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Um modelo quase fora de moda


E até deu jeito viver aqueles anos sem um telefone que nos controlasse, sem fotografias e
videos para mostrar todas as asneiras, todos os segredos, mas sobrevivemos e temos muitas
histórias para contar
MARTA CAIRES / 04 MAR 2018 / 02:00 H.

Quando damos por nós a dizer coisas como “ao que isto chegou” é sinal de que andamos por aqui há algum tempo e
começamos a não perceber bem a época em que estamos. E tem dias, muitos dias, em que me sinto assim, uma senhora de
uma certa idade que nem sempre compreende esta febre das fotografias e dos videos, de ir andar por ai a filmar e a fotografar
tudo o que mexe. Sou capaz de estar a perder o comboio da modernidade, faltará pouco para ser um modelo antiquado e, se
tiver sorte, talvez chegue à categoria “vintage”.

Este modelo quase a ficar fora de moda ainda aprecia um pouco de silêncio, sem ruído, uma tarde sossegada a ler um livro
em formato de papel e uma boa conversa com as amigas, daquelas em que se fala de tudo, de sapatos à política e ao sentido
da vida, e se dá descanso ao telemóvel, à televisão e à torrente de informação que circula nesse mundo estranho e fantástico
da Internet. Às vezes, todas as vezes que posso, faço isso, desligo e vou ver como está o mundo.

E no meu mundo existem pessoas que não sabem bem o que é a Internet, essa coisa que se vê por intermédio do computador
e do telemóvel como diz a minha tia Alice na sabedoria dos seus 87 anos, para quem as notícias vêm nos jornais ou passam
na televisão. O resto é um reino desconhecido do qual não fazem parte as memórias que guarda, as saudades que sente ou as
pessoas de quem gosta. Nada disfarça a solidão, a dor pelos que foram, a consciência de como viver custa e custa ainda mais
com o passar dos anos. A minha tia Alice não tem ‘likes’, mas ainda se aflige com a política e o governo, os impostos e o
futuro dos netos.

A minha tia Alice faz parte desse mundo fora da rede, o mesmo lugar onde vive o meu pai e onde está a casa do meu avô e a
minha tia Conceição. A casa do meu avô encerra memórias de tudo o que sou. Do dia em que fiz a primeira comunhão, do
jantar do crisma, da adolescência e das férias da faculdade, do almoço de domingo, da minha tia Teresa, do tio Humberto e
da minha mãe, de quando estávamos todos e o meu irmão tentava tirar fotografias artísticas com uma máquina Kodak. E, de
um rolo de 36, ficavam boas quatro ou cinco, 10 tremidas, em três não se viam as cabeças e o resto não valia a pena revelar.

As fotografias pouco nítidas documentam a nossa história como família, falam de quem fomos, o meu irmão e eu nos nossos
17 anos, mostram as tias mais novas e o meu pai de cabelo preto, a maior parte jaz esquecida dentro das gavetas e por lá irá
continuar. A minha tia Alice diz que sou a única que lhes presta homenagem, que lhes dá valor, que é uma maneira de me
dizer para a guardar o passado com carinho. Eu guardo, gosto de as ter comigo, mas o melhor do passado está cá dentro, não
vem nas fotografias a primeira vez que me sentei na Praia Formosa e ouvi o mar a rolar nos calhaus.

A máquina Kodak da minha tia Conceição era cara e não se levava para todo o lado, só em ocasiões especiais. Na pré-
história da tecnologia era assim, difícil e dispendioso, mandava o bom senso que se tivesse cautela. E até deu jeito viver
aqueles anos sem um telefone que nos controlasse, sem fotografias e videos para mostrar todas as asneiras, todos os segredos,
mas sobrevivemos e temos muitas histórias para contar e algumas fotografias tipo face e outras tremidas. Às vezes pergunto-
me, eu que sou um modelo quase fora de moda, o que terão para contar deste tempo em que não ouve um concerto, nem se
desfruta do mar: tira-se uma fotografia ou faz-se um vídeo e até se morre por isso.

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