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(1944-1945)
Luciano B. MERON1
1
Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: lucianomeron@gmail.com.
Resumo: Suprir os exércitos de alimentos sempre se constituiu numa grande preocupação para os
comandantes. Pilhagens e impostos sobre as áreas dominadas eram meios convencionais de
abastecer os exércitos. Com a Revolução Industrial haveria uma modificação dessas práticas: a
maior oferta de alimentos, os novos meios de transporte e técnicas de conservação mais eficientes,
permitiram campanhas cada vez mais longas e contingentes cada vez maiores de soldados, além de
produzirem profundas mudanças nos alimentos e nos hábitos alimentares das tropas mobilizadas.
As campanhas militares dos sécs. XVIII-XIX foram campo de testes não só de novas armas, mas de
uma verdadeira revolução tecnológica em todas as áreas da atividade bélica, em decorrência da
industrialização. As Guerras Napoleônicas (1799-1815) talvez tenham sido o marco inicial deste
processo, durante as quais foram criadas e introduzidas as rações militares em conserva produzidas
de forma industrial. Assim, as inovações da indústria alimentícias acompanhariam as guerras,
facilitando as operações militares. As Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945) criariam novos
desafios para a indústria. A mobilização de tropas e o alcance geográfico dos combates foram
inigualáveis. Neste contexto o Exército Brasileiro também seria palco de mudanças no quesito
alimentação, especialmente com a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que
introduziria alimentos e técnicas novas, que permitiriam ao praça um quadro nutricional igual aos
soldados do US Army. A maneira como a alimentação era realizada nos quarteis brasileiros e no
front diferiria, criando novas percepções da tropa sobre a hierarquização no Exército brasileiro. A
alimentação também seria um mediador importante nas relações com a população civil. A guerra
da fartura patrocinada pelo US. Army para as suas tropas e a dos seus aliados criou uma situação de
opulência em relação aos civis italianos. A distribuição de alimentos conquistava corações e
estômagos e ajudava a consolidar o controle sobre os territórios recém-conquistados. Este artigo
objetiva analisar a alimentação e os hábitos alimentares dos brasileiros que serviram na FEB
durante a Campanha da Itália. Além disso, procura também entender o papel da alimentação em
alguns aspectos das relações sociais entre os militares e deste com a população civil italiana
durante a II Guerra Mundial.
1 APRESENTAÇÃO
Suprir os exércitos de alimentos sempre se constituiu numa grande preocupação para os
comandantes, especialmente em longas campanhas. As pilhagens e os impostos sobre as áreas
dominadas eram práticas comuns, até a Idade Moderna, como meios convencionais de abastecer os
exércitos. Com a Revolução Industrial haveria uma modificação dessas práticas: a maior oferta de
alimentos, os novos meios de transporte e técnicas de conservação mais eficientes, por exemplo,
permitiram campanhas cada vez mais longas e contingentes cada vez maiores de soldados, além de
produzirem profundas mudanças nos alimentos e nos hábitos alimentares das tropas mobilizadas.
As campanhas militares do final do século XVIII e ao longo do XIX foram campo de testes
não só de novas armas, mas de uma verdadeira revolução tecnológica em todas as áreas da
atividade bélica, em decorrência da industrialização (KEEGAN, 2002). As Guerras Napoleônicas
(1799-1815) talvez tenham sido o marco inicial deste processo, durante a qual, por exemplo, foram
criadas e introduzidas as rações militares em conserva produzidas de forma industrial (FRANCO,
Com a ruptura de relações com a Alemanha nazista, as agressões por parte desta seriam
iniciadas também contra o Brasil. Ao longo da nossa costa, diversos submarinos agiram, atacando
principalmente navios da Marinha Mercante. Os afundamentos causaram grande comoção
nacionali. O povo pedia a guerra. Em agosto, Vargas decretaria estado de beligerância com a Itália
e a Alemanha.
Os efetivos das Forças Armadas cresceriam vertiginosamente com o estado de guerra. A
posição estratégica do Nordeste brasileiro ___ devido a possibilidade de voos diretos para o Teatro
de Operações do Norte da África ___ facilitou uma aliança militar entre Brasil e EUA. Mas para
atrair mais recursos e material bélico, o Brasil engajar-se-ia com maior intensidade no conflito.
Com o aval de Franklin D. Roosevelt, Vargas começaria a formar um corpo expedicionário, em
fins de 1942.
A ideia original era formar três divisões de infantaria, num total de 100 mil homens, mas os
custos materiais e humanos, além do completo despreparo do exército foram barreiras quase
insuperáveis. Além disso, as péssimas condições de saúde e de educação da população brasileira
criaram sérias restrições à formação das unidades expedicionárias adequadas aos padrões de uma
guerra moderna. Em meados de 1944, fora enviada uma divisão de infantaria, num total de 25.334
praças e oficiais ___ formada por soldados de todos os estados da União, enquadrados em três
regimentos, o 1º RI, o 6º RI e o 11º RI.
A formação da FEB trouxe uma série de novidades para o exército, já que este se vinculara,
no inicio do século XX, a outras culturas militares, especialmente a prussiana e a francesa
(MACCANN, 2007). O envio da FEB, subordinada ao 5º Exército dos EUA, permitiria uma
experiência real de combate com o que tinha de mais moderno em termos de doutrina, armamentos
e equipamentos em emprego naquele momento, inclusive no que tange a alimentação.
3 “SEM FARINHA, ARROZ E FEIJÃO A GENTE COME, MAS NÃO ALMOÇA NEM
JANTA!”
Com essas palavras Rubem Braga ___ que foi um dos correspondentes de guerra brasileiros
que cobriram o front italiano ___ descreve a reação geral que a alimentação norte-americana
provocou entre os soldados brasileiros ii. Mas para que possamos compreender melhor este
Havia uma grande preocupação dos norte-americanos em fornecer uma alimentação nutritiva
aos combatentes, assim, desde o transporte ao front e, especialmente neste, os soldados eram
abastecidos de refeições regulares, muitas vezes fartas, e, quando possível, quentes. Para tanto,
desenvolveu-se uma estrutura de produção adaptada às condições de combate. Era uma “guerra da
fartura” que os norte-americanos promoviam, devido a sua força econômica, seu extenso parque
industrial e a moderna e eficiente estrutura montada para a guerra.
Enquanto isso no Brasil as refeições eram pouco variadas, com quantidades irregulares além
de, muitas vezes, estarem impróprias ao consumo. A comida era preparada nas cozinhas das
unidades ou em “carros-cozinha” (carroças aparelhadas com utensílios de cozinha) quando
necessário levar alimentos para unidades distantes dos quarteis. Com a mobilização para a
formação da FEB, os contingentes cresceram muito além da capacidade já comprometida dos
quarteis. As condições sanitárias destes últimos eram preocupantes, como atesta Ubirajara D.
Mendes, então 2º tenente do 6º RI:
[...] As refeições eram preparadas nos carros-cozinha das várias companhias, sob
um barracão aberto. Nuvens de moscas entravam em cena, voejando por sobre a
carne, por sobre os restos de comida e por sobre o lixo amontoado que nem
A forma como esses alimentos eram acondicionados e servidos tinham motivos funcionais e
psicológicos vinculados à lógica da guerra. Primeiramente, as rações K e C atendiam a necessidade
de ter alimentos preservados e de fácil transporte pela tropa ___ normalmente distribuía-se um
desses modelos, o suficiente para uma ou mais refeições, caso determinada missão tivesse a
possibilidade de se estender longe demais das linhas de abastecimento, garantindo assim a
alimentação das unidades. Além disso, essas refeições atendiam as necessidades nutricionais da
tropa, sendo preparações que ofertavam porções compostas por todos os grupos de alimentos
(energéticos, construtores e reguladores), mas com a preocupação de fornecer uma quantidade
maior de calorias, devido à demanda da atividade do esforço físico em combateix.
Havia ainda o efeito psicológico da refeição. A motivação para o combate era uma
preocupação séria para o comando norte-americano. Assim, todas as ações que pudessem manter
“o moral elevado” eram executadas. Isso abarcava medidas em variados campos, como
entretenimentox, licenças (que incluíam viagens a cidades turísticas que estavam na retaguarda,
como Roma), distribuição de correspondências de familiares e a alimentação. O soldado não
combatia o tempo todo, muito do tempo era gasto em deslocamentos, construções de pontos
defensivos, manutenção de armas e equipamentos e vigília do inimigo, mas o tempo que passavam
em ação direta produzia um grande desgaste emocional e físico, gerando um grande stress. Garantir
o mínimo de conforto significava manter o soldado mais tempo em condições de combate, com
melhor aproveitamento. Servir refeições regulares e sempre que possível quentes tinha um papel
fundamental nisso.
As rações B produziam as melhores reações na tropa, especialmente pela maior flexibilidade
da preparação das mesmas e por serem servidas quentes, com a utilização de utensílios, como
pratos e talheres, o que não ocorria com as outras rações. Estas criaram muitas vezes reações
negativas, pois provocavam uma monotonia de sabores, devido, provavelmente ao processo
industrial de produção e ao fato de serem normalmente servidas frias.
As rações C, entretanto, embora feitas com material da melhor qualidade, apesar
de muito apreciadas às primeiras vezes [que foram servidas], acabaram sendo
detestadas porque continham sempre, até nos microgramas, as mesmas partículas
de material. [...] Seus ingredientes eram pesados e medidos cuidadosa e
acuradamente e obedecendo sempre à mesma receita. Em consequência, o sabor
do conteúdo de qualquer latinha ingerida ontem, era o mesmo, o mesmíssimo de
outra comida hoje.
[...] Vale acrescentar que o conteúdo das “pesadas” era quase sempre consumido
a frio. É fácil compreender então que a gordura solidificada, em nada colaborava
para ar um melhor sabor ao alimento (MENDES. Op.Cit, p. 245-246).
Essa ração B era complementada com produtos fornecidos pelo Brasil, típicos de uma
culinária nacional e do soldado, ou seja, jabá, farinha de mandioca, arroz e feijão. Como relata o
tenente Mendes, “pois apesar de tal riqueza no cardápio, o soldado brasileiro sentia falta do feijão-
com-arroz e farinha” (MENDES, Op.Cit, p.247)
O fornecimento de alimentos à tropa, de maneira geral, foi regular, sendo que muitos
soldados voltaram mais bem nutridos e com mais peso do que quando partiram para a Itália ___ o
que gerou uma serie de piadas de pessoas que questionavam a “dureza da guerra” ___ mas isso não
impediu aos brasiliani buscarem produtos típicos da terra.
Tudo era comercializado, mas as rações, especialmente as K e C, que tiveram papel central,
pois eram alvos principais das necessidades dos civis, comida, juntamente com cigarros. Assim,
com algumas scatoletas (caixinhas de ração) conseguia-se quase tudo, inclusive comidas locais,
como massas e vino. Mas, muitas vezes, os soldados saiam em busca por “algo diferente”, como,
por exemplo, carne fresca de porcos e aves para complementar as refeições da unidade, sendo que
estes “ingredientes extras” eram negociados com essa população ou mesmo surrupiados.
A destruição física, a desestruturação econômica e social criavam grande degradação moral
para a população civil, mas também afetava os soldados, especialmente com a banalização da
violência e da miséria. Mesmo assim, são frequentes os relatos de comoção dos brasileiros com os
habitantes das áreas onde ocorriam os conflitos ou por onde passavam. O então sargento de
artilharia Boris Schnaiderman relata suas impressões na cidade e da população de Pozzuoli, uma
província de Nápoles, durante a folga do serviço:
Mostravam-se [os soldados brasileiros] quase todos sentimentais e compassivos.
Era com grande espanto que os paisanos os viam afastarem-se, para ceder
passagem a uma senhora, ou tomar uma criança pela mão, afim de ajudá-la a
atravessa a rua.
As maneiras afáveis de nossa gente pareciam anacrônicas na Pozzuoli daqueles
dias. Era frequente encontrar-se algum dos nossos crioulos parado no meio da
rua, cercado de uma chusma de crianças, distribuindo biscoitos ou balas trazidas
do Brasil. Mas, por fim, aquele espetáculo deprimia. As crianças maltrapilhas, de
braços como espetos, aqueles olhos parados, aquela palidez...[...]
(SCHNAIDERMAN, 1995, p.71).
A distância de casa, a violência da guerra e o stress provocado pelas agruras do front criava
em muitos uma grande carência afetiva. Muitos soldados se aproximavam de famílias italianas na
busca de suprir essa carência e estabeleciam laços. Participar do convívio íntimo, dividir refeições e
eventos sociais junto com membros dessas famílias eram hábitos comuns, ao menos para aqueles
soldados que conseguiam estar em áreas próximas de vilarejos. Relacionamentos afetivos com
garotas locais surgiam nessas situações:
Todas as noites ficávamos até tarde na beira do fogo conversando. Às 22h, mais
ou menos, começávamos a comer castanhas. Um dia era monaline, outro dia
balote, outro borgateli. Sempre variando. Não me lembro de ter jamais comido
tantas castanhas. Quase todos os dias ia à casa da minha “franzita”, a Ana, uma
pequena de 17 anos muito bonita. [...] De vez em quando ia com ela e a família
colher castanhas. Porém passava a maior parte do tempo conversando do que
propriamente trabalhando. (TAVARES, 2005, p.60)
Rubem Braga nos garante outro exemplo muito rico do papel que uma refeição em família
tinha para os soldados desgastados pela guerra.
No pequenino vilarejo afogado sob a neve, temos, pela gentileza de um capitão
de Intendência, o prazer de almoçar na casa de uma família onde moram três
sargentos. Depois de tantos dias de comer em quarteis e acampamentos no meio
de homens, é confortador esse almoço servido por três louras e robustas
camponesas, que nos trazem macarrão feito em casa e outras saudades. Sim, é
comovente, e quando digo que é comovente apenas exprimo a verdade.[...]
Foi um almoço apenas [...] mas que esse simples almoço seja cantado aqui em
prosa, ainda que má, atrapalhada e apressada. Eu disse antes que foi comovente a
comida e gostaria de explicar que um dos assuntos que mais comovem nossos
Portanto, as circunstâncias onde o alimento era o foco nas relações com os civis ou mesmo
entre os próprios soldados eram variadas e permitiram diversas analises dentro do contexto da
guerra.
5 CONCLUSÕES
Comer é muito mais que alimentar-se. Esta máxima é bem conhecida quando nos referimos
aos diversos aspectos que extrapolam o lado biológico da alimentação. Embora ela seja
prontamente utilizada para justificar a necessidade de um maior entendimento das construções
culturais feitas ao redor da alimentação, tornando-se quase um clichê, neste tipo de estudo, sua
aplicação no conhecimento da história da alimentação militar se faz extremamente necessária.
Embora hoje tenhamos trabalhos bem estruturados, que nos fornecem uma boa compreensão,
no campo da relação entre alimentos e religiosidade, por exemplo, engatinhamos no campo da
alimentação de guerra. Trabalhos que visam apresentar um panorama geral de determinados
períodos ou mesmo de toda a história militar nacional, como os de Nelson Werneck Sodré (2010) e
6 REFERÊNCIAS
ARRUDA, Demócrito C. (Org.) Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB. São Paulo:
Ipê, 1949.
BRANCO, Manoel Thomaz C. O Brasil na II grande guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960.
CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs.) Nova história militar
brasileira. Rio de Janeiro: FGV/Bom Texto, 2004.
FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: Uma história da gastronomia. São Paulo: Senac, 5ª
Ed. 2010.
KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 4ª Ed, 2001
MACCANN, Frank. Soldados da pátria: História do Exército Brasileiro (1889 – 1937). São
Paulo: Cia das Letras, 2007.
________. A Tarefa Rotineira de Matar. Nossa Historia, Rio de Janeiro, Ano 2, nº 15, pp. 26-29,
Jan, 2005.
PESAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. São Paulo: Autêntica, 2005, 2ª Ed.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, Vol.2,
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SILVEIRA, Joaquim Xavier da. Cruzes Brancas: Diário de um Pracinha. Rio de Janeiro: Bibliex,
1997.
SODRÉ, Nelson W. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010, 2ª Ed.
TAVARES, Eduardo Diogo (Org.). Nós vimos a cobra fumar: Diário de um jovem tenente
brasileiro na Itália durante a II Guerra Mundial. Salvador: P&A Editora, 2005.
i
Para mais detalhes sobre os afundamentos e sobre a guerra anti-submarina na costa brasileira, ver:
SANDER, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: A história dos afundamentos de navios brasileiros pelos
nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
ii
Para mais detalhes sobre os correspondentes de guerra brasileiros ver: MERON, Luciano B. Noticias do
Front: Correspondentes de guerra brasileiros na II Guerra Mundial. Anais do III Encontro de Cultura &
Memória – História: Cultura e sentimento. Recife-Pernambuco. CD-ROM
iii
Na prática os americanos forneceram também a maior parte do fardamento, especialmente o de inverno.
iv
O cabo Raul Carlos dos Santos serviu na Companhia de Petrechos Pesados (CPP) do 11º Regimento de
Infantaria. Entrevista concedida ao autor em 25/09/07