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Elogio à matéria (a propósito de “A vida interna da célula”) (Eli Vieira)

Popularmente, o ‘materialismo’ é tido como uma certa atitude de apego a bens materiais, ou um sinônimo
de ‘consumismo’. Mas em filosofia, o materialismo é algo muito mais profundo. Para muitos autores é
sinônimo de ‘naturalismo’: a “doutrina” filosófica segundo a qual o mundo é autossuficiente e
autocontido, regulado por processos puramente naturais.
Não faltou na história quem acusasse os materialistas de tirar a beleza do mundo ao dizerem (como dizia
La Mettrie) que a mente está fundada em bases puramente materiais.
Tentarei aqui exorcizar ao menos um preconceito persistente sobre o que significa dizer que algo é
material. Me parece que quando alguém diz que os seres vivos são matéria, incluindo os homens, não raro
se pensa em matéria como um pedaço de tijolo, uma pedra ou algo assim. Isso é, naturalmente, uma ilusão.
Na comunidade científica não se fala mais em “fantasmas” na matéria. Os fantasmas parecem estar mortos
e enterrados, tanto o elã vital quanto o dualismo cartesiano. Inclusive, sobre essa última instância, no
século XX Francis Crick chamou o monismo mente-corpo de uma “hipótese impressionante” (The
Astonishing Hypothesis). Mas já nesta época não tinha nada de impressionante, não para quem estuda em
detalhe a ciência e filosofia da cognição, como António Damásio e Gilbert Ryle.
Para o propósito de exorcizar a ideia anacrônica de matéria e materialismo que mencionei anteriormente,
tomarei a biologia molecular da célula. É isso o que deve se ter em mente ao falar na materialidade da
vida, não tijolos e paredes.
Vejamos então o melhor modelo já construído para tentar
passar ao público leigo o que sabemos hoje sobre as células
(das quais os neurônios responsáveis pela mente são apenas um
caso particular). Trata-se do vídeo “The Inner Life of The
Cell”, magnífico trabalho de modelagem 3D da XVIVO em
parceria com a universidade de Harvard. Sugiro que seja
assistido agora, e depois denovo fazendo pausas de acordo com
o roteiro que escrevi adiante. Eis o vídeo:
É bom lembrar que essa animação foi usada indevidamente,
roubada, pela produção do documentário criacionista
“Expelled”, apresentado por Ben Stein nos Estados Unidos.
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No comecinho da animação temos um vaso sanguíneo de
calibre algumas vezes maior que o calibre de um capilar. Nesse
nível o sangue corre mesmo em fluxo laminar, sem parar, você
não percebe as pequenas pausas no batimento cardíaco.
Isso já é uma beleza porque mostra que o filme é
fisiologicamente correto.
As hemácias (00:11) correm mais no meio do vaso, e as células do sistema imunológico rolam pela
periferia do vaso. Isso mostra que o filme é histologicamente correto.
Aquelas células branco-azuladas (00:08-00:12) são ‘glóbulos brancos’. Mas isso não diz quase nada. Esse
termo só serve para diferenciar num microscópio de luz a diferença entre “glóbulos vermelhos”
(eritrócitos, hemácias) e “glóbulos brancos” (leucócitos), que são ambos os componentes celulares
visualmente discrimináveis do sangue sem auxílio de corantes.
Enquanto as hemácias são todas a mesma coisa – células lotadas de hemoglobina sem um núcleo, os
chamados “glóbulos brancos” podem ser vários.
Os que são mostrados nesse trecho podem ser linfócitos (mas também podem ser monócitos, macrófagos,
mastócitos, que também saem da corrente sanguínea).
O filme não é uma sequência aleatória de imagens. Tudo ali é parte do processo de diapedese: a migração
de um linfócito da corrente sanguínea para um tecido qualquer, como por exemplo o córtex de um nódulo
linfático. Isso vai ser mostrado no fim do filme (02:50-02:57).
Isso acontece todos os dias, todos os minutos nos nossos corpos, e é assombrosamente bonito.
Se não fosse a diapedese, os linfócitos não se encontrariam com as pequeníssimas amostras de antígenos
(que são pistas químicas da presença de possíveis microorganismos causadores de doenças), amostras que
são depositadas em pequenos ferimentos na pele que ultrapassam a barreira protetora de células mortas:

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naquela arranhada que você deu no rosto, naquele naco de cutícula que você distraidamente arrancou com
o dente, naquela mordida que você deu na própria língua.
Mas eu não vi nada de reação entre antígenos e imunoglobulinas nesse vídeo, então esqueça esse assunto.
Alguém deve se lembrar de alguma professora que teve no ensino fundamental que desenhou uma célula
como se fosse uma bolinha com outra bolinha dentro, ou que tenha explicado que o citoplasma seria como
um suco entre a bolinha interna e a externa.
Mas as coisas são muito mais complicadas, mais bonitas, e mais organizadas que isso.
O formato das células é mantido pelo citoesqueleto. O citoesqueleto é importante para entendermos como
é possível aquele linfócito passar entre as células apertadas do endotélio (parede do vaso sanguíneo) como
aqueles gatos serelepes que passam por debaixo da porta.
Acontece muita coisa entre os 15 e 30 segundos de filme.
Então, vamos por partes. Primeiro, olhe dos 13 aos 16 segundos iniciais.
É muita informação para três segundos de filme. Aquilo é o zoom do que está acontecendo na rolagem do
“linfócito” (vamos assumir que seja um linfócito) sobre o endotélio.
Em cima, o endotélio tem várias proteínas de membrana, mas as que interessam aqui são as que estão
causando a rolagem do linfócito.
A rolagem do linfócito pela parede do vaso sanguíneo é causada pela interação fraca entre proteínas que
estão não membrana do linfócito, chamadas selectinas, e grupamentos de açúcar ligados a proteínas do
endotélio (chamadas “ICAM”).
Quando eu digo “interação”, estou usando de uma quimera linguística que busca descrever o
comportamento de campos elétricos de cargas parciais nas nuvens eletrônicas das moléculas desse
grupamento de açúcar e de regiões específicas da ponta externa das selectinas.
As selectinas são as proteínas roxas mostradas entre 00:16 e 00:21, interagindo com as alaranjadas que
estão em cima, as ICAM.
A minha interpretação do filme pra mostrar que ele conta a história da diapedese começa logo em seguida.
De 00:22 a 00:29 o filme mostra o espaço entre a célula endotelial (em cima) e o linfócito (em baixo),
com outras proteínas participando da interação entre as duas células que permite a passagem do linfócito
para fora do vaso sanguíneo.
Já em 00:30 começamos a ver o espaço intracelular, me parece que do linfócito.
Até 00:40 são visíveis várias proteínas de ancoragem, e os filamentos que formam a parte mais externa
do citoesqueleto (filamentos de espectrina). Esses filamentos são responsáveis pela “cara” da célula.
Quando uma célula muda de forma ela reorganiza os filamentos do citoesqueleto, como quando uma
ameba vai fagocitar uma presa.
O motivo pelo qual a mudança de forma da ameba é feita praticamente da mesma forma como é feita a
mudança de forma de um linfócito é que nós e a ameba compartilhamos uma espécie ancestral comum
que fazia as coisas desse jeito. Esse ancestral viveu há bilhões de anos atrás, e este é o legado maravilhoso
dele.
De 00:42 a 00:50 vemos a natureza de alguns dos filamentos da periferia da célula: em cor de rosa,
filamentos de actina. Em verde, parece que é alfa-actinina, organizando os filamentos de actina.
A partir de 00:50 entramos mais para dentro no citoplasma, e a organização dos filamentos de actina em
rosa é diferente.
Até 01:00 é mostrada a dinâmica da polimerização e intercruzamento desses filamentos de actina. Esses
filamentos se polimerizam em hélice. É uma hélice com 5 a 9 nanômetros de diâmetro. A polimerização
acontece a partir dos monômeros, as “bolinhas” cor de rosa, que são codificadas pelo mesmo gene. As
partes amarelas grudadas aos filamentos de actina são de filamina, outra proteína que organiza a estrutura
tridimensional dos filamentos de actina.
.
Entre 01:00 e 01:04 é mostrado que além de se polimerizarem os filamentos também podem ser cortados.
O corte é feito pela gelsolina, mostrada em amarelo.
.
Depois vemos entre 01:06 e 01:10 a polimerização do mais calibroso dos filamentos do citoesqueleto: o
microtúbulo, com 25 nanômetros de diâmetro. São microtúbulos, organizados em nove pares periféricos
e um par central dentro de longas projeções cilíndricas de membrana que dão o poder da motilidade às
células, do paramécio com seus cílios ao espermatozoide e à Euglena com seus flagelos. Novamente

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legados de ancestrais comuns. (De 01:10 a 01:13 vemos a despolimerização do microtúbulo. As unidades
que formam o microtúbulo são a proteína tubulina.)
.
Além disso os microtúbulos são como uma estrada de ferro dentro da célula. É sobre um deles que está
“caminhando” a proteína motora cinesina em 01:15.
O que a cinesina está carregando não é um vacúolo, é uma vesícula, formada por membrana, o mesmo
esquema de membrana que vimos antes no vídeo.
Para “andar” (e isso é denovo uma quimera linguística para complexas interações de campos elétricos de
nuvens eletrônicas), a cinesina gasta ATP, ou seja, energia.
Finalmente em 1:26 temos uma perspectiva ampla da célula, mostrando os microtúbulos irradiando a
partir de um centro, que é o centrossomo, próximo ao núcleo.
Em cinza vemos belas mitocôndrias, produzindo o ATP já mencionado.
Mitocôndrias, como tudo o mais, lembram evolução também.
São fruto de uma briga que se tornou um casamento que já dura bilhões de anos: um parasita que sofreu
mutações e seleção natural de modo a se tornar parte de um hospedeiro. Se não pode com eles, junte-se a
eles.
Em 1:30, atrás da mitocôndria à direita vemos ao longe uma rede de membranas, ou seja, retículo
endoplasmático, e abaixo dela uma grande esfera, o núcleo, contendo o segredo da persistência da vida:
os genes, a planta a partir da qual essa linda casa celular foi construída.
Em 1:33, RNA’s mensageiros emergem dos poros do núcleo. As duas subunidades (em verde) do
ribossomo se encontram para traduzir o RNA mensageiro em proteína.
A proteína emerge do RNA na forma de um filamento laranja (01:46) que rapidamente se dobra.
“Dobrar-se” aqui é uma coisa complicadíssima que a biofísica moderna está longe de compreender
satisfatoriamente. “Dobrar-se” também é uma quimera linguística para interações físicas entre a cadeia de
átomos da proteína e esse espaço incolor que a rodeia, a água, também com suas moléculas, cargas
parciais, nuvens eletrônicas. É de tirar o fôlego a beleza da matéria, aqui insuflada da organização viva.
As proteínas são traduzidas e têm destino certo. É o que exemplifica o complexo que, caoticamente através
do movimento browniano (que tem fundamento na mecânica quântica, que eu saiba) chega até a
mitocôndria, o que é mostrado entre 1:50 e 1:57.
Em 2:00, vemos na superfície externa do retículo endoplasmático rugoso que algumas proteínas são
traduzidas através de um poro na membrana para saírem dentro do retículo. Isso acontece porque a seleção
natural moldou mecanismos que garantam o tratamento adequado das proteínas de acordo com o modo
como interagem com a água e com a membrana, e de acordo com sua atividade enzimática ou de interação
com outras moléculas.
Por isso existem compartimentos de tratamento de proteínas como o retículo e o complexo de Golgi.
O retículo pode trocar seu conteúdo interno com o complexo de Golgi. Isso ele faz liberando vesículas
(02:06-02:07). A formação dessas vesículas de membrana é também intermediada por proteínas que não
são mostradas no vídeo, como a clatrina.
Nem toda vesícula do retículo se funde ao complexo de Golgi. Algumas já estão “prontas” para serem
transportadas pela cinesina, que aparece denovo em 02:11. (Existe uma outra proteína motora não
mostrada no vídeo, chamada dineína, que faz o caminho inverso da cinesina.)
Mas outras vesículas são fundidas ao Golgi. O complexo de Golgi, como mostrado em 02:15, é um
conjunto de sacos de membrana achatados (cisternas), que trocam seu conteúdo entre si através de
vesículas. Cada compartimento está lotado de enzimas que tratam as proteínas que estão lá dentro.
Algumas proteínas são liberadas para fora da célula. Em 02:24, a vesícula transportada pela cinesina se
funde com a membrana celular e libera seu conteúdo. Algumas proteínas são livres e caem na corrente
sanguínea. Outras estão ancoradas na membrana, como as proteínas alaranjadas que mudam de
conformação em 02:40 (são integrinas).
Essas proteínas estão no linfócito e vão interagir mais fortemente com proteínas da superfície do endotélio,
acima.
O linfócito pára de rolar, porque agora a interação é mais forte que a interação que causa a rolagem. Ele
então, mudando a organização das fibras do citoesqueleto, deixa de ser globoso e passa a ser amebóide o
suficiente para passar entre duas células endoteliais.
O que causa essa mudança de comportamento do linfócito?
Um exemplo está no vídeo a seguir:
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Quando um ferimento é causado numa nadadeira de uma larva de peixe-zebra, as células mortas e
danificadas liberam moléculas quimiotácticas, junto com bactérias invasoras e outras células de defesa.
Essas moléculas quimiotácticas são reconhecidas pelo endotélio da veia (mostrada em baixo). O endotélio
da veia, em resposta, começa a liberar mais moléculas de adesão em sua membrana celular.
São essas moléculas de adesão, como as proteínas ICAM, que prendem o linfócito num ponto específico
da veia, onde ele realiza o movimento de diapedese (descrito no vídeo Inner Life of The Cell) e pode agir
onde ele é necessário.
Parece inteligente, mas é puramente mecânico. A ordem da vida existe em função da existência da vida,
e não o contrário. A evolução pela seleção natural nada mais é do que a sobrevivência de variantes desses
processos esboçados nos genes, que mudam cegamente.
É porque fazemos isso, entre outras coisas, que nós e o peixe zebra existimos. Não existimos para fazer
isso. Não há evidência de que existamos para qualquer coisa. Saber dessa cosmogonia evidenciada, da
emergência da ordem e da beleza a partir do caos, e articulá-la com uma ética que visa a preservação dessa
ordem e dessa beleza, criando finalmente propósitos para as nossas vidas particulares, é um privilégio do
qual poucos gozam neste mundo.
A ciência, esta chama tremeluzente em meio a um mar de trevas, nos mostra que é no pequeno e no raro,
e não no grande e opressivo, que as respostas estão. Usamos nossas quimeras linguísticas porque o mundo
é mais belamente assombroso e estranho do que podemos supor. Atentai para o mundo físico, observai a
matéria, meus amigos, porque é melhor conviver racionalmente com quimeras metodológicas do que se
curvar a delírios arrogantes dos que pensam encontrar a verdade anestesiando a razão.
Matéria não se resume a pedras, a coisas impenetráveis e “sólidas”. Esta ideia é anacrônica e é refutada
pelo que sabemos sobre estrelas, galáxias, células e cérebros. Não é mais surpreendente que a matéria
tenha o poder de sustentar mentes.
***
Agradeço às minhas fontes:
– Aulas da excelente equipe de professores do Instituto de Ciências Biológicas da UnB;
– Leituras cujos autores não conseguirei me lembrar agora;
– Molecular Biology of The Cell, livro de Alberts e seus colaboradores, publicado pela Garland Science
em 2002.
P.S.: Peço desculpas aos daltônicos por ter identificado algumas coisas no filme pela cor.

Dualismo Material, ou Apresentando O Grande Ininteligível (Eli Vieira)


Abigail Hensel e Brittany Hensel são duas moças bem humoradas,
cheias de vida, nascidas em 7 de março de 1990 em Minnesota, Estados
Unidos.
Cresceram em New Germany, Minnesota, estudaram em escola luterana,
andam de bicicleta, digitam rápido o teclado, correm, e recentemente
conseguiram carteira de motorista. São duas personalidades distintas.
Um detalhe sobre Abigail e Brittany é que as duas moças compartilham
um só corpo, e a aparência exterior é de um corpo humano dotado de
duas cabeças.
Cada lado desse corpo é controlado por um desses dois cérebros.
O corpo funciona muito bem, tem por exemplo três rins, dois intestinos, três pulmões, um fígado, um par
de ovários, um útero, uma bexiga, uma vagina e uma uretra; e só passou por uma cirurgia preventiva
quando Abigail e Brittany estavam com 12 anos de idade.
Isso não é evolução, mas dá um exemplo de como a natureza pode ser flexível.
Tão flexível, que, quem sabe, em milhões de anos um réptil pode virar um ser humano.
Há pessoas que, imersas numa sociedade teísta como a brasileira, diriam que seria injusto culpar “Deus”
(o deus dos cristãos) pela condição das gêmeas. Isso com a idéia de que essa condição é necessariamente
ruim ou horrenda.
Caso fosse de fato uma condição ruim e horrenda, não é injusto culpar uma certa definição de “Deus” que
diz que este ser é ao mesmo tempo perfeitamente bom, onisciente, onipotente, e onipresente.

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Como já indicou Epicuro, ao menos um problema ético emana dessa definição, e a única resolução para
a questão do mal de Epicuro, à parte negar a existência de tal ser, seria mudar este conceito (definição).
Isso não é uma falsa dicotomia, dado que a mudança de definição traz em si todas as outras alternativas à
negação.
Mas a condição das gêmeas não é necessariamente um tormento. Achar que Brittany e Abigail sofrem um
tormento é ignorar que elas vivem muito bem, como eu já informei. E achar que a condição delas é
horrorosa é impor sobre elas uma estética própria, que é irrelevante a elas.
Pensar que a condição das duas implica um tormento horroroso é ter um demasiado centrismo em si
mesmo, ao ponto de aplicar a outrem indevidamente os seus valores. Mas aplicar indevidamente valores
a outrem nunca pareceu ser um problema entre religiosos, não é?
Muitos religiosos justificariam a condição de Brittany e Abigail por um argumento liberal de que o livre
arbítrio não é atributo apenas dos indivíduos, mas também um atributo da própria matéria.
Me parece forçoso aplicar uma dicotomia implícita de determinismo / livre arbítrio à matéria, dado que
ela não é só uma coisa nem outra. E me parece que ao menos que uma coisa muito louca esteja acontecendo
aqui, deixar a Natureza chafurdar em si mesma promiscuamente, de modo a originar uma emergência de
contingências que de forma não-determinística geram uma mente (ou duas mentes num corpo só, como é
este caso) é incompatível com saber de antemão que esta mente surgiria, com todas as suas
particularidades e limitações que podem determinar toda a sua trajetória (inclusive idéias de pecado, de
beleza, de bem e mal, etc.).
E quanto à opinião dos espíritas, segundo a qual a condição dos corpos é resultado do que fez o espírito
em vidas passadas?
Não tenho nenhuma opinião firme sobre isto, mas me basta desconfiar que a memória é algo que se perde
na morte do corpo e é irrecuperável. Me basta desconfiar também que a personalidade não é herdada mas
sim construída pacientemente durante a vida.
É lamentável que existam sistemas de crença que defendem que a moral deve ser apreendida de um grande
teatro cósmico que me lembra os experimentos de Pavlov ou de B. F. Skinner.
Esta plasticidade da vida, que permite casos como o dessas irmãs americanas, é de certa forma uma pista
de que o universo não está sob o controle de um deus. Por que não considerar, como deveria fazer uma
mente racional, que essa possibilidade existe e não é fraca?
Me parece anti-racional descartar de antemão a hipótese de não haver qualquer tipo de divindade a nos
olhar.
Desviantes existem porque as “leis” naturais permitem exceções, principalmente aquelas que se referem
a entidades complexas como animais. E pessoas “anômalas” existem porque o homem é só mais um
animal, e é uma amostra ínfima do universo que o cerca.
Pergunto uma coisa importante: Qual é o motivo para supor qualquer espécie de antropocentrismo ou
antropomorfismo ao universo/natureza?
Assim como as gêmeas, o Universo não merece que enfiemos nele os nossos valores.
Aliás, qual é o motivo de propor esse deus ouroboros, uma cobra que devora a si mesma pelo rabo? (Uma
entidade que tem características – como uma mente – que se originam de causação distal em relação a
certos fenômenos, que é capaz de criar ou alterar esses próprios fenômenos. Ou seja, há evidências de que
a mente humana surgiu no decorrer da evolução, e a evolução é um processo biológico que depende da
existência da matéria, então por que creditar o atributo mente a um deus anterior à própria matéria? Esse
ciclo que se completa com a mente divina criando a matéria que é o que eu chamo de deus ouroboros,
comendo seu próprio rabo.)
Para os que pensam que Deus existe e é intangível e inefável, entretanto criam para ele altares, há uma
expressão de Peter Medawar, que ele usa num comentário errôneo sobre os sonhos (em Induction and
Intuition in Scientific Thought):
“Utter nonsensicality”, que traduzo como “Ininteligibilidade ulterior”. É isso que penso ser o atributo
mais comum de qualquer coisa que consideremos sob a luz das capacidades de nossas mentes. Tudo isso
que me cerca é de uma ininteligibilidade ulterior.
Sobre tudo isso que me cerca, que às vezes chamo de Universo, apenas o tolero, e o contemplo. Não
merece altares, pois não cultuo algo ininteligível. Cultuo o que compreendo, ou o que mesmo não
compreendendo me é acessível. Em vez de altares, sou todo dedicação a quem ou o que penso que tem
merecimento: ciência, filosofia, Epicuro, Carl Sagan, Bertrand Russell. Têm merecimento porque tornam
o mundo menos ininteligível para mim, portanto menos digno do meu temor.
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(Não estou falando em apreciação estética, isso eu tenho para com as coisas independente de sua
ininteligibilidade.)
Para mim, o grande erro dos místicos é fingir para si mesmos que estão desfrutando de gotas de
compreensão, quando na verdade estão se perdendo em labirintos de antropização do que não é antrópico.
O que é antrópico, o que é cogito ergo sum, é uma amostra limitadíssima de tudo o que me cerca. Portanto,
concluo que é no mínimo altamente fadado a equívoco aplicar essa amostra ao resto do universo, no
sentido de pensar que o universo tem de conter em seu cerne ou ser governado por algo dotado de razão,
mente, e conceitos de estética e ética.
Em termos mais técnicos (não que eu esteja fazendo ciência aqui), tentar afirmar “Deus existe” é algo que
vai cair lá onde se aceita a hipótese nula na maioria das vezes, e mais afastado da hipótese alternativa
quanto mais a definição de “Deus” for próxima da definição de “Homem”.Abigail, Brittany e o Universo
estão em seu pleno direito: apenas são. Se são bonitos ou feios, bons ou ruins, não compete a nós decidir.
Mas para mim, sempre há beleza na autonomia, na complexidade e na emissão de luz própria. Não somos
capazes de compreendê-los totalmente. Mas podemos ouvir o que têm a dizer, por mais diferentes que
sejam de nós.
(Constelação de Gêmeos)

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