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Gema Conte Piccinini

ORGANIZADORA

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Porto Alegre
2018
NUPE | NÚCLEO DE PRODUÇÃO
EDITORIAL DA GRÁFICA DA UFRGS

acompanhamento editorial
Michele Bandeira
projeto gráfico
Carolina Nobre
editoração
Carolina Nobre
Tábata Costa
revisão
Ana Santos
capa
Antônio Silveira
Tábata Costa
edição de imagens
Felipe Hackner

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

I27 Ilhas de conhecimento / Organizadora: Gema


Conte Piccinini. - Porto Alegre: UFRGS, 2018.
242 p. : il.

ISBN 978-85-9489-107-5

1. Ilha da Pintada (Porto Alegre, RS) 2. Memó-
rias 3. Extensão universitária I. Piccinini, Gema Conte

Catalogação na fonte: Rubens da Costa Silva Filho CRB10/1761


Esta obra resulta das produções do projeto
“Alfabetização ecológica em saúde pela cura da terra:
transpondo 2012”, que integra o programa “Ilhas de
conhecimento: compartilhando práticas e saberes
entre as comunidades universitárias e da APA Delta
do Jacuí”, coordenado pela profa. dra.
Gema Conte Piccinini.
Sumário

Prefácio....................................................................... 7

Apresentação............................................................. 9

Iscas biográficas do Delta: fragmentos


da vida de um pescador........................................... 13

Iracema: a Cema da Ilha......................................... 41

As histórias do seu Salomão................................... 75

As aventuras do seu João...................................... 109

As velhas histórias da Ilha da Pintada.................. 143

Vó Caco................................................................... 177

Apêndices............................................................... 215
Prefácio
Ana Lúcia de Lourenzi Bonilha

Enveredar pelas histórias e estórias de pessoas com


alma e dedicação às suas crenças – isso é o que os lei-
tores farão neste livro. A começar pela autora, Gema
Conte Piccinini, que desde sempre acreditou na pos-
sibilidade de que seus alunos universitários fossem ca-
pazes de aprender sobre a vida e as pessoas pelo exer-
cício da escuta e da sensibilidade. Aprender a cuidar
para além do que está escrito e com o que está escrito
nos livros e nos relatórios de pesquisa, com a cren-
ça de que o cuidar e o cuidado vão além de curar as
feridas do corpo, sejam da pele ou dos órgãos, e de
que estas também dizem respeito aos sentimentos e
à alma.
Desde que a conheci, Gema sempre acreditou que o
ensino sobre cuidado não se restringe à sala de aula
ou de atendimento, mas inclui os espaços onde as pes-
soas vivem e convivem. Fez das atividades de exten-
são uma continuidade da sala de aula e uma oportu-
nidade de convivência para quem quisesse aprender
sobre a vida das pessoas.
Neste livro, estão relatadas algumas andanças que
Gema trilhou ao exercitar as atividades de extensão
com os moradores da Ilha da Pintada e que ilustram
o modo como ela pensa a universidade: estar junto
com aqueles que se fazem presentes na vida de outros,
aprender com eles, estejam onde estiverem.
Desejo a todos uma boa leitura.
Apresentação
Gema Conte Piccinini

Aqui temos o que foi possível materializar através


do filtro dos sonhos do programa “Ilhas de conheci-
mento: compartilhando práticas e saberes entre as co-
munidades universitárias e da APA Delta do Jacuí”
(PROREXT/UFRGS), gestado durante o projeto “Quem
sujou a minha água?”, realizado na Ilha da Pintada de
17 a 23 de janeiro de 2011, período em que professores
e alunos foram acolhidos nos espaços da Secretaria Es-
tadual do Meio Ambiente (SEMA) na Ilha Mauá.
Desde então, esse programa soltou âncoras na Ilha
da Pintada – ao longo de 2011 e 2012, foi nutrido sema-
nalmente por um grupo interdisciplinar de professo-
res e alunos da UFRGS e de outras universidades, atra-
vés de projetos e ações específicas programadas e/ou
criadas a partir de demandas surgidas nos contatos
com as pessoas, famílias, instituições e a partir de ne-
cessidades ou recursos por nós percebidos no Delta.
O programa foi contemplado com o Prêmio Des­
taque UNITV 2011 pelo desenvolvimento de ações per-
manentes que buscam a valorização do patrimônio cul-
tural, histórico e natural da região do Delta do Jacuí,
estimulando a interação entre as comunidades locais
e acadêmicas.
Com essa dinâmica, foi-se criando uma rede de
múltiplas conexões. A “Alfabetização ecológica” (POP/
PROPESQ), iniciada em 2009 na Vila Cruzeiro do Sul
(e ainda em vigência), também veio para a Ilha, poten-
cializando as relações humano-afetivas e a valoriza-
ção do lugar.
Esta obra abriga o filtro dos sonhos da Ilha da Pin-
tada, congregando em sua teia muitos elementos do
que aprendemos com as seguintes pessoas e entidades:
Fritjof Capra, que inspirou o projeto “Alfabetização
ecológica”.
Professor Clóvis, pioneiro deste sonho-realidade,
que nos introduziu na Ilha através do projeto Convi-
vência.
Seu Salomão, seu João, as senhoras das ilhas, vó
Caco, seu Alfredo, dona Sueli e dona Iracema.
A turma do projeto de extensão “Bacatelas”, que,
sob a maestria capriana de Sofia e Liv, construiu do
nada, num coletivo ímpar, o horto comunitário no pá-
tio do salão da igreja em frente à Escola Mabilde.
Os visitantes da Rede Unida e do 5.° Congresso
Brasileiro de Extensão Universitária (CBEU) e cada um
dos bolsistas e acadêmicos voluntários, bem como seus
familiares presentes nos mutirões.
A SEMA, que desde o início nos acolheu e vem nos
abrigando.
A equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF),
com a qual compartilhamos a promoção da saúde e
também dona Iracema, nossa relíquia coletiva, bem
como outros sonhos em construção.
A Colônia de Pescadores Z5, a Creche Municipal
da Ilha da Pintada, o Instituto de Educação e Desen-
volvimento Humano (IDE) da Ilha das Flores, o gru-
po Ação Rua, a Associação Amigos Artesãos e Pesca-
dores da Ilha da Pintada (AAAPIP), nós mesmos nas
idas, vindas e permanências no Delta.
Enfim, esse todo invisível que nos une, nos congre-
ga, nos inspira, criando uma atmosfera de bem-querer.
Nesse convívio, o pouco que a teia reteve foi para
alimentar e fortalecer os nós da rede cujos fios alber-
gam, por momentos, os passageiros do programa a fim
de prepará-los para mergulhar na experiência da par-
tilha que ele oferece com singularidade ímpar entre os
ilhéus. Como bibliotecas vivas, eles alimentam nosso
aprendizado com seus saberes mais antigos e mais
atuais, porque vivos.
Toda esta produção de conhecimento acadêmico
acontece oxigenada pela observação, pelo convívio e
pela partilha entre acadêmicos, escolares, anciões e a
comunidade do Delta. Encontros em pontos signifi-
cativos das ilhas formataram sagrados momentos de
experiências únicas e múltiplas, no tempo de cada um.

10 Apresentação
Iscas biográficas
do Delta: fragmentos
da vida de um pescador

Estar com Alfredo e Sueli é desfrutar da sabedoria


de um casal de pescadores que muito viveu. Ao
pouco desse muito, ousamos chamar de “iscas”.
Agradecimentos:
A Deus, que permite a vida.
À Universidade, que viabiliza as trocas.
À Ilha da Pintada e às suas instituições,
pelos braços abertos.
Ao seu Alfredo, pelas palavras e pelo carinho.
À Sueli, pelo aconchego.
À Z5, pelo ombro amigo.
A nós mesmos, pela vontade de fazer história.
15
Introdução
Trazemos aqui alguns nós mais coesos, fundados
na curiosidade de relacionar fragmentos das histórias
de seu Alfredo com fragmentos de nossas próprias vi-
das. Tentar abrir caminhos para que novas vidas se en-
contrem a fim de continuar a caminhada.
Entre encontros e desencontros, o nome “Alfre-
do” foi falado e ouvido junto com um número grande
– “92” – e com uma profissão milenar – “pescador”.
Esses sons todos unidos formaram ideias e desejos pul-
santes: conhecê-lo, ouvi-lo, senti-lo.
Um homem que conhece a Ilha há mais de noventa
anos, pesca todos os dias nesse lugar, já viu muitas gera-
ções surgirem e sumirem nas margens do rio Guaí-
ba, já ouviu muitos sons da natureza, às vezes sem
procedência (acompanhados de mistério, mas nunca
acompanhados de medo), já procriou e já transmitiu
seus olhos castanhos, sua sensibilidade, humildade e
respeito pela vida, pela natureza e pelas pessoas.
Motivados pela vontade de viver momentos com
ele e de registrar suas histórias, fomos visitá-lo. Logo
no momento da chegada, fomos surpreendidos por
uma personagem até então desconhecida: dona Sue-
li. Mulher forte, falante, cozinheira, costureira, docei-
ra, rendeira, mãe, avó, bisavó, tataravó. Saber que essa
mulher tem também 82 anos de história para contar
aumentou a vontade de conhecer e ouvir esse casal – e
tentar descobrir a receita de sua forte e duradoura união.
Os relatos dessa visita contam um pedaço da his-
tória da Ilha da Pintada através dos olhos e da pele de
um antigo pescador e de sua esposa. Foram transcri-
tos por nós, acadêmicos, e são apresentados nas pró-
ximas páginas.
Seu Alfredo com o neto.

Terça-feira, 10 de julho de 2012.


Ilha da Pintada, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Chegamos à Ilha da Pintada por volta das 9h30min.
Lá, vamos direto à rua que contorna o rio, à casa de
seu Alfredo. Chamamos pelos moradores algumas ve-
zes, mas parece que não estão em casa. Seguimos para
a Colônia de Pescadores Z5 para ver se sabem de seu
Alfredo, se ele ainda está na pescaria – afinal, seu Vil-
mar (figura principal da Z5) é seu genro. Dizem-nos
que sim e, então, resolvemos esperá-lo à beira do rio.
O dia está um pouco nublado, mas sem chuva. A pai-
sagem da região tem um ar de serenidade. Durante
o percurso, aproveitamos para fazer alguns registros
fotográficos.
Antes das 10 horas, no horário previsto, seu Al-
fredo, com muita objetividade, desce da canoa já atra-
cada em seu porto pelo neto, que o acompanha des-
de sempre nas pescarias. Cumprimentamos os dois.
Perguntamos se eles se importariam se fotografásse-
mos sua chegada; Alfredo afirma que não há proble-
ma – talvez já acostumado com o reconhecimento de
pescador mais antigo da Ilha. Pegam a caixa dos pes-
cados, sobem o trapiche, atravessam a rua, entram em
seu quintal. Já contando de sua parceria, ambos ensa-
cam os peixes, como de costume: meio a meio. Num
instante, seu Alfredo tira a roupa impermeável, en-
quanto somos recebidos por sua esposa, Sueli. Logo
ele vem à sala, senta-se e começamos a prosa.

18 Iscas biográficas do Delta


Acomodamo-nos todos na sala; seu Alfredo toma
uma poltrona individual e nós, Mauricio, Bruna e
Gema, dispomo-nos ao seu redor. Dona Sueli fica en-
tre vindas e idas até a cozinha, sempre atenciosa e nos
oferecendo café e biscoitos. Compartilhamos, também,
os aperitivos que trouxemos. Após alguns minutos de
familiarização, reiteramos nossa proposta para a en-
trevista. Seguimos com a conversa num tom tranqui-
lo e informal, numa harmonia só sentida, um misto
de contação de histórias, fruição do ambiente criado e
sensações de plenitude. Assim, construímos os diá-
logos à medida que seu Alfredo nos conta sobre sua
vida na Ilha.
Gema inicia a conversa fazendo uma proposta tí-
mida:
– Então, a gente queria, de repente, unir a conver-
sa, porque a sua esposa é também parceira de pesca.
Tanto tempo juntos...
Seu Alfredo responde logo em seguida:
– Agora não tá pescando mais.
Sueli complementa:
– Agora tô fazendo serviço dentro de casa.
Gema:
– Mas tem coisa pra conversar também, né?
Nas andanças entre sala, quartos e cozinha, don-
de saem facilmente café e quitutes, Sueli aparece e de-
saparece durante a visita, escutando e dando seus tem-
peros à conversa.
– Com a chuva, o rio volta a correr – conta Alfredo
antes de nos organizarmos entre as emoções do en-

19
contro, a objetividade acadêmica programada e o que
estamos sentindo neste momento em que a chuva e
os relâmpagos também começam a tomar conta.
Mauricio inicia oficialmente:
– O senhor lembra o nome da gente? Mauricio,
Bruna, Gema. A gente marcou o encontro hoje para
conversar com o senhor, com a sua esposa... Sobre sua
vida na Ilha, falar sobre as histórias; o senhor viveu
aqui 92 anos!
Alfredo:
– Nossa vida foi sempre aqui, pescando, de barra-
ca; agora a gente não sai muito. Agora pra onde saio,
saio de lancha. Se fosse mais novo ainda ia fazer uma
lancha; o pessoal em volta tem lancha.
Mauricio pergunta como a Ilha era e como se trans-
formou no que é hoje.
Alfredo:
– O rio sempre foi o mesmo. Mas ele muda. O
que muda é o rumo. Com as águas a terra vai saindo,
vai indo pra outro lugar. Aqui pra baixo aumentou,
não sei, mais de dois mil metros ali pro lado de Guaí-
ba que desceu... Cada enchente que dá, da ponta de
cima da Ilha a água que vem vai indo, e indo, e vem
redemoinhando e vai aterrando lá adiante, aterrando
a ponta de baixo. Vai saindo aqui, vai ficando lá, vai
criando mato.
Mauricio:
– E um pouco do que a gente queria conhecer... A
gente tá aqui há pouco tempo, gostaríamos de saber

20 Iscas biográficas do Delta


como era antigamente, aqui em volta, se era muito di-
ferente, tinha morador, tinha casa, tinha comunidade?
Alfredo:
– Era pouca casa, não tinha... Dava pra contar as
casas. Onde tinha a sede tinha uma casa, na esquina,
por ali assim tinha outra, mais embaixo, tinha pouca;
não era tudo junto como é hoje.
Mauricio:
– Seus pais eram daqui?
Alfredo:
– Não, eles moravam em outro lugar, eu vim pra
cá com dois, três meses, não sei bem certo. Aí nunca
saí mais. Moro na Ilha. Bom, quer saber da Ilha, vou
explicar como era a Ilha. Bom, das enchentes que eu
me lembro... Lembro da de 1936, depois a de 41 que ar-
rasou a Ilha... Mas da enchente de 36 me lembro, mas
não tenho a data. Eu fui no colégio lá no estaleiro...
Gema:
– O estaleiro Mabilde?
Alfredo:
– O estaleiro Mabilde!
Seu Alfredo continua:
– Aí fomos pro colégio lá. Fui três meses só pro
colégio, aí veio a enchente, aí nunca mais pude ir pro
colégio... Depois perdi meu pai com 13 anos, não ti-
nha onde trabalhar, não tinha estudo. Mas eu sei fa-
zer de tudo e não tem o que eu não faça, só não sei ler
e escrever... Não me interessei mais também.

21
Mauricio:
– O senhor sabe fazer um monte de coisa, pescar,
fazer barco...
Alfredo:
– Eu faço barco... Fazia... Agora não quero nem sa-
ber, governo tá fazendo, vou pagar ali pra fazer... Casa
fazia e faço, a parte de baixo aqui foi tudo eu que fiz:
as vigas, senta pé.
(A Sueli, na cozinha, está falando que os dois fi-
zeram...)
Gema, para Sueli:
– Entra aqui, conte pra gente também...
Sueli:
– Deixa ele...
Alfredo:
– O que eu sei, o que eu fiz: eu digo, não tenho
vergonha de contar... Se eu tivesse estudo eu dizia, não,
eu sei... Sei escrever de tudo, mas não sei dizer o que
tô escrevendo. Falo do estudo da escola, tem outro.
(Um lindo cão carinhoso entra e fica aos nossos
pés ouvindo a conversa.)
Alfredo:
– Comecei a trabalhar com nove anos, ia pescar...
Gema:
– Ia pescar com quem?
Alfredo:
– Com meu pai, ia pescar com meu pai. Perdi ele
com 13 anos. No dia que eu ia fazer 13 anos ele mor-
reu... No dia do meu aniversário... Me lembro até hoje,
não gosto nem de falar.
Bruna:
– Então não vamos falar! Tu não tem outras his-
tórias de mistérios? Nós falamos com outros pescado-
res e eles falavam de histórias de assombração...
Alfredo:
– Sobre assombração, não acredito. Mas, ah! Isso
eu tenho história, de ver certas coisas, já vi coisa as-
sim. Eu tava ali atrás do Morro da Polícia, num porto
que se chama Figueirinha, tava eu e meu guri mais
moço, távamos sentados assim, eu e meu guri mais
novo, perto do fogo, aí veio uma luz por cima, assim...
Um clarão, clareou mais que dia! Não levou um mi-
nuto e escureceu de novo. Meu guri perguntou: pai,
que que é isso? Isso eu já vi uma porção de vezes. Tem
pessoal que sai correndo, lugar aí que pessoal não
acampa... Eu acampo... Tem uma porção de coisa que

22 Iscas biográficas do Delta


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eu já vi por aí. Lá em cima vi também, num arroio que
não tem saída, quando vi a última vez parecia a mes-
ma coisa que tivessem jogado um galão de gasolina e
tocado fogo, clareou tudo!
Mauricio:
– Fazia um clarão assim? O senhor sabe o que era?
Alfredo:
– Não sei! Eu deitado no barco, nessa época eu
tava sozinho, me acordei com aquele barulho, pare-
cia um temporal levando tudo, levando mato abaixo,
tudo! Depois eu levantei, olhei, tava tudo quietinho.
Já dormi numa casa, que era da parteira, a falecida
Luci... Lá ela não abre a porta pra ninguém, não abre
pra ninguém se não chamar pelo seu nome. Eu tinha
uns 15 anos... Tá, não tem importância... Aí ela fazia
pão, levava pão, café, tudo; deixava ali, aí saía. Quan-
do foi um dia que, na cozinha, perto da porta, ouvi
um barulho de arrastar tamanco, uma pessoa de ida-
de, arrastando chinelo, sei lá o quê, lá perto da porta.
Fazendo barulho e chegou na porta e bateu na porta.
Mas eu não me sofri; ela disse pra não abrir a porta se
não chamasse pelo nome, mas eu, curioso, né, me le-
vantei, abri a porta, olhei e não tinha ninguém. Quan-
do foi daqui a pouco, tinha muita criação de galinha
e... e... e... aquele barulho, voou galinha pra todos os
lados. Parecia um bicho batendo asa ali no galinheiro,
aí levantei de novo, fui olhar o galinheiro: as galinhas
quietinhas, tudo deitada. Quando foi daqui a pouco
ouvi o barulho no portão, o portão abria, fazia barulho,
né... Me levantei de novo, ela me pediu pra não levan-
tar, mas eu fui ali.
Mauricio/Bruna:
– Curioso!
Alfredo:
– É, pois eu nunca tive medo de nada... Aí me le-
vantei, tinha nada, fui na rua, fiz a volta, fechei o por-
tão, coisa nenhuma... Aí, quando chegou uma hora

24 Iscas biográficas do Delta


da madrugada, ela chegou e me chamou pelo nome,
contei pra ela que fez barulho, parecia galinha voan-
do, pessoa caminhando... Dizem que a casa é assom-
brada. No acampamento, tava eu lá em cima, meu guri
também, eu dizia “o arroio não tem saída, pra lá não
tem, pra sair tem que dar a volta”, isso foi cedo, umas
nove horas, com ele deitado ainda, tinha barraca. Aí
eu disse pro João “vem gente aí, vem gente aí reman-
do”, escutei o barulho do remo, remando... Quando
uma pessoa passa no rio, mexe a água, eu escuto o ba-
rulho direitinho... Aí fui, levantei, disse “João, passa
uma caixa de comida”, pra não deixar entrando, vai
que entra e revira tudo... Aí depois fiz a volta toda no
arroio, não vi um barco... O outro me contou também,
já é morto, me contou também.
Mauricio:
– Isso acontece bastante?
Alfredo:
– Acontecia, agora o pessoal não acredita mais...
Eu não tenho medo. Aqui, ali embaixo tinha uma fi-
gueira, eu, naquele tempo, carregava mandioca, fazia
de tudo... Saía na pescaria, eu saía com meu primo.
Um rapaz que trabalhava com nós pegou um saco de
batata, botou nas costas e vinha vindo. Quando chegou
ali na figueira, atrás da igreja quase. Quando ele che-
gou, uma mulher de branco se aviou, veio, desceu, ele
largou o saco, veio correndo, deixou as batatas lá! Digo
“que foi?”, ele “nada, deixei as batatas”. Fui lá ver e
não tinha ninguém, tava só o saco de batata ali. Quan-
do chegou o dia, pra lá tudo era água. Tinha que pas-

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sar aqui na frente pra ir pra casa, tinha umas goiabei-
ra, laranjeira, tudo na estrada aqui, aqui onde passa a
igreja, o armazém que tem ali. Aí, eu usando uma blu-
sa de couro e uma faca prateada, eu aflouxei a blusa,
levantei o facão pra me defender assim, aí disse “eu não
vou correr esse medo”, fui indo, fui indo... Aí cheguei
lá, um cavalo, uma égua, com uma mancha branca,
umas estrelas na testa, encostada na goiabeira, eu caí
assustado, caí e dava de volta no lobisomem, tal de lo-
bisomem, quantas vezes já não vi ele... Uma vez um
cara entrou num barco, eu tirei a faca, vi, não era gen-
te, era um cachorro!
Mauricio:
– O senhor se assustava com as histórias?
Alfredo:
– Eu não, não tinha medo. Essa figueira que eu
falava, eu dormia embaixo dela, tirava o barco ali, ti-
rava a rede. Naquele tempo a gente usava a rede aqui
e depois ia lá embaixo... Largava ela com rio correndo
e pegava lá embaixo. Largava de hora em hora, às ve-
zes até de meia hora, largava uma canoa, fazia meia
hora. Antigamente a pescaria era assim, usava a água
do rio, agora terminou tudo. Então, esperando a hora
de eu largar a rede, eu dormia em cima da rede, puxa-
va a vela por cima, assim... Quando vi, aquele bicho
fogueijando assim, tirei o olhar, o monstro daquele bi-
cho preto, com os olhos que parecia uma tocha. Eu ti-
nha um porrete, um cassetete, passei a mão no por-
rete e ele se veio aqui pra cima, cachorrada, mas se é
lobisomem, não sei. Não tenho medo de nada, respei-
to Deus.
26 Iscas biográficas do Delta
E, em demonstração de sua sensibilidade aguça-
da, Alfredo nos conta sobre um triste episódio premo-
nitório em sua vida...
Alfredo:
– Teve um dia lá, que minha vontade era de ir em-
bora, aí o João: “vamo ficá mais um dia”. A minha von-
tade era botar tudo e ir embora, mas aí ficamos. No
outro dia não tava bem direito, não conseguia comer
direito, tava enjoado. Aí quando foi onze horas da noi-
te eles bateram lá, mas antes, bem antes, fiz a comida
pra ele, ele comeu, fiz uns bolinhos e deitei bem na
beira da praia, perto da sombra, veio uma garça, pas-
sou aqui como entre eu e a porta. Ela olhava pra mim
assim... e eu olhando pra ela. Ficou ali, mais de hora,
eu deitado ali. Quando chegou onze horas, ainda dei-
tado, com aquela vontade de botar tudo e ir embora.
Aí chegou dois pescadores, uma hora dessas aqui sem
rede, sem nada, queriam me dizer uma coisa, mas não
queriam me dizer. Eu disse “podem dizer”. “Viemo te
dizer que tua mãe faleceu”.
Mauricio:
– Imagino que nesse tempo o senhor tenha co-
nhecido muita coisa, feito muita amizade.
Alfredo:
– Nas estradas, rua assim, a gente vê muita coi-
sa... A minha religião é católica, sempre me lembro de
Deus quando vou me deitar. Uma vez tava com dor de
ouvido, nem sabia que era reza... Naquela época nin-
guém ensinava nada. Aí minha mãe falou “tem que re-
zar” e me ensinou assim:

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“Com Deus eu me deito,
Com Deus eu me levanto,
Com a graça de Deus
E do Divino Espírito Santo”
Isso, quando eu era pequeno, eu rezava sempre...
Mauricio:
– O senhor ainda repete?
Alfredo:
– Todos os dias...
(Neste momento todos repetimos a oração.)
Gema:
– Outra, imagine, há 52 anos atrás, era outra Ilha,
a casa do seu Ivo ali, que era a prefeitura, o que era?
Alfredo:
– Não, ali não tinha casa, não tinha nada, era um
depósito de querosene, com um jacaré de símbolo...
Ali atrás era uma fábrica de vidro.
Mauricio:
– Na época em que as casas eram poucas, eram
mais separadas?
Alfredo:
– Eram tudo longe as casas, só tinha essa sede
aí; depois da enchente de 41, Getúlio Vargas mandou
aterrar e ficou com o aterro, e o Oscar Freitas, que era
prefeito na época, que aterrou isso aí. Tava de manhã
de calção fazendo o aterro. Não tinha mais de 200 ca-
sas entre ali em casa, hoje tem mais de dez mil. Dava
para plantar, criar porcos, galinhas. Os primeiros mo-
radores aqui da Ilha moravam em rancho de capim,
como o meu avô, que se chamava Chico Capoeira.

28 Iscas biográficas do Delta


Pescava no Rio Formoso, Tamanco e Lages, onde nas-
ceram meus bisavós.
Gema:
– Teriam vindo de onde?
Alfredo:
– Rio Formoso, eu nasci lá no Rio Formoso.
Mauricio:
– E até a adolescência o senhor morava aqui, tinha
muitos amigos, vocês se divertiam?
Alfredo:
– Tinha, tinha, só de tio tinha cinco...
Bruna:
– E a profissão de pescador, antes você pescava
pra viver, pra comer, agora mudou? Como mudou?
Gema, logo em seguida:
– É mais importante o prazer de pescar ou o pei-
xe que dá?
Alfredo:
– Eu gosto de pescar, mas o peixe é um alimento.
Se conta o peixe que eu pesco o ano todo, quanta gente
alimentava? A gente ia lá no mercado... Agora não dá
mais, eles não querem nosso peixe ali no mercado...
Agora pra vender o peixe é um sacrifício, só querem
comprar peixe do mar. Mas tô há 40 anos aposentado,
agora é melhor, já que antes vivia só da pesca. Antiga-
mente vendia tudo lá, pesava o peixe, comprava tudo
que precisava, vendia, depois comprava gasolina. An-
tes vendia tudo lá, a gente montava banca de pedra...
Agora eles não querem mais o pintado lá... A gente
botava ele na banca, passava o fiscal e cortava o rabo
dos peixes, pra saber se a gente tinha vendido o peixe,
se não a gente tinha que levar pra casa e fazer outra
coisa. Aquele que cortava o rabo não vende mais. An-
tes do muro da Mauá, tinha as bancas de pedra. Pa-
gava um mil réis pra poder vender na banca. O bon-
de era puxado a burros e a passagem era uma moe-
dinha furadinha que perdi na enchente de 41 quando
morava perto da Rádio Guaíba. Vocês conheceram as
banquinhas de pedras? A carreira de banca de pedra,
tudo de cimento...
Gema:
– Até há quanto tempo tinha?

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Alfredo:
– Até pouco tempo, até fazerem o muro da Mauá
ali, ali tinha, até desmancharem, quebrarem tudo e
fazerem o muro. Cada uma banquinha naquela época
ia o pescador, pagava um mil réis e vendia o peixe ali.
A gente chegava lá de madrugada, seis horas, o guar-
da abria o portão pra gente, todo o pessoal chegava
com o peixe e a gente ficava ali o dia vendendo...
Gema:
– E quanto aos remédios? O que usavam quando
ficavam doentes?
Alfredo:
– Não tinha. Varicela, sarampo, curava com chá e
reza. Fui picado de cobra com 7 anos, tomei um remé-
dio verde que um pescador me deu e fiquei bom. Mo-
rei no alagado onde choveu por 40 dias sem parar, lá
matei mais de 200 cobras dentro de casa na enchen-
te de 41. Em minha casa entrava de tudo, cobras, ara-
nhas e muitos peixes...
Bruna:
– Tu conheces a dona Caco, benzedeira?
Alfredo:
– É minha comadre! Mas convivi mais com a mãe
dela, que tecia a melhor rede da Ilha.
Bruna:
– Sabemos que muitas pessoas procuram a cura
nas rezas da dona Caco, ainda queremos ter uma con-
versa, dessas que estamos tendo com o senhor, com
ela também.
(Entre conversas amigáveis e leves, um passari-
nho nos presenteia com seu voo dentro da sala de es-
tar, rumo à xícara de açúcar que sempre o espera em
cima do mesmo balcão. A natureza é presente no es-
paço...)
Alfredo:
– Desde pequeno, quando corto uma árvore, planto
duas no lugar. Agora nem tem mais lugar pra plantar,
não tem mais lugar nem para criar porco nem gali-
nha. As taquara que tem aqui na frente, tudo eu que
plantei há muitos anos atrás.
A conversa com seu Alfredo foi descrita aqui com
o máximo de verossimilhança, respeitando aquela tar-
de e as pessoas que dela usufruíram. O resgate da ve-
lha Ilha da Pintada, o processo de urbanização, a ocu-
pação de territórios, o caminho das águas, a mudança
da cultura local, da economia, tudo isso foi desven-

30 Iscas biográficas do Delta


31
dado nesta prosa... Os mistérios da espiritualidade, o
convívio em família, a educação de gerações antigas
passada a filhos e tataranetos. As mudanças das prá-
ticas em saúde também foram discutidas no andar da
carruagem; como as plantas e a natureza eram usa-
das para o tratamento de doenças e como o remédio
farmacêutico é ainda tão desconhecido para o corpo
desses ilhéus. É disso que vão tratar as próximas pági-
nas. Talvez aí se encontre o grande segredo dessa vida
longa de saúde...

A FARMÁCIA DO PESCADOR

Se a cura não vier da pesca, virá do pescador!


As receitas infalíveis de chás e remédios naturais,
aprendidas com este homem das águas, são como a fé:
não costumam faiá!

Para curar a gripe:


- erva-de-nossa-senhora com limão;
- chá de casca de cocão.

Para afinar o sangue:


- chá de folhas de tarumã.

Para urinar:
- chá-de-pata-de-vaca.

32 Iscas biográficas do Delta


Xarope natural:
Misturar guaco, poejo, limão e laranja. Depois de
coar o chá, acrescentar açúcar queimado e coração de
bananeira fatiado. Depois de tudo estar pronto e mor-
no, colocar mel. Virou xarope!

MAS É UM CIENTISTA!

Alfredo:
– Um dia, já faz tempo, eu tava ruim de uma dor
na bexiga. Tava no mato com o Vilmar e fazia muito
frio. Olhei num canto uma porção de pata-de-vaca e
fui lá e peguei pra fazer chá. O Vilmar ficou assustado,
chegou até a me chamar de cientista!
Mauricio:
– Mas tu toma de tudo?
Alfredo:
– Não, só as que eu conheço. Conheço muito, des-
de criança: erva-de-nossa-senhora, cidró, casca de co-
cão, tarumã, casca de romã, carrapicho rasteiro, bana-
na-do-mato, casca de angico.

COMER, COMER!

Como nem só de peixe e chá vive o homem, aqui


vão as receitas culinárias maravilhosas da dona Sueli!

33
34 Iscas biográficas do Delta
35
36 Iscas biográficas do Delta
37
38 Iscas biográficas do Delta
Gema, Sueli, Mauricio, Bruna e Alfredo
39
Iracema:
a Cema da Ilha

Nas próximas páginas, encontra-se o que foi


possível registrar dos momentos vividos com a
centenária dona Iracema, nos quais tudo foi ternura
e vibração.
De sua memória juvenil, jorravam histórias de
alguém que muito fez e muito amou, usando seu
multidimensional dom da cura.
AS PONTES NOS LEVAM...

Para chegarmos à construção deste livro, atraves-


samos muitas pontes; atracamos em muitos portos.
Pontes físicas, bibliográficas, simbólicas, imaginárias,
culturais... Fomos todos atravessando, sabendo pouco
ou quase nada do que haveria do outro lado. A ponte
que nos introduziu na Ilha foi “Quem sujou a minha
água?”, um projeto da UFRGS que oferece a professo-
res e estudantes a oportunidade de passar uma sema-
na em uma comunidade com o objetivo de conhecê-la
e compartilhar conhecimentos. Essa ponte foi erguida
pelo professor doutor Clóvis Bujes em janeiro de 2011,
resultando dela uma segunda ponte, sobre a qual es-
tamos fazendo essa travessia no Delta: o programa de
extensão universitária “Ilhas de conhecimento”.
A caminhada foi conectando-nos sutilmente com
a realidade da ecologia do homem, das ilhas e das
águas. Nossa imersão nessa realidade foi nutrindo-se
à medida que fomos encontrando mestres no caminho,
nas muitas viagens feitas sobre essas pontes, mas com
mais intensidade nas paradas à margem e no adentrar

43
suave nas casas. Aguçando a escuta do que tinham a
nos contar, descobrimos esse lugar sagrado para com-
preender o intenso viver e a harmonia do cotidiano
desses lendários seres das águas. Pontes movediças de
nosso conhecimento acadêmico, que rangiam em cada
registro, desde o diário de campo até a última pala-
vra escrita neste (enfim) livro. Muitos ruídos permane-
cem por carregarem consigo faces da vida e da histó-
ria de muitos de nós, por terem sido ponte com o pas-
sado de cada um de nós – que, às vezes, parecia visa-
gem. Pontes difíceis de atravessar entre falar e escutar,
escrever e fotografar, permanecer e retornar; pontes
entre o real e o imaginário de cada um; pontes que,
por serem ilhas, confundiam-se com portos – de mui-
tas maneiras e por diversos motivos – no Delta de cada
um de nós.

“ Na intuição, fui sendo levada para a Ilha. Sen-


ti que lá poderia ter mais luz, que lá tinha silêncio, podia


sentir o cheiro das coisas...

Bruna, acadêmica de Psicologia, 26/10/2012

Aqui está o livro. E tudo poderia recomeçar. De


outra maneira, certamente...

À CEMA DA ILHA...

Desde janeiro de 2011, aguardávamos por este mo-


mento.
Foi na semana de Convivência da UFRGS, na Ilha
da Pintada, que ficamos sabendo que ali vivia Iracema,
uma enfermeira centenária que trabalhou com Dr. Má-
rio Totta1, fez muitos partos, morava com a filha e era
muito benquista pela comunidade, pelo tanto que ela e
seu esposo fizerem pela Ilha.
Nesses quase dois anos na Ilha, tivemos o privilé-
gio de visitá-la algumas vezes. Visitas leves e rápidas,


1
Médico obstetra na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
e professor da Faculdade de Medicina até a década de 30. Em re-
conhecimento a seu trabalho, seu nome identifica a Maternidade
Mário Totta, na Santa Casa.

44 Iracema: a Cema da Ilha


Travessia da ponte do Guaíba, no carro da UFRGS,
em fevereiro de 2012.

pois ela estava acamada e era quase cega, ouvia mal e


tinha saúde frágil. Para nós, momentos inesquecíveis
de ternura e aprendizado; e, para ela, instantes felizes
para contar suas histórias.
Com as forças restabelecidas depois de um mês
de hospitalização – seguido por muitas visitas domi-
ciliares da Equipe de Saúde da Família –, Iracema en-
fim nos recebe (Ana e Gema) para uma permanência
maior. Foi o início dos registros que vieram a compor
este relato.
Clarinha, sua filha, nos conduz até o quarto, onde
encontramos Iracema sentada confortavelmente ao
lado de sua cama. Percebe-se harmonia em todos os
espaços físicos e familiares. Entusiasmada, elegante e
serena, Iracema nos recebe e vai contando sua história
– ou partes dela – conforme brota de sua seleta memó-
ria. Nós sabíamos a importância daquele momento.
Foi um privilégio estar ao seu lado e ouvir o que
ela tinha para nos contar; fotografá-la e sentir, nos de-
senhos do tempo delineados em seu rosto, a vibração
pela vida passada e pelo caminho de um futuro sem
preocupação com o tempo já vivido, apesar da falta que
faz ver e andar.
Iracema gosta de gente. Perto dela, aprendemos
não só através de sua fala, mas também lendo as coi-
sas bonitas desenhadas em seu semblante vívido. Com
nossas mãos abraçadas carinhosamente pelas suas, fi-
camos contagiadas pelo entusiasmo com que ela fala-
va de sua vida.
Pelo que pudemos perceber em suas falas e expres-
são, dos mais de 70 anos vividos na Ilha e das déca-
das anteriores, só sobrou o bom, o bem-feito, as boas
lembranças que fluem como ondas no sopro do vento.

45
Ponte construída para dar acesso a veículos de passeio
da Ilha da Pintada para a Ilha Mauá.2

Sente-se felicidade, amor, entusiasmo, vibração,


quietude mental e paz ouvindo-a, olhando-a ou sim-
plesmente estando ao seu lado.
Percebe-se um amparo familiar sólido, certamente
construído ao longo de toda a sua vida. Vê-la sendo ali-
mentada pela filha é o quadro da ternura. Ter as mãos
em suas mãos é abastecer-se. Receber seu abraço é vi-
vência plena.
Mesmo acostumadas com visitas domiciliares, nos
surpreendemos com o acolhimento e a reciprocida-
de das trocas físicas e afetivas. Nosso mergulho nesse
ambiente despertou o desejo de aprofundar essa doxo-
grafia (registro das opiniões dos antigos com o obje-
tivo de conservá-las) e amplificar a experiência com
os acadêmicos do programa “Ilhas de conhecimento”.
Selando nosso primeiro encontro com Iracema e
sentindo que era o momento de partir (ainda que não
quiséssemos ir), trocamos agrados; deixamos uma la-
ranja-de-umbigo, colhida especialmente para ela, e fo-
mos presenteados com uma sacola de laranjas do quin-
tal de Clara – gesto que simboliza o princípio da alian-
ça que gerou este trabalho.

2
Anteriormente, a conexão era feita apenas através de trapiche para
pedestres. Em primeiro plano, a bolsa do projeto Convivências e,
ao fundo, o Cais do Porto de Porto Alegre. À esquerda, o Estaleiro
Mabilde (Pintada). À direita, a SEMA (Mauá). A SEMA (Secretaria
Estadual do Meio Ambiente) é a sede administrativa da APA (Área
de Preservação Ambiental) do Delta. Fotografada por Gema Conte
Piccinini durante o projeto Convivências, em 18/01/2011.

46 Iracema: a Cema da Ilha


Contagiadas com tanto afeto, abraçamo-nos com
o desejo de retornar àquele espaço, sabendo que o me-
lhor da vida é resiliente e tende a reciclar-se. Bom
mesmo foi ouvi-la pedir que voltássemos; nós, felizes,
recebemos permissão para retornar.

UNIFICAM O TEMPO...

Nesse solo da Ilha, dito frágil, há gigantes forja-


dos no remo de taquara. Eles vivenciaram as trans-
formações de seu chão – às vezes terra e muitas ve-
zes água – enquanto criaram suas famílias. Passa-
ram por enchentes históricas (de 1935 e 1941) e não se
entregaram. Os antigos contam em detalhes as vivên-
cias, permitindo ao bom ouvinte desenhar na mente
as cenas de resgates, destruição e reconstrução de vi-
das, ambientes, esperanças.
Eles vivem.
Como canta Bob Dylan:

“A resposta, meu amigo, está soprando ao vento


A resposta está soprando ao vento”3

Foram sendo registradas nas ondas do vento sua


história, a da Ilha e a de seus antepassados. E nós te-
mos a oportunidade de conviver com esses seres e
com esses espaços, podendo reciclar nossa alfabetiza-
ção existencial e acadêmica na dinâmica dessas vidas
e dessas histórias. Tesouros esses que, nas curvas do
tempo, vão sendo modificados, soterrados ou levados
ao esquecimento pelas águas. Mas, como disse sabia-
mente seu Alfredo, homem que nasceu e vive na Ilha
(com 92 anos e ainda pescando diariamente no Del-
ta), “o que é retirado daqui, emenda lá embaixo”, refe-
rindo-se à erosão das ilhas provocada pelas enchentes.
É emocionante pensar na grandeza do encontro
com essa anciã, partilhando momentos de sua vida
que unem história pessoal e familiar, história do cui-
dado humano, da Ilha e dos ilhéus. Não há dúvida de
que os caminhos que dona Iracema percorreu ainda
ressoam na geografia e na memória fluida que une as
ilhas do Delta. Para nós, uma honra como poucas, a


3
Trecho traduzido da canção “Blowin’ in the Wind”, disponível na
página <http://letras.mus.br/bob-dylan/11904/traducao.html>.

47
responsabilidade de compor este documento que pode
soar para alguns como ilha e, para outros, como pon-
te. Para todos, certamente, uma inegável história de
amor, dedicação e bem-querer.

NA VOZ DE IRACEMA E DOS ILHÉUS...

Um pouco do que ouvimos nas palavras de Irace-


ma e dos ilhéus.
Iracema: “Naquela época tinha dificuldade e tudo.
Trabalhei com o doutor Mário Totta muitos anos. Ago-
ra, depois que eu enxergava, fazem dois anos que me
passou a visão, eu dizia ‘quem conheceu como eu, e
agora vê, bah, barbaridade’. Antigamente tudo era di-
ficuldades, tudo, tudo. Agora tudo é moderno. Eu di-
zia pras enfermeiras, muito minhas amigas do posto,
lá do hospital, elas vinham conversar comigo, eu dizia
para elas ‘naquela época não tinha ladrão, não tinha
nenhuma dessas coisas’. Trabalhei na Santa Casa até
um ano depois que o Dr. Mário Totta morreu. Depois
eu fui na Secretaria da Saúde.”
Falando sobre sua vida na Ilha, diz: “Isso aqui tudo
era água, minha filha, isso aqui era um pavor, nin-
guém conheceu tudo como eu. Sem calçamento. Essas
pontes, tudo foi por ele [falando da atuação do coorde-
nador do Centro Administrativo Regional, seu esposo
Oscar Freitas, que ainda é lembrado pelos seus feitos e
companheirismo pela população antiga da Ilha].”

48 Iracema: a Cema da Ilha


“ Eram tudo longe as casas, só tinha a rua na bei-
ra do rio. Depois da enchente de 41, Getúlio Vargas man-
dou aterrar e Oscar Freitas, que era prefeito na época, que
aterrou isso aí. A rua Presidente Vargas ele tirou do nada.


Tava de manhã de calção fazendo o aterro.

Alfredo, 25/07/12

“Colocaram o posto de saúde aqui e até hoje tá o


posto. Botaram um posto lá dos navegantes e diziam
que precisavam de duas enfermeiras, aí tinha uma que
era já daqui e trabalhava na cidade, agora tá velha tam-
bém, assim que eu vim pra cá, pro posto. Setenta e
poucos anos faz que eu tô aqui na Ilha, eu morava em
Porto Alegre, no Cristal. Aí fiquei aqui. Aqui que se
trabalhava nessas ilhas... são noventa e tantas ilhas.
Naquela época, eles não vinham aqui no posto fazer
vacina, nós tinha que ir nos postos fazer vacina.”
“Trabalhava em parto, trabalhava em tudo!”, re-
pete em cada pausa. “O que eu gostava era da enfer-
magem. Quando eu estudava, os professores pergun-
tavam: ‘o que a senhora quer ser, dona Iracema?’ Eu?
Eu quero ser uma boa enfermeira.”

49
Iracema, Gema, Mauricio e Bárbara, fotografados por Clara em
24/09/2012. Nosso primeiro retorno.

“ Dona Cema era maravilhosa! Meu sobrinho teve


uma bicheira na cabeça, tava horrível! Ela mandou levar
na casa dela todos os dias; e ela limpava ele na casa dela.
Curava a bicheira com creolina. Hoje está um baita de um


homem, saudável, pai de família.

Eva, nora da Caco, 17/10/2012

“Trabalhei, trabalhei muito... Coisa que eu mais


gostava era sair. A gente saía nos barcos, saía de manhã
e voltava de noite. Dormir nas embarcações, naquela
época eles não deixavam, a secretária não permitia.
Eu gostava do sobe e desce dos barcos. Ah, minha fi-
lha, eu sou querida em todas as ilhas. Eu fazia tudo, ia
nas ilhas, vacinava, ia fazer injeção, fazia tudo. Um dia,
nesse posto antigo do ônibus sem pneu, até operar eu
operei, hehe. O doutor não vinha. Chegou um com
a mão horrível, e eu tive que operá-lo. Eu fazia tudo.
Eu sou assim. Até hoje, a minha cabeça é aquela mes-
ma. Se eu enxergasse, eu ainda fazia injeção na rua. Se
dava ponto, fazia tudo depois de aposentada. Assim,
eles vinham, tinham muita confiança em mim.”

50 Iracema: a Cema da Ilha


“ Foi ótima enfermeira, fez muitas injeções pro
meu filho, com aquelas seringas de ferver! Eu ia na casa
dela. Ela é ótima vizinha! Dava atenção pra todo mundo


de igual.

Diva, na casa de Caco, 17/10/12

“Vinham: ‘minha dona Iracema, eu fui no posto,


mas eu tenho fé na senhora’. Aí, eu fazia de tudo, par-
to, eu não sei quantos.”
Nós, Gema e Ana, fazíamos perguntas e pergun-
tas, mas ela, ou por não ouvir bem ou por estar focada
em sua história e na nossa escuta, ia falando clara e
pausadamente das coisas vividas. Nosso turbilhão de
perguntas ficou em nosso imaginário. Assim, esses re-
gistros são apenas relíquias, fragmentos de uma ím-
par história de vida, privilegiados momentos de con-
vívio com a colega Iracema Pereira de Freitas, em seu
quarto, na casa da filha Clara, na Ilha da Pintada.
Iracema vai falando da vida de enfermeira e diz que
a referência mais próxima para problemas obstétricos
era a Santa Casa. Mas, graças a Deus, nunca precisou
levar ninguém.
Ela silencia um instante e diz: “e agora eu tô com
100 anos”. “Eu tô falando assim, meio atrapalhada,
porque meu dente inferior, me machucaram, e eu tive
que tirar. Por isso assim. Eu sei que vocês vieram aqui
enquanto eu estava no hospital.”
“Sim”, dissemos. E aproveitamos mais um pouco
do precioso tempo para pedir que ela contasse algu-
ma coisa interessante que aconteceu. Aí ela retoma,
concentrada e com um largo sorriso: “Nós saía do bar-
co para tirar gente das enchente. Aqui era... enchen-
te... nunca ouviu falar em enchente? De 31 eu não es-
tava aqui. Tapou tudo, tapou. Naquela época eu esta-
va em Porto Alegre. Na de 45, aquela foi braba. Tirava
gente dos telhados! Meu marido fazia rancho. Nós fa-
zia, o pessoal, aqui tinha muita pobreza, aqui na Ilha
tinha muita pobreza, meu Jesus, minha filha... Era
coisa muito triste. Eu ajudava muito.”

51
“O doutor, eu e a outra enfermeira. Descer do bar-
co, às vezes, pra ir, no barco grande e no barco peque-
no, pra atender fora. Isso foi que trabalhamos muito.
Às vezes passava até horas sem se alimentar. Aí quan-
do foi uma enchente muito grande, aí veio os educa-
dor do governo, aí eles faziam, faziam carreteiro pra
gente comer. Eu agarrava as crianças das ilhas, botava
no barco porque estava mal, o doutor mandava, pegava,
tudo era eu. Ia direto até Porto Alegre levar no hospital
Santo Antônio. Às vezes a água ia até aqui. Eu nunca
gripava, nunca tinha nada.”
“Me formei na cidade de Venâncio Aires, lá eu es-
tudei, lá eu me formei. Eu fui duas vezes no Rio de
Janeiro para completar meus estudos. [Supõe-se que
Iracema tenha se formado na Escola Prática de Enfer-
magem da Cruz Vermelha, no Rio de Janeiro]. Eu ti-
nha medo de andar de avião Aí o professor era muito
bom e a professora. Ah, eu fui, nem. Depois perdi o
medo. Graças a Deus, trabalhei bastante.” Perguntada
sobre se lembrava o nome de alguma colega que se
formou com ela, respondeu: “Uma se chamava Tere-
za, uma que se chamava Nair, outra que se chamava
Ana, três. Depois que eu me formei, ainda trabalhei
um ano, aí que me casei. Eu fui casada. A primeira
vez tive dois filhinhos. Quando mataram meu marido,
eu tinha 22 anos, eu fiquei pra ganhar outro filhinho.
Ele não conheceu o pai. Aí eu estava lá na fazenda.
Agora...”. Mais um silêncio do mergulho no passado.
“Venâncio Aires é longe. Lá tem meus parentes
tudo. Eu sou família Pereira. Lá pra Taquari, Lajeado,

52 Iracema: a Cema da Ilha


de Bagé e Dom Pedrito. Sou de lá, meu pai tinha fa-
zenda. Tudo são meus parentes.”
Às vezes pausava a conversa e no silêncio brota-
vam outras lembranças: “Eu casei a segunda vez. Aí
eu ganhei a Clarinha e meu outro filho que mora na
outra rua aí. Já é aposentado. Segundo matrimônio.
Eu tive dois anos só. Eu fiquei com 24 anos de idade.
Eu casei cedo, me formei. Depois que eu ganhei, aí eu
comecei a trabalhar. Foi a primeira vez que fui lá pra
fora, na cidade. Primeira cidade que eu trabalhei foi
Taquari. Eu não podia deixar de trabalhar. Foi no ano
que eu estava viúva, fui trabalhar. Minha mãe criou a
Clarinha, meu outro filho, esse fui eu mesma, mora-
va lá no Cristal. A Clarinha nasceu aqui na Ilha, no
posto...”

“ Aqueles ônibus deixavam só a carcaça, tinha o


gabinete do dentista, gabinete do médico, era bem orga-
nizado Aqui era tudo barco, ela saía de manhã e voltava
à noite. Levavam os barcos pra ela, era ela e a outra en-
fermeira, e eram as duas pra tudo. E eram a base de todas
as ilhas. Ganharam tudo, ganharam até porco, galinha.
Que a mãe, além de ser enfermeira, era muito humani-


tária.

Clarinha, 02/08/12

53
Iracema continua: “Minha mãe era parteira, mi-
nha vó era parteira. Eu estava morando aqui. Meu ma-
rido era delegado, subprefeito da Ilha. Ele que arrumou
isso aqui, não tinha nada. Não tinha rua, era água. Luz,
coisa... Ele trabalhou muito aqui, muito tempo que ele
trabalhou. Quatro anos, arrumou tudo.”
“Mas eu sempre me tratei com o doutor, um ve-
lhinho aqui na cidade, doutor Croco, ele sempre me
tratou. Ele me dizia ‘não, a senhora vai ganhar no hos-
pital’. Aí eu disse pra minha mãe: ‘Ah, eu vou ganhar
em casa. Eu tenho tudo, tenho tudo em casa, qualquer
coisa’. Foi mesmo, ela nasceu com 4 kg e 200 gramas.
Uma enorme guria. Linda, linda. Muito bem. Eu ti-
nha tudo, eu tinha minha bolsa lotada. De tudo, tudo,
medicamento, injeção. Me chamavam, eu ia. Pegava
minha bolsa de parteira e ia.”
“O governo tinha um programa de parteiras, ti-
nha, era uma bolsa do governo. Eu fui do governo, eu
fui nomeada pelo governo do estado. E sou do esta-
do, eu recebo do estado. E tenho uma aposentadoria
do meu esposo. Mas sou do estado, fui nomeada pelo
estado.”

“ Iracema é maravilhosa! Faz anos que não vejo!


É um amor de pessoa, a gente gostava muito dela, ela era
enfermeira muito boa. Dona Cema, eu adorava, tinha
paixão por ela! Ela atendia até em casa! Foi enfermeira e


ajudou muito as pessoas na Ilha.

Dona Caco, 17/10/2012

54 Iracema: a Cema da Ilha


Iracema relembra agora as histórias de seus filhos:
“E os filhos homens que eu tenho, junto com os ou-
tros, quatro. Um faleceu já.” Perguntamos se todos
os seus partos foram realizados com parteiras: “Tudo,
tudo, nada de hospital.”
Sobre a maneira de pesar os recém-nascidos, in-
dica que em sua bolsa sempre havia uma balança: “Eu
tinha! Tinha que pegar assim, depois levantava. Leva
assim.” Ela detalha a maneira clássica das parteiras
de pesar o recém-nascido.
Clara retorna da cozinha com uma maçã e, num
gesto carinhoso, a oferece a Iracema. Enquanto isso,
Clara conta:
“Minha vó, minha vó era parteira. O posto de saú-
de antigamente era uma carcaça de ônibus. Não tinha
roda, não tinha nada.”
Ao escutar as falas sobre os antigos recursos de
saúde da Ilha, Iracema pondera: “Aí terminei aqui,
me aposentando.”

“ Cema é maravilhosa, amo muito ela, irmã pra


mim, tanto ela quanto Clarinha são ótimas vizinhas.

Carmem, 08/11/2012

Clara vai contando sobre sua infância e seus cui-


dadores durante o tempo em que Iracema tinha de pe-
gar o barco e trabalhar: “Só tinha eu, meu irmão era
moço, como eu sou a última. Então a mãe sempre ti-
nha primas morando com ela, que me cuidavam.” Ao
perguntarmos se já residiu com sua avó, ela respon-
de: “Não, ela tinha fazenda, mas vinha e ficava o tem-
po que minha mãe precisava dela. Quando ela ficava
aqui, tratava de muitas pessoas aqui na Ilha, sei de
várias pessoas que minha vó atendeu, que nasceram
com a mão da minha vó.”
Se antes era a família de Iracema que assistia os
ilhéus, agora se percebe o retorno no cuidado da Equi-
pe de Saúde da Família (ESF) com ela. Iracema exalta
o carinho do enfermeiro e da equipe de saúde do pos-
to: “Alexandre, ele é muito meu amigo. Maurício, eu
adoro meu médico!”

55
“ Encontrei ela agora lá no posto! Fazia tempo
que não via ela. Eu tava lá esperando para ser atendida,
quando vi um tumulto, fui ver o que era e era ela! To-
dos fazendo festa: Dona Cema! Dona Cema! Gosto muito


dela, faz bem falar dela.

Diva, 17/10/2012

Iracema tenta resgatar uma imagem do que era a


vida social no passado da Ilha: “Aqui da Ilha? As fes-
tas que tinha aqui, a festa de São Pedro. A festa que
tinha aqui era maravilhosa. No tempo que tava aqui
com meu marido, tinha uma procissão, ali na igreja.
Da igreja católica. Vinha e pegava embarcação ali no
rio. Que tinha aqui mesmo na Ilha. Agora terminou
tudo. Não tem festa, não tem nada, tinha Festa dos Na-
vegantes...”.
Após uma breve pausa, continua: “Quando eu era
ainda forte, que eu trabalhava. Ah, eles queriam fa-
zer uma coisa, eles vinham aqui. Ah, há pouco tem-
po, eu ainda tava enxergando, vieram aqui, fizeram ho-
menagem, veio aqui esse que tá aqui de subprefeito,
pra eu entregar medalha pra ele. Vieram me buscar
aqui, mas eu não tava muito boa. Foi muito lindo, fa-
lei no microfone, falei pra eles. Mas, bah, como bate-
ram palma esse povo...”.

“ Dona Cema sempre cheirosa, charmosona e fes-


teira, sempre bem arrumada! Era bonitona!


Diva, Eva e Caco, 17/10/2012

“Ali, no CTG (Centro de Tradições Gaúchas da Ilha


da Pintada). Tava muito lindo. Era assim, quando tem
coisa eles vêm aqui, vêm me entrevistar. Que bom, gra-
ças a Deus tô melhor, andei zonza, agora não.”

56 Iracema: a Cema da Ilha


“Do comitê, da política, fui a presidente femini-
na. O prefeito de Porto Alegre veio e tudo. Fui nomea-
da, eu era muita coisa, filha. E sou a mesma coisa. E
graças a Deus tenho ganhado, ai, tanta visita. Visita
como vocês, é uma honra pra mim.”

“ Ela não depende dos olhos pra ver! Com a men-


te vibrando em mais alto nível, ela sente a beleza da vida
na ponta dos dedos! Nunca vou esquecer o toque macio
de suas mãos, o beijo gostoso e o tom experiente de sua


voz que, com humor e amor, conforta os corpos...

Bruna, 17/10/2012

REVELANDO RELÍQUIAS...

Clara nos mostra duas relíquias da vida da enfer-


meira Iracema, as quais documentamos, enquanto pre-
ciosidades que são: seu anel de formatura e sua seringa
de vidro em estojo metálico, símbolos potentes de uma
cultura de época. De todos os outros documentos, fo-
tos e registros levados pelo tempo, apenas a memória.
O anel, símbolo de rito de passagem, de celebra-
ção, de conquista, de mérito. Em Iracema, seu crachá.
A seringa de vidro em estojo metálico, material de bol-

57
so da enfermeira Iracema, que com ela navegava as
ilhas do Delta levando saúde, conforto, carinho e es-
perança. Objeto de uso tradicional em lugares despro-
vidos de assistência médica, para assistência domici-
liar, principalmente em épocas ou localidades em que
não estavam disponíveis seringas descartáveis e mui-
to menos havia a presença de profissionais da saúde.
Símbolo de época da assistência domiciliar.
A parteira Iracema, iniciada na profissão com Má-
rio Totta, traz do berço sua vocação. Na Ilha, levada pe-
las circunstâncias, e depois, com apoio institucional,
desenvolveu por mais de meio século essa prática mi-
lenar. Com sua bolsa de parteira, sua energia vital e
suas mãos vividas, acolheu muitos ilhéus das águas,
levando essas crianças com o cuidado que lhe é pe-
culiar até as margens, onde a vida cresceu e se mul-
tiplicou.
Quantos partos ela fez, quanta gente ela ajudou.
Certamente, na memória do Delta, estão registradas
as vezes que a Iracema Parteira, entre um braço e ou-
tro do rio-estuário-lago, de barco, lancha ou bacatela 4,
foi levada para atender chamados. Com seu conheci-
mento e sabedoria, juntou as águas do parto com as
águas do Delta, ressignificando seus cursos e, agora,
sua história.
As águas do Delta guardam na fluida memória a
Iracema que circulava entre as ilhas, de porto em por-


4
Canoa rudimentar muito usada pelos ribeirinhos.

58 Iracema: a Cema da Ilha


to, ora como parteira, ora como curadora, ora como par-
te de equipe de saúde, ajudando a vida a se expressar.
Como páginas de um livro, o anel em seu dedo e
o estojo em sua mãos carregam a história do cuidado
domiciliar por ela prestado aos ilhéus pelos mais de
setenta anos dedicados a essa população das águas.
São símbolos que se abrem como uma ponte...
Em 8 de novembro de 2012, com o texto alinhavado,
voltamos àquela casa com o objetivo de validá-lo com
Iracema e com Clarinha e de pedir autorização para
publicação. Após leitura conjunta e aprovação, pergun-
tamos a Iracema que mensagem ela gostaria de deixar
sobre essas relíquias. E ela, mais lúcida do que nunca,
concentrou-se e disse:

“O anel mostra o que sou, e o estojo, o meu trabalho.”

QUE APROXIMAM...

Um novo encontro, agora com Gema, Mauricio


e Bárbara.
(Era apenas para dar um “oi” e saber como estava
dona Iracema, pois fomos à Ilha por outros motivos.)
Tocamos a campainha no muro ao lado do portão
de entrada e, sem demora, Clarinha veio atender. Ela
parecia feliz em nos ver. Disse que a mãe estava bem

Bruna e Iracema, fotografadas por Gema em 17/10/2012.

59
e convidou-nos para entrar. Entramos os três e fomos
direto a seu quarto.
Lá estava Iracema sentada em sua cadeira, ao lado
da cama. Ambiente aconchegante. Ela, sem óculos, ti-
nha os brincos combinando com a roupa e com o es-
malte das unhas, perfeitamente feitas. Ao perceber nos-
sa movimentação, perguntou: “Clarinha, quem é?”. Ale-
grou-se muito quando soube que havíamos retornado.
Após carinhosa acolhida, apresentaram-se Mau-
ricio, acadêmico de Psicologia, e Bárbara, acadêmica
de Serviço Social.
Juntos tivemos uma manhã de vivência inesquecí-
vel. Partilha ímpar de carinho, aula magna de como vi-
ver, quer seja na sutil presença de Clara ou no modo de
Iracema viver e contar a vida. Traduzirmos o que foi a
vivência de cada um é o exercício de dar vida a fragmen-
tos que possam comunicar o infinito dos encontros.

“ Foi a minha grande surpresa do dia, descobri


uma senhora encantadora. Um simples ato de escutar
me fez muito bem, saí de lá com uma sensação inexplicá-
vel, com os olhos cheios de água e com uma felicidade que
não cabia em mim. Aquela senhora possui uma bagagem


espetacular e, mesmo com mais de 100 anos, está cheia de
vida e muito lúcida.

Bárbara, 24/09/12

Iracema, com sua intensa e longa vida, lucidez e


sabedoria, desfruta suavemente de cada encontro, re-
velando-se em uma plenitude cada vez maior. A cada
encontro, a cada momento. Foi bonito perceber os es-
tudantes praticamente em seu colo, escutando e rece-
bendo carinho.
Sentindo-nos tão próximos, pedimos que ela nos
contasse histórias que ainda não havia contado a nin-
guém. Clara permanece no quarto e ajuda a mãe a
vasculhar o sagrado baú da memória em busca de his-
tórias para contar.
Iracema mergulha novamente na abundância de
seus registros mentais e verbaliza muitas coisas. Quan-
do fala do anel de formatura que recebeu do pai aos

60 Iracema: a Cema da Ilha


17 anos, Clara sai e volta com a joia. Gema, também
enfermeira, percebendo o que poderia significar esse
anel nessa mão centenária, documenta em fotografia
essas relíquias.
Não tinha contado ainda que casou quatro vezes.
Clarinha ajuda a lembrar os dois últimos casamentos.
Graciosamente, lembram que eram homens mais no-
vos. Nesse momento, Mauricio, acolhido por Iracema,
pode representar, quem sabe, o próximo.
Nesse ambiente fértil, são compartilhadas muitas
vivências, enquanto Iracema vai desvelando outras di-
mensões de seu ser enfermeira, enunciando a impor-
tância da hoje denominada PNPIC (Política Nacional
de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde).

RECURSOS DE CURA DO PASSADO


E DO PRESENTE...

Iracema, a enfermeira que mergulha nas águas


ocultas do ser humano para atender com equidade as
demandas de cada um. Assim, busca alternativas –
convencionais ou não – para solucionar as demandas
de cura vindas de famílias de todas as partes das ilhas
do Delta, revelando-se enfermeira holística do cuida-
do humano.

61
A MÚSICA

“A música faz parte de minha vida. Com o dou-


tor Mário Totta, fizemos muitos partos juntos. Juntos
também tocamos violão e cantamos muito. Não no
hospital. Ele era mais velho.” Rimos um pouco, pois o
assunto de maridos mais novos ainda estava presente.
Pedimos que cantasse algo daquele tempo. “Can-
tar não vou, mas conto o canto para vocês”. Nisso, Cla-
rinha alcançou-lhe um copo com chá e ela tomou uns
goles. Clarinha disse que a mãe não conseguia mais
cantar por causa da asma decorrente dos cigarros usa-
dos nos tempos das atividades na umbanda.
Iracema recita os seguintes versos, que, segundo
ela, são de Orlando Silva:

“A vida é um triste sofrimento


Eu nasci no mundo para não ser nada
A vida é uma ilusão, a vida é nada”

Clarinha diz que Oscar Freitas, seu pai e o segun-


do marido de Iracema, foi o grande benfeitor da Ilha;
seu nome foi dado à ponte de acesso à Ilha da Pinta-
da. Ele cantava muito e ela tocava violão. “Hoje quem
toca violão para ela é minha filha, que agora está tra-
balhando”, comenta Clara. “Violão é um instrumento
de cura, porque traz coisas boas”, diz Iracema.

As enfermeiras parteiras Iracema Pereira de Freitas


e Ana Lúcia de Lourenzi Bonilha.

62 Iracema: a Cema da Ilha


UMBANDA

Iracema também falou sobre seu envolvimento com


a umbanda. Na Ilha, ela tinha um centro de umban-
da de muito poder.

“” Ela tinha uma casa de religião, o nome dela


era Mãe Jurema.

Diva, 17/10/12

Dona Iracema, enfermeira, parteira e umbandis-


ta, era chamada frequentemente a fazer atendimen-
tos através do centro, ora como enfermeira pelo posto,
ora como parteira, ora como curadora. Conta ela que,
certo dia, há mais ou menos 20 anos, saiu para fazer
um trabalho e acidentou-se gravemente: “Eu pensei
que, se os guias fossem poderosos, me teriam cuida-
do. O acidente me despertou para a ilusão do poder.
Deixei a umbanda e virei evangélica, pois, se os guias
tivessem poder, eles teriam me protegido.”

UM PARTO NAS ÁGUAS

Pedimos que ela contasse outras histórias de seu


trabalho na Ilha, então nos presenteou com esta: “Eu
fiz muitos partos. Minha vó era parteira e minha mãe
também. Certo dia, vieram na delegacia pedir um bar-
co para levar uma parturiente para o hospital. Peguei
a bolsa de parteira e me levaram para a lancha.” Irace-
ma fala, um pouco surda, um pouco cega, mas muito
entusiasmada, que a mulher era conhecida como “se-
mática”. Foi o que ouvimos, mas talvez quisesse dizer
“lunática”. “Entramos na lancha, fomos em direção ao
porto, mas a criança nasceu no caminho. Ali no chão
da Lancha Valkíria, lancha de socorro, hoje desativa-
da. Aí fiz tudo direitinho, cortei o umbigo, enrolei a
menina na camisa que o pai vestia e tirou para enro-
lar a criança, e a levamos de volta para casa. Batizaram
com o nome de Rosinha Valkíria, em homenagem à
lancha onde nasceu.”

63
A FITOTERAPIA NA CURA DO LEPROSO

“Eu trabalhei muito aqui, eu gostava muito de ser


enfermeira”. Não cansa de dizer isso. “Até operei duas
vezes. Uma vez no pescoço e outra retirei um tumor
porque o médico não vinha.”
Clara ajuda a lembrar de um leproso chamado
Cautilho, que o leprosário devolveu para a Ilha, mas
de quem ninguém quis cuidar. “Eu cuidei e curei ele
com erva-cancerosa, babosa, gervão, arruda, alecrim
e manjericão. Quebrava tudo, macerava tudo e pegava
o sumo e cobria com ele todo o corpo em feridas”, diz
Iracema, “depois usava sabonete da umbanda e ele
dormia com o emplastro e de manhã banhava e curei.
Os médicos e todos queriam saber como ficou bom.”

O TOQUE QUE CURA

“Um dia, um moço enlouqueceu, pulou cerca de


espinhos e nem oito homens conseguiram detê-lo, aí
alguém gritou: ‘chamem dona Iracema!’, aí eu disse:
‘larguem ele!’ e os oito homens soltaram, botei minha
mão na cabeça dele e ele se acalmou, ficou bem. Aí fi-
cou o costume de dizer: ‘chamem dona Iracema, que
bota a mão e cura’”.

CONSELHEIRA

“Eu era procurada por meninas para se aconse-


lhar e mulheres querendo abortar, eu sempre orienta-
va para a vida. Nunca matar, nunca.”

A REZA, A ORAÇÃO

Percebe-se a força da reza de Iracema quando ela


diz: “Outra pessoa desenganada, tinha a doença min-
guadeira, era ‘embruxada’, e eu curei pela umbanda
com beliscadas nas costas e rezas.”
Enquanto falávamos sobre a força desse recurso,
mal podíamos imaginar que naquele instante estáva-
mos prestes a vivenciar essa sublime prática de cura.

64 Iracema: a Cema da Ilha


“Agora estou bem. Oro pelas pessoas, sei quan-
to bem que fiz. Seguido vêm pessoas aqui para con-
tar curas que eu fiz. Eu oro para vocês voltar, voltar
sempre.”
Então silenciamos... Mesmo cega, ela sabe que es-
tamos ali, porque ela sente. E então, pausada e sere-
namente, olhando para frente, sem ver, lança no ar as
seguintes palavras:
“Agora vou rezar um salmo para vocês irem bem:

Salmo 23

O Senhor é o meu pastor, nada me faltará.


Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansa-
mente a águas tranquilas.
Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas
da justiça, por amor do seu nome.
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da mor-
te, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a
tua vara e o teu cajado me consolam.
Preparas uma mesa perante mim na presença dos
meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o
meu cálice transborda.
Certamente que a bondade e a misericórdia me
seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na
casa do Senhor por longos dias.”

E foi rezando todo o salmo. Alto e bom som, sem


vacilar...

65
GERANDO GRATIDÃO...

Nosso encantamento com todas essas vivências,


partilhas e aprendizados gerou em nossos seres indi-
viduais e coletivos muitos sentimentos bons. Em rela-
ção à vida e suas múltiplas manifestações na Ilha, nos
fez um pouco melhores e mais sensíveis nos conta-
tos com todas as naturezas, na dinâmica vital da Ilha,
onde os humanos que lá vivem há tanto tempo con-
tinuam gestando e parindo a vida em sintonia com a
natureza do lugar.
Cientes de nossa fragilidade acadêmica para ex-
pressar aqui nossos sentimentos e aprendizados, de
alguma forma materializamos a seguir algumas li-
nhas de gratidão, que correm em várias direções, como
se fossem rios no imenso delta das conexões criadas
em nossos corações. Dessa forma, expressamos nos-
so desejo de seguir compartilhando a vida e diluin-
do no universo do cotidiano nossas duras certezas e
aprendizados.
Ao Clóvis, que semeou a boa semente possibili-
tando, fertilizar o programa “Ilhas de conhecimento”
com muito aprendizado.
À Clarinha, pela acolhida e maestria do cuidado
humano.
Aos membros da comunidade que, pelos depoi-
mentos, confirmaram o legado múltiplo de Iracema,
enfermeira holística do cuidado.

66 Iracema: a Cema da Ilha


Aos acadêmicos que, pelos seus depoimentos, mos-
traram o quanto é profícuo compartilhar extensão, pes-
quisa e ensino na comunidade.
À Iracema, que, pelo exemplo e pelas falas, nos
deixa a esperança de que, no tempo vivido, o essencial
permanece.

“ Velhas árvores
(Olavo Bilac)

Olha estas velhas árvores, mais belas


Do que as árvores moças, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera e o inseto, à sombra delas


Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!


Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,


Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

Uma homenagem à Sra. Iracema Freitas, por uma


longa vida dedicada a cuidar de vidas, e hoje nossa fonte
de inspiração.
Dos amigos da Estratégia de Saúde da Família Ilha


da Pintada.

27/10/2012

67
E ANCORANDO REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção


à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS (PNPIC). Brasília: Ministério da Saúde, 2008.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Pau-


lo: Martins Fontes, 1995.

SPINELLI, Miguel. Filósofos pré-socráticos: primeiros


mestres da filosofia e da ciência grega. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1998.

69
“ São pontes que nos levam à Cema da Ilha, uni-
ficam o tempo na voz de Iracema e dos ilhéus, revelando
relíquias que aproximam recursos de cura do passado e
do presente, gerando gratidão e ancorando referências


nos fluxos do tempo de cada um...

Ao fecharmos a validação desta parte do livro, pe-


dimos que Iracema dissesse uma mensagem final. Ela
pensou e disse:

“ Grande amizade dos meus amigos.


Iracema Pereira de Freitas, 08/11/2012

71
74 As histórias do seu Salomão
As histórias
do seu Salomão
Sentados à sombra de um jambolão na Secretaria Estadual do Meio Ambiente
(SEMA), as crianças da Ilha da Pintada, lideradas por Débora Balzan da Silva
e acompanhadas por outros acadêmicos da UFRGS, escutam e registram
atenciosamente falas de um ilhéu que, por seu ser e fazer, tornou-se referência
para as atividades do nosso projeto “Alfabetização ecológica”.
Com larga experiência e conhecimento sobre a dinâmica da vida nas ilhas e nas
águas do Delta, seu Salomão transmite-nos o cuidado para com o lugar em que
vivemos, ensinando-nos a amar a natureza e cultivar a vida a partir dos recursos
disponibilizados por ela.
Mal sabíamos nós que ele balizaria a construção deste filtro dos sonhos da Ilha...
78 As histórias do seu Salomão
80 As histórias do seu Salomão
82 As histórias do seu Salomão
84 As histórias do seu Salomão
86 As histórias do seu Salomão
88 As histórias do seu Salomão
90 As histórias do seu Salomão
92 As histórias do seu Salomão
94 As histórias do seu Salomão
96 As histórias do seu Salomão
98 As histórias do seu Salomão
100 As histórias do seu Salomão
102 As histórias do seu Salomão
104 As histórias do seu Salomão
106 As histórias do seu Salomão
108 As histórias do seu Salomão
As aventuras
do seu João
Nas páginas a seguir, encontramos a sabedoria de um humilde pescador,
anunciada na seguinte fala:
“Eu nunca tive estudo. Agora, o que eu aprendi na minha vida, aí isso eu
armazenei. Escrevi nas tábuas o entendimento do coração...”
112 As aventuras do seu João
114 As aventuras do seu João
116 As aventuras do seu João
118 As aventuras do seu João
120 As aventuras do seu João
122 As aventuras do seu João
124 As aventuras do seu João
126 As aventuras do seu João
128 As aventuras do seu João
130 As aventuras do seu João
132 As aventuras do seu João
134 As aventuras do seu João
136 As aventuras do seu João
138 As aventuras do seu João
140 As aventuras do seu João
142 As histórias do seu Salomão
As velhas histórias
da Ilha da Pintada
Tecendo a arte da partilha, estas grandes e vividas senhoras, cheias de memórias
ancestrais, nos falam da Ilha nos tempos em que criaram suas famílias,
desafiando no cotidiano as águas do Delta. Retalhos dessas histórias podem ser
lidos a seguir...
146 As velhas histórias da Ilha da Pintada
148 As velhas histórias da Ilha da Pintada
150 As velhas histórias da Ilha da Pintada
152 As velhas histórias da Ilha da Pintada
154 As velhas histórias da Ilha da Pintada
156 As velhas histórias da Ilha da Pintada
158 As velhas histórias da Ilha da Pintada
160 As velhas histórias da Ilha da Pintada
162 As velhas histórias da Ilha da Pintada
164 As velhas histórias da Ilha da Pintada
166 As velhas histórias da Ilha da Pintada
168 As velhas histórias da Ilha da Pintada
170 As velhas histórias da Ilha da Pintada
172 As velhas histórias da Ilha da Pintada
174 As velhas histórias da Ilha da Pintada
176 As histórias do seu Salomão
Vó Caco

Terapeuta da reza.
Há mais de sessenta anos, seu amor pelas pessoas e pela vida transborda
de seu corpo, traduzindo-se nas suas benzeduras.
180 Vó Caco
182 Vó Caco
184 Vó Caco
186 Vó Caco
188 Vó Caco
190 Vó Caco
192 Vó Caco
194 Vó Caco
196 Vó Caco
198 Vó Caco
200 Vó Caco
202 Vó Caco
204 Vó Caco
206 Vó Caco
208 Vó Caco
210 Vó Caco
212 Vó Caco
214 As histórias do seu Salomão
Apêndices
216 Apêndices
217
218 Apêndices
219
Desenh0: Bruna de Souza Fiorentin
Filtro dos Sonhos
Bruna de Souza Fiorentin

Sonhar é viver criativamente, é conhecer os desejos da alma, dar luz ao que se


objetiva ser, iluminar o caminho que alguém se propõe seguir, é confiar no passado
presente que dá pernas ao futuro que se quer viver.
Os sonhos desempenhavam um papel fundamental na vida dos Ojibwe. Para
esse povo indígena, que vivia na região dos Grandes Lagos americanos e que hoje
se espalha por outras regiões do Novo México, aprender a decifrar as mensagens
reveladas nos sonhos era a missão mais importante das pessoas durante sua passa-
gem pelo planeta Terra.
Os Ojibwe acreditam que, quando a noite cai, o ar se enche de sonhos, bons e
ruins. Alguns desses sonhos, mesmo sendo pesadelos, podem conter uma men-
sagem importante do Grande Espírito para nós. Então, na verdade, esses sonhos
são bons sonhos. Porém, existem muitos outros sonhos e energias ruins flutuando
à nossa volta, e esses muitas vezes não são nossos; esses nos incomodam e podem
nos fazer mal. É justamente para separar os sonhos bons dos sonhos ruins que
existem os filtros dos sonhos.
Os filtros são teias poderosas, inicialmente tecidas por aranhas e hoje tecidas
por artesãos, que – envoltas por um cipó trançado – protegem nossa noite de sono.
Os sonhos bons, sabendo exatamente aonde ir, conseguem passar pelos buracos da
teia e chegar até nós, ao passo que os sonhos ruins, desgovernados, ficam perdidos
e acabam presos nos fios da teia.

223
Quando os primeiros raios de sol surgem iluminando o filtro, os sonhos maus
desaparecem no vento – enquanto nós acordamos com um novo aprendizado tra-
zido pelos sonhos bons.1
Este livro representa o que passou entre os fios da teia que compõe o filtro dos
sonhos do programa “Ilhas de conhecimento”. Pequenos retalhos de nossa cami-
nhada, pedacinhos dos sonhos realizados, outras realizações surpreendentes, não
sonhadas anteriormente (na mágica dinâmica do conviver e deixar ser). Como tudo
é perfeito, para traduzirmos em palavras nosso aprendizado – vivido sob o arco-íris
que une as águas do Delta às terras da Vila Cruzeiro –, nem mil livros seriam sufi-
cientes. Grande parte do que passou pela teia alcançou nossos corpos de maneira
sutil e fluida: são elementos que não vimos com os olhos nem tocamos com os
dedos; apenas os sentimos, por isso a possibilidade limitada de materialização.

1
As informações deste texto foram extraídas do seguinte site: <http://somostodosum.ig.com.br/artigos/
autoconhecimento/o-que-e-um-filtro-de-sonhos-05394.html>.

224 Apêndices
A Oficina dos Filtros dos Sonhos
da Ilha da Pintada
Bruna de Souza Fiorentin

O QUE TEM DO OUTRO LADO DO FILTRO DOS SONHOS?

Após terminar o livro da vó Caco, o grupo da quarta edição do projeto “Alfabetização


ecológica”2 (POP/PROPESQ), integrado ao programa “Ilhas de conhecimento”
(PROREXT), teve a ideia de construir um filtro dos sonhos com recursos da Ilha, em
parceria com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA), que cedeu o espaço
e acompanhou o grupo na coleta de material na Área de Preservação Ambiental
(APA) Estadual Delta do Jacuí, aprendendo e ensinando sobre preservação, explo-
ração, conhecimento, práticas tradicionais e sustentabilidade na Ilha da Pintada.
O filtro dos sonhos da Ilha da Pintada foi construído assim: um golpe de ins-
piração que nos fez sonhar e realizar, estudando, convivendo, compartilhando.
Passamos algum tempo buscando conhecer a aranha que teceu a teia. Encontramos
em Fritjof Capra a teia da vida, pela qual passaram muitos seres... Passamos mais
tempo ainda tentando compreender os índios que contaram essas histórias. Nessa
caminhada, aprendemos muito. Os livros nos levaram às pessoas, que nos conecta-
ram à natureza vivida e, de lá, o aprendizado vem se processando.
Esta oficina é apenas um ensaio de registro de nossas sutis vivências, uma metá-
fora de nosso cotidiano acadêmico-comunitário, uma transversalidade metodológica
de escritos – insólitos para alguns leitores, mas essenciais para nós.

2
Esse grupo era composto por mim, por meu colega Mauricio Nardi Valle e pela professora Gema Conte
Piccinini, orientadora do programa “Ilhas de conhecimento”.

225
Assim, ao longo do tempo fomos construindo nossa rede de relacionamentos
e aprendizados nas ilhas do Delta. Certamente, algum elemento poderá servir para
alimentar as aranhas que constroem a teia.
Finalizando o projeto “Alfabetização ecológica em saúde pela cura da Terra: trans-
pondo 2012”, esta oficina e estas páginas de conhecimento foram pensadas com muito
carinho e doação, esperando que, de alguma forma, os sonhos, amores e agrade-
cimentos de cada um dos acadêmicos e ilhéus fossem materializados nas linhas
e cipós, trançados na tarde de sol em que construímos nossos filtros e firmamos
nossos laços.
Este registro, construído em conexão com a Natureza – e alimentado com a
essência vital de nossos seres acadêmicos multiprofissionais, multigeracionais e
transculturais –, congrega aqui nossas histórias com um filtro de amor e paz. Robert
Happé nos tornou cientes de que “consciência é a melhor resposta”3 também na
construção do conhecimento acadêmico. Para nós isso pôde ser forjado unindo os
livros com o viver cotidiano dos nativos em seu lugar, no milagre do convívio entre
o progresso, a ciência e a natureza.

A LENDA 4

Uma aranha fiava sua teia perto da cama de uma senhora chamada Nokomi.
Todos os dias, ela observava a aranha trabalhar. O neto de Nokomi entrou no quarto
e, ao ver a aranha na teia, pegou uma pedra para matá-la. A avó não deixou. O garoto
achou estranho, mas respeitou o seu desejo.
A velha mulher voltou-se para observar mais uma vez o trabalho do animal e,
então, a aranha falou:
“Obrigada por salvar minha vida. Vou dar-lhe um presente por isso. Na próxima
lua nova, vou fiar uma teia na sua janela. Quero que você observe com atenção e
aprenda como tecer os fios, pois essa teia vai servir para capturar todos os maus
sonhos e energias ruins. O pequeno furo no centro vai deixar os bons sonhos pas-
sarem e chegarem até você.”

3
HAPPÉ, Robert. Consciência é a resposta. São Paulo: Talento, 2004.
4
Adaptado de: <http://somostodosum.ig.com.br/artigos/autoconhecimento/o-que-e-um-filtro-de-
sonhos-05394.html>.

226 Apêndices
Quando a Lua chegou, a avó viu a aranha tecer sua teia mágica e, agradecida,
não cabia em si de felicidade pelo maravilhoso presente. Finalmente, exausta após
assistir atentamente à confecção do filtro, a avó dormiu. Quando os primeiros raios
de sol surgiram no céu, ela acordou e viu a teia brilhando como joia graças às gotas
de orvalho capturadas nos fios. A brisa trouxe penas de pomba que também ficaram
presas na teia e, então, um grande pássaro pousou na teia e deixou uma longa pena
pendurada – o movimento do ar levou o que não era bom e deixou a linda dança das
penas alegrarem o início do novo dia.

ONDE OS SONHOS TORNARAM-SE REALIDADE...

Tudo surgiu durante um café da manhã na casa da orientadora de todos estes


programas e projetos, Gema, quando eu, bolsista da quarta edição do “Alfabetização
ecológica”, comentei que gostaria de levar o artesanato para a Ilha da Pintada, por
conta de ter aprendido a fazer o tal “filtro dos sonhos” nas férias. Gema não só
aceitou a ideia como vibrou com novas luzes: “É claro! Podemos fazer uma oficina
de construção dos filtros com material ecológico próprio da Ilha!”, disse ela.
A partir daí, foram surgindo muitos sonhos. Pensamos que esta oficina não
representaria apenas uma “aula de artesanato”, mas sim uma celebração da natu-
reza, dos recursos locais, a lucidez de perceber o lugar onde vivemos como fértil e
cheio de possibilidades artísticas e de subsistência.
Muitos foram os dias de planejamento e coleta junto com pessoas e parcerias
muito especiais. Apresentada às crianças do projeto, a ideia foi aceita com felicidade
e logo partimos em busca de material e de respostas para nossas perguntas.
Eu, Kéthly, Samuel e Natanael – crianças que participavam semanalmente do
projeto – fomos, a passos curtos, pegando informações em todas as casas por onde
passávamos nas ruas da Ilha da Pintada. Foram muitos os ajudantes nessa cami-
nhada. Seu Vilmar (Colônia de Pescadores Z5) nos apontou a casa de Mana, artesã
de escamas; esta última nos aconselhou a usar a erva-de-passarinho para fazer a
base do filtro e o fruto do jambolão para pintar as linhas. Gratos, seguimos nossa
caminhada com essas novas informações.
Na AAAPIP (Associação dos Amigos Artesãos e Pescadores da Ilha da Pintada),
seu Estevão, sempre muito sábio e prestativo, nos ofereceu carona para coletarmos

227
material nas beiradas da Ilha. Na semana seguinte, saímos a campo com seu Estevão,
como prometido, e coletamos muito material. Entre cipós, a casca de embira e sua
resistência inquebrável. Além da ajuda com o material, a AAAPIP prometeu man-
dar um grupo no dia da oficina para representar a instituição e contribuir para nosso
encontro especial.
Entre essas paradas, nos comunicamos com o Alexandre, da SEMA, que, cele-
brando nossa parceria, nos cedeu um espaço lindo para a oficina acontecer. Outro
Alexandre que apoiou essa ideia foi o enfermeiro do Posto de Saúde da Ilha, tam-
bém sendo ele um de nossos pilares em meio a tanto trabalho e dedicação para fazer
tudo acontecer.
A Escola Almirante Barroso não poderia faltar nessa caminhada de parceiros e,
mostrando seu interesse em nosso projeto, prometeu levar uma turma inteirinha
no dia da grande Oficina dos Filtros dos Sonhos da Ilha da Pintada!
Após a coleta e o planejamento inicial, vieram os convites. Com muito carinho,
passamos no lar de cada ser que nos representa de alguma maneira na Ilha, de cada
um que leva um pedacinho nosso e de quem nós levamos um pedacinho. Assim foi
o dia de convites: cheio de lembranças gostosas, celebração de amizades, gozo de
memórias e experiências que selam a conexão entre a terra e a água, entre a universi-
dade e a comunidade – e com o grande orgulho de fazer parte disso tudo!

TARDE DE ESTRELAS...

Depois da ideia, do planejamento, dos contatos, da coleta, dos convites, do conví-


vio, fez-se a Oficina dos Filtros dos Sonhos da Ilha da Pintada! O grande dia chegou!
Será que todos os convidados vão comparecer? Será que os participantes vão
gostar da oficina? Será que será marcante para alguém? Esta semente trará bons
frutos? Tudo sairá como planejado? (Espero que não.) Haverá material suficiente
para a construção dos filtros dos sonhos? O dia será de sol?
Muitos anseios nas semanas, nos dias, nos segundos que antecederam as 14
horas do dia 3 de abril de 2013. Porém, a companhia ativa de pessoas bem queridas
(como Gema, Camila, Maurício, Jeferson, Iasmine, Liana, Carmen e seu César)
trouxe tranquilidade; esses companheiros deixaram tudo mais leve por mostrar a

228 Apêndices
vontade de viver aquela tarde estrelada – com a estrela mais próxima e quentinha, o
Sol – de uma maneira linda: aprendendo, partilhando cultura e amor.
Partimos nós e nossas sacolas cheias de filtros e de sonhos doces. O caminho,
já avistado, revistado, sentido, andado e ditado, se renovou nesse dia, por ser tradu-
zido para os novos tripulantes que viam aquelas águas pela primeira vez.
Chegando à SEMA, resgatamos os materiais coletados, que estavam guardados
num cantinho da sede. Estabelecemo-nos ao ar livre, nas pedras perto do trapiche,
com o consentimento receptivo e acolhedor dos profissionais da SEMA, ali presen-
tes e disponíveis.
Com os filtros dos sonhos que eu havia trazido de casa (feitos especialmente
para esse encontro) pendurados nas árvores de jambolão, fiquei com Camila, Liana
e Iasmine à espera de quem mais fosse chegar... De repente, vimos uma turma
de crianças chegando com uma moça e nos perguntamos se estariam vindo para a
oficina; fomos todos surpreendidos quando descobrimos que sim, os pequeninos
que estávamos conhecendo naquele momento passariam a tarde conosco!
“Profe” Carla e a turma de “pitocos” do segundo ano (crianças de 7 anos em
média) vieram representar a Escola Almirante Barroso na oficina. Ficamos muito
gratos.
Chegaram as senhoras do livro “As velhas histórias da Ilha da Pintada”, repre-
sentando a AAAPIP, cheias de materiais, animação, energia e habilidades fantásticas!
Chegaram Gema, Mauricio, Jeferson, César e Carmen com sua luz e presença
mais que especial.
Mãos à obra! Iniciamos torcendo os cipós enquanto eu explicava a origem desse
artefato e seu significado para as tribos indígenas norte-americanas até os dias de
hoje: o filtro dos sonhos como a ferramenta fundamental para separar os sonhos bons
(os que nos trazem mensagens de autoconhecimento) dos sonhos ruins (energias
que não nos pertencem), bem como a importância de receber e interpretar as men-
sagens dos sonhos bons, sendo esse o principal objetivo da vida desses índios.
O segundo passo foi aprender a trançar as linhas da teia. Em meio aos “por
cima, por baixo, por dentro”, todos foram construindo suas redes, pensando na his-
tória que provém desses objetos e nos sonhos que poderiam chegar até suas mentes
enquanto os filtros estivessem pertinho deles na hora de dormir.

229
A fim de enriquecer o conteúdo invisível dos artesanatos, conto que faz bem
pensarmos em alguém especial para nós enquanto estamos tecendo a teia. As crian-
ças logo se lembram de suas mães, então sugiro que nos lembremos de uma pessoa
que seja especial para o grupo todo, para que todos possamos pensar nessa mesma
pessoa enquanto trançamos os nós. Rapidamente, uma menina lembra um nome
que compartilha com o grupo: Jesus! Bruna pergunta por que “esse cara” é impor-
tante para todos nós e começam a chover respostas; entre elas, esta: porque ele é
bom, porque ele nos ajuda a sonhar sonhos bons, assim como o filtro dos sonhos
que estamos construindo!
Depois de todas as teias prontas, usamos tintas, pincéis, miçangas, tecidos, flo-
res, folhas secas e sementes para enfeitar nossos artesanatos! Entre os enfeites colhi-
dos na Ilha, usamos penas de garças que povoam os ares, as águas e a vegetação
do Delta para representar a leveza e a paz que o filtro dos sonhos nos traz a cada
manhã, quando o vento as faz dançar iluminadas pelos raios de sol.
“Que ideia boa tiveram os índios, né?”
“Vou presentear um amigo...”
“Eu tinha muitos pesadelos, agora estou protegido...”
“Quero colocar bem pertinho de minha cama!”
“Muito bom aprender...”
“Adorei fazer este filtro dos sonhos!”
“Olhe como ficou bonito!”
“Acho que vou começar a fazer em casa e vender para guardar um dinheirinho!”
“Podemos fazer uma exposição com nossos filtros!”
“Que tarde boa de sol, não podia ser melhor!”
Muitas exclamações alegres de um dia de aprendizados na Ilha da Pintada...
Trocamos palavras no piquenique que fizemos logo depois que os filtros ficaram
prontos! Um bolo gostoso, bananas maduras, bolachas, chocolates, cada um trouxe
um pouquinho, que alimentou o grupo todo!
E assim voltamos aos nossos lares com a sensação de partilha, absorção de conhe-
cimento, vivência em grupo, troca de experiências, troca de carinho e atenção, res-
peito mútuo e gratidão à natureza! É o que o nosso projeto se propõe a proporcionar
desde o início: a Alfabetização Ecológica trazendo à tona os meios de promoção de
saúde (em todos os aspectos) e a importância do cuidado com a Terra, ensinando-nos

230 Apêndices
a transpor os desafios da vida com amor e trabalho, junto à comunidade e ao espaço
em que vivemos.

A velha senhora salvou a aranha, que em gratidão a presenteou:


“Enrolando o cipó, a Natureza dá o nó e trança o verde
Com o círculo completo a linha vem tear
Quando a teia pronta estiver, os bons sonhos passarão entre seus vãos
Trazendo clareza e conhecimento, como os sábios anciãos!
Os maus sonhos, desgovernados, grudados no filtro irão ficar
Até o primeiro raio de sol brilhar na teia
Levando com o vento tudo que não nos pertence.”

231
Ilhas de conhecimento:
COMPARTILHANDO PRÁTICAS E SABERES ENTRE AS
COMUNIDADES UNIVERSITÁRIAS E DA APA DELTA DO JACUÍ

DE TERRA E ÁGUA

O programa “Ilhas de conhecimento” (fev./2011) tem origens no projeto


Convivência “Quem sujou minha água?” (PROREXT/UFRGS), que promoveu uma
semana de convívio entre professores, alunos e ilhéus da Ilha da Pintada. Nesse
convívio, que reuniu saberes de terra e água, surgiu o desejo coletivo de elaborar e
executar um plano de ações permanentes visando a interações entre a comunidade
local e a comunidade acadêmica, em busca da valorização do patrimônio cultural,
histórico e natural da região do Delta do Jacuí.
Desde fevereiro de 2011, o programa “Ilhas de conhecimento” vem ramificando-se
em uma série de projetos:

Projeto Bacatelas (2011-2012): Visou a conectar acadêmicos, escolares e comu-


nidade na construção coletiva de um horto comunitário baseado nos princípios da
Alfabetização Ecológica (Fritjof Capra), em parceria com a Igreja Católica, a Secretaria
Estadual do Meio Ambiente (SEMA), a Prefeitura, a comunidade e a Escola Mabilde.
O projeto também comportou o cultivo de plantas medicinais e alimentícias, esti-
mulou a recuperação e a manutenção da margem do Guaíba, além de promover
oficinas com a comunidade.

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Projeto Semear (2011-2012): Construção, junto à comunidade do sul da Ilha, de
vivências integradoras saudáveis entre acadêmicos e famílias locais, através da rea-
lização de oficinas, rodas de conversas, visitas domiciliares e passeios educativos,
integrando diferentes ambientes de ensino e aprendizagem.

Projeto “Alfabetização ecológica” (segunda e terceira fases): Revitalização do


projeto da Vila Cruzeiro, que se expandiu para as crianças da Escola Estadual
Almirante Barroso (Ilha da Pintada) em parceria com a Associação dos Amigos
Artesãos e Pescadores da Ilha da Pintada (AAAPIP), visando a promover práticas de
ecoalfabetização. Essas práticas foram realizadas no ambiente interativo de hortos
ecológicos com professores, moradores e organizações locais, propondo estimular
nas crianças seu ser científico-natural e fazendo ciência com a simplicidade do coti-
diano ambiental.

Eventos de integração e mobilização

- Feira da Biodiversidade (01/06/2012): Evento que mobilizou acadêmicos e ilhéus


numa construção coletiva, celebrando na Z5 a biodiversidade da Ilha com os
parceiros da Vila Cruzeiro, escolas da Ilha, instituições locais e comunidade em
geral.

- Feira da Promoção de Saúde (21/08/2012): Congregou ilhéus, acadêmicos,


visitantes e convidados em múltiplas atividades relacionadas à saúde humana,
ambiental e animal, através de vivências interativas e saudáveis em sintonia
com práticas presentes no cotidiano de cada um.

Incentivo à imersão de alunos em processos de ensino, pesquisa e extensão

- Dois TCCs e um estágio curricular do curso de Biologia.

- Jornal na Escola, desenvolvido por uma acadêmica de História em parceria com


alunos da Escola Mabilde e com o programa Mais Educação (POP/PROPESQ).

234 Apêndices
- Criação do jornal O Angazeiro para divulgação das ações desenvolvidas e inte-
ração com a comunidade.

- Garimpagem, resgate e registro da memória local – incentivados por um aca-


dêmico de História – por meio do compartilhamento de histórias entre anciões
e crianças da Ilha. Dessas atividades resultaram três livrinhos que agora estão
entre as primeiras peças do Museu da Ilha.

- Projeto de extensão “Reflexologia podal”: Elaborado por uma acadêmica da


Farmácia e sediado no Posto de Saúde da Ilha, o projeto consistia em práticas
de massagem terapêutica – acompanhada de sons e aromas – para a equipe de
saúde e professores da Ilha da Pintada.

NO CURSO DO DELTA...

O programa “Ilhas de conhecimento”, centrado na Ilha da Pintada, vem se con-


solidando como um laboratório vivo de partilhas sutis entre as ciências acadêmicas
e tradicionais, numa riqueza indescritível de aprendizados, fortalecendo a crença
de que é muito bom viver em comunidade.
Em 2013, o programa estreita a relação com a comunidade e com o Horto
Ecológico Cruzeiro do Sul (vinculado à Estratégia Saúde da Família), mantido como
espaço terapêutico de vivências individuais e coletivas, bem como de partilha inter-
disciplinar de conhecimentos. Esse é o território original de atuação da professora
Gema Conte Piccinini, que trabalha com ensino, pesquisa e extensão desde 1996.

235
Memorial de gratidão
“Uma andorinha só não faz verão”. Um dito popular que traduz toda a nossa
caminhada. Foi com muitos remos que fizemos navegar nossa bacatela por entre
as ilhas de conhecimento do Delta. A cada “Terra à vista!”, aportávamos e vivíamos
com os elementos lá presentes, com os quais trançamos nossos sonhos, criando
vínculos, afetos, conexões.
Por isso (e muito mais), dedicamos este espaço a essas entidades com as quais
compartilhamos vivências e aprendizados no tempo de cada um. Assim, toda a
equipe do “Ilhas de conhecimento” (UFRGS/PROREXT/PROPESQ) agradece à
AAAPIP, à Escola Infantil Ilha da Pintada, à Escola Estadual Maria José Mabilde,
à Escola Almirante Barroso, ao CAR da Ilha da Pintada, à Z5, à SEMA, à FABICO
– que aceitou o nosso desafio de construir o sonhado Museu da Ilha –, a todos os aca-
dêmicos, bolsistas ou não, que desfrutaram dessa travessia, revezando-se nos remos
(Sofia, Liv, Débora, Mel, Fran, Evelyne, Thais, Monique, Cássia, Ândrya, Ricardo,
Cecília, Pablo, Evelyn, Mauricio, Iasmine, Camila, Bruno, Manoela, Carmen,
Marília...), e à jovem PRAE, por ter nos dado de presente o “bixo” Jeferson, que,
ainda sem morada, dedicou-se à construção dessa obra.
Agradecemos a todo o Delta do Jacuí, por servir de laboratório vivo para nossa
formação humana e profissional; por fortalecer nossa crença não só no tripé
ensino-pesquisa-extensão, mas no poder dos elementos da natureza.
E, por último, mas não menos importante, agradecemos a você, leitor, que
pode conhecer, através deste livro, um pouco do banzeiro criado pela passagem do
“Ilhas” no Delta. Gostamos de comparar essa caminhada à construção de uma casa
na qual todos os envolvidos foram os construtores e os tijolos ao mesmo tempo; nossa
sintonia foi a argamassa que nos uniu para dar ao programa “Ilhas” a vitalidade que
mostrou ter. Somos todos muito gratos e esperamos que essa conexão seja para
sempre!
De toda a equipe do “Ilhas de conhecimento”, com muito carinho.

Porto Alegre, 19 de abril de 2013.

237
Seis anos depois...
ALFREDO E SUELI
Sueli faleceu em dezembro de 2017. Alfredo, aos 97 anos, continua forte, dedi-
cando-se ao jardim, à horta e à confecção de equipamentos de pesca. Preocupa-se
com a ecologia das águas, a poluição das marinas, a vida e a reprodução dos peixes.
Sua filha, que mora na mesma casa, continua com a arte do crochê que realizava
junto a Sueli.

IRACEMA
Dona Cema faleceu em janeiro de 2013, pouco antes de seu aniversário de 101
anos. Sua filha Clarinha, com quem morava, continua vivendo na mesma casa, guar-
dando consigo as lembranças da “presença viva” de Iracema.

SEU SALOMÃO
Em 2017, seu Salomão mudou-se com a família para uma praia no Litoral Norte.

SEU JOÃO
Ainda mora na mesma casa e demonstra a mesma energia e disposição, aco-
lhendo com entusiasmo amigos e familiares.

SENHORAS DO LIVRO “AS VELHAS HISTÓRIAS DA ILHA DA PINTADA”


O grupo de terceira idade se desfez com o início das reformas da AAAPIP, em
2012. Atualmente, com a perspectiva do término da reforma, há a intenção de cons-
truir um espaço para o retorno do grupo, com ampliação de suas atividades.

VÓ CACO
Ainda mora com a filha e continua rezando e benzendo.

239
Autores
Gema Conte Piccinini (Org.) – Doutora em Fitotecnia pela UFRGS e professora
aposentada da Escola de Enfermagem. Coordenou o programa de extensão “Ilhas
de conhecimento”.

Ana Lúcia de Lourenzi Bonilha – Doutora em Pediatria pela USP e professora


titular aposentada da Escola de Enfermagem da UFRGS.

Mauricio Nardi Valle – Mestre em Psicologia pela UFRGS. Integrou o programa


“Ilhas de conhecimento”.

Bruna de Souza Fiorentin – Graduada em Psicologia pela UFRGS. Integrou o


projeto “Alfabetização ecológica” (quarta edição).

Débora Balzan da Silva – Graduanda em Ciências Biológicas na UFRGS. Integrou


o projeto “Alfabetização ecológica” (terceira edição).

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Nesta obra foram utilizadas as fontes Scala e Great Vibes.
Páginas internas em papel reciclato 75 g/m2 e capa em papel supremo 250 g/m2.

Editoração e impressão:
Gráfica da UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, 2500
Porto Alegre/RS
(51) 3308 5083
grafica@ufrgs.br
www.ufrgs.br/graficaufrgs

NUPE - Núcleo de Produção Editorial da Gráfica da UFRGS | 2018


Neste livro, encontra-se
uma força de humanidade. Sua
inspiração são os lugares, as pessoas e as
vivências enraizadas na água e no seu entorno.
Encontros, histórias e processos ganham corpo em
registros cunhados através do afeto, que cria vínculos
e permanência. Este livro não nasceu para ser livro, foi
se tornando, não como uma árvore que vem inteira da
semente, mas como um rio que vai se configurando – a
cada dia em que se chegava à Ilha, a cada novo acadêmico,
a cada novo projeto. Como nas curvas do rio, matérias
dessas vivências foram se depositando. Este livro é como
uma praia de lembranças e registros do que a
Universidade oportunizou viver a quem se permitiu
atravessar a ponte.

Gema Conte Piccinini


Mauricio Nardi Valle

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