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04/02/2017 "Meu psicólogo disse que racismo não existe" ­ Portal Fórum

“Meu psicólogo disse que
racismo não existe”
25 de junho de 2015  9727    0

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Depoimentos de pacientes revelam que muitos psicólogos não sabem
lidar com questões raciais no consultório. A maior carência é uma
formação que aborde o problema do racismo no Brasil

Por Jarid Arraes

Marília Lopes, mulher negra e professora universitária de 38 anos,
procurou uma psicóloga porque sofria com depressão há muitos anos.
Sentia que precisava de ajuda e que seu trabalho estava sendo
severamente prejudicado. Na primeira sessão de psicoterapia, sentiu a
necessidade de falar sobre as diversas situações em que sofreu racismo,
contando de sua infância trabalhando como empregada doméstica e babá
sob o pretexto de que estava “brincando com a filha da patroa”, até casos
mais recentes, em que fora seguida dentro de lojas onde fazia compras.
Ao final, a psicóloga – que era branca – afirmou que Lopes precisaria
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mudar o comportamento de “se vitimizar e transformar acontecimentos
normais em racismo”.

Em busca de sua segunda
psicóloga, Lopes chegou a
fazer cinco sessões de
psicoterapia, quando
finalmente começou a falar
do racismo que lhe causava
sofrimento. “A psicóloga
ficou visivelmente
impaciente e desconfortável
e me perguntou se eu achava
mesmo que racismo ainda
Imagem: Reprodução / Igualdade Racial no SUS é pra valer existia nos tempos de hoje”,
relata Lopes. “Saí de lá
arrasada, estava pagando muito caro por cada consulta e nunca imaginei
que uma profissional fosse questionar a veracidade do meu sofrimento,
do racismo, daquela forma. Nunca mais voltei a procurar terapia, hoje
ainda luto contra a depressão e apenas faço uso de medicamentos”,
completa.

O caso da professora Marília Lopes não está isolado da experiência de
outras pessoas negras brasileiras. Para a bióloga Tereza Amorim, as
consequências do despreparo profissional foram graves: “Comecei a
fazer terapia com um psicólogo e tudo corria bem até que comecei a
perceber que muitas das coisas que eu passava na vida aconteciam
porque as pessoas eram racistas e me tratavam de forma discriminatória
pelo fato de eu ser negra. Quando passei a falar sobre isso com meu
terapeuta, ele primeiro começou a negar que aquelas coisas fossem
racismo. Meu psicólogo disse que racismo não existe e depois passou a
dizer que não existe mais racismo no Brasil, porque as ‘mulatas’ são
valorizadas”.

Amorim conta que ainda enfrentou vários encontros com o psicólogo, até
que descobriu um grupo de mulheres negras e feministas que se reuniam
mensalmente em sua cidade. “Aos poucos, fui falando das minhas feridas
provocadas pelo racismo e pelo machismo e entendi que elas eram parte
de um problema social muito maior. A militância foi a minha terapia, a
Psicologia não fez nada por mim”, declara.
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O despreparo da Psicologia brasileira para lidar com questões raciais
ainda é um fato preocupante. Em diversos grupos de discussões sobre
racismo nas redes sociais, são recorrentes os pedidos por indicações de
psicólogos capacitados para lidar com o problema do racismo. Entre
tímidas recomendações, uma chuva de depoimentos frustrados aparece.

Para Cinthia Vilas Boas, psicóloga e militante do movimento negro, o
problema começa nos cursos de formação. “A realidade está muito longe
do que chamamos de transversalidade”, afirma. Embora o racismo seja
um profundo problema no Brasil, a formação dos psicólogos ainda não
reconhece a discriminação racial como uma fonte de adoecimento
psíquico – se reconhecesse realmente, o tema não seria uma exceção
conquistada pelos esforços de profissionais como Vilas Boas, que é
colaboradora da atual gestão das subsede do Conselho Regional de
Psicologia em Campinas, onde integra o grupo de trabalho sobre relações
raciais.

Embora haja esforços para se debater racismo na Psicologia –
principalmente por meio de atividades propostas por Conselhos
Regionais como o da Bahia, o do Distrito Federal e o de São Paulo –,
essas ações ainda são uma minoria no imenso contexto da Psicologia
brasileira. Nenhum Conselho tem o poder de modificar as grades
curriculares das faculdades e Universidades e inserir disciplinas ou
bibliografias que abordem o racismo de maneira profunda, como é
necessário que se faça. Por isso, na realidade diária, muitas pessoas
negras continuam encarando a omissão e o despreparo dos psicólogos em
seus consultórios privados – e muitas também não sabem que podem
denunciar as práticas racistas e antiéticas.

Racismo e saúde mental

Encontrar dados que mostrem a relação entre racismo e adoecimento
psíquico ainda é um desafio devido à carência de estudos e pesquisas
acessíveis na área. O material que se encontra na internet é produzido por
psicólogos militantes do movimento negro, como a publicação “Racismo
e os efeitos na saúde mental” de Maria Lúcia da Silva, integrante do
instituto AMMA Psiqué e Negritude.

Cinthia Vilas Boas explica que há muitas consequências do racismo para
a saúde mental e traça um breve resgate histórico da população negra
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brasileira: “Em África, éramos
diversas etnias, com nossos
referenciais, línguas, oralidade
e educação; viemos para o
Brasil escravizados, em
condições sub­humanas, como
animais; hoje estamos nas
favelas, com falta de acesso a
tudo, sofrendo com a falta de
respeito e baixa autoestima”.
Vilas Boas chama atenção para
essa contextualização, Cinthia Vilas Boas: “Existe a discriminação institucional,
quando profissionais da área não estão preparados para
explicando que a população atender a população negra ou até são preconceituosos”
(Imagem: Arquivo Pessoal)
negra brasileira não conhece
sua ancestralidade e nem sua “história positiva”. “Se pensarmos que
nossa construção enquanto humanos parte da visão que o outro tem e a
história positiva não é contada, estamos em constante angústia. A nossa
história nos foi negada, não foi contada e foi distorcida”, salienta.

Por isso, o sofrimento psicológico pode começar na falta de acesso a
informação e da dificuldade de enxergar as pessoas negras como parte de
algo bom, que trouxe contribuições para a história. Na escola, as crianças
aprendem sobre a história europeia e sobre as descobertas realizadas por
pessoas brancas, mas a história do continente africano e suas diversas
riquezas e saberes é omitida. “O povo negro não se sente pertencente das
suas realizações, das suas posições, das suas possibilidades, das suas
contribuições. Isso causa um desequilíbrio, sendo assim um impacto na
psiqué”, diz Vilas Boas.

O resultado desse ponto inicial é um ferida na autoestima, que leva
pessoas negras a se enxergarem de maneira inferiorizada, pois são
tratadas pelos outros como inferiores. Debaixo de humilhações
constantes, sem representatividade positiva na mídia e até mesmo no
entretenimento, vivendo sob os piores índices e indicativos sociais e,
ainda, ouvindo o tempo inteiro que o racismo deixou de existir, o
sofrimento psíquico é um destino certo.

Até mesmo a possibilidade de identificar a raiz do seu sofrimento é
roubada das pessoas negras, mesmo quando conseguem romper muitas
barreiras sociais e pagar um atendimento psicológico – algo que ainda é
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muito caro no Brasil. “Eu fiquei me questionando se não estava errado
que duas psicólogas me dissessem que não existia racismo e que as dores
que eu sentia eram criações da minha mente. Achei, por muito tempo,
que eu estava totalmente louca e duvidei da veracidade dos fatos que eu
vivi. Fiquei achando que nada havia realmente acontecido e eu estava
com um problema mais grave do que depressão”, conta Marília Lopes.
“Depois de muitos meses foi que consegui entender que fui mal atendida,
mas só quero voltar a fazer terapia se a psicóloga ou psicólogo forem
negros, quem sabe assim esse profissional tenha mais empatia e até tenha
vivenciado fatos similares aos que me agrediram”, finaliza.

Mais desafios

“As políticas publicas estão
aí; já pensamos, já falamos
em conferências e agora
precisamos tira­las do
papel”, afirma Vilas Boas.
“A Política Nacional de
saúde da população negra,
Imagem: Reprodução / Facebook
que pode diminuir
disparidades raciais na
saúde, é pouco conhecida, bem como a Lei 10.639, entre outras varias
leis, campanhas e diretrizes. A fim de avançar no tema, o Conselho
Federal de Psicologia criou a Resolução Nº 018 em 2002, que
estabelece normas de atuação para psicólogas e psicólogos em relação ao
preconceito e à discriminação racial”, explica. Porém, na prática, a
realidade é outra. “Existe a discriminação institucional, quando
profissionais da área não estão preparados para atender a população
negra ou até são preconceituosos, levando a diferenças e desvantagens no
tratamento devido à raça. Para o profissional da saúde, é importante
trabalhar a equidade do SUS, é importante que ele saiba trabalhar as
diferenças”.

A educação pode ser um ponto chave para modificar esse quadro – Vilas
Boas explica que é necessário construir um espaço legitimo e confortável
para que as pessoas negras construam sua identidade. “Sem piadinhas,
sem que o estereótipo fale mais alto, sem que sejamos vistos como sujos,
burros ou coitadinhos. A humilhação atinge o sujeito no que constitui,
atinge o negro na sua presença”, protesta.  “Não queremos mais os
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atributos inferiores, fixados no nosso inconsciente. Queremos ser negras
e negros protagonistas da própria história, da história da sociedade. Uma
sociedade mais democrática e sem desigualdades. Que a gente possa
fazer a diáspora de sentimentos, sabendo que sentimento é, de onde veio,
como veio e aonde vai. Que a gente possa encontrar o equilíbrio para
preservar a saúde mental”, almeja Vilas Boas.

Enquanto buscamos esse país livre de racismo, precisamos reconhecer o
problema do racismo em todos os âmbitos sociais, sem que nenhuma
prática profissional ou formação acadêmica fique isenta de sua
responsabilidade. Não dá para ignorar um problema tão grave e fazer
vista grossa para o despreparo profissional de psicólogos que não
conseguem lidar com as questões raciais. O ensino de Psicologia precisa
mudar.

“O negro com muita melanina é invisível, tem a voz calada. O negro com
pouca melanina é desconsiderado e muitas vezes não sabe a que grupo
étnicorracial pertence. Onde guardamos e como e vivemos a nossa
subjetividade? Quem são as pessoas que estão produzindo na academia?
São brancas ou negras? Estão produzindo o que?”, provoca Cinthia Vilas
Boas.

A resposta pode não ser confortável, mas encará­la é o primeiro passo
para que a saúde mental deixe de ser um privilégio de poucos. O racismo
precisa ser reconhecido e combatido para que exista, de fato, saúde
mental.

Foto de capa: Reprodução / Facebook

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