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Maria de Fátima Morethy Couto

A crítica brasileira em busca de uma


identidade artística (1940-1960)

LSOUUU DE CAMPINAS
UNIVIKSIUADP
Rcirar
H ~ N L ~ Q0iUBB
CARLOS R CRUZ
~
Coordenador G e d da Universidadr
Jorr Tmru Jonco

Conselho 1;dicoriil
Prcsidcno
PAULOF a a ~ c ~ r n i
ALan Pfcaair- ANTONIO CARLOS B A N N U ~ ~ ~FAHIOMAGRIHAES
T-
G e m ~ o aDi GIOVANNI
-JosLA. R. G0~1110-LUIZDLVIDOVICH
Luz Mhn~usS- R i w n n o A ~ 1 ~ 0
FICHA
CATALOORÁF.~ICA ELABORADA PELA
Bitiiiorech CENTRAL
DA UNICAMP

Couro, Maria de Fátima Morerhy


C837p por m,nav2nguarda nacional. A crlrica brasileira em biirca de
uma identidade artirtica (1740-1760) 1 Maria de Fátima M.
Couro. - C~mpinar,SP: Edirora da ~ N I U M P , 2004.
1.Arrcr plásricli- Brasil. 2. Critica de ame. 3. Arre concrera
4.Airc iigacariva. I. Titulo.

C D D 730.0781
70 i
ISBN 85-268-0676-7 709.04
fndices para caráiogo rirrcmirico:

1. Arrcs plásricns-Braiil
2. Cririca de arrc
3. Airi concreta
4. Arm figurativa

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Copyrighr @ 2004 by Editora da UNICIMP

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Para Clara, que tanto ilumina minliil ivi,/,i


0 PROJETO CONSTRUTIVO IIRASI1,EIRO NA ARTE:
A CONTINUIDADE ENTRE ARTE CONCRETA E NEOCONCRETA .........115

A claiezaé uma exigência intelectual e nada mais.


A OFENSIVATACHISTA NO FINAL DOS ANOS 1950:
UMA NOVA "COLONIZAÇÁO CULTURAL"? .............................. .
.. 142 JULIO CORTAZAR,
O jogo da amarelinha, 1999 (Ised., 1964)
8
Este estudo tem por objetivo principal examinar algumas
PORUMA AIITF. POPULAR REVOLUCIONARIA:
o ENGAJAMENTO I'OL~TICO DE FERREIRA GULLAR
............................167 das questões que marcaram a introdução da arte abstrata no
Brasil dos anos 1950 e a retomada da figuração na década se-
guinte, aprofundando a reflexáo sobre o desejo de afirmação
9
cultural e de busca de uma identidade artística nacional pre-
ARTE E PARTICIPAÇAO SOCIAL: A JOVEM VANGUARDA sente nos textos de artistas e críticos atuantes no país. Ressalto,
BRASILEIRA DOS ANOS 1960 .....................................................................198
porém, que não pretendo apresentar aqui um panorama dos
movimentos artísticos de vanguarda que mais se destacaram
nesse período, mas sim analisar a recepção da arte abstrata e da
arte de inspiração pop -ou nova figuraçáo -, discutindo as
razóes que levaram os principais críticos da bpoca a proferir
julgamentos peremptórios, postular convenções e diretrizes e
promover excomunhões. Não devemos nos esquecer, contudo,
CONSIDERAÇ~ES
FINAIS .................................. .
. 239
....................................
que, para os críticos engajados na defesa do moderno, o exer-
cício da profissão implicava um trabalho de promoção do "me-
lhor" da arte contemporânea, trabalho este que tinha como
uma de suas metas convencer o público do valor - atual ou
potencial - desse ou daquele artista. A filiaçáo a Baudelairc,
que afirmava em seu artigo sobre o Salão de 1846 que, "pnia
ser justa, ou seja, para ter sua razão de ser, a crítica dcvc si.r
t
parcial, apaixonada, poética, política, isto é, feita de um pon- ocidental do pós-guerra como um todo".) Asuposição de que
to de vista exclusivo, mas do ponto de vista que abra o maior a crise política européia poderia criar novas oportunidades
número de horizontes", parece portanto evidente.' para países até então periféricos encorajava tentativas de cria-
Se a idkia do crítico como um profissional imparcial não ção de estruturas artísticas independentes de Paris. A França,
me parece possível, é necessário atentar para a diferença entre considerada entáo o centro mundial das artes, preocupava-se
uma atitude apaixonada e pessoal e uma concepção que, pre- em reafirmar sua primazia no cenário internacional. Críticos
tendendo-se universalista, se transforma em normativa. Co- e intelectuais franceses em atividade, como Bernard Dorival e
mo argumenta Rosalind Krauss a respeito da crítica moder- Pierre Francastel, empenhavam-se em comprovar a vitalidade
nista, esta se tornou "incapaz de ver sua 'história' como uma e a universalidade dos valores da chamada Escola de Paris, em
I
perspe'ctiva, [...I
isto é, um ponto de vista, [..I
tendo sua especial aqueles instaurados pelo cubismo. Tal atitude, que
inteligência crítica perdido a prudência em relação ao que privilegiava a noção de continuidade em detrimento da idéia
tomou como dado". Distanciando-se do que antes conside- de ruptura, levou-os a menosprezar - assim como fariam
rava "um mktodo lúcido e objetivo" [a análise formalista pro- Pedrosa e Gullar posteriormente - uma das formulações
posta por Greenberg], Krauss passa então a acreditar que o mais inovadoras do momento, a qual deixaria marcas na arte
crítico "não tem que dar conta de uma perspectiva universal, da segunda metade do século XX: a pintura informal de
mas simplesmente de seu ponto de vista [...I. Sua própria pers- Wols, Fautrier e D ~ b u f f e tNa
. ~ mesma kpoca, do outro lado
I
pectiva, como sua própria idade, é a única orientação que uma do Atlântico, Greenberg iniciava sua carreira de critico de arte
pessoa jamais terá".2 com dois artigos, "Vanguarda e kitsch" e "Rumo a um mais no-
A conjuntura sociopolítica do pós-guerra, no entanto, foi vo Laocoonte", nos quais discutia a funçáo da arte de van-
particularmente propícia à emergência de concepçóes nacio- guarda na sociedade ocidental e esboçava alguns dos fun-
nalistas. No período em questão, como observa Serge Guil- damentos esdticos do que viria a ser conhecido como teoria
baut, "o Ocidente estava reconstruindo siia imagem cultural. modernista. Anos mais tarde, Greenberg daria sustentação
O verdadeiro debate praticado nesse período dizia respeito a teórica à tese de que a arte abstrata americana dos anos 1950
quais conjuntos de qualidades deveriam representar a cultura representava o momento máximo da "tradição moderna",

Serge Guilbaut, "Postwar Painring Games: the rough and the slick", in Sergc
I
Charles Baudclaire, "Salon de 1846", in Euwrescompl&tes. Paris: Seuil, 1966, Guilbaut (org.), RecorutruetingModrrni,m.Art i n New York, Parir andMo~i-
p. 229. n e a l 1 9 4 5 - 1 9 6 4 Cambridge, Londres: The MIT Press, 1990, p. 31.
Rosalind Krauss, "Uma visão do modernismo", in Glória Ferreira e Cecilia O trabalho dos informais, n o entanto, logo atraiu a atengáo e simpaii;~<li.
Cotrim (org.), CIcmcnt Greenberg r o debate critico. Rio de Janeiro: Minis- escritores do porte de Jean-Paul Sartre, Francis Ponge, Jean Paulhan c Micliil
tirio da Cultura, FUNARTE, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 173. Tapie, que passaram a defender essa arte octra.
afirmando que, desde o final da guerra, ficara evidente que I Bienal, aderiram aos postulados da arte concreta - rede-
a arte vinda de Paris "não estava à altura, que a produção finidos por Max Bill em 1936 -, os críticos brasileiros parti-
americana tinha nitidamente mais f ~ r ç a " . ~ dários da abstraçáo, em especial Mário Pedrosa e Ferreira
A maioria dos estudos publicados até hoje sobre asituaçáo Gullar, procuravam demonstrar que era possível construir
artística no pós-guerra analisa apenas, por razóes óbvias, o anta- uma arte nova, adequada às necessidades de um país novo,
gonismo instaurado entre a França e os Estados Unidos. No que poderia entrar em concorrência direta - em nível de
entanto, também o Brasil nutria a esperança de impor-se mun- igualdade, ou mesmo de superioridade - com a produçáo
dialmente. Nos anos 1950, o país tentava aproveitar as divisas européia. Dentro desse espírito, eles se engajaram em um
acumuladas durante a guerra para aumentar sua capacidade de combate ao mesmo tempo ideológico e estktico: reagindo a
produçáo e se lançar definitivamente na era da industrialização. uma situação de dependência cultural, buscavam dar à arte
O Brasil conhece, então, um desenvolvimento econômico ace- abstrata realizada no país um caráter de inovação e de especi-
lerado e aparece como forte candidato a ocupar um lugar pri- ficidade que a distinguisse no mercado de arte internacional.
vilegiado no novo arranjo de naçóes, incluindo o no domínio Apesar do apelo inicial lançado em favor da universalidade da
artístico. Aidéia de uma mudança do centro mundial das artes arte abstrata,.as concepções estéticas de Pedrosa e Gullar re-
*
de Paris para São Paulo seduzia os espíritos mais audaciosos, velam, já na segunda metade da década de 1950, forte desejo
que acreditavam na possibilidade de o país participar do debate de definir o que deveria ser a "abstração brasileira". A rejeiçáo
cultural da época com uma contribuição significativa e ori- da pintura informal, ou tachista, por ambos, por exemplo,
ginal. No plano nacional, esse período caracteriza-se pela reto- deveu-se, a meu ver, à identificaçáo da arte neoconcreta como
mada de didlogo com o exterior e pela implantaçáo de uma a formulação abstrata mais adaptada às necessidades do país.
política desenvolvimentista que resultaria na construção de A seu ver, os artistas brasileiros que aderiram "apressadamen-
Brasília. Novos museus, voltados para a arte moderna, sáo en- te" à arte informal ou gestual submeteram-se sem resistência
tão fundados, e assiste-se idifusão da arte abstrata nos grandes a umalinguagem "sem raízes", veiculada por galerias e museus
centros brasileiros. A criação das Bienais de Sáo Paulo repre- dos grandes centros m u n d i a i ~ . ~
senta o ponto culminante desse processo de abertura e dessa
tentativa de renovaçáo das artes plásticas no país.
' Ressalto, porém, que um dos crit6rios de contemporaneidade. para Pedrosa
Simultaneamente às pesquisas dos artistas de vanguarda,
e Gullar, dizia respeito à tentativa de romper por completa com "as últimas
que, impressionados pelo trabalho da representação suíça na caracreristicas convencionais da pintura-de-cavalete",características estas que
a "onda rachista", a seu ver, tentava restabelecer no Brasil. Ambos compar-
tilhavam da convic~áode que era necessário abolir a idhia da obra de arte
' Entrevista com Ana Hindry, realizada em Nova Iarque em 17 de maio de como objeto único, superar a oposi~áoentre as categorias estéticas rradi-
1993, em Glória Ferreira e Cecilia Cotrim (org.), op. cit., p. 146. cionais e engajar o espectador no processo de criagáo.
Nos anos 1960, porém, a situaçáo do Brasil no concerto Entretanto, enquanto, para alguns, a arte deveria atuar como
internacional das nações era complemente distinta. Enquanto meio de organizaçáo das massas e a preocupação com o con-
os Estados Unidos desfrutavam de uma condiçáo político- teúdo deveria prevalecer sobre aquela com a forma, para ou-
econômica privilegiada, afirmando seu lugar de liderança tros, militância e experimentalismo formal poderiam cami-
mundial, lançando-se em campanhas internacionais com o nhar lado a lado. Ferreira Gullar, por exemplo, renegaria seus
intuito de demonstrar seu poderio militar, conquistando o ideais vanguardistas, lutando agora em favor de uma "arte
espaço e levando seus produtos aos quatro cantos do planeta, popular revolucionária", que fosse capaz de estabelecer uma
o Brasil, após um período de euforia desenvolvimentista, as- comunicação imediata e inequívoca com o "povo". Já Mário
sistia ao aumento vertiginoso da inflação, ?I renúncia de um Pedrosa, embora apreensivo com o destino da naçáo, alertava
presidente, à deposição de seu substituto e à implantação de para o perigo de se confundirem revoluçáo política e revo-
uma ditadura militar que terminaria por cercear os direitos lução artística. E, se ambos exaltavam o caráter politizado da
civis de seus cidadãos. No terreno das artes, a certeza de que novajguraçúo brasileira, assim como sua tentativa de romper
era possível se equiparar às nações mais desenvolvidas dava o isolamento das artes plásticas em relação ao grande públi-
lugar ao desejo de assumir o subdesenvolvimento do país e de co, o primeiro confiava na possibilidade de criação, no fu-
fundar uma linguagem condizente com essa condiçáo. É o turo, de uma arte de alta qualidade, feita para as massas, ao
fim do apogeu da arte abstrata nos meios de vanguarda, da passo que o segundo entendia que a sociedade de consumo
retomada da figuração pelos jovens artistas e dos primeiros de massa náo era propicia às artes, devido ao poder incomen-
sintomas perceptíveis de uma integraçáo entre arte e cultura surável do mercado e do pensamento publicitário.
de massa.
O debate em torno da importância do engajamento po-
lítico do intelectual e da eficácia revolucionária da arte sus-
citou novas questões a respeito da relação entre obra e re-
ceptor e da função e responsabilidade social do artista. Como
observa Otília Arantes a respeito do período 1965-1969, "boa
parte dos artistas brasileiros pretendiam, ao fazer arte, estar
fazendo política [...I [reclamando] para si um papel de ponta
na resistência ao processo regressivo por que passava o país".'

' Otília B. F. Arantes, "Depois das vanguardas", Arte Em Revista, na7, ano 5.
São Paulo, ago. 1983, pp. 5-20.
Depois da exposição dos premiados d a primeira Bienal d e Sáo Paulo,
o Museu d e A r t e Moderna nos dá u m a mostra da atualidade brasileira
e m pintura, escultura, gravura e desenho. Será essa a ocasiáo para ve-
rificar-se a influência q u e a Bienal teve sobre os artistas. [...I O grave
perigo que corriam os artistas plisticos n o Brasil, antes d a prova d a Bie-
na1 paulista, e r a a timidez, a falrn de nudicia, um certo conformismo com 1

os valores d o dia. Eram os jovens reverentes demais para com os velhos.


O s velhas, por sua vez, satisfeitos c o m a iinainidade d e respeito q u e os
envolvia, tinham a doce e ilusória impressáo que haviam chegado a o
Se no momento da realiz 1ri111ci~l13ic1i:lIclc S5o
ponto final da evoluçáo daarte moderna. Dormiam sossegados sobre os
louros.Tudo isso acabou c o m o certame internacional doTrianon. Hoje 1 Paulo náo era possivel prever qual das pcíticas ahsrint:is Iiiria
figura de paradigma no Brasil, no meio dos anos 1350 :i :lrrc
no Braril, o ambiente artístico está em efervesrência. Sumiu-se a modorra
aijiwiante. Os artiitar comrçnm a brigarpor mar idéik, ruas convicfõfs I concreta - no sentido em que Max Bill a definiu eni 1336,
estPticar. Excelente!A vanguarda abitracionista reafirmou-re com uma t ~ u -
retomando as idéias de Theo van Doesburg -já havia sido
culência magnlfica, soberba de intolerância. l?ewatamente irto de quepre-
erigida em norma pelo meio artístico brasileiro mais "pro-
ciramor, pois uma tal atitude revela apenas aprofundidade de ruas con- i gressista".' Mas por que essa forma particular de abstraçáo
uicções. Um artista sem conuicfáo, rem unilareralirmo não será jamais um
superou todas as outras com tal rapidez no Brasil, enquanto
grande arti~ta.'~
na França e nos Estados Unidos a abstraçáo informal e o ex-
pressionismo abstrato se impunham gradualmente entre as
Pedrosa anunciava, assim, a luta que a jovem vanguarda
brasileira travaria a seguir, acreditando em sua necessidade. ' "Pintura concreta e não abstrata porque jápassamos o periodo das pesquisas
e experiências especulativan. Em busca da pureza eram os artirns obrigados
a abstrair as foimas naturais que escondem os elementos plásticos .... Pintura
concreta e não abstrata pois nada 6 mais concreto, mais real, do q u e uma
linha, uma cor, uma superflcie", afirmou Theo van Doesburg em 1930. "Uma
mulher, uma árvore, umavaca são concretos na estado natural, mas no estado
de pintura são abstratos, ilusórios, vagos, especularivos, ao passo que um
plano é um plano, uma linha é uma linha: nem mais, nem menos." Segundo
o raciocinio doi concretos, o processo de cria~áode uma abtaabstratapressu-
põe que o arrisra parta de um modelo qualquer tirado da natureza, para
" Mário Pedrosa, "Momenro artistica", i n Cntdlogo da E x p o ~ i ~ ãdeo artiirai submetê-lo em seguida a um processo de depuragão. Já na arte concreta,
braiileiroi. Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, abr. afirmam, n ã o deve haver nenhum ponto d e parrida naturalista, todos as
1952. O grifo 4 nosso. elementos são puramente artirticon.
vanguardas? Numerosos historiadores e críticos de arte bra- plesmente o entusiasmo por recentes exposições de Max Bill, Calder e
sileiros, entre eles Mário Pedrosa, apontam dois eventos como Mondrian. O que contou foram as pressões estruturais que os nossos
decisivos para o sucesso da arte concreta no Brasil: a exposição artistas e intelectuais, como membros da classe média, sofreram nesse
de Max Bill no MASP, em 1950, e a participaçáo da delegação sentido. [...I As ideologias construtivas estáo organicamente ligadas ao
suiça na I Bienal de São Paulo.2 O prêmio de melhor escultor desenvolvimento cultural da América Latina no período de 1940 a 1960.
outorgado a Max Bill nessa ocasiáo parece confirmar o impacto Encaixavam-se como perfeição nos projetos reformistas e aceleradores dos
de sua obra sobre artistas e críticos brasileiros. Entretanto, a paises desse continente e serviram, até certo ponto, como agentes dali-
prodigiosa vitalidade encontrada pela arte geométrica e suas i bertaçáo nacional frente ao domínio dacultura europiia, ao mesmo tempo
variantes em diversos países da América do Sul no pós-guerra em quesignificavam uma inevitável dependência desta. [...I As vanguardas
levaram outros pesquisadores a buscar as raízes desse fenômeno construtivas na América Latina respondem a esse ambíguo desejo, o de
1
no contexto político-econômico do continente sul-americano? I ascender ao mundo desenvolvido para dele tentar se emancipar."
Ronaldo Brito, por exemplo, rejeita tal conexão (entre as
exposições citadas e a eclosáo do concretismo no Brasil) e es- 1 Frederico Morais, por sua vez, aponta
tabelece uma relaçáo direta entre o desejo de superar o estado
permanente de subdesenvolvimento do pals e a adesáo gene- uma coincidência de objetivos, nas décadas de 40 e 50, entre as ideo-

ralizada a uma concepção plástica que encampava a idéia de logias construtivas no plano cultural, o desenvolvimentismo no plano

progresso: econômico e as alianqas continentais n o plano político. No Brasil, por


exemplo, a dicada construtiva por excelência é a do desenvolvi~nentismo
A formaçáo, no campo das chamadas artes visuais, de uma van- [...I. Ao rápido crescimento e modernização das p n d e s cidades corres-
guarda de linguagem geométrica no Rio e em Sáo Paulo, no início dos ponde também a ambiçáo de nossa burguesia de superar a condição, como
anos 50, obedecia a razões sem dúvida mais significativas do que sim- país, de mero exportador de matérias-primas minerais, de país agroexpor-
tador. Este esforço modernizadar e o crescimento demográfico das cidades
Oito artistas participaram da representação suíça na I Bienal de São Paulo. vão gerar novas formas culturais- da bossa-nova ao concretismo, inician-
Sáo eles: ~ a l t e Badmer,
r Oskar Dalvit, Gearges Fraidevaux, Leo Leuppi, do a revisão da obra daqueles artistas, como Portinari e Di Cavalcanti, que
Claude Loewer, Richard Paul Lahse, OttaTschumi, SophieTaeuber-Arp. No
representam o estágio anterior: uma estrutura patriarcal e agrária.'
catálogo da I Bienal, o nome de Max Bill aparece apenas na seção geral, com-
posta de artistas brasileiros e estrangeiros que haviam submetido suas obras
B apreciação do júri. Uma única obra de Biil, Unidade tripartida, de 1948-
1949, responsável par sua premiaçáa como melhor escultor internacional, Ronaldo Briro, Neoconcrrdrmo vértice e ruptura do projeto construtivo bro-
figurou na exposiçáo ("'278). iileiro. São Paulo: Cosac 81 Naify, 1999 (l'ed. 1985), pp. 34-35 e 52.
O Uruguai, onde os artistas sofriam a influência deTorres-Garcia desde seu Frederico Morais, "Vocação construtiva (mas o caos permanccc)". ili Arirr
retorno ao país em 1934, e a Argentina, berço dos grupos Arte Cancreto- pidrtica naArnériraLatinatdo tranrr ao tramiidrio. Rio de Janeiro: ( : i v i l i ~ : i ~ l i i
Invencion e Arte Madi, sáo os exemplos mais célebres. Brasileira, 1979, pp. 78-91.
Ferreira Gullar, de forma mais ampla, enfatiza igualmente telectuais progressistas e empresários audaciosos tentavam im-
a relação entre a aceitação da arte concreta e a expansão da primir ao país e que culminaria com a construção de Brasília.'
sociedade industrial: "Ao contrário das tendências indivi- É importante ressaltar ainda que, naquele mesmo período,
dualistas ou niilistas da arte contemporânea - expressio- diferentes vozes começaram a se levantar contra a crença de que
nismo, dadaísmo, surrealisnio, tachismo - a arte concreta , apenas a pintura figurativa poderia desempenhar uma função
deriva de um compron~issocom a época moderna, com a social efetiva. Se uma das maiores críticas feitas ao abstra-
sociedade industrial, dentro da qual o planejamento, o conhe- cionismo por parte dos artistas figurativos engajados poli-
cimento teórico e a divisáo do trabalho contam como fatores ticamente, como Di Cavalcanti ou Portinari, era que ele seria
relevante^".^ uma linguagem hermética, dissociada da vida e alheia aos pro-

I
/ O desejo de construir uma sociedade nova e moderna, re- blemas sociais do país, os primeiros defensores da arte concreta\
gida por modelos racionais, certamente contribuiu para a entre nós acreditavam em seu potencial revolucionário, transj
difusão, no continente sul-americano, de uma arte imbuída formador. Artistas e crlticos que promoveram tal tendência no
I de uma ideologia progressista. Convencidos do papel capital
que as descobertas científicas poderiam desempenhar para a
1 Brasil declaravam-se compromissados com o destino do país e

transformação do real, numerosos artistas e críticos enga-


A ideologia nacianal-desenvolvimeniista de Juscelino Kubistchek, seu apresa
jaram-se com empenho em uma arte seduzida pela técnica e à naqáo de progresso e de evolução assim como sua intcnqáo de passar uma
baseada em concepções matemáticas, acreditando que, assim, imagem de um governante emprcendrdor - simbolos de um arrniique rumo
ao futuro, rumo i modcrni~ação- iranspareccm, por exemplo, em seus
poderiam auxiliar a América Latina a despontar no cenário dizeres ufanistas sobre suaobra como governador de Minas, no perlodo que
mundial. Nesse sentido, o caso brasileiro é exemplar. Aos olhos antecedeu sua chegada h preaidêiicia da República: "O burro tinha sido subs-
de muitos, como vimos, o Brasil do pós-guerra estava prepa- tiruida pelo jipe. Os trilhos, abertos pelas ancas, haviam desaparecida, cedendo
lugar às nwas rodovias Onde anresexisria um monjolo, acionado por uma bica
rado para galgar diferentes etapas e acertar finalmente o passo d'água, fumegava uma chamind. E os morros preros, que faiscavam ao sal,
com as nações mais desenvolvidas. O lema do governo Kubits- órfãos d r qiialqrirr vegetasão, eram rasgados pelas escavadeiras, lavados em seus

chek, "Cinquenta anos em cinco", ilustra com perfeição a at- entulhos, convertidos enfim, em fontes iiiesgotáveis de riquissimas minérios".
Como observa Ricardo Maranháo, "todos os elementar que figuram nas pa-
mosfera otimista e voltada para o futuro que dirigentes, in- lavras de JK fazem parte de um liiiguajar ideológica que recuperavárias décadas
deaspiraqóes nacionais. Ate mesmo a unta, Figura-simbola de umadas
vertentes literárias da Modernismo, carregada de um patriotismo verde-amarelo
e que desembocou em posisóes cxtremamenre reacionárias, está presente. E,
em oposi~áoao velha jumento que servia no passado ioJeca-Tatu, se colocam
Ferreira Gullar, 'Xrre neocancreta, uma contribuição brasileira", in Aracy várias das Meras que seriam a prata principal da devorasão antropoiágica e ao
Amaral (oig.), Projeto conitrirtivo brarileiro naartr (1950-1962).Rio dc Ja- mesmo tempo progressistado pais durante o qüinqüênio de JK: a Energia, as
neiro, Sáo Paulo: MEC-Pinacoteca do Estada de Sáo Paulo, 1977, p. 114. Transportes, as Máquinas, aMinera$ão2'. Ricardo Maranháo, Ogovrrno jur-
Publicado originalmente na Reviira Crítica deArtr, na 1 . Rio dc Jaliciro, 1962. iclino Kuditichek. Sáo Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 7-9.
pregavam a implementação de mudanças sociais profundas. A posição filosófica toda subjetiva, introjetiva. Era uma posiçáo que náo
arte moderna ou abstrata de tendência construtiva era, para eles, implicava uma mensagem, uma atitude de quem vê mais longe. Era um
não apenas o simples resultado de meros malabarismos formais, grito do artista, uma interjeição perinniieiitc.'
mas um dos instrumentos mais poderosos para a construçáo de
uma nova sociedade. Mário Pedrosa expõe tal convicção em um O processo de aceleraçáo industrial em andamento no
' depoimento a Aracy Amaral: país, que se encontrava ni:iis :iv:iii(ailo cni s50 Paulo, incitava
a uma redefiniçáo do 1i:ipcl soi:inl t l o :irtist;i I~iasilciro.Este
Porque havia na arte dita moderna algo que era revolucionário, que passa então a ser visto como partici~>:it~~v : I I ~ V OCIO projeto de

se precisava desenvolver. Daí porque tive realmente um interesse muito edificaçáo de uma sociedade modcr1i;i c ~ ~ r ~ ~ < l i i i iraba- iv;i,

grande por uma arte que fosse importante no fazer, que influenciasse a Ihando no domínio da estética industrial, tl:i ~i~x~~:i~;ili:i, iI:is
vida social d a 6poca. Quis que fosse criativa nesse sentido. Quando e u artes gráficas etc ...As vanguardas, fazia-se ncccss:írio I W O I I I I > . -
filava de arte moderna, eu m e referia a u m a arte que tive~seinfuência sobre ver a "tomada de consciência do artista, tanto artística < ~ U : I I I I U
a vida social d a época. [...I Erra arte iria ter u m a importancia n a vida economicamente, frente ao novo mundo da produção i i i -
social. Não me interessou nunca a arte puramente desinteressada, que dustrial em série, [.I
aquele mundo impessoal, coletivo e
não fosse social. Havia uma coincidência muito grande entre a arte mo- racional, que passa a depender inteiramente doplanejamento,
derna, que modificava a maneira d e viver dos homens, e a arte cons- em todos os sentidos, níveis e escalas".10
trutiva. Uma utopia. Mas a utopiaé importante. [...I Esse dado utdpico A integraçáo entre o artista de um país em desenvolvi-
Foi decisivo para todas nós. Porque senão não se fazia mento e a indústria em expansáo era, portanto, não somente
atraente, mas fundamental para o novo projeto de nação,
Essas mesmas razões levaram-no a reagir contra a intro- como declara Mário Pedrosa em 1955:
dução da arte informal no país:
A indústria moderna precisa da imprescindível e inadiável colaboraçáo
Havia esse compromisso [entre a arte concreta e o processo d e indus- dos artistas, sob pena de jamais elevar-se à altura das exigências culturais
trialização brasileiro], a arte é uma coisa otimista. O Brasil é um país de da sociedadc a que serve. Sem essa colaboração, ela náo ultrapassará nunca
construçáo nova e eu achava que a arte concreta foi que deu essa dis-
ciplina n o nível d a forma. J á o inforrnalismo era uma arte pessimista, Enrrevista com Mário Pedrosa, in Fernando Cocchiarale e Aiina Bella Geiger,
Abitracioniimo geométrico e informal-A vanguarda órarilrira nos ano: cin-
muito pessimista, e refletiu o que se passava no mundo. Uma arte de
güenta. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1987, pp. 104-8.
'O Decio Pignatari, "Forma, f u n ~ á oe projeta geral", i n Aracy Amaral (org.),
Depoimento de Mário Pedrosa a Aracy Amaral, datado de 30 de abril de Projeto conrtrutiuo brasileiro naarte (1950-IYGZ), ap. cir., pp. 76-77, Artigo
1181, apud Aracy Amara], Artepara qu2Apreocupn~tíorocinl iin "rte bra- publicado pela primeira vez na reviara Arquitetura e Deco~a~ão, Sáo Paulo,
sileira. 1930-1970.São Paulo: Nobel, 1987, pp. 251-52. O grifo C nosso. ago. 1957.

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o âmbito desse empirismo mesquinho e meramente utilitário em que tra- Na opinião de Waldemar Cordeiro, um dos líderes do
balha, náo alcançando enobrecer a nossa civilizaçáo com a qualidade for- movimento paulista, o artista moderno deveria estar sinto-
mal (perfeita síntese funcional e plástica) d e seus artigos, como o fizeram, nizado com o próprio tempo e náo tentar, ingenuamente,
e m relação ao seu tempo, as atividades artesanais das grandes épocas cria- escapar à era tecnológica.'% ele caberia tratar a arte como
doras d o passado, assim, por exemplo, o artesanato medieval." um produto intelectual, coiisidernildo-a "um meio de conhe-
cimento tão importante quaiiro as ciencias positivas":
O artista moderno, portanto, deveria colaborar na cons-
trução do novo mundo. Assim como o artesão da Idade Média, f:izcr dn arte u m
A parcialidade d o s roin9iiiicos, qiic I>i.rir~iilr~ii
ele trabalharia em prol da comunidade, de sua evolução. Ao mistério e u m milagre, desacredita a ~ii>iciiçi:ili<l:iilc
stiri:il dn crinçáo
mesmo tempo, porém, deveria combater o prestlgio arraigado formal. O intelectualismo dos ide6logos, de oiirro I:irl<i. :itriliiii h nrrc
à execução artesanal e rejeitar a noçáo de obra de arte como tarefas q u e esta não pode cumprir, por serem contrdri:is h su:i ii:itiircx:i.
objeto único e sagrado. Em vez de sujeitar-se a formulações [...I Urge u m a v o l t a a o realismo, para salvar as conqiiistns h:isir:is d:i tirtc
plásticas antigas, o artista contemporâneo deveria criar novas contemporânea ameapdas pelas perplexidades e complexos dc 11111:i Ihls:i
formas de expressão, compostas segundo princípios sistemá- moral. Realismo artístico e não realismo anedótico. [...I O cciiicciiii dc
ticos, concebidas em sirie e acessiveis a todos. "Quanto mais arte produtiva é u m golpe mortal n o idealismo e emancipa a artc d:i
objetivamente gerais e impessoais -quanto mais objetiva- condição secundária e dependente a que tinha sido relegada.14
mente universais - tanto mais belas seráo as obras de arte",
proclamou um dos artistas concretos de Sáo Paulo."
'3Já em 1949, Cordeiro defendia o abstracionismo como o 'ponto nodal, um
" Mario Pedrosa, prefácio da catálogo da segunda expasi~áodo grupo Frentc, salto qualitativo determinada de um movimento de 'ruptura que pretende
Museu de ArteModeina do Rio deJaneiro, jul. 1955, in Feinando Cocchia- reivindicar a linguagem real das artes plásticas. [...I Ora, seo mundo se acha
rale e Anna Bella Geiger, op. cit., p. 232. em incessante movimento e desenvolvimento e se a lei deste movimento t a
Décio Pignatari, :'Forma, função e projeto geral", in Aracy Amaril (org.), ertinçáo do velho e a fortalecimento do novo, 6 evidente que não devemos
Projeto construtivo bnuileiro na arte (1950-1962), op. cit., pp. 76-77, Como orientar-nos, especialmente ar jovens, para aquelas formas q u e há muito
I
o b s e r v a h a Maria Belluzzo, "a alian~aentreo artista e a indústria se manifesta, chegaram ao término de seu desenvolvimenro, mas para as outras que com
entre outros aspectos, atraves de uma valorização positiva da produçáo pela estes nascem, desenvolvem-se e que tem o futuro". Waldemar Cordeiro, "Abs-
máquina, através da preferência por materiais e processos industriais, por tintas tracionismo", ArterPlditicai, vol. 3, jan.-fev. 1949, apud Aracy Amaral, Arte
i
de cores puras já prontas, em oposição àqueles procedimentos identificados para q u t ? op. cir., p. 252.
com a tradição artisrica e artesanai, e a adoção de tintas industriais como o es- " Waldemar Cordeiro, "O objeto", in Aracy Amaral (org.), Projeto ronrtrutivo
malte em cares 'prontas', suportes industriais como o duratex, compensado, braiileiro na arte (1950-1962),op. cit., pp. 74-75. Publicado originalmente
plexiglass, alumfnio e processos industriais como pintura a revdlver". Ana Maria na revista Arquitetura eDeiora~ão.São Paulo, dez. 1956. Habilmente, Cor-
Belluzza, "Ruptura e arte concreta", in Aracy Amaral (org.), Arte conrtrutiva deiro emprega em seu artigo o termo realismo, cara aos estalinistas e aos ar-
1
no Bmsil. Colefão Adolpho Leirncr. São Paulo: Melhoramentos, DBA Artes tistas figurativos engajados, fazendo uma ressalva: realirmo artírtico e naoanr-
Gráficas, 1998,p. 134. 11' ddtico. Dentro do mesmo espírito, ele proclamaria, em artigo publicado na
Juízo semelhante foi proferido por Geraldo de Barros, ou- plicados nas malhas da ideologia d o desenvolvimento tecnológico, na
tro participante da vanguarda abstrata paulista, quando afir- crença de u m a progressiva racionalizaçáo das relaçóes sociais, tendo como
mou que 'a tentativa da arte concreta em sua finalidade era a horizonte uma hipotktica sociedade onde arte e vida estabeleceriam entre
de socializar a arte". Segundo ele, o concretismo brasileiro "não si vinculos concretos e d e s ~ o m ~ r o m e t i d com
o s posi~óesde classe.'"
foi outra coisa senão a tentativa de especificaçáo dum projeto,
no sentido de obter um ProjetolObjeto-Pintura a ser produ- Brito pondera ainda que, no afã de abraçar a causa do
zido em grande escala. Ao eliminar o objeto único (meio de progresso, tal concepção entende a sociedade como uma tota-
subsistência do marchandda galeria), a arte concreta proporia lidade, negando conseqüentemente sua divisão em classes
uma decorrente coletivizaçáo da pintura e demais artes".15 sociais e promovendo assim um forte recalque das lutas ideo-
A utopia cientificista e desenvolvimentista que subjaz no lógicas latentes em todos os tempos. Dentro dessa mesma
discurso das vanguardas construtivas, expressamente culti- linha de raciocínio, Aracy Amaral ressalta as contradiçóes da
vada pelos concretistas do país, foi analisada -e criticada - posição esquerdista de Cordeiro:
por Ronaldo Brito:
Para Cordeiro, na verdade, a arre concreta eravista como uma possi-
A questão sempre foi, para as ideologias construtivas, construir uma bilidade de integrar o artista no projeto social, como paisagista, dese-
arte que pudesse servir de modelo à própria construção social. [.I Asua nhista industrial, artista gráfico, e não mais mero produtor de objetos
intervenção é de natureza didática; como todasas forps liberais, acreditam de decoragáo para uma burguesia instalada o u emergente. [...I Seu ex-
n a Educação com e maiúsculo - seu esforço mais constante é no sentido tremo dogmatismo, contudo, [.I era similar ao rigor dos estalinistas que
d e estetizar o ambiente social, educar esteticamente as massas. [...I Im- tanto combatia e sua grande c o n ~ r a d i ~ ãtalvez
o residisse e m querer con-
ciliarsuas idéias, que reivindicava como de esquerda, com uma tendência
mesma revista dois anos mais rarde, a identidade da arre concreta com a in-
dústria, alertando para "a importincia decisiva da indústria na compreensáo que se identifica com u m a aspiragáo desenvolvimentista, industrialista,
do conteúdo da arte contempor%nea,cuja finalidade última e destina his- vinculada à entradamaciça dos investimentos estrangeiros em nosso pais
tórica acreditamos ser a Arte Industrial".
a partir de inícios dos anos 50."
l5 Apud Maria Aimée C. Galletani, Concrctismo e neocancretismo nas artes
plásticas. A vanguarda construtiva brasileira nos anos cinqüenta e inicio dos
anos sessenta. Dissertação de mestradoem filosofia, PUC. São Paulo, 1991, Devemos também ter em mente, contudo, que o apoio e
p. 76. Coerente com sua propostade inserir a arte na produqáo industrial, Ge- O entusiasmo que a arte concreta encontrou entre os críticos
raldo de Barros, como relata Gallerani, foi um dos fundadores, em 1954, da
Comunidade de Trabalho UNILABOR, que, inspirando-se na proposta da Bau- e os jovens artistas brasileiros se fundavam igualmente na
haus, teve como meta a produção cm serie de objetos de uso cotidiano. Na área
da deseiilio industrial, fundou ainda, com Alexandre Wollner e Rubem Mar-
tins, a FORA-INFOM (1919) e, com Aluísio Biane, a loji de movçis I-Iosjrro '"onaldo Brito, op. cit., p. 15.
(1964). " Aracy Amaral, Artepara giiê?, op. cit., p. 253
I vontade de fazer tábula rasa de toda heranca cultural e de abstracionismo. Transparece o desejo de náo violentar as coi-
retornar aos valores essenciais da arte, um dos maiores motes sas, de ficar num meio-termo, de não perder o pk"."
das vanguardas modernistas. A adesão às idéias rigorosas de Os textos publicados no Brasil durante o período em ques-
Max Bill representava uma ruptura simultânea com a forte tão buscavam atribuir esse caráter de radicalização ao trabalho
tradição figurativa em voga no país e com a autoridade de Paris, da vanguarda local, assumindo um tom peremptório compa-
"guia universal das artes" e referência mítica da maioria dos ar- rável ao dos manifestos artísticos publicados no início do século
' ~ se ignorava tampouco o trabalho dos expressio-
t i s t a ~ .Náo na Europa. Na realidade, como observa Neiva Bohns,
i nistas abstratos norte-americanos, que tiveram algumas de -

I suas obras expostas na primeira e na segunda Bienais de São esse tipo de escritura [dos textos concreristas] espellia-se e m grande
Paulo, mas ele não representava um retorno às "origens da parte na forma dos manifestos reivindicatórios e pollricos, e, portanto,
linguagem objetiva e universal da forma", linguagem esta que está inserida numa tradisáo que é comum ao modernismo. C o m o aqueles,
os artistas concretos gostariam que fosse a da vida cotidiana. estes apresentam u m tom extremamente afirmativo, objetivando não dei-
De maneira análoga, a abstração náo-geométrica praticada na xar espaço para a dúvida o u para a incerteza. Há, nos rextos, u m forte tom
I
França no pós-guerra mostrava-se, na opinião desses artistas, d e auto-suficiência, já que os artistas q u e os escreveram acreditavam ser
indecisa, sem querer dar o passo decisivo que poderia con- os condutores da nova arte. Eram os pretensos sujeitos assumidos d e u m a
duzi-Ia a uma verdadeira ruptura com a natureza. Sobre esse nova história que c o r n e ~ a v a . ~ '
assuiito, escreve Mário Pedrosa, em um artigo sobre a pri-
meira Bienal de São Paulo: "Tal como se apresenta a seção da O manifesto do grupo Ruptura, fundado em São Paulo em
França a marca da arte francesa está ali visível. Veja-se o seu 1952 e liderado por Waldemar Cordeiro, enfatizava a vontade
de seus membros de instaurar uma nova era artística no país,
estabelecendo uma distinção entre os que "criam formas novas
Em artigo em 1970, no qual analisa o conrexta brasileira do p6s- de princípios velhos" e aqueles que "criam formas novas de
guerra, Pcdrasa criticava nesses termos a exposiçáo d e arte francesa realizada princípios novos". "É o velho" -afirmam seus aiitorcs -
no Rio de Janeiro e em S á o Paula eni 1945: "O esforgo propagandístico
francês impressionou o grande pública mas não convenceu as gerações mais
novas ansiosas por express6es mais audazes e revolucionárias: o mundo ap6s
a guerra vitoriosa contra as forças d o mal, a obscurantismo nazi-facisra, não '9Mário Pedrosa, "ABienal deSáo Pauld', in Dor murnrscrr riirtinariaos espaçoi
ia ser tatalmenre outro?" Mário Pedrosa, "As vésperas da Bienal", inMundo, d8 Brasília, coletânea de nrrigas organizada por Aiacy Amaral. São l'aulo:
homem. arte em crire, colerânea d e artigos organizada por Aracy Amaral. S j a Perspectiva, 1981, p. 44. Artigo publicado pela piiiiieira vez no jornal Tri-
Paulo: Perspecriva, 1986, pp. 281-82. Texto escrito em 1970 e publicado buna da Jmprtma em 3 de novembro de 191 1.
originalmente em Ferreira Gullar (org.), Arte brasileira hojc iituação eperr- '"NcivaMaria F. Bohns, "O concrerismo n a Ain4ricaLatina: um ensaio sobre
pcctivas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, como parte do estuda 'RBienal manifestos e declaraçóes de artistas de 1946 a 1959", PortoArte. Revirta de
de cá para lá". Arter Viiuaii, vol. 6 , n" 10. Porto Alegrc, ~iov.1995, pp. 35-42.
todas as variedades e hibridaçóes do naturalismo; a mera negação do São todos eles homens e mulheres de fé, convencidos da missão
naturalismo, isto d, o naturalismo "errado" das crianças, dos loucos, dos revolucionária, da missão regeneradora da arte. A arte para eles náo é
"primitivos", dos expressionistas, dos surrealisras, etc.; o náo figurativismo atividade d e parasitas nem está a serviço de ociosas ricos, ou d e causas
hedonista, produto do gosto gratuito, que busca a mera excitação do prazer políticas ou do Estado paternalista. Atividade autônoma e vital, ela visa
ou do desprazer. É o novo: as expressóes baseadas nos novos princípios a uma alttssima missão social, p a l a de dar estilo ii +oca e trangformar oi
artisticos; todas as experi8iicias que tendem à renovação dos valores essen- homens, edz~cando-osa exercer os rentidos com plenitride e a modelar ar
ciais da arte visual (espaço-teinpo, movimento e matéria); a intuição artís- próprias ernofóe~.~'
tica dotada de princípios claros e iiiteligentes e de grandes possibilidades
de desenvolvimento prático; conferir i arte uin lugar definido no quadro Sérgio Milliet, no entanto, logo se declarou reticente quan-
do trabalho espiritual yntemporâneo, considerando-a um meio de conhe- to ao valor das afirmaçóes categóricas da jovem vanguarda,
cimento deduzível de conceitos, situando-a aciina da opinião, exigindo criticando imediatamente, por exemplo, o caráter sucinto e
para o seu juízo conhecimento p r é v i ~ . ~ ' pouco elucidativo do Munifèsto Rupturu, embora reconhecendo
nele a marca registrada de todos manifestos:
O mesmo espírito de contestação da arte pela arte e de
crítica quanto ao elogio da subjetividade presidiu, segundo A não ser pela disposição gráfica, seu manifesto não difere em nada
Mário Pedrosa, à fundação do grupo Frente, no Rio de Ja- de tantos outros manifestos lançados nos meios artísticos por jovens

neiro, em 1953, do qual participaram alguns dos futuros inte- ainda imaturos, mas desejosos de revolucionar a arte. Esses manifestos

grantes do movimento neoconcreto: têm sua função e merecem nossa simpatia. São afirmações, assinalam
pontos de partida polêmicos possivelmente fecundos. Infeliztneiitç Li-
" Manifesto do grupo Ruptura, publicado quando da primeira exp~siçãodo lham quase sempre em relação a seu objetivo d e esclarcccr o ~piihlicr>c
grupo, realizada em dezembro de 1952 no Museu de Arre Moderna de São até de chocá-lo. L.] Os inoqos insistctni ctii qiir. s%o"ri>titr:i:I il:iioi.:iiicia",
Paulo. Assinaram o manifesto os artistas Lothir Charoux, Anatal Wladyslaw,
Kazmer Fejkr, Leopold Haar, Luis Sacilorro, Geraldo de Barros e Waldemar Louvável atitude, mas ser contrl a igiii>i..iiici:t consisir ~ ~ i i t i ~ i l ~ : i l ~cni
~iriitc
Cordeiro. No mês seguinte, respondendo as criticas feitas por Sérgio Milliet
-que rranscreveremos mais adiante -, Cordeiro escreve novo texto no qual ia Mário Pedrosa, prefácio do catdloga da sc~iiti<l;i cxli<irir:i<i
i I < i xrtipa Frente,

tenta ser mais explícito, afirmando que, enquanto os principios velhas conais- Museu de Arte Moderna do Rio de Jaiiciro, j i i l . 1055, i i i 1:cirinndo Coc-
tiam em: ''a) construção espacial tridimensional; b) daro-escuro; c) movimento chiarale e Anna Bella Geiger, op. cit., p. 231. O ~:iifi,i: i,o.;so.AIExposição
como movimento e um corpo no espaqo fisico", os navos poderiam ser re- do grupo Frente ocorreu nagaleria do Ii~rii,tio IKio <IrJiiicira, em junho de
sumidos da seguinte forma: "a) construção espacial bidimensional (o plano); 1954. Participaram desta exposi~ãoos arrisi.is Alilhio (::irvão, Carlas do Val,
b) atonalisma (as cores primárias e as complementares);c) o movimenta linear Deciovieira, Ivan Seipa, João José d a Silvn <:<,\ia, 1,ygia Clark, Lígia Pape e
(farores de proximidade e semelhança)". Waldemar Cordeiro, "Ruptura', in Vincent Iberson. Ferreira Gullar foi o ;iiiti>i. i I , i tcrro de apresentação. Da
Aracy Amaral (arg.), Prveto cozxnutivo braiiieiro na nrtr (1950-1962),op. cit., segunda exposi~ão,romaram parte mais srir ;iriirtas: Abraham Palatnik,
pp. 100-2. Artigo publicado originalmente no Suplemento do Correio Pau- César Oiticica, Elisa Silveira Marrins, Eric 1l;iruch. Franz Weissmann, Hélio
listano de 11 de janeiro de 1953. Oiricica e Rubem Ludolf,
desirrii-Ia no público e na crítica. Conservar cimentamente asabedoria sem rativismo hedonista, produto do gosto gratuito, que busca a
dar aos outros a possibilidade de adquiri-la é egoísmo e erro. [...I Aos mera excitação do prazer ou do desprazer". Como vimos,
poetas permite-se que dêem sentidos inéditos às palavras. Aos que lançam Milliet não foi um ferrenho opositor da arte abstrata em geral,
manifestos explicativos e jusrificativos, não. Sob pena não só de não serem mas sim da abstração "fria" e racional. Ele foi, por exemplo,
entendidos, mas, o que é pior, de serem mal interpr~tados.2~ um dos defensores de primeira hora do trabalho do pintor
informal Antonio Bandeira, escrevendo o prefácio de sua ex-
No ano seguinte, quando da exposição dos concretos ar- posição individual realizada no Museu de Arte Moderna de
gentinos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Milliet São Paulo em 1953. Ainda no artigo citado, Milliet referiu-
voltaria à carga, censurando 'nessa tendência em voga a terrível se à exposição da gravadora Fayga Ostrower em São Paulo:
ausência do homem":
os incorruptíveis adeptos do "concreto" dirão com desdém que se
Enquanto a linha e a cor se empregaram para expressar emoçóes, não trata de uma hedonista. Sempre pensei que hedonismo fosse uma dou-
nos perturbou o abstracionismo. Nem nos irritamos quando essa pintura trina filosófica que propõe o prazer como finalidade. Para os concretistas,
assumiu uma função estritamente decorativa. Em u m caso como no porém, é toda solução abstrata que não segue os preceitos da última
outro atendia a uma necessidade humana. Era necessário entretanto que tendência em voga. Q u e m não se despoja até o ascetismo é hedonista,
não descambasse para o mecânico, o matemático, ou o jogo d e equi- ainda que a obra realizada se revele dolorosa e grave. Brinca-se muito
líbrios das últimas realizações. Por esse caminho, que alguns designam com palavras em nosso tempo. E já se brincou tanto que náo mais a,

I
como o d a depuração, mas se aproxima demasiado da impotência, che- compreendemos, pois cada qual Ihes empresta os valorrs qiie Iieiii cii-
garemos rapidamente h esterilidade. [...I Não nego que certas solu9óes tende. D a í a Babei do mundo dos artistas, tio qual sc iiitiliiplir:iiii sciii
desse tipo sejam agradáveis avista. Nego que elas tenham um valor expres- se traduzirem os universos de disci~rsu.~'
sivo qualquer. Não somente carecem de sensibilidade: pccam também pela
falta de invenção criadora. E levam, pela comodidade das receitas, a um
academismo tão perigoso quanto o das Escolas de Belas- arte^.^' I
I
As crescentes divcrgtririn rsii.rii:is (btirr<:os grupos con-
cretos de São Paulo e d o Itio tlcJaiiciro rcs~iltaráona eclosáo

Um grave ponto de discórdia entre Milliet e os concre- Idem, op. cit. Como r>hscivr Marin Alice Milliet, "nessa disciissáo [entre
tistas dizia respeito a oposição destes ao chamado "náo-Figu- Milliet e Cordeiro, ~iici~cioi>nda anreriormenre], o hedonismo é o ponto
fulcral n o que conccriic I liiri~ãodn arte. Cordeiro náo admite a arte como
expressão subjetiva do artista, nem seria sua funçáo despertar a emparia d o
fruidar: o que almeja 6 uma arte depurada de roda contamina~ãopessoal,
" Sérgio Milliet, Didrio crítico. Sáo Paulo: Martins, EDUSP,"01. VI11 (1951- desvinculada dc experimenta~áofenomenalógica e livre de histo-
17521, 13 dez., 1952, pp. 295-97. ricidade". Maria Alice Milliet, Xtelier Abstração", in Aracy Amaral (org.),
'O Idem,op. cir., vol. IX(1953-17541, 15 ago., 1953, p. 93. Arrc conrtruriva no Braiil. Colegüo Adolpho Lcirner, op. cir., p. 79.
do movimento neoconcreto em 1959. Enquanto os artistas Mário Pedrosa fez uma análise semelhante a respeito do
de São Paulo continuariam apegados às doutrinas de Max Bill uso da cor por "paulistas" e "cariocas", em artigo publicado
sobre a importância de um espírito objetivo na criaçáo de na bpoca. Segundo ele,
uma obra, os do Rio de Janeiro encaminhar-se-iam, progressi-
vamente, para uma concepção mais intuitiva do processo de os pintores, desenhistas e escultores paiilistas não somente acreditam
criação artística. A intensa atividade industrial da cidade de nas suas teorias como as seguem h risca. Em face deles, os pintores d o
Sáo Paulo desempenhou um papel decisivo na orientaçáo das Rio sáo quase românticos. O tratamento das cnres num grupo como
pesquisas plásticas que foram ali efetuadas. Os artistas que noutro é muito diferente. O s paulistas, apesar de uma ou outra esca-
residiam na capital paulista mostravam-se decididos a criar padela, aqui e ali, onde se notam deslizes sensuais ou expressivos em
uma arte em consonância com uma cidade moderna, urbana matéria de cor (num Fiaminghi, mesmo num Cordeiro) nos apresentam
e industrial. A idéia de skrie e de variações óticas, de ritmo e um vocabulário cromático deliberadamente elementar. [...I Os artistas
de movimento, assim como a articulação espaço-tempo, es- cariocas estão longe dessa severa consciência concretista de seus colegas
tavam no centro de suas preocupações. Décio Pignatari ana- paulistas. Sáo mais empfricos, ou então o sol, o mar os induzem a certa
lisou assim a distância que separava os dois grupos: negligênciadoutrinária. Enquanto amam sobretudo a tela, que Ihes fica
como o último contato físico-sensorial com a matéria, e, através desta,
A nossa idéia era que o pessoal d o Rio, a partir da visáo da Ivan de algum modo, com a natureza, os paulistas amam sobretudo a idéia."
Serpa, tinha uma visão muito mais abstrata: a escolha aleatória de cores
por exemplo. Para nós a cor tinha que ser determinada, não tinha essa Essa suposta oposiçáo radical entre cariocas (românticos
coisa de colorido, esse subjetivismo. Era uma luta incrível para acabar e intuitivos) e paulistas (racionais e dogmáticos) renderia fru-
com esse subjetivismo. [...I O Rio defendia mais a inruiçáo e nós defen- tos na historiografia dos dois movimentos e estaria na origem
díamos uma posiçáo racionalista. Sabíamos que a arte estava em nivel da supervalorizaçáo do neoconcretismo como um movimento
do senslvel mas queríamos um discurso mais preciso, sem essa coisa de essencialmente intuitivo e completamente avesso a regras,
falar em inspiração, em intuiçáo, sensibilidade. [...I Queríamos uma arte, conforme discutiremos mais adiante.
como o Cordeiro dizia, que estivesse ao nível da evidência, ou seja, que No entanto, é importante ressaltar que, apesar tlc suas
qualquer pessoa, e m qualquer repeitório, adolescente, criança, homem, divergências, os participantes dos dois grupos ciii qiicstTio
mulher, rico ou pobre, chegasse e entendes~e.'~ (Ruptura e Frente) rejeitavam vivamente n sol>r<~viv?iicia de

'' Mário Pedroia, "Paulistas e cariocas", in Amcy Afi,:ii..il (oIL:.).


Projeto coium<tivo
Entrevista com Decio Pignatari, em Fernanda Cacchiarale e Anna Bella brasileiro na arte (1750-1762), op. cit., lip 136-14. Arfigo publicado arigi-
Geiger, op. cit., pp. 73 e 75, nalmenre em fevereiro de 1957.
No "Plano piloto para a poesia concreta", publicado em nalidades que aderiram ao movimento tardiamente. Orga-
1958, eles proclamaram "o fim do ciclo histórico do verso" nizada com a intenção de oferecer um panorama geral da
e defenderam a necessidade de considerar o espaço gráfico e
I produçáo de vanguarda, essa exposição revelou, no entanto,
os recursos tipográficos como "agentes culturais, [...I elementos os desacordos existentes entre os grupos de São Paulo e do Rio
substanciais da composição". O poema concreto, afirmaram, de Janeiro e precipitou sua ruptura." Em abril de 1957, Wal-
C',
e um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos demar Cordeiro publicou um texto no qual analisou a natu-
exteriores e/ou de sensaçóes mais ou menos subjetivas", trata- reza dessas divergências. Nele, acusa os concretistas cariocas
se de "uma comunicação de formas, de uma estrutura-con- de não terem dado "o salto qualitativo que possibilite situar
ii teúdo, náo da usual comunicaçáo de men~agens".~' Embora o problema da arte de vanguarda em termos diretos", afir-
acreditassem ser a poesia concreta o "produto de uma evolução mando que a diferença entre os dois grupos "é mais profunda
crítica de formas", eles reconheciam sua dlvida em relação a do que pode parecer à primeira vista":
Mallarmé, Apollinaire, Joyce, Cummings e Pound -de cuja
obra Cantor tiraram o nome do grupo Noigrandes -, assim Trata-se, com efeito, náo apenas d e modos diferentes d e realizar a
como em relaçáo a Oswald de Andrade, alçado à condição de o b r a d e arte, como também d e conceber a arte e suas relaFóes. [Se, para
precursor da poesia concreta brasileira devido a seu estilo te- os artistas d e São Paulo,] a obra d e arre não s 6 pode e deve ser racio-
legráfico e as suas metáforas incisivas. Nos anos seguintes, os nalmente definida, como também náo pode deixar de ter u m a ligaçáo
poetas concretos fariam amplo uso da noção de antropofagia imediata com o real, [no trabalho d o grupo d o Rio d e Janeiro], a pro-
cultural, criada por Oswald de Andrade, e acabariam servindo blemática surrada d o neoplasticismo, reduzida a u m esquema primário e
de ponte entre o trabalho deste e os tropicalistas.
Em dezembro de 1956, uma grande manifestaçáo reuniu --

os artistas concretos de todo o pals. Realizada no Museu de 33 Sobre estaexposiFáo, Sergio Millier escreveu: "Em meio3 monoronia dar com-

! Arte Moderna de São Paulo e apresentada em fevereiro do


ano seguinte no Ministério da Educação e Cultura, no Rio
binações gcamérricas comque apresentam em geral ao público os concretisias
nacionais, acarênciade originalidade de riias soiu~õearepetidas até 2 exaiisiái>,
rimas poucas telas merecem ser apontadas pelo que oferecem coma Iirovn da
de Janeiro, a primeira Exposiçáo Nacional de Arte Concreta viabilidade dessa arte difícil que a elase dedicam. Ninguem discutiri, creio eu,
a seriedade dar reaii~a~óes de um Mondrian no passado, dc tini Mis:irelyou um
contou com a participação de 26 artistas -pintores, gra- Max Biil no presente. Ninguémporáemdúvida a auteiirici<ls<lerlns razões de
vadores, escultores epoetas -, dentre os quais diversas perso- ordem estética que deram nascimenro ao abstracionisino e no clinmado con-
crerisma, denominaçáo que alguns críticos não acei t;ini, de rcsto. Muito em-
bora, pessoalmente, eu considere que a tendência ciincretista, n a seu rigor
" Augusta de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignarari, "Piano piloto
geométrico, despreza por demais o humano e s c toriia, <luandanão puramente
para a poesia concreta', iii Aracy Amaial (org.), Projeto conrtitutiuo brasileiro
decorativa, inacerrível ao público, o que ine desngrada Ihabitualmenre nela é
na arte 11950-1962).op. cir., pp. 78-79. Publicado originalmenre na Reviira
sobretudo a pobreza inventiva de seus adeptos". Sérgio Milliet, Didrio critico,
Noigrandpr, nn 4. Sáa Paulo, 1958.
op. cit.,vol. X (1955-1956), 16 dez., 1956, p. 262.
ortodoxo de figura-e-fundo, sem rigor estrutural e - principalmente - elemento desse espaço". "Só um equivoco cientificista levaria
sem rigor cromático, serve d e apoio e cabide ao lirismo expressivo que se a supor que a atualização da linguagem está em sua forma-
dilui, sem meta precisa, e m seus meandros. [...I Veja-se Ivan Serpa, para lizaçáo", afirmaram Gullar e os poetas cariocas: % pretensa
se ter u m a idéia d o grau d e desnorteamento dos nossos colegas cariocas. submissão da poesia a estruturas matemáticas leva o selo deste
Até marrom h á nesses quadros. [...I N ó s escolhemos o caminho inverso equívoco. [...I O poema concreto deve valer como uma expe-
ao de Gullar; n á o tentaremos levar o real para a cultura, mas a cultura riência cotidiana - afeciva, intuitiva - a fim de que não se
para o real. [...I A teoria d o concretismo carioca é uma meia d e espuma- torne mera ilustração, no campo da linguagem, de leis cien-
de-nailon, tamanho único: será taiito para eles como para Livio Abramo tíficas catalogadas".36
e Arnaido Pedroso d ' H ~ r t a . ) ~ Em 1959, os artistas do Rio de Janeiro, com Gullar ifren-
te, decidiram demonstrar a singularidade de suas pesquisas
Poucos meses mais tarde, dois artigos opuseram os poetas
concretos, partidários de composiçóes concebidas a partir de
uma estrutura estabelecida a p r i o ~ ie, os defensores da im-
I
I
lan~andoum novo movimento, sem por isso renunciar h fi-
liaçáo aos ideais construtivistas. Nesse mesmo ano, eles orga-
nizaram a primeira Exposição Nacional de Arte Neoconcreta,
portância da 'experiência intuitiva'' na criaçáo poética.35En- com o objetivo de revelar ao público a nova tendência e suas
quanto os irmáos Campos continuavam a sustentar uma poe- I potencialidades, publicando nessa mesma ocasião um ma-
sia objetiva, deliberadamente elementar, feita de palavras sim- 1 nifesto.
ples e de imagens visuais, que procurava substituir a ordem
sintático-discursiva de ritmo linear pelo ritmo espacializado,
Ferreira Gullar rejeitava o rigor dessas concepções, deplorando
que "o poema náo ultrapassasse a dimensão gráfica", que "a " Ferreira Gullar et al., "Poesia concreta: experiência iiiruitiva" Quase 40 anos
página ficasse reduzida a um espaço gráfico e a palavra a um mais tarde, Gullar voltaria a analisar a questão, em entrevisra canccdi<l;ino
jornal Folha de S.Paulo; 'XA~ divergências [entre os poetas de São P;iillo c d o
Rio de Janeiro] eram paético-ertéticar, uma vez que naqiirl;i 6liorn <.ti !,r"
tinha qualquer vinculaíão ou atuayão palírico-idealógica. I'.elxin ;iiitcriorcs
" Waldemar Cordeiro, "Teoriae prática do concretismo carioca', in Aracy Amara1 a o próprio movirncnto, porque jamais aceitei uma vis50 iiicr;imçi,ic rzcia-
(org.), Projcio consirutiuo brasileiro na arte (1950-1762). op. cit., pp. 134-35. nalista e técnica da poesia. O que detonou a ruptura foi uni ;ii.iigi>ilc I-laroldo
Artigo publicado originalmenre na revista Arquitrrura e Drcoraçáo, abril afirmando que a concreta seria feita, a parrir dc eiir90, segundo f6r-
1957. mulas rnaremdticas. Como isso era imposslvel, considçrci que afirma-lo chei-
Os dois artigos em questáo são "Da fenomenologia da composiçáo à mare- rava a charlaranismo, e eu tinha razão: essa poesia rnnremáticn nunca foi feira
mática da composição", de Haroldo de Campas, e "Poesia concreta: eupe- por eles. O movimento neoconcreto não foi c r i d o por ninguém: nasceu
riéncia intuitiva", assinado por Ferreiia Gullar, Oliveira Basros e Reynalda naturalmente das experiências dos poetas, pintores e escultores que cons-
Jardim. Os dois textos foram publicados nojornaldoBrmilde 23 de juiilio de tirulam o grupo. Eu apenas elaborei a teoria q u c estava implícita nelas. Em
1957 e encontram-se reproduzidos em Fernando Cocchiarale e Arma Uella arte não pode haver plano-piloto", em 'X certeza da influéncia", Fvlha de S.
Geiger, op. cir., pp. 227-30. Paulo, 8 dez., 199G, Caderno Mais!.
neoconcreto estimavam que a arte concreta, como era enten-
dida e praticada em São Paulo, não passava da importação de
--
um modelo estrangeiro, pouco adaptado às condições especí-
ficas do país. Opondo-se à "exacerbaçáo racionalista" das pes-
quisas desenvolvidas pelos paulistas, sugeriam uma revisáo
"das posições teóricas adotadas atk aqui face à arte concreta"?
"Propomos", escreveram os autores do Manifesto neoconcreto,
"uma reinterpretaçáo do neoplasticismo, do construtivismo
e dos demais movimentos afins, na base de suas conquistas
de expressáo e dando prevalência iobra sobre a teoria".
Se no Brasil do início dos anos 1950 os dois grandes pólos Segundo tais artistas, enquanto os pintores e poetas con-
do debate artístico eram ocupados pelos partidários da arte cretos de São Paulo "tentavam fazer arte partindo de noçóes
figurativa e da arte abstrata - a arte concreta começando a objetivas para aplicá-las como método criativo", os neocon-
ser fortemente defendida pelo meio intelectual engajado em cretos interessavam-se em afirmar a autonomia da arte, rejei-
prol da abstração -, uma mudança significativa iria operar- tando em seu trabalho toda idéia a priori. Inspirando-se na
se antes do final da década. A cisão entre os grupos de artistas filosofia de Merleau-Ponty, esses últimos declaravam considerar
concretos de São Paulo e do Rio de Janeiro e a conseqüente a obra de arte como um organismo, um "quasi corpus", "um
eclosáo do movimento neoconcreto, assim como o relativo ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus
sucesso da arte informal ou "tachista" nas Bienais de São Pau- elementos" e que transcende simultaneamente o racional e o
lo de 1957 e 1959, inauguraram uma nova etapa no debate sensorial. Para eles, a obra de arte funda e revela novas signi-
em torno do abstracionismo, introduzindo a controvérsia ficaçóes existenciais que não se reduzem às noções objetivas
sobre a exemplaridade da arte concreta e sua pertinência para de tempo, espaço, forma e estrutura. Ela "está sempre se fa-
a sociedade brasileira.- De forma semelhante à que ocorrera
-no segundo momento do movimento modernista, o proble- z Mani,fê<toneoroncreio, publicado na edição de 23 dc rn;irro <Ir 1959 do Jornal
ma essencial, para os críticos e artistas envolvidos em tal po- do Brnsile assinada pelos seguintes arrisras: Ferreirn Giillrr. Amllcar de Cas-
lêmica, tornou-se definir o que poderia ou deveria ser a arte tro, LygiaClark, Reynalda Jardim, Ligia Pape,Tliroii Spiniidis e Franz Weisa-
da jovem vanguarda brasileira. Os partidários do movimento rnann. Estes sere aitisras participaram da I Erposisso Nrocoiicreta. Mais tarde,
integraram-seao movimenta Willys decastro, 1 Ii'i-ciilcsliarsorti, DéciaVieira,
Hélio Oiticica, Osmar Dilon, Roberro Pontiial, Crrios Fetnando Fortes de !
I ' Título de um arrigo de Ferreira Guilar que, conforme mencionado ante- Aimeida e Cláudio de Melo e Souza. As cir;i$ics cntrc aspas que aparecem em
riormente, foi publicado originaimente na Revirta Crítica d r A m , na 1, Rio seguida no texto, sem nenhuma indicq80, inmhém foram extraidas do Ma-
I delaneiro, 1962. nifito neoconcreto. I
Essa atitude tornaria obsoletas as definiçóes habituais opon- como uma reviravolta na compreensão das questões da arte naquele
do pintura e escultura. "Enquanto a pintura, liberada de sua momento. Sentíamo-nos penetrando um espaço novo, que implicava rup-
intenção representativa, tende a abandonar a superfície para se turas de conseqüências imprevisiveis, tanto no campo das artes plásticas
realizar no espaço, aproximando-se da escultura, esta, liberta como no da poesia. Asensaçáo de desbravar uma nova dimensáo expressiva
da figura, da base e da massa, já bem pouca afinidade mantém serviu de estimulo a todos os participantes do movimento que, assim,
com o que tradicionalmente se denominou es~ultura."~ entregaram-se às mais audaciosas experiCncias.'
Para definir tais obras, que "náo são quadros nem escul-
turas nem objetos utilitários" e que 'Se realizam fora de toda A experimentação sistemática dos artistas neoconcretos
convençáo artística", Gullar forja a noçáo de não-objeto, expli- conduziria, por outro lado, a uma reformulação da relaçáo
citada em sua "Teoria do náo-objeto", citada acima: "[ o ..I sujeito-objeto artístico. Desejosos de estabelecer um acordo
não-objeto náo 6 um antiobjeto mas um objeto especial em eficaz entre arte e vida, eles procuraram suprimir a distância
que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais entre espectador e obra e romper com a atribuição tradicional
e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenome- dos papéis sociais, afirmando a identidade entre o artista e os
nológico, integralmente perceptível, que se dá h percepção outros homens ao incentivar a capacidade criativa de cada
sem deixar r a ~ t r o " . ~ indivíduo. Os Bichos de Lygia Clark, as construçóes modu-
Essa passagem do plano para o espaço real, ou, em outros lares de Franz Weissmann, assim como os Penetráveis e, mais
I
termos, essa tentativa de destruição do espaço pictórico e de tardiamente, os Parangolés de Hélio Oiticica solicitam de ma-
inregração da obra no espaço global, foi entendida por Gullar neira direta a participação do espectador.' Este se torna o co-
como o ponto nodal das experiências neoconcretas. Ela signi- autor da obra, podendo modificá-la indefinidamente. Com os
ficava, em sua opiniáo, o rompimento com os limites conven- Parangolh, apresentados pela primeirava ao público em 1965,
cionais da arte e vinha comprovar o caráter radical da arte de
vanguarda feita no Brasil. Gullar relata a excitaçáo que tomou
conta dos integrantes do movimento a partir dessa "redesco-
' Idem, prefácio à 2aedi~ã0de Etapa, a'a artecontemporânea. Do rubiimo à arte
nroronrrrra, ap. cit.
berta do espaço": ' Sobre seus Bicho,, Lygia Clark declarou: "Os Bichm não têm avesso. Cada
bicho 4 uma entidade orgânica que s6 se revela totalmente no seu tempo
A eliminaçáo d o espaço ficticio e a abertura da obra para o espaço interior de expressão ... É um organismo vivo, uma obraessencialmente ativa.
Uma integragáo total, existencial, estabelecida entre ele e nós. É impoasivel
real era um gesto radical cujo significado teórico foi por nós entendido entre nós e o Bicho uma atitude de passividade, nem de nossa parte nem da
dele. O q u e se produziu é uma espécie de corpo-a-corpoentre duas entidades
vivas. Na realidade, trata-se de um diálogo em que o Bicho reagiu -gragas
Idem, op. cit. a um circuito próprio e definida de movimentos - As esrimulagóes do cs-
V d e m , ap. cit. pectador", em Lygia CLark. Ria de Janeiro: FUNARTE, 1980, p. 17.
o espectador, chamado por Oiticica de "participador", trans- O trabalho de Lygia Clark ocupa posiçáo de destaque
forma-se no próprio suporte da obra, que só adquire existência dentro do panorama neoconcreto. Na opinião de Gullar, fo-
através de sua açá0.l O artista, atuando agora entre a brin- ram as pesquisas empreendidas intuitivamente pela artista
cadeira e a reflexáo, entre a construção e o acaso, desmistifica mineira na segunda metade dos anos 1950 que deflagraram,
a obra de arte, alçando-a à dimensáo da vida e explorando os or,ganicamente, "o processo do que viria a ser chamado de arte
recursos criativos que o espectador perdera de vista. 1 neoconcreta". Gullar aponta como um dos eventos mais mar-
Cabe, porém, ressaltar aqui, como o fez Gullar em texto cantes ocorridos entre 1957 (ano da polêmica envolvendo os
publicado três décadas após a dissolução do grupo, que poetas de Sáo Paulo e do Rio) e 1959, data do lançamento
do Manifesto neoconcreto, a exposição de Lygia Clark, rea-
nem todos os artistas que participaram do movimento estavam igual- lizada em Sáo Paulo, na Galeria de Arte das Folhas, em 1958.
mente engajados nas posições radicais que os documentos manifestam.
Pintores como Aluisio Carvão e Hércules Barsotti não chegam a romper
1 Nessa ocasião, foi publicado um estudo de sua autoria, inti-
tulado "Lygia Clark: uma experiência radical", no qual ele
com o quadro enquanto suporte da expressão estética: cumprem ainda discorria sobre a evoluçáo da artista:
dentro dele uma etapa que Lygia saltara. Willys de Castro e Hélio Oiticica
rompem com o quadro, mas a partir de outras preocupações e orientam Nesse estudo, pela primeira vez se analisava o processo artistico d a
seu trabalho em direção distinta, enriquecendo a m o ~ i m e n t o . ' ~ pintora a partir dos quadros de 1954, quando ela extrapola d o espaço
da tela para incluir na composiçáo a própria moldura. Esse fato -a que
nem ela mesma havia dado atenção -parecia deixar evidente o inicio do
rompimento com a tela enquanto espaço pictórico - espaço de repre-
sentação simbólica - e a proposta d e torná-la objeto dapinmra. A partir

tradiçáo construtiva no Brasil (Willys de Castro, Franz Weissmann, Hkrcules


Barsotti, Aluisio Carvão e até cerro ponto Amilcar de Castro); [...I 2) a que,
conscientemente ou não, operava de modo a romper os postulados cons-
trurivisras (Oiticica, Clark, Ligia Pape). O humanismo na ala 1 tomando a
forma de uma sensibilizaçáo do trabalho de arte, significavaum esforço para
conservar sua especificidade (e ar&sua 'aura') e para fornecer uma informaçáo
qualitativa à produ~ãoindustrizl. Na ala 2 ocorria sobretudo uma drama-
tizaçáo do trabalho, uma aruaçáo no sentido de transformar suas fungóes, sua
razão de ser, e que colocava em xeque o estatuto da arte vigente. Ambas ti-
nham uma posição crítica diante do crnpirismo concretista [...] e temiam
especialmente a perda da especificidade [...I do trabalho". Ronaldo Brito,
Neoconcretirmo, vdrticr e ruptura do projeto conxt~utiuobraxilriro. São Paulo:
Cosac & Naify, 1999, p. 58.
dessa subversáo das relações entre a pintura e seu suporte, Lygia iniciou Se a evoluçáo do trabalho de Lygia Clark parece ter con-
I
a caminhada que a coriduziria do espaço bidimensional ao espaço tridi- iI duzido Gullar em sua reflexão teórica, as experimentações ra-
mensional e, logo em seguida, aos Bichos." dicais de Hélio Oiticica, artista 17 anos mais novo que Lygia
I e admirador confesso de sua obra, revelam, ao contrário, uma
Foi tambkm o trabalho de Lygia, no caso em questáo seus
assimilação gradativa das idéias divulgadas no período pelo
Casulos e Bichos, que inspirou Gullar, segundo seu próprio
grupo neoconcreto e uma profunda identificaçáo com as in-
testemunho, a elaborar a noçáo de ndo-objeto, noçáo essa que I
dagaçóes de Gullar. Os escritos de Oiticica datados do início
pouco entusiasmou Mário Pedrosa:
I,' ! dos anos 1960, assim como o trabalho por ele desenvolvido no
I período, comprovam náo apenas sua familiaridade com a obra
1 Um dia, a Lygia Clark nos convidou para jantar na casa dela. Cbe-
e os textos de Kandinsky, Mondrian, Malevitch e outros artistas
gando lá, mostrou uma obra que náo tinha nome. Não era uma escultura.
da vanguarda russa, táo caros na época a Gullar, como sua in-
Fiquei olhando, o Mario Pedrosa também. Ela falou: "Não sei que nome
tenção de "levar adiante o caminho iniciado pelos gandes mes-
botar nisso". Mário Pedrosa disse: "É uma espécie de relevo". Eu contestei:
tres do principio do século". Tal caminho, no entanto, náo
"Náo é isso -não tem superfície. Se não tem superfície não 4 relevo". Ele
condizia, a seu ver, com aquele escolhido pelos concretos: "A
saiu, o jantar já estava sendo servido -e eu fiquei ali. Lembro que pensei:
"Não é pintura, não é escultura; é um objeto. Mas, se eu disser que 6 um
arte derivada de Mondrian (chamada 'abstrato-geométrica' e
'concreta') passou a carecer tanto de universalidade como de
', objeto, ora - a mesa é objeto, a cadeira é um objeto. Portanto, esse tra-
balho da Lygia não é um objeto". Fui me sentar com os outros e disse: organicidade, de força criadora, de invençáo espontânea. Essa
"Descobri o nome. um náo-objeto". Mário Pedrosa argumentou: "Não-
foi a maior perda: espontaneidade. Tornou-se excessivamente
objeto não é nada. Objeto é objeto d o conhecimento". Expliquei que intelectual". l3
filosoficamente ele tinha razão. "Mas o problema', argumentei, "é que isso Em sua opinião, fazia-se necessário "mergulhar no desco-
é um objeto-náo; não C mais uma obra de arte dentro das categorias indi- nhecido, tentando, de dentro para fora, a integraçáo do cos-
viduais, mas continua a ser objeto". No dia seguinte comecei a tomar notas mos (interior) e a obra (dialktica)", processo qiic ele coiisi-
e escrevi a Teoria do náo-objeto. Em resumo: tudo nasceu de um trabalho derava vir sendo realizado com êxito por L.ygin Clark.
novo, náo foi uma coisa assim: "olha, teremos que fazer isso ou aquilo".'~ Assim como Gullar, Oiticica acreditava que a caracte-
rística mais importante do momento artistico que viviam era
a progressiva e inevitável inter-relação da pi~ituracom outras
, artes, o que redundaria na criaçáo de uma nova linguagem,
" Ferreira Gullar, "O grupo Frente e a reação neoconcrera", in A. Amara1 (org.),
Arte construtiva no Brasil. CoL~ão Ado4ho Leirner, op. cit., p. 156.
" Entrevista com Ferreira Gullar, Caderno, de Literatura Brarileira: Ftrreira
Gullar, n-6, Instituto Mareira Salles, ser. 1998, s.p. '5 Hglia Oiticica, op. cir., pp. 20-21.
situada agora no espaço real, tridimensional: X pintura do flexáo sobre a relaçáo entre o sujeito e o mundo que o cerca,
nosso século passa por uma desintegração de suas caracte- os dois artistas, ao longo dos anos 1960, procuraram promover
rísticas anteriores tomando outras, a ponto de já não se poder o despertar da consciência corporal -no sentido de estar no
chamar 'pintura' a determinadas obras", afirmou em 1960. mundo - no indivíduo, fazendo-o vivenciar, em um espaço
...I
"[ Já não tenho dúvidas que a era do fim do quadro está e uma situaçáo especialmente concebidos para esse fim, dife-
definitivamente inaugurada", escreveu no ano seguinte: rentes experiências sensoriais táteis, por vezes também olfativas
e auditivas. Ambos buscavam, em última análise, suscitar no
Para mim a dialitica quc ciivolvc o problema da pintura avançou, espectador sensaçóes vitais, elementares, para as quais ele de-
juntamente com as experiencias (as obras), no sentido da transformação veria encontrar, posteriormente, uma significaçáo pessoal. Em
d a pintura-quadro e m outra coisa (para mim o náo-objeto), que já náo 6 sua opinião, a experiência sensível deveria preceder a expe-
mais posslvel aceitar o desenvolvimento "dentro do quadro", o quadro já riência cognitiva e o corpo como um todo deveria atuar como
se saturou. Longe de ser a "morte da pintura", é a sua salvação, pois a morte fonte privilegiada de sensaçóes: " O impulso na direção da
mesmo seria a continuaçáo d o quadro como tal, e como "suporte" d a plasticidade absoluta e do suprematismo sáo impulsos para
"pintura". Como está tudo táo claro agora: que a pintura teria de sair para a vida e eles nos conduzem a considerar o nosso corpo (a des-
o espaço, ser completa, náo em superficie, em aparência, mas nasua inte- cobri-lo) como sua primeira busca".16
gridade profunda." Somente a experiência vivenciada permitiria ao sujeito
descobrir uma totalidade entre ele e o mundo e levá-lo-ia a
Apesar de podermos identificar uma vertente mais intuitiva tomar consciência de sua situaçáo de "ser social inteiro".
no percurso de Lygia Clark e uma sólida preocupaçáo teórica A crítica à noçáo do artista como demiurgo e a ênfase na
nas investigações de Hélio Oiticica, os trabalhos de ambos, participaçáo do espectador constituíam o cerne do trabalho
embora extremamente singulares, possuem afinidades incon-
t e s t á ~ e i s Interessados
.~~ em levar o mais longe possível a re-
pegava mais o mundo na sentido abstrato, no sentido real, no sentido con-
creto, e construíamuito mais a coisa evidente. Eu, como mulher, o que deve
ter sido a minha fraqueza e minha forFa, ia mais pra coisa que jL não era tão
" Idem, "Inter-rela~áodas artes", trecho datado de junho de 1960, e "Aspiro visfvel, tão rocável. Mesmo em questáo de pensamento, havia grandes diver-
ao grande labirinto", trecho datado de 16 de fevereiro de 1961. Op. cit., gências, coma por exemplo: a Hélio trabalhava muito para o que ele chamava
pp. 19 e 26-27. de horas de lazer pra sociedade, para o público. Acha que a hora do lazer já
'I Sobre suas divergências e proximidades com as propostas de Hélio Oiricica, 6 uma conseqüência do sistema e sempre neguei isso". Entrevista com Lygia
Lygia afirmou: "Nds éramos muito ligados porque tínhamos muita coisa em Clark, in Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, op. cit., p. 148.
comum. Ao mesmo tempo, havia um contraponta muito curioso: quando eu " Carta de Hélio Oiticica a Edward Pope, datada de 17 de agosto de 1974,
e ele come~ávamosa conversar eu dizia: 'Hélio, a gente é como uma mão, apud Guy Brett, "L'exercice enpérirnental dc Ia liberte", in HPlio Oitirira.
uma luva; você é a parte exterior e eu a parte interior'. Ele com a parte exterior Paris: Éd. du Jeu de Paume, Réunion des Musees Nationaux, 1992, p. 227.
clc Lygia Clark e Hélio Oiticica. Sobre suas experiências ul- agora considerado "participador". Antiarte seria uma completaçáo da ne-
teriores, Lygia afirmou, em entrevista concedida a Anna Bella cessidade coletiva de uma atividade criadora latente, que seria motivada
Geiger: de um determinado modo pelo artista: ficam portanto invalidadas as
posições metafísica, intelectualista e esteticista -não háaproporição de
[Com os Bichos] foi a primeira vez que eu deixei a mania de querer
um "elevar o espectador a um ntuel dr criaçáo", a uma "metarrealidadrí
ser a maior. Sevocê pensar no conceito do que significa, inclusive n o Bicho,
ou de impor-lhe uma "idPia"ouum yadráo estético"correspondentes àqueler
a participação do espectador no objeto, que depois inverto, e acho que
conceitos de arte, mar de dar-lhe uma rimples oportunidade depar~c$a@o
atualmenteeu rransformo o objeto no sujeito quando trabalho na pesqui-
para que ele 'áche"aí algo que queira realizar - é pois uma "realizaçáo
sa, na terapêutica sensorial que faço com os clientes no consultório. E que
criativa' o que propóe o artista, realização esta isenta de premissas mo-
já fazia em grupo em Paris nesses quatro anos que passei fora [1973-19761.
rais, intelectuais ou estéticas - a antiarte está isenta disto - 6 uma
Eu acho que há uma linha de ligafão em que termino com o suporte tradi-
simples posiSão do homem nele mesmo e nas suas criativas
cionalepego o outro como suporte. Como diise uma uez o Hélio Pellerino,
vitais. [...I Não existe pois o problema de saber se arte 6 isto ou aquilo
tentofaer do outro uma obra de arte, que é o rujeito, e não o objeto."
I ou deixa de ser - não há definição do que seja arte."

Ao final de sua carreira, Lygia Clark ocuparia uma posição


limítrofe entre a arte e a psicologia. Residindo em Paris a partir
A valorizaçáo da experimentaçáo e da participação física
do final dos anos 1960 e dando aulas na Faculté D'Arts Plas- do espectador, a rejeição da idéia do artista como um ser "ins-
tiques da Sorbonne, concebeu, a partir de suas experiências pirado", a vontade de ultrapassar as limitaçóes racionais e de
com os alunos, um método terapêutico "pré-verbal", baseado se opor a toda concepçáo redutora e utilitária da arte fizeram
na utilizaçáo de objetos relacionais. Quando de seu retorno ao do movimento neoconcreto um espaço de pesquisa, dc iiivcn-
Brasil, em 1976, rejeitou o epíteto de artista para si. ção e de reflexão bastante fecundo. Os artistas tirocoiicrctos
levantaram questões sobre a relaçáo entre nrrc c píil>lico,ar-
Oiticica, por sua vez, analisou a importância da partici-
tista e sociedade, que náo perderam, atC tii)ssos d i ; ~su:i ~ , per-
pação do espectador, transformado agora emparticipador, ao 1
lançar seu programa de Antiarte em 19GG:
I
tinência e que estavam em consoii!iiici:i COIII :ill:iirii:is <Iasinda-
gações mais radicais das vaiiguaiclns iri~cri1;icioiiaisda d6cada
Antiarte- compreensão e razão de ser o artista náo mais como um de 1960. A intençáo maior qiie c<)iii:iii<loiio trabalho dos
criador para a contemplação mas como um motivador para a criação - maiores representantes do i~cocoiiçrc.iisiiioresidia na idéia de
a rriafão como tal se completa pela participação dinâmica do espectador, que a atividade criadora lavorccia ;i tlcscoberta de novas for-

" Entrevista com Lygia Clark, in Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger,
18 Hélio Oiti'ica, Xntiarte: posiy%nc pri>jir:imd',i n op. cit., p. 77. Texto datado
op. cit., p. 149. O grifo d nossa.
de julho de 1966. O grifo 4 nosso.
mas de vida. Eles consideravam a arte um meio eficiente de
transformaçáo do homem e da sociedade e buscavam eviden-
ciar o papel do indivíduo e a função da experimentação em
todo programa de emancipação social. Em sua relação com
o artístico, os individuos poderiam transformar-se em sujeitos
de sua história. O ,golpe militar de 1964 e a progressiva radi-
calizaçáo do regime ditatorial brasileiro provocaram, no en- 0 P R O J E T O C O N S T R U T I V O B R A S I L E I R O NA ARTE:
tanto, o exílio de vários membros dessa vanguarda, pondo fim A CONTINUIDADE ENTRE ARTE
ao sonho de um desenvolvimento organizado, de um projeto CONCRETA E NEOCONCRETA
coletivo de nação.'g

Apesar da distância que separa a arte concreta da neo-


concreta, a idéia de uma continuidade evolutiva entre os dois
movimentos se impôs no Brasil. Alguns historiadores e crí- t
ticos de arte chegaram mesmo a conceber a existência de um
"projeto construtivo na arte brasileira", ou ainda de uma "vo-
l7 Lygia Clarkmudou-se para Paris em outubro de 1968, vindo esporadicamente cação construtiva" na arte latino-americana. Desta ótica, o
ao Brasil ate seu retorno definitivo ao pais em 1976. Participou de diversas movimento neoconcreto é considerado o apogeu, a versão
manifescaçóes artísticas internacionais na epoca e comesou a ensinar na Sor-
acabada, ou ainda, nas de Ronaldo Brito, o véyticedo
bonne em 1972. Hélio Oiticicadeixou o pais na final da década de 1960 para
uma temporada de algunsmeses em Londres e Brighton, convidado pelaSussex projeto construtivo brasileiro: o neoconcretismo permane-
University. No ano seguinte, ganhou uma bolsa de estudos da Fundasão ceria no campo aberto pela arte concreta, conseguindo, po-
Guggenheim e insralou-se em Nova Iorque, retomando ao Brasil apenas em
197R. Morreu no Ria de Janeiro em 1980, com 43 anos de idade. Mário Pe- rém, revelar outros hori~ontesde trabalho. Segundo esse ra-
drasa, que já se havia exilado entre 1937 e 1945 por sua oposiçáo ao Esrado ciocínio, enquanto o concretismo representou uma primeira
Novo, foi obrigado a pedir asilo palitico na embaixada do Chile na Brasil em
etapa de atualização com os centros internacionais, o neocon-
1170, para evitar a prisão. Residiu cntáo durante três anos em Santiago do
(:liilc, onde participou da criação do Museu da Solidariedade, instalando-se cretismo instaurou uma nova fase, de assimilação crítica -
cni I'nris após a queda do governo de Salvador Allende. Retornou ao Brasil em e náo de importação sem resistência - das novidades vindas
1 <)77.aproveitando-se da anisria concedida pelos militares, e fixou-se no Rio
de fora, logo se preocupando em criar uma arte deponta, do-
;i14 sii:i morre, em 1981. Ferreira Gullar deixou o país em 1971, após viver

v d ~ i i i r(meses na clandestinidade. Seguiu para Mascou, onde estudou durante tada de raízes nacionais. Não é preciso dizer que a adesão de
I I I I I u i i i i . Morou em seguida na Chile, no Peru e na Argentina. Voltou clan- certos artistas brasileiros à arte tachista ou informal, iniciada
' i r r i i~i~imente ao Brasil seis anos mais tarde.
simultaneamente à eclosão do neoconcretisrno, é encarada
aqui como um sintoma de decadência, de submissão com- criados novos "produtos de exportaçáo".' Embora a longo
pleta ao gosto do mercado internacional. prazo eles tenham almejado integrar o Brasil aos centros ar-
Devemos, portanto, crer, como o fez a maioria dos críti- tísticos mais desenvolvidos, a curto termo esforçaram-se em
cos e historiadores brasileiros até aqui, em um processo evo- construir um mercado alternativo, em criar uma estética mo-
Iutivo entre a arte concreta e neoconcreta, como se essa úl- derna, capaz de ser assimilada e difundida pela indústria na-
tima significasse a radicalizaçáo de tendências sugeridas na cional da época, que se encontrava em vias de expansão. É
primeira? Supor que esses dois movimentos que se suce- importante atentar para o fato de que vdrios dos fundadores
deram no tempo, no Brasil, faziam parte de uma mesma es- do grupo Ruptura eram artistas de origem européia, que imi-
tratégia cultural? Essa perspectiva, tributária de uma con-
cepção evolutiva da história da arte, coloca o movimento
concreto como o começo de uma nova era, marcada pelo
I graram para o Brasil nos anos 1940.2Alguns deles, ao aqui

' O trecho de um artigo deAugusto de Campas a respeito das transformações


predomínio absoluto da abstração, e considera o movi- acorridas na música popular brasileira nos anos 19GO 4 bastante elucidarivo
mento neoconcreto sua floraçáo absoluta, seu momento desse pensamenro: 'Rexpansão dos movimentos internacionais se processa
mais significativo. Tal visáo, em minha opinião, dificulta usualmente dos países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos, o que
significa que estes, a mais das vezes, são receptores de uma cultura de im-
uma análise sem preconceitos da implantação e do desen- portagáo. Mas o processo pode ser revertida, na medida mesma em que os
volvimento do concretismo no Brasil, já que o define paises menos desenvolvidos consigam, antr~pofa~icamenre - como diria
como uma tendência importada passivamente, transplan- Oswald de Andrade -deglutir a superior recnologia das supradesenvolvidos
e devolver-lhes novos produtos acabados, condimentados por sua própria e
tada de forma a reproduzir padrões hegemônicos, que se diferente cultura. Foi isso o que sucedeu, por exemplo, com o futebol bra-
revelou pouco adequada aos problemas e necessidades do sileiro (antes d o dilúvio), com a poesia concreta e com a bossa-nova, que, a
parrir da redução drástica e da racianaliraçá~de técnicas estrangeiras, dcscn-
país. volveram novas tecnolagiar e criaram realizações aut8nomas, exportáveis e
Ou, ao contrário, devemos ver nesses dois movimentos exportadas para todo o mundo". Augusra de Campos, "Boa palavra sobre a
tentativas distintas, embora com raizes comuns, de refletir música popular brasileira", in O balanFoda boira r outrar bmrar. São Paulo:
Perspectiva, 1993, p. 60. Artigo publicado originalmente no Corrcio da Ma-
sobre a arte não-figurativa e sua função na nova realidade nhá de 14 de outubro de 1966.
urbana e industrial do país? A adesão a postulados aparen- i Nascido em 1925 em Rama, Waldemar Cordeiro era Rllio de pai brasileiro
temente similares não encobre as importantes divergências e de mãe italiana. Veio ao Brasil pela primeira va e m 1946, decidindo aqui
- se fixar dois anos mais tarde. De origem húngara, a escultor Kazmer Féjkr
de concepção estética dos dois grupos. Os artistas concretos de I
residiu no Brasildc 1949 a 1970, quando partiu para Paris. Ao aqui chegar,
Sáo Paulo, tomando como base o ideirio da Bauhaus, propu- 1
tinha 26 anos de idade e já havia participado de algumas exposi<õesde arte
nham-se ajudar o país a romper o abismo que o separava da absrrara realizadas n a Europa. Ao lado de sua produgáo arrisrica, realizou di-

Europa e fazê-lo ingressar de forma efetiva na atualidade ar-


I versos experimentas como químico industrial, sendo detentor de um mérodo
# de coloração de plástico cujapatente Foi vendida à Bayer. O polonês Leopold
tística internacional, acreditando na possibilidade de serem Haar imigrou para o Brasil, procedente da Itália, em 1946, com 36 anos de
chegar, já eram artistas consumados e traziam consigo consi- artista, sua inserção no mercado, ou ainda a tentativa de cana-
derável experiência no ramo. Sua adesáo às premissas fun- lização da arte para uma finalidade utilitária, interrogando-se,
cionalistas da Bauhaus talvez reflita, acima de tudo, sua ne- em especial, sobre os limites da noçáo tradicional de obra de
cessidade de rápida integraçáo e seu desejo de participar ati- arte e privilegiando a invençáo e a experiência individual ou
vamente dessa sociedade em processo de industrialização. coletiva em detrimento de problemas de ordem mercantil. Essa
As proposiçóes neoconcretas, delineadas no manifesto postura "utópica" dos neoconcretistas levou Carlos Zílio a com-
lançado em 1959, dive~giamem sua essência das formulaçóes pará-los aos primeiros modernistas, ressaltando quanto a situa-
de teor positivista da arte concreta. Se, nos primeiros anos do çáo econômica privilegiada de diversos representantes do mo-
grupo Frente, os artistas "cariocas" construíam suas compo- vimento carioca favoreceu uma atitude independente e ex-
siçóes baseadas nas leis da Gestdlt, no momento da I Expo- perimental:
sição Neoconcreta, sob a ascendência de Ferreira Gullar, já se
haviam voltado para o trabalho de Mondrian, Malevitch e Assim como nos momentos mais importantes da primeira fase mo-
dos construtivistas sovikticos, assim como para a fenome- dernista, isolada nos salóes paulistas, a neonconcretismo foi o resultado
nologia de Merleau-Ponty, como fontes primeiras de inspi- de u m grupo cuja situa~áosocial os possibilitava independer da arte como
raçáo. Na verdade, o neoconcretismo constituiu-se como uma sobrevivência. Longe de qualquer solicitação do mercado - ainda ine-
reação à tentativa, por parte dos defensores da arte concreta, xistente -, eles se locomaveram num ambiente solidário e isolado como
de imposição de um modelo artístico único de vanguarda.)
.
de um laboratório. Sem o pragmatismo reformista do Concretismo, eles
Em oposição ao grupo de São Paulo, os neoconcretos consi- ainda tinham em'comum com os modernistas da primeira fase o tom
deravam secundárias questóes como a integraçáo social do
,
anarquista e utópico."

idade e portador de gande bagagem artística. Residiu primeiramente em Porto Não acredito ser relevante estabelecer comparaçóes entre
Alegre, onde trabalhou coma paginador da Revirta Globo, e em Cuririba, antes o trabalho dos concretos e dos neoconcretos na tentativa de
de fixar-se em Sáo Paulo. Atuou na área do desenho industrial, como gráfico,
cartazista, projetor de estander e de vitrinca. Trabalhou n a agência de publi- descobrir qual dos dois movimentos seriamais "avançadon tan-
cidade Epoca e no ateliê de propaganda da Olivetti. Lecionou em 1951 no to artística como politicamente. A meu ver, definir concre-
Instituto de Arte Contemporânea do MASP,onde teve como alunos Anrônio tistas como fundamentalmente dogmáticos e siibmissos a teo-
Maluf, Maurício Nogueira Lima e Alexandre Wollner. Morreu em 1954. Já
Lothar Charoux, de origem austríaca, e Anatol Wladyslaw, tamb4m polonês, rias importadas e neoconcretistas como extremamente intui-
imigraram para o Brasil ainda adolescentes, desenvolvendo aqui toda rua car-
reira artística. O primeiro chegou ao país em 1928, aos 16 anos de idade, e o
segundo em 1930, aos 17 anos. Cailos Zilio, "Da antropofagia&tropicdlia", in Carlos Zílio er al., O nacional
Rapidamente, no entanto, o movimenta neoconcreto foi apresentado como e opopular na cultura brarilrira. Artrrpl&,tica< e literatura. São Paulo: Bra-
I a verdadeira vanguarda brasileira.
siliense, 1983, p. 25.
tivos e libertários significa apenas estabelecer uma oposição Não pretendo tampouco negar a validade ou a fecundidade
fictícia cuja origem remonta ao debate acalorado da época, das formulaçóes neoconcretas e de seus desdobramentos; entre
mas não nos ajuda a aprofundar a reflexão sobre as principais os participantes deste movimento encontram-se artistas que
características de tais movimentos e sobre suas maiores inda- conseguiram abolir a oposiçSo entre o particular e o universal,
g a ç ó e ~Na
. ~ maior parte dos textos que tratam das vanguardas criando uma linguagem efetivaii-ieiitepessoal. Mas, ao invés de
construtivas no Brasil, as afirmações acerca do dogmatismo continuarmos a denunciar a total sujeição da arte concreta
ou do extremo racionalismo do trabalho dos artistas concre- brasileira a modelos importados c a afirmar a absoluta espe-
tos antecedem ou mesmo se impóem à análise de suas obras. cificidade e radicalidade da arte ncoconcirtn oii ainda a susten-
I
O caráter Iúdico, o espaço de jogo, as invençóes formais dos tarmos a tese de um "projeto construtivo" da arte brasileira,
i "paulistas", ou ainda a utilização intuitiva da matemática, são talvez devêssemos tentar descobrir a originalidndc cicsses dois
aspectos geralmente pouco examinados ou abordados de for- movimentos sem obedecera umavisáo etapista e cvolutiva, que
ma ~uperficial.~ insiste em compará-los valorativamente. Até que ponto a cris-
I
1 talização do debate entre concretos e neoconcretos, que re-
Para atenuar a força de ral oposição, valemo-nos do depoimento de Judith dundou no desprezo do primeiro movimento por seu caráter
Lauand, participante do grupo concrero, sobre a importância da intuiçáa em
seu trabalha: 'Rgente partia de uma idéia [...I. Era uma idéia plásrica que, ortodoxo, reformista e internacionalista e na exaltação do
para depoisser executada [...I, obedecia a um problema matemático. Enráo segundo como algo essencialmente brasileiro por parte da
é uma coisa que está muito relacionada, mas eu partia remprr da i n m i ~ ã o " .
crítica brasileira de vanguarda da época, não deve ser encarada
Ou ainda dos depoimentos de Elisa Martins e de Décio Vieiia, integrantes
do grupo Frente, a respeito de Ivan Serpa: "Serpa [...I não costumava dire- como mais um momento do que Aracy Amaral definiu como
cionar seus alunos a esra ou aquela tendência, embora demonstrasse auto- "duas posturas em permanente combate ou alternância de
rirarismo elegendo única e tão-somente seu gasto pessoal como crirdrio de
avaliação dos trabalhos por eles realizados. Chegava, por exemplo, i?raias de
preponderância, em nosso século na América Latina, a do na-
rasgar o trabalho de um aluno e lançá-lo no lixa em plena sala de aula, pelo cionalismo versus interna~ionalismo"?~ Vimos como O mo-
simples fato de não lhe agradar". Em Maria Aimhe C. Gallerani, Concretismo ~-.- -
e neoconcretismo nas artes plásricas. A vanguarda canstruriva brasileira nos contraste entre a preto e o branco, hd uma rdrie de combinaç6es possiveis
anos cinqüenta e inicio dos anos sessenta. Dissertaçáo de mestrado em tilo- entre cada pesa e a;espectiva sccçáo de base e entre os dois conjuntos peça1
sotia, PUC. Sáo Paitio, 1991, pp. 85 e 109. secçác de basc. U m a anocia~docoma andlirr combinatóriad, no caro.plaruível,
"ma excegáo nesse sentida 6 a disserra~áode Maria Aimhe C. Gallerani, cirada n despeito do artiita não ter ratulado apriori o número de combina~õ~sposrívei~.
na nora anterior. Vcr, ii esse respeito, sua análise de uma obra de Sacilotto, Hd implícito nme nnbalho de Sacilotto um comportamento rurioramentr Iúdico,
exrraída da p6gitia 84 rle scu estudo: "E[...I apartir do mádulo e da utilizagáa ~ v j e i t oà dirciplino do mdduloc a um limitado númtro decombinaqórr". O grifo
do branco e do preto qiieSacilotro cria, [...I [em 19581, a 'escultura'sem titulo h nosso. Gallerani transcreve ainda os depoimentos de Judith Lauand -
composta por duas peças iridimcnsianais, uma branca outra negra, criadas, reproduzido anteriormente -e de Mauricio Nogueira Lima sobre a impor-
cadaqual, a partir de chapas rlc alumlnio. Essas peçassáo dispostas livremenre tância da inruiçáo em seu trabalho.
I
pelo especrador sobre uma base rerangular de madeira, cuja pintura forma dois ' Aracy Amaral, Arte para quê? A preorupagáo ~ o c i a na
l arte braiileira. 1930-
quadrados contiguos, um negro, outro branco. Dentro da base modular e do 1970. São Paulo: Nobel, 1987, pp. 229-30.
viinento modernista brasileiro, em seu segundo momento, rioca. Coube ainda a Gullar teorizar sobre as principais caracte-
privilegiou expressões estéticas de teor nacionalista, menospre- rísticas do novo movimento, assim como especular sobre suas
zando o intercâmbio de idéias com o exterior.Artistas e críticos origens e possíveis filiaçóes, tentando conferir unidade às pes-
engajaram-se então na elaboraçáo de uma "arte autêntica", que quisas dispares de seus membros como intuito de inserir o mo-
se pretendia impermeável a fórmulas vindas do exterior. No vimento brasileiro na história das vanguardas internacionais.
início dos anos 1950, as Bienais de São Paulo colocaram o pais São vários os exemplos dessa tentativa. Em uma série de
em contato com o circuito artístico mundial e provocaram a artigos, publicados entre março de 1959 e outubro de 1960 no
adesão dos meios de vanguarda à arte abstrata. Entretanto, para Suplemento Dominical doJornaldo Brasil, sob o título "Etapas
os críticos mais "progressistas" da época, a questão fundamental da arte contemporânea", reunidos posteriormente em livro
continuava a ser forjar uma noção de arte brasileira estética e homônimo, Gullar esforçou-se em "realizar uma espécie de
eticamente válida e proclamar sua completa autonomia. nova leitura dos movimentos artísticos de caráter construtivo
Ferreira Gullar foi o principal mentor do movimento neo- apartir da uisáo neoconcreta [visando] situar o neoconcretismo
concreto, sendo o responsável por sua denominaçáo e pelo como herdeiro conseqüente das experiências mais radicais de
conteúdo do manifesto ~ i t a d oSua . ~ atuação como crítico de nosso t e m p ~ " Discorrendo
.~ sobre os preceitos fundamentais
arte, nos anos 1950 e no início da década seguinte, confunde- do cubismo, futurismo, movimentos russos, neoplasticismo,
se com seu papel enquanto porta-voz do ideário do grupo ca- Bauhaus e analisando a obra de alguns mestres desses movi-
-- mentos, Gullar estabeleceu uma linha de progressão entre tais
a O depoimento de Gullar revela com clareza seu grau de envolvimento com o
correntes e o binômio arte concreta/neoconcreta, apresentando
movimento em gestação: "Imediatamente após o rompimento com as concre-
tistas paulistas (ocorrido em junho de 1957), os artistas concretos do Ria náo esta última tendência como capaz de "reformular alguns pro-
cogitaram de criar um novo movimento, com outra nome. Foi s6 em comesas blemas básicos da arte contemporânea". 'O
de 59, quando surgiu a idéia de fazer-se uma exposição reunindo as obras dos
Em novembro de 1960, o Suplemento Dominical edita
pintores, escultores e poetas, que levantei essa questão. Encarregado de es-
crever n apresentação da masna, passei a refletir sobrc o quc havia ocorrido novo texto de Gullar, a "Teoria do não-objeto", já citado neste
naqueles últimos dois anos e vi que não teria cabimento nos apresentarmos estudo. Se no Manifèsto neoconcreto, como descreve o próprio
como artistas concretos. 'O que estamos fazendo, tanto no campo das artes
plásticas como no da poesia, 4 tão diferente do que se chama de arte concreta,
autor, se pedia "uma nova compreensáo de toda a arte dita
que está a exigir outra nome. Sugiro que se chame arte neoconcreta'. Não abstrata, de caráter geométrico, com o objetivo de eliminar os
houve discussão, uma vez que todos já se haviam dado conta de que a'trilha
que abriramos nos afastava cada vez mais dos concretistas da Escola de Ulm
como dos argentinos e dos paulistas. Era, portanto, necessário redigir um Ferreira Gullar, prefácio à 2* edição de Etapas da arte contemporânea. Do
texto que assinalasse o que havia de novo em nossos trabalhos". Ferreira Gullar, cubiirnod artentoconcreta. Rio de Janeiro: Revan, 1998. O grifo é nossa.
"O grupo Frente e a reação neoconcreta', in A. Amaral (org.),Amconimrtiva 'O Segundo seu próprio depoimento, foram propositalmente excluidos de sua
no Brasil Colepio Adolpho Leirner. São Paulo: Melhoramentos, DBA Artes análise movimentos como o expressionismo e o surrealisma, por náo se in-
Gráficas, 1998, p. 158. serirem "na linha de desenvolvimento iniciada com o Cubismo".
preconceitos cientificistas que cria[va]m uma barreira entre essa
como também um momento privilegiado de expressão da
arte e o público", na "Teoria do não-objeto" propunham-se
cultura brasileira. Se a arte concreta, escreve Gullar em 1960,
"novos conceitos acerca da obra de arte, de sua significação, de
"assinala o encontro da arte brasileira com os problemas fun-
sua natureza [.I
na tentativa de apreender o caráter específico
damentais da linguagem visual moderna [..I,
limpando nossa
da arte neoconcreta"." Gullar procura então demonstrar a pro-
pintura das aderências literárias, do folclore cenarístico, e nesse
gressão ocorrida entre a dissoluçáo das formas nas telas impres-
sentido preparando-nos para um trabalho mais profundo, mais
sionistas, o processo de transfiguração dos objetos com os da-
daístas e Duchamp e o abandono radical da representaçáo no
responsável, mais universal, [..I
eliminando da obra as con-
fissões individualistas, os efêmeros equivocos indi~iduais",'~ a
trabalho de Mondrian e Malevitch. Sua análise revela uma con-
arte neoconcreta representa um aprofundamento da experiên-
cepçáo evolutiva da história da arte, que tem como fio condu-
cia implícita nos postulados concretistas e não uma reação ex-
tor a gradual destruição do caráter fictício do espaço pictórico,
terior a eles ou o resultado de sua pura e simples rejeição. Trata-
destruiçáo esta que, segundo ele, se realizara plenamente no
se, antes, de uma "retomadu dessa experiêncza exatamente no que
caminho seguido pela vanguarda russa. Na opinião de Gullar, ela possuia de mats revoluciond~io".'~
"Os contra-relevos de Tatlin e Rodchenko, como as arquite- I
Em sua opinião, a arte neoconcreta trouxe à baila uma
turas suprematistas de Malevitch indicam uma evoluçáo coe-
questão fundamental, "a do fim da pintura entendida como
rente do espaço representado para o espaço real, das formas
uma linguagem que tem por suporte a tela, o quadro, e por
representadas para as formas criad~s".'~
vocabulário as formas não-figurativas", ou, de forma ainda
Ao final do texto, Gullar opõe a radicalidade das obras
mais ampla, a do rompimento com as categorias tradicionais
neoconcretas i "face conservadora e reacionária" das experiên-
da arte, em especial a oposiçáo entre pintura e escultura:
cias tachistas e informais, que se valiam ainda "dos apoios
convencionais dos gêneros artísticos". Os neoconcretos, retomando a questão da forma significativa, que os
Ferreira Gullar foi ainda, como vimos, um dos primeiros concretistas abandonaram voltados para puros problemas de estrutura e
a sustentar que o movimento neoconcreto representava não tensões cromáticas, rompem com o conceito tradicional d e quadro e es-
somente um enriquecimento das proposiçóes construtivas, cultura e propõem umalinguagem efetivamente náo figurativa, isto é, cuja

" Ferreira Gullar, "Concretos de Sáo Paulo no MAM do Rio", inAracyAmara1


'I Idem, op. cit.
(org.), fiojeto ionrnutivo brasileiro na arte (1750-1962).Rio de Janeiro, São
'' Idem, "Teoria do não-objeto", in Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger,
Paulo: MECPinacoteca da Estada de Sáa Paulo, 1977, Catálogo de Ex-
Abstrrzcionirmo gtomirrico e informal - A vanguarda brnsileini no, ano, cin- posição, p. 140. Artigo publicado originalmente noJornaldo Brarilde 16 de
qüenta. Rio d e Janeiro: FUNPIRTE, 1987, p. 240. Não é preciso relernbrar aqui julho de 1960.
a constante tentativa de filiagão dar experiências neoconcretas com o trabalho
de Malevitcli.
" Feireira Gullat, 'Xrte neoconcreta: uma contribuição brasileira", in idem, p.
120. O grifa é nosso.
expressão dispensa um espaço metafórico para se realizar. A obra neo- às indagaçóes daquele momento, sem buscar respostas que aparente-
concreta realiza-se diretamente no espaço real, sem os apoios semânticos mente eram novas, mas que de fato eram retrocessos. [...I Queriamos
convencionados na moldura (para o quadro) e na base (para es~ultura).'~ realmente fazer uma coisa nova e tínhamos a coragem de nos desligar do
que se fazia lá fora, do contrário não desenvolveríamos a experiência
Posteriormente, em diferentes ocasióes, Gullar voltaria a como ela se desenvolveu. N6s nem sabíamos o que acontecia no mundo
enfatizar a originalidade da arte neoconcreta não apenas em todo. [...I Quando eu afirmo iuo, mostro o caráter relativamente autônomo
nível nacional como também internacional. No texto de apre- que tinhamos aqui, apeiar da sincronia existente entre história e cultura.
sentaçáo de uma exposição dedicada ao neoconcretismo, rea- Só assim uocêpode realmente criar as coiiar e aqui o problema da depen-
I dência culturalestápresente. O neoconcretirmo duma demonstraçáo de que,
lizada em 1984, Gullar afirma que tal movimento marca
na medida em que uocêse desliga dessa dependência, pode não só criar coisar
próprias, originais, como pode tambdm se antecipar aos caras que sempre
o momento em que a arte brasileira efetivamente assume a proble-
ditarampara nós o que nói temor que fazer."
mática radical da arte contemporânea e é também, e por isso mesmo, a
primeira vez que, dentro desse processo, ela é realmente vanguarda -já
que seria um contra-senso chamar-se de vanguarda cxpressóes estéticas que, Quanto à inadequaçáo da arte concreta à realidade socioe-
qualquer que seja seu valor intrinseco, repetem formas importadas. [...I conômica brasileira dos anos 1950, ele náo deixou margens
O caráter radical da arte neoconcreta é que a colocou na condição efetiva a dúvidas:
de vanguarda em termos internacionais e foi esse caráter também que lhe
abriu perspectivas para a criação de obras originais e para f ~ r m u l a ~ ó e s Mas que viabilidade tinha semelhante proposta estética num pais
teóricas autônomas. [...I Com a arte neoconcreta, a arte brasileira ganha como o Brasil onde, naquela época, náo havia sequer uma escola de
maioridade, no sentido de que se defronta com a problemática estética desenho industrial e onde a própria atividade do designer tinha um
contemporânea e sua crise: perde a i n o c & n ~ i a . ' ~ campo muito mais limitado que o de hoje? E como realizar em nosso
meio uma arte que exigia um conhecimento matemático que os artistas
Em entrevista publicada em 1987, ele retomou essa ques- brasileiros não tinham e um nível de acabamento técnico (no caso da
táo, ressaltando entáo o caráter autônomo do neoconcretismo escultura) só possivel em pafses de considerável desenvolvimcnto iiidus-
e declarando, uma vez mais, que este trial e tecnológico? E sem falar em tudo o mais que coinpiie :I vida cul-
tural e social brasileira tão distante do mundo suíço."
era mais radical, n a verdade, do que o concretismo. Por isso ek se
an~ecil,oti,inclusive, a movimentos de&ra. Ele estava muito mais ligado O u ainda:

I
I
I5 ldeni, 01'. eit. " Entrevista com Ferreira Gullar, in Fernaiido Coccliiaralee Anna Bella Geiger,
I Idem, "Arrr ricoconcreta:uma experiência radical", in Ciclo deExpoiigóerrobre op. cir., pp. 93 e 101-2. Ogrifo 6 nosso.
I Artt no /(ia de Janeiro: n<oconcretirmo/l959-1961. Ferreira Gullar, "Arte neoconcreta: uma experiência radical", in op. cit.
i

Qualtuer u m d e nós p o d e ver e gostar d e u m a escultura d e Max Bill. apresentar o neconcretismo como avesso a regras e imposições
E e u sei dc u m artista que m e veio contar, entusiasmado, a história d e um teóricas desde suas origens, na fundação do grupo Frente.2o
operário que se interessou por uma das obras desse escultor suíço, exposta Apesar de seu reducionismo, esta atitude, que tem sua
I
i
I n o Rio. Mas dai a tentar fazer, n o Brasil, escultura daquele tipo é perder contrapartida na supervalorizaçáo do neoconcretismo, terá
a noçáo de realidade: aquela arte é produto de alto desenvolvimento téc- vida longa no Brasil. Em artigo no qual discute com pro-
nico e indistrial. Prova disso é q u e o mais evidente defeito das esculturas priedade as principais características do movimento concre-
concretas realizadas n a Brasil era sua péssima execução. E isso era u m tista brasileiro, Vanda Mangia Klabin náo escapa a essavisáo
grave, gra~íssimodefeito, pois o rigoroso acabamento das obras d e Bill é simplista, chegando mesmo a questionar, ao final de seu tex-
propriedade inerente à precisão d e suas formas escultóricas, matematica- to, se a assimilaçáo de tais idéias pela jovem vanguarda bra-
mente con:ebidas. A impossibilidade d e realização material, n o Brasil, d e sileira não teria sido um equívoco:
tais escultiras não é apenas u m a limitação evenrual mas u m dado objeti-
vo que revda o desligamento entre o artista concreto e a realidade d o país." O s concretistas daráo &fase sobretudo ?aestrutura, como uma carac-
terística fundamental d a obra, ao rigor e i autodisciplina. O seu pro-
Essa nterpretaçáo, mais interessada, aparentemente, em grama estético é doutrinariamente rigoroio, segundo os postulados básicos
apresentar o movimento concreto como "uma importação de d a arte construtiva. O caráter auitero vai se refletir na sua posição teórica,
mão única", como um conjunto de normas ou propostas rígi- n o sentido d e limpar a forma de todas as impurezas. Eles exercem u m a
das de trabalho, às quais os artistas de todo o mundo deveriam forte pressão sobre o ambiente artístico brasileiro, a p o n t o d e alguns
obedecer cegamente, nega qualquer possibilidade de adaptação críticos afirmarem q u e "o concretismo foi, para muitos, u m a espécie d e
ou de acomodação de idéias vindas de fora. Seu esquematismo servi50 militar obrigatórion." Es~apostvrnortodoxd, vinc~rladaaor moldes
fica ainda mais visível quando a comparamos à tentativa de europeus, e a incompreenrão da complexidade cultural brasileira tende a
torná-los alheios à nosra realidade. [,..I SuasjÒrmula~óesnão contam uma

" Idem, Culturaportaem g u ~ i t l j oRio


. de Janeiro: Civilizn~ãaBrasileira, 1765,
pp. 17-18. Essa visáo é partilhada por Ivan Serpa, que, em entrevista con- 'O Sobre o grupo Frenrc, por exemplo, Gullai afirma: "O grupo Frente não pos-
cedida a Ferreira Gullar em 1765, declara: 'X arte concrrra nunca teria dado suía menos duas das características comuns aos mavimenros de van-
certo no Brasil. Ela foi fruto de um equívoco. Mas era natural que isso acon- guarda: a defesa de uma única linha esrilistica e um embasamento teórico.
tecesse. Faltavam-nos meios para enrcnder as coisas e sobretudo para entender Isso se deve ao modo como nasceu e às condições em que surgiu. Não obs-
tiosso próprio país. Prercndemos fazer hoje uma arte altamente técnica num cante, desempenhou um papel de renovação da arre brasileira, abrindo ca-
pais subdcsenvolvido. Deveriamos ter seguido nossa arre borocuda e esta- minho para reali~a~óes bem mais audaciosas, como as do movimento neo-
riamos hoje em melhor situação. Mas faltaram orienradores, faltou lucidez. concreto". Idem, "O grupo Frente e a rcaiáa neoconcreta", in A. Amara1
E canto o concrerismonáo tinhaconsistência que hoje são raros as queainda (org.),ap. cit,, p. 143.
rraballiam nesse rumo". Em "O artista já não pode fechar-se em si mesma", " Aautora refere-se aqui a uma expressáo empregada, como veremos, por Fre-
entrevisra concedida por Ivan Serpa a Ferreira Gullar, Revista Ciuilizapío Bra- derico Morais, um dos maiores defensores da ideiade um projeta construtivo
deira, na 2, maio 1765, p. 263. brasileiro na arte.
iodos os outros movimentos culturais e artísticos nacionais, classe média, [...] a um esforço da classe média intelectualizada
cuidou apenas de importar o modelo e adaptá-lo às circunstân- brasileira de se atualizar cult~ralmente".~~
cias locais, sem um questionamento propriamente crítico".25 "O relacionamento dos artistas concretos com a teoria da
Seu livro Neoconcretismo, vértice e ruphra do projeto cons- gestalt", sempre segundo Brito, "era de ordem didática, quase
trutivo brasileiro, editado pela primeira vez em 1985 e trans- uma aprendizagem livresca", representando uma simples "ma-
formado em referência obrigatória na historiografia sobre as nipulaçáo do saber gestáltico, náo uma prática que o supere."
vanguardas construtivas no Brasil, deve ser considerado, a meu Ele ressaltou ainda a "direção necessariamente decorativa e
ver, uma tentativa de atualizaçáo das idéias de Ferreira Gullar. pueril que a seqüência da produçáo concreta tomaria" em sua
O principal objetivo de sua análise parece ser o de demonstrar "ânsia de superar o atraso tecnológico e o irracionalismo de-
a radicalidade e a singularidade do neoconcretismo, de apre- corrente do subdesenvolvimento", afirmando que
sentá-lo, de forma semelhante à usada por Gullar, como um
momento privilegiado da produçáo de arte brasileira em sua a leitura daprodupío visualdo concretirmo brariieiro era atlcertoponto
busca de independência completa dos centros artísticos in- pobre epouco informativa. Náo apenas porque o movimento não revelou
.-
ternacionais. nenhum artirta particularmente intererrante mas por causa das próprias
Embora Brito considere que o concretismo tenha repre- [...I Há algo d e evidentemente "coloni-
características de seu sistema.
sentado, nos anos 1950, a única forma de estratégia cultura! zado" e m seu mimetismo d o racionalismo formalistasuiço. [...I. A pro-
I
capaz de opor-se às correntes nacionalistas, intuitivas e po- duçáo visual d o concretismo brasileiro se ressente de u m didatirmo que
pulistas entáo em voga, ele revela-se extremamente crítico estreitava as manobras do artista, preocupado em seguir umplano aprio-
quando analisa este movimento, definindo-o como uma rírtico. O trabalho era, por assim dizer, resultado e não processo.27
"ideologia cientificista e desenvolvimentista" que resultou
em um "desvio mecanicista" e "limitou-se em última instância No outro p61o de seu estudo, situa-se o movimento neo-
à experiência retiniana", censurando o "esquematismo redu- concreto, que ele considera um "retorno das intenções expres-
cionista", a 'Tacionalidade programática" e o "teoricismo pau-
listas" e seu "fetiche do tecnológico". A arte concreta bra-
l6 Idem, ap. cit., pp. 50-5 1.0grifo 4 nosso. Briro, ao contrário de Cados Zilio,
sileira, em sua opinião, "não conseguia dissimular uma de- náo faz a relaFáoentre a origem social privilegiada das artistas neoconcretos
fasagem cultural tipicamente subdesenvolvida: ela parecia e sua postura experimentalista.
ignorar as verdadeiras condições sociais em que emergia e Idem, op. cit., pp. 44, 47 e 51. O grifo é nosso. Por vezes, porém, o próprio
autor tenta nuançar suas afirmações: "Não se pode afirmar que o concretismo
dizia bem menos respeito à nossa realidzde cultural mais ampla considerasse o trabãlha de arte uma simples aplicaçáo de métodos, ou uma
do que às afètaçóes epretensóes de um grupo uanguardista de rígida formalizaFão de dados perceprivos mais ou menos cientificos. Há a
questão da invenrividade na manipulação, há mesma umavontade de 'sen-
"Idem, op. cir., p. 50. sibilizar' a geometria". Idem, op. cit., p. 85.

132
I1
!
sivas ao centro do trabalho da arte. Resgatava-se a noçáo tra-
dicional de subjetividade contra o privilégio da objetividade
concreta".28. Segundo Brito, o neoconcretismo "significou a
continuarem pensando no interior do quadro de referência
construtivo exclusivamente":

manutenção de um espaço experimental aberto contra o redu- Este o radicalismo neoconcreto: opor-se ao sistema da arte como
cionismo racionalista e tornou possível uma relativa negati- estava constituído, com suas convenções, por meio de seus experimen-
vidade dentro da tradição constr~tiva".~~ Sobre a continuidade talismos. E isso de uma forma bem efetiva, não apenas teórica. Estava
evolutiva entre os dois movimentos, ele parece concordar ipsis ancorado na realidadedo ambiente culturnl bra~ileiroe os sew lances tinham
litteris com Gullar ao afirmar que o neoconcretismo "é cla- eficácia ali: o movimento de certo modo liquidou arfitt~rasde qualquer
ramente o segundo movimento de uma sinfonia, daí talvez sua projeto cultural constrrrtiuo orgnnizadopara o Brasil ao mesmo tempo em
i
maior liberdade em relaçáo h matrizes e sua exigência de uma que deixou resíduos de uma atitude sistematicamente critica e liberatdria
produçáo nacional mais especlfira. A grosso modo o concretismo diante dos estreitar limites dentro dos quais seprocessava aqui a prática da
I seria afase dopdtica, o neoconcretismo afdse de ruptura, o con- arte. [..I Esse, o materialismo neoconcreto, o de introduzir n o circuito
cretismo a fdse de implantaçáo, o neoconcretismo os choques da
i
d a arte brasileira o conceito de i n t ~ r v e n ~ ácritica
o por meio d e uma
adaptação hd".30 prática que forçou sempre os limites d o projeto construtivo e acabou
Se o concretismo representou uma importação passiva de revelando a impossibilidade de sua inscriçáo em nossa ~ealidade.~"
propostas e conceitos alheios a nossa realidade, o neocon-
cretismo foi "sobretudo uma skrie de experiências de labo- A tese de queo neconcretismo representa o ponto máximo
ratório: havia um passado construtivo local que lhes permitia do ideário construtivo no Brasil é igualmente adotada pelo
I uma segurança suficiente para que se colocassem as questões crítico Frederico Morais, um dos maiores defensores do con-
I mais avançadas eprodutoras de ruptura da Ppoca. [...I Uma ceito de "vocação construtiva" na arte brasileira e latino-ame-
1 exposiçáo neoconcreta aparecia, então, como o ponto mais ricana em Ele identifica a noçáo de "esforço de orde-

I avançado e 'livre' da pesquisa de arte no país"."


Sua análise vai mais além, ao lançar a hipótese de que o
neoconcretismo deve ser considerado "o resultado de uma
naçáo do caos" como um dos traços caracteristicns de toda

crise local: a impossibilidade de os agentes culturais brasileiros


j2 Idem, op. cit., p. 82. O grifa é nosso.
j3 Morais chega a "caracterizar nossa vontade construtiva como algo mais pro-
fundo e anterior i própria existência da conattutiuismo em alguns paises
'' Idem, ap. cit., p. 58. europeus" e a "levanrarhipóteses em torno de uma posshel influência nossa
l9 Idem, op. cit., p. 75.
sobre a arte eurapeia e norte-americana". Frederico Morais, "Vocaçáo cons-
'"Idem, ap. cit., p. 55. O grifo nosso. rrutiva (mas a caos permanece)",in Arreipldrticar naArnéricaLatina:do m n i r
j' Idem. op. cit., pp. 55 e G5. O grifo é nosso. ao tramitdrio. Rio de Janeiro: Civili~a~áaBrasileira, 1971, pp. 78-79.
sociedade em fase inicial de desenvolvimento econômico, afir- Quatro anos mais tarde, Morais afirmaria que "a crítica
rilaiido, por exemplo, que latino-americana era unânime em constatar o caráter orgâ-
nico de nossa arte construtiva", enfatizando, como os autores
em umasociedade como a nossa, onde tudo está por fazer, por cons- já citados, a superioridade do neoconcretismo em razão de
truir, a arte, integrando um esforço de definiçáo de um projeto nacional sua maior adequaçáo ao contexto brasileiro:
elou continental, adquire o sentido de organização do real, de transfor-
maçáo e construção de uma nova sociedade. [...I Terá sido justamente esta assada a fase inicial, que se manifesta em cada pais como um pe- I
vontade de oidem que levou iaceitaçáo dos modelos construtivos táo logo riodo de limpeza, de assepsia, de "serviço militar obrigatório" (como di-
se anteviu a possibilidade de um desenvolvimento econômico acelerado
de nosso Continente como no final da Segunda Guerra Mundial."
ziaTarsila d o Amaral em relaçáo ao cubismo), logo em seguida (as opo-
siçóes ConcretolMadi, concretismolneoconcretismo) há um esforço de
I
adaptaçáo nossa realidade: variada, dispersa, contraditória, Iúdica.
Em artigo no qual analisa uma exposiçáo coletiva realizada nesse momento, quando a arte construtiva já se encontra impregnada de
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1975, Mo- nosso ser, de nossa alma, que começamos a exportar.)'
rais defendeu esse ponto de vista, discorrendo sobre o que con-

I sidera ser a característica intrínseca da arte brasileira: E em 1987, por ocasiáo de uma gande exposiçáo coletiva
I Mas para alguma coisa está servindo a exposição. Umavez mais, tica
sobre arre brasileira apresentada no Brasil e na França, Morais
assinalou que a arte neoconcreta trouxera uma efetiva con-
evidenciado que em seus momentos cruciais, a arte brarileira reuela uma
tribuiçáo ao cenário artístico internacional: "Ela foi uma das
superior vontade de conrtnrfáo e de rigor. E na história recente de nossa
bases permanentes da criatividade plástica brasileira, cujo
arte dois momentos ciilminantes dessa tendência construtiva são o con-
mérito foi de introduzir no universo da racionalidade cons-
crerismolneo-concretismo dos anos 50 e o "neo-construtivismo" dos
últimos anos da década passada. Contudo, mesmo fora dessas "estreitas
trutiva européia, a expressáo, ou seja, a emoção, conferindo-
cumeadas", a preocupaçáo com uma arte rigorosa, quase sempre abstrata, lhe assim uma dimensáo Ilrica e humani~ta".~'
tem sido uma constante entre nossos artistas, mcsmo cntre os mais jo-
vens. A importância dessa arte construtiva crerce, sobretudo na medida em
que ela integra, com maior ou menor consciência, um processo mais amplo 36 Idem, "Vacaqáo construtiva (mas o caos permanece)", in Artrrpid~tirasna
egeralque P o d<rconstruçáo de uma nova realidade brarileira, ou melhor, Amkrica Latina ...,op. cit., p. 90.
j7 Idem, "Entre Ia construction et le reve: I'iibime', ili Mirie-Odile Briot et al.,
ela participa dn firmnla~áode nosso projeto dc Naçáo,'l
Modernidode, art brdsilien duZffri>clr.Paris: Musée U'Art Maderne de IaVille
de Paris, 1987, Catálogo de Exposiqão, p. 48. Ncsic texto, Morais procura

! " Idem, op. cir., 1'1'. / o e 07.


Idem, "Voca~áaconstrutiva", O Globo. Rio de Janeiro, I5 abr., 1975. O grifo
nuançar o valor danocão de vocação construtiva dn arre brasileira. No entanto,
quando da realizasão da prirneiraBienal do Merc<is<ll,cm Porto Alegre, da qual
'I ele seria o curador, serviu-se novamente desta no@ como fia condutor da
e exposição.
Sem desprezar a complexidade do debate e suas implicações grande maioria dos artistas participantes dos dois grupos es-
ideológicas, faz-se necessário questionar a pertinência de -
no- quivava-se, em seus depoimentos, de definições rigorosas,
ções como "vontade construtiva" ou "projeto construtivo", que, interpretando a polêmica entre os mentores dos movimentos
em realidade, não levam em conta o pluralismo da vida cultural como "uma briga entre os chefóes". Esta é a opinião de Hér-
brasileira de todas as épocas. Tais noções ignoram a heteroge- cules Barsotti, que, ao ser questionado a respeito de ser verda-
neidade das pesquisas empreendidas simultaneamente por di- deiramente um artista neoconcreto, argumentou: "Bom, eu
versos artistas em diferentes regióes do país em favor da cons- não sei, concreto, neoconcreto, para mim 6 tudo a mesma
trução de um modelo que pressupõe, implicitamente, que a coisa. Era uma briga entre os chefóes. Aquilo era uma briga
cada momento analisado s6 possa existir uma única via apro- entre os chefóes. [...I Não me considero de grupo nenhum,
priada de trabalho, uma única instância de legitimação artís- de Rio ou de São Paulo. Não tenho nada a ver com isso. Fui
tica. Elas fundam um critério estilístico que deixa de lado todos convidado para participar da exposição, s6 isso".38
-aqueles que, durante o mesmo período, se aventuraram por Durante a mesma entrevista, Luís Sacilotto apresentou
outros caminhos, apresentando-os como retrógrados ou sub- sua versão sobre o rompimento entre o grupo de São Paulo
missos. Esse recorte arbitrário, que nadamais faz além de ofe- e o do Rio de Janeiro, que transcreverei quase na íntegra:
recer um esquema superficial de uma realidade bastante com-
plexa, limita bastante, a meu ver, o valor teórico dessas noções. O Gullar veio aqui em São Paulo convidar o Barsotti e Willys [de
Em última análise, os fins inerentes a esse discurso consistiam Castro] porque sabia que o Cordeiro não concordava com eles. [...I O
em (re)definir uma identidade cultural brasileira, em apreender Gullar não escolheu Maurício Nogueira Lima nem o Fiaminghi. Por que
e exaltar a especificidade da arte brasileira isolando-a em um escolheu os dois? Porque estavam separados do grupo concreto. Entáo
campo fechado, ao abrigo de interferências externas. Da mes- era uma forma de ... uma estratégia, uma formade luta. [...I A diferença
ma forma que Clement Greenberg, interessado em difundir a estava no Cordeiro e na Gullar, entre os dois, um problema criado por
imagem do expressionismo abstrato como a verdadeira arte de eles. E os pintores sofreram: em São Paulo, contra o Gullar, e os do Rio,
vanguarda norte-americana, rejeitou com veemência, no início contra0 Cordeiro. [...I Entáo, em 1956, foi a data fundamental da arte
dos anos 1960, apop art, o minimalismo ou ainda a arte con- concreta. Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956. Em
ceitual, Ferreira Gullar, empenhado então em promover o neo- 1957, foi feita no Rio de Janeiro. Estava indo tudo bem, todo mundo
concretismo, denunciaria a arte concreta e a pintura informal de acordo. Os pintores eram concretos, os poetas faziam poesia concreta.
como linguagens veiculadas pelos grandes centros internacio- Mas o Rio de Janeiro cismou de inventar uma palavra: neoconcreto. Não
nais, que nada tinham a ver com o desenvolvimento do país.
Enquanto críticos e historiadores procuraram contrapor
"Depoimentos de arristas:Hércules Barsorti e Luis Sacilarto", Revirta do Mum
a arte concreta à neoconcreta, delimitando-as rigidamente, a dtArteModerna deSdo Paulo, nD2,ano I . Sáo Paulo, da.1999, pp. 38-50.
era neoconcreto. Era concreto. O Aluísio Carvão, artista do Rio d e Ja- tinha que incentivar os seus soldados. É evidente. Náo ia in-
neiro, artista concreto. Estava para viajar para a França, estava para ir centivar os outros".40
para a Europa, e jornalista: "Aluísio Carvão, artista neoconcreto", "que E Fayga Ostrower, por sua vez, destacou o empenho dos
neoconcreto, eu sou concreto". Outro particular: o Weissmann, escultor. críticos na elaboraçáo de teorias sobre os movimentos: "As
O repórter também chegou: " O senhor 6 neoconcreto?" "Não, eu sou discussóes eram muito curiosas. Sei que os concretistas ti-
concreto". Entáo, por que neoconcreto? Eu sei da histdria, mais ver- veram seus expoentes em alguns críticos de arte que realmente
dadeira do que os livros falam. Foi uma briga entre o Cordeiro e o Gullar, construíram toda uma série de teorias em torno desta posição,
Ferreira Gullar. Foi uma escultura minha, que expus no Rio de Janeiro: enquanto o mesmo não aconteceu com a arte informal. Não
Lygia Clark e Sacilotto. Começou a briga ali. O Gullar defendia Lygia houve nenhum crítico que teorizasse sobre a arte inf~rmal".~'
Clark, o Cordeiro defendia Sacilotto. Nesse vai-e-vem, surgiu o Ma-
nifesto Neoconcreto, do Rio de Janeiro, do objeto, do Gullar... Dizia que
os paulistas eram frios, matemáticos. Não é nada disso. N ã o é nem frio
nem matemático. Uma falha do Gullar. Não só dele. Dali surgiu o mo-
vimento neoconcreto, e depois, teve o caso do Hélio Oiticica, que era
u m bom pintor e depois fez os "parangol6s", Lygia com aquela arte d e
apalpar com a mão ... [...I Esse é o panorama geral que talvez vocês não
soubessem porquê 'cneoconcreto" e "concreto". N ã o é motivo d e ordem
teórica, é motivo d e ciumeira dos cariocas. O Gullar, queria ele ser o
porta-voz da pintura concreta, o que não era possivel, porque o Cordeiro
era duro d e cair.3'

Alguns pintores informais, por outro lado, ressaltaram o


poder da crítica de arte na ampla divulgação, no Brasil, da " Entrevista com Iberê Camargo, in Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiges
op. cit., p. 181.
abstração de tendência geométrica. Iberê Camargo, por exem-
plo, foi categórico ao afirmar que tal fato se deu "porque a
" Entrevista com Fayga Osrrower, in idem, op. cit., p. 173. Sobre a oposição
concretismo verrur tachismo, nacional vrrrírr internacional, Ostrower ques-
pessoa que estava de posse da crítica, com a coluna da crítica, tiona: "É passivel um tipo de forma ser mais brasileira e a outra menos? Na
+oca eu achava o movimento concreto extremamente intelectual, intelec-
era engajada nesse movimento, participava desse movimen-
tualista, e a problema em si bastante limitado, pois no fundo já tinha sido
to, era um criador desse movimento. Entáo naturalmente resolvido. As relações formais das obras não eram novas, seja na coloca@.o
do espaço ou no seu despojamento. Era um tipo de sensibilidade que real-
mente procurou uma certeza e uma segurança, um caminha mais fácil, e que
' W p . cit não deixou grande lastro. Náo vejo continuadares no Cancretismo".

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