõe que ela já esta
quase totalmente realizada em Cristo. O
fato é, contudo, que as ênfases de Paulo
diferem de acordo com o contexto. Aos
coríntios, exageradamente confiantes, ele
destacou o "ainda não"; aos gálatas, que
estavam ponderando se deviam abraçar a
lei para garantir a salvação, ele destacou
o "já". Colossenses e Efésios ambas res-
saltam o "já" para encorajar crentes que
estão propensos a temer os poderes espi-
rituais do universo. Se eles já estão salvos
desses poderes, é no sentido limitado de
que já foram unidos com o Cristo vitorio-
so nos lugares celestiais, e assim foram
levados definitivamente para debaixo da
influência dele (2.1-9). Os crentes estão
livres agora para contra-atacar, e podem
fazê-lo de uma posição sólida. A bata-
lha, contudo, ainda não acabou (6.10-20)
mesmo que o resultado já esteja garantido
pela nossa união com Cristo (cf CI 3.1-
4). O presente é a era má (6.12,13,16), e a
nossa real redenção está no futuro (4.30;
EFÉSIOS
cf. 1.14; 4.13); daí a ênfase em compreen-
dermos a nossa esperança (1.18).
o principal desafio de Efésios
Essa carta desafia o individualismo pie-
tista e a correspondente e fraca doutrina
da igreja que tantas vezes encontramos
no evangelicalismo. "Não olhe para a
igreja", dizemos, "Olhe para Cristo!".
Paulo, no entanto, espera que as pessoas
de fora vejam Cristo e o propósito unifi-
cador de Deus para o mundo exatamente
na igreja. O desafio para um protestantis-
mo fragmentado e cada vez mais dividido
hoje dificilmente poderia ser mais agudo:
Efésios nos chama a construir pontes, e
não campos minados. Também é um de-
safio para os que promovem igrejas se-
paradas para negros e brancos, igrejas
segregadas em igrejas de ricos, de clas-
se média e de classe operária etc. Esses
grupos homogêneos podem até se enten-
der melhor, mas como poderão refletir
o evangelho da reconciliação? Efésios
desafia a todos nós a encontrarmos me-
lhores maneiras de fazer de nossas igre-
jas locais verdadeiras comunidades de
pessoas cuja vida e adoração como igreja
testemunhem da unidade cósmica inicia-
da em Cristo, e estejam profundamente
imbuídas dessa presença.
Veja também o artigo "Lendo as
cartas".
Leitura adicional
STOTT,1. R. W. A mensagem de Efésios.
BFH. ABU, 2001.
FOULKES, F. Efésios: introdução e comentá-
rio. SCB. Vida Nova, 1983.
MARTIN, R. P. Ephesians. BBC. Broadman,
1971.
CAIRD, G. B. Paul s letters from prison.
Oxford University Press, 1976.
LINCOLN, A. Ephesians. WBC. Word, 1990.
EFÉSIOS 1 1840

ESBOÇO
1.1,2 Autor, receptores e saudação
1.3-3.21 Ações de graças e oração de Paulo
1.3-14 Celebração do plano eterno de Deus
1.15-2.10 Começa o relato de Paulo das suas ações de graças
e oração pelos seus leitores
2.11-22 Digressão: A igreja, reconciliação e unidade cósmicas:
O novo templo
3.1 Continua o relato de oração
3.2-13 Digressão: Elaboração do ministério apostólico de Paulo
3.14-21 O relato de oração de Paulo é concluído; doxologia

4.1-6.20 Encorajamento para que se viva o evangelho da reconciliação cósmica

e a unidade em Cristo ~--c-~~--c-~~~- .-... ----------.~.---

4.1-6 Apelo inicial para uma vida que exponha a harmonia

da nova criação
4.7-16 Os dons da vitória de Cristo e o crescimento
para Cristo
4.17-6.9 Apelos para que se abandone a antiga humanidade
e se viva de acordo com a nova criação
6.10-20 Apelo final: Lutem a batalha espiritual juntos!

6.21-24 Pós-escrito

COM 1.3-14 Celebração do plano

1.1,2 Autor, receptores
e saudação
Esse início segue basicamente a forma de
saudações e tratamento de outras cartas
paulinas. As palavras em Éfeso não apare-
cem nos nossos manuscritos mais antigos,
mas a construção gramatical deixada suge-
re que mesmo esses manuscritos mais anti-
gos continham dois nomes de lugar. A. Van
Roon sugere que a formulação era: "aos
santos em Hierápolis e Laodiceia, que são
fiéis a Cristo Jesus", mas Éfeso e Laodiceia
(os dois extremos da viagem que Tíquico
teria feito) mais facilmente explicariam
como a carta veio a ser conhecida como
Efésios. (Y. a Introdução).
1.3-3.21 Ações de graças
e oração de Paulo
eterno de Deus
Paulo abre o corpo da carta com um tributo
a Deus (como em 2Co 1.3,4 cf IPe 1.3-5).
Esse parágrafo de alegre celebração (que,
no grego, consiste em um longo período)
não é caracterizado nem pela métrica dos
hinos gregos, nem pelo paralelismo linha
por linha dos salmos judaicos, mas é uma
composição de seis seções cuidadosamen-
te estruturada. É mais bem compreendida
como uma oração imponente, ou um cha-
mado à adoração, designada a elevar os
olhos dos leitores para longe de si mesmos
e dos seus temores, para a majestade e o
amor de Deus revelados no seu plano em
desenvolvimento e para o privilégio de par-
ticipar dele. O conteúdo (como nas ações
de graças introdutórias de Paulo em outras
cartas) é propositadamente selecionado
para introduzir os tópicos principais da
 1841
carta; essa seção é, portanto, a chave para a
compreensão da carta como um todo.
Como em orações judaicas semelhan-
tes, esse tributo começa ao declarar Deus
digno de bênção (Bendito, 3a), e aí segue
uma descrição que o amplia e justifica.
Essa descrição se divide em seis seções
(3b,4; 5,6; 7,8; 9,10; 11,12; 13,14), mas
não são de igual proeminência. O grego de
Paulo destaca três expressões particulares
como centrais para a composição. Ele diz
que Deus nos tem abençoado com toda a
sorte de bênção espiritual (3b); nos pre-
destinou para ele, para a adoção defilhos
(5) e [desvendou-nos] o mistério da sua
vontade (9).
As seções elaboradas em tomo dessas
expressões (3b,4; 5,6 e 9,10) na verdade
fornecem o cerne do que Paulo está dizen-
do. Em cada caso o foco está na ação do
Pai (i.e., ele é o sujeito do verbo), e o ponto
é que Deus deve ser visto como digno de
louvor precisamente porque ele realizou
as ações referidas. Nas outras três seções,
Deus não é o sujeito das ações, antes o
foco está naquilo que "nós" (todos os cris-
tãos) recebemos no Filho (em Cristo, 7,8;
11,12), ou naquilo que os leitores começa-
ram a experimentar por meio do Espírito
(13,14; observe a mudança para vós) como
consequência da ação de Deus.
A concentração nos tempos verbais no
passado têm enganado muitos intérpretes
a ponto de pensarem que em Efésios a
salvação é vista como já completa. Como
veremos, no entanto, seria verdadeiro di-
zer que Paulo celebra o fato de que a sal-
vação futura já começou e está garantida
em Cristo.
3,4 As palavras iniciais (gr. lit. "aben-
çoado") também podem ser traduzidas por
"digno de bênção", ou, como na maioria
das versões em português: Bendito o Deus
e Pai (cf NTLH: "Agradeçamos ao Deus
e Pai "), e o que segue são as razões para
pronunciá-lo "digno de bênção". Paulo,
no entanto, não está argumentando; ele
está começando a exaltar a Deus e impli-
EFÉSIOS 1
citamente convida os seus leitores a fazer
o mesmo. Em seguida, Paulo identifica a
Deus como o Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo, pois foi precisamente no Filho (e
no evangelho do que o Pai realizou por
meio dele) que os leitores vieram a verda-
deiramente conhecer a Deus, e começaram
a reconhecê-lo como digno de bênção.
A primeira razão para aplaudir a Deus
como "digno de bênção" é que ele tão ri-
camente nos tem abençoado (3b). Paulo
está consciente, sem dúvida, de que nem
ele nem seus leitores já experimentaram no
presente todas as bênçãos espirituais, e por
isso acrescenta a sua qualificação. Temos
recebido essas bênçãos somente nas regiões
celestiais e em Cristo. Ou seja, as bênçãos
da época por vir (cf 1.21), ou o Reino de
Deus, foram definitivamente conferidas a
Cristo que reina à direita de Deus ("nos
lugares celestiais", 1.20,21), e assim es-
tão garantidas para nós, o seu povo, por
intermédio dele. Além disso, por estarmos
unidos com ele (cf 2.6), já começamos a
participar de algumas dessas bênçãos es-
peradas (veremos quais e como, na medida
em que prosseguirmos com a carta).
Essa bênção essencialmente futura,
que já começamos a experimentar em
Cristo, é assegurada também com base
na eleição divina (4). Já antes da criação
Deus escolheu um povo (em Cristo) que
estivesse perante ele santo e irrepreensí-
vel em amor. Observe que a ideia aqui não
é primariamente a eleição de indivíduos
para a igreja (embora isso possa estar
implícito), para que sejam santos e irre-
preensiveis (como em Fp 2.15). A ideia
principal é antes que Deus na eternidade
escolheu um povo em Cristo (nos, i.e., a
igreja), para estarmos perante ele santos
e irrepreensíveis no juízo final (como em
Cl 1.22, que Paulo tem em mente aqui),
e assim entrarmos nas plenas bênçãos da
era messiânica, e na nova criação.
5,6 Essa seção explora ainda mais o
pensamento do v. 4. Centralmente, lem-
bra-nos de que o prazer e a vontade eletiva
EFÉSIOS 1 1842
de Deus para o seu povo são a nossa ple-
na adoção futura como filhos, por meio de
Jesus Cristo (5). Paulo cria que em certo
sentido os cristãos já desfrutam da "filia-
ção" de Deus, a obediência filial amorosa
inspirada pelo Espírito (cf Rm 8.14,15;
Gl 4.6). Ele enxergava isso, contudo, prin-
cipalmente como uma primeira parcela ou
um antegosto de um tipo muito mais pleno
de adoção de filhos. Assim ele diz que a
criação espera pela revelação dos filhos de
Deus (Rm 8.19), e nós ainda "gememos
em nosso íntimo, aguardando a adoção de
filhos" (Rm 8.23), que virá por meio da res-
surreição e da nova criação. Combinando
isso com Efésios 1.4 e 12-14, provavel-
mente é esta última filiação da "nova cria-
ção" que o autor tem em mente aqui. Em
outras palavras, Deus elegeu a igreja para
aquela plena e gloriosa filiação a ele que
resultará da nossa transformação/ressurrei-
ção na/para a semelhança de Jesus (nesse
sentido pleno por meio de Jesus Cristo; cf
lCo 15.42-49; Fp 3.21; Cl 3.4).
Visto que essa filiação é o resultado da
generosa vontade de Deus, realizada por
meio de Cristo, ela redundará no louvor de
Deus (6a). E visto que já estamos unidos
com Cristo por meio do Espírito, pode-se
dizer que essa graça, incluindo a filiação,
já foi plenamente conferida a nós, contanto
que qualificada pela afirmação: gratuita-
mente no Amado (i.e., Cristo; cf Me 1.11;
9.7; CI1.13).
7,8 Essa seção subordinada desenvol-
ve o v. 6b. Na nossa união com Cristo, já
participamos dos benefícios da futura re-
denção deste mundo do mal, a qual Deus
garantiu pela morte expiatória de Cristo.
(Sangue é uma metáfora bíblica para a
morte sacrificial expiatória [não importa se
a morte foi em virtude da perda de sangue
ou não; cf. Jo 1.14] porque originariamente
era o sangue de animais sacrificiais que era
de fato oferecido). O benefício particular
que Paulo escolhe mencionar aqui (como
em Cl 1.14) é a remissão dos pecados-
não porque essa é a única parte da bênção
futura que já experimentamos agora, mas
porque está na raiz das outras. Enquanto
não se tratar do pecado, a humanidade
está alienada de Deus e de seus benefícios
(cf 2.1-3,11-22; 4.17-19; 5.8-14). Aliás,
Paulo esclarece que a dádiva do perdão é
acompanhada também pelas da sabedoria
e da prudência espirituais, que estão no
cerne da nossa caminhada com Deus como
Pai (e por cujo aprofundamento ele ora em
1.15-23; 3.14-19).
9,10 Essa seção volta à confirmação do
que Deus fez, e, assim, por que ele é "dig-
no de bênção", e apresenta o seu clímax.
Deus nos tomou conhecido, tanto na com-
preensão quanto na experiência, o mistério
que sempre esteve no centro da sua vonta-
de. Em Efésios, "mistério" significa algo
magnífico demais para ser compreendido.
O mistério que Deus nos tomou conhecido
é a implicação central do que ele propuse-
ra em Cristo, ou seja, no seu ministério,
morte e ressurreição/glorificação. É um
mistério concernente à plenitude dos tem-
pos que denota primeira e principalmente
os tempos que seguem esta era (o Reino de
Deus, e a nova criação). Mas Paulo crê que
a plenitude dos tempos já é antecipada ali
onde Cristo está entronizado nas regiões
celestiais, e que os crentes compartilham
disso com ele. O conteúdo desse mistério é
a intenção de Deus de "levar à unidade em
Cristo o universo, tudo o que há no céu e
na terra" (assim corretamente a REB; ARA:
fazer convergir nele [...] todas as coisas,
tanto as do céu, como as da terra; a formu-
lação da BJ - "a de em Cristo encabeçar
todas as coisas" - está fundamentada em
etimologia insuficiente, embora, à luz dos
v. 20-23, expresse bem como Paulo imagi-
na que Deus irá atingir tal unidade). Acerca
do significado teológico dessa unidade e da
sua importância fundamental para a carta,
ver a Introdução. Essencialmente, então,
o aspecto de Deus ser digno de bênção é
afirmado com base no fato de que ele nos
mostrou em Cristo e na igreja o início do
seu plano mestre de trazer de volta para
 1843
si o cosmo e de restaurar a harmonia per-
dida por meio da rebelião e consequente
alienação.
11,12 Como a seção seguinte, estes ver-
sículos deixam de focalizar na atividade de
Deus e (como os v. 7,8) exploram a nossa
participação em tudo isso em Cristo. Eles
repetem, em parte, a garantia de que pela
união com Cristo somos predestinados a
nos tomar troféus da graça de Deus, que
evocam o louvor da criação a Deus (cf 6a).
Essa ênfase na pré-ordenação não ofusca
a real escolha e responsabilidade huma-
na, mas nos assegura do poder soberano
e abrangente de Deus e do seu propósito
diretivo em ação no crente (v. Carson). A
ênfase teria sido especialmente apropriada
para os leitores da região de Éfeso, que es-
tavam particularmente propensos a temer
a influência decisiva de outros poderes
(v. Arnold).
A maioria das versões e comentaristas
entendem que o v. 12 está distinguindo o
nós - judeus ou cristãos judeus, os que de
antemão esperamos em Cristo - do vós
(13) - cristãos gentios, que vieram à fé
mais tarde. Mas o "nós" em todo o trecho
dos vv 3-10 é uma referência a todos os
crentes (não só os judeus), e faz a mesma
coisa aqui (v. Lincoln). Seria melhor tradu-
zir o v. 12 assim: "para que nós que primei-
ro [i.e., agora] esperamos em Cristo possa-
mos então [i.e., no juízo final] ser para o
louvor da sua glória".
13,14 A seção final destaca a participa-
ção dos leitores em tudo isso (daí a mu-
dança para "vós"). Em Cristo, tendo crido
no evangelho, eles também foram distin-
guidos como povo de Deus. (Y., e.g., Ez
9.4-6 e Ap 7.1-8 acerca da ideia de Deus
colocar a sua marca de identificação no
seu povo). O selo usado para distingui-
los não é nada menos do que o prometi-
do dom do Espírito. Como em Atos 2, a
promessa em questão é principalmente a
de Joel 2.28,29, mas interpretada de uma
forma distintivamente cristã. Por meio
desse dom, eles receberam sabedoria e ilu-
EFÉSIOS 1
minação para perceber as implicações do
evangelho (1.17-20; cf. 3.5); receber for-
talecimento interior no evangelho (3.16;
cf. 6.17); acesso à presença de Deus e de
Cristo e a presença divina habitando neles
(2.18,22; 3.16,17); o início da prometida
unidade cósmica (4.3,4); inspiração para
a vida piedosa e a adoração agradecida
(4.30; 5.18-20) e ajuda em oração (6.18).
Todas essas atividades marcam os crentes
como povo de Deus e são indispensáveis
para a existência cristã contínua. O selo do
Espírito não é um tipo de segunda bênção
- a expressão tendo nele também crido
(13b) significa de fato: "quando vocês cre-
ram", ou "assim que depositaram a sua fé
nele [no evangelho]". Essas atividades do
Espírito prefiguram em tipo e qualidade o
que ele fará de forma mais plena na nova
criação, e assim o Espírito com que Deus
nos marca com seu selo de propriedade
é também adequadamente chamado de
penhor, "garantia" (NTLH, NVI), ou até de
"primeira parcela" da nossa herança (cf
Rm 8.23; 2Co 1.22; 5.5). Mas as bênçãos
que recebemos agora são somente uma
prefiguração: de acordo com Paulo, ainda
esperamos a nossa herança na redenção fi-
nal e total do mundo por Deus no fim dos
tempos. Em 4.30, isso é reforçado, lem-
brando-nos que somos selados "para o dia
da redenção" ainda por vir. Aí o propósito
de Deus, iniciado em Cristo, será levado à
consumação, e observar isso do começo ao
fim certamente evocará o louvor da criação
pelo Criador.
1.15-2. 10 Começa o relato de
Paulo das suas ações de graças e
oração pelos seus leitores
1.15-19a Relato de ações de graças. Era
comum que cartas gregas começassem
com uma declaração de ações de graças
aos deuses e promessas de intercessão
contínua. Paulo usava essa forma regular-
mente, embora ele a tenha desenvolvido de
maneira distintivamente cristã. A declara-
ção de ações de graças em si (15,16), que
EFÉSIOS 1
é apresentada especificamente por aquilo
que Deus está fazendo na vida dos leito-
res e, por isso, tem um foco diferente dos
tópicos mais gerais do tributo de louvor, é
breve em comparação às suas outras cartas
(embora Gálatas não tenha nada disso), e
marcantemente destituída de detalhes pes-
soais (cf Cl 1.3,4 e Fm 4,5, segundo as
quais é, no mais, modelada). O relato de
oração que segue é, no entanto, surpreen-
dentemente longo, e mais extensamente
entretecido com ensino do que o normal.
Vai no mínimo até o v. 23 (v. 15-23 são
na verdade um longo período composto no
grego), mais provavelmente até 2.10, e é
retomado novamente em 3.1,14-21. Essas
características incomuns provavelmente
devem ser explicadas pelo propósito geral
da carta, e pela intenção de que deveria ser
lida para diversas congregações não rela-
cionadas entre si.
A oração regular de Paulo por seus lei-
tores é, como ele relata, por iluminação
espiritual, para que conheçam a Deus mais
profundamente e compreendam a nature-
za da esperança cristã (17,18) e a natureza
do poder de Deus já operante nos cristãos
(19a). Este último ele exemplifica de duas
maneiras diferentes: diz que está para ser
revelado na ressurreição e na exaltação do
próprio Cristo (19b,23), e é manifestado
no fato de nós sermos trazidos da "mor-
te" para a "vida" espiritual em união com
Cristo (2.1-10).
15,16 A expressão inicial Por isso re-
fere-se a 1.14, e, por meio desse versículo,
a todo o trecho de 1.3-14. Paulo dá gra-
ças pelos leitores da Ásia romana porque
Deus os levou a participar da salvação. Ele
dá graças brevemente também por aquilo
que ouviu da fé e do amor deles (como em
Colossenses e Filemom), indicando que
ele vê esses aspectos como frutos da graça
de Deus. Esses versículos são a evidência
clara de que Paulo não estava escrevendo
principalmente a Éfeso (onde ele ficou por
até três anos); ele mostra conhecimen-
to mars detalhado das congregações de
1844
Colossos na declaração de ações de graças
nas cartas dirigidas a elas (e ele nos diz que
nunca as visitou pessoalmente: Cl 2.1) do
que mostra aqui.
17-19 Esses três versículos estão con-
centrados no conteúdo da oração de Paulo.
A oração no v. 17 por um espírito de sa-
bedoria e de revelação (v. mrg. nvt: "ou
o Espírito") representa uma forma de falar
tipicamente judaica; significa que Paulo
está orando para que o Espírito que eles já
receberam seja experimentado dando-lhes
essas coisas. Observe que o propósito do
pedido não é de informação especial, mas
de percepção e conhecimento mais profun-
dos do próprio Deus (como ele foi reve-
lado em Cristo). Sabedoria, iluminação e
revelação eram de fato os dons típicos que
os judeus esperavam do Espírito. O poder
é mencionado muito mais raramente (cf
Êx 31.3; Dt 34.9; Is 11.2; lEnoque 49.3;
IQS 4.3-5).
A oração do v. 18 é igualmente uma
oração por compreensão espiritual: o cora-
ção aqui é um sinônimo parcial da mente,
vontade e espírito, e significa o centro da
percepção e das decisões. Embora Paulo
seja o autor do NT que mais tenta explicar
e argumentar a sua teologia em termos de
compreensão racional, ele claramente reco-
nhece que isso é só parte da tarefa. O cora-
ção da pessoa não necessita meramente de
mais conceitos teológicos refinados, mas
da obra do Espirito integrando esses con-
ceitos com a percepção da pessoa e assim
reestruturando a sua vontade e vida. Paulo
ora para que seus leitores sejam capazes de
entender (para saberdes) a esperança que
está à frente deles nesse sentido mais com-
pleto. Se eles realmente captarem que Deus
tem a intenção de fazer deles e de todos os
santos uma maravilhosa herança para si
mesmo, esse conhecimento ("Pela graça
dele devo ser um príncipe e não um sapo")
os transformará com alegria e amor. Israel
é retratado com frequência no AT como a
herança de Deus: v., e.g., Deuteronômio
4.20; Salmos 33.12; Isaías 63.17; Jeremias
 1845
10.16. Aqui Paulo a aplica à igreja glorifi-
cada, e sua oração é que eles entendam a
esperança que predomina no seu tributo de
louvor inicial (1.14,5,6,12).
A terceira parte da oração de Paulo
(l9a) é que os leitores entendam a natu-
reza e a intensidade do poder de Deus já
operante neles. Se os crentes olharem sim-
plesmente para o que veem Deus fazen-
do na sua própria vida agora, facilmente
podem subestimar o poder de Deus, ain-
da mais porque agora é manifestado em
amor cruciforme. Os leitores efésios, por
virem de um ambiente de crenças forte-
mente mágicas, podem ter achado que
o poder de Diana era mais imponente e
temível do que o de Deus. (A Diana dos
Efésios era considerada rainha tanto dos
poderes celestiais, incluindo os potentes
poderes zodiacais, quanto dos deuses do
inferno; v. Arnold.) Isso poderia ter cor-
roído a sua confiança em Deus e minado
a sua firmeza em meio ao conflito espi-
ritual em que estavam engajados. Paulo
sabia que a proporção espetacular do
poder de Deus no seu povo só será com-
pletamente revelada no final desta criação
(assim 1.5,6,9,10,14), mas ele já podia
mostrar aos seus leitores para onde olhar
na presente época para vê-lo manifestado
(1.19b-2.10).
19b-23 O poder salvador de Deus
revelado na ressurreição/exaltação de
Cristo. Visto que ele é o Homem verdadei-
ramente representativo, a sua ressurreição
e glorificação são um retrato do que Deus
vai realizar em nós (cf lCo 15.45-49;
Fp 3.21). Certamente há uma diferença: a
autoridade investida em Jesus por meio da
sua exaltação é singular, mesmo que haja
um sentido que nós compartilhamos dela
(cf 2.6). Mas é exatamente essa diferença
que conduz Paulo a mais uma forma de as-
segurar os efésios do poder de Deus neles,
pois ele conclui dizendo que o Jesus que
recebeu todo o poder foi dado por Deus à
igreja, a qual ele completa (22,23). Isso
sem dúvida significa que a completa auto-
EFÉSIOS 1
ridade e o poder investidos em Jesus estão
operantes na igreja.
As afirmações tanto acerca da ressur-
reição de Jesus quanto de sua exaltação
à direita de Deus (20) eram tradicionais
na igreja, e a última é formulada na lin-
guagem de Salmos 110.1 (cf At 2.34-36;
Rm 8.34; C13.1 e Hb 1.3,13). Ela fala da
entronização de Jesus como governante
cósmico que recebe o lugar de honra na
esfera celestial (daí nos lugares celestiais).
Jesus não foi removido da influência ter-
rena pela ascensão; ocorreu exatamente
o contrário: ele foi elevado à posição de
influência máxima sobre as questões na
terra. Por isso, nenhum outro poder ou
potentado, no mundo ou nos céus, seja
bom ou mau, pode ser comparado a ele; a
autoridade dele, como o daquele que está
à direita de Deus, está acima de tudo (21).
Os primeiros leitores teriam entendido o
ponto: nenhum dos poderes a quem esta-
vam propensos a temer poderia ser com-
parado a Jesus.
Enquanto em Salmos 110.1 Deus or-
dena ao Senhor celestial que se assente à
sua direita "até que eu ponha os teus ini-
migos debaixo dos teus pés", o v. 22a aqui
insiste em que Deus já pôs todas as coisas
debaixo dos pés de Jesus. Isso não é deixar
de ser realista acerca da continuação do
mal, mas é uma mudança da linguagem de
Salmos I JO para a de Salmos 8.6. (Paulo
faz o mesmo em lCo 15.25-27). Jesus é
com isso retratado como o segundo Adão
que recebe a tarefa de exercer o domínio
sobre o cosmo. Como tal, ele é o cabeça
sobre todas as coisas (22b), ou seja, o go-
vernante ou senhor, um significado de "ca-
beça" bem atestado no grego bíblico e em
outros textos. O essencial do que segue no
v. 22b é então mais bem formulado pela
NVI: Deus "o designou cabeça de todas as
coisas para a igreja". Paulo dificilmente
poderia ter feito um retrato mais comoven-
te do poder operante na igreja, mas, para
reforçá-lo ainda mais, ele descreve a igreja
de duas maneiras distintas. .
EFÉSIOS 2
Em primeiro lugar, ele chama a igreja
de corpo de Cristo (23a). Em 1Coríntios,
a igreja como "corpo" de Cristo inclui
seus próprios ouvidos, olhos e cabeça
(lCo 12.16-21) ~ é um corpo inteiro que
pertence a Cristo e está intimamente unido
com ele (lCo 6.15; 12.12). Esse provavel-
mente também é o significado aqui, e não
que a igreja é simplesmente um torso sem
cabeça, do qual Jesus mesmo é a cabeça;
pois o v. 22 descreve Jesus como cabeça
do cosmo, não da igreja, e usa "cabeça"
com o sentido de "governante", e não de
uma parte anatômica. Mas o fato de des-
crever a igreja como seu "corpo" logo de-
pois de descrever a Jesus como "cabeça"
quase inevitavelmente realça ao menos a
conotação da união entre eles (cf 4.16;
5.23,28 e o mais marcante: "Ele é a cabeça
do corpo, da igreja" em CI 1.18).
O v. 23 prossegue e descreve Jesus
como aquele que a tudo enche em todas as
coisas (cf 4.10). "Encher" é uma metáfora
para "tomar-se presente a, e ativo em" ou
"estender influência, ou governo, sobre".
Como "cabeça" sobre todas as coisas,
Jesus as "enche"; ele assim começa a cum-
prir o mistério mencionado nos v. 9,10, ele
começa a tarefa de sujeitar a rebelião e de
atrair todas as coisas à unidade e harmonia
em si mesmo. Mas, diz Paulo, é suprema-
mente a igreja que é a plenitude dele (i.e.,
a coisa que ele enche) ~ e ele vai explicar
isso em mais detalhes em 2.1-22.
Em resumo, Paulo ora para que os seus
leitores compreendam que o poder operan-
te na igreja é a presença do mesmo poder
que vai gerar a nova criação, um novo uni-
verso em harmonia total, unido sob Cristo.
Na sua união com Cristo, a igreja já rece-
beu um ante gosto daquele final.
2.1-10 O poder salvador de Deus
revelado na salvação da igreja. É in-
feliz e inadequada a divisão de capítulos
feita aqui, porque há boas razões para se
crer que esta seção forma um parágrafo
com 1.15-23. Ali Paulo explicou o po-
der de Deus na igreja como revelado na
1846
ressurreiçao do representante, o Homem
Jesus, e a dádiva que Deus deu por meio
dele como governante exaltado do cosmo
à igreja. Aqui ele quer chamar a atenção
para o mesmo poder de Deus, mas agora
na medida em que é revelado no fato de
Deus nos levar da morte para a vida. Ele
começa o v. I (no grego) com o conectivo
direto "e" (omitido na maioria das versões;
mas a ARe começa o versículo com "E"),
e pode parecer que ele tinha em mente es-
crever: "E vós, estando mortos em vossas
transgressões e pecados, ele vos vivificou
em Cristo..." (em paralelo com CI2.12,13;
3.1,2). No entanto, foi desviado dessa afir-
mação clara e franca pela necessidade de
explicar a expressão: estando vós mortos
nos vossos delitos. E depois de expor um
quadro desanimador da posição antiga dos
leitores (2), ele precisava deixar claro no
v. 3 que não eram só eles (vós), mas todos
(nós) estávamos na situação desoladora
da qual Deus de forma misericordiosa nos
resgatou. Finalmente nos v. 5,6, Paulo re-
toma o ponto em que tinha começado, mas
agora na primeira pessoa do plural: estan-
do nós mortos em nossos delitos, nos deu
vida juntamente com Cristo .... Aqui está a
revelação adicional do poder de Deus na
igreja que Paulo pede em oração seja com-
preendida pelos seus leitores, pois certa-
mente dará significado à vida deles, alegria
ao coração, adoração grata aos seus lábios
e força para a sua luta.
1-3 Estando vós mortos nos vossos
delitos é novamente uma forma judaica
de falar; sua intensidade é adequadamen-
te ilustrada por um midrash (comentário
judaico) de Eclesiastes 9.5 que fala dos
"maus que sabem que mesmo durante o
seu tempo de vida são chamados de mor-
tos". Aqueles que estão presos nos peca-
dos estão condenados à morte, e assim já
pertencem ao domínio dela; exatamente
aquilo que eles pensam que é "vida" não
é nada mais do que um antegosto da mor-
te, porque Deus não está nisso (cf Jo 5.24;
1103.15 e 1QH 11.10-14). Enquanto Paulo
 1847
em outros textos ensina que esse estado de
coisas é resultado do pecado, esse não é o
ponto aqui; antes, o estado nos vossos de-
litos e pecados é o que caracterizou a sua
existência antiga. Essas coisas eram o fruto
corrupto da "morte" deles. No v. 2, Paulo
atribui essa vida marcada pelos pecados
principalmente a dois fatores relacionados
- a influência deste mundo (i.e., a criação
presente e caída e as forças que ela gera
na sociedade, que está em rebelião contra
Deus e em contraste com a "nova época"
ou "nova criação" esperada), e a influência
de Satanás, descrito aqui como príncipe da
potestade do ar. O aer denotava os céus
inferiores, mais próximos da terra, e mui-
tos pensavam que era a habitação dos seres
espirituais malignos. A ideia de Satanás
como o que agora atua nos filhos da de-
sobediência é encontrada também na lite-
ratura judaica. Por exemplo, na Ascensão
de Isaías se diz que ele "se alegrou em
Jerusalém por causa de Manassés e o forta-
leceu na sua liderança para a apostasia e na
injustiça que se espalhou em Jerusalém"
(2.2-4; cf 2Rs 21; 2Cr 33). Tudo isso pode-
ria soar como um determinismo para o mal
pelo qual não somos responsáveis, mas o
v. 3 coloca a culpa de forma igual e ade-
quada sobre a nossa natureza rebelde com
seus desejos e pensamentos corrompidos.
Tudo isso fez de nós o que Paulo chama de
filhos da ira; ou seja, os que estão conde-
nados a sofrer a santa ira de Deus dirigida
contra o pecado.
4-7 O que Deus no seu amor e mise-
ricórdia de fato fez por nós, então, chega
como um forte e surpreendente contraste
à condenação vislumbrada no v. 3, e reve-
la de forma tão dramática a natureza do
poder de Deus operante em nós. O v. 5 o
retrata como o poder da ressurreição que
nos transfere da "morte" para a "vida".
Isso poderia ser compreendido simples-
mente como uma metáfora de um rela-
cionamento restaurado (como Lc 15.32),
mas provavelmente significa mais do que
isso. Dizer que fomos vivificados - nos
EFÉSIOS 2
deu vida (a palavra usada no original
normalmente denota ressurreição) jun-
tamente com Cristo parece uma forma
abreviada de dizer: "Nós seremos ressus-
citados com Cristo para uma vida de nova
criação, e podemos falar disso como se já
fosse um evento concretizado porque, pri-
meiro, o evento decisivo da ressurreição
do representante, o Homem Jesus, está
no passado, e, segundo, já começamos a
participar em alguns aspectos dessa vida
de nova criação na nossa presente união
com ele".
O mesmo deve ser dito acerca do
v. 6, que fala de termos sido exaltados e
assentados com Cristo nos lugares celes-
tiais (i.e., com Cristo, no seu trono, à di-
reita de Deus; o v. 6 é modelado segundo
1.20). Embora Paulo ensine que os crentes
estarão envolvidos no juízo e no gover-
no da nova criação (v., e.g., 1Co 6.2; cf
Ap 3.21), ele insiste com igual firmeza em
que ainda não estamos lá (l Co 4.8). Esses
versículos na sua essência não estão dizen-
do coisas muito diferentes.
Diversos comentaristas têm frisado
que aqui Efésios se afasta do verdadeiro
Paulo, ensinando que a salvação é com-
pleta, a batalha acabou e que os crentes já
governam nos lugares celestiais. O autor
(geralmente considerado um discípulo de
Paulo) é então acusado de ser triunfalista.
Mas isso deixa de levar a sério a ênfase na
esperança em 1.3-23; e minimiza 4.20-
5.15; 6.10-18 e especialmente 6.12, que
certamente retratam a presente experiên-
cia cristã como estando em conflito com o
padrão da nossa antiga humanidade peca-
minosa e com os poderes desta era. Os v.
5,6 fazem mais sentido quando compreen-
didos como apontando para o futuro: o
que eles dizem agora só é completamente
verdadeiro em Cristo, mas se pode afir-
mar acerca de nós no sentido secundá-
rio que ele é o nosso representante, que
ele é determinante para o nosso futuro,
e que nós estamos unidos com ele ago-
ra pelo Espírito. De forma semelhante,
EFÉSIOS 2 1848
o tempo verbal perfeito de pela graça
sois [lit. fostes] salvos no v. 5 (também
no v. 8), não quer dizer que o autor pensa
que a nossa salvação já esteja completa,
mas que a nossa completa salvação já foi
garantida e revelada em Cristo, e está a
caminho para nós: começamos de fato a
experimentar a transferência do domínio
da morte para o domínio da ressurreição e
vida. Esses versículos devem sercompreen-
didos como uma elucidação mais ampla
do tipo de afirmação que Paulo faz em
Colossenses 1.13; 3.1-4. O v. 7 (fazendo
eco a 1.6,7,18,21) mostra que é o futuro
que vai desvendar a salvação e a graça co-
nhecidas agora somente à fé.
8-10 Esse resumo ecoa parcialmente
a linguagem dos debates em Gálatas e
Romanos acerca da justificação pela fé
sem o compromisso com a lei mosaica.
O ponto que Paulo está destacando aqui,
contudo, é bem diferente, mesmo que
complementar. Ele diz que a salvação
que já experimentamos, na nossa transfe-
rência da "morte" para a "vida" em união
com Jesus, é uma manifestação dramática
do poder generoso de Deus, precisamente
porque é derivado totalmente dele. Não
é o produto das nossas obras, nem a re-
compensa por elas; é o dom de Deus à fé.
(O grego usado por Paulo aqui não sugere
que ele esteja dizendo que a fé também é
puramente a graça de Deus, embora isso
possa ser deduzido de outras considera-
ções.) Isso não quer dizer, Paulo esclare-
ce rapidamente, que as obras não sejam
importantes. Mas a nossa vida antiga com
suas obras só contribuía para piorar a
situação difícil da qual precisávamos ser
libertos. Em contraste com isso, o v. lO
desenvolve a nossa salvação em termos da
nova criação de Deus para nós em Cristo
(cf 2Co 3-5; 5.17; GI 6.15). Assim,
com Jesus somos os primeiros frutos da
nova criação e fomos feitos tais para que
de fato sejamos capazes de realizar obras
verdadeiramente boas. Isso será explica-
do amplamente em 4.17-6.20.
2. 11-22 Digressão: A igreja,
reconciliação e unidade cósmicas:
O novo templo
Paulo interrompe aqui o relato de sua ora-
ção para os seus leitores e, portanto, em
termos formais, os v. 11-22 são uma di-
gressão. Em outro sentido, contudo, são
o cerne teológico da carta; pois as verda-
des contidas nesse trecho fundamentam e
explicam o hino de louvor e a oração de
Paulo, e reforçam a sua mensagem. Se
Efésios é a coroa dos escritos teológicos
de Paulo, 2.11-22 talvez seja a joia central;
mas como uma pérola belamente lapidada,
ela contém profundidade e sutileza que
não são facilmente resumidas.
Estruturalmente, a seção é totalmente
dominada pelo contraste então/agora (que
amplia o contraste semelhante anterior nos
v. 1-7). Começa nos v. 11-13, que ressal-
tam principalmente o elemento "então"
(observe o outrora do v. 11, o naquele tem-
po do v. 12 e o contrastante Mas, agora,
em Cristo Jesus do v. 13), e é retomado
nos v. 19-22 que destacam principalmente
o "agora". Os v. 14-16 (com os v. 17,18
fazendo a recapitulação) fornecem a peça
central e a transição, e assim dividem todo
o trecho dos v. 11-22 em três partes.
O contraste então/agora de Paulo é ex-
presso principalmente em termos do gran-
de tema da alienação passada (12,19), da
exclusão de então (13) ou hostilidade (16)
e da presente reconciliação (16), unidade
(15,16) ou paz (17). Em resumo, o trecho
nos conta como Deus começou a reconci-
liação cósmica que era o seu plano eterno
(1.9, IO). Há duas dimensões importantes
nisso. Os v. 11-15 focalizam primariamen-
te em como a grande barreira entre judeus e
gentios foi removida em Cristo, e como os
gentios foram unidos com o Israel que crê.
Poderíamos chamar isso de "reconciliação
horizontal". Os v. 16-22, no entanto, têm
uma ênfase diferente; eles explicam como
tanto judeus quanto gentios são reconci-
liados com Deus (16,17), como obtiveram
acesso a ele (18) e foram transformados
 1849
no santuário celestial habitado por ele
(19-22). Vamos chamar isso de "reconcilia-
ção vertical". Observaremos atentamente
nos comentários mais detalhados de cada
seção como essas duas estão relacionadas
(e como são realizadas).
11-13 A primeira seção convida os lei-
tores predominantemente gentios-cristãos
a lembrar a sua situação anterior como de
excluídos do povo de Deus. Eles eram
então o que muitos judeus chamariam de
"incircuncisão". A circuncisão era o selo
da aliança com Israel, e, portanto, o que
distinguia os judeus do restante do mun-
do. Assim, o judaísmo podia referir-se a
si mesmo como circuncisos (ou a circun-
cisão), significando "o povo da aliança
com Deus", e rejeitar o restante do mun-
do, que estava fora da aliança, como "a
incircuncisão", O ponto não era que so-
mente os judeus praticavam esse pequeno
procedimento cirúrgico (outros semitas
também o praticavam), mas somente eles
o praticavam como rito de entrada na
aliança mosaica.
Paulo começa a sua descrição da an-
tiga posição dos gentios usando a lingua-
gem que qualquer judeu poderia usar para
apontar para a sua posição "de fora". Está
igualmente claro, contudo, que Paulo não
está realmente satisfeito com essa forma
de expressar as coisas, e sente a necessida-
de de qualificá-la ao esclarecer que judeus
são somente os que se chamam circunci-
são. Para Paulo, a deles é uma circunci-
são realizada meramente pelos homens,
porque, para ele, a circuncisão deles com
frequência não é nada mais que um ato ci-
rúrgico exterior, e o relacionamento com
Deus que deveria representar não se tomou
uma realidade interior realizada por Deus.
Para Paulo, é na família da fé que o relacio-
namento com Deus de fato cumpre o que
significa a circuncisão (v. Rm 2.28,29), e
isso é profundamente verdadeiro para os
cristãos (Fp 3.3; Cl 2.11).
Paulo retoma ao seu ponto principal no
v. 12. Antigamente, como gentios incrédu-
EFÉSIOS 2
los, os leitores podiam não ter tido parte al-
guma em Cristo, pois o Messias é primeira
e principalmente o rei de Israel (Rm 9.5).
Eles estavam alienados da comunidade de
Israel ~ o povo de Deus que recebe a sua
bênção. A expressão comunidade escolhi-
da por Paulo (assim também NVI; contra o
menos provável "cidadania em Israel", BJ)
sugere que ele não está pensando aqui na
nação de Israel, mas mais particularmen-
te nos judeus fiéis vistos como vivendo
uma teocracia. A exclusão dos gentios da
comunidade do povo de Deus significa-
va que eles não tinham parte nas alianças
que prometiam a salvação messiânica. (A
linguagem aqui ecoa fortemente Rm 9.4.)
"Esperanças" e "deuses" eles podem ter
tido em profusão, mas esses teriam se tor-
nado vazios, pois os gentios estavam sem o
verdadeiro Deus e a esperança que ele dá, e
que agora estava começando a cumprir.
Agora, em Cristo (13), a situação deles
mudou dramaticamente, e Paulo escolhe
uma metáfora bíblica comum para ex-
pressar o contraste. As imagens de longe
e "próximo" (fostes aproximados) têm sua
origem em Isaías 57.19, e elas dominam
a descrição de Paulo até os v. 17,18 (em
que ele de fato usa a formulação de Isaías).
No v. 13, contudo, ele usa a linguagem que
de certa forma reflete mais proximamente
um uso especial dessa imagem no judaísmo
contemporâneo. O verbo "aproximar" tinha
se tomado um termo técnico para fazer do
não judeu um prosélito, e assim acrescen-
tá-lo à congregação de Israel. Isso tomava
a pessoa referida "próxima" em dois sen-
tidos, ambos atestados no judaísmo. Essa
pessoa se tomava "próxima" do restante
do povo de Deus e "próxima" do Deus de
quem o povo estava "próximo". Eles ti-
nham acesso ao templo (o lugar especial
da presença divina) e ao Deus que estava
presente de forma mais geral entre o seu
povo. Como veremos, Paulo está pensando
em um povo de Deus transformado e num
templo celestial, mas fora isso as suas ima-
gens no v. 13 são semelhantes.
EFÉSIOS 2 1850
Os v. 14-18 nos levam ao âmago da
compreensão paulina do evangelho da re-
conciliação. Ele começa os v. 14,15 com a
dimensão horizontal. Primeiro o texto diz
que Jesus é a nossa paz no sentido de que
ele uniu as duas grandes divisões da huma-
nidade (a incircuncisão e a circuncisão) em
uma. Ele (em princípio!) destruiu a inimi-
zade entre judeus e gentios, ao remover a
parede da separação, que inevitavelmen-
te se tomara razão para mútua suspeição
e animosidade. A barreira em questão era
a lei mosaica com o seu detalhado código
de santidade, que tomava praticamente im-
possível ao judeu fiel viver em proximida-
de com os gentios.
Com relação a essas regulamentações,
a Carta de Aristeias (c. 100 a.c.) afirma:
"O legislador [Moisés] nos cercou com
paliçadas não quebradas e muros de ferro
para evitar que nos misturássemos com
qualquer dos outros povos de qualquer
maneira, sendo assim guardados puros em
corpo e alma [...] adorando o único Deus
todo-poderoso" (139), ou, ainda: "E assim,
para que não fôssemos profanados por
ninguém nem infectados com perversões
ao nos associarmos com pessoas indignas,
ele nos limitou e cercou por todos os lados
com purificações prescritas em questões de
comida e bebida e tato e audição e visão"
(149). A barreira literal no próprio templo
que impedia os gentios, sob pena de morte,
de entrar no pátio interno onde Israel ado-
rava era meramente a expressão exterior
das exigências mosaicas.
A inimizade que a lei mosaica gerou en-
tre a humanidade pecaminosa, assim nos é
dito, foi destruída na sua carne (15) - uma
referência à morte de Cristo na cruz que
Colossenses retrata como o "despojamento
do corpo da carne" (CI 1.22; 2.11,12; cf v.
16). A inimizade foi destruída quando a lei
mosaica, como uma unidade e uma aliança
indivisível com Israel, foi transcendida e
substituída pelas condições da nova cria-
ção e da aliança correspondente em Cristo
(cf 2Co 3.3-18). Que isso não significa que
Paulo é contra a lei deve ficar claro com
base no restante da carta (e observe o uso
específico da Torá em 5.31-6.3). Antes, o
bom propósito a que a lei mosaica serviu,
ao preservar Israel da influência pecamino-
sa das outras nações, deu lugar ao propósi-
to ainda mais elevado afirmado no v. 15 e
que reflete o plano eterno de Deus (1.9,10).
Deus desejou criar uma nova humanidade
a partir dos judeus e dos gentios. Acerca
da centralidade disso na teologia de Paulo
ver, e.g., 1Coríntios 12.13; Gálatas 3.28 e
Colossenses 3.11.
O v. 16 agora volta a atenção à dimen-
são vertical. Até aqui quase poderíamos ter
a impressão (refletida na compreensão que
Marcus Barth tem de todo esse trecho) de
que o evento de Cristo deixa a posição do
povo de Israel fundamentalmente inaltera-
da: os gentios são simplesmente acrescen-
tados a ele, e assim abençoados com ele.
Contudo, esse não é o ponto de Paulo, pois
em seguida ele afirma que o um só corpo
assim criado a partir de judeus e gentios foi
reconciliado com Deus na cruz. Isso pres-
supõe que Israel também sofreu uma alie-
nação de Deus por meio do pecado (cf 2.3)
que precisava ser vencida na cruz; e que ele
somente experimenta essa reconciliação na
medida em que participa de sua nova hu-
manidade, o um só corpo de Cristo, a igre-
ja constituída de crentes judeus e gentios.
Sem dúvida, o fraseado de Paulo não deve
ser forçado a significar que a igreja uni-
versal de judeus e gentios foi criada pri-
meiro, e somente depois reconciliada com
Deus na cruz. O seu ponto, antes, é que
Jesus na cruz se apresentou como repre-
sentante não somente da humanidade dos
judeus, mas também da humanidade dos
gentios, como o último Adão (Rm 5.12-
21; 1Co 15.45; Fp 2.5-11). Na primeira
ocasião, foi singularmente em si mesmo
(15) que ele fez um novo homem de dois;
e subsequentemente é somente pela união
com ele em um corpo que a reconcilia-
ção cósmica é experimentada. Isso signi-
fica que, para Paulo, a igreja realmente é
 1851
uma terceira entidade - nem judaica nem
gentílica, mas uma nova humanidade.
Por trás da linguagem de criar uma nova
humanidade está a esperança judaica de
que no final Deus recriaria um mundo ain-
da mais maravilhoso do que a sua primeira
criação antes da queda. Como parte disso,
o povo de Deus seria transformado e rece-
beria corpos ressurretos para corresponder
ao mundo em que iria viver, e assim ser um
novo tipo de humanidade vivendo em total
harmonia com Deus e uns com os outros.
Para Paulo, exatamente isso começou pela
ressurreição de Cristo, que é o padrão para
a nossa (v. Rm 8; lCo 15.45-49; 2Co 3-5;
Gl 6.15; Fp 3.21). Mas observe que tudo
isso é verdadeiro somente nele, em Cristo;
é somente a igreja em união com Cristo que
de fato começa a experimentar essa unida-
de cósmica.
Os v. 17,18 recapitulam o ponto em ter-
mos de uma citação modificada de Isaías
57.19 e mais uma explicação. As palavras
E, vindo, evangelizou paz não são refe-
rência nem à encarnação e ministério de
Jesus nem ao Cristo exaltado por meio
do ensino apostólico, mas são mais facil-
mente compreendidas como um resumo
dos v. 14-16: elas se referem então espe-
cificamente à cruz e à ressurreição. As pa-
lavras evangelizou paz ecoam Isaías 52.7,
mas o restante segue aproximadamente
Isaías 57.19. Originariamente esse texto
era aplicado à bênção de Deus sobre os
judeus de Jerusalém (os que estão perto)
e os judeus da Diáspora (os que estão lon-
ge), mas aqui dá a entender que atingiu um
novo nível de cumprimento na "paz" mes-
siânica da reconciliação que Cristo realiza
entre crentes judeus (os que estavam per-
to) e crentes gentios (que estáveis longe), e
entre a nova humanidade assim criada e
Deus. O v. 18 retoma isso numa metáfora
extraída da legislação do templo. No AT,
somente o sumo sacerdote, como repre-
sentante de Israel, tinha acesso imediato a
Deus no sentido de que só ele podia entrar
no Santo dos Santos, e somente no Dia da
EFÉSIOS 2
Expiação. Israel esperava a certa distân-
cia, e os gentios, atrás dos judeus, ainda
mais distantes. Mas pela morte e ressur-
reição de Cristo, ambos agora têm aces-
so imediato a Deus por meio do dom do
Espírito Santo que traz a presença cons-
ciente de Deus ao indivíduo.
Em tudo isso, Paulo não diz explicita-
mente como a cruz efetua a reconciliação
entre a humanidade e Deus. O uso da pala-
vra sugere uma alienação ou inimizade em
ambos os lados que é curada. Do lado da
humanidade, a hostilidade a Deus é causada
pela nossa reação rebelde à reivindicação
amorosa dele pelo direito à nossa obediên-
cia filial. Do lado de Deus, também pode-
mos falar de um elemento de alienação da
humanidade; ou seja, a sua ira amorosa e
santa contra o nosso pecado (2.3; 4.17,18;
5.3-6). É o segundo aspecto que Paulo crê
o tempo todo, como aqui, que seja o nosso
problema mais crucial e que foi resolvido
na cruz (i.e., antes que qualquer um de nós
cresse e se apropriasse dessa reconciliação
oferecida). É por isso que ele destaca cons-
tantemente a rica misericórdia (4) e graça
(1.2,6,7 etc.) de Deus. Ele nos conta, sim,
como Deus realizou isso - ele só não afir-
ma que foi pela expiação substitutiva (para
a qual v. Comentário de Rm 3.25; 5.9-11;
2Co 5.19-21; Gl 3.13). Ele antes parece
pressupô-Ia (1.7; 5.2,25,26) e nesta carta
parece mais interessado em descrever suas
consequências - a restauração do relacio-
namento com Deus, e particularmente o
escopo universal da unidade, harmonia e
paz que Deus tinha em mente com Cristo.
19-22 Uma imagem final serve para
ressaltar a glória do que Deus realizou em
Cristo para os leitores gentios que antiga-
mente estavam "de fora" (conectando com
o v. 13). Eles receberam o privilégio de
ser concidadãos dos "santos", ou seja, não
com judeus ou judeus cristãos, mas com o
restante do povo de Deus e membros ple-
nos da família celestial na cidade-templo
de Deus. Já em Gálatas 4.26, Paulo havia
relegado os judaizantes ao dizer que os
EFÉSIOS 3
cristãos pertencem não à Jerusalém terre-
na, mas à celestial (cf Fp 3.20). A força
teológica da afirmação é derivada da pres-
suposição de que a era por vir já se concre-
tizou no céu, e Jerusalém, como ela será na
nova criação, está esperando para "descer"
(v. e.g., Ap 21.1-4; e 21.10-22.5). Dizer
que já somos cidadãos daquela cidade-
templo é dizer que nós agora, em união
com Cristo, participamos naquela cidade
celestial radiante da glória de Deus, e que
ela finalmente será revelada e substituirá
tudo que conhecemos agora como reali-
dade nesta era. Acerca de uma perspectiva
semelhante, a saber, de que a igreja agora
participa da adoração da congregação glo-
rificada dos santos no final dos tempos e
a expressa, ver Hebreus 12.22-24. A ideia
de sermos membros da cidade-templo
dá prosseguimento ao tópico do acesso a
Deus introduzido no v. 18, porque a cidade
celestial está repleta da presença radiante
de Deus. Aliás, de acordo com Apocalipse
22.5, ele é justamente a sua luz, substituin-
do a noite e o dia.
Nos v. 20-22, temos essencialmente a
mesma mensagem, mas com uma ligeira
mudança na imagem. Os crentes são retra-
tados agora como as pedras com as quais o
templo celestial está sendo gradativamen-
te construído. Grande parte do judaísmo
esperava um novo templo na Jerusalém
da era por vir, e já certas partes do judaís-
mo tinham passado a achar que o povo de
Deus constituiria esse santo lugar de habi-
tação de Deus (cf o ensino de Jesus em Jo
2.19). Essa é a percepção expressa aqui, e
se diz que já está sendo cumprida (como
em 1C03.16,17;2C06.16,17; lPe2.4-10).
Os leitores de Paulo estão sendo edifica-
dos já agora, diz ele, no fundamento dos
apóstolos e profetas. A sintaxe grega aqui,
em que um artigo rege os dois substantivos
(como em 3.5), sugere um só grupo funda-
mental, apóstolos funcionando como pro-
fetas (i. e., trazendo revelação), e não dois,
embora um grupo separado de profetas
seja também conhecido em 4.11. O próprio
1852
Jesus é identificado como a pedra angu-
lar, aquela a partir da qual o restante do
fundamento é construído ao longo da linha
das paredes propostas. O ponto aparente-
mente seria então que o templo é constru-
ído a partir da revelação dada em Cristo
e sobre ela, mediante a elaboração reve-
ladora e a implementação do mistério por
meio das figuras dos apóstolos proféticos
(cf 3.4-11, especialmente v. 5). Mas tudo
é construído sobre Cristo, sustentado por
Cristo, e o estado e a forma do prédio em
construção são determinados por Cristo,
a pedra angular. Uma interpretação alter-
nativa faz de Cristo a "cabeça de esquina"
(a última pedra acrescentada, aquela que
mantém coesa toda a estrutura superior);
mas isso depende de um sentido posterior
da palavra traduzida por "pedra angular",
e na verdade não se encaixa na imagem de
um templo sendo construído, pois sugeri-
ria que Cristo ainda não tem lugar nele.
O último versículo do capítulo lem-
bra os leitores do seu enorme privilégio
por fazerem parte de toda essa constru-
ção. Eles estão incorporados no prédio, a
única igreja universal, da qual Deus faz
a sua habitação por meio do Espírito. E
eles são incorporados nela precisamente
pela união com Cristo, em quem todas as
coisas estão sendo levadas à harmonia e
paz cósmicas capacitadas pela reconcilia-
ção iniciada na cruz.
3. 1 Continua o relato de oração
Depois da importante digressão de Paulo
(2.11-22), o v. 1 retoma novamente o rela-
to da sua oração pelas igrejas dos gentios
(1.15-2.10). No entanto, tendo se apre-
sentado como o sujeito da frase, Paulo
desvia para uma segunda digressão ain-
da antes de chegar ao verbo principal! A
NTLH não tolera essa brusquidão e a alivia
pela inserção do predicado "oro a Deus"
para completar a frase, mas Paulo não a
completa até voltar a ela e repetir a sua
abertura no v. 14. (Isso é uma evidência
de que a carta é real, escrita com pressa,
 1853
não uma atualização teológica cuidado-
samente planejada por Paulo e escrita em
uma geração posterior.)
3.2-13 Digressão: Elaboração do
ministério apostólico de Paulo
Paulo faz essa interrupção brusca no que
ele estava para dizer porque, tendo se
apresentado brevemente no v. I, ele agora
sente que precisa ampliar aquela apresen-
tação antes de prosseguir. Ele afirmou ser
o homem preso de Cristo Jesus (é isso que
significa sou o prisioneiro de Cristo Jesus,
e não que Jesus é o carcereiro!) por amor
de vós, gentios - esta ideia é a que exige
ampliação. É o seu apostolado aos gen-
tios que predomina nos v. 2-13, e amplia e
reorganiza em grande parte o conteúdo de
Colossenses 1.23-29. A seção consiste em
três longas frases gregas. Os v. 2-7 tratam
do tema da revelação do mistério da reuni-
ficação cósmica em Cristo introduzida em
1.9,10 e 2.20 - uma revelação que lança
os holofotes sobre a inclusão dos gentios
(6). A segunda frase, v. 8-12, se concentra
mais especificamente no próprio papel de
Paulo como um apóstolo aos gentios, e na
graça extraordinária que faz dele (embora
o menor de todos os santos) o porta-voz es-
colhido de um evangelho de reconciliação
cósmica. Finalmente, no v. 13, Paulo volta
aos seus sofrimentos a favor do evangelho,
o tópico que suscitou a digressão.
2-7 A digressão começa com a certeza
quase absoluta de Paulo de que seus leito-
res tenham ouvido da comissão com que
Deus o incumbiu. Que ele pudesse espe-
rar isso é mais do que razoável. Ele mes-
mo havia levado o evangelho da inclusão
dos gentios de Jerusalém a toda a margem
do Mediterrâneo tão longe quanto a mar-
gem oriental do mar Adriático (o l1írico
de Rm 15.19), e tinha intenção de avan-
çar até Roma e a Espanha (Rm 15.14-24).
Além disso, tinha adotado Éfeso como
sua base durante três anos, de 52 a 55 d.e.
(At 20.31), de onde os seus colaboradores
tinham levado o seu evangelho ao leste no
EFÉSIOS 3
mínimo até Colossos e Laodiceia, e pro-
vavelmente aos outros centros da região
também. Não obstante, o fato de que ele
fala dessa maneira é mais uma indicação
de que estava escrevendo uma carta geral
às igrejas que não o conheciam pessoal-
mente (e não somente aos efésios), que
não tinham meramente "ouvido" do seu
ministério.
Se o sentido geral dos v. 2,3 está claro,
é difícil determinar o significado mais pre-
ciso (compare as versões!). Muito depende
da expressão traduzida por: da dispen-
sação da graça de Deus a mim confiada
para vós outros. Essa formulação preserva
parte da ambiguidade do grego de Paulo.
Mas qual seria o significado disso: (a) "a
maneira em que Deus me incumbiu da sua
graça que ele me deu por causa de vós",
i.e., que foi pela revelação que ele tomou
conhecido o mistério (assim NJB [em in-
glês]); (b) "a expressão da graça que ele
me deu" (assim Caird); (c) "a comissão (ou
responsabilidade) da graça dada por Deus"
(NVI; cf NTLH); ou (d) "o plano ou orde-
nação da graça que Deus me deu", i.e., o
conteúdo conceitual do mistério (assim NIV
[em inglês])? Os argumentos estão divi-
didos equilibradamente, mas a sintaxe e a
relação com os v. 3,4 talvez façam a inter-
pretação pender para a primeira opção. Em
seguida, nos v. 2-4, Paulo parece afirmar
que Deus lhe confiou a graça do evangelho
para os gentios ao lhe revelar o mistério
concernente ao qual já escreveu um pouco
(a saber, cp. 1-2!), e que os leitores po-
dem começar a compreender o significado
da essência do evangelho com base no que
ele está dizendo.
Os v. 5,6 então transferem a atenção
ao novo conteúdo da verdade reveladora
envolvida aqui. O fraseado de Paulo per-
mite que tenha havido pistas do evangelho
no AT, e Paulo defende isso de maneira
ampla em, e.g., Romanos 4; cf Romanos
9.25-10.21. Mas o aspecto de que Deus
transformaria os gentios em coerdeiros,
comembros do corpo (Paulo cunha uma
EFÉSIOS 3
nova palavra para destacar esse ponto) de
um novo povo de Deus e coparticipantes
da promessa da nova criação em Cristo era
totalmente novo. Os três termos que Paulo
usa aqui todos começam com o mesmo
prefixo, significando "com", como aqui.
Textos como Isaías 2.1-4 eram mais co-
mumente interpretados como significando
que os gentios poderiam afluir em grande
número para o restaurado Israel e se tomar
prosélitos ou judeus. A revelação decisiva
do mistério da bênção plena dos gentios só
tinha sido feita agora, e foi dada aos após-
tolos e profetas de Deus. No comentário de
2.20, observamos uma razão sintática para
pensar que isso talvez signifique "apósto-
los funcionando como profetas", embora
a sintaxe possa permitir também o signi-
ficado "apóstolos e profetas funcionando
como uma unidade". O argumento mais
forte a favor da última interpretação é 4.11,
mas precisamos dizer que não ouvimos fa-
lar de nenhum profeta na igreja primitiva
(a não ser os apóstolos) que recebessem
o crédito por tão importante revelação, e
o contexto é especificamente a discussão
de Paulo da sua comissão apostólica. Se
investigarmos então o cerne da revelação
que veio a Paulo, sem dúvida foi dada na
própria experiência da estrada de Damasco
(cf At 26.12-18; Gl1.1l,12,15,16), mas o
processo pelo qual o conteúdo foi revelado
e estabelecido para um círculo mais amplo
de apóstolos (5) levou mais tempo (cf At
15; GI2), e profetas podem ter se envolvi-
do no processo. Alguns estudiosos acham
que Atos 15.28 sugere isso.
O v. 6 termina com a afirmação de
que os gentios recebem a sua bênção em
Cristo, por meio do evangelho. O v. 7, que
ainda é parte da mesma frase grega com a
qual Paulo começou o v. 2, e não um novo
parágrafo como em algumas versões, con-
clui o parágrafo ao retomar a ideia da graça
e do poder de Deus dados a Paulo para ser
servo desse evangelho.
Nota. A descrição dos apóstolos e pro-
jetas como santos tem causado problemas.
1854
Alguns a entendem como uma restrição
católica antiga do termo "os santos" que
Paulo usa regularmente com referência a
todos os cristãos. (A palavra grega hagios
pode ser um adjetivo significando: "santo,
separado para Deus para um uso particu-
lar" ou um substantivo significando: "o
santo", "o separado". Contudo, isso não
é convincente, pois Efésios usa o sentido
mais amplo em toda a carta (1.1,4,15,18
etc.) Nem é óbvio que aqui Paulo reveren-
cie os apóstolos em comparação com ou-
tros crentes, aliás, no v. 8 ele se descreve a
si mesmo como o menor de todos os san-
tos! A explicação provavelmente deve ser
encontrada na influência de Colossenses
1.26,27 onde mesmo que o fraseado seja
tão próximo a afirmação é que o mistério é
revelado "aos seus santos". Quando Paulo,
tendo relido o trecho de Colossenses, mu-
dou o seu foco para falar da revelação que
é feita aos apóstolos, a palavra hagioi foi
simplesmente mantida, mas aqui com ênfa-
se diferente - agora denota os "apóstolos
e profetas" como "separados para Deus"
para o seu papel distintivo de receptores da
mensagem central.
Os v. 8-12 retomam e desenvolvem o
tema do serviço de Paulo no evangelho.
A sua afirmação de ser o menor de todos
os santos vai além da afirmação ante-
rior de ser o menor dos apóstolos porque
ele tinha feito oposição ao evangelho e
perseguido os seguidores de Jesus (v.
lCo 15.9; mas cf lTm 1.15 em que ele é
o "principal dos pecadores"). Aqui é exa-
gero propositado para aumentar a maravi-
lha da graça de Deus que o transformou
em apóstolo aos gentios com um evan-
gelho concernente ao insondável tesouro
de Cristo, e com um significado de pro-
porções cósmicas. Mais especificamente,
Paulo recebeu a tarefa de levar pessoas a
enxergar o mistério cósmico finalmente
revelado, e como Deus escolheu expres-
sar o seu propósito eterno (9). O verbo
usado significa "iluminar" e pressupõe
uma neblina de escuridão espiritual a ser
 1855
dissipada. A linguagem provavelmente se
refira principalmente à conversão (cf 5.8-
14; At 26.17,18; 2Co 4.4-6; ITs 5.4,5),
mas Paulo vislumbra um sentido contínuo
realizado no seu próprio ministério de en-
sino e de oração intercessória pelas suas
igrejas (v., e.g., 1.18; 3.18). O significado
dessa "iluminação" contínua é expresso
no v. 10, em que todo o propósito de Deus
na pregação, no ensino e no ministério de
oração de Paulo é que a igreja seja edi-
ficada para ser a manifestação da rica e
multiforme (a palavra usada originaria-
mente significava "multicolorida") sabe-
doria aos principados e potestades nos
lugares celestiais.
O que isso envolve? Os governantes
em questão provavelmente são toda hos-
te de seres celestiais; não meramente os
anjos de Deus nem meramente os pode-
res maus de 6.12, mas ambos. Eles são
as testemunhas reunidas diante das quais
Deus expressa a sua sabedoria. Essa sabe-
doria é o seu eterno propósito em Cristo
(11), que não é outro senão a sua inten-
ção de unificar todas as coisas em Cristo
(1.9,10). Tal propósito é evidenciado na
igreja universal onde judeus e gentios vi-
vem e adoram como um corpo, em har-
monia com Deus e com irmãos e irmãs
em Cristo (cf 6.; 2.11,22). O ensino e a
oração de Paulo em Efésios 1-2 são as-
sim dedicados a ressaltar e encorajar tal
unidade, como o faz a sua exortação nos
cp. 4-6. Ele crê que isso seja uma tes-
temunha, senão a testemunha central do
evangelho. Nisso ele segue a Jesus cuja
oração testamentária final toda de João 17
focaliza no pedido para que Deus mante-
nha a igreja na unidade de amor que cor-
responda à unidade de amor entre o Pai e
o Filho, e testemunhe dela.
O v. 13 nos leva de volta à afirmação
do v. I, segundo a qual o aprisionamento
de Paulo é "por amor de vós, gentios".
Seus leitores talvez estejam desanimados
por causa desse aparente revés, mas Paulo
prefere que eles vejam isso como vossa
EFÉSIOS 3
glória. Por que, afinal, ele tinha sido pre-
so? Foi porque defendia a igualdade dos
gentios com os crentes judeus dentro do
único povo de Deus da nova criação, o cor-
po de Cristo. Isso deixava os judeus irados
(e, aliás, alguns judeus crentes), porque
atingia o seu sentimento de privilégio es-
piritual. E foi o antagonismo violento que
fomentou as circunstâncias da captura de
Paulo, seu aprisionamento e martírio no
final (v. At 21-28). Além disso, Paulo
foi a Jerusalém totalmente consciente dos
perigos (Rm 15.30,31), e ainda levou uma
coleta das igrejas dos gentios para a igreja
de Jerusalém, como sinal do seu amor e dí-
vida para com a igreja-mãe pelas bênçãos
espirituais do evangelho que tinham rece-
bido (Rm 15.26,27). Paulo esperava que
isso ajudasse a solidificar a unidade entre
as duas igrejas, que tinha estado sob cons-
tante ataque. Os judeus cristãos de fato ti-
nham atormentado as igrejas dele durante
todo o seu ministério (v., e.g., 2Co 10-13;
GI 1-2; 6; Fp 3) e um homem de estatu-
ra espiritual inferior talvez simplesmente
tivesse lavado as suas mãos em relação a
eles. Paulo, no entanto, foi a Jerusalém
como apóstolo do evangelho aos gentios
e do evangelho da reconciliação cósmi-
ca. Ele, um judeu, tinha dedicado a sua
vida a trazer os gentios a esse evangelho,
e considerava digna de qualquer risco a
promoção da sua unidade com a igreja
judaica. É por isso que as suas correntes
eram a glória deles. E se olharmos para o
que no final resultou para Paulo, então, de
fato "não é exagero dizer que Paulo mor-
reu como mártir da causa da reunificação
cristã" (Findlay, The Acts ofthe Apostles,
p. 32). Há um profundo desafio aqui para
as nossas igrejas protestantes hoje, que
racham com tanta facilidade e depois se
dividem novamente sobre questões "da
verdade", e com frequência nem percebe-
mos que ao fazer isso estamos colocando
em jogo a verdade central do evangelho
da reconciliação e restauração da unidade
em Cristo.
EFÉSIOS 3
3.14-21 O relato de oração de
Paulo é concluído; doxologia
Paulo agora retoma e completa a frase in-
terrompida no v. 1, e conduz à parte final do
seu relato de oração que ele começou em
l.17. O tema aqui complementa o que foi
dito até agora. Em 1.17-23, a oração básica
foi para que fosse aprofundada a compreen-
são espiritual que os leitores tinham do
mistério central da vontade de Deus; espe-
cificamente que eles tivessem um entendi-
mento jubiloso da esperança cristã, e uma
confiança segura no poder salvador e re-
conciliador operante neles, que estava co-
meçando a juntar tudo debaixo da unidade
de Cristo. Aqui a oração é pela capacidade
de compreensão (e de conhecimento ver-
dadeiro) da plenitude do amor de Cristo.
Quanto mais profundamente esse amor for
compreendido na igreja, mais intensamen-
te refletirá a unidade, a harmonia e a vi-
brante paz messiânica que finalmente será
restaurada por Deus na nova criação.
Essa parte final do relato de oração de
Paulo constitui o seu climax. 14 Aqui ve-
mos Paulo se prostrando diante de Deus,
de joelhos com a cabeça encurvada até o
chão, como alguém que presta reverência e
leva uma questão de extrema importância
a um rei poderoso (a posição mais comum
para a oração era em pé). Paulo certamente
queria transmitir a impressão do poder de
Deus. Se ele é chamado Pai (v. comentário
de Mc 14.36; Lc 11.2; Rm 8.14-17), temos
de lembrar que este não é somente um ter-
mo de intimidade. No Oriente, o pai é o
governante da família, aquele a quem todas
as questões importantes são relatadas, e a
quem se espera que os filhos (não importa
a idade) prestem deferência e obediência.
Quando os judeus falavam de Deus como
Pai, eles queriam com isso dizer que ele
governa o mundo e que este lhe deve a sua
obediência.
15 Esse sentido do poder de Deus é
intensificado pelo acréscimo de "de quem
todas as famílias no céu e na terra rece-
bem o seu [...] nome" (NTLH, corretamente,
1856
como também aqui na ARA: de quem toma
o nome toda familiay. A NVI, ao traduzir:
"toda a família nos céus e na terra" faz dis-
so uma referência à única família, a igreja
(incluindo os santos que já partiram), mas
isso exigiria o artigo definido no grego
que, no caso, está faltando. "Cada família"
(ou "todas as famílias"), e não "a família
inteira" ("toda a família") deve ser pre-
ferido, assim o v. 15 é basicamente uma
confirmação de Deus como Criador de
todos os grupos de seres viventes (cf, 3.9;
ICo 8.6; CI 1.15-18), e como aquele que
soberanamente dá a cada um a sua "forma"
e papel individuais. Na tradição hebraica,
o fato de Deus ter dado nomes às criaturas
não foi simplesmente para lhes fornecer
um rótulo, mas para determinar o que elas
são. O leitor atual pode ponderar por que
é que Paulo usa a palavra "família" aqui
(gr. patria; contra nota mrg. nvr; segundo
Bruce, o termo não pode significar "pater-
nidade"; cf nota mrg. BJ), mas sua adequa-
bilidade teria sido evidente ao leitor grego
como um jogo de palavras de patria com
pater, "pai". A palavra se refere a todos os
que descendem de um único ancestral, ou
(quando aplicado a seres angelicais) a to-
dos os que são da mesma classe.
16-19 A oração de Paulo é constituída
de dois (ou talvez três) pedidos. O primeiro,
nos v. 16,17, é pela capacitação poderosa
de Deus pelo Espírito no homem interior
(o coração do v. 17; v. comentário de 1.18
acima). Isso é expresso não em termos de
carismata de um tipo ou de outro, mas me-
diante Cristo habitando (mais plenamen-
te) nos leitores, assim que eles estiverem
enraizados e fundamentados no amor. Ao
começar o v. 17 com e. assim, a ARA (mais
ainda a NVI: "para que") dá a impressão de
que Paulo está dizendo que os leitores de-
vem primeiro ser fortalecidos no Espírito
para que então (subsequentemente) Cristo
possa habitar no coração deles - mas isso
é enganoso. O v. 17, na verdade, explica
o pedido: i.e., "ou seja, que Cristo pos-
sa habitar no vosso coração". Esta não é
 1857
uma oração por uma experiência mística
- muito menos para que o nosso eu hu-
mano seja abolido para que nos tomemos
"somente canais". A oração de Paulo é que
Cristo viva em nós pela fé; ou seja, que vi-
vamos a nossa vida com amor e confiança
maior nele, sendo cada vez mais moldados
pelo evento-Cristo (como em Gl 2.20; em
que a primeira parte do versículo é explica-
da na segunda). É essa habitação de Cristo
em nós que fortalece a vida do crente e o
mantém sobre um fundamento firme - es-
pecialmente em tempos de provações (cf
Cl 1.11; Fp 4.12, e de forma suprema em
lCo 11.21b-12.1O).
O segundo pedido vem nos v. 18,19a.
É uma oração por compreensão espiritual
profunda e por verdadeiro conhecimento
do amor de Cristo, que paradoxalmente
é grande além de qualquer conhecimento
humano. É bom observar que a expressão
com todos os santos é significativa -
Paulo não está buscando conhecimento
solo virtuoso do amor de Cristo, mas o
amor que é conhecido na igreja e que gera
união. Em termos restritos, a formulação
da oração de Paulo no v. 18 não é exata-
mente que devamos compreender as qua-
tro dimensões do amor de Cristo (como
na NTLH). Pode até ser que ele queira, no
final das contas, dizer isso, mas isso sim-
plifica o que ele está de fato dizendo, a sa-
ber: "para compreender [...] a largura, e o
comprimento, e a altura, e a profundidade,
e [ou 'ou seja,'] para conhecer o amor de
Cristo" (assim a ARA aqui e também a NVI).
No v. 18, ele na verdade não especifica
do que são constituídas essas dimensões.
No judaísmo, as dimensões podiam ser
usadas para falar da sabedoria insondável
de Deus (v., e.g., Jó 11.5-9 acerca das qua-
tro, e cf Rm 11.33,34, em que conduzem
a uma doxologia, como aquí; Cl 2.2,3), e
pode ser isso o que Paulo quer dizer aqui
(cf 3.10). Mas mesmo se esse for o caso,
a sabedoria de Deus entra em foco no seu
amor uníficador em Cristo, e assim é con-
firmada a conexão próxima com o v. 19a.
EFÉ51054
Como alternativa (como pressupõem NTLH
e outras), Paulo pode simplesmente ter
deixado fora "o amor de Cristo" no v. 18
porque se tomaria explícito na elaboração
apresentada no v. 19a.
O v. 19b ou apresenta um terceiro pedi-
do ou (mais provavelmente) fornece o re-
sultado da compreensão completa do amor
de Cristo. Acerca do sentido de "preen-
cher" (plenitude) v. comentário de 1.23.
Sempre que o amor de Cristo é profunda-
mente conhecido, ali Cristo já está de fato
exercendo o seu governo, unindo o cosmo
consigo mesmo na harmonia da nova cria-
ção de Deus.
A doxologia encerra formalmente e
conclui a primeira parte da carta com um
convite à adoração e gratidão, assim como
começou (1.13,14). Fornece uma transição
entre a seção de oração e ensino de Paulo
e as consequentes exortações diretas (cp.
4-6; cf Rm 11.33-36 que tem função se-
melhante). Essa doxologia serve mais uma
vez para lembrar os leitores do imenso e
benevolente poder de Deus operante neles
(cf 1.19-2.6) - não para encorajar pe-
didos egoístas, mas para promover a espe-
rança segura na sua nova criação e pedidos
que correspondam à intenção de Deus para
a igreja nesta presente era. A doxologia é
surpreendentemente incomum ao convidar
que se dê glória a Deus por meio da igreja
(cf NTLH; 21); mas isso é apropriado com
base na visão da igreja no plano cósmico
de Deus que Paulo nos deu. Também é um
convite implícito aos leitores para garantir
(no que depender deles) que a igreja seja
de tal caráter que reflita a glória de Deus.
4.1-6.20 Encorajamento
para que se viva o evangelho
da reconciliação cósmica
e a unidade em Cristo
A segunda parte da carta explora a apli-
cação do evangelho da reconciliação e da
unidade à vida da igreja. Em sua maior
parte, vem em forma de um apelo direto,
mas isso está edificado sobre o fundamento
EFÉSIOS 4
do que foi dito nos capítulos anteriores, e
o conteúdo é regularmente informado por
aquilo que Paulo disse no início nas suas
ações de graças, no relato de oração e no
ensino. O tema recorrente de como "viver"
(Paulo na realidade usa a metáfora hebrai-
ca de "caminhar") à luz do evangelho apa-
rece como um fio de escarlata a partir de
4.1 (4.17; 5.2,8,15.)
4. 1-6 Apelo inicial para uma
vida que exponha a harmonia
da nova criação
Aqui Paulo fala do nosso chamado como
o de vivermos juntos de tal forma que isso
personifique a unidade cósmica que Deus
já inaugurou. Assim, esse trecho dá o tom
ao restante da carta, e fornece o vínculo
com o que o precedeu. Esse vínculo é feito
não somente no tema sintetizador nesses
versículos, o da unidade, mas no "pois"
("por isso", NTLH; estranhamente ausente
na NVI) do V. 1 que (como em Rm 12.1)
fundamenta o apelo no ensino anterior. O
trecho consiste em duas partes: o apelo à
unidade (v. 1-3, ampliando parcialmente
Cl 3.12-15) e uma confissão em sete afir-
mações que a reforçam (4-6).
1-3 Ao se apresentar aqui novamente
como um prisioneiro do Senhor, Paulo im-
plicitamente aponta para o nível de com-
promisso que ele espera de si mesmo e dos
outros. Os seus leitores certamente não
deixaram de observar que ele era prisionei-
ro exatamente em virtude do seu zelo pelo
tipo de unidade que agora requer deles
(v. comentário de 3.13). Mas o seu primei-
ro apelo é o mais geral a que vivam de for-
ma tal que seja digna do chamado de Deus
(v. lTs 2.12; Rm 12.1; Cl1.10). O chama-
do em questão é compartilhar do governo
de Cristo sobre a nova criação (1.20-22;
2.6), e de ser parte do templo celestial
(2.19-22). Tal chamado traz consigo as
suas próprias responsabilidades. Barth
resume isso assim: "Príncipes reais não
são tratados pelos seus educadores com a
vara, mas com um apelo à sua dignidade e
1858
posição". Talvez ele esteja certo, mas o ape-
lo aqui não é às qualidades aristocráticas
da determinação, tenacidade e autoridade
arrogantes. É um chamado, antes, à humil-
dade e à mansidão, e ao amor paciente e
perdoador que exemplifica a reconciliação
(1; cf Cl 2.12,13). O v. 3 (cf Cl 3.14,5)
então esclarece isso como um apelo à vida
que promove a unidade.
O apelo é embutido em termos de ur-
gência não facilmente traduzíveis para
o português: "O imperativo [...] exclui a
passividade, o quietismo, a atitude de fi-
car esperando [...] A iniciativa é de vocês!
Façam isso agora! Levem isso a sério!
Vocês precisam fazê-lo! [...] - tal é o tom
do versículo 3" (Barth). Esse não é um
chamado a que homens e mulheres cons-
truam o Reino de Deus; é uma advertência
a que guardem, permaneçarn dentro da (es-
forçando- vos [...] por preservar a) unidade
que Deus já inaugurou em Cristo (por meio
dos eventos de 2.11-22) e à qual somos in-
troduzidos pelo Espírito que nos trouxe
Cristo e os seus benefícios. O Espírito nos
traz a paz messiânica da harmonia dada
por Deus como um vínculo de união. É um
vínculo, contudo, que o autor muito bem
sabe que pode ser rompido por arrogância,
falsidade, orgulho e atitudes egoístas das
quais ele vai tratar em 4.17-5.14.
Os v. 4-6 nos lembram da centralidade
do chamado à unidade com uma repetição
séptupla da palavra "um". O v. 4 é seme-
lhante a Colossenses 3.15b, mas expresso
nos termos dos principais temas de Efésios
2.14-17 (um corpo); 2.18-22 (um Espírito)
e 1.11-14,18-23 (uma esperança). Essa tría-
de de unidades parece avançar do "corpo"
visível (uma igreja universal que reconci-
lia judeus e gentios) ao Espírito invisível
que lhe dá harmonia e paz em Cristo (3),
e daí para o futuro da completa hanno-
nia cósmica da qual o Espírito é recebido
agora como somente a primeira parcela
(1.13,14). A segunda tríade (5) pode bem
ter sido uma fórmula batismal tradicional
sugerida pelo último pensamento. A fé em
 1859
Jesus como um Senhor era regularmente o
foco da confissão batismal (e.g., At 2.34-
39; 19.5), embora não haja razão para se
pressupor que fosse restrita a tal ocasião.
Para o judeu, confessar a Jesus como um só
Senhor era equivalente a confessá-lo como
um com o Pai, pois os judeus oravam dia-
riamente o shema (Dt 6.4; cf Rm 10.9-12;
lCo 8.4-6). O v. 6 naturalmente conclui
com o clímax da declaração judaico-cristã
do único Deus que é totalmente soberano
acima da criação e nela. É sobre essa pres-
suposição que toda a esperança da unidade
cósmica final está edificada (cf Rm 11.36;
1Co 8.4b-6; Cl 1.15-20), e aponta em re-
trospectiva ao Deus de 1.3-10.
É importante observar que tudo isso é
dirigido à unidade tanto na congregação
local quanto, e mais especialmente, na
igreja universal. Muitos cristãos têm com
frequência se mostrado mais interessados
em promover a harmonia fraterna de uma
única congregação (mesmo que, às vezes,
só de uma panelinha dentro dela!) do que
em lidar com as divisões entre as igrejas.
4.7-16 Os dons da vitória de Cristo
e o crescimento para Cristo
Nessa seção extraordinária, o apelo é mais
implícito do que explícito. Essencialmente
destaca três pontos. Primeiro, que a igreja
universal é chamada a crescer como um
corpo unido (15,16) com base na unidade
já dada em Cristo (2.]]-22) para a com-
pleta unidade com Cristo na harmonia
cósmica que vai caracterizar a passagem
desta era e o aparecimento da nova cria-
ção (13,15). Em segundo lugar, cada cris-
tão tem parte vital nisso (7,16b) de acordo
com a graça dada pelo Cristo exaltado e
libertador (8-10). Em terceiro lugar, Cristo
tem dado certos tipos de líder (fundamen-
talmente aqueles com diferentes dons de
ensino) para promover e direcionar tal
crescimento, e para garantir essa unidade
e coesão (11-13,16a). O fluxo de ideias nos
v. 11-16 (um único período no grego) é es-
pecialmente sutil.
EFÉSIOS 4
7-10 A linguagem e o pensamento aqui
são semelhantes aos de 1Coríntios 12 e
Romanos 12.1-8 (o v. 7 é especialmente pa-
recido com 1Co 12.4-7 e Rm 12.6). Quando
Paulo fala da graça de Deus dada por uma
diversidade de expressões a cada um de nós
("todos os crentes"; como "nós" e "nos" em
outros lugares da carta), ele não está restrin-
gindo o escopo do que diz aos ministros no
v. 11. Isso o leva à descrição de Cristo como
o doador de todos esses dons. Ele apresen-
ta a ressurreição-exaltação de Jesus como
a que traz um cumprimento novo e maior
de Salmos 68.18. Jesus tomou cativos exa-
tamente os poderes que nos prendiam (cf
Cl 2.15) e agora generosamente nos con-
cede os dons do vencedor (e não recebeu
dons, como no original em SI 68.18).
Os v. 9,10 podem ser interpretados de
três formas. 1) Que aquele que subiu às
alturas também desceu ao hades; 2) que
aquele que subiu é aquele que antes des-
ceu à encarnação e à humilhação da cruz;
3) que aquele que subiu depois também
desceu novamente (no Espírito) para tra-
zer os seus dons à humanidade. Como po-
demos decidir?
A expressão: às regiões inferiores da
terra provavelmente é mais bem interpre-
tada pela nota mrg. da NVI: "regiões mais
baixas, à terra", ou, como está na REB: "ao
nível mais baixo (do universo, quando vis-
to do céu), até lá bem na terra", e assim
devemos excluir a primeira opção. A ter-
ceira opção é possível, mas o v. 10 sugere
que Cristo sobe e enche o universo a partir
do céu (v. comentário de 1.23 a respeito
disso), e não que ele desce novamente do
céu para trazer os dons. Provavelmente a
segunda opção deve ser preferida, em que
é sublinhado o ponto de que aquele que
subiu e agora enche o mundo (e dá os dife-
rentes dons a nós) não é outro se não o que
primeiro desceu em humildade à encarna-
ção e morte em nosso favor (cf 2.14-17). A
sua vinda (2.17) na cruz e ressurreição nos
trouxe a paz, as bênçãos e os dons messiâ-
nicos dos quais desfrutamos.
EFÉSIOS 4 1860
Nota. 8 Enquanto almos 68.18 fala
que aquele que sobe r cebe dons, Paulo
mudou isso para "ele eu dons aos ho-
mens", e as explicaçõ s pelas quais ele
fez isso variam. Conh cia ele uma tradi-
ção textual que trazia halaq (comparti-
lhar, dividir) em vez e laqah (receber)
- que é a transposiçã de somente uma
consoante em hebraico. Estava ele lendo
laqah com o sentido d "tomar, ou rece-
ber para uma pessoa", ou em termos ge-
rais, ou porque ele cria que Salmos 68.18
era uma referência met fórica aos levitas
recebidos por Deus d. povo (assim Nm
18.6,19)7 Ou Paulo refi te a interpretação
rabínica e dos targuns de Salmos 68.18,
que diz que Moisés s biu (ao céu) para
aprender as palavras d lei que "ele deu
como dons aos homen "7 A certeza nos
escapa, mas evidentem nte "deu" era uma
interpretação tradicion 1 ou do sentido do
próprio versículo, ou o menos das im-
plicações do "receber" daquele que subiu
descrito pelo versículo e esta interpre-
tação é tudo que é nec ssário, pois temos
de lembrar que o foco de Paulo não está
primeiramente na refe ência histórica do
salmo, mas no seu cum rimento tipológi-
co em Cristo e seus do s à igreja.
11-16 O v. 11 exe plifica os dons da
vitória de Cristo ao apo tar a alguns tipos
de líder na igreja. Paulo ão está restringin-
do o cumprimento de S lmos 68.18 a esses
dons (como sugere a N sv). A expressão:
"Por isso, diz" que intr uz a citação mos-
tra que Paulo enxerga odos os diferentes
dons do v. 7 também co o dons da vitória
de Cristo. O apóstolo s está destacando,
contudo, propositadam nte para a forma
em que eles regem a fo a do crescimento
da igreja unificada (12, 6).
Essa seleção de líd res destaca parti-
cularmente aqueles q revelam, decla-
ram e ensinam o eva gelho. A menção
específica, primeiro, e que Cristo deu
apóstolos e profetas c rresponde à fun-
ção reveladora funda ental de "após-
tolos e profetas" em .20 e 3.5 (e cf
lCo 12.28, também com "mestres" como
aqui). Paulo deseja que seus leitores en-
tendam que a revelação do evangelho
da reconciliação cósmica transmitida
por eles é aquela que deveria continuar
a formar e unificar a igreja e seu ensino.
Mas não estamos livres para deduzir que
Efésios ensina que apóstolos e profetas
serão sempre dados à igreja (como defen-
dem as igrejas da restauração), nem que o
autor os considere simplesmente figuras
do passado, e que agora os evangelistas e
pastores os substituam (como defendem
muitos comentaristas modernos). Os úl-
timos dois são mencionados porque são a
forma de obreiros de igreja que os leitores
conheciam. Foi principalmente por meio
dos evangelistas colaboradores de Paulo,
não do próprio apóstolo, que o evangelho
foi revelado a leitores fora de Éfeso. E ao
término do ministério de Paulo o termo
"pastor" estava sendo usado lado a lado
com "bispo" e "presbítero/ancião" como
equivalentes de "líder de igreja" tcf. At
20.17,28 em que os "anciãos" eram cha-
mados de "presbíteros" que "pastoreiam"
o rebanho). Os "pastores" e "mestres"
aqui compartilham o mesmo artigo defini-
do no grego, e isso pode sugerir que cons-
tituam um só grupo ("pastores que são
também mestres"); mas nessa lista mais
longa de diferentes ministérios é mais
provável que os dois grupos com funções
sobrepostas (i.e., de ensino) estejam em
vista (e "mestres" eram um grupo distin-
to; lCo 12.28,29; GI6.6). Logo depois do
período de Paulo, a liderança de igreja se
cristalizou em um ministério tríplice de
bispo, presbíteros/anciãos e diáconos. A
ausência desses termos em Efésios 4.11
continua sendo uma forte evidência de
que a carta foi escrita nos dias de Paulo, e
não mais tarde.
12 Diz o texto que esses líderes foram
dados com três propósitos coordenados.
Cristo os deu para equipar ou completar
os santos; para servir as necessidades da
igreja; e para edificar o corpo de Cristo.
 1861
A interpretação protestante tradicional
(agora refletida em todas as versões mo-
dernas, inclusive a NJB) limitou a função
dos líderes ao primeiro desses três, argu-
mentando que são os santos equipados
que depois ministram à igreja e a edifi-
cam, e não os líderes. A proposta de que
estes (os líderes) são o sujeito dessas três
frases é considerada uma interpretação
"católica" e "clericalista". Mas enquanto
qualquer interpretação "clericalista" está
claramente excluída pelos v. 7 e 16 (em
que os santos definitivamente têm parte
na edificação da igreja), é mais provável
que a função dos líderes ainda esteja em
vista em todo o v. 12.
De acordo com o v. 13, os líderes são
dados para realizar as tarefas esboçadas
no v. 12 "até que todos possamos atingir
a unidade inerente à nossa fé e ao nosso
conhecimento do Filho de Deus" (assim
a REB). Paulo não está falando de um pe-
ríodo histórico no futuro em que a igreja
atinja a unidade de crenças e organiza-
ção, e se tome uma igreja madura, como
algumas versões parecem sugerir (tam-
bém aqui a ARA: até que ...). Em vez disso,
ele prenuncia a vinda de Cristo que vai
consumar a unidade cósmica inaugurada
na cruz (2.11-22). Pela fé, e no nosso co-
nhecimento do Filho, nós já participamos
dessa unidade (ela de fato nos é dada para
que a preservemos [4.2], mas ainda espe-
ramos que seja completamente concreti-
zada). Na vinda de Cristo, e somente en-
tão, nós, a igreja universal, atingiremos
"o estado de Homem Perfeito, a medida
da estatura da plenitude de Cristo" (B1)
ou, talvez melhor, atingiremos "a huma-
nidade madura, medida segundo nada
menos do que a plena estatura de Cristo"
(REB). A ideia aqui é essencialmente a de
Colossenses 3.4, mas com ênfase acres-
centada na existência da igreja universal
como um só corpo. Os líderes são dados
para cumprir as funções do v. 12 "até
que" a vinda de Cristo leve a sua igreja à
completa maturidade. Mas esse "até que"
EFÉSIOS 4
também tem as implicações de "em dire-
ção a". O que Cristo vai realizar e con-
cluir no final é o alvo para o qual, pela
graça de Deus, os líderes foram dados
para trabalhar e conduzir a igreja.
Ao fazer do v. 14 o início de um novo
parágrafo, e ao começar com a palavra
"então" (no lugar da palavra grega que
significa "assim que"), a NTLH (por exem-
pio) pode sugerir novamente uma era fu-
tura dourada para a igreja histórica. Mas
os v. 14-16 ainda fazem parte do mesmo
período gramatical iniciado no v. 11, e a
linha de pensamento é mais sutil. E esta
é que Cristo deu líderes nesse ínterim
para prover a direção em que apontam o
evangelho e a nossa esperança. Ele os deu
para que já não sejamos pegos nas arma-
dilhas da imaturidade da infância (reféns
de quaisquer pressões), mas comecemos
a crescer em direção à maturidade espe-
rada, a saber, à própria semelhança de
Cristo. Enquanto as imagens usadas até
aqui quase sugerem que a igreja cresce
em direção a uma maturidade indepen-
dente como a de Cristo, a mudança de
imagem no final do v. 15 lembra o leitor
de que Jesus é o Senhor (cabeça) de todo
o processo, e que a intenção é que a igre-
ja cresça para uma maior intimidade com
ele. Paulo conclui o parágrafo com uma
forma revisada de Colossenses 2.19, que
tenta resumir tudo que foi dito até aqui. O
crescimento de todo o corpo no fim das
contas vem de Cristo, mas o corpo cres-
ce na medida em que cada parte realiza
a função que lhe é designada no trabalho
de edificação em amor (confirmando o v.
7, e esclarecendo que não são somente os
líderes que edificam a igreja). Ao longo
de todo o processo, essa edificação e o
crescimento são mantidos em unidade e
coesão pelo esforço de toda junta (ecoan-
do o papel dos líderes de ensino). Tudo
isso apresenta um desafio para hoje: Estão
os líderes promovendo esse tipo de cres-
cimento unido de toda a igreja de Deus e
queremos nós seguir?
EFÉSIOS 4
4.17-6.9 Apelos para que se
abandone a antiga humanidade
e se viva de acordo com
a nova criação
O material que segue retoma os apelos de
Colossenses 3.5--4.2. Em Colossenses,
Paulo expressou a descrição da vida cris-
tã principalmente em termos de contras-
tes entre buscar as coisas do alto e fazer
morrer a natureza terrena (CI 3.1-6: para
corrigir um interesse diferente e não sau-
dável nas coisas celestiais). Em Efésios,
o contraste predominante é o de 2.1-22; a
saber, o contraste do "então/agora" entre
a antiga alienação e a presente unidade
e harmonia da nova criação. Embora a
linguagem usada no cabeçalho aqui seja
de fato encontrada somente em 2.15 e
4.22-24, isso fornece uma metáfora ma-
gistral adequada para o trecho todo. Mas
as subseções ressaltam ênfases diferentes
dentro do tema da vida da nova criação:
4.25-5.2 trata principalmente de peca-
dos como ira e falsidade que poderiam
causar divisão e alienação na igreja; 5.3-
14 adverte os crentes a que não fiquem
perdidos na escuridão do mundo (particu-
larmente os costumes sexuais) que antes
os envolvia; 5.15-20 contrasta a loucura
daquele mundo com a sabedoria da nova
vida orientada segundo Deus, enquanto
5.21-6.9 analisa como os relacionamen-
tos marido-mulher, pais-filhos e escravo-
senhor podem refletir a unidade cósmica
que Deus já inaugurou em Cristo.
4.17-24 Dispam-se da velha humani-
dade e vistam a nova! Depois de uma in-
sistência inicial em que os leitores deixem
para trás a sua forma pagã de viver (17),
isso é retratado em cores muito escuras
(18,19; cf CI 1.21; 3.7) para fornecer
um contraste acentuado com o que eles
ouviram no evangelho acerca de Cristo
(20,21). Ele é o padrão para a humani-
dade da nova criação, e Paulo lembra os
seus leitores de que por isso o evangelho
incluiu ensinos acerca da necessidade de
eles se despirem da antiga e pecaminosa
1862
humanidade, e de vestirem a nova huma-
nidade (22-24; cf CI3.8-1O).
17-19 Compare esses versículos com
outros muito semelhantes de Romanos
1.18-32 (especialmente 1.21,24). Você
pode observar que há ênfase maior na
responsabilidade humana pela entrega ao
pecado, como é adequado a um apelo (cf
Rm 1.24,26,28: "Deus os entregou a..."
com o v. 19 aqui: os quais [...] se entre-
garam à..."), Como em Romanos, o pro-
blema é associado ao pensamento idólatra
(a palavra vaidade no v. 17 imediatamente
sugeriria isso a um leitor judaico), à igno-
rância culpável acerca de Deus e à dureza
do seu coração. Nas Escrituras, esta últi-
ma expressão significa pura rebeldia, e não
falta de sensibilidade emocional (cf a pro-
messa em Ez 36.26,27). Isso leva a uma
compreensão ainda mais obscurecida, vis-
to que Deus é deslocado da posição central
que deveria ocupar. Isso, por sua vez, con-
duz ao fracasso da consciência humana e à
espiral descendente do pecado (19). Tudo
está resumido em uma das palavras-chave
da carta: alheios (18) ("separados", ARe;
cf 2.12 e CII.2I).
Os v. 22-24 contrastam a vida antiga
dos gentios com o que aprenderam acer-
ca de Cristo tanto na proclamação inicial
quanto no ensino subsequente. Observe
como os v. 20,21 espelham Colossenses
2.6,7, que fornece o sentido básico aqui.
O que eles aprenderam acerca de Cristo é
que ele personifica a verdade (i.e., realida-
de divina, luz e vida), em contraste com
"engano" (ausência da realidade divina,
escuridão e futilidade) que caracteriza-
vam a sua vida antiga (21,22). O grego
de Paulo não é fácil aqui, e é literalmen-
te: "vós fostes ensinados nele, como [a]
verdade está em Jesus, a vos despirdes do
velho homem/humanidade correspondente
à vossa antiga maneira de viver [...] e a vos
revestirdes do novo homem/humanidade".
Em outras palavras, os leitores aprenderam
que Jesus personifica a verdade, e se eles
quisessem viver nela teriam de se despir da
 1863
antiga forma de viver e abraçar esta nova
forma. De acordo com Barth, o "velho
homem" de que o crente deve se despir é
Adão e o "novo homem" de que deve se
vestir é Cristo (como em Rm 6.6; 13.14;
cf Gl 3.27b). Há um importante elemento
de verdade aqui, mas tanto o paralelo de
Colossenses (3.1-4,8-10) quanto 4.24b-
32 sugerem uma nuança diferente. Paulo
não está pensando tanto nos representan-
tes da velha e da nova criação quanto nos
diferentes tipos de natureza humana que
caracterizam cada criação. Paulo está en-
corajando os leitores a serem renovados na
sua mente (contraste com a mente fútil e
aquilo a que ela conduz, v. 17-19), e a vi-
verem de acordo com a natureza da nova
criação que Deus já está criando neles. De
acordo com o v. 24, essa "nova natureza"
é "criada à semelhança de Deus", algo que
Paulo dificilmente diria acerca de Cristo!
É caracterizada por uma santa retidão que
procede da verdade e a espelha.
O ensino originário de Paulo provavel-
mente estava expresso no modo indicati-
vo ~ em união com Cristo a sua antiga
humanidade pecaminosa foi crucificada,
e vocês foram ressuscitados para a vida
da nova criação (cf Rm 6; 2Co 5.17;
CI2.11,12, e mais evidentemente CI3.9,1O,
o paralelo direto); mas tais indicativos su-
gerem imperativos correspondentes (como
aqui; cf Rm 6): nós somos responsáveis
por viver na prática com toda a seriedade
e energia o que Deus está gerando em nós
(cf Fp 2.12,13). Deixar de fazer isso se-
ria precisamente viver no engano (22) da
velha natureza e não na verdade da nova
(24; cf 21).
4.25~5.2 Vivam na verdade mode-
lada em Cristo Jesus! Se a humanidade
da nova criação espelha a verdade revelada
em Jesus (21,24) e não o engano da velha,
isso requer inevitavelmente que os cristãos
falem a verdade, não a falsidade. Mas a ver-
dade revelada está centrada na reconcilia-
ção e na unidade cósmicas, e assim Paulo
diz que devemos deixar a mentira porque
EFÉSIOS 4
somos membros uns dos outros. Isto é, já
não somos seres alienados e independen-
tes, mas pessoas que agora pertencem em
unidade umas às outras, e delas não deve-
mos roubar a verdade segundo a qual vão
decidir e agir. A parte restante da seção fo-
caliza principalmente no pecado separador
da ira (26) e em pecados relacionados a
ela (29-31). No lugar deles, os crentes são
chamados a seguir o modelo da verdade de
Deus revelada em Jesus (4.32~5.2). Esse
trecho é em grande parte uma refonuula-
ção de Colossenses 3.8-12.
O v. 26 introduz o tópico principal do
texto: ira. Irai-vos [e não pequeis] não é
encorajamento à ira justa (como poderia
parecer à primeira vista e de fato aparece
como significado numa versão em inglês
[NRSV]: "Be angry, but do not sin". Aliás,
toda a ira é condenada em 5.31). Antes, é
uma advertência: "Quando vocês ficarem
irados, cuidado! O pecado está à porta!".
Se no Ocidente a ira é vista como sinal
de hombridade, a tradição judaica estava
mais consciente do seu poder divisor, sa-
tânico e destrutivo (v. a crítica incisiva da
ira e de seus perigos em Testamento de Dã
1.l8~5.2). A ira e os pecados associados
nos v. 29,31 são o resumo dos pecados so-
cialmente destrutivos e alienadores, e tão
característicos da velha criação. O roubo
(28) é mais um, pois é experimentado não
meramente com privação da propriedade
(semelhante à perda acidental), mas como
assalto profanador à esfera privada de al-
guém e como elemento destruidor da con-
fiança dentro da comunidade. Essas coisas
e outras do seu tipo entristecem o Espírito
de Deus (uma alusão reveladora a ls 63.10)
no sentido de que se opõem exatamente à
direção da sua obra de reconciliação, uni-
ficação e nova criação no crente. No lugar
dessas atividades socialmente destrutivas,
Paulo advoga atividades correspondentes
que são coesivas, edificadoras e modelam
a existência da nova criação resumida e ge-
rada por Cristo: o ladrão de ontem deve se
tomar o filantropo de hoje (28); a fala não
EFÉSIOS 5 1864
deve ser usada para embaraçar e destruir,
mas para o bem (29); no lugar da ira, o
crente deve revelar o caráter perdoador de
Deus (32; 5.1) e o amor autossacrificial de
Cristo que morreu como substituto pelos
nossos pecados (5.2).
5.3-14 Vivam na luz que irradia de
Cristo Jesus! Essa seção se divide em
duas partes: v. 3-7, advertindo os crentes
a não terem nada que ver com levianda-
de sexual, promiscuidade e ganância do
mundo dos gentios; e v. 8-14, caracteri-
zando estas como pertencentes às trevas
de outrora, das quais eles foram converti-
dos e que agora, como luz, eles expõem. A
realidade divina antes mencionada como
"a verdade" em contraste com o "engano"
é agora chamada de luz em contraste com
trevas (cf SI 27.1; ls 9.2; 42.6; 60.1-3;
2Co 6.14). Um dualismo religioso-ético
semelhante foi desenvolvido em Qumran
(e nos Testamentos dos Doze Patriarcas).
Em Paulo, a "luz" normalmente repre-
senta a salvação e as realidades da nova
criação inaugurada, mas ainda a ser com-
pletamente revelada (v. especialmente
Rm 13.11-4 e lTs 5.4-8 que são paralelos
próximos deste trecho; também 2Co 4.6;
Cl 1.12).
3-7 A seção anterior adverte principal-
mente acerca de pecados que se expressam
na fala, e o mesmo se aplica aqui: a con-
versa sobre os pecados sexuais não deve
ser mantida, nem sequer se nomeiem entre
vós (ARA; assim também a BJ), e muito me-
nos que se façam gracejos a respeito (4).
Este não é um convite ao puritanismo, ou
a que se evite a genuína sinceridade pasto-
ral, mas é uma advertência contra condes-
cender de forma indulgente num fascínio
que quase inevitavelmente excita as ações.
Talvez nenhuma geração tenha sofrido os
efeitos danosos disso tão fortemente quan-
to a cultura ocidental de hoje. E Paulo ad-
verte que essas coisas pertencem à velha
humanidade que está debaixo da ira de
Deus (6; cf CI 3.6) e estão excluídas da
nova criação (5; cf lCo 6.9).
8-14 Observe a fluidez com que a lin-
guagem simbólica da "luz" e das "trevas"
é usada aqui: a luz essencialmente irradia
de Cristo (14b) como vida divina transfor-
madora - vida de que se pode dizer que
produz o fruto da luz e santidade (9; cf
015.22,23). Mas as pessoas transformadas
por ela também podem ser chamadas de
luz (8), e suas atividades (quando realmen-
te correspondem à humanidade da nova
criação) também são luz no sentido de
que expõem os padrões dos gentios como
pertencentes às trevas (li ,13). O v. 14b
aparentemente é um hino batismal cristão,
extraindo alguns aspectos de Isaías 26.19 e
60.1 ,2. Ele é acrescentado não para justifi-
car o v. 14a, mas para resumir todo o cha-
mado (2-14) de deixar para trás o domínio
das trevas e da morte.
5.15-6.9 Vivam na sabedoria que o
Espírito dá! Ao chamado para deixarem o
engano e darem lugar à verdade em Jesus
(4.17-5.2), e a deixarem as trevas para dar
lugar à luz que irradia dele (5.3-14), Paulo
agora acrescenta o chamado a que abando-
nem a insensatez e deem lugar à sabedoria
concedida pelo Espírito. Essa sabedoria se
expressa especialmente no uso sábio do
tempo, na adoração e gratidão sinceras e
no mútuo respeito e submissão (15-21).
18-24 Esses versículos formam um só
período gramatical (fato obscurecido por
todas as traduções). Isso significa que as
determinações para as esposas e maridos
nos v. 22-33 (junto com o material seme-
lhante que segue em 6.1-9) são apresenta-
das como um típico exemplo da sabedoria
respeitosa e submissa que deveria caracte-
rizar os crentes. Aliás, o verbo "submeter"
(sejam submissas) inserido na maioria das
traduções no v. 22 não tem equivalente no
texto grego de Paulo, mas é subentendido
com base na locução com o gerúndio do v.
21: sujeitando-vos uns aos outros.
Embora 5.22-6.9 seja forjado a ser
uma unidade compacta com 5.15-21, aque-
le trecho tem independência de forma e ori-
gem. Lutero se referiu a esse material como
 1865
"Haustafeln" (tabelas de admoestações
aos membros da casa), e elas claramente
tinham circulação mais ampla na igreja
(v. Cl 3.18-4.1; lPe 2.18-3.7). Tabelas
semelhantes podem ser encontradas no ju-
daísmo e nas discussões éticas dos filóso-
fos gregos. O fraseado e conteúdo da forma
mais simples (preservada em Colossenses)
sugerem uma origem no cristianismo ju-
daico de fala grega. Enquanto tabelas
gregas tratavam apenas do homem livre
acerca de como ele deveria governar a sua
esposa, filhos e escravos, estas, no estilo
judaico, tratam e protegem também a par-
te mais fraca. O conteúdo especificamente
cristão da tabela de Colossenses aparece
principalmente na repetida expressão "no
Senhor" (Cl 3.18), ou equivalentes: "gra-
to diante do Senhor" (Cl 3.20), "temendo
ao Senhor" (3.22) (v. também Cl 3.23,24).
Isso é mais amplamente desenvolvido na
seção de Efésios que é uma reformulação
e ampliação do ensino de Colossenses
3.15-4.1. A reformulação mais significa-
tiva é a do conselho aos maridos e esposas
que Paulo usa para exemplificar a unidade
de Cristo e a igreja. Aqui, as 19 palavras
de Colossenses 3.18,19 foram expandidas
para 200!
Diversos comentaristas têm argumen-
tado que a ética das tabelas de admoes-
tações era socialmente revolucionária, e
encontram evidência disso no pedido de
submissão mútua recíproca (21), que é in-
terpretado por eles como significando que
os maridos devem se submeter às esposas,
os pais aos filhos e os senhores aos seus
escravos, como também o contrário. Se é
que eram alguma coisa, as admoestações
eram socialmente conservadoras, patriar-
cais e foram dadas para confirmar que
os cristãos não deveriam solapar a com-
preensão mais ampla de ordem social (v.
Lincoln). A tabela de admoestações em
Colossenses (escrita talvez apenas alguns
dias antes de Efésios) exige exatamente
o mesmo tipo de submissão e obediência
exteriores que era encontrada em quase
EFÉSIOS 5
todos os lugares do mundo antigo. O v. 21
não deve ser interpretado como anulando
isso, mas como um chamado à submis-
são mútua em cada nível hierárquico, e
de crianças a pais e escravos; de escravos
aos senhores (e suas esposas?), e de espo-
sas a maridos. Se Paulo realmente tivesse
tido em mente uma submissão totalmente
recíproca (que seria completamente ines-
perada no mundo antigo) ele precisaria ter
esclarecido isso ao dizer ao menos uma
vez, e explicitamente, que, e.g., os pais
deveriam ser submissos aos filhos.
Afirmar que essas regras eram mais
socialmente conformistas do que revo-
lucionárias pode ser enganoso, contudo;
dentro da ordem hierárquica social alegam
que eram radical e profundamente liberta-
doras. O escravo, a criança e a esposa são
especificamente citados (algo incomum no
mundo antigo). Eles recebem o seu próprio
chamado para viverem diante do Senhor, o
que é tão responsável, honrável e impor-
tante como o chamado para viver como
senhor, pai/mãe e marido. Estes podem
até ser papéis diferentes, com autoridade e
responsabilidade sociais maiores, mas não
são papéis melhores. Isso é garantido pela
vinda do Filho em completa submissão
ao Pai, e para servir a igreja ao se entre-
gar por ela. Aliás, as próprias hierarquias
sociais que as tabelas apoiam são também
reconhecidas como efêmeras, e de impor-
tância secundária diante de Deus que é im-
parcial (9), e como estando sob o Senhor
para quem tudo deve ser feito, e diante de
quem senhor e escravo são igualmente res-
ponsáveis. As tabelas assim também con-
firmam Gálatas 3.28 e Colossenses 3.11
- e Efésios acrescenta uma compreensão
particularmente radical ao casamento (v.
comentário de 5.22,23).
15-21 O apelo à vida que reflete sa-
bedoria, não insensatez, é especificado
em três formas relacionadas. A primeira
é bem expressa na tradução da NJB (em
inglês): "Façam o melhor [uso] do tempo
presente, pois é uma época má" (16); e
EFÉSIOS 5 1866
isso provavelmente deve ser interpreta-
do como significando que os poderes do
mal têm domínio firme sobre a humani-
dade nesta era, levando-a à desobediência
na autoindulgência (assim 2.1-3), mas os
cristãos devem ordenar sua vida e prio-
ridades segundo a glória de Deus. a v.
17 então fornece um segundo significado
também associado: a vida de insensatez
deve ser abandonada para dar lugar à vida
que tenta descobrir e viver segundo a
vontade de Deus.
a v. 18 apresenta a terceira especifi-
cação, contrastando a vida de embriaguez
com a vida plena do Espírito. a contraste
aqui não é entre dois tipos de inebriação.
A embriaguez era simplesmente uma ex-
pressão regular, aliás proverbial, de in-
sensatez na literatura sapiencial judaica, e
contrastava com o Espírito que (também
proverbialmente) era considerado a fonte
da sabedoria e do entendimento (como em
1.17; 3.16-18). Encher-se do Espírito aqui
não deve ser entendido no sentido distin-
tamente carismático (embora possa incluir
isso), mas, à luz da linguagem de "cheio" e
"encher" encontrada em outros trechos da
carta (1.23; 3.19b; 4.10), como uma pre-
sença ativa contínua do Espírito mediando
Cristo e a vida da nova criação. a trecho a
partir do v. 19 faz parte do mesmo período
do v. 18 e expressa o que está vinculado a
ser cheio do Espírito: isso se expressa no
louvor congregacional (19a), no cântico
de adoração (19b), nas ações de graças a
Deus (20; cf 1.3-14,15,16; 3.20,21) e na
submissão mútua (21). Eclesiástico (um
exemplo de literatura sapiencial do século
" a.C.) fornece um bom paralelo do pensa-
mento de Paulo aqui: "Se o Senhor, em sua
grandeza, o quiser, ele será repleto do es-
pírito de inteligência. Fará chover palavras
da sua Sabedoria, e em sua oração louvará
ao Senhor" (Eclesiástico 39.8-9).
22-24 a chamado para que a esposa
obedeça ao seu marido (é isso o que o verbo
significa aproximadamente nesse contexto;
cf lPe 3.5,6) era praticamente uma con-
venção universal no mundo de Paulo. Mas
Paulo reforça a convenção com a afirmação
de que o marido é o cabeça da mulher, que
em 1Coríntios 11está fundamentada na his-
tória de Adão e Eva em Gênesis, "Cabeça"
significa senhor (v. comentário de 1.22); ao
contrário de declarações bem difundidas, a
palavra nunca significou "fonte" no grego
bíblico. a apelo é apoiado adiante então (e
aí transcende a convenção) pela analogia
que Paulo desenvolve entre o casamento
e o relacionamento entre Cristo e a igre-
ja, com a mulher sendo requisitada a se
submeter ao seu marido da mesma forma
em que a igreja se submete ao seu cabeça,
Cristo (i.e., respondendo ao seu amor, com
alegria e do fundo do coração, não de má
vontade ou por obrigação).
25-29 A ordem aos maridos para amar
cada um a sua esposa também está bem re-
fletida nas melhores convenções daqueles
dias, mas Paulo lhe confere um conteúdo
radicalmente novo por meio da analogia
Cristo-igreja. Cristo se deu a si mesmo
pela igreja em amor, e de forma amorosa
aperfeiçoa a igreja (lavando-a com a pa-
lavra) para o dia em que ele estará mais
plenamente unido com ela. (A referência
no v. 26 não é ao batismo.) Paulo não ima-
gina que a analogia se aplica em todos os
detalhes, mas assim como Cristo enxerga a
igreja como agora tendo se tornado o seu
próprio corpo, pelo compromisso da união
do casamento, e faz tudo de forma amorosa
para o bem dela, assim deve fazer o marido
pela sua esposa (28). Ele deve reconhecer
que ao amá-la está se amando a si mesmo;
porque ela está unida a ele como uma car-
ne (28,29; cf. 31).
30-33 Paulo estava perfeitamente cons-
ciente do significado literal de Gênesis
2.24, mas ele via o mistério da unidade cós-
mica com Cristo, e especialmente a união
entre Cristo e o seu corpo, como prefigura-
do, em certo sentido, no elo do casamento.
Para ele há uma relação tipológica entre a
criação em unidade com Deus e a redenção
para dentro da unidade com Deus. Essa
 1867
unidade originária não encontrava expres-
são mais nítida do que na união antes da
queda entre Adão e Eva, e Paulo defende
que a união de Cristo com a igreja é a sua
contrapartida redentora. O paralelo não foi
acidental: como Lincoln observa, "Cristo
já tinha sido visto em termos adâmicos em
Efésios 1.22 [...] e assim um texto que se
refere à união corpórea de Adão pode ser
agora reivindicado para a união de Cristo
com a igreja" (Lincoln, p. 382). Mas se
Paulo enxerga o casamento como uma
ilustração da união da nova criação, preci-
samos observar que ele também interpreta
o casamento à luz da união Cristo-igreja
- e por meio disso transforma o conceito
do relacionamento de casamento, e dá ao
mundo o mais elevado ideal de casamento
de que este tem conhecimento.
6.1-4 As ordens concernentes às re-
lações pais-filhos seguem claramente o
fraseado de Colossenses 3.20,21. Paulo
só acrescenta à ordem uma forma modi-
ficada da sua promessa anexada (2; cf
Êx 20.12) e de sua orientação positiva de
que os pais (observe a responsabilidade
dos homens) instruam e treinem os seus
filhos no Senhor.
Os v. 5-9 seguem Colossenses 3.22-
4.1 de perto (v. comentário ali).
6.10-20 Apelo final: Lutem
a batalha espiritual juntos!
Era bem comum concluir com um apelo
que retomasse a mensagem central da car-
ta, e a reforçasse para mexer com o cora-
ção e a vontade dos leitores para que con-
firmassem o autor. É isso o que Paulo faz
aqui. A seção deve ser lida à luz de Efésios
como um todo, como um desafio a viver na
prática o evangelho da reconciliação cós-
mica, não como um apêndice para aqueles
que têm interesse especial em demônios e
batalha espiritual. Observe que Paulo es-
colheu reformular sua mensagem na forma
de um discurso de guerra: i.e., ele se dirige
a toda a igreja como um corpo e como um
exército, e não como santos individuais.
EFÉSIOS 6
Soldados solitários são facilmente pegos.
Observe também que Paulo tem em mente
um tipo particular de batalha: a defesa de
uma posição fortificada. A sua exortação
não prepara soldados para fazerem um rá-
pido movimento de ataque (e a arma prin-
cipal de ataque do soldado romano, a lança
dupla, está faltando), mas para manterem
uma posição (poderdes ficar firmes, 11),
para poderem resistir (13) e para poderem
estar firmes (14). Eles estão defendendo a
coroa da colina, por assim dizer, e o inimi-
go precisa se empenhar em constantes ata-
ques ladeira acima. A posição fortificada
que Paulo tem em mente estará clara para
o leitor: é a nossa união com Cristo (2.5,6),
o cabeça sobre todas as coisas (1.22,23),
muito acima de todos os principados e
potestades (1.21), e o poder da ressurrei-
ção de Deus operante em nós (1.19-2.7).
Até mesmo a armadura e as armas acabam
sendo uma combinação entre as próprias
armas de Deus (cf Is 59.17) e as do seu
Messias (Is 11.4,5). Mesmo assim, Paulo
não mostra nenhum triunfalismo aqui. A
vitória decisiva obtida por Cristo está no
passado, e o simples fato de que os cren-
tes agora lutam do lado de Cristo é uma
clara evidência daquilo (cf 2.1-6); mas
a vitória completa ainda está no futuro.
Entrementes, é o dia mau (13) que parece
dominar o cenário.
O trecho se divide em três categorias:
o chamado para que ponhamos a armadura
de Deus para a batalha (10-13); o detalha-
mento da armadura (14-17); e a necessi-
dade de vigilância, oração e intercessão
(18-20).
10-13 Sede fortalecidos no Senhor ex-
pressa bem a força do verbo grego no pas-
sivo. Uma alternativa seria: "Encontrem
a sua força no Senhor" (REB). Certamente
a ênfase está no grande poder de Deus
para essa batalha, e por isso Paulo tinha
feito do entendimento dos seus leitores o
ponto central na sua oração anterior por
eles (1.19-2.10). Além da força divina,
eles vão precisar da completa armadura
EFÉSIOS 6 1868
(defensiva e ofensiva) que Deus fornece,
mas essa armadura será de Deus no senti-
do futuro de que é a armadura que ele usa
quando sai para julgar e salvar (Is 59.17).
Somente esse tipo de armadura será útil em
virtude da natureza da oposição: o diabo e
suas forças (l l ).
Ao escrever a uma região em que
havia forte associação com a magia (v.
Introdução, e comentário de l.19a), e em
que as pessoas conheciam uma miríade de
nomes dos poderes, é importante observar
que Paulo não se lança a uma detalhada e
especulativa demonologia. Em vez disso,
ele usa três termos gerais, e um (" 'cosmo-
cratas' desta era tenebrosa") que pode ori-
ginariamente ter tido um significado mais
astrológico. Os primeiros dois termos são
propositadamente extraídos de 1.21,22, e
assim o leitor está certo de que Cristo tem
muito mais autoridade e poder.
O leitor atento da carta não terá proble-
mas em entender a natureza da luta con-
tra esses poderes, ou do conteúdo dessas
ciladas do diabo (I l ). Este tenta alienar a
humanidade de Deus pela desobediência
(2.1-3; 4.18b,19) e por ignorância e pensa-
mento deturpado (4.17b, 18). Ele tenta se-
parar as pessoas umas das outras por meio
dos pecados que causam divisão, como a
ganância (4.22,23), a falsidade (4.25), a ira
(especificamente associada ao diabo em
4.27) e pecados correlatos (4.25-31). Ao
se referir aos "cosrnocratas" como "desta
era tenebrosa" (deste mundo tenebroso),
Paulo aponta em retrospectiva para 5.7-14
e retrata os poderes como a influência so-
bre o pecado que caracteriza esta era e esta
criação, em contraste com a "luz" da nova
criação por vir. Pode nos chocar como algo
estranho o fato de que esses poderes estão
localizados nas regiões celestes, mas essa
expressão significa toda a dimensão espi-
ritual desde aquilo que 2.2 denomina "do
ar" até o trono de Deus (e de Cristo) nos
mais altos céus.
O v. 13 reitera a necessidade da arma-
dura divina se o cristão quer ficar firme
contra esses poderes no dia mau. A formu-
lação da NTLH - "quando chegar o dia de
enfrentarem as forças do mal" - poderia
sugerir uma irrupção final do mal e da tri-
bulação que a literatura apocalíptica judai-
ca esperava imediatamente antes do dia do
Senhor. Esse pensamento certamente ma-
tiza a linguagem aqui, mas para Paulo os
diasjá são maus (5.16); a batalha já está
em curso; a armadura é necessária agora
se o crente quer ficar firme. Assim, no dia
mau provavelmente inclui o presente, mas
particularmente aqueles períodos que mais
parecem nos revelar a qualidade terrível do
"dia mau [final]".
14-17 Um repetido Estai [...]firmes (cf
v. 13) introduz o retrato da armadura em si.
Leitores gentios sem dúvida teriam pensa-
do num soldado romano, mas Paulo (como
em 1Ts 5.8) formulou a sua descrição prin-
cipalmente em termos da armadura de Deus
em Isaías 59.17 (e a descrição de Deus em
Sabedoria de Salomão 5.17-20 é ainda
mais próxima). Aqui, no entanto, o "cinto
da verdade" (NVI) e a couraça da justiça
são acrescentados, junto com a sua pode-
rosa palavra que exerce o juízo (Is 11.4,5).
Tudo isso fortalece a afirmação de Paulo
de que é o Senhor quem dá a armadura ne-
cessária; essa armadura é moldada pela sua
graça em nós. Observe que as metáforas
não são rígidas: em 2Tessa1onicenses 5.8,
a couraça é da fé e do amor, enquanto aqui
é de justiça.
O v. 14 começa com dois itens éticos:
cingindo-vos com a verdade e vestindo-
vos da couraça da justiça. A julgar pela
ordem em que a armadura é vestida, a
primeira parte do equipamento prova-
velmente é uma referência ao avental de
couro que era colocado primeiramente
abaixo da armadura (para firmar a roupa)
e não a armadura afivelada ou o cinto da
espada. A verdade e a justiça com frequ-
ência são interpretadas como referências
ao evangelho e à sua oferta da justiça pela
fé. Mas os termos aqui (como em Is 11.5;
59.17) denotam qualidade de caráter, e são
 1869
paralelos a "santidade" (ARe) em 4.24,25
e "bondade" em 5.8,9. Paulo está dizendo
que o equipamento básico da igreja na ba-
talha são a integridade e a vida correta, e
elas são eficazes porque essas qualidades
levam a marca de Jesus e da nova criação
que ele traz (v. comentário de 4.17-24).
A expressão, no v. 15, que é literal-
mente: "tendo calçado os seus pés com
o preparo do evangelho da paz" (obser-
ve a alusão a Is 52.7) tem sido traduzida
em algumas versões por: "prontidão para
anunciar a boa notícia de paz" (NTLH; NVI é
semelhante). Mas o ponto de Paulo parece
antes o aspecto de que o calçado provê a
preparação ou prontidão para a batalha.
O que os soldados precisam numa bata-
lha pesada é de uma pegada firme provida
pelos pregos que atravessam a sola, assim
que as linhas de frente não sejam escorra-
çadas e empurradas de volta pelo ataque
inimigo. Paradoxalmente, é uma profunda
compreensão espiritual do evangelho da
paz (v. comentário de 2.14,17) que pro-
vê a igreja com essa firme pegada que
é a preparação ou a "prontidão" para a
batalha que Paulo tem em mente. Daí a
formulação da REB: "Que os calçados nos
seus pés sejam o evangelho da paz, para
lhes dar uma pisada firme".
O v. 16 introduz o grande escudo em
forma de porta constituído de madeira e de
couro. Na batalha, esses escudos podiam
ser encaixados uns nos outros e assim for-
mar uma parede na frente e uma cobertu-
ra sobre a cabeça. O couro era embebido
de água antes da batalha, e isso ajudava a
apagar as setas incendiadas que vinham
chiando sobre os escudos e queimariam
escudos puramente de madeira até que
os escudeiros os deixassem cair em pâni-
co. Os dardos inflamados que Paulo tem
em mente incluíam qualquer coisa desde
o ataque oculto direto até a perseguição
diabólica, mas acima de tudo a constante
chuva de tentações ao medo, à amargu-
ra, ira e divisão que poderiam romper a
unidade da igreja. Esses dardos precisam
EFÉSIOS 6
ser enfrentados com fé. A fé nessa carta
é a abertura radical a Deus que permite a
habitação completa de Cristo, e traz uma
compreensão maior do seu imenso amor
(cf 3.17). Usar o escudo dafé sugere então
o apegar-se propositada e positivamente ao
Deus revelado no evangelho; é a firme e
resoluta dependência do Senhor que apa-
ga as tentativas incendiadas do inimigo de
prejudicar e espalhar o pânico.
17 Colocar o capacete da salvação (cf
Is 59.17), no contexto dessa carta, é asse-
gurar o nosso coração da união com Cristo
- que já estamos assentados com ele e
dessa forma seguros nele (cf 2.5-8). Nós
já ocupamos o solo firme; só somos cha-
mados a permanecer firmes. A peça final
da armadura mencionada é a espada do
Espírito, que é a palavra de Deus. Isso
também parece uma alusão a Isaías 11.4,
em que a poderosa palavra do Messias
executa o juízo (e Sabedoria de Salomão
5.20 [ecoando ls 16.4,5 e 59.17] fala da
"ira implacável" como sendo a "espada"
do Senhor). Aqui, então, a igreja recebe
uma arma não somente de defesa, mas
para contra-atacar a investida dos pode-
res. Contra-atacar com a verdade quan-
do somos tentados ao mal; contra-atacar
com a verdade quando a igreja é atacada
por falsos ensinamentos; contra-atacar
com a verdade quando os poderes tentam
impregnar o mundo à nossa volta com
estranhas filosofias e ensinos éticos dis-
crepantes; e finalmente lançar golpes vi-
gorosos pela liberdade com a destemida
proclamação da verdade cristã tal como
Paulo nos encoraja nos v. 19,20. Mas
uma coisa precisa ser lembrada acima
de tudo acerca dessa "arma de ataque":
a palavra de ira de Isaías 11.4 tomou-se
o evangelho da paz e do amor unificador
em Cristo. E estamos lutando contra os
poderes espirituais e não contra inimigos
humanos (12). O nosso uso da espada do
Espírito precisa refletir isso, se não, ela se
tomará uma arma das trevas, da inimizade
e da divisão.
EFÉSIOS 6
18-20 Tecnicamente, essa não é uma
frase isolada, mas uma série de locuções
formadas em tomo dos dois gerúndios
"orando" e "vigiando", junto com suas
locuções subordinadas. Toda a construção
qualifica a expressão "Estai firmes" no
v. 14. Não se deve entender que a oração é
a sétima parte da armadura, nem especifi-
camente que a oração é o meio de vestir as
seis, mas que a oração está proximamente
associada a elas. A compreensão teológica
do evangelho (14-17) que não resultar em
oração, como a de Paulo pelos leitores
em 1.15-23 e 3.14-21, é um esqueleto mor-
to. Guerreiros de oração que não têm a ver-
dadeira compreensão do que é o evangelho
(o evangelho da paz da restauração cósmi-
ca em Cristo) podem até ser determinados,
mas não são mais úteis no campo do que
um soldado sem armas. A compreensão
1870
espiritual do evangelho combinada com
uma atitude de vigilância e oração é a
combinação que Paulo busca. Tal oração
será guiada pelo Espírito que dá acesso a
Deus (cf v. 18 lembra 2.18), e a pessoa que
orar assim vai orar não meramente por si
mesma, mas pelos santos e pelo progresso
ousado do evangelho (19).
6.21-24 Pós-escrito
Os v. 21,22 são praticamente uma repeti-
ção palavra por palavra de Colossenses
4.7,8 (v. comentário ali). As palavras finais
são um pedido de oração que focaliza no-
vamente o tema principal de toda a carta:
pela paz que abraça toda a comunidade,
expressa em amor e fé, e pelo aprofunda-
mento dessa graça.
Max Tumer
 FILIPENSES
INTRODUÇÃO
Paulo, Filipos e a igreja ali
A Filipos visitada por Paulo no curso de
sua obra missionária era um lugar de re-
levância em diversos aspectos. Não era
apenas uma cidade de destaque na pro-
víncia romana da Macedônia, mas gozava
do prestígio de ser uma colônia romana
(At 16.12). Isso significava que a cidade
era como um pequeno pedaço de Roma
no exterior. O latim era o idioma utiliza-
do, a lei romana controlava a administra-
ção e os impostos locais, muitos aspectos
da vida pública funcionavam tal qual em
Roma e a maior parte das autoridades fa-
zia uso dos mesmos títulos utilizados na
capital do império.
A história conhecida de Filipos, con-
tudo, remonta a muito antes dessa época.
Já antes de 360 a.C., um pequeno povoado
trácio surgiu no local. A cidade em si rece-
beu seu nome de Felipe da Macedônia, pai
de Alexandre, o Grande que, ao perceber as
vantagens estratégicas do lugar, fundou-a.
Filipos caiu sob a dominação romana em
168 a.c. depois da batalha de Pidna. Em
42 a.c., Antônio, depois de ter derrota-
do Bruto e Cássio com a colaboração de
Otávio, enviou para lá alguns legionários
dispensados, tomando Filipos uma colônia
romana. Então em 30 a.c., depois de ter
derrotado Antônio e Cleópatra na famo-
sa batalha de Ácio, Otávio enviou novos
grupos de "colonos" da Itália para Filipos
a fim de estabelecer uma colônia mais
próxima de casa para seus próprios vete-
ranos de guerra. A consciência sólida dos
seus habitantes quanto aos privilégios da
cidadania romana é evidenciada em Atos
16.20,21,35-39 e provavelmente transpa-
rece na carta em 1.27 e 3.20.
A pregação do evangelho em Filipos
por intermédio de Paulo representa o
que talvez tenha sido a primeira obra
de evangelização apostólica na Europa.
Para o apóstolo, isso teria significado
pregar em um centro estratégico de uma
província romana que antes disso nunca
ouvira o evangelho. Conforme o relato
de Atos 16.9,10, Paulo foi para lá em
resposta a uma visão que teve à noite,
"na qual um varão macedônio estava em
pé e lhe rogava, dizendo: Passa à Mace-
dônia e ajuda-nos". Como lemos em Atos
16, Paulo não encontrou uma sinagoga
em Filipos, mas descobriu, no sábado,
"um lugar de oração" próximo do rio,
onde estava reunido um grupo de mulhe-
res. Uma das mulheres, Lídia, "da cidade
de Tiatira, vendedora de púrpura", pare-
ce ter sido a primeira convertida. Depois
do seu batismo ela abriu a sua casa para
abrigar Paulo.
Vislumbramos algo da formação pagã
de Filipos quando lemos sobre "uma jovem
possessa de espírito adivinhador, a qual,
adivinhando, dava grande lucro aos seus
senhores". Tamanha foi a fúria dos donos
daquela escrava, ao verem "que se lhes
desfizera a esperança do lucro", que Paulo
e Silas acabaram condenados à prisão. Ao
buscar pretextos para a condenação de
Paulo e Silas, os seus acusadores disseram,
de forma hipócrita: "Estes homens, sendo
judeus, perturbam a nossa cidade, propa-
gando costumes que não podemos receber,
nem praticar, porque somos romanos".
Nesse registro da primeira visita de Paulo
a Filipos, em Atos 16, podemos ver a par-
ceria para a pregação do evangelho, a per-
seguição e a formação amplamente pagã
FILlPENSES 1872
dos cristãos filipenses (que é claramente
mencionada na carta).
Embora nos faltem maiores detalhes,
fica claro que com aquela primeira viagem
a Filipos Paulo deixou para trás um grupo
de cristãos devotados. Na terceira viagem
missionária de Paulo, também registrada
no livro de Atos, lemos sobre ele ter pas-
sado mais algum tempo na Macedônia
(At 20.1), o que provavelmente teria inclu-
ído uma visita a Filipos. Então, depois de
ficar algum tempo na Grécia, ele voltou a
passar pela Macedônia, e Atos 20.6 fala es-
pecificamente acerca de Paulo ter partido
de Filipos para voltar a Jerusalém.
o momento e o lugar em
que a carta foi escrita
Com base em 1.12-26 fica absolutamente
claro que Paulo estava na prisão ao escre-
ver a carta. Filipenses, juntamente com
Filemom, Colossenses e Efésios, são co-
nhecidas como "as cartas da prisão". Em
2Coríntios 11.23 ele fala sobre ter sido
aprisionado diversas vezes. Com base no
relato do livro de Atos sabemos que ele
enfrentou períodos na prisão em Cesareia
e em Roma. Além disso, segundo o que
lemos em passagens como Atos 20.18,19;
1Coríntios 4.9-13; 15.31,32; 2Coríntios
1.8-10; 4.8-12; 6.4-10 e 11.23-27, acre-
dita-se que ele bem pode ter estado preso
também em Éfeso. Diversos argumentos
têm sido propostos na defesa de cada um
desses lugares - Cesareia, Éfeso e Roma
- como o provável local do cárcere de
Paulo na época da composição de sua carta
aos cristãos de Filipos.
Os mais importantes argumentos na
defesa de que a carta foi escrita em Ce-
sareia são:
1.Atos 23.35 fala do seu aprisionamento
em Cesareia, no pretório de Herodes ("palá-
cio de Herodes", NVI). A carta também fala
do fato de que Paulo estava em "cadeias,
em Cristo", o que se tomou conhecido de
toda a guarda pretoriana ("guarda do palá-
cio", NVI) e de todos os demais (1.13).
2. O cativeiro de dois anos em Cesareia
(At 24.27) justificaria o tempo necessário
às comunicações mencionadas na carta en-
tre o local da prisão de Paulo e Filipos.
3. Em Filipenses 1.7 Paulo menciona
uma defesa que havia apresentado, embora
ainda estivesse na prisão. Isso sem dúvida
aconteceu em Cesareia, quando ele apre-
sentou a sua defesa perante Félix e conti-
nuou preso por mais dois anos.
4. Nessa carta, Paulo não faz menção
alguma à coleta feita para os pobres da
Judeia, que tão importante foi nas primei-
ras fases do seu trabalho. Na época da sua
prisão em Cesareia, essas doações já ha-
viam sido entregues em Jerusalém, de for-
ma que, em Filipenses, ele podia escrever
"donativo" sem aludir àquela coleta.
Há algum mérito nesses argumentos.
Vigorosamente contrariando-os, porém, é
preciso dizer que, em Cesareia, Paulo não
enfrentava a possibilidade de ser execu-
tado a qualquer momento, mas aguarda-
va ser levado a Roma e ser julgado pelo
imperador, por causa de seu "apelo para
César" (At 25.11). As possibilidades de
morte ou libertação, mencionadas espe-
cificamente em 1.20-24 - sendo que, no
caso da última, havia a esperança de uma
visita a Filipos (2.24) - não faziam parte
da realidade de Paulo durante o seu cati-
veiro em Cesareia.
Se aceitarmos a probabilidade de um
cativeiro em Éfeso, poderemos reconhecer
o valor dos argumentos relacionados abai-
xo, que defendem esta cidade como o lugar
em que a carta foi escrita:
1. A carta assinala pelo menos quatro
viagens entre Filipos e o lugar do cati-
veiro de Paulo. A primeira levou notícias
sobre a sua situação no cárcere. Em se-
guida, Epafrodito foi de Filipos visitar
Paulo, e uma nova mensagem foi en-
viada de volta a Filipos contando sobre
a doença de Epafrodito. Posteriormente,
Paulo recebeu mais notícias acerca da
preocupação dos filipenses com a sua
vida (2.25-30). Cada percurso de Filipos
 1873
a Éfeso teria levado de sete a dez dias, de
forma que não seria difícil a realização
de todas essas viagens.
2. Atos 19.22 relata que Timóteo foi
enviado de Éfeso para a Macedônia, o que
está em consonância com o que se lê em
Filipenses 2.19-22.
3. Das passagens mencionadas acima
na defesa da tese de que Paulo estava preso
em Éfeso pode-se deduzir que Paulo efeti-
vamente enfrentou a ameaça de morrer lá
(conforme Filipenses 1.20-23). É incerto,
porém, que Paulo tenha suportado um apri-
sionamento longo em Éfeso, por período
suficientemente extenso para as situações
descritas em 1.12-18.
4. Enquanto estava em Éfeso, Paulo
certamente considerou, e de fato concreti-
zou, a esperança de viajar pela Macedônia e
pela Grécia. Por outro lado, é questionável
se Paulo poderia ter escrito 2.24 em Roma;
uma vez que, aparentemente, sua atenção
parecia estar voltada para o oeste e ele não
esperava retomar para o leste (v. At 20.25 e
Rm 15.18-29).
5. Acredita-se que essa carta é mais pa-
recida com as primeiras cartas de Paulo do
que com as últimas. Em especial, a questão
dos judaizantes com que ele lida em Gála-
tas e Romanos continua a preocupá-lo.
6. Acredita-se que algumas passa-
gens, como 1.30 e 4.15,16, aludem à pri-
meira pregação do evangelho em Filipos
como sendo muito mais recente do que os
onze ou doze anos que se teriam passado
caso Paulo estivesse escrevendo sua carta
em Roma.
Se a carta foi enviada de Éfeso, a data
de sua composição estaria entre 54 e 55
d.e. Se foi escrita em Cesareia, isso teria
ocorrido entre 57 e 59 d.e. Embora os ar-
gumentos que situem sua origem em Éfeso
sejam bem mais fortes que os utilizados na
defesa de uma origem em Cesareia, há só-
lidas alegações a favor da visão tradicional
de que a carta foi escrita em Roma:
1. Em Roma, enquanto aguardava para
ser julgado pelo imperador, duas possibi-
FILlPENSES
lidades se apresentavam perante Paulo:
ser absolvido e posto em liberdade ou
ser condenado à morte. Essas são as duas
alternativas mencionadas por Paulo em
1.19-26.
2. Apesar de a distância entre Roma e
Filipos ser bem maior do que entre Éfeso
e Filipos, não seriam necessárias mais do
que sete ou oito semanas de viagem.
3. Embora ao considerar sua ida a Roma
Paulo tenha pensado em seguir em frente
até a Espanha (Rm 15.23-28), evidências
sugerem que já em Roma o apóstolo vol-
tou a pensar nas terras orientais que deixa-
ra para trás, onde já tinha trabalhado e as
igrejas por ele fundadas precisavam muito
da sua ajuda.
4. A despeito das semelhanças existen-
tes entre Filipenses e as primeiras cartas de
Paulo, há também diferenças marcantes.
Além disso, mesmo na época em que as
cartas foram enviadas a Timóteo e a Tito,
a igreja ainda se debatia com o legalismo
dos judaizantes.
5. Embora seja possível explicar os ter-
mos "pretoriana" (1.13) e "casa de César"
(4.22) em relação a Éfeso (ou mesmo Ce-
sareia), ambas as expressões seriam mais
naturalmente utilizadas em Roma.
6. A ausência de qualquer menção à
coleta para os cristãos de Jerusalém já foi
utilizada acima para defender que a carta
foi escrita em Cesareia, não em Éfeso. Se,
porém, desconsiderarmos Cesareia como
uma possível origem da carta, esse tam-
bém é um forte argumento a favor de Roma
como local de composição. Quando lemos
2Coríntios 8.1-5 e 9.1-4, vemos o envolvi-
mento dos cristãos da Macedônia em todo
o processo. Assim, silenciar a respeito dis-
so poderia sugerir que tudo ocorrera muito
antes, no passado.
Se concordarmos em que Roma é o
local de origem mais provável da carta,
poderemos datá-la em tomo de 62 d.C., já
perto do fim do cárcere de Paulo que está
relatado em Atos 28. Todavia, para melhor
compreendermos a carta, o local em que
FILlPENSES 1874
ela foi escrita é bem menos importante do
que o reconhecimento do fato de que ela
foi escrita por alguém enfrentando um pe-
ríodo prolongado na prisão.
As motivações da carta
Ao lermos a carta aos filipenses perce-
bemos que diversos motivos levaram Paulo
a escrevê-la.
1. Ele queria reconhecer e agradecer os
donativos que seus amigos em Filipos lhe
haviam enviado (4.10,14-18).
2. Ele queria dar noticias da sua situa-
ção e principalmente garantir que a sua
prisão não significava de modo algum um
retrocesso para o evangelho (1.12-26). Ele
também queria contar dos seus planos de
enviar Timóteo com mais notícias (2.19-
24), embora tivesse a esperança de ser sol-
to e ir pessoalmente.
3. Ele precisava explicar o porquê de
estar enviando Epafrodito de volta, visto
que os filipenses aparentemente queriam
que este permanecesse com Paulo a fim
de ajudá-lo da melhor forma possível
(2.25-30).
4. Ele ficara sabendo da ocorrência de
facções e da possível desunião na igreja de
Filipos, de modo que desejava exortá-los
a viver, agir e testemunhar na unidade do
Espírito (1.27; 2.1-11; 4.2,3).
5. Paulo também percebeu que havia o
risco de os filipenses serem influenciados
na direção do legalismo judaico. Por esse
motivo, ele queria deixar absolutamente
claro para eles que isso seria uma contradi-
ção flagrante ao evangelho (3.1-11).
6. Aparentemente ele também estava
ciente dos perigos de uma compreensão er-
rônea acerca da busca da perfeição (3.12-
16) e das pressões do materialismo sobre
os cristãos de Filipos (3.18-21).
7. A sua carta também era uma oportu-
nidade para encorajar os cristãos a sofre-
rem corajosamente, serem perseverantes e
a confiarem sua vida ao Senhor em todas
as coisas e em quaisquer circunstâncias
(1.27-30; 2.12-18; 3.17-21; 4.4-9).
A teologia e os temas da carta
A maioria das cartas lida com as questões
práticas da vida cristã e não com as cren-
ças cristãs em si. Como, porém, ocorre
em todas as cartas de Paulo, as instruções
que ele dá sobre o discipulado estão re-
lacionadas a pontos fundamentais da fé
cristã, como a centralidade da cruz (3.18),
a ação do Espírito (1.19) e a esperança
cristã (1.6,10; 3.20). Partes da carta, con-
tudo, são declarações vigorosas e inequí-
vocas sobre a pessoa de Cristo e o cami-
nho da salvação em Cristo. Em 2.5-11 o
fato de Cristo possuir a mesma natureza
de Deus e ainda assim ter se tomado total
e completamente humano é expresso de
forma inequívoca. Paulo diz que, depois
de Cristo ter se esvaziado para assumir
uma forma humana, chegando até a morte
na cruz, "Deus o exaltou sobremaneira".
Ele diz isso usando palavras de exaltação
extraídas de passagens do AT, as quais
falam que todo joelho se dobrará diante
de Deus e que toda língua o confessará
(ls 45.23).
Em 3.4-10, ao comparar suas ambi-
ções antes de conhecer a Cristo com a vida
que encontrou em Jesus, Paulo deixa claro
que a "justiça" (ser achado justo perante
Deus) não é algo que pode ser alcançado
pela obediência à lei ou pela observância
fiel de rituais exteriores. É algo possível
somente por intermédio de Cristo, por
meio de uma "justiça" que é concedida
graciosamente por Deus e que nos alcança
por meio do sofrimento, da morte e da res-
surreição de Cristo.
Naquilo que é dito sobre a vida cris-
tã, há algumas ênfases predominantes na
composição da carta:
I. Alegria. O substantivo "alegria" e
o verbo "regozijar-se" são utilizados 16
vezes na carta. Paulo fala da alegria na
oração (1.4), da alegria no fruto de seu
trabalho (4.1) e da alegria no sofrimen-
to, ainda que em face da morte (2.17).
Ele se regozija quando há união e comu-
nhão (2.2), além de encontrar alegria nos
 1875
presentes dos seus amigos (4.10) e ao sa-
ber que outros estão pregando o evange-
lho de Cristo (1.18). Ele incentiva os seus
leitores a se regozijar em sua fé, no rela-
cionamento que têm com o Senhor (1.25;
3.1; 4.4) e ao receber e abrigar irmãos em
Cristo (2.28,29).
2. Comunhão e união. Paulo expressa
a sua gratidão pela colaboração dos fili-
penses no evangelho desde o início (1.5)
quando haviam participado da graça de
Deus e se esforçado na defesa e confirma-
ção do evangelho (1.7). Com os filipen-
ses, Paulo conhecera uma comunhão de
"dar e receber" (4.15). Ele os encorajou
a continuar "firmes em um só espírito,
como uma só alma, lutando juntos pela fé
evangélica" (1.27). A alegria do apóstolo
seria completa se eles tivessem "o mesmo
modo de pensar, o mesmo amor, um só
espírito e uma só atitude" (2.2, NVI). Ele
queria se certificar de que a igreja de Fili-
pos não permitiria danos à sua comunhão,
quer por atitudes egoístas, orgulhosas ou
sectarismos (2.1-4). Sempre que houves-
se discórdias entre os membros, era pre-
ciso socorrê-los a fim de que a unidade,
a comunhão e o testemunho do corpo não
fossem arruinados (4.2,3).
3. A ambição espiritual de Paulo. Ne-
nhuma outra carta mostra isso de forma
tão evidente. Podemos ver a inteireza do
compromisso de Paulo com Jesus Cristo.
Vemos que o seu único interesse era co-
nhecer a Cristo e fazê-lo conhecido. A
passagem que evidencia isso com mais
clareza é 3.7-14. Juntamente com essa pas-
sagem, porém, é preciso também apontar a
esperança e o anseio de Paulo, expressos
em 1.20, de que ele jamais fosse envergo-
nhado, mas que, corajosamente, garantisse
que Cristo seria "engrandecido no [seu]
corpo, quer pela vida, quer pela morte".
Em 4.11,13 ele fala do seu contentamento
sob quaisquer circunstâncias, privações ou
dificuldades, contanto que Cristo o fortale-
cesse para suportá-las e fosse glorificado
por meio delas.
FILlPENSES
Como a carta chegou a ser escrita
Os leitores que examinam mais detidamen-
te os livros do NT levantam questões perten-
centes às críticas literária e histórica. Será
que o livro foi efetivamente escrito pela
pessoa a quem o livro atribui a sua auto-
ria? Teria o livro sido inteiramente escrito
na forma de uma carta, como se supõe que
ele seja? No caso específico dessa carta, há
algumas questões acadêmicas bastante ra-
zoáveis. Com exceção de uma minoria dos
estudiosos, pouca dúvida há quanto à au-
toria de Paulo. Há, contudo, três questões
que merecem alguma atenção:
1.Não poderia o trecho de 2.6-11 ser um
antigo hino cristão, citado pelo apóstolo por
ser apropriado a essa carta? Tais versículos,
que trazem a humilhação e a exaltação de
Cristo como tema, contêm uma tal forma
rítmica que os estudiosos os organizam em
seis estrofes com seis versos cada. Em algu-
mas das outras cartas de Paulo, temos passa-
gens altamente poéticas (como em 1Co 13),
mas esses versículos soam mais como uma
citação, sendo de grande relevância para
o propósito do texto, mas não originaria-
mente compostos para ele. Temos outros
exemplos de hinos ou fragmentos de pro-
fissões de fé utilizados em cartas neotesta-
mentárias (Ef 4.4-6; 5.14; 1Tm 1.17; 3.16;
6.15,16; 2Tm 2.11-13). Esse trecho parece
um caso semelhante, porém mais longo. As
palavras ali presentes não foram utilizadas
por Paulo em outras cartas e algumas não
são encontradas em nenhuma outra parte
do NT. Se o hino foi composto por outra
pessoa que não o próprio apóstolo, seria
mais uma explicação da encarnação e obra
de Cristo, em uma descrição um tanto dife-
rente dos outros escritos de Paulo com que
estamos familiarizados. Por outro lado, não
podemos deixar de fora a possibilidade de
que o próprio Paulo tenha sido o seu autor.
Devemos certamente ver 2.6-11 como um
hino em louvor a Cristo, que pode ter sido
escrito por Paulo ou por uma outra pessoa.
Se de outra autoria, o apóstolo o tomou e o
apropriou ao contexto dessa carta.
FILlPENSES
2. No meio de 3.1 temos uma súbita
interrupção do assunto. Alguns sugerem
que tal interrupção é explicada mais sa-
tisfatoriamente como a inserção de uma
carta completamente diferente do texto até
aquele ponto. Há, sem dúvida, uma que-
bra na argumentação, mas há outros exem-
plos desse tipo de ocorrência nas cartas de
Paulo. Se o que temos é a inserção de uma
outra carta em um texto mais antigo, é di-
fícil perceber onde termina essa interpola-
ção. Uma explicação mais provável parece
ser que, sempre que lhe chegavam notícias
novas de Filipos ou a mente do apóstolo
era atraída para esse problema angustiante,
Paulo optava por voltar a alertar seus leito-
res da ameaça daqueles que substituíam a
graça pela lei como meio de serem aceitos
por Deus. Feito isso, ele voltou às orienta-
ções finais que queria dar aos filipenses.
3. Alguns estudiosos questionam se
4.10-20 não pertenceria a uma carta mais
antiga, visto que Paulo dificilmente teria
esperado tanto para agradecer os donativos
dos filipenses levados por Epafrodito, pois
seria de esperar que ele tivesse dito algo a
respeito logo no início da carta. Há algum
sentido nesse argumento. Podemos alegar,
porém, que os donativos talvez tivessem
sido reconhecidos em uma carta anterior,
da qual não temos uma cópia. Aqui Pau-
lo estaria simplesmente expressando mais
uma vez a sua gratidão. Devemos também
atentar para as suscetibilidades envolvidas
na forma como Paulo precisava expressar
o seu apreço e ao mesmo tempo enfatizar o
fato de que não dependia dos seus donati-
ESBOÇO
1.1-11 Introdução
1.1,2 Saudação
1.3-7 Ações de graças e a confiança de Paulo
1.8-11 Oração
1.12-26 As circunstâncias de Paulo
1.12-14 As consequências
1876
vos (v. comentário de 4.10-20). Em virtude
dessas suscetibilidades, poderíamos com-
preender o porquê de Paulo ter deixado
esse assunto delicado para o fim da carta.
As probabilidades, portanto, pareceriam
contrariar as teorias de interpolações de
textos na carta aos filipenses.
Temos, em Filipenses, como coloca
R. P. Martin, "uma janela para o caráter
pessoal e pastoral de Paulo" e também "o
exemplo de uma congregação da igreja
primitiva com que Paulo tinha um longo e
carinhoso relacionamento" (R. P. MARTIN,
Philippians, NCR Oliphants, 1976, p. ix).
Enquanto a carta aos Romanos pren-
deu a mente das pessoas durante séculos,
capacitando-as a enxergar as maravilhas
do evangelho da salvação em Cristo, essa
carta aos filipenses trouxe inspiração e en-
corajamento aos muitos que enfrentaram
dificuldades e perseguições por causa do
evangelho, tendo um impacto incalculável
na vida de homens e mulheres.
Leitura adicional
MOTYER, J. A. The Message ofPhilippians.
BST. Inter-Varsity Press, 1984.
MARTIN, R. P. The EpistIe to the Philip-
pians. TNTC. Inter-Varsity Press/UK!
Eerdmans, 1987.
_ _o Filipenses: introdução e comentá-
rio. SCR Vida Nova, 1985.
CAIRD, G. R Paul s Ietters from prison.
Oxford University Press, 1976.
HAwTHoRNE, G. F. Philippians. WBC.
Word,1983.
aprisionamento de
 1877 FILlPENSES 1

1.15-18 As diferentes motivações dos que pregam a Cristo

1.19-26 A exaltação de Cristo, quer na vida, quer na morte

1.27-2.18 Instruções acerca da comunhão e da vida cristã

1.27-30 O chamado a um viver digno do evangelho
2.1-4 Um apelo pela união por meio da humildade pessoal
2.5-11 O exemplo de Cristo
2.12-18 Os aspectos práticos da salvação

2.19-30 Planos o futuro

9-24 A Timóteo
2.25-30 Explicações sobre Epafrodito

3.1-21 Al11b ições espiritLlél~_---:-c_--:--_ " _

3.3-3 Um alerta contra os que defendem a circuncisão
7.7-7 A vida e os objetivos anteriores de Paulo
14.14-14 A renúncia ao que ficou para trás e as novas ambições de
Paulo
3.15-17 Um exemplo a ser seguido
3.18-21 Um chamado à cidadania celestial

4.1-23 Orientações. agradecimentos e despedida

4.1-3 Um apelo à união
4.4-7 Um chamado à alegria e à oração
4.8,9 Apreço por tudo que é verdadeiro e amável
4.10-20 A postura de Paulo em relação aos donativos enviados de
Filipos
4.21-23 Saudações finais

COMENTÁRIO hoje como naquela época, tão desespera-

1.1-11 Introdução
Como padrão, as cartas neotestamentárias
traziam os nomes de destinatários e reme-
tentes logo no princípio, de modo que ha-
via inicialmente uma saudação, geralmente
seguida por ações de graças e oração (v. o
artigo "Lendo as Cartas"). Isso via de re-
gra era feito de forma convencional. Para
Paulo, porém, o que é dito sobre reme-
tentes, destinatários e na saudação supera
em muito o convencional, em virtude do
conceito da vida do indivíduo em Cristo. A
oração e as ações de graças vêm, portanto,
do coração do apóstolo: louvor pela opera-
ção de Deus na vida das pessoas e oração
por aquelas bênçãos que os cristãos, tanto
damente necessitam.
1.1,2 Saudação
1 Essa carta foi efetivamente escrita por
Paulo e, a partir do v. 3, o texto passa a ser
composto na primeira pessoa. Ainda as-
sim, Paulo gentilmente vincula o nome de
Timóteo ao seu (como em 2Co, Cl, 1 e 2Ts
e Fm). Timóteo acompanhara Paulo na sua
primeira pregação do evangelho em Filipos
e desde então vinha mantendo uma relação
bastante próxima com os cristãos filipen-
ses (v. comentário de 2.19-23). Ambos se
identificam como servos de Jesus Cristo;
a palavra pode ser literalmente traduzida
por "escravos", na medida em que se con-
sideram pertencentes a Cristo em corpo,
FILlPENSES 1
mente e espírito, e expressam o desejo de,
em tudo, estar sujeitos a ele. Os destinatá-
rios da carta são chamados santos, que são
aqueles separados para Deus e chamados a
viver em santidade (cf Rm 1.7), cujas vidas
estavam em Cristo Jesus. Essa expressão,
ou a sua equivalente, aparece muitas vezes
nessa carta, sugerindo que Cristo é o habi-
tat natural da vida cristã. Os fiéis se mo-
vem dentro da órbita da sua vontade, graça
e presença. Encontramos a vida quando
nos unimos a ele pela fé, e separados dele
não podemos viver adequadamente (cf
Jo 15.1-11). Paulo enfatiza que está escre-
vendo a todos os cristãos de Filipos. Areite-
ração contínua dessa afirmação (1.4,7,8,25;
2.17,26; 4.21) indica que havia o risco de
divisões entre eles (cf 2.1-4). Em especial
ele menciona os bispos e diáconos, talvez
porque corressem o risco de ser ignorados
(cf lTs 5.12,13), ou por terem organizado
os donativos para Paulo (4.14-18). Bispos
(ou "supervisores") e "anciãos" são termos
utilizados em algumas partes do NT para
designar os mesmos homens (At 20.17,28;
Tt 1.5-7), os quais ocupavam a posição de
anciãos na comunidade e tinham a respon-
sabilidade de supervisioná-la. Os diáconos
não são mencionados com muita frequên-
cia (1Tm 3.8,12,13), apesar de o termo
diakonos ser, no grego comum, geralmen-
te utilizado para "ministro" ou "servo".
Possivelmente a função dos diáconos deve
remontar a Atos 6.2, quando sete homens
foram designados para "servir" (Grego:
diakonein) de forma semelhante aos diáco-
nos levantados depois.
2 A saudação é, como em diversas ou-
tras cartas (Rm 1.7; lCo 1.3), uma com-
binação de cumprimentos tradicionais
gregos e hebraicos, mas é acrescentada da
profundidade do cristianismo. A graça é
o favor imerecido que nos reconcilia com
Deus por intermédio de Cristo (Ef 2.4-9),
supre todas as nossas necessidades (2Co
12.9) e nos concede o privilégio de servir
(Ef 3.8). Paz, na Bíblia, é mais do que a
ausência de conflitos. É um bem-estar
1878
completo que envolve a reconciliação com
Deus e com as outras pessoas (Ef 2.14-18),
além da bênção da paz interior (4.7). Como
a graça, ela vem de Deus, nosso Pai, por
meio do Senhor Jesus Cristo.
1.3-7 Ações de graças e a
confiança de Paulo
3,4 Paulo une louvor e oração e incentiva
os outros a fazer o mesmo (cf 4.6). Ele in-
clui todos os cristãos de Filipos e se rego-
zija ao orar.
5 A sua grande alegria vinha da coope-
ração no evangelho que tinha com aqueles
irmãos desde a primeira vez que lá pre-
gara, quando Lídia abriu a sua casa para
ele e seus companheiros (At 16.14,15).
Cooperação é a palavra geralmente utili-
zada no NT para comunhão, mas a comu-
nhão não se limita à experiência agradável
dos cristãos desfrutando da companhia uns
dos outros. Trata-se da parceria na tarefa
de apresentar o evangelho aos povos (cf
Me 8.35), a qual também se expressa na
assistência cristã (cf 4.10,14-18; 2Co 8.4;
9.13). Essa deveria ser uma característica
de todos nós que conhecemos as boas-
novas de Cristo. Todos deveríamos estar
envolvidos em parcerias com os que anun-
ciam o evangelho.
6 Paulo está confiante (estou plena-
mente certo) ao orar, com uma confiança
que não se baseia nas capacidades e reali-
zações dos próprios filipenses, mas no po-
der e no amor de Deus, visto que podemos
contar com o Senhor para "completar"
a obra que ele mesmo começou. Quando
vemos que Deus começou uma boa obra
na vida das pessoas podemos ter a certeza
de que ele tem o propósito de continuar.
Ao orarmos por nossos irmãos em Cristo
podemos estar sempre confiantes nisso.
Observe como também aqui (como muitas
vezes em suas cartas) Paulo vê a sua vida
e seu trabalho à luz do Dia de Cristo Jesus
vindouro. Desconhecemos quando esse
dia virá, mas o que nos importa é como
estarão a nossa vida e nossa obra quando
 1879
vinnos o nosso Senhor face a face. Paulo
se preocupava constantemente que ele e
seus irmãos pudessem se apresentar diante
de Deus dignos e maduros naquele dia (cf
2Co 1.14; 5.9,10; Ef5.27; ClI.28).
7 O que já foi dito no v. 5 sobre a coo-
peração no evangelho é aqui abordado
com maior riqueza de detalhes. Trata-se
de compartilhar a graça de Deus na obra
do evangelho e estar em comunhão com
Paulo em algemas pelo evangelho, o que
envolvia a sua defesa e a confirmação. A
parte da defesa dizia respeito à obrigação
de todos os cristãos estarem "preparados
para responder a todo aquele que vos pe-
dir razão da esperança que há em vós"
(lPe 3.15) e também ajudarem as pessoas
a ficar seguras da verdade e do poder do
evangelho (cf Lc 1.4; 1Co 1.6).
1.8-11 Oração
Há muito a aprender com as orações de
Paulo (cf Ef 1.17-23; 3.14-21; ClI.9-12).
Com base no que ele pede, os cristãos de
Filipos (e também nós) podiam aprender
o que de melhor haviam de pedir para si.
Aqui as bênçãos pedidas são: amor, discer-
nimento, pureza de vida e integridade.
S Para enfatizar a verdade do que diz
Paulo escreve: Pois minha testemunha
é Deus (cf Rm 1.9; 2Co 1.23; lTs 2.5).
Adicionalmente, ele não fala do seu pró-
prio amor, mas da "entranhável afeição de
Jesus Cristo" (ARe) que nele opera.
9 Eles conhecem o amor de Deus
por eles e neles, mas Paulo ora para que
o amor deles aumente mais e mais (cf
2Co 9.8; lTs 3.12). O amor, porém, preci-
sa ser mais que um entusiasmo cego. Ele
precisa ser guiado em pleno conhecimen-
to e toda a percepção (cf Cl 1.9); ou seja,
sensibilidade para a verdade de Deus e as
necessidades dos outros, com compreen-
são das dificuldades alheias.
10 Essa percepção é necessária para
que eles possam aprovar as coisas exce-
lentes. A expressão originária poderia ser
traduzida por "testar o que for diferente".
FILlPENSES 1
De todo modo, o importante é saber distin-
guir. A sabedoria verdadeira não é apenas
uma questão intelectual, mas tem conse-
quências na vida e no caráter. O nosso ideal,
o objetivo da nossa vida cristã, deve ser o
de nos tomarmos sinceros e inculpáveis
(cf 2.15). Veja-se que aqui também a afir-
mação é feita com vistas ao Dia de Cristo.
O primeiro dos dois adjetivos utilizados
sugere "pureza" ou "um caráter transpa-
rente", enquanto o segundo significa "ino-
cente" (cf At 24.16), "inofensivo" (cf 1Co
10.32) ou ambos.
11 A vida cristã deve ser profícua não
apenas em ações, mas também em caráter
(cf Gl 5.22,23). Esse versículo nos lem-
bra que o meio para alcançarmos isso é
o Senhor Jesus Cristo ressurreto e que o
objetivo não é nada menos que a glória e
louvor de Deus (cf Ef 1.6,12,14).
1.12-26 As circunstâncias
de Paulo
Paulo estava ciente da preocupação dos
cristãos de Filipos por ele, de modo que
mandou notícias suas. Ele pôde contar-lhes
a respeito de como a sua prisão havia sido
importante para o avanço do evangelho, de
como Cristo vinha sendo proclamado no
lugar do seu cárcere (mesmo que por uma
variedade de motivos) e de como ele via as
possíveis consequências de sua prisão: li-
bertação e mais evangelização ou a morte.
Com referência ao passado, ao presente e
às possibilidades futuras, ele podia dizer:
regozijo-me.
1.12-14 As consequências
do aprisionamento de Paulo
12,13 Por trás das palavras as coisas que
me aconteceram vislumbramos o que sig-
nificou ser encarcerado para alguém que
havia sido livre para pregar o evangelho
por toda parte e, como era provavelmente
o caso, permanecer cercado por soldados
romanos dia e noite. Ele, porém, não perde
tempo com o seu próprio sofrimento, mas
se regozija no progresso do evangelho.
FILlPENSES 1
A palavra praetorium, traduzida por "guar-
da pretoriana" ou "guarda do palácio" pela
NVI, era originariamente a tenda do pre-
tor no acampamento. Ela então passou
a ser usada para designar a residência do
governador de uma província (como em
Jerusalém, Mt 27.27). (Provavelmente
também houve um pretório em Éfeso e em
Cesareia [At 23.35], de forma que essa car-
ta poderia ter sido escrita em um desses lu-
gares). Podemos imaginar os soldados que
o guardavam comentando que ele estava
em cadeias em Cristo e, sem dúvida, eles
estavam sendo tocados pela forma como
ele suportava a sua prisão.
14 O exemplo de Paulo também inspi-
rou os seus irmãos em Cristo a falar com
mais desassombro a palavra de Deus.
1. 15-18 As diferentes motivações
dos que pregam a Cristo
15-17 Apesar de Paulo conseguir falar
com gratidão acerca do avanço do evange-
lho promovido pela sua prisão, é triste que
ele tenha de denunciar os que pregavam a
Cristo por inveja e rivalidade, por ambi-
ção egoista, desejando mesmo lhe causar
mais dificuldades na prisão. Não conhece-
mos precisamente as circunstâncias. Fica
claro que Paulo não contesta o conteúdo da
pregação, mas aquilo que a motiva. Talvez
aquelas pessoas fossem a liderança da
igreja na cidade do cárcere de Paulo. Com
a sua chegada, talvez sentissem ciúmes de
sua reputação por causa das conquistas
apostólicas, de modo que estavam decidi-
das a suplantá-lo e, talvez, até dispostas a
lhe trazer aflições.
18 Paulo, contudo, está determinado a
não se deixar provocar ou permitir que a
questão se tome uma disputa de persona-
lidades. Tudo o que importa para ele é que
Cristo está sendo pregado.
1.19-26 A exaltação de Cristo,
quer na vida, quer na morte
19 Paulo enfrentou prisão, ameaça de
morte e - de seus companheiros cristãos
1880
- provocações e animosidade. Ainda as-
sim, ele se mostra confiante em que tudo
acabará bem (cf Rm 8.28). Humanamente
falando, ele confia nas orações dos seus
amigos e, em resposta a elas, no infalível
auxílio do Espírito Santo. A palavra grega
traduzida por socorro ou provisão indi-
ca tanto uma providência generosa como
um apoio sólido. A certeza de libertação é
semelhante à descrita em 2Timóteo 4.18:
"O Senhor me livrará também de toda obra
maligna e me levará salvo para o seu reino
celestial". O texto encontrado no livro de
Jó 13.16 parece estar em sua mente. "Paulo
não tem confiança alguma em sua absolvi-
ção por um tribunal humano. Como Jó, ele
está certo de que poderá provar sua inocên-
cia em um tribunal de apelação celestial"
(G. B. Caird, Paul s Letters from Prison.
OUP, 1976).
20 A expressão traduzida por ardente
expectativa significa esticar a cabeça para
olhar mais adiante, e seu prefixo preposi-
cional implica deixar de lado quaisquer
outros interesses. Paulo tem uma ambição
principal: que Cristo seja exaltado em seu
corpo, vivo ou morto; ou seja, que Cristo
possa ser visto com mais clareza e em sua
verdadeira grandeza.
21-23 Paulo se regozija nas duas
possibilidades que considera. Apesar de
afirmar: estou constrangido, era como se
houvesse "duas forças externas igualmen-
te poderosas fazendo pressão sobre ele, ao
mesmo tempo e de ambos os lados" (G. F.
Hawthorne, Philippians. Word Books,
1983). Prosseguir vivendo neste mundo
significa desfrutar do próprio Cristo e la-
butar proficuamente no serviço do Mestre.
Morrer é ganho em todos os aspectos, vis-
to que, para o crente, não há nada entre a
morte e a admissão na presença imediata
de Cristo. Não há necessariamente con-
tradição alguma em se pensar na mor-
te como um "sono" (ITs 4.13-15) e, ao
mesmo tempo, como uma partida para
estar com Cristo. É possivelmente apenas
o nosso raciocínio limitado em termos
 1881
de espaço-tempo que toma impossível
compreendermos completamente o que
há depois dos portões da morte. O termo
grego para partir é utilizado para um na-
vio que levanta âncora ou para o viajante
que levanta acampamento. O substantivo
correspondente pode ser encontrado em
2Timóteo 4.6.
24-26 Paulo avalia as alternativas,
e embora diga não saber o que Deus lhe
reserva, começa a sentir que está sendo
chamado para permanecer no mundo e
continuar a obra. Para ele, era bem mais
vantajoso partir para estar com o Senhor;
para os outros, era mais interessante (e até
mais necessário) que ele continuasse a
sua vida na terra. Progresso, crescimento
na fé e alegria transbordante: eis o que ele
procurava para os outros (l Tm 4.15). Era
com isso em mente que ele se esforçava
para cumprir o seu chamado sublime (cf
3.12-14). Por fim, Paulo fala sobre querer
que eles se gloriem (se gabem) abundan-
temente em Cristo Jesus. Para todos nós,
cristãos, os nossos maiores motivos de
alegria, orgulho e vanglória deveriam estar
em Cristo Jesus (cf lCo 1.31).
1.27-2.18 Instruções acerca
da comunhão e da vida cristã
Paulo já havia falado sobre as suas pró-
prias circunstâncias. Agora ele tinha im-
portantes coisas a dizer sobre a vida dos
cristãos filipenses. Tendo sido chamados
a sofrer, deviam considerar tal sofrimento
um privilégio e suportá-lo com coragem.
Nas provações e em todos os aspectos da
vida diária eles deviam permanecer uni-
dos. O orgulho atrapalha a união e a comu-
nhão, de modo que o único remédio para o
egoísmo e o sectarismo seria olhar contí-
nua e frequentemente para o próprio Cristo
até absorverem sua forma de pensar e agir.
Cristo era o seu exemplo e Salvador, mas
tal salvação precisava ser posta em prática
numa vida de obediência, para que fossem
luzeiros no mundo e a alegria do apóstolo
no dia de Cristo.
FILlPENSES 1
1.27-30 O chamado a um viver
digno do evangelho
27 Paulo poderia ou não voltar a visitar os
filipenses. O que importa, enfatiza ele, é
que eles vivam de modo digno do evange-
lho de Cristo. Em todas as eras, e também
hoje em dia, o maior obstáculo ao avan-
ço do evangelho tem sido a inconstância
dos cristãos. A mensagem do evangelho é
muito mais eficaz quando a vida dos cris-
tãos testifica dela. Isso nos traz grande res-
ponsabilidade. A expressão grega traduzi-
da por viveis é a mesma que deu origem
à palavra "política". O termo via de regra
comunica o conceito de cumprimento dos
deveres que todos temos como cidadãos.
Em Filipos, como anteriormente mencio-
nado, a cidadania romana era tida em alta
estima, mas os cristãos filipenses tinham
a responsabilidade de viver, coletiva e in-
dividualmente, como cidadãos do céu (cf
3.20). Paulo muitas vezes falou acerca da
necessidade de se permanecer firme diante
de perseguições e dificuldades (lCo 16.13;
G15.1; Ef6.11-14; lTs 3.8; 2Ts 2.15).
28 Ter confiança no poder de Deus era a
forma de não serem intimidados por aque-
les que se lhes opunham. A palavra aqui
utilizada também pode ser vista em rela-
ção a cavalos assustados. James Moffatt
traduziu essa expressão por "em nada vos
espanteis" (também na ARe). Além disso,
a sua bravura mostraria aos inimigos que
os cristãos não eram fortalecidos por mera
coragem humana. Mostraria que opor-se
a eles significaria lutar contra Deus (cf
At 5.39) e tomar o caminho que leva à des-
truição (cf 2Ts 1.4-8). Talvez ao escrever
Paulo tenha se lembrado da voz de Deus
em sua própria consciência, da época de
sua perseguição aos cristãos (At 26.10-
14). Ao mesmo tempo, a presença evidente
de Deus em seu meio asseguraria aos fili-
penses que eles pertenciam a Deus e eram
abençoados com a sua salvação.
29 Por trás das palavras porque a
vós vos foi concedida está a ideia de um
dom da graça, pois, para os cristãos, é um
FILlPENSES 2
privilégio crer e também (claramente con-
tradizendo os padrões do mundo) sofrer
por Cristo (cf Mt 5.11,12; At 5.41).
30 A palavra grega traduzida por lutan-
do no v. 27 é a mesma que originou a pala-
vra "atleta", e por trás da palavra combate
aqui está a palavra de onde tiramos o ter-
mo "agonia" (cf Rm 15.30; Cl 1.29; 2.1;
1Ts 2.2). O chamado dos cristãos de
Filipos, que também nos diz respeito, é
aceitar o trabalho e a luta que marcaram a
vida do apóstolo.
2.1-4 Um apelo pela união por
meio da humildade pessoal
Esses versículos trazem o mais forte apelo
possível à unidade cristã, o tipo de apelo
que muitos cristãos parecem não levar a
sério hoje em dia. No v. I Paulo apresen-
ta quatro razões para essa união; no v. 2,
quatro formas de descrevê-la; no v. 3, duas
coisas a ser evitadas e duas a ser seguidas;
no v. 4, uma coisa que não deve ser feita e
outra que deve ser feita.
1 A palavra traduzida por exortação
pode significar "conforto" (ARe) ou "en-
corajamento". Dessa forma, pode tanto
significar que o conforto encontrado em
Cristo deve ser compartilhado com os ou-
tros quanto que Jesus nos exorta a ficarmos
unidos (Jo 15.1-11; 17.20-23). Se conhe-
cemos as bênçãos do seu amor, cabe-nos
mostrá-las aos outros sem reserva ou dis-
criminação tcf. 110 4.7-12). A expressão
seguinte (comunhão do Espírito) pode sig-
nificar "comunhão com o Espírito" ou "co-
munhão que o Espirito nos concede": qual-
quer uma das duas é uma forte razão para
vivermos em união. Então, se conhecer-
mos em Cristo afetos e misericórdias, tais
sentimentos marcarão os relacionamentos
que tivermos com as outras pessoas.
2 Não há grandes diferenças entre
as quatro frases aqui. Deve-se observar,
porém, que por duas vezes são feitas re-
ferências à mente ou ao pensamento, e
nessa carta não é só aqui que encontra-
mos essa ênfase. O apóstolo bem sabia
1882
que os pensamentos e atitudes são a base
do que se fala e se faz, dirigindo comple-
tamente o curso da vida de uma pessoa
(cf 2.5; 3.15; 4.8). Isso talvez precise ser
ressaltado em uma era na qual se dá gran-
de importância a sentimentos e experiên-
cias. Em Romanos 12.2 Paulo fala de uma
transformação de vida que ocorre "pela
renovação da vossa mente".
3 Partidarismo (a expressão original,
utilizada também em 1.17, pode significar
'espírito de discórdia") e vanglória são
inevitavelmente inimigos da comunhão e
impedimentos à união. Há formas práticas
de dominarmos tais sentimentos. Uma de-
las é a prática da humildade (cf Ef 4.1-3),
considerando os outros superiores a nós
mesmos. Isso significa vermos as virtudes
e os pontos fortes dos outros, ao mesmo
tempo em que atentamos para as nossas
próprias fraquezas, falhas e limitações
(cf Rm 12.10).
4 É também bastante prático cultivar o
hábito de pensar e falar sobre os interesses
dos outros, em vez de aborrecer as pessoas
falando sempre sobre os nossos próprios
interesses (cf Rm 15.2,3; lCo 10.24,33;
016.2).
Como cristãos, muitas vezes justifica-
mos ou interpretamos as nossas divisões.
Cranfield faz um comentário interessante
a respeito do tipo de unidade que interessa
a Paulo e da forma de a alcançarmos: "Tal
unidade só será real quando os cristãos
forem humildes e ousados o bastante para
lançar mão da união j á concedida em Cristo
e levá-Ia mais a sério que a si mesmos. [...]
Precisamos transformar aquelas profundas
diferenças doutrinárias que não nos atreve-
mos a ignorar, cuja origem está no nosso
entendimento imperfeito do evangelho,
não em uma desculpa para nos afastarmos
ou para nos mantermos longe uns dos ou-
tros, mas em um incentivo para uma busca
comum mais sincera, com o fim de ouvir-
mos e obedecermos à voz de Cristo" (C.
E. B. Cranfield, The First Epistle ofPeter.
SCM, 1950, p. 75-6).
 1883
2.5-11 O exemplo de Cristo
A melhor forma de Paulo encorajar os seus
amigos de Filipos a viver em humildade e,
dessa forma, ter verdadeira comunhão e
união, é lembrá-los do exemplo de Cristo.
Ao falar acerca da humilhação que Jesus
aceitou e da sua exaltação como Senhor
sobre tudo e todos, possivelmente usando
um antigo hino cristão (v. Introdução), te-
mos uma exposição significativa daquilo
em que se acreditava nos primórdios da
Igreja acerca da verdadeira humanidade e
divindade de Cristo. Para compreendermos
isso, precisamos prestar muita atenção às
palavras específicas que são usadas.
5 "A atitude de vocês" (NVI) poderia
significar uma postura pessoal ou a conduta
que se tem em um relacionamento. "Tenham
entre vocês o mesmo modo de pensar" é
a tradução da NTLH, enquanto a ARA traz:
Tende em vós o mesmo sentimento.
6 Palavras fortes são utilizadas nesse
versículo. O particípio "sendo" (ARe) de-
riva de um verbo grego mais forte do que
o "ser" e é sucedido por uma palavra pre-
cisamente traduzida na NTLH: "[da mesma]
natureza". Jesus era verdadeiramente Deus
antes de se tomar homem. Então, sem
deixar de ser Deus, ele se dispôs a pôr de
lado a glória de ser igual a Deus. Não se
tratava de algo a que devia apegar-se (v.
nota abaixo acerca do significado preciso
dessa expressão). Aqui há o que talvez seja
um contraste intencional com Adão em
Gênesis 3, quando a tentação na qual ele
caiu referia-se, de forma escusa, a tomar
posse do que ele acreditava ser capaz de
tomá-lo "como Deus".
7,8 Então ele a si mesmo se esvaziou,
não de sua divindade, mas de sua glória.
"Ele abriu mão de tudo o que era seu"
(NTLH). Quando menciona que ele tomou-
se em semelhança de homens, sendo re-
conhecido em figura humana, o texto não
alude apenas a uma semelhança física, sem
a realidade da natureza humana. Ele era
de fato verdadeiramente humano, como
Paulo diz em Romanos 8.3 e em Gálatas
FILlPENSES 2
4.4, mas a expressão "dá lugar para a ideia
de que a semelhança humana não é toda
a história" (F. W. BEARE, The Epistle to
the Philippians. A. e C. Black, 1959). Ele
se rebaixou ainda mais, tornando-se obe-
diente até à morte. Jesus viveu uma vida
da mais absoluta obediência (cf Rm 5.19;
Hb 5.8,9; 10.5-14); "e obedeceu a Deus até
a morte" (NTLH). Tal morte, além do mais,
era morte de cruz. Uma morte excrucian-
te e vexaminosa, uma maldição aos olhos
dos judeus por causa do que a lei dizia em
Deuteronômio 21.23 (Gl 3.13). O signi-
ficado da crucificação para os romanos é
bem expresso pelas palavras de Cícero:
"Que até mesmo o nome da cruz mante-
nha distância do cidadão romano, não ape-
nas do corpo, mas até do pensamento, dos
olhos e dos ouvidos".
9-11 Em consequência de sua humi-
lhação e do próprio sacrifício, Jesus rece-
beu do Pai o nome que está acima de todo
nome. Isso não significa um nome específi-
co ou algum tipo de título, apesar de "Jesus
é o Senhor" ser a declaração cristã mais
adequada (cf Rm 10.9; 1Co 12.3). Isso
significa que Deus o exaltou sobremanei-
ra. O mais significativo nessa passagem,
princípalmente para as pessoas que consi-
deram o Cristo neotestamentário inferior a
Deus, é perceber que as palavras utilizadas
em relação a Jesus nos v. 10,11 são as mes-
mas utilizadas em relação a Deus em Isaías
45.23, expressando a sua grandiosidade,
governo, soberania e autoridade sobre toda
a criação (cf Ef 1.20-22; 4.8-10; Ap 5.13).
Por fim, é preciso lembrar que tudo isso é
para glória de Deus Pai; ou seja, a glória
para a qual Cristo foi levantado não é de
forma alguma independente do Pai (1Co
15.28). Devemos, porém, manter em men-
te que declarações tão formidáveis tinham
o objetivo prático de persuadir os filipen-
ses a deixar de lado as suas contendas, se-
parações e ambições pessoais.
Nota: As palavras do v. 6 ("não julgou
como usurpação o ser igual a Deus") têm
sido entendidas de muitas maneiras. Duas
FILlPENSES 2
são as principais alternativas: ou ser igual
a Deus equivale a ter a própria natureza de
Deus ou a passagem pode ser compreen-
dida como uma descrição da honra e da
glória de uma posição ao lado de Deus
Pai, uma posição de domínio sobre todo o
universo. Jesus não julgou que isso "fosse
coisa de que não devesse abrir mão" (TB).
Na realidade, ele por fim possuiria aquilo
por determinação do Pai, mas depois de
nascer, morrer e ressuscitar, e por ter se
submetido ao caminho da humilhação e
exaltação escolhido pelo Pai. Se compreen-
dermos que ser igual a Deus significa ter a
mesma natureza de Deus, significando que
a natureza divina lhe era inerente, podere-
mos entender que o apóstolo estava fazen-
do uma dentre três afirmações. Ou que ele
não se apegou às prerrogativas de ser igual
a Deus, ou que ele não precisava se apegar
a elas, visto que lhe eram intrínsecas, ou
que ser igual a Deus não era algo de que
ele queria tirar vantagem. Talvez a última
delas seja a mais provável, tanto por cau-
sa do significado dos termos gregos utili-
zados como por ela se encaixar no ensino
do parágrafo como um todo. O caminho
determinado pelo Pai envolvia dar, e não
receber, assumindo sacrificios e humilha-
ções em vez de tirar vantagem da própria
posição. Esse foi o caminho trilhado por
Jesus e o caminho em que somos chama-
dos a segui-lo.
2.12-18 Os aspectos práticos
da salvação
12 O exemplo de Cristo não envolve ape-
nas humildade, mas também obediência
(v. 8). É a essa obediência que os fili-
penses são chamados, quer Paulo esteja
ou não com eles (cf 1.27). Desenvolvei
a vossa salvação traz o sentido de tomar
algo completo, não de trabalhar pela sal-
vação. Isso seria algo que jamais pode-
ríamos fazer. A própria palavra salvação
(que significa resgatar) implica que não
somos capazes de salvar nem a nós mes-
mos (cf Jo 15.4,5; ICo 15.10; Ef2.5,8),
1884
mas podemos e devemos viver uma vida
que demonstre o poder salvador de Deus
que tomamos para nós.
13 Temos nossa parte para fazer, mas é
a operação de Deus em nós que nos capa-
cita a desempenhar o nosso papel (o termo
grego utilizado aqui, muitas vezes usa-
do por Paulo com referência ao poder de
Deus, é o mesmo de onde tiramos a nossa
palavra "energia"). Ele nos concede tanto
o desejo como a capacidade para fazer o
que lhe é agradável.
14 Ademais, não é apenas o que fa-
zemos que importa, mas também o modo
como o fazemos: sem murmurações nem
contendas. Esses princípios têm aplicação
constante à vida e ao serviço cristão.
15 Os mais elevados padrões devem
ser estabelecidos para que os cristãos
possam viver a sua fé em uma sociedade
moralmente degenerada e espiritualmente
corrompida. Essa descrição foi extraída de
Deuteronômio 32.5, mas é tragicamente
apropriada a grande parte da sociedade
ocidental de hoje em dia. Vale a pena pon-
derar cada expressão acerca da vida cristã
nessa passagem. Irrepreensíveis significa
estar acima de críticas. Ser sincero signi-
fica ter um caráter íntegro e ser honesto.
Os crentes são descritos como filhos de
Deus, tendo sempre em mente que, além
de um privilégio (Jo 1.12), isso também
envolve a responsabilidade de viver no
mundo como os que pertencem a Deus e
trazem em si as características da família
de Deus. A expressão traduzida por in-
culpáveis também define uma condição
exigida dos animais sacrificiais no AT. Ela
também é utilizada a respeito do próprio
Senhor em um sentido moral e espiritual
(Hb 9.14; IPe 1.19), além de ser o padrão
do cristão. Como luzeiros alude ao fato de
que Cristo é a luz, e que a nós cabe refleti-
la em direção aos outros.
16 A palavra utilizada aqui poderia
significar "reter firmemente" (NVI) ou
"preservar". Devemos preservar a pala-
vra, mas, acima de tudo, oferecê-Ia como
 1885
a palavra da vida a um mundo agonizan-
te (10 3.16; 6.68; At 5.20; 2Co 2.15,16).
Paulo pensa em sua vida como uma cor-
rida e um trabalho que deve ser realizado
até à exaustão. A sua visão espiritual, po-
rém, está fixa no Senhor, a quem ele an-
siosamente aguarda ver face a face e cuja
aprovação espera receber.
17,18 O apóstolo aqui volta a vislum-
brar a morte como uma consequência pos-
sível da sua prisão. A sua morte seria uma
oferta a Deus, mas ele a considera uma
simples libação (cf 2Tm 4.6) derramada
sobre um sacrificio (Rm 12.1) muito mais
importante: a fé dos filipenses, a sua vida
cristã e o serviço cristão produzido por essa
fé. Paulo chegara ao ponto de rejubilar a
despeito das circunstâncias, quer o futuro
lhe reservasse viver ou morrer, e queria
que os seus amigos em Filipos tivessem a
mesma postura.
2.19-30 Planos para o futuro
Paulo agora passa a falar a respeito dos seus
dois colaboradores, Timóteo e Epafrodito,
dos seus planos para eles e de sua espe-
rança de algum dia poder voltar a Filipos.
Nesse processo, ele fala sobre esses dois
homens de modo profundamente afetuoso
e dá um testemunho apaixonado do serviço
dedicado e altruísta que ambos prestam.
2.19-24 A recomendação
de Timóteo
Já vimos que Timóteo estava com Paulo
quando ele escreveu essa carta (1.1) e que
ele havia participado da primeira pregação
do evangelho em Filipos (At 16.1-11). A
maioria das cartas de Paulo o mencionam,
muitas vezes por causa das responsabilida-
des especiais que lhe eram delegadas pelo
apóstolo.
19 Paulo, com muito tato, diz que o seu
primeiro desejo com respeito à missão de
Timóteo é se alegrar com notícias sobre os
cristãos de Filipos. Além disso, ele tam-
bém tinha certamente em vista o ministério
que Timóteo teria em Filipos, de modo que
FILlPENSES 2
prepara o caminho ao falar sobre Timóteo
e recomendá-lo de forma bastante elogio-
sa. Observe ainda como Paulo diz Espero
[...] no Senhor Jesus e com que frequência
essa expressão, ou sua equivalente "em
Cristo", é utilizada por Paulo. Paulo ten-
tava submeter todas as suas esperanças e
planos futuros ao Senhor, a quem sua vida
estava unida (cf lCo 16.7; Tg 4.13-15).
20,21 Paulo afirma que não tinha mais
ninguém que fosse como Timóteo, com
interesse sincero pela vida espiritual dos
cristãos filipenses. Lamentavelmente, o
apóstolo acrescenta que, ao considerar os
outros que o cercam, buscando a quem en-
viar, ele percebe que todos eles buscam o
que é seu próprio, não o que é de Cristo
Jesus. Podemos ver uma situação seme-
lhante em 2Timóteo 4.9-13. É sempre de-
safiador avaliar se nós mesmos temos um
"interesse sincero" pelos outros ou se ape-
nas queremos que eles sirvam aos nossos
próprios propósitos.
22 O valor de Timóteo já havia sido
provado em Filipos. O próprio apóstolo,
mais que qualquer um, conhecia o valor do
seu colaborador porque, como filho ao pai,
ele havia servido (literalmente: trabalhado
como um escravo [cf 1.1] na promoção do
evangelho ).
23,24 Paulo queria receber notícias dos
filipenses por meio de Timóteo. Timóteo
também deveria levar notícias de Paulo a
Filipos, de forma que lhe era necessário es-
perar até que o desfecho do aprisionamen-
to de Paulo fosse conhecido, quer morte
ou libertação (cf 1.23,24). Aparentemente
Paulo tinha uma esperança cada vez maior
de que no fim seria libertado, de modo que
seria capaz de brevemente ir a Filipos.
2.25-30 Explicações
sobre Epafrodito
25 Nada sabemos sobre Epafrodito, com
exceção do que encontramos nesse pará-
grafo e em 4.18, em que lemos que os fili-
penses haviam mandado os seus donativos
para Paulo por meio dele. Ele, portanto,
FILlPENSES 3
era um mensageiro (a palavra aqui utiliza-
da é apostolos, mas em um sentido dife-
rente dos apóstolos de Cristo, fundadores
da Igreja, como em 2Coríntios 8.23), mas
também fora enviado para estar com Paulo
e cuidar das necessidades dele. Observe
a relação de parceria envolvida nas pala-
vras irmão, cooperador e companheiro de
lutas. Muitos cristãos são trabalhadores e
soldados formidáveis pela causa de Cristo,
mas nem todos sabem cooperar com os
seus companheiros.
26-28 Um acontecimento levara Paulo
a enviar Epafrodito de volta a Filipos, em
vez de mantê-lo ao seu lado. Ele estivera
gravemente enfermo mas, com a miseri-
córdia de Deus (tanto por Epafrodito como
por Paulo, como ele mesmo disse), ele ha-
via se recuperado. Notícias da gravidade
da sua doença tinham chegado a Filipos e
Paulo ficara sabendo da preocupação dos
amigos de Epafrodito. Isso fez com que
Epafrodito ficasse angustiado (muito in-
tenso no grego, esse termo só é utilizado
uma outra vez em todo o NT, acerca da an-
gústia do nosso Senhor no Getsêmani em
Mateus 26.37 e em Marcos 14.33) e com
saudade dos que deixara em casa. Por con-
ta disso, Paulo reconheceu que o melhor
para ele seria retomar.
29,30 Paulo estava sensível à situação.
Havia a possibilidade de os filipenses não
compreenderem a razão de o seu mensa-
geiro ter retomado. Por esse motivo, ele
pediu que eles recebessem Epafrodito de
forma calorosa; não como alguém da co-
munidade que voltava do exterior, mas
como alguém que deveria ser grandemente
honrado por seus imprescindíveis e leais
serviços prestados. Não sabemos como,
por causa da obra de Cristo, chegou ele
às portas da morte e se dispôs a dar a pró-
pria vida. Pode ter sido simplesmente por
ele ter se identificado com Paulo, o prisio-
neiro. Ele pode ter "adoecido no caminho
e quase morrido em seu esforço de com-
pletar a jornada, visto que ele não estava
apto a realizar a viagem" (G. B. Caird,
1886
Paul s Letters From Prison. OUP, 1976).
A palavra "arriscar" ("pois ele arriscou sua
vida", NTLH) significa literalmente "apos-
tar", e isso bem pode ser um jogo inten-
cional com o nome de Epafrodito (como
ocorre com Onésimo em Filemon 11).
Afrodite era a deusa grega dos apostadores
e um apostador que desejasse ganhar devia
clamar por ela: epaphroditus (Hawthorne,
Philippiansy. Esse homem arriscou a sua
vida servindo a Paulo, mas foi uma aposta
em consideração a Deus, e ele ganhou.
3.1-21 Ambições espirituais
Parece que Paulo estava a ponto de termi-
nar a carta aqui, uma vez que ele usa uma
expressão que poderia ser traduzida por
"por fim". Então, por alguma razão, ele
sente que devia alertar os filipenses contra
os que queriam obrigar todos os converti-
dos gentios a se tomar judeus. Isso o leva a
falar a respeito da sua confiança em Jesus
Cristo, e somente em Jesus Cristo, para
tomá-lo aceitável diante de Deus e tam-
bém a respeito das suas maiores ambições,
tanto para a sua própria vida espiritual
como para a vida dos seus amigos cristãos
em Filipos.
3. 1-3 Um alerta contra os que
defendem a circuncisão
Para se compreender o que é dito aqui e nos
versículos imediatamente posteriores, pre-
cisamos revisitar a vida da igreja primiti-
va. Os primeiros convertidos eram judeus,
e como judeus fiéis eles viam a lei como
sendo de suma importância e davam gran-
de ênfase à aliança que Israel tinha com
Deus, cujo sinal era a circuncisão. Esses
primeiros crentes foram enviados com uma
missão mundial (At 1.8), mas eles tiveram
grande dificuldade para alcançar os não
judeus (observe At 10), de forma que levou
algum tempo até que fosse lançada uma
verdadeira missão aos gentios (At 11.20).
Paulo, como apóstolo dos gentios, acre-
ditava que se os não judeus se voltassem
para o Senhor em arrependimento e fé, eles
 1887
deviam ser aceitos como membros do povo
de Deus sem a necessidade de se tomarem
judeus e sem que os homens precisassem
ser circuncidados. Havia, porém, cris-
tãos judeus, em Antioquia (At 15.1) e na
Ga1ácia, que insistiam em que tais cristãos
gentios deveriam se tomar judeus. Por esse
motivo, reuniu-se o concílio de Atos 15 em
Jerusalém, e foi para lidar com a mesma
questão que Paulo escreveu sua carta aos
gálatas. Anos mais tarde, isso ainda era um
problema, de modo que escrever a respeito
era uma segurança para os filipenses.
1,2 Paulo estava tão irado contra os
que pressionavam os gentios a se tomarem
judeus que chamou-os de cães: nome que
os judeus davam aos gentios. Tais pessoas,
contudo, eram mais merecedoras desse
nome que qualquer gentio, em virtude do
modo que gostavam de "rodear as congre-
gações cristãs, buscando ganhar os gen-
tios convertidos para o judaísmo" (Beare,
Philippians), de forma que esses converti-
dos precisavam se "acautelar" deles. Eram
maus obreiros, que desviavam as pesso-
as da verdade e da liberdade (Mt 23.15;
2Co 11.13; Gl 1.7-9). Como a circunci-
são não tinha nenhum valor espiritual, tais
pessoas promoviam uma falsa circuncisão
(Grego: mutilação).
3 Quando o valor espiritual da circun-
cisão deixa de existir, a sua prática se tor-
na apenas um ritual externo, uma questão
de confiança na carne. Nós é que somos
a circuncisão, diz Paulo. Embora alguns
pensem que Paulo estava se referindo
apenas aos cristãos judeus, evidências de-
monstram que tanto ele como os autores
do NT em geral aplicaram aos cristãos, fos-
sem judeus ou gentios, todos os atributos e
privilégios do povo de Deus à época do AT
(Ef2.11-22; lPe2.4-1O).
3.4-7 A vida e os objetivos
anteriores de Paulo
4 Paulo agora argumenta que também po-
deria confiar [...] na carne, como as pes-
soas que queriam obrigar todos os cristãos
FILlPENSES 3
a se tomar judeus. Ele era capaz de listar,
uma a uma, as coisas que, como um judeu
devoto, anteriormente acreditara que lhe
dariam algum crédito com Deus.
5,6 Ele relaciona sete coisas que consi-
derava como ganho na vida profundamen-
te religiosa que levava antes de conhecer a
Jesus. (i) Ele fora circuncidado no oitavo
dia depois do seu nascimento, em cumpri-
mento ao que a lei exigia (Gn 17.12). (ii)
Ele fora nascido e criado como um israeli-
ta, membro do povo de Deus. (iii) Ele era
capaz de identificar a sua tribo, Benjamim,
a tribo do primeiro rei de Israel, que ti-
nha permanecido fiel quando os outros se
tinham desviado. (iv) Ele não era apenas
um judeu verdadeiro, mas um hebreu que
falava aramaico e era filho de pais hebreus,
diferente de muitos que se haviam esque-
cido da sua língua nativa (cf At 6.1; 22.2;
2Co 11.22). (v) Seguia rigorosamente a lei
e era um devotofariseu (cf At 23.6; 26.5;
cf Gl 1.14). (vi) O seu zelo fora demons-
trado no que fizera para perseguir os cris-
tãos (At 8.3; 9.1). (vii) Ele podia afirmar
que, no que dizia respeito às exigências
externas da lei, a lei mosaica pela qual ele
tentara viver, ele havia sido irrepreensivel.
Tratava-se, porém, de uma justiça legalis-
ta, em que se procura estar em paz com
Deus por meio da obediência à lei.
7 Ele agora considerava todos esses ga-
nhos como uma grande perda. Mas o que,
para mim, era lucro, isto considerei perda
por causa de Cristo. Ele passara a vê-los
como falsas premissas de fé, que eram até
mesmo um estorvo para ele. Prosseguindo,
ele descreve o caminho infinitamente su-
perior que havia encontrado.
3.8-14 A renúncia ao que ficou para
trás e as novas ambições de Paulo
Devido ao seu encontro com o Cristo res-
surreto na estrada para Damasco, e tam-
bém porque ele acabou percebendo que
não havia realmente cumprido a lei, Paulo
foi levado a uma "mudança radical de va-
lores" (Hawthorne, Philippians).
FILlPENSES 3
8 Ao encontrar em Cristo o caminho
para ser aceito por Deus, Paulo passou a
ver tudo em que tinha confiado como per-
da. Decidiu que tudo era como perda, por
causa da sublimidade do conhecimento de
Cristo Jesus. Além disso, ele podia dizer
que, por amor a Cristo, perdera todas as
coisas, como a sua posição no judaísmo,
entre os fariseus, e talvez até mesmo o seu
lar. Ainda assim ele não lamentou, visto
que tudo o mais era inútil, se comparado à
possibilidade de ganhar a Cristo.
9 Agora, o seu desejo é ser aceito em
virtude da justiça que procede de Deus,
oferecida sob a simples condição de que
o indivíduo creia (cf Rm 3.21-4.25;
Gl 2.15-3.29; Ef 2.4-9), abandonando a
suposta justiça das suas próprias obras, na
qual anteriormente confiara.
10 Mais que isso, ele deseja viver no
conhecimento de Cristo, que é (tal qual o
batismo cristão, Rm 6.1-4) ser identifica-
do com o Cristo crucificado e ressurreto.
Isso significa conhecer o poder da sua res-
surreição na vida diária (cf Rm 8.10,11;
2Co 4.10,11; Ef 1.19,20) e participar na
comunhão dos seus sofrimentos, morrendo
para a vida egocêntrica que é natural a todos
nós e se dispondo a enfrentar as dificulda-
des e provações que o evangelho da salva-
ção traz a todas as pessoas (cf 2Co 4.7-12;
GI6.17; Cl 1.24,25). Essas duas realidades
devem sempre estar presentes em qualquer
vida verdadeiramente cristã.
11 À luz da sua nova e magnífica am-
bição, Paulo espera de algum modo, alcan-
çar a ressurreição dentre os mortos. Tais
palavras nos soam um tanto estranhas,
depois de tudo o que lemos. Alcançar a
ressurreição não depende exclusivamente
da fé? Estaria o apóstolo inseguro quanto
à sua própria salvação? Jamais lhe faltou a
certeza de que era um filho de Deus e era
aceito por Deus (Rm 8.15-17; Gl 4.6,7),
embora jamais fosse complacente ou
pretensioso. A fé deve perdurar até o fim
(Mc 13.13; Hb 3.14). Devemos ler as pa-
lavras de Paulo nessa passagem não como
1888
uma expressão de dúvida, mas como uma
expressão de humildade.
12,13 Ao que parece, havia pessoas em
Filipos que imaginavam já ter chegado à
perfeição cristã, que acreditavam já ter al-
cançado. Paulo reconhecia que os cristãos
eram chamados a aspirar os padrões mais
elevados (cf 2.15; Ef 4.13-16). O próprio
Jesus havia dito: "Sede vós perfeitos como
perfeito é o vosso Pai celeste" (Mt 5.48).
Ele, todavia, nunca afirmou que já havia
alcançado tal perfeição. Em vez disso, ele
diz: prossigo para o alvo. O termo aqui
utilizado significa literalmente "perseguir"
e é o mesmo com o qual ele descreveu a
sua perseguição contra a igreja primitiva
(6). Ele queria atingir aquele grande pro-
pósito para o qual Cristo também o tinha
conquistado, durante o evento, anos antes,
na estrada para Damasco. Há situações em
que os cristãos devem ser lembrados dos
atos de Deus no passado, mas Paulo sabia
que não devia se contentar com o que já
havia conquistado. As suas faltas e peca-
dos haviam sido perdoados, mas ele não
podia se dar por satisfeito com o que já
havia realizado no serviço de Cristo. Ele
queria "avançar" para as coisas que o
aguardavam e, para expressar isso, utilizou
uma outra palavra bastante forte, aplicável
ao contexto de uma corrida de carruagens.
Cada fibra do seu ser estava focada no ob-
jetivo e no propósito da sua vida cristã.
14 Havia um prêmio a ser conquistado,
embora não possamos dizer com certeza se
Paulo entendia esse prêmio como sendo o
próprio Cristo (cf v. 8), ou "a nova vida
para a qual Deus me chamou" (NTLH), ou a
"coroa da vida" (Tg 1.12; cf 1Co 9.25), o
dom da graça de Deus para os que perseve-
ram fielmente no seu chamado até o fim.
3. 15-17 Um exemplo a ser seguido
15 Ser "espiritualmente maduros" (NTLH)
ou perfeitos (no grego original, trata-se
essencialmente da mesma palavra) resu-
me-se em pensar do modo como Paulo
vem falando. Ele confia que, no caso de os
 1889
seus amigos de Filipos pensarem de outra
forma, o Espírito de Deus lhes revelará o
caminho verdadeiro e eles estarão abertos
para ele.
16 É sempre de suma importância que
vivamos conforme a verdade que já reco-
nhecemos e aceitamos. A expressão aqui
traduzida por andemos de acordo não traz
apenas um sentido individual, mas também
o de andar em harmonia com os outros.
"Ao escolher esse verbo, Paulo mais uma
vez ressalta a importância da harmonia e
da cooperação mútua, a despeito de quais-
quer divergências de opinião que possam
existir" (Hawthorne, Philippians).
17 Aqui, como também em outras par-
tes de suas cartas (e.g., lCo 4.16; 11.1;
lTs 1.6; 2.10; 2Ts 3.7,9), Paulo fala a res-
peito do seu próprio exemplo como algo a
ser seguido. Isso poderia parecer arrogan-
te, mas precisamos perceber que, antes que
houvesse o NT para os cristãos utilizarem,
era vital que existissem modelos a ser imi-
tados. Tanto quanto pregar um evangelho
puro para que cressem, era fundamental
que Paulo vivesse o tipo de vida cristã que
os outros pudessem imitar. 1. B. Phillips
parafraseia esse versículo assim: "Que
o meu exemplo seja o padrão pelo qual
vocês possam avaliar quem são os verda-
deiros cristãos entre as pessoas que cer-
cam vocês". Hoje em dia, a nossa situação
não é exatamente a mesma, visto que o
NT funciona como um guia básico para a
vida cristã, mas os cristãos ainda são cha-
mados para serem uma "carta de Cristo"
(como Paulo expressa em 2Co 3.1-3),
"conhecida e lida por todos os homens",
incluindo muitos que jamais se voltarão
para as Escrituras.
3.18-21 Um chamado à
cidadania celestial
Depois de considerar as suas próprias e
sublimes ambições, alimentadas pelo amor
de Cristo, e falar acerca dos que têm um
conceito equivocado de perfeição, Paulo
volta a sua atenção àqueles membros da
FILlPENSES 3
igreja cristã cuja vida ele pode apenas ob-
servar com dor e tristeza.
18,19 A cruz constitui o cerne do cris-
tianismo de duas formas. Ela é fundamen-
tal porque cremos que, por intermédio da
morte de Cristo na cruz, podemos ser per-
doados e aceitos por Deus, recebendo a
vida eterna. A cruz também é fundamen-
tal para o nosso entendimento de disci-
pulado. Jesus nos chama para tomarmos
a nossa cruz e o seguirmos (Me 8.34;
Lc 9.23), e Paulo sabia que precisava acei-
tar "a comunhão dos seus sofrimentos,
conformando-me com ele na sua morte"
(v. 10). Parece evidente que era nesse se-
gundo aspecto que essas pessoas, acerca
de quem Paulo escreve, eram inimigos da
cruz de Cristo. Em vez de aceitar a abne-
gação do discipulado, eles tinham toma-
do os desejos do corpo e feito deles o seu
deus, gabando-se do que era na verdade
vergonhoso e se preocupando apenas com
as coisas terrenas. Isso significava que,
em vez de encontrarem na cruz tanto a sua
salvação quanto uma forma de vida, eles
estavam em um caminho que só poderia
levá-los à perdição.
20 Ao pensar naqueles cuja vida é do-
minada por desejos de coisas terrenas, o
apóstolo diz que os cristãos verdadeiros sa-
bem que a sua vida e pátria estão, mesmo
agora, nos céus com Cristo (cf Ef 1.3; 2.6;
C13.1-4). Os filipenses podiam se orgulhar
de ser cidadãos em uma colônia romana
(v. Introdução), assim como todos temos
uma cidadania terrena, com privilégios
e obrigações. Eles deviam, porém, assim
como nós, valorizar acima de tudo o dom
da vida e da cidadania celestiais, vivendo
na esperança da nossa herança futura que,
no porvir, receberemos em sua plenitude.
Então, nós "ansiosamente" esperamos que
volte dos céus "o nosso Salvador, o Senhor
Jesus Cristo" (NTLH).
21 A vinda de Cristo significará a trans-
formação do nosso corpo de humilhação,
para ser igual ao corpo da sua glória
(2Co 4.16-5.4; 110 3.2) pelo poder de
FILlPENSES 4 1890
Deus a cuja atuação no fim das contas não
pode haver impedimentos ou limitações. O
corpo que agora possuímos não deve ser
desprezado, mas é um sinal da condição
de humilhação em que nos encontramos
(a mesma palavra é utilizada no cântico
de Maria em Lucas 1.48). Hoje os nossos
corpos são sujeitos a dores, sofrimentos e
fraquezas, mas naquele dia eles ressurgirão
imortais e incorruptíveis (lCo 15.35-54).
4.1-23 Orientações,
agradecimentos e despedida
Os últimos parágrafos de Paulo incluem
apelos, mensagens pessoais e agradeci-
mentos pelas doações que lhe foram en-
viadas pelos filipenses. A grata lembrança
daqueles donativos leva Paulo a falar da
sua dependência no Senhor e das bênçãos
espirituais que procedem da assistência ge-
nerosa. Ele prossegue falando que apren-
deu a viver satisfeito tanto no pouco como
no muito, sendo sempre fortalecido em
todas as coisas pelo Senhor. Por fim, asse-
gura aos filipenses de que Deus certamente
suprirá todas as suas necessidades.
4.1-3 Um apelo à união
A palavra portanto, que dá início ao pa-
rágrafo, indica que o apelo feito aqui está
fundamentado no que foi dito anteriormen-
te: o perigo dos que queriam transformar
todos os cristãos em judeus e a decepção
de Paulo com os que tinham a sua mentes
voltada para este mundo.
1 As palavras nesse versículo demons-
tram o quão profundos eram os sentimen-
tos de Paulo ao escrever para seus amigos
em Filipos. Por duas vezes ele utiliza no
versículo uma palavra que literalmente
significa amados. Paulo se alegra neles.
Ele os vê como uma coroa sobre a sua
cabeça (cf ITs 2.19). Ele os ama e an-
seia por voltar a vê-los (cf 1.8). Acima de
tudo, ele os encoraja a permanecer firmes
no Senhor (cf 1.27), como soldados de-
terminados a não recuar, por piores que
sejam os adversários.
2,3 Depois de ter falado em termos
gerais acerca de divisões e espíritos de
contenda no meio da igreja (2.1-5), Paulo
sente que deve lidar especificamente com
uma disputa que atrapalhava a vida dos
seus irmãos em Filipos. Não sabemos
mais nada a respeito de Evódia e Sintique,
mas Paulo fala delas com carinho, como
mulheres que juntas se esforçaram comi-
go no evangelho; ou seja, mulheres que
efetivamente haviam desempenhado um
ministério. Ainda assim, ele precisa ins-
tar para que elas pensem concordemente,
no Senhor e pedir a um colaborador de
confiança (cujo nome não é menciona-
do, a não ser que consideremos compa-
nheiro de jugo como um nome próprio;
"Sízigo", como traz a nota da NVI) para
ajudá-las na reconciliação. Quando faz
críticas, Paulo também procura encora-
jar e elogiar. Ele fala especificamente de
Clemente, mas tem consciência da impor-
tância de todos os seus cooperadores, e
a melhor coisa que pode dizer de todos
eles é que os seus nomes estão no Livro
da Vida. Para uma compreensão melhor
desse "livro da vida", é preciso fazer uma
comparação entre Êxodo 32.32, Salmos
69.28; Daniel 12.1 e Apocalipse 21.27. A
essas passagens, juntem-se as palavras de
Jesus quando ele diz aos seus discípulos
para se alegrarem não no que realizaram
a serviço de Deus, mas na graça de Deus,
segundo a qual os seus nomes estavam
"arrolados nos céus" (Lc 10.20).
4.4-7 Um chamado à
alegria e à oração
4 Mais uma vez a temática da alegria surge
nessa carta, quando o apóstolo conclama
os seus leitores: Alegrai-vos sempre, e ele
emenda com no Senhor. Ele mais uma vez
repete a mesma expressão: "[permanecei
firmes] no Senhor" (1); "[pensem concor-
demente] no Senhor" (2) e, agora: Alegrai-
vos no Senhor. Uma vida cristã integral
pode ser resumida em um relacionamento
com o Senhor Jesus Cristo ressurreto, na
 1891
atmosfera da sua presença e na graça que
em tudo nos fortalece.
S Há uma qualidade de vida que deve
ser conhecida de todos os homens, tanto
na vida como nos relacionamentos de um
cristão. O que na ARA aqui está como mode-
ração, a NVI traduz por amabilidade, a ARe
traz equidade, e a NTLH traz: "sejam amá-
veis". Com base em todas essas traduções
é possível captar a ideia. A proximidade de
Deus que motiva tal virtude poderia signi-
ficar que ele está perto do crente em todos
os momentos, que sua vinda está próxima,
ou ambas as ideias.
6 A ansiedade não deve ter lugar na
vida do cristão, pois em tudo pode haver
oração, orações em suas diversas formas
e estilos. Petições, súplicas e, acima de
tudo, ações de graças. Isso se deve ao fato
de que Deus é sempre digno de louvor e
porque a fé é revigorada quando, agrade-
cidos, lembramos o que Deus fez por nós
no passado. Temos aqui um eco dos ensi-
namentos de Jesus (Mt 6.25-34; 7.7-11).
Lemos algo parecido em IPedro 5.7, em
que diz: "...lançando sobre ele toda a vossa
ansiedade, porque ele tem cuidado de vós"
e, como J. A. Bengel competentemente
expressa: "Ansiedade e oração são mais
opostos entre si do que água e fogo" (New
Testament WordStudies, volume 2. Kregel
Publications, 1978, p. 447).
7 Quando a oração substitui a preocu-
pação, a paz de Deus, que excede todo o
entendimento assume o controle, atuando
como uma sentinela e impedindo que a
mente e as emoções do cristão sejam sub-
jugadas por uma investida repentina de
medo, ansiedade ou tentação. Essa realida-
de deve ser experimentada pelos cristãos
na sua vida diária.
4.8,9 Apreço por tudo que
é verdadeiro e amável
Comenta-se que as qualidades de caráter
mencionadas aqui não são exclusivamente
cristãs, mas têm sido apreciadas em mui-
tas culturas e sociedades. Isso pode ser
FILlPENSES 4
verdade, mas os cristãos têm a obrigação
especial de demonstrá-las e dispõem da
capacitação do Espírito para consegui-lo.
8 Oito palavras são usadas para quali-
ficar as coisas que devem preencher a vida
do cristão. Ao "serem levadas em conta"
(que é o significado da expressão traduzida
por ocupe o vosso pensamento), elas mol-
dam atitudes e orientam palavras e ações.
Tais coisas fazem parte do que é verdadei-
ro e honesto, digno e respeitável, correto e
justo, santo e puro, belo e amável, admi-
rável e de boa fama. A palavra traduzida
por virtude era a melhor palavra que a ética
grega clássica tinha para denominar algo
virtuoso. Por fim, há a ideia de que tais coi-
sas devem ser dignas de louvor e elogio.
9 Isso praticai: Praticar, ou, em outras
palavras, viver conforme o que se co-
nhece e aceita, resultaria para os filipen-
ses no tipo de vida que Paulo procurava
lhes demonstrar (v. comentário de 3.17).
Não apenas a paz de Deus seria encon-
trada, mas também a sua presença eterna
(cf 2Co 13.11; 2Ts 3.16).
4. 10-20 A postura de Paulo
em relação aos donativos
enviados de Filipos
Nesse parágrafo o apóstolo sente a necessi-
dade de fazer duas coisas: expressar o seu
agradecimento pelos donativos enviados
de Filipos, e ao mesmo tempo e com toda
a sensibilidade possível enfatizar o prin-
cípio espiritual de que devemos depender
exclusivamente do Senhor e não da ajuda
humana. Ele faz isso com tanta habilidade
que esses versículos têm sido considerados
"uma das pérolas da literatura" (Beare,
Philippians).
10 Paulo muito se alegrou nas doações
recebidas. Elas representavam um renovo
do ministério dos filipenses em relação a
Paulo, pois por um longo tempo eles não
tinham tido a oportunidade de demonstrar
esse seu cuidado para com ele.
11-13 As doações haviam sido uma ale-
gria e um incentivo para ele, mas ele não
FILlPENSES 4 1892
dependia delas nem, ao escrever assim,
estava pedindo por mais. Ele podia ho-
nestamente afirmar que havia aprendido o
segredo de se contentar com as circunstân-
cias que o cercavam, tanto na fartura como
na escassez. Ele sabia que o Senhor não
deixaria de lhe dar o que fosse necessário e
de fortalecê-lo para enfrentar qualquer si-
tuação. Ao escrever essas coisas, Paulo usa
duas palavras que eram bastante utilizadas
religiosa e filosoficamente naqueles dias.
A palavra traduzida por contente (Grego:
autarkêsi significa "autossuficiente". Os
estóicos consideravam uma grande virtu-
de a capacidade pessoal de se distanciar
das circunstâncias externas e encontrar em
si mesmo os meios para lidar com quais-
quer situações. Paulo utiliza a palavra
para expressar que ele não dependia das
circunstâncias, mas os recursos de sua au-
tossuficiência - naquele que me fortalece
- estavam no Senhor Jesus ressurreto. A
outra palavra, traduzida por aprendi a vi-
ver, era utilizada com relação às seitas com
ensinamentos secretos, para a iniciação em
um segredo. O segredo da vida de Paulo
não era nada secreto, mas aberto a todos
que seguissem o caminho de Cristo. Era
um segredo de contentamento, visto que
conhecer a Cristo e ser chamado a servi-lo
eram efetivamente "insondáveis riquezas"
(Ef 3.8). A profundidade com que conhe-
cemos o segredo do contentamento e até
que ponto contamos com a suficiência de
Cristo para enfrentar todas as necessidades
da vida são questões que sempre desafiam
a todos nós como cristãos.
14-16 Não obstante o que ele diz so-
bre esse princípio espiritual básico da
dependência de Deus, Paulo quer asse-
gurar que muito apreciou a generosidade
dos filipenses. Ela o sustentou na sua tri-
bulação. Ele fala do tempo do "início do
evangelho". Tais palavras já foram com-
preendidas de diversas formas, mas a NVI
corretamente as traduz por "nos seus pri-
meiros dias no evangelho". Paulo havia
saído da Macedônia, província onde ficava
a cidade de Filipos, e ido para Tessalônica
(At 17.1). Enquanto lá, os cristãos filipen-
ses mandaram-lhe ajuda não somente uma
vez, mas duas. Repare que Paulo também
fala acerca da parceria que havia entre ele
e os cristãos de Filipos, mencionando que
eles estavam associados no tocante a dar e
receber. Uma parceria verdadeira precisa
funcionar nos dois sentidos.
17,18 O socorro cristão também é uma
bênção para quem socorre. Acerca das
doações dos filipenses, Paulo expressa o
seu desejo: que aumente o vosso crédito.
Ao dizer isso, ele emprega a metáfora de
uma negociação comercial. Seria uma ne-
gociação comercial na qual ambos os la-
dos teriam recebido pagamento integral.
Podemos ter a certeza de que, ao empregar
essa linguagem nem passava pela cabeça
de Paulo a ideia de que ele merecia al-
gum tipo de retribuição por parte de Deus.
Tudo o que recebemos é dádiva da graça
de Deus. Tudo o que fazemos por Deus ou
pelos outros é devido ao amor e à grati-
dão. Aquilo que é feito pelos outros é acei-
to como se tivesse sido feito pelo Senhor
(Mt 25.40) e pode ser descrito como sa-
crificio aceitável e aprazível a Deus (cf
Êx 29.18; Ez 20.41; Jo 12.3; 2Co 2.16).
19 O Senhor não deve nada a nin-
guém. A medida daquilo que Deus dá é
infinitamente maior do que a medida do
que o homem dá. Deus promete suprir
tudo o que vê que nós precisamos e fazer
isso segundo a sua riqueza em glória [...]
em Cristo Jesus.
20 Todo louvor e glória são devidos a
nosso Deus e Pai, agora e pelos séculos
dos séculos, por toda a eternidade.
4.21-23 Saudações finais
21,22 Paulo iniciou essa carta conforme
o costume da sua época, ainda que enri-
quecido pela percepção de quem eram os
remetentes e destinatários, em virtude do
chamado cristão que alcançava a todos os
envolvidos. Ao encerrá-la, ele procede da
mesma forma. Ele mais uma vez menciona
 1893
que os leitores são santos (v. comentá-
rio de 1.1). Diz que eles estão em Cristo
Jesus e que, por causa disso, são irmãos.
Ele envia as suas despedidas, e entre os
que mandam lembranças estão os da casa
de César. A identidade exata dessas pes-
soas depende em certa medida do lugar
onde a carta foi escrita (v. a Introdução,
acerca da época e do local em que a carta
foi composta). Todavia, quer ele estivesse
ou não em Roma, o mais provável é que
não fossem realmente membros da famí-
lia de Cesar, mas "pessoas empregadas nas
FILlPENSES 4
dependências domésticas e administrati-
vas do imperador" (Beare, Philippians).
Mesmo assim, é bastante significativo que,
já naquele tempo, houvesse cristãos fiéis a
serviço do império.
23 Assim como começou, a carta é en-
cerrada com uma oração. A sua oração fi-
nal inclui todas as petições possíveis, pois
a graça do Senhor Jesus Cristo, presente
no indivíduo, sempre reaviva o espírito
humano.
Francis Foulkes
 COLOSSENSES
INTRODUÇÃO
A igreja em Colossos
Colossos era uma cidade pequena e relati-
vamente insignificante nos tempos roma-
nos (uma "vila pequena", segundo Estrabo,
autor da época), embora tivesse tido uma
próspera indústria de lã nos séculos v e IV
a.c. Estava situada no vale do rio Lico a
aproximadamente 160 quilômetros a leste
de Éfeso e, com Laodiceia e Hierápolis,
pertencia à provincia romana da Ásia.
A comunidade cristã em Colossos sur-
giu durante um período de evangelismo in-
tenso, associado ao ministério de Paulo em
Éfeso (52-55 d.C.) e registrado em Atos
19. Paulo foi assistido por vários coopera-
dores que implantaram uma série de igrejas
na província da Ásia. Entre essas estavam
as congregações de Colossos, Laodiceia e
Hierápolis, frutos dos esforços evangelísti-
cos de Epafras (1.7; 4.12,13). Epafras, na-
tural de Colossos (4.12), que talvez tenha
se convertido ao cristianismo durante uma
visita a Éfeso, era "fiel ministro de Cristo"
e como representante de Paulo (1.7) tinha
ensinado aos colossenses a verdade do
evangelho.
Paulo com frequência se refere ao pas-
sado não cristão dos leitores, e isso suge-
re que em sua maioria eles eram gentios
convertidos. Anteriormente haviam estado
completamente fora de sintonia com Deus,
emaranhados na idolatria e escravidão do
pecado, sendo hostis a Deus em mente e ím-
pios em suas ações (1.21; cf. v. 12,27). Eles
estiveram mortos por causa das suas trans-
gressões e da incircuncisão da vossa carne
- uma afirmação que indica que tinham
sido tanto gentios quanto ímpios (2.13).
Deus, no entanto, tinha operado uma
mudança poderosa na vida deles: ele os
reconciliara consigo mesmo num evento
que abalou o mundo, a saber, a morte física
de Cristo na cruz (1.22). Ele os libertara da
tirania das trevas e os transferira para o rei-
no governado pelo seu filho amado (1.13).
Eles agora tinham a redenção e o perdão
dos pecados (1.14; 2.13; 3.13).
Os colossenses tinham uma esperança
tão segura que estava reservada para eles
no céu (l.5; cf v. 23), onde Cristo estava
assentado e onde os seus pensamentos e
esperanças deviam estar facadas (3.1-4;
cf 1.27). Como gentios que anteriormente
tinham estado sem Deus e sem esperança
eles foram unidos com Cristo na sua morte,
sepultamento e ressurreição (2.11,12,20;
3.1,3). Ele era a mesma pessoa louvada
como o Senhor exaltado da criação e da re-
conciliação no magnífico hino de 1.15-20,
e o ungido de Deus que estava no centro do
mistério (1.27). Como membros do corpo
de Cristo, eles tinham dentro de si a vida
dele e podiam olhar adiante para o dia em
que participariam da plenitude da glória
dele (3.4).
Visto que a igreja tinha recebido Cristo
Jesus como Senhor (2.6) quando aceitaram
o evangelho por meio de Epafras, eles de-
veriam conduzir a sua vida como os que
foram unidos a Cristo na sua morte e res-
surreição. Ao viverem debaixo do senhorio
dele, deveriam estar cheios de gratidão a
Deus por causa dos seus grandes atos em
favor deles (2.7; 3.15-17; 4.2; cf 1.3,12).
Retrata-se, portanto, o quadro de uma
congregação cristã obediente ao evangelho
apostólico e pela qual o apóstolo podia dar
sinceras graças a Deus (1.4-6). Ele sabia
do "vosso amor no Espírito" (1.8) e ficou
feliz em saber da vida cristã ordeira que
 1895
eles estavam levando e da firmeza da sua
fé em Cristo (2.5).
Autoria
A carta deixa claro que o apóstolo Paulo é
o autor, não somente na saudação inicial
(1.1), mas também no corpo da carta (1.23)
e na sua conclusão (4.18). A personalidade
de Paulo, que conhecemos de outras car-
tas, transparece nesta. Não houve contes-
tação da autenticidade de Colossenses no
período da igreja primitiva. A carta está na
primeira lista canônica conhecida dos li-
vros do NT (início do século II d.Ci) compi-
lada por Marcião, como também no cânon
muratoriano (final do século II ou início do
século m). Todavia, a autoria paulina foi
questionada em diversas ocasiões durante
os últimos 150 anos. Os argumentos se re-
ferem à linguagem e estilo da carta, e às
supostas diferenças entre Colossenses e a
teologia das cartas principais de Paulo.
Quanto à linguagem e estílo, muitas
expressões são preciosas a Paulo, enquan-
to as diferenças podem ser explicadas pela
situação particular que deu origem à carta.
Termos incomuns, por exemplo, aparecem
como palavras-chave ou lemas da "filoso-
fia" colossense ou como parte das respos-
tas ao problema particular deles.
As supostas diferenças teológicas entre
Colossenses e as cartas geralmente aceitas
como paulinas estão nos campos da cristo-
logia (a pessoa e obra de Cristo), eclesiolo-
gia (a natureza da igreja), escatologia (en-
sino sobre o final dos tempos) e da tradi-
ção. Há diferenças de ênfase: Por exemplo,
a carta dá ênfase à escatologia realizada e
não à escatologia futura (nas bênçãos já
experimentadas por meio do Espírito e não
no final dos tempos - embora este aspec-
to também esteja presente, e.g., em 3.4).
Essas diferenças são mais bem interpreta-
das como resultantes das circunstâncias de
Colossos (v. comentário de 2.11,12; 3.1-3).
Os chamados "desenvolvimentos teológi-
cos" estão alinhados com o ensino anterior
do apóstolo e não são motivo para se rejei-
COLOSSENSES
tar a autoria apostólica da carta. A conexão
próxima entre Colossenses e Filemom,
especíalmente o número de pessoas asso-
ciadas a Paulo que são mencionadas em
ambas as cartas (4.7-17; cf Fm 23,24) e a
menção particular a Onésimo como o "que
é do vosso meio" sugerem que as duas car-
tas foram escritas no mesmo período. Não
há razão para se duvidar de que o autor da
carta tenha sido Paulo.
Ocasião
Epafras fizera uma vísita a Paulo em Roma
(v. adiante) e o informara do estado das
igrejas no vale do Lico. Embora boa parte
do relato fosse encorajador (1.8; 2.5), uma
característica inquietante era um ensino
atraente, mas falso, que recentemente fora
introduzido na igreja e que, se não fosse
confrontado, desbancaria o evangelho e
conduziria os colossenses à escravidão es-
piritual. A carta de Paulo foi escrita como
resposta a essa necessidade urgente.
A ameaça à fé e a "heresia
colossense"
Em nenhum lugar da carta o apóstolo defi-
ne a "heresia"; as suas características prin-
cipais podem ser identificadas somente ao
se juntar e interpretar os contra-argumen-
tos positivos do apóstolo. Recentemente
diversos estudiosos têm questionado se
nesses contra-argumentos há de fato indi-
cação de uma "heresia colossense". Eles
preferem falar em termos de "tendências"
a identificar um sistema claramente defi-
nido de pontos específicos, e sugerem que
os recém-convertidos estavam sob pressão
exterior para se conformar às crenças e
práticas dos seus vizinhos judeus e pagãos.
Mas à luz de 2.8-23, com suas referências
à "plenitude", a instruções específicas so-
bre a autodisciplina ("não manuseies ...",
v. 21), a regulamentações sobre comida e
dias sagrados, a expressões incomuns que
aparentemente são palavras-chave e lemas
dos oponentes de Paulo e à forte ênfase
no que Cristo já realizou por sua morte e
COLOSSENSES 1896
ressurreiçao, parece apropriado falar de
uma "heresia" que acabara de fazer algu-
mas incursões na congregação.
O ensino foi proposto como uma "fi-
losofia" (2.8) baseada em "tradição" (uma
expressão que denota sua antiguidade,
dignidade e revelação) que supostamen-
te transmitia conhecimento verdadeiro
(2.18,23). Paulo parece estar citando le-
mas dos oponentes no seu ataque a eles
em: 2.9: "toda a plenitude"; 2.18: satis-
fação em "humildade [falsa] e culto dos
anjos"; 2.21: "Não manuseies..."; e 2.23:
"culto de si mesmo", "falsa humildade" e
"rigor ascético". Além disso, a observação
desses tabus na "filosofia" estava associa-
da à submissão obediente aos "rudimentos
do mundo" (2.20; "princípios elementares
deste mundo", NVI). Como essas caracte-
rísticas incomuns devem ser entendidas?
Os comentaristas não são unânimes
quanto à natureza desse ensino. Basicamente
a heresia parece ter sido de origem judaica,
em virtude das referências às regulamenta-
ções alimentares, ao sábado e a outras re-
gras do calendário judaico. A circuncisão é
mencionada (2.11), mas não aparece como
uma das exigências legalistas. Mas que tipo
de judaísmo era? Não parece ter sido o caso
mais claro e franco de judaísmo, contra o
qual as igrejas da Galácia precisaram ser
advertidas, mas era um judaísmo em que
figuravam a autodisciplina e o misticismo
e em que anjos, principados e potestades
tinham papel proeminente na criação e pro-
mulgação da lei. Eles eram considerados os
controladores das linhas de comunicação
entre Deus e a humanidade, e assim tinham
de ser aplacados por meio de rigorosas ob-
servâncias legais.
Uma série de sugestões importantes
tem sido feita quanto à natureza da "filoso-
fia" colossense. Essas incluem um culto de
mistério pagão (M. Dibelius) e uma com-
binação de elementos pagãos a uma forma
gnosticizada de judaísmo, i.e., umjudaísmo
baseado no "conhecimento para iniciados"
especial (O. Bornkamm). (O "culto dos an-
jos" [2.18] tem sido considerado um ele-
mento pagão no ensino falso, mas deve ser
entendido como a "adoração angélica [de
Deus]"; v. Comentário). Outras teorias in-
cluem um "judaísmo sectário do tipo gnós-
tico" (Lightfoot) e um conjunto de crenças
que combina uma série de características
judaicas (S. Lyonnet). Estudos recentes,
no entanto, consideram que o ensino fal-
so, que ia além do evangelho elementar de
Epafras, estava associado a formas ascé-
ticas e místicas de piedade judaica (como
encontradas, e.g., em Qumran). Ele estava
voltado a uma elite espiritual que estava
sendo estimulada a avançar na sabedoria
e conhecimento como que para alcançar
a verdadeira "plenitude". A "humildade"
(2.18,23) era um termo usado pelos opo-
nentes para denotar práticas de abnegação
que abriam o caminho do crente a visões e
mistérios celestiais e a participar da "ado-
ração angélica de Deus" como parte da sua
experiência presente (2.18).
De forma semelhante hoje, homens e
mulheres às vezes creem que se ordena-
rem sua vida segundo uma série de regras
e regulamentações fixas então Deus terá
prazer no seu serviço e culto e aí eles po-
derão fazer reivindicações equivalentes a
ele. Essas regras e ordenanças podem apa-
recer em diferentes áreas da vida - nas
esferas social, moral, política e religiosa.
Obtém-se uma sensação de realização ou
até de alegria quando as regras são cumpri-
das, ao passo que se tem um sentimento de
fracasso ou vergonha quando os padrões
exigidos não são atingidos. Mas todo o es-
forço é autocentrado, voltado para méritos
humanos. Mesmo crentes podem escorre-
gar para o legalismo, pensando que seria
correto retribuir a Deus, mesmo que com
pequenas coisas, pelo presente da salvação
que ele ofereceu em seu Filho. Como al-
ternativa, alguns podem pensar que é ne-
cessário observar regras do tipo religioso
a fim de crescer como cristão e se tornar
santo. Mas todo o empreendimento atinge
exatamente o cerne da obra salvífica de
1897 COLOSSENSES
COLOSSENSES 1898
Cristo, especialmente sua morte na cruz. O
erro é semelhante aos dos falsos mestres
em Colossos.
Como Paulo lida com
a filosofia colossense
Paulo faz uma advertência séria aos colos-
senses para que fiquem alertas, pois do con-
trário os falsos mestres os levarão como
presas (lit. "sequestrarão") da verdade para
a escravidão do erro por meio da "filosofia
e [das] vãs sutilezas" deles (2.8). Embora
tivessem proposto o seu ensino como "tra-
dição", Paulo rejeita qualquer sugestão de
origem divina. Era uma invenção humana
("tradição dos homens") e como resposta
a esse ensino ele o contrapõe à tradição de
Cristo - não meramente a tradição que
se origina do ensino de Cristo, mas aque-
la que encontra nele a sua personificação
(2.6). Jesus Cristo é "a imagem do Deus
invisível" (1.15), aquele que incorpora a
plenitude do ser divino (2.9). Num texto
magnífico em que louva a Cristo como o
Senhor na criação e na reconciliação (1.15-
20), ele afirma que Cristo é aquele por
meio de quem todas as coisas foram cria-
das, inclusive os principados e potestades
que figuravam de forma tão proeminente
na heresia colossense. Todas as coisas fo-
ram feitas nele. Ele é o agente de toda a
criação e o seu alvo final (1.16).
Na sua resposta ao falso ensino, Paulo
expõe a doutrina do Cristo cósmico mais
amplamente do que nas suas primeiras car-
tas. Pistas haviam aparecido anteriormente
em Romanos (8.19-22) e 1Coríntios (1.24;
2.6-10; 8.6), mas uma exposição mais
detalhada é apresentada em Colossenses
1.15-20 e 2.13-15. As críticas do apóstolo
aos defensores da filosofia, com suas no-
ções equivocadas e comportamento estra-
nho, são perspicazes e pungentes, e mesmo
devastadoras (v. comentário de 2.16-23).
Lugar e data de composição
A posição tradicional de que Paulo es-
creveu Colossenses durante o seu apri-
sionamento em Roma é mais provável do
que a de que ele tenha escrito a carta em
Éfeso ou Cesareia. Nenhum outro encar-
ceramento em Atos parece uma alterna-
tiva real (há dificuldades em aceitar que
tenha sido durante o aprisionamento em
Cesareia, At 24.27). As saudações de co-
legas no cp. 4 sugerem que eles tinham
acesso direto a Paulo, e isso se encaixa no
aprisionamento em Roma, de Atos 28.30.
Também a referência a Onésimo (que
leva em consideração a carta a Filemom)
é mais bem compreendida no contexto da
capital imperial, mesmo que alguns te-
nham argumentado que a distância entre
Colossos e Roma toma a origem romana
improvável. Um suposto desenvolvimen-
to do pensamento de Paulo não nos ajuda
na datação de Colossenses.
Se aceitamos a sugestão de Roma como
local, então a data mais provável deve ficar
perto do início do (primeiro) encarcera-
mento de Paulo em Roma, i.e., c. 60-61
d.e. Os que apoiam a alternativa de Éfeso
datam a carta em tomo de 54-57, ou até
antes, 52-55.
Leitura adicional
LUCAS, R. C. The message of Colossians.
BST. Inter-Varsity Press, 1980.
WRIGHT, N. T. Colossians and Philemon.
TNTe. Inter-Varsity Press/UK/
Eerdmans, 1986.
MARTIN, R. P. Colossenses e Filemom.
SCR Vida Nova, 1984.
O'BRIEN, P. T. Colossians. WBe. Word,
1982.
_ _o Understanding the basic themes of
Colossians, Philemon. QRBT. Word,
1991.
 1899 COLOSSENSES 1

ESBOÇO
1.1 A de Paulo
1.3-8 Agradecimentos pela fé, pelo amor, pela esperança e pelo evangelho
1.9-14 Uma oração por entendimento espiritual e conduta piedosa
1.15-20 Jesus Cristo, o Senhor da criação e da reconciliação
~~ -23 Reconciliaçãoconquistada e aplicada

1.24-2.5 A missão de Paulo e as suas preocupações pastorais

2.6-15 O remédio para o erro: Cristo em toda a sua plenitude_
-----
2.16-23 A libertação do legalismo
3.1-4 Buscar as coisas do alto
3.5-1 ~ Deixar para trás os pecados do passado
3.12-17 Revestir-se com as virtudes de Cristo
~: 18-::~~~~()mp~rtam~nto n() lar c~!stão _
4.2-6 Palavras finais de incentivo

COMENTÁRIO aqui menciona o seu apostolado não para se

1.1,2 - A saudação de Paulo
Paulo inicia sua epístola aos colossenses
da mesma forma que muitos escritores da
antiguidade o faziam; ou seja, com três de-
talhes: o nome do remetente, o nome dos
destinatários e uma saudação (v. também o
artigo "Lendo as Cartas"). Há importantes
diferenças, no entanto, entre as epístolas
de Paulo e as demais cartas da antiguida-
de. Em primeiro lugar, o apóstolo mencio-
na seu próprio nome e suas credenciais em
relação às circunstâncias de cada carta; em
segundo lugar, ele se dirige aos leitores em
termos cristãos; e, em terceiro, as sauda-
ções iniciais não são desejos bem-intencio-
nados, mas uma expressão de sua profunda
preocupação por eles em relação à graça e
à paz de Deus.
Como um apóstolo de Cristo Jesus
Paulo fora diretamente chamado e enviado
pelo Senhor Jesus ressurreto para ser seu
agente na proclamação do evangelho e na
fundação de igrejas. Ele pertence a Cristo e
defender de algum ataque dos colossenses
(como ocorrera na Galácia e em Corinto:
Gl 1.1,10-12; 1Co 9.1-3; 2Co 11.1 0-13),
mas com o fim de explicar o seu ministé-
rio desde o início e chamar a atenção da
comunidade para o caráter oficial de sua
carta. Um apóstolo tinha autoridade para
ensinar (cf lTm 2.7) e para apascentar a
congregação (2Co 13.10). Tanto o chama-
do como o ministério de Paulo advinham
da vontade de Deus. Tal expressão enfatiza
que eles eram devidos exclusivamente à
graça de Deus e que Paulo tinha uma res-
ponsabilidade especial dentro do propósito
divino para com as congregações gentí-
licas (cf Ef 3.1-13). O nome de Timóteo
é mencionado (cf 2Co 1.1; Fp 1.1) não
como coautor da carta, mas porque ele
havia acompanhado Paulo durante grande
parte de seu ministério em Éfeso e estava
lá com ele quando a epístola foi escrita. Os
colossenses são descritos com uma lingua-
gem magnífica: aos santos e fiéis irmãos
em Cristo que se encontram em Colossos.
COLOSSENSES 1
Assim como o povo de Deus, Israel, que
havia sido escolhido e separado para o
seu serviço (Êx 19.6), eles eram "santos"
porque tinham sido separados para Deus e
para o seu serviço. Por causa disso, a vida
deles (e a nossa) deveria ser marcada por
um comportamento piedoso. Eles são fiéis
irmãos e irmãs daqueles a quem eles se
uniram em uma comunhão viva em Cristo
(quanto à questão de se estar "em Cristo",
cf 2.6-15). O termo irmãos (que significa
"irmãos e irmãs") fala dos relacionamen-
tos pessoais que há entre os cristãos como
membros da família de Deus. Como um
povo que fora adotado por causa do amor
de Cristo, os colossenses haviam de de-
monstrar amor fraternal uns pelos outros.
A saudação graça e paz a vós outros, da
parte de Deus, nosso Pai indica uma preo-
cupação sincera da parte de Paulo pelos co-
lossenses no sentido de que eles pudessem
compreender melhor e valorizar a graça de
Deus, na qual eles já estavam inseridos, e
o relacionamento de paz que Deus estabe-
lecera com eles (cf Rm 5.1,2).
1.3-8 Agradecimentos pela fé,
pelo amor, pela esperança e
pelo evangelho
Conforme o que já lhe era habitual, Paulo
passa a agradecer a Deus pelos seus lei-
tores. No parágrafo em que expressa sua
gratidão, ele utiliza uma variação do tipo
mais pessoal de carta no estilo grego co-
nhecido em sua época. Essa passagem dá
o tom de toda a epístola e apresenta alguns
de seus temas principais, ao mesmo tempo
que Paulo demonstra a sua preocupação
apostólica e pastoral por aqueles cristãos.
Diferentemente de muitas ações de graças,
que expressam gratidão por benefícios pes-
soais recebidos e podem ter caráter egoísta,
os agradecimentos de Paulo são dirigidos a
Deus por causa do que ele fez nas vidas
dos outros. Ele expressa a sua gratidão a
Deus pelo crescimento dos cristãos colos-
senses e em seguida faz uma oração pelo
progresso daquele povo em conhecimento
1900
e comportamento cristãos (1.9-14). A men-
ção às suas orações por aquele povo teria
sem dúvida ajudado a fortalecer os seus la-
ços de comunhão com aqueles cristãos do
vale do Lico, os quais ele ainda não tinha
encontrado pessoalmente (2.1).
3 Damos sempre graças a Deus [...]
quando oramos por vós. O "nós", oculto
nessa oração, não era um mero formalis-
mo cortês que se referia exclusivamente a
Paulo, nem servia para registrar que havia
uma grande distância entre Paulo e os co-
lossenses, mas sim para incluir Timóteo e
talvez outros (em 1.23, quando a ênfase
é o ministério do próprio Paulo, o "eu" é
utilizado). Pode também indicar reuniões
regulares entre o apóstolo e seus colegas
para orar por aqueles cristãos. O sempre
aponta para a frequência com que ele agra-
decia a Deus. A expressão não significa
que ele orava por eles a todo momento do
dia, mas é explicada por quando oramos
por vós; ou seja, "regularmente", talvez de
manhã, à tarde e à noite (a prática habitual
de se orar três vezes ao dia) e sempre que
oravam. (Expressões semelhantes, como
"continuamente", "a todo instante" e "dia e
noite" significam o mesmo). 4 O motivo do
agradecimento de Paulo era a fé e o amor
dos seus leitores, acerca dos quais Paulo
ouvira por intermédio de Epafras (v. 8). A
fé é mencionada primeiro, pois sem ela a
vida cristã não é possível (cf Rm 10.9).
Afé subsiste e age em Cristo Jesus, pois
os cristãos estão unidos a ele, e ela prova
que é real ao "atuar pelo amor" (Gl 5.6).
Esse amor vinha sendo demonstrado pelos
leitores aos cristãos em geral e especial-
mente aos que estavam em Colossos e nas
outras igrejas do vale do Lico. É por meio
do amor que os cristãos servem uns aos
outros, e aqueles cristãos sabiam disso.
5 Tanto a fé como o amor são basea-
dos na esperança (essas três graças estão
relacionadas em Rm 5.1-5; lCo 13.13;
Gl 5.5,6; 1Ts 1.3; 5.8), que aqui signifi-
ca "aquilo que traz esperança" ou "aqui-
lo pelo qual se espera". Trata-se de algo
 1901
absolutamente garantido, reservado para
eles nos céus, onde poder algum, humano
ou outro qualquer, pode chegar. Embora
não possam ver, essa esperança está cen-
trada em Cristo (1.27) e será manifestada
quando ele voltar (3.4). É por isso que os
cristãos devem voltar sua mente para o céu
e permitir que os seus pensamentos sobre
Cristo governem a sua vida (3.1-4). Paulo
não estava falando de novidade alguma,
uma vez que, quando se converteram,
eles já tinham ouvido dessa esperança no
evangelho. Sendo a palavra da verdade,
o evangelho é absolutamente confiável. É
a palavra de Deus, e sendo semelhante ao
caráter divino também se opõe ao "evan-
gelho" dos falsos mestres.
6 Paulo faz todo o possível para enfa-
tizar a natureza poderosa e quase pessoal
do evangelho: a palavra de Deus vinha
progredindo triunfante, chegando aos co-
lossenses e assumindo um lugar de des-
taque na vida deles. Em todo o mundo (o
que não significa em todos os lugares ou a
cada pessoa debaixo do céu, mas nas cida-
des maiores, como por exemplo Damasco,
Tarso, Antioquia, Corinto e Éfeso, que
funcionavam como pólos de evangeliza-
ção), o evangelho vinha produzindo fruto
e crescendo. Essa frase é utilizada no AT
para se referir ao crescimento da huma-
nidade (Gn 1.22,28; 8.17; 9.1,7) e da po-
pulação de Israel (Ir 3.16; 23.3). No NT é
util izada para descrever a semente (ou seja,
a palavra) na parábola do semeador (Me 4).
Assim como a semente, o evangelho "dá
frutos", produzindo uma safra de boas
ações (ou seja, atos cristãos) na vida dos
crentes (cf Fp 1.11), e "cresce" na medi-
da em que aumenta o número de conver-
tidos. Os colossenses tinham ouvido essa
mensagem da graça de Deus em Cristo,
e com sua conversão experimentaram sua
natureza real.
7,8 Epafras era o evangelista que havia
levado o evangelho aos colossenses. Eles
haviam sido cuidadosamente instruídos e
confirmados como discípulos daquele en-
COLOSSENSES 1
sino (2.6,7). Paulo fala carinhosamente so-
bre Epafras, que fora escolhido por Deus
e separado para seu serviço. Como amado
conservo de Paulo, ele fora o fiel colabora-
dor do apóstolo que providenciara para que
a igreja em Colossos recebesse o verdadei-
ro evangelho apostólico. Ele havia agido
como representante de Paulo ao pregar
em Colossos. O termo ministro ("servo"),
muito utilizado por Paulo, originariamente
significava alguém que prestava serviços
de natureza humilde. É utilizado em rela-
ção ao próprio Cristo (Rm 15.8), a Paulo
(2Co 11.23; Ef 3.7) e aos seus colabora-
dores na atividade missionária (lCo 3.5;
1Tm 4.6), incluindo Epafras, que é um
fiel ministro de Cristo. Ele havia visitado
Paulo em Roma recentemente e relatara a
situação das igrejas no vale do Lico. A vida
da comunidade era repleta do amor gerado
pelo Espírito Santo, capacitando-a a socor-
rer todos os santos (os crentes em Cristo).
1.9-14 Uma oração por
entendimento espiritual
e conduta piedosa
Ao formular o conteúdo de sua oração pe-
los colossenses, Paulo expõe muitos dos
principais assuntos da epístola. Esses ver-
sículos transmitem aos leitores o que Paulo
considera importante e, por conseguinte,
exortam os colossenses a reagir de forma
positiva e a tomar uma atitude. Resumindo
isso em poucas palavras, Paulo ora para que
eles conheçam a vontade de Deus e tenham
forças para cumpri-Ia. A ligação estreita
entre as ações de graças dos v. 3-8 e as in-
tercessões dos v. 9-14 mostram que Paulo
era um verdadeiro pastor. Ele era grato a
Deus pelo progresso dos colossenses, mas
também queria que eles crescessem em en-
tendimento e comportamento e que enfren-
tassem as doutrinas falsas que começavam
a invadir a igreja. A oração presente nesses
versículos é uma das mais lindas em suas
epístolas (cf Ef 1.17-19; 3.14-19) e serviu
como modelo para as gerações posteriores
de cristãos.
COLOSSENSES 1
9 Desde o dia em que ficara sabendo
do progresso deles como cristãos, o após-
tolo não apenas agradecia constantemen-
te a Deus Pai, mas também orava pelos
colossenses. Sabendo que aquele a quem
pedia podia dar de forma rica e abundante
(Fp 4.19; cf Rm 15.13; Tg 1.5), Paulo e
seus companheiros oravam constantemen-
te para que os colossenses recebessem
"plenitude" de bênçãos das mãos graciosas
de Deus: "pedimos a Deus que encha vo-
cês com o conhecimento da sua vontade"
(NTLH). O apóstolo não ficaria satisfeito
com nada menos do que a maturidade cris-
tã plena. O conhecimento pelo qual ele ora-
va não pode ser comparado a outros tipos
de conhecimento, pois consistia em todo
tipo de sabedoria e entendimento no plano
espiritual. A vontade de Deus, que via de
regra é mais ampla do que a sua vontade
pessoal para a vida do cristão individual,
às vezes descreve o seu plano de eleição
e salvação (Ef 1.5,9). Aqui, ela está rela-
cionada à obediência absoluta dos leitores
da carta e que deveria ser visível em suas
ações (cf Rm 12.1,2).
10 Embora haja ênfase forte no co-
nhecímento e na sabedoria (incluindo um
elemento intelectual, que capacitaria os
colossenses a combater o erro), o conheci-
mento pelo qual Paulo orou devia levá-los
a um comportamento digno: a fim de vi-
verdes de modo digno do Senhor. "Viver"
significa literalmente "caminhar" e Paulo
frequentemente usa o termo para descrever
a vida cristã (Rm 6.4; 8.4; Gl 5.16; Ef 4.1;
Fp 3.17). Os colossenses deviam viver de
uma maneira digna daquele a quem con-
fessavam como Senhor. Complementando,
o apóstolo ora para que eles sejam do in-
teiro agrado do Senhor. Observe que essa
expressão não visa descrever uma postura
temerosa diante de um superior, mas um
comportamento digno de Deus que sur-
ge da alegria em lhe obedecer. Em outras
epistolas, Paulo menciona a necessidade de
o cristão agradar a Deus (como um efeito
da obediência) e não a si mesmo (Rm 8.8;
1902
15.1-3; lCo 7.32). Tal deve ser a realidade
em todas as esferas; ou seja, em todas as
coisas. Paulo então descreve mais detalha-
damente o que significa viver de modo dig-
no do Senhor (literalmente "caminhar de
modo digno do Senhor"). Os fiéis devem
frutificar em toda boa obra. O evangelho
havia frutificado, produzindo ações piedo-
sas na vida dos colossenses (v. 6), e agora
Paulo ora para que eles possam dar frutos
em tudo o que fizerem. Eles devem tam-
bém crescer no conhecimento de Deus. À
medida que cultivarem esse relacionamen-
to pessoal que já têm com Deus, esse rela-
cionamento ficará cada vez mais profundo
e sua compreensão do Altíssimo aumenta-
rá. 11 Sendo fortalecidos com todo o poder
indica como eles devem viver de modo
digno do Senhor. Os padrões apresentados
aos colossenses são elevados, mais eleva-
dos do que os apresentados pelos falsos
mestres e talvez até pareçam inatingíveis,
mas não é o caso. Paulo alista uma série de
expressões de força e poder para enfatizar
que: nada menos do que o poder do próprio
Deus todo-poderoso atuará na vida deles,
com o fim de capacitá-los a viver de forma
agradável a ele; «força da sua glória será
mais do que suficiente para as necessida-
des dos colossenses; e tal força lhes será
dada a cada dia, conforme enfrentarem as
mais diversas situações (o verbo no parti-
cípio sugere um fortalecimento contínuo
da parte de Deus). O efeito do seu poder
divino não são milagres espetaculares, mas
perseverança e longanimidade, em espe-
cial nos momentos difíceis. Ao suportar
pacientemente o sofrimento os cristãos
demonstram que sua esperança está posta
em Deus.
12-14 Por fim, Paulo ora para que os
colossenses, com alegria, deem graças
ao Pai, pois isso também é de seu inteiro
agrado. A expressão "ações de graças" nas
cartas de Paulo diz respeito a uma postu-
ra mental de gratidão que é extemada, o
que muitas vezes ocorre de forma pública.
Ao mencionarmos o que Deus fez gracio-
 1903
samente em seu Filho, os outros cristãos
também são incentivados a louvá-lo, e
quanto mais ações de graças houver, mais
Deus é glorificado (2Co 1.11; 4.15). Dar
graças ao Pai com alegria é algo que os
cristãos devem fazer com regularidade. Há
fundamentos sólidos para que o façamos.
Aliás, agradecer regularmente ao Pai é
uma marca do cristão verdadeiro.
12 O Todo-poderoso já havia agido em
favor deles, preparando-os para uma he-
rança eterna. Essa linguagem está cheia
de ecos do AT e traz à mente a promessa
dada inicialmente a Abrão (Gn 13.14-17)
e mais tarde renovada a Israel (Nm 26.52-
56). A herança a que Paulo se refere per-
tence a um plano mais elevado e duradouro
do que a terra de Canaã, pois diz respeito
ao "Reino da luz" (NTLH); ou seja, ao reino
da luz da era vindoura, no próprio céu. Ela
pertence a uma dimensão espiritual que
não pode ser assolada por guerras, fome
ou coisas semelhantes. Essa herança é a
"esperança que vos está preservada nos
céus" (1.5; cf 3.1-4) e não é nada menos
do que o próprio Senhor Jesus. 13,14 Esses
versículos explicam o significado do v. 12,
ressaltando a grande mudança que Deus
havia operado na época da conversão dos
colossenses. Como outros, eles haviam
estado sob o domínio do maligno e eram
por ele governados. Tinham pertencido ao
império das trevas. As circunstâncias em
que se encontravam são descritas em 1.21:
eles estavam separados de Deus, eram seus
inimigos e faziam obras malignas. Deus,
porém, nos libertou (o nos inclui Paulo e
também os demais crentes) da tírania das
trevas. Ele libertou os que se encontravam
escravizados (como no êxodo) e trans-
portou-os para o reino governado por seu
Filho. Essa mudança de controle é descri-
ta de forma intensa com expressões como
"luz" e "trevas". Os colossenses haviam se
tomado filhos da luz (cf 1Ts 5.5) e deviam
viver de acordo. O reino do Filho do seu
amor é uma referência ao Reino de Deus
ou ao governo de Deus no tempo presente,
COLOSSENSES 1
antes da vinda do Senhor Jesus. 14 Nesse
Reino, em que Jesus Cristo é Senhor, há
redenção; ou seja, há liberdade para os que
estão espiritualmente cativos (o preço pago
é a morte de Jesus; Ef 1.7; lPe 1.18). Essa
redenção, que os colossenses já têm, está
intimamente vinculada à remissão de pe-
cados. "A redenção liberta do poder do pe-
cado; a remissão, da culpa" (D. Guthrie).
1.15·20 Jesus Cristo, o Senhor
da criação e da reconciliação
No fim do v. 14, com sua referência à re-
missão de pecados, o discurso de Paulo
passa da oração e das ações de graças para
um trecho magnífico (algumas vezes deno-
minado "hino") de louvor a Cristo como
Senhor da criação e da reconciliação. Trata-
se de um parágrafo fundamental, visto que
temas extraídos dele são aplicados por
toda a carta (cf 1.19 com 2.9 e 1.20 com
2.15). Embora se trate de uma passagem
em louvor a Cristo, é surpreendente que os
nomes "Jesus", "Cristo" e "Senhor" não
apareçam. O trecho simplesmente começa
com Este é.... Contudo, fica bastante óbvio
que tais palavras de louvor dizem respeito
ao Senhor Jesus Cristo. Elas não são apli-
cáveis a ninguém mais. Muito se tem dis-
cutido sobre se Paulo não teria apresentado
um "hino" da época em sua carta. Isso é
possível, mas, se for o caso, todo o resto
da carta foi escrito em tomo desse hino e
o foco na supremacia de Cristo visa for-
talecer os leitores e corrigir os conceitos
errôneos dos falsos mestres. A despeito de
quem a tenha escrito, a passagem se encai-
xa perfeitamente nos propósitos do apósto-
lo para a sua epístola aos colossenses.
1.15-17 O Senhor da criação. 15 A
expressão imagem do Deus invisível assi-
nala que a natureza e o caráter do próprio
Deus foram perfeitamente revelados em
Jesus Cristo. Nele o invisível tomou-se
visível. Ninguém jamais viu a Deus, mas
o Deus Filho o fez conhecido (Jo 1.18). A
humanidade, como o ápice da criação, foi
feita à imagem de Deus (Gn 1.26,27). Por
COLOSSENSES 1 1904
toda a eternidade, Jesus, em sua própria
natureza, tem sido a imagem de Deus. Em
português, a palavra imagem pode sugerir
uma cópia que não seja perfeita; mas o ter-
mo grego original, que envolve uma reve-
lação, não implica isso. Jesus, que é per-
feitamente semelhante ao Pai, revela quem
ele é em toda a sua virtude (cf Pv 8.22). Se
uma pessoa quer saber como é Deus, pre-
cisa buscar nas Escrituras e descobrir tudo
sobre Jesus, pois ele nos mostra perfeita-
mente como o Pai é.
O primogênito de toda a criação. No
AT a palavra primogênito aparece mais de
130 vezes, descrevendo alguém que é su-
premo ou vem antes no tempo. O termo
também se referia àquele que tinha um lu-
gar especial no amor do pai: "Israel é meu
filho, meu primogênito" (Êx 4.22). Apesar
de "primogênito" também significar o pri-
meiro de uma série (cf v. 18; Rm 8.29),
esse não pode ser o sentido aqui. O contex-
to deixa claro que Jesus é o primogênito
porque todas as coisas foram criadas por
meio dele (v. 16). Infelizmente, hoje em
dia a palavra "primogênito" não transmite
claramente essa noção de supremacia ou
prioridade de posição. Como primogênito,
Cristo é único e diferente de toda a criação
(cf Hb 1.6). Ele é tanto anterior à criação
quanto supremo sobre toda ela, visto que
ele é o seu Senhor.
16 A posição exclusiva de Cristo sobre
a criação é então explicada: pois, nele, fo-
ram criadas todas as coisas. Ele obviamen-
te não pode fazer parte da criação, uma vez
que todas as coisas foram feitas por ele. A
voz passivaforam criadas indica que Deus
é o Criador, enquanto nele indica Cristo
como o instrumento. (Uma outra leitura de
nele sugeriria que Jesus é o âmbito no qual
a criação ocorre, inteiramente dependente
dele). A linguagem de Paulo foi extraída
de Gênesis I e da literatura sapiencial ve-
terotestamentária, em que ele é chamado
de "arquiteto" (Pv 8.30). Para Paulo, esse
"arquiteto" não é uma figura de linguagem,
mas a pessoa celestial de Cristo que se
encontrou com ele na estrada para
Damasco. A expressão todas as coisas
é expandida em uma frase paralela para
[todas as coisas] nos céus e sobre a terra,
as visíveis e as invisíveis. Então, referin-
do-se especialmente às falsas doutrinas
em Colossos, Paulo enfatiza que mesmo
os poderes e autoridades espirituais, quer
bons ou maus, estão sujeitos a Cristo como
criador. São listadas quatro classes: tronos,
soberanias, principados e potestades. Da
mais elevada à mais inferior, todas foram
criadas nele, por meio dele e para ele. O
ensino de que Cristo é o objetivo final de
toda a criação (Tudo foi criado [.,,] para
ele) não encontra paralelo na literatura de
sabedoria ou em qualquer outra fonte ju-
daica. É preciso lembrar que aquele que foi
crucificado como um criminoso comum,
Jesus Cristo, é a mesma pessoa para quem
toda a criação e, por conseguinte, toda a
história se move.
17 Por Jesus existir antes de todas as
coisas, ninguém poderia dizer com razão,
como disse Ário, o herege do século n:
"Houve um tempo em que ele não exis-
tia". Como o preexistente (10 8.58), Jesus
é Senhor sobre o universo. O enfático Ele
corresponde ao solene "Eu" do AT, que se
refere a Jeová, o próprio Senhor. Nele, tudo
subsiste. Toda a criação está assentada per-
manentemente nele. Ele sustenta o univer-
so e é o princípio unificador da vida. Sem o
seu sustento contínuo (indicado pelo tem-
po verbal no grego), tudo desmoronaria
(cf Hb 1.2,3). Embora a linguagem utiliza-
da seja semelhante à dos estóicos, a decla-
ração de Paulo é diferente da alma-mundo
dos estóicos que inclui tudo e todos. Todos
os homens e mulheres, quer reconheçam
ou não, estão em débito para com o Senhor
Jesus como criador e sustentador. Pois ele
não apenas fez todas as pessoas que vêm
ao mundo, mas sustenta a vida delas a cada
dia, dando vida e alento a cada uma. Os
que estão "em Cristo" e portanto o conhe-
cem de forma pessoal devem expressar por
meio de uma vida piedosa sua gratidão para
 1905
com ele, como quem os criou e sustenta. Os
que não o honraram nem lhe deram graças
(Rm 1.21) são exortados a se arrepender e
a se voltar para ele em fé.
1.18-20 Senhor da reconciliação. A
atenção agora passa do âmbito da criação
para o relacionamento de Cristo com a
igreja e seu senhorio sobre a reconciliação.
Em outras epístolas Paulo utiliza a metá-
fora da igreja como um corpo, para falar
sobre os relacionamentos interpessoais e
as obrigações dos membros da igreja (Rm
12.4,5; lCo 12.12-27), nas quais a "cabe-
ça" do corpo não recebe nenhuma honra
especial; ela é considerada como os demais
membros (1Co 12.21). Em Colossenses e
Efésios, porém, dá-se ênfase ao relacio-
namento que a igreja, como o corpo de
Cristo, tem com ele, como a "cabeça".
18 Com as palavras ele é a cabeça do cor-
po, da igreja, recebe destaque especial a
centralidade da pessoa de Cristo em relação
ao seu povo. O fato de ele ser cabeça apon-
ta para um relacionamento vivo e íntimo
com eles, no qual ele governa o seu povo
da mesma forma que a cabeça de um corpo
influencia suas outras partes. O ser cabeça
também se refere à dependência total que
os membros da igreja têm dele para terem
vida e poder. A igreja não é algum tipo
de congregação universal, espalhada pelo
mundo, à qual todos os crentes pertencem;
mas uma assembleia celestial, reunida em
tomo de Cristo. Mesmo ao cuidarem de
suas tarefas do dia a dia, todos os cristãos
são membros dessa assembleia nos céus
em virtude da comunhão que têm com ele.
Cristo é o princípio no sentido de que é o
primogênito de entre os mortos; ou seja, o
fundador de uma nova humanidade. A era
da ressurreição irrompeu entre nós, e como
o primeiro a ressuscitar dentre os mortos
(aqui, primogênito significa o primeiro de
uma série), sendo ele "as primícias" que
garantem a ressurreição futura dos demais
(lCo 15.20,23). O "hino" já havia falado
anteriormente sobre a primazia de Cristo
na criação e agora fala sobre sua primazia
COLOSSENSES 1
na ressurreição. Tanto na antiga como na
nova criação, a "preeminência" (ARe) per-
tence exclusivamente a ele.
19 A razão da primazia dele é clara-
mente explicada: Jesus Cristo é "o locus"
em quem aprouve a Deus residir em toda
a sua plenitude. Todas as virtudes e ativi-
dades de Deus - seu Espírito, palavra, sa-
bedoria e glória - são perfeitamente reve-
lados em Cristo. Além disso, esse "habitar
corporalmente" em Cristo (cf 2.9) não é
temporário, mas permanente. Como Cristo
é o único mediador entre Deus e a huma-
nidade e já havia estabelecido um relacio-
namento entre os cristãos de Colossos e
seu Pai, eles não precisavam temer aqueles
poderes sobrenaturais, sob cujo controle os
seres humanos supostamente viviam. Nem
nós precisamos temer poderes semelhantes
hoje em dia.
20 O clímax do parágrafo vem com a
referência à reconciliação e à pacificação
por meio da morte de Cristo. O início do
parágrafo já disse que todas as coisas fo-
ram criadas em Cristo, por meio dele e
para ele. Ele é o Senhor da criação. O que
contudo não é explicitado é o que aconte-
ceu com todas as coisas desde a criação: a
unidade e a harmonia do cosmos haviam
sido seriamente prejudicadas e precisavam
de reconciliação (cf Gn 3). Aprouve a
Deus reconciliar consigo o mundo por in-
termédio de Cristo (2Co 5.19). Céus e ter-
ra foram restaurados à ordem definida por
Deus. O universo está sob o domínio do
seu Senhor e a paz cósmica foi restaurada.
Reconciliar e "fazer a paz" (que envolve a
ideia de trazer a paz; ou seja, vencer o mal)
são expressões usadas como sinônimos
para descrever a obra poderosa que Cristo
realizou na história por meio da sua morte
na cruz (Rm 3.25; 1Co 11.25; Ef 1.7). A
paz trazida por Cristo pode ser "livremente
aceita ou [...] compulsoriamente imposta"
(F. F. Bruce). Os principados e potesta-
des sobre quem Deus triunfou (2.15) não
se renderam voluntariamente à sua graça.
Eles foram "apaziguados". Continuam a
COLOSSENSES 1
existir e se opõem a homens e mulheres
(cf Rm 8.38,39), mas no fim das contas
não podem prejudicar alguém que esteja
em Cristo. Sua queda é certa (lCo 15.24-
28; v. comentário de 2.15). Além disso,
não se pode deduzir a partir desse versícu-
lo que todos os homens e mulheres ímpios
aceitaram livremente a paz alcançada pela
morte de Cristo. Mesmo que no final todo
joelho se dobre diante de Jesus e o reco-
nheça como Senhor (Fp 2.10,11), não de-
vemos supor que todos ficarão felizes com
isso. Sugerir que o v. 20 aponta para uma
reconciliação universal, na qual todas as
pessoas acabarão por desfrutar as bênçãos
da salvação, não tem nenhum fundamento.
1.21-23 Reconciliação
conquistada e aplicada
Falando diretamente aos leitores (vós),
Paulo observa que a obra pacificadora de
Cristo, que envolve a reconciliação do
universo, refere-se particularmente a eles.
21 Outrora, éreis [...] agora, porém (v. 22).
Faz-se aqui um contraste acentuado entre
o passado e a posição presente desse povo
em Cristo. A natureza grave da situação em
que se encontravam apenas serve para en-
fatizar o quão maravilhosa fora a poderosa
e graciosa ação de Deus ao reconciliá-los;
ou, em outras palavras, ao tomá-los seus
amigos. Antes da sua conversão, eles eram
estranhos, sem nenhuma harmonia com
Deus, prisioneiros da idolatria e escravos
do pecado. Opunham-se a Deus em sua
forma de pensar, e isso evidentemente po-
dia ser visto em suas obras malignas.
22 Agora, porém soa como um toque
de trombeta. Deus agira poderosamente
em favor deles: ele os tinha atraído para
um novo relacionamento e transformara
suas atitudes. Tudo isso tinha sido conse-
guido pelo corpo da sua carne [de Cristo],
mediante a sua morte. Essa é uma expres-
são bem calculada, com o fim de demons-
trar com clareza que Jesus se tomou verda-
deiramente homem (contrariando o ensino
falso de que ele apenas parecia ser homem)
1906
e realmente morreu. A reconciliação dos
colossenses com Deus teve o objetivo de
prepará-los para o último dia, quando eles
comparecerão para apresentar-se perante
ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis.
Como homens e mulheres que são perdo-
ados e reconciliados, eles são declarados
irrepreensíveis (cf Rm 8.33,34), sem falta
ou mácula (cf Ef 1.4; 5.27; Fp 2.15) na-
quele último dia.
23 Sua perseverança na fé serve para
demonstrar a realidade dessa fé, de modo
que a passagem é concluída com uma con-
dição. Se é fato que os santos vão perse-
verar até o fim, é igualmente verdadeiro
que os santos precisam perseverar até o
fim. Tal qual um edifício erguido sobre um
alicerce sólido e firmado sobre vigas for-
tes, os leitores devem permanecer fiéis ao
evangelho, sem se afastar do firme funda-
mento de sua esperança cristã. A afirma-
ção de que o evangelho de Paulo (que se
fundamenta nessa esperança) é a verdadei-
ra mensagem de Deus é demonstrada pelo
seu apelo universal. Ele já foi pregado em
todas as aldeias e cidades importantes do
império - Paulo não quer dizer que todas
as pessoas já o ouviram.
1.24-2.5 A missão de Paulo e
as suas preocupações pastorais
Depois de afirmar que é um servo do evan-
gelho (v. 23), Paulo fala sobre o ministério
que lhe foi dado por Deus entre os gentios,
inclusive os colossenses, descrevendo-o de
diversas formas (v. 24-29). Apesar de não
ter conhecido pessoalmente grande parte
dos seus leitores (2.1), ele se identifica com
eles ao compartilhar as aflições de Cristo a
favor da igreja (24) e dessa forma é capaz
de lhes escrever como o faz.
24 Como um apóstolo, Paulo se regozi-
ja em seus sofrimentos a favor dos colos-
senses que, aliás, são a favor do corpo [de
Cristo], que é a igreja. Esses sofrimentos
são parte integrante das aflições de Cristo.
E não se trata de sua morte na cruz ou de
sofrimentos vicários, que foram "concluí-
 1907
dos", mas das aflições do seu povo, as
quais ele suporta. A expressão as aflições
de Cristo deve ser compreendida em rela-
ção ao AT e à luz da cultura judaica, com
suas ideias sobre as aflições do tempo do
fim. Essas aflições eram denominadas "as
dores de parto do Messias", cujos sofri-
mentos e angústias deveriam ocorrer antes
da volta do ungido de Deus, o Messias. No
NT elas têm lugar entre a primeira e a se-
gunda vindas de Jesus. O Cristo exaltado
está nos céus e antes de voltar sofre na vida
dos seus membros; quanto mais então na
vida do próprio Paulo (At 9.4). Tais afli-
ções eram limitadas por Deus, e a cota es-
tará completa antes que venha o fim. Todos
os cristãos participam desses sofrimentos,
pois é por meio deles que entramos no
Reino de Deus (At 14.22; lTs 3.3,7). Sofrer
com Cristo é essencial para que possamos
ser glorificados com ele (Rm 8.17). Com
os sofrimentos que suporta em sua própria
carne, Paulo contribui para a soma total do
que resta. Quanto mais ele sofre, menos os
colossenses precisam sofrer.
25-27 O ministério de Paulo é uma
dispensação ("missão", NTLH) que lhe foi
dada em conformidade com os planos de
Deus para o evangelho. Ele é um despen-
seiro (lCo 4.1) a quem foi confiada essa
responsabilidade (lCo 9.17). Ele não tem
como fugir dessa responsabilidade solene,
mas deve desempenhá-la obedientemente.
Como despenseiro dos mistérios de Deus,
espera-se que ele seja fiel (l Co 4.2). Sua
missão especial era divulgar a palavra
de Deus. Dar pleno cumprimento sugere
que Paulo, ao "completar" a sua pregação,
mormente em relação aos gentios, estava
contribuindo para o cumprimento final dos
propósitos salvíficos de Deus (cf ls 55.11).
A mensagem nada mais era que o misté-
rio de Deus, seu "segredo revelado", antes
oculto; este agora, todavia, à luz das suas
ações em Cristo, tinha sido revelado (Rm
16.25; Ef 3.3). A expressão riqueza da
glória indica que o mistério é magnífico
em todos os aspectos: partilha do caráter
COLOSSENSES 1
do próprio Deus (daí glória) e nele Deus
derramou as suas bênçãos sobre homens
e mulheres, particularmente os gentios. A
essência desse mistério é Cristo em vós
[entre os colossenses]. Por intermédio de
Epafras, Cristo foi pregado a eles. Eles
o receberam como Senhor, e Jesus agora
vive neles. Como membros do seu corpo,
eles têm a vida de Cristo em si e, com ela,
uma esperança certa e segura (3.4).
28 Na sua pregação missionária Paulo e
os seus companheiros trabalhavam energi-
camente para "anunciar" - palavra impor-
tante em relação ao evangelho ou a alguns
elementos dele (lCo 9.14; Fp 1.17,18)
- Cristo como o Senhor. O esforço evan-
gelístico daqueles homens não consistia em
pregações superficiais da mensagem salva-
dora de Cristo ao mundo; antes, eles cons-
tantemente "advertiam" e "ensinavam"
cada pessoa (esses verbos, juntamente com
"anunciar", estão no presente no texto bí-
blico). O grupo apostólico procurava fazer
discípulos e discípulas, a todos edifican-
do em situações pastorais. Por três vezes,
Paulo escreve a todo homem ("a cada um"),
ressaltando que o ensino cristão é para to-
dos e que o oficio apostólico está relacio-
nado ao cuidado individual com cada alma
(cf 1Ts 2.11,12). As suas responsabilidades
não terminavam com a conversão do indiví-
duo, de modo que eles tinham o objetivo de
apresentar todo homem perfeito em Cristo
no último dia, quando a qualidade do seu
ministério seria testada. As suas preocu-
pações também estavam voltadas para as
congregações bem estabelecidas e estáveis,
cujos membros eram fortes na fé. As metas
evangelísticas e pastorais de Paulo servem
de modelo para os que estão envolvidos em
um ministério verdadeiramente apostólico
hoje em dia.
29 Para isso Paulo dá tudo de si no seu
ministério no evangelho. Afadigo indica
um esforço intenso, enquanto "combaten-
do" (ARe), uma palavra talvez ainda mais
forte, era por vezes utilizada em relação
a lutas e disputas fisicas. Paulo de bom
COLOSSENSES 2 1908
grado reconhece que a força para esse es-
forço vem do alto. Deus, que demonstrara
seu grande poder ressuscitando Cristo de
entre os mortos, opera poderosamente nele
no seu labor.
2.1 Gostaria, pois, que soubésseis.
Depois de falar de forma genérica sobre o
serviço apostólico (1.24-29), Paulo passa a
falar diretamente aos colossenses. Ele al-
meja estreitar seus laços com eles e conta
que sua luta pelo evangelho está especial-
mente relacionada a eles e aos outros cris-
tãos daquela região, apesar de jamais tê-los
encontrado pessoalmente. (As igrejas em
Colossos, Laodiceia e Hierápolis haviam
sido fundadas pelo seu companheiro,
Epafras; 1.7; cf 4.12).
2,3 O propósito da sua atividade apos-
tólica era fazer com que a vida deles fos-
se fortalecida. Vinculado juntamente em
amor indica que, à medida que fossem
unidos pelo amor, eles alcançariam plena
compreensão e entendimento. O verbo, po-
rém, poderia significar "instruído", como
está na Septuaginta. Visto que o contexto
implica conhecimento e sabedoria, e Paulo
está menos preocupado com a necessida-
de de união entre os colossenses do que
com a sua orientação na fé contra o falso
ensino, "ensinado" ou "instruído" seria o
mais adequado. Amor, em toda a sua am-
plitude, refere-se, portanto, à base da vida
cristã. Todos os tesouros da sabedoria e
do conhecimento: a mesma palavra que
é aqui traduzida por "tesouros" é utiliza-
da em 1.27 em relação às riquezas espiri-
tuais. Aqui, porém, essa riqueza consiste
em uma convicção esclarecida que resulta
do discernimento; ou seja, a capacidade
de distinguir entre o verdadeiro e o falso.
Dessa forma, eles atingirão um conheci-
mento pessoal mais profundo de Cristo.
Provavelmente com um olho no falso ensi-
no, Paulo encoraja os seus leitores a olhar
para Cristo como o único "lugar" em que
esses tesouros da sabedoria podem ser en-
contrados. Ocultos não significa "escondi-
dos", mas "depositados" ou "guardados"
(cf 1.26). É inútil buscar conhecimento em
outras fontes que não Cristo.
4 Aqui o perigo enfrentado pela igreja é
claramente mencionado pela primeira vez.
Ninguém é utilizado, via de regra, com o
sentido de "qualquer pessoa". Paulo não
indica alguém em particular que fosse a
fonte da falsa doutrina, embora o perigo se
apresente por meio de raciocínios aparen-
temente verdadeiros que na realidade são
falsos. 5 Paulo não está presente fisica-
mente naquela comunidade. Se lá estives-
se, trataria pessoalmente daquela situação
terrível. O Espírito de Deus, contudo, unira
tanto ele como os colossenses a Cristo (cf
lCo 5.3-5). Como vivem juntos em Cristo,
Paulo está presente em espírito ao lado de-
les. Ele os incentiva com as boas notícias
que ouviu sobre o comportamento cristão
exemplar da comunidade, que, juntamente
com a firmeza de umafé dinâmica voltada
exclusivamente para Cristo, eram motivo
de regozijo para o apóstolo. Essas palavras
elogiosas indicam que a congregação está
essencialmente sólida e que o falso ensino
ainda não fizera tanto progresso.
2.6-15 O remédio para o erro:
Cristo em toda a sua plenitude
6,7 Esses versículos ocupam uma posição
central na carta, funcionando como uma
espécie de pivô. Eles resumem o que já foi
escrito e estabelecem as bases para o ataque
à falsa doutrina (8-23). Cristo Jesus, que os
colossenses receberam como Senhor quan-
do se converteram, é o Senhor da criação
e da redenção (1.15-20) e está no cerne do
mistério de Deus (1.27). Recebestes é um
termo técnico que trata de "receber uma
tradição" e aqui denota que eles acolheram
tanto a sua pessoa como o ensino confiável
a respeito dele. A vida cristã exige deles que
sigam tal qual começaram, logo os leitores
são exortados a andar nele (cf 1.10; Gl
5.16). Doutrina e comportamento, teologia
e ética, são coisas que andam juntas. 7 Para
encorajá-los em seu crescimento cristão,
eles são lembrados de que por Deus eles
 1909
foram "radicados" firmemente em Cristo e
que continuarão a ser edificados nele (cf
1Coríntios 3.6-11) e fortalecidos na fé, tal
como fostes instruídos (observe os verbos
na voz passiva). Mesmo agora, Deus opera
poderosamente; então, à medida que vi-
vem sob o senhorio de Cristo, eles devem
crescer em ações de graças. Cristo Jesus
é mais do que suficiente para enfrentar os
perigos da falsa doutrina. Que a forma de
viver e pensar deles se conforme continua-
mente ao ensino dele.
8-15 Paulo dá o primeiro de muitos
alertas (v. 8) e apresenta uma explicação
positiva da obra de Deus em Cristo e da
união dos colossenses com ele em sua
morte, sepultamento e ressurreição (9-15).
8 Os colossenses devem se manter atentos,
evitando ser afastados da verdade e enreda-
dos pelo erro. Vos venha a enredar signifi-
ca "raptar", e o método utilizado por esses
falsos mestres é a marca da sua filosofia (v.
Introdução), um tanto atraente e enganado-
ra. Assim como a tradição, ela também tem
uma aparência de dignidade, autoridade e
revelação, mas Paulo rejeita qualquer su-
gestão de origem divina, visto tratar-se de
algo meramente humano. A palavra grega
stoicheia ("princípios elementares", NVI)
pode ser uma referência a "principados e
potestades"; ou seja, aquelas forças demo-
níacas que oprimem homens e mulheres. O
pior de tudo é que aquele ensino se opunha
diretamente a Cristo. O legalismo de hoje
em dia, com a justificação pelas obras ou
quaisquer ensinos que desvalorizem a obra
salvífica de Cristo na cruz, pode ser utili-
zado pelos poderes das trevas para levar
homens e mulheres para debaixo da escra-
vidão espiritual.
9,10 Duas razões são apresentadas para
explicar o porquê de aquela filosofia ser
oposta a Cristo. Em primeiro lugar, Cristo
é aquele em quem habita, corporalmente,
toda a plenitude da Divindade. O falso
ensino não reconhecia isso. Plenitude era
provavelmente um bordão dos falsos mes-
tres para descrever o Deus eterno, que só
COLOSSENSES 2
poderia ser alcançado por meio de media-
dores. Em um pensamento gnóstico mais
recente (baseado no "conhecimento para
iniciados"), Cristo era visto como o últi-
mo na linha de mediadores. Paulo, porém,
afirma que a plenitude da divindade habita
diretamente em Cristo e que essa situação
é permanente. A expressão corporalmente
(que poderia significar "de fato" ou "como
realidade concreta", em oposição a uma
mera aparência), é mais bem compreendi-
da como "assumindo uma forma corpórea"
e como uma referência à encarnação. A
plenitude só pode ser encontrada em Cristo
e não por meio da submissão aos "elemen-
tos do universo" ou pela observância de
regras. 10 Em segundo lugar, esse falso
ensino se opunha a Cristo porque os leito-
resjá haviam sido cheios nele; ou seja, ao
se unirem a Cristo, eles tinham recebido a
plenitude da salvação. Eles, portanto, não
precisavam se submeter aos poderes espi-
rituais do universo ou observar certas re-
gras para alcançar tal plenitude, como era
exigido pelo falso ensino. Aquele no qual
aqueles fiéis eram completos é o cabeça;
ou seja, o governante de todo principado e
potestade (cf 1.18).
11 A temática da união em Cristo per-
siste na medida em que Paulo descreve
como os crentes estão relacionados aos
eventos do evangelho, que seriam a morte
o sepultamento e a ressurreição de Cristo
(11-13). Não está clara a razão da inclu-
são da circuncisão aqui, uma vez que ela
não parece ter sido uma exigência dos
falsos mestres (como ocorrera nas igrejas
da Galácia). Fosse esse o caso, seria de es-
perar que ela fosse criticada nos v. 16-23.
Talvez os colossenses estivessem confusos
acerca da questão. A circuncisão de Cristo
é uma forma figurada de se referir à sua
crucificação, enquanto "despojamento do
corpo da carne" seria mais bem entendido
como a descrição de uma morte violen-
ta (embora alguns vejam essa expressão
como uma referência ao despojamento da
velha natureza do cristão). Os colossenses
COLOSSENSES 2
também eram circuncidados nele ou, em
outras palavras, haviam morrido com
Cristo na morte dele. Ao contrário da cir-
cuncisão judaica, a deles não fora feita por
intermédio de mãos, mas era uma obra di-
vina, na qual o próprio Deus transformara
a vida velha em algo novo.
12 Assim como o sepultamento de
Cristo (lCo 15.4) selou a sua morte,
também o sepultamento dos colossenses
com ele no batismo demonstra que eles
estavam verdadeiramente envolvidos na
sua morte e com ele foram sepultados.
Uma morte real havia ocorrido, de forma
que a vida antiga era coisa do passado
(Rm 6.4). A ressurreição de Cristojá tinha
acontecido, de forma que a ressurreição
dos colossenses com ele também era um
evento passado. A participação do cren-
te na vida do Cristo ressurreto é expressa
claramente em Colossenses e Efésios (cf
3.1; Ef 2.6), enquanto o poder de Deus é
aquele mesmo poder que trouxe Cristo de
volta dos mortos e agora vivifica e capaci-
ta todos os membros do corpo de Cristo.
13,14 Nesse ponto há uma mudança de
perspectiva: os colossenses já não são vis-
tos como os que se uniram a Cristo na sua
morte, sepultamento e ressurreição. Paulo,
em vez disso, contrasta o seu passado pa-
gão com o presente. O termo mortos fala
sobre o estado de separação de Deus como
condição atual daqueles que não estão em
Cristo. Essa condição terrível tinha uma
causa: as vossas transgressões e [...] in-
circuncisão da vossa carne. As transgres-
sões são atos de rebeldia contra Deus, en-
quanto carne fala sobre um estado de de-
sobediência permanente. Os colossenses
tinham sido tanto perversos como ímpios.
Agora, porém, em virtude da morte de
Cristo, Deus os tinha vivificado nele. Ele
graciosamente perdoou todas as "nossas"
transgressões (tanto de judeus como de
gentios) e, por consequência, a causa da
morte espiritual foi extinta. Deus não ape-
nas quitou a dívida, mas também destruiu
o documento em que ela estava registrada.
1910
(Cheirographon, o escrito de dívida, sig-
nifica uma confissão de dívida escrita de
próprio punho pelo devedor). Os judeus
haviam concordado em obedecer a lei e,
no caso deles, infringir a aliança significa-
va a morte (Dt 27.14-26; 30.15-20). Paulo
também considera que os gentios estavam
condenados, por meio da própria consciên-
cia deles, à obrigação semelhante para com
a lei moral, na medida da sua compreensão
(Rm 2.14,15). A obrigação não havia sido
paga por nenhum dos grupos, logo, per-
manecia contra nós, em função das orde-
nanças que a acompanhavam. Tratava-se
de um débito impossível de quitar, mas
Deus cuidou dele, pondo-lhe fim e cance-
lando-o ao pregá-lo na cruz. Essa é uma
maneira marcante de dizer que, por causa
da crucificação de Cristo, o nosso débito
foi completamente esquecido.
15 A palavra da cruz era uma mensagem
de esperança para aqueles que viviam com
medo dos poderes maléficos sobrenaturais.
Aqueles principados, que controlavam o
escrito de dívida, mantinham-nos sob o
seu controle. Usando a figura da marcha
triunfante de um conquistador, na qual os
prisioneiros eram exibidos para enaltecer o
vencedor, Paulo afirma que Deus derrotou
e despojou as potestades de sua autoridade.
Ao expô-los publicamente [...] ao despre-
zo, ele ("Deus" e não "Cristo") mostrou ao
universo a vulnerabilidade deles e levou-
os "em si mesmo" (ARe) ou seja, em Cristo
e não na cruz (como aqui na ARA), em sua
marcha triunfal, para que todo o mundo
visse a grandeza da sua vitória.
2.16-23 A libertação
do legalismo
Em um parágrafo que alude ao ensino e
aos lemas daquela filosofia, Paulo formula
uma "carta de alforria cristã". Uma teologia
enganosa leva a práticas enganosas! Ideias
equivocadas sobre a "plenitude" e a obra
de Cristo (que o apóstolo corrige nos v. 8-
15) correspondem a práticas equivocadas.
As críticas de Paulo contra essas práticas
 1911
errôneas e os próprios falsos mestres são
bastante duras.
16,17 Segundo o falso ensino, acredita-
va-se que os colossenses só alcançariam a
"plenitude" como cristãos se observassem
rigorosamente os preceitos alimentares e
os dias especiais da fé judaica. Essas re-
gras severas de autonegação eram, contu-
do, sombra das coisas que haviam de vir.
Cristo e a sua nova ordem são a realidade
perfeita para a qual esses primeiros man-
damentos apontavam.Tal realidade já ha-
via sido estabelecida, de modo que aquelas
sombras já não tinham autoridade sobre eles
e eles não podiam ser julgados com base
nelas. Hoje em dia, qualquer regra acerca
de alimentos ou festivais religiosos como
exigências para o crescimento cristão está
sujeita à mesma crítica severa. 18 Contra
os falsos mestres, que se gabavam de suas
experiências espirituais exclusivas, a críti-
ca de Paulo é veemente. Temos dificuldades
para compreender a rejeição do apóstolo
em relação às afirmações dos falsos mes-
tres, uma vez que o nosso conhecimento
das práticas deles é apenas parcial. Paulo
cita adágios do falso ensino que funda-
mentavam a posição e a postura orgulhosa
daqueles mestres: Ninguém se faça árbi-
tro [condene] (cf v. 16). Humildade aqui
significa "autonegação" e descreve jejuns
e outros rigores físicos que eram práticas
de autossacrifício no judaísmo, observân-
cias místicas que lhes permitiriam receber
visões dos mistérios celestiais. Culto dos
anjos não diz respeito a uma adoração diri-
gida aos anjos, mas à "adoração [de Deus]
realizada pelos anjos". Baseando-se em vi-
sões (Literalmente: "coisas que se contem-
pla ao adentrar") é o terceiro lema da 'fi-
losofia'. Os falsos mestres aparentemente
afirmavam que, além de se unirem àquela
adoração dos anjos, tinham também pene-
trado na esfera celestial e se preparado para
receber visões dos mistérios divinos. Eles,
portanto, reafirmavam sua superioridade
espiritual com base nessas experiências
de enlevo. Enfatuado, sem motivo algum,
COLOSSENSES 2
na sua mente carnal. A crítica de Paulo
é mordaz: aquela postura e mentalidade
eram próprias da carne. Aqueles mestres
se gabavam de serem guiados pela mente.
A resposta de Paulo é: "Sim, mas trata-se
de uma mente carnal!". À sugestão de que
eles estavam familiarizados com a "pleni-
tude" divina, Paulo responde que eles esta-
vam cheios do seu próprio orgulho! 19 Sua
crítica mais severa é que, ao utilizarem as
suas próprias experiências religiosas como
base para a sua autoridade, eles estavam na
verdade rejeitando Cristo como o seu ca-
beça. Ele é a fonte de vida e o suprimento
que nutre o corpo; ele é o fator de união
que o toma um organismo completo.
20,21 Se os colossenses fossem viti-
mados por aquelas falsas doutrinas e aca-
bassem por se sujeitar a regras e regula-
mentos, como não toques, não proves, não
manuseies, as quais foram impostas por
principados e potestades, então isso sig-
nificaria voltar à escravidão e ao cativeiro
sob os mesmos poderes do universo dos
quais eles haviam sido libertos ao morre-
rem com Cristo na morte dele. Nem todos
os cristãos são imunes às superstições, que
podem exercer mais influência que sua
própria fé. 22 Os assuntos cobertos por
essas proibições diziam respeito a objetos
perecíveis do mundo material (como comi-
das ou bebidas), que deixariam de existir
após consumidos. Além disso, essas proi-
bições, que tinham um quê de judaísmo,
não passavam de invenções humanas (lite-
ralmente: "segundo os preceitos e doutri-
nas dos homens"; cf Is 29.13; Me 7.7), que
frustravam o puro ensino de Deus com sua
mensagem libertadora. 23 Tais preceitos,
como os mencionados no v. 21, traziam
uma aparência de sabedoria nas esferas
da "adoração voluntária" (ARe; culto de
si mesmo, ARA), da humildade e do rigor
ascético, mas não correspondiam à reali-
dade. Tal sabedoria era uma fachada, imi-
tando a sabedoria verdadeira que só pode
ser encontrada em Cristo (2.3; cf 1.15-20).
Os propósitos desses preceitos, embora
COLOSSENSES 3 1912
parecessem bons e envolvessem grande
autodisciplina, não valiam absolutamente
nada. As proibições não lidavam com o
problema da permissividade no campo da
sensualidade.
3.1-4 Buscar as coisas do alto
Esse parágrafo breve é de grande rele-
vância na carta (cf 2.6,7). Trazendo tanto
orientações como incentivos, ele encerra
a parte da epístola em que Paulo ataca a
"filosofia" dos falsos mestres e apresenta
uma alternativa verdadeira ao ensino falso.
A passagem agrupa os temas previamente
mencionados (2.11-13,20) e apresenta o
fundamento teológico das palavras de en-
corajamento que se seguem.
1,2 Em uma contrapartida positiva de
2.20, o v. 1 afirma que os colossenses já
ressuscitaram com Cristo. Eles agora com-
partilham da vida ressurreta dele, de modo
que seu viver deve ser diferente. Todos os
seus interesses devem estar em Cristo. A
sua mente, os seus objetivos, ambições,
em suma, todo a atenção deles deve estar
voltada para o reino celestial governado
por Cristo, ao qual a vida deles pertence
de fato. É necessário que façam um esfor-
ço contínuo (literalmente: "dediquem-se
sempre"), pois tal enfoque não surge au-
tomaticamente. O cristão fiel deve sempre
avaliar se a sua forma de vida e ambições
condizem com o alvo para o qual Deus o
chamou, ou seja, o próprio céu, onde Cristo
está. Esse reino lá de cima deve ser buscado
diligentemente (ao contrário da falsa busca
de experiências celestiais promovida pelos
defensores da "filosofia" colossense), por-
que é lá que Cristo está, assentado como rei
em um lugar de honra. (Sobre a ascensão
de Cristo à direita de Deus, v.Atos 2.33-35;
Romanos 8.34; Efésios 1.20).
3 Paulo fundamenta a sua recomen-
dação pensai nas coisas lá do alto (v. 2)
em dois aspectos. Em primeiro lugar, eles
haviam morrido para aquela velha ordem
com os seus poderes espirituais, práticas
de autonegação, regulamentos escravizan-
tes, experiências com visões e adorações
inúteis voltadas para si mesmos. Além
disso, sua nova vida estava oculta junta-
mente com Cristo, em Deus. Com Cristo
porque eles se haviam juntado a ele em sua
morte e ressurreição, e em Deus porque o
próprio Cristo tem sua vida guardada "em
Deus"; os que lhe pertencem se colocam
na mesma posição. Estar em Deus significa
que a vida deles está oculta e segura, longe
das mãos de quem quer que seja. 4 A nova
vida que eles têm em Cristo não é visível
às outras pessoas e, em certa medida, está
oculta para eles mesmos. Essa vida só será
completamente evidente quando Cristo,
que é tal vida, vier na sua segunda vinda.
Aliás, o dia da revelação do Filho de Deus
será o dia da revelação dos filhos e filhas
de Deus. Essa revelação se dará em gló-
ria, visto que nos tomaremos semelhantes
a Cristo e receberemos a ressurreição glo-
riosa do corpo.
3.5-11 Deixar para trás
os pecados do passado
Quando os exorta a ter uma mente voltada
para as coisas do céu (l,2), Paulo não está
dizendo que os cristãos devem viver nas
nuvens! Na verdade, colocar a sua mente
nas coisas do alto resulta na obediência
verdadeira aos seguintes princípios: fazei,
pois, morrer (v. 5), despojai-vos (v. 8), não
mintais (v. 9) e revesti-vos (v. 12). Em efei-
to, todo o trecho que vai de 3.5 a 4.6, um
tratado de educação cristã, deriva de 3.1-4.
O fiel que tiver sua mente voltada de fato
para as coisas do céu fará uma grande di-
ferença na terra! A guerra entre a carne e o
Espírito prossegue até o último dia e nós
somos exortados pelo apóstolo a nos es-
forçarmos em nossa vida cristã, ao mesmo
tempo em que ansiamos pela adoção final,
a redenção do nosso corpo.
S "Mortificai" (ARe) traz à mente a união
deles com Cristo em sua morte (2.20; 3.3;
cf 2.11,12). Visto que morreram com ele,
devem,pois, dar um fim a todos os hábitos
e pensamentos malignos. Duas listas, cada
qual com cinco pecados (também no v. 8)
1913
e semelhantes às encontradas entre os mo-
ralistas pagãos e na argumentação antipagã
dos judeus, são sucedidas por cinco graças
no v. 12. Os cinco pecados de seu passado
pagão estavam associados à sua natureza
terrena (literalmente: "os membros que
estão sobre a terra"). Paulo praticamen-
te identifica esses membros por meio dos
pecados cometidos por eles, primeiro des-
crevendo a expressão exterior do pecado
(prostituição) e, em seguida, os desejos
mais íntimos do coração (desejo maligno).
É dada uma ênfase especial ao perigo da
avareza como sendo um "pecado grossei-
ro" visto que ela é equiparada à idolatria.
Tal pessoa, ao invés de concentrar sua vida
nas coisas do alto, onde Cristo governa
como Rei, busca as coisas da terra. Ela,
portanto, serve e presta culto às criaturas e
não ao Criador (Rm 1.25). Paulo conhecia
o grande perigo desse pecado (Rm 7.7,8;
cf Mt 6.24). Talvez o seu grande perigo es-
teja no fato de ele poder assumir inúmeras
formas respeitáveis. Afinal, aquelas coisas
que não possuímos, mas desejamos arden-
temente, não são apenas "necessidades"?
Enganamo-nos a nós mesmos e transfor-
mamos as nossas necessidades em ídolos.
6 Aqui, como em muitas outras partes,
a lista dos pecados pagãos é apresentada
no contexto do juízo de Deus. A ira de
Deus (cf Rm 1.18-32) descreve a sua santa
fúria contra o pecado e o juízo resultante.
Ela nada tem que ver com reações vinga-
tivas ou arroubos passionais. Também não
se trata de um processo imutável de causa
e efeito. É mais precisamente a reação da
santidade de Deus contra toda a injustiça.
É que vem indica que Deus castiga o peca-
do tanto no presente como no dia final.
7,8 Comparando o passado com o
presente, Paulo mostra aos leitores que o
comportamento deles precisava ser intei-
ramente diferente do seu passado pagão.
Anteriormente, a vida deles era caracteri-
zada pelos mesmos vícios que provocam
a vinda da ira de Deus. (Acerca do uso do
COLOSSENSES 3 . . .
verbo "andar" para descrever a vida cristã,
.
leia o comentário de 1.10). 8 Eles haveriam
de se despojar (literalmente: "jogar fora")
dos seus hábitos antigos e repulsivos, in-
cluindo seu palavreado torpe, como quem
se despoja de um saco de roupas velhas. A
ira e a indignação destroem a harmonia dos
relacionamentos humanos. Maldade é ter-
mo genérico que define uma força maligna
que destrói a comunhão entre os irmãos. A
maledicência aqui significa que o insulto
contra a pessoa humana pode levar a blas-
fêmias contra Deus (Rm 2.24; 1Tm 6.1).
A linguagem obscena, o último pecado da
sequência, deve ser interrompida antes de
ser proferida.
9 São apresentados dois motivos para
que os caminhos malignos sejam abando-
nados. Em primeiro lugar, eles, os colos-
senses, se despiram do velho homem com
os seus feitos. A expressão velho homem
diz respeito à personalidade integral de um
indivíduo governado pelo pecado (cf Rm
6.6; Ef 4.22) e, ao mesmo tempo, indica
que a pessoa participa da velha e pecami-
nosa humanidade em Adão. Os feitos in-
cluem as duas listas de pecados nos v. 5 e
8. Uma vez que eles já foram despojados
daqueles pecados na morte de Cristo, os
colossenses não devem ter mais nada a ver
com a mentira e os demais hábitos repulsi-
vos mencionados.
10 Em segundo lugar, o velho homem
foi substituído pelo novo homem. O novo
homem significa a nova natureza com que
cada colossense foi revestido ao se juntar
a Cristo em sua ressurreição. No original
aparece simplesmente "o novo" (cf NVI),
mas a expressão é também traduzida por
"nova natureza" (NTL) e representa ainda
uma figura que se refere coletivamente à
nova humanidade em Cristo (Cf 2Co 5.17;
Gl 6.15). A imagem do Criador serve de
modelo ou padrão para a renovação da nova
pessoa-umarenovaçãoquetememvistao
crescimento progressivo dos leitores no
verdadeiro conhecimento, o que inclui a
capacidade deles de reconhecer a vontade
COLOSSENSES 3 1914
e ordem de Deus (cf 1.9). A imagem da-
quele que o criou (cf Gn 1.27), à luz de
1.15 onde Cristo é louvado como "a ima-
gem do Deus ...", significa que a recriação
que Deus está fazendo da humanidade é
"segundo o padrão de Cristo, que é a seme-
lhança absoluta de Deus" (C. F. D. Moule).
Há uma ideia semelhante em Romanos
8.29 (cf lCo 15.49) em que a mudança
dos cristãos é para que sejam "conformes
à imagem de seu Filho". 11 Nessa nova
humanidade não há inferioridade de uma
classe à outra. Homens e mulheres de ori-
gens totalmente diferentes são reunidos
em Cristo, compartilhando da lealdade co-
mum para com o seu Senhor. Cristo é tudo
que importa; ele habita em todos os mem-
bros do seu corpo, independentemente de
raça, classe ou pano de fundo, dando-lhes
vida e poder.
3.12-17 Revestir-se com
as virtudes de Cristo
Com o imperativo Revesti-vos (12), come-
ça o apelo positivo. O termo introdutório
pois mostra que essa seção, que está em
contraste com os v. 5-11, também é uma
continuação de 3.1-4. Uma lista quíntupla
de virtudes (12) contrasta com as duas lis-
tas quíntuplas de males (5,8) do parágrafo
precedente. Tendo falado da nova nature-
za no v. 10, Paulo indica o que quer dizer
com ISSO.
12 Como eleitos de Deus que já se re-
vestiram da "nova pessoa", os colossenses
devem "revestir-se" com as virtudes que
mostram que eles são diferentes. Eleitos
de Deus, santos e amados são títulos es-
peciais que foram usados com respeito a
Israel como propriedade exclusiva de Deus
no AT (e.g., Is 43.20; 65.9), e a Cristo no
NT ("o escolhido", Lc 23.35; "o Santo",
Mc 1.24; Lc 4.34; "meu Filho amado", Mt
3.17). O seu uso aqui ressalta o aspecto da
semelhança do cristão com Cristo. É Jesus
o escolhido. Que privilégio extraordinário
é, então, sermos chamados da mesma ma-
neira que Cristo! Esse é um motivo forte
para nos comportarmos de maneira seme-
lhante a Cristo.
As cinco virtudes de que o crente deve
se revestir são vistas em outros trechos
como características de Deus ou de Cristo
(e.g., SI 25.6; Jr 33.11; Mt 9.36; 2Co 1.3),
e mostram como os eleitos de Deus devem
se comportar na maneira de tratar os ou-
tros, particularmente os irmãos em Cristo.
Três delas, bondade, mansidão e longani-
midade estão na lista de frutos do Espírito
em Gálatas 5.22.
13 Como resultado do revestir-se com
a paciência eles devem mostrar clemência
constante uns aos outros. Quando surgem
queixas legítimas na comunidade, os lei-
tores são estimulados a perdoar uns aos
outros. Paulo emprega um verbo especial
para perdoar (traz a ideia de "cancelar as
dívidas" na parábola dos dois devedores,
Lc 7.42), usado em outros trechos com
referência à generosidade ou ao perdão
de Deus (Rm 8.32; lCo 2.12; Ef 4.32).
O tempo verbal presente deixa claro que
esse perdão deve ser incessante, mesmo
incansável (observe o ensino de Jesus, Mt
18.22). A razão e motivo para essa respos-
ta são da maior relevância: Assim como o
Senhor vos perdoou. A poderosa obra da
reconciliação de Cristo (1.22) é a base na
qual se fundamenta esse perdão de peca-
dos, enquanto o pleno impacto do sacrifi-
cio de Cristo na cruz é proposto como mo-
delo do estilo de vida ao qual o crente se
"conforma".
14 Se cada uma das virtudes mencio-
nadas anteriormente é considerada uma ca-
racterística de Deus ou Cristo, então isso se
aplica especialmente àdo amor (cf lCo 13.4
acerca da noção de que o amor reflete cla-
ramente o caráter de Cristo). Acima de
tudo isso pode dar a ideia de "sobre todas
as outras 'peças de que se reveste' " (C. F.
D. Moule). Em Gálatas 5.6 o "amor" é a
força motriz da fé e em lCoríntios 13.13
ele é a virtude cristã suprema. Que é o vín-
culo da perfeição pode sugerir que o amor
é o vínculo que une e conecta todas as vir-
 1915
tudes mencionadas anteriormente no v. 12.
A expressão da perfeição, no entanto, pro-
vavelmente denota propósito: o amor é o
vínculo que conduz à perfeição. Ele reúne
e conecta os membros da congregação (e
não as virtudes do v. 12) em unidade no
corpo de Cristo, produzindo, assim, a per-
feição. Essa interpretação está em concor-
dância com o interesse de Paulo pela vida
comunitária dos leitores.
15 Esse versículo tem sido um dos
prediletos dos cristãos porque com base
nele se afirma que a paz de Cristo agirá
como um tipo de árbitro em nosso cora-
ção, dando-nos uma paz pessoal e interior
quando precisarmos de ajuda para tomar
uma decisão. Mas paz de Cristo não é
uma referência à paz pessoal ou interior.
Em vez disso, é a paz que ele personifica
e traz (cf Jo 14.27) e é equivalente à sal-
vação. Além disso, não é uma questão de a
paz de Cristo "agir como árbitro". Antes,
o verbo significa governar; o próprio
Cristo, que é o Senhor da paz (cf Ef 2.14;
2Ts 3.16), deve estar presente e governar
no seu meio. Ele deve controlar todas as
áreas da vida deles, enquanto eles se rela-
cionam uns com os outros. Visto que se diz
que os colossenses foram chamados para
essa paz (pelo evangelho), então ela tam-
bém precisa descrever o âmbito ou a esfera
em que eles, como membros do corpo de
Cristo, agora vivem.
16 Numa carta que destaca a pessoa e
obra de Cristo, Paulo se refere à palavra
de Cristo, e não à "palavra de Deus" (1.25)
ou à "palavra do Senhor" (lTs 4.15). De
Cristo poderia significar que o próprio
Cristo é o que fala quando a sua palavra é
proferida, mas provavelmente se refere à
mensagem que está centrada em Cristo, a
palavra da verdade, i.e., o evangelho (1.5).
Essa palavra deve ter sua primazia gracio-
sa e gloriosa na vida deles, tanto individual
quanto comunitariamente. O rico habitar da
palavra de Cristo (cf Rm 8.11; 2Co 6.16;
2Tm 1.5 acerca do habitar do próprio Deus,
do Espírito Santo e da fé) deve ocorrer
COLOSSENSES 3
quando eles se reunirem, ouvirem essa
palavra enquanto lhes for exposta e se
curvarem diante da sua autoridade. Os
colossenses devem ensinar e advertir uns
aos outros de forma cuidadosa e carinho-
sa nas suas atividades por meio de salmos,
hinos e cânticos inspirados pelo Espírito,
enquanto estiverem louvando a Deus com
todo o seu ser. Salmos, e hinos, e cânticos
espirituais é uma expressão ampla e inclui
salmos do AT, hinos litúrgicos bem como
cânticos cristãos espontâneos.
17 O parágrafo é resumido de uma ma-
neira que cobre todos os aspectos da vida.
Cada atividade deve ser realizada em obe-
diência ao Senhor Jesus e acompanhada
de ações de graças a Deus Pai (observe a
referência tríplice à gratidão nos v. 15-17).
Seja em palavra, seja em ação não se refe-
re às práticas litúrgicas da "pregação" e da
"ceia do Senhor" no contexto da adoração,
mas explica o amplo tudo. Se o rico habitar
da palavra de Cristo na vida dos leitores
deve ser mostrado em ensino e advertên-
cia mútuos, na forma como os colossenses
cantam a Deus em gratidão, então também
deve mostrar sua presença poderosa em to-
das as áreas.
3.18-4.1 O comportamento
no lar cristão
Esse parágrafo trata dos relacionamentos
dentro do lar cristão. Conselhos semelhan-
tes estão em Efésios 5.22-6.9; lTimóteo
2.8-15; Tito 2.1-10; lPedro 2.18-3.7.
Essas "admoestações aos membros de
casa" podem ter feito parte da seção mais
ampla de ensino doutrinário e ético - um
antigo catecismo cristão, facilmente me-
morizado e ensinado aos recém-conver-
tidos. Esses versículos regulamentam os
padrões de comportamento dentro do lar
cristão e são uma continuação do v. 17.
O parágrafo contém muitas referências ao
Senhor, indicando que toda a vida, incluin-
do pensamentos e conduta, deve ser sub-
metida ao Senhor Jesus Cristo. Nenhuma
área da vida está fora do controle dele;
COLOSSENSES 3
assim não há distinção final entre o sagrado
e o secular. Uma vida governada de cima,
onde Cristo está reinando (3.1-4), é a vida
no casamento, no âmbito dos demais laços
familiares e no trabalho cotidiano. Três ins-
truções duplas são dirigidas sucessivamen-
te a esposas e maridos (18,19), filhos e pais,
especialmente pais [homens] (20,21) e fi-
nalmente escravos e senhores (3.22--4.1)
- desde o relacionamento mais íntimo até
o mais distante. Em cada caso a palavra é
dirigida à esposa, ao filho ou escravo pri-
meiro, e eles são considerados um parceiro
responsável de quem se espera que cada
um faça "como convém no Senhor".
18 Às esposas, como agentes livres e
responsáveis, se pede que sejam submis-
sas voluntariamente cada uma a seu pró-
prio marido visto que isso é totalmente
apropriado (como convém tem um tom
estoico, mas a motivação é inteiramen-
te cristã). No Senhor significa dentro da
nova comunidade dos que reconhecem a
Cristo como Senhor. A submissão aponta
para o chamado da mulher em honrar e
apoiar a liderança do marido e ajudá-lo a
exercer o seu papel na família. Não é uma
rendição absoluta da vontade dela, pois
Cristo é a autoridade absoluta sobre ela,
não o marido. 19 O paralelo é a respon-
sabilidade do marido de amar sua esposa.
Ele recebe a ordem de amá-la, e isso não
é simplesmente uma questão de sentimen-
tos afetivos por ela ou de sentir-se sexu-
almente atraído por ela. Antes, envolve
cuidado e serviço amorosos e incessantes
pelo pleno bem-estar dela. (Cf Ef5.25-33
em que o amor de Cristo pela igreja deve
ser o modelo para o amor do marido por
sua esposa). A liderança sacrificial e se-
melhante à de Cristo por parte do marido
manterá em vista o bem supremo de sua
esposa em todas as ocasiões. Ele, assim
como líderes piedosos em outras esferas,
procurará liderar por meio do serviço.
Portanto, o marido não deve se amargurar
contra sua esposa, seja em pensamento,
palavra ou atos.
1916
20 Paulo se dirige aos filhos cristãos
como membros responsáveis na congrega-
ção (o que é notável) e insiste com eles: em
tudo obedecei (é uma palavra mais forte do
que "ser submisso" no v. 18) a vossos pais.
Isso será uma expressão da sua obediência
a Cristo como mostram as palavras seguin-
tes: pois fazê-lo é grato diante do Senhor
("pois isso agrada ao Senhor", NVI). 21 Ao
mesmo tempo, os pais (aqui especialmente
os homens) não devem irritar ou provocar
seus filhos para que estes não fiquem de-
sanimados ou então pensem que é inútil
tentar agradar aos pais na vida familiar.
Deve haver condução firme e amorosa, não
escravidão (cf Ef 6.4).
3.22-4.1 A série mais longa de instru-
ções é dirigida aos escravos (cf Ef 6.5-9),
talvez refletindo o costume social das igre-
jas (sobre a escravidão no século I ver car-
ta a Filemom). Paulo não faz comentário
algum sobre esse costume do século I, mas
dá encorajamento especial aos escravos
cristãos. O ensino nessa seção se aplica
igualmente ao trabalho feito hoje e mostra
que a motivação de um trabalhador e o seu
padrão de trabalho deve ser o mais eleva-
do possível, visto que é feito para a causa
de Cristo. 22 Os escravos cristãos devem
aceitar a sua posição como escravos e obe-
decer (cf v. 20 em relação a "filhos") aos
seus "senhores terrenos" (NVI) em tudo. O
seu serviço não deve ser superficial nem
feito de forma que chame atenção; em vez
disso, devem servir em singeleza de co-
ração, i.e., de forma conscienciosa e com
motivação pura. 23-25 Ao se engajarem no
serviço sério e dedicado aos seus senhores,
nesse mesmo ato estão servindo ao seu
Senhor celestial. Eles devem manter em
vista o seu alvo final: um escravo normal-
mente podia esperar castigo do seu senhor
terreno no final do dia. Este Senhor é di-
ferente, pois ele dá a recompensa de uma
herança eterna de vida na era por vir. Ao
mesmo tempo, eles devem estar cientes de
que com esse juiz não há acepção de pes-
soas; o seu juízo sobre a desobediência é
 1917
tão certo quanto a recompensa pela fideli-
dade. 4.1 Uma advertência breve mas séria
é dirigida aos senhores. Eles não recebem
a ordem de libertar os seus escravos, mas
de tratá-los de forma justa e correta. Amo-
tivação é basicamente a mesma que a do
escravo para obedecer ao seu senhor: eles
têm igualmente um Senhor no céu que é
maior que ambos. Ambos devem obediên-
cia a esse Senhor celestial. Assim, os seus
relacionamentos uns com os outros devem
ser compreendidos à luz disso.
Se o ensino claro de Paulo sobre os
privilégios do lar cristão e suas exigências
fossem levadas a sério pelos cristãos do
século XXI, os relacionamentos pessoais
dentro das famílias e lares seriam verda-
deiramente um antegosto do céu. Enquanto
isso, os outros, vendo como esses cristãos
se amam uns aos outros, podem ser atraí-
dos para aquele que os cristãos reconhe-
cem como seu Senhor.
4.2-6 Palavras finais de incentivo
Esse breve parágrafo, com o seu incentivo
à oração e ações de graças (2-4) e as suas
orientações sobre como os colossenses de-
vem se comportar nos seus relacionamen-
tos com os de fora (5,6), conclui essa seção
da carta.
2-4 Paulo com frequência incentiva os
seus leitores à oração e intercessão regular
(cf Rm 12.12; Ef6.18; Fp 4.6) e pede que
orem por ele no seu trabalho precioso de
propagação do evangelho (Rm 15.30-32;
2Co 1.11; Ef 6.19; Fp 1.19; lTs 5.25). Ele
claramente atribuía grande importância às
orações mútuas dele e de seus convertidos.
Ele já assegurara aos seus leitores colos-
senses que pedia constantemente por eles
(1.9-14); ele agora conclui incentivando-os
a orar regularmente por ele. 2 Eles devem
"perseverar" em oração. Particularmente o
clamor "Maranata" ("Vem, Senhor") deve
estar nos lábios e no coração deles enquan-
to esperam ansiosamente a vinda gloriosa
de Cristo (3.4). Ações de graças, a expres-
são exterior de gratidão a Deus, o Pai, por
COLOSSENSES 4
ter agido de forma tão generosa e decisiva
no seu Filho a favor deles (cf 1.12-14),
deve acompanhar essa petição. 3,4 Paulo
pede que eles coloquem a ele e seus coo-
peradores (nós) diante do trono da graça,
orando que Deus [...] abra porta à palavra
da mensagem (cf lCo 16.9; 2Co 2.12) e
portanto ao mensageiro, o que bem pode
incluir a sua libertação da prisão. Como
apóstolo aos gentios, Paulo tem o grande
privilégio de tomar conhecido o mistério
divino preciosamente oculto, o "mistério
revelado" (1.26,27; 2.2,3). Ele agora pede
aos colossenses que orem ao Deus vivo
para capacitá-lo a apresentar esse mistério
divino de forma clara e direta.
5,6 Ao se voltar a princípios gerais de
conduta cristã, Paulo incentiva os seus lei-
tores a se comportar com sabedoria para
com os não cristãos. Aqui a sabedoria, que
está associada ao conhecimento da von-
tade de Deus (1.9) e à conduta digna do
Senhor (1.10), é essencialmente prática e
realista. Assim, eles devem agir com tato,
e ainda assim com ousadia, no seu teste-
munho cristão, aproveitando ao máximo
as oportunidades. Aproveitai sugere uma
atividade intensa, uma ação que explora
todas as possibilidades porque reconhecem
que o seu tempo é limitado. 6 Como os que
devem se comportar de forma sábia para
com os que são de fora, eles devem falar
palavras agradáveis e sábias, assim como
Paulo deseja que sejam as suas próprias
palavras. Eles estão recebendo a graça de
Deus. Que a graça seja evidente nas pala-
vras que disserem. Temperada com sal sig-
nificava "cheia de vida" no uso pagão, mas
aqui sugere linguagem que não é enfadonha
ou sem graça, mas sim interessante e bem
escolhida (os rabinos às vezes usavam o
termo "sal" com o significado de "sabedo-
ria"). Os cristãos precisam responder com
a palavra adequada àqueles que fazem per-
guntas que talvez estejam ligadas as suas
convicções e comportamento. A resposta
deve ser apropriada (cf lPe 3.15): "Cada
um deve ser tratado como indivíduo e não
COLOSSENSES 4
ser submetido a um discurso de massas"
(G. B. Caird).
4.7-18 Saudações pessoais
e orientações
Paulo termina a sua carta da forma comum,
com saudações e orientações pessoais. O
parágrafo inclui uma referência aos men-
sageiros que levarão a sua carta a Colossos
(7-9) e uma série de saudações de coopera-
dores que conhecem a igreja em Colossos
(10-14), além da sua própria saudação,
breves instruções e seu cumprimento final
(15-18).
7 Tlquico informará a igreja da situa-
ção pessoal do apóstolo (observe a for-
mulação semelhante em Ef 6.21,22). Ele
é um irmão especialmente amado e cole-
ga precioso de Paulo que prestara serviço
"confiável" a ele, aos colossenses ou a
Cristo (cf 1.7 sobre Epafras). No Senhor
pode significar "no serviço do Senhor",
ou então ser uma referência ao fato de que
ele realizara a sua tarefa como alguém
"no Senhor", i.e., como cristão. 8 Paulo
está enviando Tíquico com o expresso
propósito de dar aos colossenses notícias
do apóstolo e de imprimir o seu ensino no
coração dos colossenses para fortalecê-
los (v. comentário de 2.2).
9 Onésimo, natural de Colossos, é
o mesmo que é mencionado na carta a
Filemom. Ele também recebe uma reco-
mendação afetuosa de Paulo: o fiel e ama-
do irmão. Junto com Tíquico, ele informa-
rá os amigos de Paulo de tudo que aconte-
ceu. (Y. a descrição das circunstâncias de
Onésimo no comentário de Filemom).
10,11 Três cristãos judeus enviam
as suas saudações. Aristarco, natural de
Tessalônica e companheiro de viagens de
Paulo (At 19.29), é seu companheiro de
prisão (prisioneiro comigo), o que prova-
velmente significa que ele de fato estava
com Paulo na prisão, e não que era "pri-
sioneiro de Cristo" em sentido figurado.
Marcos, primo de Barnabé, a quem Paulo
tinha se negado a levar na segunda viagem
1918
missionária (At 15.36-41), depois da de-
serção dele na primeira viagem (At 13.13),
está claramente de bem com Paulo nova-
mente (cf 2Tm 4.11). A menção a Barnabé
sugere que ele era conhecido em Colossos.
Não sabemos se as instruções sobre Marcos
vieram de Paulo ou de outra pessoa (como
Pedro ou Barnabé), nem se Paulo as está
confirmando. Jesus, conhecido por Justo,
é no mais desconhecido. Esses primeiros
três são os únicos cristãos judeus que per-
maneceram como cooperadores fiéis de
Paulo pelo reino de Deus. Com frequência
nas cartas de Paulo a expressão reino de
Deus tem uma dimensão futura (e.g., 1Co
6.9,10; 15.50), mas Romanos 14.17 mostra
que tem também um aspecto presente (cf
Cl 1.13), e é esse o seu significado aqui.
12-14 Outros três, que são gentios (cf
v. 11), enviam saudações. Epafras é men-
cionado especialmente: Paulo destaca o re-
lacionamento próximo entre o seu próprio
ministério e o de Epafras. Como natural de
Colossos, ele tinha sido o evangelista da sua
região natal (como também de Laodiceia e
Hierápolis) e tinha se empenhado na mes-
ma luta pelo evangelho que Paulo (2.1; cf
Fp 1.30). Isso tinha encontrado expressão
particular em suas orações urgentes pelos
colossenses, para que eles se conservassem
perfeitos (o termo "perfeitos" toca num
ponto crucial em Colossos) e estivessem
plenamente convictos em toda a vontade
de Deus. Essa maturidade, que é a per-
feição esperada no último dia, é definida
ainda como: plenamente convictos em toda
a vontade de Deus. Epafras quer que eles
façam progresso aqui e agora e cheguem à
plenitude em Cristo no dia final. Somente
aqui ficamos sabendo que Lucas era mé-
dico. É principalmente com base nesse
versículo, que o separa dos cristãos judeus
mencionados no v. 11, que Lucas é con-
siderado um cristão gentio. Em 2Timóteo
4.10, lemos que Demas abandonou a Paulo
por "este século".
15-18 Nessa última seção, são envia-
das saudações a diversas pessoas. Pede-se
 1919
aos colossenses que enviem as saudações
de Paulo aos irmãos de Laodiceia, i.e., à
igreja dali (cf v. 16). Talvez Paulo qui-
sesse firmar as relações entre essas duas
congregações. Ninfa provavelmente é uma
mulher, e assim a NTLH estaria correta: "e
para a igreja que se reúne na casa dela".
16 Esse versículo fornece evidência im-
portante sobre a leitura pública das cartas
de Paulo na igreja e a troca de cartas entre
as igrejas. Se a chamada "heresia" estava
ameaçando a região toda, teria sido útil
para os de Laodiceia conhecer a resposta
que Paulo enviara a Colossos. A carta que
vai chegar de Laodiceia se perdeu, mas
foi supostamente escrita por Paulo àque-
la igreja. 17 Arquipo era membro da casa
COLOSSENSES 4
de Filemom, talvez o filho de Filemom e
Áfia, que se dedicou ao serviço do evange-
lho (v. comentário de Fm 2). Não está claro
qual era a obra que ele tinha para cumprir,
embora alguns tenham afirmado que era o
ministério da pregação.
18 Tendo terminado de ditar a carta,
Paulo toma a sua pena e acrescenta o cum-
primento pessoal na sua própria caligrafia.
Lembrai-vos das minhas algemas é um
apelo por oração continuada, que é tocante
por sua brevidade e simplicidade. Ele en-
tão conclui com sua saudação comum: A
graça seja convosco.
Peter T. O'Brien
 1TESSALONICENSES
INTRODUÇÃO
Tessalônica foi uma das cidades da Ma-
cedônia (a região norte da Grécia atual)
visitadas por Paulo e seus companheiros,
Silas e Timóteo, durante sua segunda via-
gem missionária (At 16-18). A cidade
era a capital de uma província romana,
um centro comercial situado à beira de
uma grande estrada, a Via Egnácia, com
uma população mista que incluía judeus.
Depois de ser forçado a partir de Filipos,
Paulo gastou um tempo breve aqui, con-
seguindo um bom grupo de convertidos
de frequentadores gregos e judeus na si-
nagoga; assim, estabeleceu uma igreja
ali. A oposição por parte dos judeus que
não aceitaram a mensagem forçou os
missionários a partir antes do planejado
(At 17.1-9). Paulo foi para o sul para a
região da Acaia e teve uma estadia breve
em Atenas e outra mais longa em Corinto.
De Atenas, enviou Timóteo de volta para
visitar as igrejas (ITs 3.1-6), e foi prova-
velmente de Corinto que ele lhes escre-
veu. A primeira carta aos tessalonicenses,
portanto, foi escrita alguns meses depois
de os leitores terem ouvido o evangelho
pela primeira vez, e deve ser lida como
uma carta de manutenção de contato a re-
cém-convertidos.
Nada se sabe da igreja durante esse
breve período entre a fundação e a escri-
ta da carta a não ser pelas alusões que ela
contém. A impressão que se tem é de uma
igreja que estava livre de grupos pregan-
do versões diferentes do evangelho (con-
traste-se com as igrejas da Galácia) e que
estava fazendo ótimo progresso no desen-
volvimento da fé e do amor. Paulo estava
preocupado se a igreja estaria firme para
resistir a ataques de fora, mas isso se devia
mais à sua fundação recente do que a algu-
ma fraqueza no seu fundamento.
O aspecto principal em que Paulo sen-
tiu necessidade de dar instruções foi o
concernente à vida futura (ou parousia) do
Senhor Jesus. Não que havia algum ensino
equivocado sendo ministrado, mas os cris-
tãos tessalonicenses não tinham absorvido
adequadamente o significado do ensino de
Paulo acerca da parousia e da ressurreição
dos mortos.
Os problemas e necessidades que de-
ram origem à carta são, portanto, os de
uma igreja na sua infância, que enfrenta
oposição de fora e tem deficiências no
ensino detalhado que Paulo teria minis-
trado se tivesse podido ficar mais tempo
entre eles. A carta sugere que a segun-
da vinda do Senhor tinha ocupado parte
proeminente na pregação de Paulo, e ele
certamente faz menção a ela com frequên-
cia notável na carta (1.9,10; 2.19; 3.13;
4.13-5.11; 5.23). No mais, a carta refle-
te as características típicas do pensamen-
to de Paulo, incluindo o uso distintivo
da expressão "em Cristo" (e expressões
semelhantes) para descrever a natureza
da vida cristã. Algumas das ideias mais
características de Paulo, especialmente
a doutrina da justificação pela fé, estão
ausentes, mas isso pode ter ocorrido sim-
plesmente porque nada na situação exigia
o uso do ensino que é particularmente
associado à polemica contra a ênfase ju-
daica nas obras da lei.
A carta é aceita universalmente como
genuína. Há quem argumente que ela tem
um molde peculiar, e houve tentativas de
explicar esse aspecto como uma combina-
ção de dois ou mais documentos ou como
 1921
um documento que sofreu interpolações,
mas essas teorias são certamente mais en-
genhosas do que convincentes. A carta faz
sentido admirável na sua presente forma.
Essa primeira carta aos tessalonicen-
ses tem o padrão comum das cartas de
Paulo em que começa com uma saudação
(1.1), que é seguida de um relato de como
Paulo lembra da igreja nas suas orações.
Ele agradece a Deus a forma em que a
vida e o testemunho cristãos duradouros
da igreja testificam da realidade da reação
positiva dos seus membros à pregação ini-
cial do evangelho feita pelo apóstolo (1.2-
10). Esse relato tem o efeito de confirmar
que a igreja está com boa saúde espiritual
e assim também de prover aos leitores o
encorajamento para que continuem no
caminho que estão trilhando. Em segui-
da, Paulo comenta a natureza da sua obra
missionária na cidade, argumentando que
ele e os seus companheiros agiram de for-
ma correta e amável em tudo que ali rea-
lizaram (2.1-12). Isso pode sugerir que os
oponentes da igreja estivessem engajados
na difamação dos missionários. Apesar
dessa oposição, a igreja tinha recebido o
evangelho de braços abertos (2.13-16). A
continuação da hostilidade à igreja desde
a partida de Paulo o tinha preocupado de
tal forma que ele tinha desejado voltar para
ver como estavam as coisas; em vez disso,
enviara Timóteo como seu representante
(2.17-3.13). Assim, a primeira parte da
carta está ocupada com o bom progresso
da igreja apesar da oposição, e ajuda a for-
talecer os laços entre o autor ausente e os
seus leitores.
ESBOÇO
1.1 Saudação inicial
1.2-10 Ação de graças
2.1-16 O procedimento dos missionários em Tessalônica
2.17-3.13 A preocupação contínua de Paulo pela igreja
1TESSALüNICENSES
No restante da carta, Paulo dá à igreja
o tipo de ensino e conselho prático que ele
queria ter compartilhado com eles pessoal-
mente. Em primeiro lugar, ele encoraja os
leitores a viver vida santa - com referên-
cia especial à fuga à imoralidade sexual -
e a continuar crescendo no amor (4.1-12).
Em segundo lugar, ele conforta os que es-
tavam atemorizados em virtude do destino
daqueles entre eles que tinham falecido, e
o faz ao lhes dizer que quando o Senhor
retomar, acontecerá a ressurreição, assim
que os que "adormeceram" em Cristo vi-
rão com ele e serão reunidos com os que
ainda estão vivos. Os crentes não precisam
se preocupar sobre quando isso vai acon-
tecer; se eles estão realmente "despertos"
como cristãos, não serão tomados de sur-
presa como o mundo incrédulo (4.13-
5.11). Finalmente, Paulo encoraja a vida
em comunidade da igreja ao incentivar o
amor fraternal e o uso dos dons espirituais
(4.12-24), e encerra a carta com saudações
pessoais (5.25-28).
Leitura Adicional
J. R. W. The Message of Thessalo-
STOTT,
nians. BST. Inter-Varsity Press, 1991.
MüRRIs, L. The Epistles of Paul to the
Thessalonians. TNTC. Inter-Varsity
Press/UKlEerdmans, 1977.
_ _o The First and Second Epistles to
the Thessalonians. NICNT. Eerdmans,
1977.
BRucE, F. F. 1 and 2Thessalonians. WBC.
Word,1982.
MARSHALL, I. H. 1 e Z'Iessalonicenses.
SCB. Vida Nova, 1984.
HESSALONICENSES 1
4.1-12 Encorajamento para o progresso ético
4.13-5.11 Instruções e encorajamento acerca da segunda vinda de Jesus
5.12-24 Instruções para a vida na igreja
5.25-28 Pedidos e saudações finais
COMENTÁRIO
1.1 Saudação inicial
Nessa saudação, Paulo menciona a si
mesmo e dois amigos que tinham compar-
tilhado com ele a fundação da igreja em
Tessalônica e que agora estavam com ele.
Si/vano ou "Silas" (NTLH, NVI, mg.) era
membro judeu da igreja em Jerusalém,
além de cidadão romano (v. At 15.22-31).
Timóteo tinha se unido a Paulo e Silvano
quando estes passavam por Listra na Ásia
Menor no cumprimento da sua obra mis-
sionária (At 16.1-5). Não obstante o uso
da forma na primeira pessoa do plural
("nós") em grande parte da carta (contras-
te com 2.18; 3.5; 5.27), em geral se acre-
dita que o próprio Paulo foi o verdadeiro
autor que escreveu em nome do grupo de
missionários.
A igreja era um pequeno grupo de
crentes que se encontravam numa casa
ou talvez em algumas casas. Paulo com
frequência diz que os cristãos estão "em
Cristo" ou "no Senhor" ou fazem certas
coisas "nele". Essa expressão significa
que eles têm um relacionamento próximo
com Jesus e que sua conduta é determi-
nada por ele como o seu Senhor crucifi-
cado e ressurreto. Aqui Paulo acrescenta
o nome Deus Pai (cf 2Ts 1.1), indicando
que os cristãos também estão intimamente
relacionados a ele e estão debaixo da sua
autoridade. A forma espontânea em que o
Pai e Jesus são citados lado a lado mostra
como Paulo via a Jesus como o Filho que
compartilhava com o Pai a sua função de
fonte das bênçãos espirituais.
Graça e paz vêm do Pai e de Jesus
(2Ts 1.2). (Y. também artigo "Lendo as
cartas").
1922
1.2-10 Ação de graças
Paulo começa a maioria das suas cartas
contando como ele expressa gratidão nas
suas orações por aquilo que Deus está fa-
zendo na vida dos leitores. Esse relato de
oração toma evidente a sua própria preo-
cupação por seus amigos e também ser-
ve para encorajá-los na sua vida cristã. O
seu tema é a firmeza e energia com que os
leitores têm mantido a sua fé inicial e as-
sim se tomaram testemunhas para outras
pessoas. As três qualidades cristãs fun-
damentaisfé, amor e esperança (cf 5.8;
lCo 13.13; Cl 1.4,5) tinham ocasionado
esforços intensos e gerado firmeza apesar
da situação adversa.
4,5 Essa evidência confirmou o fato de
que Deus escolheu os leitores (vossa elei-
ção). Essa expressão indica não somente
que Deus os chamou pela pregação do
evangelho (2.12), mas também que eles
responderam a ele com fé (2.13). As pala-
vras humanas que expressaram o evange-
lho teriam sido inúteis não tivessem sido
acompanhadas pelo poder do Espirito e
por um sentimento resultante de convic-
ção e segurança por parte dos pregadores.
Esses fatores haviam convencido os ou-
vintes da verdade do evangelho e os capa-
citado a aceitá-la e colocá-la em prática,
como o demonstrou o seu comportamento
subsequente.
6-8 Os missionários, como o próprio
Jesus, tinham sido severamente atacados,
mas tinham resistido firmemente à oposi-
ção, sem ceder. Assim também os leitores
tinham recebido a mensagem, apesar da
tribulação, com o tipo de alegria que po-
dia ser atribuída somente ao Espírito Santo
na sua vida (cf Rm 5.5; 14.17; Gl 5.22).
Isso fez deles um modelo para outros cris-
 1923
tãos nas duas províncias romanas que equi-
valiam em termos gerais à Grécia atual, a
Macedônia e a Acaia. As notícias sobre a
conversão deles tinham se espalhado por
toda essa região, em parte pela obra evan-
gelizadora dos próprios leitores, e em parte
por outras pessoas falando sobre eles. Por
toda parte é uma expressão que denota de
forma ampla os lugares em que havia cris-
tãos. Paulo evidentemente deve ter conta-
do em um lugar o que estava acontecendo
com os crentes em outro (parte da confir-
mação da verdade das boas-novas [3.6] era
contar como Deus estava mudando a vida
das pessoas em muitos outros lugares),
mas nesse caso ele nem precisou fazê-lo.
9,10 A reação dos tessalonicenses ao
evangelho é resumida em três expressões que
sem dúvida refletem a linguagem da prega-
ção da igreja primitiva. Em primeiro lugar,
eles tinham deixado os ídolos. O apelo para
fazê-lo era parte obrigatória da mensagem
aos gentios, em contraste com a mensagem
aos judeus (cf At 14.15; 17.22-31). Em se-
gundo lugar, eles tinham se voltado ao Deus
vivo e verdadeiro para servi-lo. Visto que
algumas pessoas abandonavam a idolatria
meramente com base na crença de que não
havia deuses ou que eles não estavam inte-
ressados na humanidade, a mensagem cristã
tinha de ressaltar a alternativa positiva. Em
terceiro lugar, eles tinham depositado a sua
esperança em Jesus como o único liberta-
dor do juízo vindouro. Jesus, no entanto,
não era um simples homem para exercer
essa função. Ele tinha sido ressuscitado
dos mortos pelo poder de Deus, e por esse
ato Deus o estava declarando seu Filho (cf
At 17.31; Rm 1.3,4). A pregação judaica
aos gentios (que os cristãos naturalmente
assumiram) cobria os dois primeiros pon-
tos citados; essa era a característica distin-
tiva da mensagem cristã.
2.1-16 O procedimento dos
missionários em Tessalônica
A parte principal da carta começa com
o tratamento do tópico mencionado em
1TESSALONICENSES 2
1.5,6. Os missionários, e na verdade todas
as testemunhas cristãs, são peculiarmente
vulneráveis à crítica, e por isso precisam
fazer ainda mais esforços para viver, e ser
vistos como vivendo, de forma tal que não
os exponha à crítica. A conduta de Paulo
como missionário em Tessalônica parece
ter sido criticada na ausência dele, aparen-
temente por pessoas fora da congregação,
e ele se defende agora de diversas acusa-
ções possíveis.
Havia tantos mestres da religião e filo-
sofia viajando pelo mundo romano fazen-
do o que podiam dos seus leitores que era
necessário aos missionários ressaltar que
suas motivações e métodos eram muito
diferentes dos dos seus rivais menos escru-
pulosos. Encontramos paralelos das críti-
cas e da resposta a eles aqui registradas nos
escritos de alguns dos filósofos antigos que
também se queixavam de que estavam sen-
do acusados injustamente. Basicamente,
os missionários estavam sendo acusados
de explorar os seus seguidores e de viver
à custa deles. Todos os seus apelos aos
recém-convertidos eram considerados for-
mas de enganá-los e assim levá-los a pagar
aos missionários altas honrarias - e altos
honorários ou presentes caros.
1,2 Paulo apela às lembranças dos
próprios leitores sobre a visita dos missio-
nários (sabeis, vos recordais são expres-
sões-chave nos v. 1,2,5,9,11). Eles podiam
ver por si mesmos que a obra missionária
não tinha sido infrutífera (lit. "vazia"), no
sentido ou de ter sido oca e desprovida de
conteúdo ou de não ter conduzido a resul-
tados profundos. Antes, tinha sido um ato
de coragem diante de oposição em Filipos
(At 16.19-40) e da própria Tessalônica
(cf 1.6; 2.14-16; 3.3,4).
3-6 Mais uma demonstração da verda-
deira natureza do evangelismo estava no
fato de que não se baseou no engano com
relação ao evangelho. Nem resultou de
impureza ("motivos impuros", NVI), como
ambição ou avareza (em vez da - mas não
excluindo a - imoralidade sexual), ou da
HESSALONICENSES 2 1924
tentativa de enganar os ouvintes para que
aceitassem a mensagem (cf os missioná-
rios suspeitos em 2Co 11.13). Antes, os
missionários tinham sido como que tes-
tados por Deus antes de serem aprovados
para a sua força-tarefa, e as suas motiva-
ções estavam constantemente sob exame.
Por isso, eles estavam conscientes da ne-
cessidade de corresponder aos padrões de
Deus e assim rejeitavam meios suspeitos
de persuasão (e.g. alterar o evangelho para
tomá-lo mais aceitável).
O seu propósito era agradar a Deus e
não a sua plateia, não porque fossem indi-
ferentes à sua plateia ou às necessidades
desta, mas antes porque o seu critério não
era o sucesso do ponto de vista humano.
Por isso, não fizeram uso de bajulação
nem propuseram motivos falsos para
acobertar uma motivação real que seria
a ganância para obter dinheiro dos seus
convertidos. Outra acusação possível era
que estavam buscando glória das pesso-
as dentro e fora da igreja. É verdade que
enviados ("apóstolos" NVI) ou missio-
nários podiam exigir certos privilégios
como seus direitos, como por exemplo
o direito de serem obedecidos pelos seus
convertidos e de serem sustentados, nas
suas necessidades financeiras, pelas igre-
jas. Aqui provavelmente o primeiro as-
pecto está em vista. (Sobre a rejeição de
Paulo do segundo, v. 2Ts 3.9; lCo 9.4-14;
2Co 11.7-12). Os apóstolos podiam ao
menos ter insistido na sua autoridade
(embora se o tivessem feito teriam con-
trariado o princípio enunciado por Jesus,
Lc 22.24-27), mas não o tinham feito.
7 Na verdade, eles tinham sido cari-
nhosos (gr. êpioi; os manuscritos melhores
trazem nêpioi, "bebês" ["crianças", NTLH],
mas a duplicação acidental da letra "n" do
final da palavra anterior provavelmente
levou à inserção dessa palavra menos ade-
quada). Missionários ou pastores preci-
sam ser como um pai no seu cuidado pelos
seus convertidos (11), mas aqui a figura
de uma "mãe" (NVI; gr. ama, mas o sen-
tido tencionado é de fato "mãe") ressalta
de forma mais intensa o cuidado temo da
atitude paternal.
8 Essa atitude é descrita em termos da
afeição que se expressa no desejo de dar
presentes. O maior presente do ponto de
vista cristão é o evangelho de Deus, mas
do ponto de vista humano é compartilhar o
nosso mais profundo íntimo com alguém,
como dois amantes gostariam de fazer.
9 O desejo de mostrar amor e não colo-
car um peso sobre os convertidos deveria
ser visto no trabalho duro realizado pelos
missionários. Eles tinham trabalhado não
somente durante o dia, mas também à noi-
te (sem dúvida na confecção de tendas ou
no trabalho com couro; At 18.3) a fim de
obter dinheiro para seu sustento enquan-
to estavam pregando. A ajuda de Filipos
(Fp 4.16) não era suficiente por si só. Paulo
associa a sua filosofia de trabalho com suas
mãos (cf 4.11; 2Ts 3.7-10; At 18.3; 20.34)
aqui principalmente ao seu desejo de não
depender dos seus convertidos ou de fazer
dinheiro à custa deles e não tanto à gera-
ção de oportunidades para encontrar pes-
soas no seu ofício ou a mostrar que ele não
estava envergonhado do trabalho honesto
(embora v. 2Ts 3.8).
10-12 Paulo conclui a sua argumenta-
ção no apelo à própria experiência dos lei-
tores de que os missionários tinham vivido
de forma correta e os haviam tratado de
maneira paternal. O seu interesse principal
tinha sido encorajar uma forma de vida que
era adequada a pessoas chamadas por Deus
para o seu reino e à esperança de comparti-
lhar a sua glória.
13 Que a visita dos missionários não
havia sido infrutífera (l) também deveria
ser constatado na forma em que os ouvintes
tinham ouvido a mensagem. A mensagem
de Paulo era frequentemente denunciada
como sendo constituída simplesmente de
suas próprias ideias humanas, e por isso ele
era grato sempre que pessoas reconheciam
que ele estava ensinando uma mensagem
que vinha do próprio Deus (cf Gll.l1,12).
 1925
Essa mensagem continha um poder ineren-
te de mudar a vida daqueles que a ouviam.
14-16 A prova disso deveria ser vista
na maneira em que os convertidos tinham
demonstrado o mesmo espírito que os
primeiros cristãos na Judeia que tinham
sofrido ataques violentos dos seus conter-
râneos, os judeus. Exatamente da mesma
maneira, os tessalonicenses tinham sofrido
nas mãos dos seus próprios conterrâneos,
tanto gentios quanto judeus (At 17.5). O
próprio Paulo era judeu, e por isso tinha
um elo especial com o seu próprio povo,
desejando ardentemente que eles se voltas-
sem da sua cegueira para aceitar a Jesus
o Messias. Mas ele sabia muito bem que
a rejeição de Jesus levaria à rejeição por
parte de Deus daqueles que o rejeitassem,
e por isso ele fala aqui da ira de Deus vindo
completa e definitivamente sobre os judeus
pelo último e pior dos seus pecados numa
longa história de rejeição dos mensageiros
de Deus. Observe que Paulo está escreven-
do aqui acerca de um grupo especifico de
judeus, e não contradiz a esperança expres-
sa em Romanos 9-11 de que o povo judeu
voltará a Deus; a reação positiva ao evan-
gelho salva as pessoas da ira de Deus.
2.17-3.13 A preocupação
contínua de Paulo pela igreja
Tendo deixado Tessalônica antes do que
ele tinha desejado, Paulo queria retomar
o quanto antes, mas tinha sido impedido
por o que ele chama de oposição satâni-
ca (Satanás nos barrou o caminho, v. 18;
cf 2Co 12.7). Uma possibilidade é que em
virtude dos problemas que tinha havido
com os governantes da cidade, o próprio
Paulo estivesse proibido de voltar à cidade,
e nada tinha acontecido para mudar essa
posição. Parece que alguma crítica injus-
tificada contra Paulo estava no ar, e assim
ele ressalta a intensidade do seu desejo de
visitá-los novamente e de encorajá-los. Ele
se imagina aparecendo diante de Cristo no
dia do juízo, levando consigo essa igreja
como prova de sua fidelidade ao seu cha-
HESSALONICENSES 3 • •
•
l1li.
mado de missionário. A igreja seria como
uma coroa (18) simbolizando a sua obra
missionária eficaz, e por isso sua exis-
tência continuada era vital. Da mesma
forma, os seus convertidos eram a fonte
da alegria dele, para o próprio bem deles
- exatamente como um professor pode
ter prazer genuíno no sucesso de um pu-
pilo não meramente porque ele teve par-
ticipação na obtenção desse sucesso, mas
sobretudo por causa do que isso significa
para o pupilo.
3.1,2 Todos os esforços de ir pessoal-
mente haviam falhado, e assim Paulo con-
cordou com a proposta de que ele mes-
mo ficasse em Atenas (aproximadamente
quinhentos quilômetros de Tessalônica) e
enviasse um dos seus colegas em seu lugar.
(Ficar sozinhos provavelmente significa
que a essa altura Silas também o havia dei-
xado). Assim Timóteo foi enviado no lugar
de Paulo - como o foi outras vezes a ou-
tras igrejas. Paulo ressalta - talvez nova-
mente em defesa contra os seus detratores
- que Timóteo era em todos os aspectos o
seu irmão ou colega, um homem de valor
comprovado. A descrição dele como "coo-
perador de Deus [no evangelho de Cristo]"
(NVI), i.e., uma pessoa que é colega de
Deus na obra do evangelho (cf ICo 3.9),
causou dificuldades para escribas, e alguns
mudaram o texto para ministro de Deus,
como aqui na ARA. Paulo quer dizer com
isso que o próprio Deus é visto como co-
operando com obreiros cristãos na difusão
do evangelho de Cristo, que é uma refe-
rência tanto ao evangelismo inicial quanto
à manutenção e cuidado da igreja. A visita
de Timóteo teria o efeito de fortalecer a
igreja para que os seus membros resistis-
sem com mais firmeza às tentações e às
pressões hostis. (Observe como o mesmo
efeito é atribuído ao próprio Senhor no v.
13). Exortar transmite o sentido tanto de
estimular pessoas à ação ("dar-lhes âni-
mo", NVI) quanto de dar conforto.
3,4 Saber que temos algumas circuns-
tâncias difíceis pela frente pode nos ajudar
1TESSALONICENSES 3
a encará-las com mais coragem. Os lei-
tores sabiam que a pressão de fora seria
a sua sina porque Paulo já tinha repetido
esse ponto, sem dúvida ao se referir à
sua própria experiência e à das igrejas na
Judeia (2.14).
5 Tendo lhes enviado Timóteo, Paulo
estava desesperadamente angustiado por
saber se eles estavam mantendo a sua fé.
Era possível que Satanás os tivesse tentado
a tal ponto que a igreja tivesse sido destruí-
da, e que todo o esforço empenhado nela
tivesse sido vão. Embora nenhuma tenta-
ção seja tão grande que não possa ser re-
sistida (l Co 10.13), os crentes nem sempre
são bem-sucedidos na sua batalha contra
ela. A confiança no poder de Deus de pro-
teger o seu povo não poupou a Paulo de se
preocupar e orar por eles.
6-8 As boas notícias de Timóteo (pa-
lavra usada em outro contexto para se re-
ferir à pregação do evangelho) tiraram de
Paulo todos os seus temores. Paulo esta-
va tão cheio de alegria que escreveu essa
carta assim que possível depois do retomo
de Timóteo. As duas características cristãs
fundamentais - afé e o amor- estavam
vivas e bem em Tessalônica (e continua-
ram a se desenvolver: 2Ts 1.3). A igreja es-
tava desejosa de ver a Paulo. Isso mostrava
que os leitores não tinham se afastado do
evangelho e de fato pertenciam ao povo
escolhido de Deus (l.4). Eles estavam
firmados na confiança no Senhor e assim
podiam enfrentar toda e qualquer oposição
(cf Ef 6.10). O relato de Paulo tinha vindo
quando o próprio Paulo se sentia oprimido
por suas próprias circunstâncias dificeis e
pelas pressões que pesavam sobre ele e não
estava, por isso, completamente "vivo". O
missionário cuja tarefa era encorajar os ou-
tros (2) foi ele mesmo encorajado e reani-
mado pelas notícias da igreja.
9 Paulo escreve dos sentimentos de
alegria que ele expressava diante do nos-
so Deus, assim como quando os israelitas
celebravam suas festas na presença do
Senhor (Dt 12.12,18). A alegria pode ser
1926
simplesmente uma expressão dos nossos
sentimentos de felicidade; para Paulo, era
uma ocasião para dar graças a Deus, que
era a sua fonte.
10 Paulo ainda orava com máximo
empenho (uma expressão grega particu-
larmente intensa) para que pudesse visitar
a igreja novamente. Ele tinha um dese-
jo muito humano de simplesmente estar
com eles, e ansiava por ajudá-los a vencer
quaisquer deficiências da sua fé. Embora
estivessem firmados, não eram perfeitos,
nem no conhecimento cristão nem no
comportamento. Essa carta é a tentativa
de Paulo de suprir por escrito o que ele
não pôde lhes dar em pessoa. Enviar uma
carta, evidentemente, só lidava com a se-
gunda das razões de Paulo querer visitar
a igreja. Na época em que escreveu a car-
ta, portanto, ele ainda estava ansiando e
orando por uma possibilidade de visitá-
los. A sua oração foi respondida a certa
altura (At 20.1).
11,12 De contar aos seus leitores sobre
suas orações, Paulo se volta à oração de
fato. Em vez de se dirigir a Deus direta-
mente na segunda pessoa, e.g.: -ó Deus,
abre o caminho para irmos a Tessalônica",
Paulo expressa a sua oração na terceira
pessoa: "Que Deus nos abra o caminho
até vocês" (cf Nm 6.24-26; SI 20.1-5). A
oração associa Deus como Pai e o Senhor
Jesus Cristo (cf 1.1, e, em ordem inver-
sa, 2Ts 2.16). A primeira petição exprime
o desejo de Paulo de visitar novamente a
igreja, e a segunda expressa o seu anseio
pelo crescimento dos tessalonicenses em
amor e santidade - o tema desenvolvi-
do na instrução que segue imediatamente
a oração (4.1-12). O amor deles precisa
se expandir além da igreja para incluir os
outros (00'] todos (cf 016.10 em ordem in-
versa). Paulo se apresenta como um exem-
plo (cf 1.6; 2Ts 3.7-9; At 20.35) - não
para passar essa informação ao Senhor,
mas porque essa oração também funciona
como meio de instrução aos leitores acerca
de como eles devem orar e viver.
 1927
13 Paulo quer que o coração dos seus
leitores seja confirmado em santidade
e esteja isento de culpa para encontrar o
Senhor quando ele vier em juízo. Ele não
está orando que eles cresçam e se desen-
volvam para serem isentos de culpa em
algum ponto no futuro quando o Senhor
vier. Antes, ele crê que o Senhor pode vir
muito em breve (não imediatamente, com
certeza, como indica 2Ts 2), e por isso ele
ora para que Deus firme o coração deles
nessas qualidades agora e que eles conti-
nuem nesse estado até a vinda do Senhor.
No juízo que acontecerá quando Cristo vier
(2.19; cf 1.10), eles não precisam temer a
ira de Deus (1.10), mas mesmo assim será
um tempo de avaliação e recompensa ou
perda. A solenidade da ocasião é ressaltada
pela descrição de Jesus vindo com todos
os seus santos. Trata-se aqui ou de crentes
que morreram e que virão com os crentes
ainda vivos para se encontrar com o Senhor
(4.16,17) ou de anjos que acompanharão a
vinda final de Deus (Zc 14.5) ou a do Filho
do Homem (Me 8.38) e aumentarão a sua
glória. (2Ts 1.7 dá apoio a esta segunda
interpretação).
4.1-12 Encorajamento para
o progresso ético
Na primeira das seções de instrução Paulo
trata do comportamento ético, em particu-
lar da santidade (4.1-8) e do amor fraternal
(4.9-12).
1,2 O motivo da vida cristã é agradar
a Deus (cf 2.4) ao fazer a vontade dele. Os
leitores já estavam fazendo isso, e assim
o propósito de Paulo é simplesmente en-
corajá-los a fazer ainda melhor o que eles
já estavam fazendo. Acerca de no Senhor
Jesus ver comentário de 1.1. "Rogar" e
"exortar" tem conotação militar; havia um
estilo de vida preciso e definido associado
ao evangelho, e cumpre que os cristãos vi-
vam segundo ele.
3 Fazer a vontade de Deus inclui, entre
outras coisas, a santificação. Essa palavra
peculiarmente cristã se refere ao processo
nESSALONICENSES 4
contínuo de tomar-se cada vez mais livre
do pecado e cheio de amor. Ser santifica-
do significa pertencer a Deus e mostrar o
mesmo caráter que Deus tem. O seu oposto
é a impureza (7), a conduta que é imoral e
corrompe.
Um aspecto da santidade (há muitos ou-
tros de igual importância) precisou ser des-
tacado: que vos abstenhais da prostituição
("imoralidade sexual", NVI). Essa expressão
se refere a toda relação sexual que ocorre
fora do relacionamento de casamento.
4,5 A ARA (como também outras, e.g.,
NVI) interpretou o v. 4 em termos de au-
tocontrole sexual. Toma a palavra grega
skeuos, lit. "vaso" (ARC), como metáfora do
corpo de uma pessoa, aqui no seu aspecto
sexual (possivelmente um eufemismo para
órgão sexual), e o verbo ktasthai como sig-
nificando "obter domínio sobre" (um uso
raro mas comprovado). Algumas outras
traduções interpretam o verbo como "to-
mar" e o "vaso" como uma mulher, assim
que a instrução é para "aprender a conse-
guir esposa" (v. NVI, mg.). Embora "vaso"
seja usado com referência a seres humanos
(tanto homens como mulheres) em 1Pedro
3.7 (v. ARC), é improvável que seja o signi-
ficado aqui, e de todo modo chega próximo
de considerar uma mulher simplesmente
como um objeto sexual. Não importa a for-
mulação adotada, a vida sexual precisa ser
conduzida de forma honrosa. A santidade
não exclui a atividade sexual mas controla
a sua natureza. O modo de vida contrário é
caracterizado pela lascívia, o desejo físico
que não leva em consideração as pessoas
como pessoas e se comporta conforme o
desejo sem autocontrole.
6 O texto continua a considerar o aspec-
to errado da imoralidade sexual no aspecto
de que pode incluir tirar vantagens de outras
pessoas. Cometer adultério é tentar romper
um relacionamento e elo existente num ca-
samento, e pode ser justamente descrito
como causar dano a um irmão. Outra forma
menos provável de interpretar esse versícu-
lo é que Paulo tenha com isso introduzido
1TESSALüNICENSES 4
o novo assunto de tirar vantagens de um
irmão nos negócios (tradução alternativa
de "nesta matéria"; cf T B).
A desumanidade de tal conduta é ressal-
tada pelo lembrete de Paulo de que o juízo
do Senhor (i.e. Jesus, cumprindo o papel de
Deus em S. 94.1) espera os pecadores.
7,8 Mas o juízo não é o único motivo
para a vida correta. Deus não nos chamou
com base na impureza, como se esse fos-
se um estado a ser mantido, mas ele nos
chama de uma forma que inclui a sua ati-
vidade de nos tomar santos. Por isso, des-
considerar essa instrução particular é des-
considerar o próprio Deus que nos dá o seu
Espírito para nos tomar santos.
9,10 Agora Paulo se volta a uma instru-
ção positiva acerca da necessidade de os
tessalonicenses fortalecerem e intensifica-
rem o seu amor fraternal (gr. philadelphia)
uns pelos outros (cf 3.12), como Deus já
os tinha instruído e impelido a fazer. O
amor deles na realidade já se estendera
além da sua própria igreja a cristãos em
outros lugares, provavelmente no compar-
tilhamento de hospitalidade e ajuda mate-
rial a outros.
11,12 Algumas pessoas na igreja esta-
vam tirando vantagem desse amor frater-
nal para viver das doações sem trabalhar
eles mesmos (cf 2Ts 3.6-15). Esses pre-
guiçosos podem ter sido influenciados por
suas crenças de que a segunda vinda de
Jesus estava próxima; se assim fosse, eles
argumentavam, por que se incomodar em
trabalhar? Paulo os instrui a que por ques-
tão de honra não se intrometam na vida dos
outros, e que se ocupem com seus próprios
afazeres de forma responsável, e que este-
jam preparados a fazer o seu trabalho de
forma honesta. Isso impedirá que percam
o respeito das outras pessoas.
4.13-5.11 Instruções e
encorajamento acerca da
segunda vinda de Jesus
A segunda vinda de Jesus tinha formado
parte importante do ensino de Paulo du-
1928
rante a sua visita, mas tinha conduzido
a mal-entendidos. Timóteo trouxe duas
questões a Paulo. A primeira estava asso-
ciada ao destino de cristãos que já tives-
sem morrido quando da volta do Senhor
(4.13-18), e a segunda tratava do perigo
dos vivos sendo tomados de surpresa pelo
Senhor e de alguma forma não participan-
do do evento (5.1-11).
4.13 Evidentemente os leitores pensa-
vam que pessoas que "dormissem" (i.e., os
entre eles que já tinham morrido e que ain-
da poderiam morrer) antes da segunda vin-
da pudessem ficar nos seus túmulos e não
participar do evento. Isso sugeriria que ou
eles não tinham ouvido da ressurreição dos
mortos (o que não é provável, pois a res-
surreição de Jesus fazia parte do evangelho
primitivo), ou eles não tinham compreen-
dido adequadamente o ensino que tinham
recebido. Por não terem a esperança cristã,
eram como não cristãos "não tendo espe-
rança e sem Deus no mundo" (Ef2.12).
14 A resposta fundamental ao pro-
blema é a declaração essencial de ensino
cristão de que Jesus morreu e ressuscitou.
Segue então que o Deus que ressuscitou a
Jesus trará com ele as pessoas pelas quais
ele morreu, e que morreram crendo nele.
Paulo ainda não diz nada sobre os mor-
tos sendo ressuscitados para compartilhar
desse evento, mas é obvio que, se eles
irão compartilhar disso, precisam ser res-
suscitados para que possam participar. Na
verdade, além de eles não serem deixados
de fora dos eventos gloriosos associados à
segunda vinda do Senhor, ainda terão pre-
cedência sobre os que ainda vivem. (Paulo
fala de nós, os vivos; esse uso de termos
indica que Paulo considerava a possibili-
dade de que o Senhor viria no seu tempo
de vida, mas não insistia em que essa era
uma conclusão definitiva).
15-18 A confirmação dessa afirmação é
dada pela referência à palavra do Senhor,
que é mais bem interpretada como sendo
o ensino de Jesus semelhante a Mateus
24.30,31 do que uma revelação do Senhor
 1929
ressurreto a um profeta ou ao próprio
Paulo. (Paulo também faz menção a isso
em ICo 15.52). A ordem, a voz de arcanjo
e a trombeta são interpretadas como meios
de despertar os que estão adormecidos na
morte e de levantá-los para que estejam
com o Senhor (Jo 5.25-29). Eles ressusci-
tarão primeiro, i.e., antes de os cristãos que
ainda estiverem vivos serem levados para
o encontro do Senhor nos ares. O quadro é
de um grupo de cidadãos saindo de uma ci-
dade para encontrar um dignitário visitante
e acompanhá-lo na sua entrada na cidade.
Isso significa que o Senhor volta com o seu
povo para a terra. (Eles certamente não fi-
cam permanentemente nas nuvens tocando
harpas!). Essa linguagem provavelmente
nunca teve o propósito de ser interpretada
de forma absolutamente literária; está des-
crevendo coisas que vão além de palavras.
A coisa importante é que os crentes, sejam
os mortos, sejam os vivos, estarão a partir
de então para sempre com o Senhor.
5.1-5 A outra questão sobre a segunda
vinda surgiu da preocupação dos leitores
de que eles não estivessem preparados
para o evento: e se ele os pegasse des-
prevenidos? Assim, Paulo poderia dizer
alguma coisa sobre quando a vinda e os
eventos relacionados a ela aconteceriam?
Paulo responde que não há necessidade de
escrever-lhes mais do que já lhes ensinou,
isto é, de que o Dia do Senhor (cf o dia
do Filho do Homem, Lc 17.24,30) será
parecido à vinda de um ladrão no aspec-
to de que será inesperado e indesejável,
assim como Jesus já dissera (Mt 24.43;
Lc 12.39,40). Pessoas poderão até pensar
que estão vivendo em segurança sem que
coisa alguma as perturbe, mas aí lhes so-
brevirá repentina destruição (Lc 21.34).
Aqui Paulo está seguindo o que Jesus disse
em forma de advertência. Mas o ponto par-
ticular que ele precisava destacar é que essa
linguagem de advertência sobre um evento
ameaçador é dirigida a incrédulos e não a
crentes. A ideia do dia do Senhor é asso-
ciada não somente ao juízo, mas também
1TESSALONICENSES 5
ao surgimento da luz, que simboliza revela-
ção e justiça divinas. Os crentes são pessoas
que já vivem na luz; eles não estão mais
na escuridão do pecado e ignorância. Por
consequência, para eles o dia do Senhor
não virá como um holofote de busca que
revela os pecados cometidos sob o man-
to da escuridão e que leva os incrédulos a
querer se esconder ou fugir. Ao contrário,
eles saudarão a luz mais completa daquele
dia, e eles não serão como pessoas pegas
desprevenidas porque não estarão fazendo
as coisas que levam ao juízo.
6-11 Contudo, é possível que mesmo
os crentes sejam tentados a viver como os
incrédulos. O que eles precisam nesse caso
não é de informação sobre quando virá o
dia (na tola esperança de que podem co-
locar sua vida em ordem rapidamente no
último minuto), mas de ordens claras para
viver como pessoas que pertencem ao dia.
Eles não podem fazer o que os outros fa-
zem à noite - nem se embriagar nem dor-
mir - mas precisam estar sóbrios e pron-
tos para o Senhor. Que eles de fato sejam
como soldados que estão de guarda, vigi-
lantes, e que se armem (Paulo dá continui-
dade à comparação) com as três caracterís-
ticas básicas dos cristãos (cf 1.3). A mais
importante entre elas no contexto presente
é a esperança da salvação, que está fun-
damentada na convicção de que os crentes
não foram destinados por Deus para a ira
que espera os pecadores, mas para receber
salvação, aqui entendida primariamente
como uma experiência futura de libertação
da ira. Essa libertação é possível em virtu-
de da morte de Jesus por eles. Paulo não
explica aqui como ela produz esse efeito,
mas em outros textos está claro que Jesus
carregou os seus pecados e suportou o juí-
zo no seu lugar (Rm 3.24-26; 2Co 5.19-
21). Consequentemente, eles compartilha-
rão da vida dele - e isso se aplicará tanto
a crentes fiéis que ainda estiverem vivos
quando ele vier quanto àqueles que já ti-
verem morrido confiando em Cristo. Com
essa esperança em vista, os leitores devem
1TESSALONICENSES 5
ajudar uns aos outros por meio do encora-
jamento mútuo e ao fazerem tudo o mais
que for necessário para fortalecer a sua fé.
5.12-24 Instruções para
a vida na igreja
Uma terceira seção de ensino apresenta o
que à primeira vista parecem instruções
gerais para a vida conjunta dos leitores na
igreja. Paulo dá ensinamentos semelhantes
a outras igrejas (v. especialmente Rm 12),
mas aqui essas instruções são dirigidas par-
ticularmente à situação em Tessalônica, O
ensino pode ser dividido em termos gerais
em cinco subseções (12,13; 14; 15; 16-18;
19-22) seguidas de uma oração (23,24).
12,13 A primeira seção trata da atitu-
de da igreja em termos gerais para com
os seus líderes. Não se usa nenhum título
específico para eles (posteriormente pa-
lavras como presbíteros, bispos e diáco-
nos se tornaram mais comuns), e eles são
descritos com termos referentes às coi-
sas que faziam. Eles estavam envolvidos
com o que era trabalho duro ("os que se
esforçam no trabalho entre vocês", NVI)
(expressão usada em relação ao trabalho
cristão em geral por Paulo e pelos mis-
sionários mas também por líderes locais).
Eles estavam "sobre" (ARe) a congregação
- uma expressão que pode ser uma re-
ferência ao exercício de autoridade ou à
demonstração de cuidado (especialmente
se eram pessoas de mais posses que da-
vam dos seus recursos à congregação; cf
Rm 16.1,2), e eles advertiam pessoas que
precisavam de orientação. Assim, exer-
ciam autoridade na igreja, e era necessário
lembrar os que estavam sujeitos à autori-
dade deles que reconhecessem a posição
dos líderes e lhes mostrassem a estima
adequada combinada com o amor. Vivei
em paz pode sugerir perigo de divisão en-
tre os líderes e outros crentes.
14 Esse ponto talvez possa ser associa-
do ao seguinte, a necessidade de orientação
espiritual para algumas pessoas na igreja.
É digno de nota que Paulo aqui estimule a
1930
igreja toda (observe a repetição de irmãos
no v. 14), não somente os líderes, a cuidar
do restante da congregação. Paulo pode ter
tido em mente especialmente um grupo
na igreja que precisava de orientação mas
estava negando-a. Esses eram os insub-
missos ("ociosos", NVI; a palavra significa
"desregrados", mas pode ser uma referên-
cia específica a estar ocioso, e no contexto
esse significado é mais provável; cf 4.11;
2Ts 3.6-13). Os desanimados podem ser as
pessoas tristes e abatidas de 4.13-5.1l.
Os fracos podem ser os que foram ataca-
dos por provações e tentações e tiveram
grande dificuldade em resistir; precisaram
de pessoas que ficassem do seu lado e os
ajudassem a resistir. Os que prestam esse
tipo de ajuda precisam ser longânimos para
suportar essas pessoas e sua estranheza, e
mesmo sua resistência à ajuda.
15 Que havia retaliação na igreja é in-
dicado pela ordem seguinte, de não retri-
buir mal por mal, mas antes demonstrar
bondade sempre mesmo que alguém te-
nha sido tratado de forma bruta. Observe
que isso não estava confinado ao grupo
de crentes, mas deve ser demonstrado
para com todos. Essa atitude ia além da
moralidade do tempo e era caracteristica-
mente cristã (Rm 12.17,19-21; 1Pe 3.9;
cf Mt 5.38-42,43-48).
16-18 Uma série de ordens breves e
desconectadas indica a base para o viver
cristão. Essas ordens são bastante gerais e
se aplicam a qualquer grupo de crentes. Os
cristãos têm motivos para alegria tanto na
sua experiência de salvação quanto na sua
esperança do que Deus fará no futuro, mas
eles precisam expressar essa alegria; há um
lugar certo e apropriado para a expressão
das emoções de alegria. Os cristãos tam-
bém precisam orar - aqui provavelmente
no sentido de fazer pedidos a Deus, visto
que a ordem seguinte é relativa à necessi-
dade da atitude de gratidão. Comum às três
ordens é a ênfase em cumpri-las em todo o
tempo e todas as circunstâncias; isso não
significa, por exemplo, que devemos orar
 1931
ininterruptamente, mas regular e frequen-
temente. Tal vida se toma possível, Paulo
acrescenta, porque Deus quer que ela as-
sim seja; ele quer que o seu povo seja mar-
cado pela alegria, oração e gratidão, e ele
os capacita para tal.
19-22 Mais um conjunto breve de afir-
mações se ocupa principalmente com o
Espírito e seus dons. O que é formulado
em detalhes em 1Coríntios 12-14 aqui é
afirmado resumidamente. O Espírito é po-
deroso e ativo como fogo na congregação
(cf essa metáfora em Rm 12.11; 2Tm 1.6).
Os dons para o ministério estavam sendo
exercidos, mas algumas pessoas estavam
tentando suprimi-los (não sabemos como),
mas é errado fazê-lo. Em particular, Paulo
destacou a necessidade de se valorizar as
declarações dos profetas. Possivelmente
a igreja tinha tido uma experiência nega-
tiva com eles (cf 110 4.1-3), e em vez de
exercer o discernimento entre as profecias
verdadeiras e falsas, estava sendo severa
demais com toda a atividade profética. Em
vez disso, a igreja deveria "julgar" todas
as coisas, i.e., avaliar as declarações dos
profetas (1Co 12.1O; 14.29). E deveria "re-
ter" o que era valioso e rejeitar tudo que
estivesse errado com os ensinos proféti-
cos. (Os v. 21,22 podem ser entendidos de
forma mais ampla, mas têm uma aplicação
mais estrita nesse contexto).
23,24 Finalmente, Paulo expressa uma
oração pelos leitores (cf 3.11-13). O mes-
mo Deus está pessoalmente interessado
neles. Ele é a fonte de bênçãos espirituais,
aqui resumidas em paz, e, portanto, é cor-
reto orar e pedir que ele capacite os que
são chamados "santos" a que se tomem
ainda mais santos em todo o seu ser. Paulo
está pensando num processo constante, e
o resultado ideal será que, independente-
mente do momento em que o Senhor re-
tomar, ele encontrará os seus conservados
completamente íntegros e irrepreensíveis.
Espírito, alma e corpo é uma maneira de
dizer "completamente" por meio da refe-
rência às três partes do ser humano - vida
nESSALONICENSES 5
no relacionamento com Deus, a personali-
dade humana e o corpo por meio do qual
agimos e nos expressamos. Embora a vida
cristã exija esforços humanos, em última
análise ela depende do próprio Deus que é
fiel. Os que confiam nele estão confiando
que ele os preservará até o fim - e eles
têm todos os motivos para crer que ele é
confiável.
5.25-28 Pedidos e
saudações finais
Uma carta nos tempos antigos concluía na-
turalmente com saudações e pedidos pes-
soais. Aqui elas se ocupam intensamente
com a vida e o testemunho cristãos do au-
tor e seus leitores. Paulo com frequência
pede aos seus leitores que orem por ele e
seus colegas (2Ts 3.1,2); essa era uma ma-
neira em que os leitores compartilhavam
da missão dele, e os missionários por sua
parte dependiam desse tipo de apoio. Os
leitores deveriam cumprimentar-se com
um sinal de amor cristão. Ao dar essa ins-
trução, Paulo estava indicando que, apesar
de estar longe deles, ele estava ligado a
eles na sua saudação. O beijo (ósculo) fim-
cionava como sinal de afeição e respeito,
e a palavra não transmite necessariamente
nenhuma conotação sexual.
27 A essa altura, Paulo provavelmente
tomou ele mesmo a pena do seu secretário
e destacou que a carta precisava ser lida
por todos na congregação. Ela suposta-
mente foi lida (no lugar do sermão?) quan-
do todos estavam presentes, como para
substituir a Paulo na sua ausência. Paulo
queria ter certeza de que essa mensagem
atingisse a todos para quem foi escrita.
28 Paulo sempre concluía as suas cartas
com uma bênção que era semelhante em
linguagem à saudação inicial. A saudação
secular comum (At 15.29) foi substituída
por um desejo cristão que nos leva ao cer-
ne do evangelho, à pessoa de Jesus como o
Senhor e fonte do favor divino.
Howard Marshall I.
 2TE55ALONICEN5E5
INTRODUÇÃO
A linguagem e o conteúdo da segunda carta
são semelhantes aos de 1Tessalonicenses,
o que sugere que esta segunda carta foi
escrita não muito depois e segue o mesmo
padrão geral. Com base no cp. 1 parece
que a oposição de fora piorou a essa al-
tura. A pungência da linguagem de Paulo
também pode sugerir que ele mesmo era
o objeto de ataques particulares por par-
te de pessoas fora da igreja (cf 3.2). Essa
intensificação da oposição pode ter sido,
em parte, motivo de ter se desenvolvido
na igreja um grupo que acreditava estar
vivendo nos últimos dias. Eles reivindica-
vam apoio a essa crença de algum tipo de
afirmação supostamente vinda do próprio
Paulo. Paulo repeliu essa afirmação (ou,
mais provavelmente, as inferências ques-
tionáveis derivadas dela), e argumentou
que diversos eventos ainda estavam por
acontecer antes da volta do Senhor. Na
parte final da carta, encontramos evidên-
cia de que alguns membros da igreja es-
tavam tirando vantagem da hospitalidade
de outros e vivendo ociosamente à custa
deles. Embora não se faça nenhuma liga-
ção explícita, é difícil não acreditar que
o entusiasmo "apocalíptico" refletido no
cp. 2 tenha contribuído para essa situação.
Isso evocou palavras duras de censura por
parte de Paulo que cria que, sempre que
possível, os cristãos deveriam trabalhar
pelo seu sustento.
Esses pontos determinam a estrutura
da carta. Como em 1Tessalonicenses, a
saudação inicial (1.1,2) é seguida de um
relato de oração que também funciona
como encorajamento e ensino: a igreja ain-
da estava sofrendo oposição, mas a esta-
va suportando com perseverança, e Paulo
garante aos crentes que Deus julgará os
que se opõem a eles e preparará a igreja
para compartilhar da sua glória quando
Cristo vier (1.3-12). O cerne da carta é
o ensino sobre a volta de Cristo, dirigi-
do contra pessoas que estavam afirmando
que os últimos dias (no sentido do perío-
do final) já tinham começado. Paulo ensi-
na que um período de oposição satânica
de escala sem precedentes precederá o
retomo de Cristo; entrementes, a igreja,
consciente de que foi objeto da escolha
graciosa de Deus e dependente do seu for-
talecimento, precisa perseverar firmemen-
te até o fim (2.1-17). Finalmente, há uma
exortação. Paulo pede à igreja que ore
por ele, e o apóstolo volta a atenção para
aqueles cristãos que tinham abandonado
o seu trabalho diário e estavam vivendo
à custa dos seus bondosos amigos. Paulo
condena com firmeza essa ociosidade e o
consequente efeito incômodo desses pre-
guiçosos (3.1-16). Há uma breve sauda-
ção final (3.17,18).
Este comentário de 2Tessalonicenses
foi escrito em termos do contexto histó-
rico ostensivo do documento como uma
carta genuinamente pau1ina à igreja em
Tessalônica. Desse ponto de vista da situa-
ção, precisamos pressupor que no período
depois da composição de 1Tessalonicenses
um tipo de "fervor apocalíptico", cujas
origens talvez possam ser detectadas em
1Tessalonicenses, se ampliou na igreja.
Paulo não trata dele em termos de admoes-
tação direta ou indireta a um grupo de opo-
nentes, como em algumas outras cartas;
antes, escreve a crentes que talvez tenham
sido desviados por alguma interpretação
equivocada do ensino dele.
 1933
Tal situação parece plausivel. Contu-
do, muitos comentaristas discordam. Eles
detectam um contraste intenso entre a
ênfase na proximidade da segunda vinda
em 1Tessalonicenses e a ênfase no "ain-
da não" em 2Tessalonicenses. Esse fato
então os alerta para outras característi-
cas peculiares que eles detectam na carta
- a falta de alusões pessoais e concre-
tas, a repetição peculiar de expressões
de 1Tessalonicenses, algumas diferenças
na linguagem e pensamentos e assim por
diante. Muitos estudiosos pensam que
essas diferenças são incompatíveis com
a compreensão tradicional da carta como
de origem paulina. Eles consideram ina-
dequadas as tentativas de resolver alguns
dos problemas pelos argumentos de que
as cartas foram escritas em ordem cro-
nológica invertida, ou de que elas são
composições de fragmentos originaria-
mente escritos numa ordem diferente.
A única solução que pode fazer justiça
a essas peculiaridades, assim se argu-
menta, é que a carta é uma composição
posterior de outro autor que queria usar
o nome de Paulo para corrigir o seu en-
sino ou as inferências equivocadas dele,
talvez até reivindicando que somente
esta carta era autêntica (cf 3.17) e que
1Tessalonicenses deveria ser rejeitada.
Uma grande dificuldade dessa posição é
que os seus proponentes não ofereceram
uma reconstrução convincente e plau-
sível das circunstâncias em que a carta
poderia ter sido composta - e dirigida
a Tessalônica em particular. Além disso,
a linguagem usada para refutar a afirma-
ção de que o dia do Senhor já tinha che-
gado é tão críptica que é difícil imaginar
um autor posterior se expressando dessa
forma se ele queria persuadir os seus lei-
tores. Embora precisemos admitir que há
algumas coisas esquisitas na linguagem,
estrutura e pensamento da carta, é justo
dizer que as dificuldades em considerar
a carta um documento escrito por outro
autor que não Paulo são maiores.
2TE55ALONICEN5E5 (
l1li
A mensagem das cartas
Ambas as cartas contêm amplo ensino
sobre o evangelho e a natureza de uma
igreja jovem que pode ser desenvolvida
para mostrar como cristãos devem viver
e testemunhar hoje. Não obstante, alguns
cristãos contemporâneos que estão cons-
cientes de um período longo - e ainda se
prolongando - da história da igreja em
vez de dias contados podem achar que o
arcabouço da teologia de Paulo com sua
ênfase na vinda futura do Senhor e acima
de tudo na percepção da sua proximida-
de, com todas as implicações que isso tem
para a vida cristã, seja irrealista. Contudo,
os cristãos hoje podem tomar por certas,
com exagerada facilidade, a permanência
e independência da sua existência coletiva
num universo seguro e deixar de perce-
ber que em todos os momentos dependem
da misericórdia do Senhor e vivem à luz
da sua vinda. Se Deus abalou a estrutura
tempo-espaço do universo ao entrar nele
na pessoa do seu Filho encarnado, ele cer-
tamente pode e vai conduzir a história da
humanidade à consumação por meio de
uma intervenção futura para estabelecer o
seu Reino eterno de justiça, paz e amor.
Paulo também deixa claro que os cristãos
não existem para gastar o seu tempo não
fazendo nada e esperando que o Senhor
venha. Antes, eles precisam se preparar
para a sua vinda ao demonstrar as qualida-
des da vida, fé amor e esperança cristãos.
Leitura adicional
1. R. W. The Message of Thessalo-
STüTT,
nians. BST. Inter-Varsity Press, 1991.
MÜRRIS, L. The Epistles of Paul to the
Thessalonians. TNTC. Inter-Varsity
PresslUKJEerdmans, 1977.
_ _o The First and Second Epistles to
the Thessalonians. NICNT. Eerdmans,
1977.
BRUCE, F. F. 1 and 2Thessalonians. WBC.
Word,1982.
MARsHALL, L H. 1 e 2 Tessalonicenses.
SCB. Vida Nova, 1984.
2TESSALüNICENSES 1
ESBOÇO
1.1,2 Saudação inicial
1.3-12 Ação de graças
2.1-17 Inc:,trllrii,~c: sobre o dia do Senhor
3.1-16 Instruções para a vida na igreja
3.1 8 final
COMENTÁRIO
1.1,2 Saudação inicial
A saudação é, como se poderia esperar,
muito semelhante à de ITessalonicenses,
mas aqui Paulo fala de Deus como nosso
Pai, e explicitamente cita o Pai e o Senhor
Jesus como a fonte de graça e paz. (Y. tam-
bém o artigo "Lendo as cartas").
1.3-12 Ação de graças
Paulo começa com um relato de oração a
sua carta de encorajamento a uma igreja
que enfrenta pressão hostil de pessoas de
fora. Esse relato começa com palavras que
lembram ITessalonicenses 1.2,3 e mostra
que a igreja está crescendo em qualidades
cristãs básicas, assim que sua oração de
gratidão não é formalidade vazia. Antes,
dá-lhe base para falar deles em termos
elogiosos entre as outras igrejas por sua
perseverança no enfrentamento da perse-
guição. Assim Paulo usa o exemplo deles
para encorajar outras igrejas em situação
semelhante.
S Em seguida, Paulo divaga mais um
pouco do seu relato de oração para comen-
tar sobre o significado da situação. O justo
juízo de Deus no tempo presente é visto
no resultado duplo da perseguição. Os dois
resultados estão entrelaçados nos v. 5-10.
Por outro lado, o juízo de Deus pode
ser observado no destino dos que perse-
guem a sua igreja (v. 6,8,9). Na vinda do
Senhor Jesus, eles receberão como retri-
buição o tratamento que deram a outros.
Dessa maneira, Deus vindica o seu próprio
1934
povo contra os seus opressores e também
deixa claro que os que não obedecem ao
evangelho de nosso Senhor Jesus serão co-
locados debaixo de juízo. Devemos obser-
var que o povo de Deus não deve se vingar
contra os que o atacam (Rm 12.17-21), e
que a ação de Deus não é uma ação de vin-
gança, mas de estabelecimento de justiça.
Deus não pode ser acusado de agir de for-
ma injusta ou sem graça para com eles. Os
que são julgados são os que rejeitaram um
evangelho cujo conteúdo é: "Nós, quando
inimigos, fomos reconciliados com Deus
mediante a morte do seu Filho" (Rm 5.10);
eles rejeitaram a oferta amorosa de Deus.
A linguagem tradicional de em chama de
fogo (Êx 3.2; Is 66.15) expressa simboli-
camente a vinda de Deus em juízo contra
gentios que (obstinadamente) não conhe-
cem a Deus e judeus que (também obsti-
nadamente) não obedecem ao evangelho.
Eterna destruição é associada à exclusão
da presença do Senhor e de compartilhar
a sua glória (cf Is 2.10. Paulo, como em
outros trechos, aplica um texto do AT sobre
Javé a Jesus).
Por outro lado, Deus também vindica-
rá o seu povo (5,7,10). Se eles resistirem à
perseguição, ele os considerará dignos de
entrar no seu Reino (no futuro, como em
lTs 2.12), e ele não considera nada mais
que justo conceder-lhes alívio dos seus so-
frimentos, como também aos seus missio-
nários (cf 3.2), na parousia de Jesus. As
bênçãos de Deus são associadas, assim,
com Jesus quando ele vier com os seus
anjos (cf lTs 3.13). Ele estará rodeado de
 1935
seu povo santo e será glorificado por ele
(mais tarde se mostra que o povo compar-
tilha da glória dele; cf v. 12; 2.14). Esse
povo estará cheio de admiração, compar-
tilhando da ocasião precisamente porque
aceitou e creu no testemunho do evangelho
apresentado pelos missionários.
11,12 A digressão serve para indicar a
motivação das petições de Paulo a Deus
quanto aos seus leitores. Visto que a per-
severança na vida cristã depende da ação
graciosa contínua de Deus e da fé do seu
povo, Paulo ora continuamente para que
Deus capacite o seu povo a demonstrar a
realidade da sua fé em ação e assim tor-
ná-lo digno do chamado dele. Tal conduta
levará ao louvor sendo oferecido a Jesus, e
o seu povo compartilhará da glória e hon-
ra dadas a ele. É possível que Paulo esteja
aqui descrevendo a Jesus tanto como Deus
quanto como Senhor (mas observe que a
NVI relega essa interpretação à nota margi-
nal; cf Rm 9.5; Tt 2.13; 2Pe 1.11).
2.1-17 Instruções sobre
o dia do Senhor
A seção de ensino principal da carta é de
difícil compreensão por duas razões. Em
primeiro lugar, é a resposta de Paulo aos
problemas que surgiram na igreja em vir-
tude dos mal-entendidos do seu ensino, e,
em segundo lugar, a linguagem que ele usa
é críptica (isto é, ele fala em códigos) para
pessoas que não sabem o que ele disse a
seus leitores quando estava com eles (5).
1,2 O problema estava centrado na
vinda do Senhor Jesus, que ocupou papel
central em 1Tessalonicenses. Paulo tinha
ensinado que ela estava próxima, possivel-
mente no seu próprio tempo de vida, e que
incluiria a reunião de todo o povo de Deus
de todo o mundo para ficar com ele a partir
de então (cf lTs 4.17; Me 13.27). Agora
algumas pessoas estavam dizendo que já
tinha chegado o Dia do Senhor. Para eles
o "dia" era um período extenso que cul-
minaria na vinda do Senhor, e eles prova-
velmente viam a sua perseguição presente
2TESSALONICENSES 2
•
(1.4,5) como um dos últimos estágios do
Reino de Deus. O seu ensino era pertur-
bador para as pessoas, causando entusias-
mo como também incerteza, e sem dúvida
distraía as pessoas da sua vida normal. Em
apoio à sua afirmação, diziam que o pró-
prío Paulo o havia ensinado, embora ele
não estivesse certo se eles estavam citando
um oráculo profético, um trecho de um en-
sino oral ou uma carta. As palavras como
se procedesse de nós com frequência são
interpretadas como sugerindo que existia
uma carta forjada de Paulo. Contudo, é
improvável que as pessoas tenham produ-
zido cartas em nome de Paulo nessa épo-
ca, e é mais provável que a expressão se
refira a qualquer uma das afirmações de
Paulo da qual as pessoas fizeram deduções
equivocadas.
3,4 A resposta de Paulo é essencial-
mente a repetição do seu ensino oral (5)
de que o dia do Senhor não pode vir antes
de terem acontecido alguns outros even-
tos. Muito do que ele diz ecoa o ensino de
Jesus no discurso registrado em Marcos 13,
e, si como Jesus, ele adverte severamente
contra o ser enganado por falsos mestres
(Me 13.5). Pode ser que as pessoas estavam
sendo enganadas na época da aparição do
Senhor ou estavam aceitando equivocada-
mente um impostor como sendo o Senhor
(cf Me 13.5,21,22). Outras coisas precisam
acontecer antes, especialmente a apostasia
e a revelação do homem da iniquidade.
Esses dois provavelmente andam juntos; o
que o homem da iniquidade faz constitui
apostasia. Apostasia era um termo usado
na literatura judaica especialmente para
se referir à oposição a Deus (lMacabeus
2.15), e a ideia de uma grande irrupção
do mal contra Deus no mundo geralmen-
te era um tema conhecido. Uma igreja
apóstata não é a ideia inicial ou principal
aqui. O homem da iniquidade é uma for-
ma hebraica de expressão para o "iníquo"
(8; "perverso", NVI), e sugere, novamen-
te, oposição a Deus. Um homem (possi-
velmente uma "encarnação" de Satanás)
2TESSALüNICENSES 2 1936
provavelmente está em vista aqui, e ele
pode ser o mesmo que o "anticristo" (lJo
2.18). Dizer que ele será revelado sugere
que sua vinda é uma paródia maligna da
vinda ou revelação do Senhor. Já nesse
ponto Paulo assegura aos seus leitores
que esse homem está condenado à des-
truição antes de descrever o que ele fará.
Basicamente ele se oporá a todas as reli-
giões e ao próprio Deus, e se transformará
em objeto de adoração (cf essa linguagem
em Dn 11.36; não é necessariamente uma
profecia da mesma pessoa). Que ele senta-
rá (ou tentará sentar no santuário de Deus)
é interpretado de diversas maneiras. Pode
significar que ele sentará no templo judai-
co (destruído em 70 d.C.) ou num templo
futuro reconstruído. Alternativamente, o
templo pode ser uma metáfora da igreja.
Mais provavelmente, no entanto, a ima-
gem, que é extraída de Ezequiel 28.2 e
reflete as histórias de Antíoco e Pompeu
que entraram, ambos, no templo judaico,
deva ser interpretada metaforicamente
como referência às reivindicações totali-
tárias do perverso.
S- 7 Com base nos ensinamentos ante-
riores de Paulo, os leitores deveriam agora
ser capazes de concluir por que o perverso
ainda não apareceu. Ele será revelado em
ocasião própria, mas no presente há algo
(neutro no v. 5, mas masculino no v. 7) que
o detém (ou "que o controla"). No presen-
te, com certeza, a rebelião contra Deus está
ativa, mas de forma escondida, e isso durará
somente até que seja removida a força re-
freadora. Então, sugere o texto, o perverso
agirá abertamente - e o Senhor virá para
derrotá-lo. Mas qual é essa força refreado-
ra? Alguns a interpretaram como o impe-
rador romano (ou as forças da lei e ordem
tipificadas por ele). Outros pensam que é
uma referência a Satanás ou algum poder
maligno que está no poder no presente,
mas que dará lugar ao perverso quando ele
vier. Outra interpretação é que o próprio
Deus, por meio de um agente celestial ou
do evangelho cristão ou da igreja, restringe
o poder do mal. (Há referências na litera-
tura judaica ao controle sobre Satanás e o
mal por meio de um ser celestial até o fim
do mundo; cf Ap7.1-3; 20.1-3). Embora
nenhuma solução esteja isenta de dificul-
dades, a última parece causar os menores
problemas. Que seja afastado obviamente
não se refere a Deus sendo forçado a dei-
xar a cena, mas ao fato de ele remover o
que for que estiver detendo o poder do mal
até o momento do confronto final.
8 Quando o Senhor aparecer, o perverso
será destruído. Figuras de linguagem do AT
são usadas para expressar o poder do Senhor
(Is 11.4). Calvino sugeriu que o sopro de
sua boca era simplesmente a sua palavra.
De todo modo, não temos aqui a descrição
de uma batalha literal. Manifestação: "es-
plendor" (ARC; gr. epiphaneia) é uma pala-
vra usada para a vinda poderosa de Deus
em juízo (cf 2Sm 7.23).
9-12 O último ponto de Paulo, no en-
tanto, nos leva novamente ao perverso e
constitui uma advertência importante. O
seu aparecimento (gr. parousia; "vinda",
ARC) será uma paródia satânica daquilo que
é real com todos os tipos de acompanha-
mentos impressionantes (cf Ap 13.13) que
imitam o poder de Cristo e seus seguidores
(cf Rm 15.18,19) - mas são falsos e en-
ganosos. Esses acontecimentos desviarão
pessoas que estão a caminho da destruição,
porque elas fecharam a sua mente para a
verdade do evangelho que é o único que
pode salvá-los, e assim eles estão abertos
para aceitar absurdos. O destino triste dos
perdidos é assim, no final das contas, sua
própria responsabilidade. O que Deus faz
é confirmá-los nos seus maus caminhos ao
tomá-los impermeáveis à verdade que eles
rejeitaram e abertos para a persuasão de
mentiras. O final de tudo é o juízo, e no-
vamente se realça que este vem quando as
pessoas arriscam a sua vida numa parceria
com o mal e rejeitam a verdade. Pode ha-
ver um ponto em que a pessoa que rejeitou
o evangelho já não é capaz de retroceder
de um curso destinado à destruição.
 1937
13,14 Há uma advertência aqui para
crentes em Cristo a que nem comecem no
trilho que dá em desastre. Ela é ofuscada,
no entanto, por uma afirmação eloquen-
te da convicção de Paulo de que isso não
acontecerá aos seus leitores. Qualquer in-
certeza sobre a sua própria salvação deve
ser vencida pela lembrança da sua posição
em Cristo. Paulo formula as suas observa-
ções em mais um relato de oração (13,14).
Ele pensa nos seus leitores como irmãos
amados pelo Senhor, i.e., Jesus, aquele
que virá com juízo sobre os incrédulos. Ele
está associado ao Pai que vos escolheu [...]
para a salvação. Desde o princípio coloca
esse ato no passado distante (cf Ef 1.4) e
tem o efeito de sugerir que um plano fei-
to há tanto tempo não será levianamente
alterado agora. O plano é realizado pela
ação de Deus, aqui chamada de santifica-
ção (i.e., o ser separado dos leitores como
povo de Deus e o ato de ele transformar
a vida deles pelo poder do seu Espírito),
e pela fé dos leitores no evangelho (con-
trastar com v. 12). Para que esses dois pro-
cessos complementares possam ter início,
Deus chamou os leitores pela pregação
do evangelho (cf lTs 1.4,5; GI 1.6,7). O
propósito final do chamado é que os cren-
tes recebam uma parte na glória de Cristo
(cf Rm 8.17,30).
15 Com base na posição cristã dos seus
leitores, Paulo os encoraja a ficarem firmes
na sua fé - não só diante da perseguição
(1Ts 3.8), mas também diante de ensina-
mentos falsos. Eles precisam se apegar fir-
memente ao que Paulo lhes ensinou, tanto
durante sua visita a Tessalônica quanto
nas suas cartas. Aqui Paulo provavelmen-
te está estabelecendo um contraste entre
a interpretação correta do seu ensino e as
deduções falsas que tinham sido feitas dele
(2.2). O que Paulo ensinou eram literal-
mente tradições, uma palavra que ressalta
o fato de que o ensino de Paulo estava fun-
damentado no que ele mesmo tinha recebi-
do como ensino, a fé comum dos primeiros
cristãos (cf lCo 15.3).
2TESSALONICENSES 3
16,17 O futuro dos cristãos tessaloni-
censes dependia não somente da obra de
Deus e de sua reação, mas também das
orações dos seus amigos. Paulo suporta a
sua exortação com uma oração, expressa
em forma de terceira pessoa (cf 1Ts 3.11-
13). Ela transmite, incidentemente, que
Jesus (citado primeiro) e o Pai são a fonte
conjunta das bênçãos espirituais. Ela lem-
bra os leitores de que Deus os ama e assim
lhes deu encorajamento e esperança para
o futuro - apesar dos eventos temíveis
mencionados anteriormente no capítulo.
Ela pede que Deus continue a encorajá-los
no seu coração e os tome determinados a
agir e falar de formas que demonstrem a
realidade da sua fé.
O ensino de Paulo nesse capítulo teve
a intenção de advertir os seus leitores de
que o fim não estava tão próximo quanto
eles pensavam e de encorajá-los a ficarem
firmes apesar do evento temível que ainda
estava por vir. Sua mensagem aos cristãos
hoje é que eles não devem estar preocupa-
dos em identificar os "sinais do fim", mas
devem estar alerta para as questões morais
e espirituais que surgem em tempos de per-
seguição e de tentação para abandonar a fé
no Senhor e na sua vinda.
3.1-16 Instruções para
a vida na igreja
Segue uma série de instruções gerais para
a igreja na sua missão e vida. Há dois tó-
picos principais, a oração pela missão de
Paulo (v. 1-5) e o perigo da ociosidade
(v. 6-16).
1-5 Finalmente não é necessariamente
um sinal de que a carta está próxima do
fim, mas marca a transição para um as-
sunto novo. Paulo repete o seu pedido por
orações (cf 1Ts 5.25). Aqui ele é motivado
pela necessidade contínua da difusão rá-
pida e bem-sucedida do evangelho como
um corredor correndo num estádio. Essa
imagem já fora aplicada à Palavra de Deus
em Salmos 147.15. A palavra é glorifica-
da quando as pessoas a recebem com fé
2TESSALONICENSES 3 1938
e ação de graças. Outro motivo de oração
é que o próprio Paulo seja liberto da opo-
sição de pessoas más e perversas (cf Rm
15.31); ele provavelmente tem em mente
acima de tudo a perseguição judaica (cf
lTs 2.16). O comentário um tanto óbvio
porque a fé não é de todos, que indica por
que há oposição ao evangelho, prepara o
caminho para a afirmação de Paulo de que
os próprios leitores precisam, e receberão,
a força para lidar com os seus próprios
problemas. Por trás das diversas formas de
oposição aos leitores Paulo vê a figura de
Satanás, o Maligno. Com essa afirmação
da fidelidade de Deus para com o seu povo
em mente, Paulo pode expressar a sua con-
fiança em que os leitores farão o que ele
ordena. As coisas que vos ordenamos po-
dem ser as instruções de Paulo em geral ou
talvez seu pedido específico de que orem
por ele. Em seguida, vem mais uma ora-
ção em terceira pessoa para que os leitores
demonstrem na sua vida o mesmo tipo de
amor que Deus demonstra e a mesma cons-
tância que Cristo demonstrou.
6-10 A segunda seção avança para
um tópico que surgira anteriormente em
lTessalonicenses 4.11,12; 5.14. Ela deixa
claro que o problema de certos membros
da igreja que vivem ociosas à custa da
generosidade de outros membros remon-
ta ao tempo em que a igreja foi fundada
(lO). Evidentemente havia pessoas vi-
vendo abaixo da linha da pobreza e elas
dependiam das doações das pessoas com
mais posses. A crença em que o dia Senhor
estaria chegando pode ter encorajado tal
atitude. Esse modo de vida estava dando
uma reputação negativa à igreja, e por
isso Paulo se posiciona fortemente contra
ela. O v. 6 começa com uma ordem seve-
ra (cf lTs 4.11), apoiada pela autoridade
do Senhor, segundo a qual os membros da
igreja precisam se afastar daqueles cuja
conduta é indigna. Estes não devem ser
privados do seu lugar na igreja, mas os
outros devem se distanciar deles para que
estes reconheçam que sua conduta não é
aceitável e não está de acordo com o en-
sino estabelecido na igreja transmitido por
Paulo (lTs 4.1,2). Esse ensino foi ilustrado
concretamente no modo de vida de Paulo
e seus colegas missionários cuja conduta
aqui é proposta como um modelo a ser
seguido. Os missionários não viviam de
maneira desordenada ou ociosa (cf 5.14,
nota), e por isso não tinham tido a neces-
sidade de receber doações de alimento das
pessoas da igreja. (Paulo provavelmente
quer dizer aqui que não pediram nem re-
ceberam doações de comida da igreja, mas
foram às lojas e compraram o que precisa-
vam). Deveria ser desnecessário dizer que
isso não significa que os missionários se
recusaram inflexivelmente a aceitar a hos-
pitalidade quando convidados. Antes, eles
tinham trabalhado duro para evitar causar
incômodo para outras pessoas (cf 1Ts 2.9).
Isso foi assim apesar do fato de que Paulo
acreditava firmemente e ensinava que as
igrejas tinham a obrigação de prover para
os seus mestres (l Ts 2.6b; 1Co 9.4-6,14;
GI 6.6). Por causa da situação em Tessa-
Iônica, Paulo abriu mão desse privilégio.
Assim, havia mais do que uma razão para
Paulo trabalhar com as suas mãos enquanto
dava continuidade à sua obra missionária.
O seu exemplo correspondia às instruções
que ele dava (o tempo verbal usado sugere
"repetidamente"). Embora a ordem tenha
a forma de uma instrução aos abastados
para que não deem ajuda aos ociosos com
fome, sua intenção é principalmente volta-
da a estes. Vale repetir que o dito em forma
de provérbio se aplica a pessoas que não
estão dispostas a trabalhar, não às que não
têm oportunidade, e por isso não é um ar-
gumento contra a provisão da previdência
social para os desempregados.
11,12 A forma curiosa do v. 11 - esta-
mos informados de que ... - na verdade é
uma forma de falar diretamente a quaisquer
pessoas nessa categoria sem citar nomes.
(Paulo provavelmente sabia quem eram as
pessoas). Em vez de trabalhar elas mesmas,
estão atrapalhando o trabalho de outros (se
 1939
intrometem na vida alheia). Estes recebem
ordem muito severa - novamente com a
autoridade do Senhor - para que evitem
causar incômodo às outras pessoas (traba-
lhando tranquilamente; cf 1Ts 4.11) e tra-
balhem diligentemente para serem capazes
de obter o que precisam. Um bom resumo
disso é: "Pare de amolar; pare de ficar à
toa; pare de ser parasita" (William Neil).
13 Então por contraste Paulo se dirige
ao restante dos membros da igreja e, ape-
sar do perigo de que os ociosos se aprovei-
tem deles, diz a eles: não vos canseis de
fazer o bem (cf Gl 6.9). Nesse contexto,
isso significa necessariamente que eles
não devem desistir de cuidar dos necessi-
tados mesmo se às vezes algumas pessoas
se aproveitem deles.
14-16 Não obstante, apesar das instru-
ções repetidas de Paulo nessa carta, era
possível que algumas pessoas continuas-
sem num modo de vida que discordasse do
evangelho. Nesse caso, a disciplina deveria
ser usada como último recurso. Um ofen-
sor deveria ser advertido, uma expressão
um tanto vaga, o que não vai ao ponto de
indicar que a pessoa deveria ser eliminada
da lista de membros. (Talvez fosse seme-
lhante à advertência do juiz a um jogador
no jogo de futebol). Não deveria haver
comunhão alguma com tal pessoa. À luz
de 1Coríntios 5.9-11, isso muito provavel-
mente se refere à exclusão da refeição co-
munitária que era uma parte especialmente
importante da vida em igreja. Tal exclusão,
no entanto, tinha propósitos corretivos que
levassem as pessoas à percepção de vergo-
nha e ao arrependimento. Destaca-se que o
ato da disciplina não pode permitir a intru-
são de qualquer atitude odiosa ou hostil; as
pessoas que estão em disciplina são irmãos
2TE55ALONICEN5E53
(e irmãs), e o propósito deve ser "adverti-
las". O procedimento deve ser conduzido,
então, no que for possível, em espírito de
amor, para o bem do ofensor, mas ao mes-
mo tempo a vida ética da igreja não pode
ficar comprometida.
É notável que Paulo conclua uma se-
ção que trata de um caso incipiente de
tensão na igreja com uma bênção ou ora-
ção para que Deus dê a sua bênção aos
leitores. A linguagem é parecida com
1Tessalonicenses 5.23, mas, aqui, como
em outros trechos nessa carta, ele substi-
tui "Deus" por o Senhor (i.e., Jesus). Paz
é um desejo apropriado aqui; ela inclui a
ausência de discórdia e desordem, mas
não é confinada a isso.
3.17,18 Saudação final
Seguindo o costume normal, Paulo pega
a pena do seu escriba e escreve: A sauda-
ção é de próprio punho: Paulo. Essas pa-
lavras são em si mesmas a real saudação:
cf NTLH: "Com a minha própria mão es-
crevo isto: Saudações de Paulo". A sauda-
ção da própria mão de Paulo é uma marca
distintiva de que a carta é dele, e, portan-
to, o ensino e instruções nela levam a sua
autoridade (cf observação semelhantes
em lTs 5.27; 1Co 16.21-23; Gl 6.11). É
muito improvável que o propósito disso
seja distinguir essa carta de falsificações,
pois quem falsificaria cartas de Paulo já
nesses primórdios?
18 A bênção final é idêntica à de
1Tessalonicenses 5.28 com o acréscimo de
todos: nem seguidores de ensino equivoca-
do nem ociosos estão excluídos da graça
do Senhor.
I. Howard Marshall